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O objetivo do presente artigo é, com base setores se apossam de uma experiência histórica
na análise de um evento em prol da construção comum de forma diferenciada. Parte-se do
de um memorial em homenagem aos lanceiros pressuposto que essas apropriações contem-
negros no município de Pinheiro Machado (RS),1 porâneas de um episódio passado estão intima-
fazer algumas considerações sobre as disputas mente relacionadas com a configuração de
simbólicas que se travam em torno dessas identidades étnicas e regionais e com as relações
figuras. Trata-se de compreender como diversos entre os diferentes grupos formadores do Rio
Grande do Sul. Antes disso, contudo, entendo
*Doutoranda em Antropologia Social pela UFRGS. ser necessário familiarizar o leitor com o con-
1. Pinheiro Machado é um dos municípios mais antigos do texto com base na qual emerge essa questão.
Rio Grande do Sul. Até 1830, a sua área pertencia a Rio
Grande. Depois passou a integrar a cidade de Piratini,
Os gaúchos compartilham experiências
desmembrando-se em 24 de fevereiro de 1879, sob a deno- históricas marcantes que são constitutivas de
minação de Nossa Senhora da Luz das Cacimbinhas. A po- seus modos de imaginação, cognição e ação,
voação desse município, segundo registros, iniciou-se pelo
brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, por volta de 1765. Os bem como de sua identidade regional (Grimson,
primeiros habitantes foram os açorianos Thomaz Antônio 2003). Os conflitos bélicos nos quais a região e
de Oliveira e José Dutra de Andrade, que receberam sesmarias seus habitantes estiveram envolvidos são even-
na Coxilha do Velleda, em 1790. Segundo a lenda, Dutra de
Andrade teria perdido a visão e feito uma promessa. Se ele tos que são constantemente evocados para falar
a recuperasse ao lavar os olhos nas águas das cacimbinhas, do espírito livre e combativo do povo do Rio
mandaria construir uma capela em honra de Nossa Senhora
da Luz. O milagre teria ocorrido. Depois da capela, foi
Grande do Sul. Dentre eles, a Revolução Farrou-
criado um curato em 1851. Em 1857, foi elevada a fregue- pilha2 é, com toda a certeza, o mais lembrado.
sia e em 1878 ocorreu a emancipação. O município de Ela é representada pelos movimentos regiona-
Cacimbinhas teve seu nome mudado para Pinheiro Macha-
do no governo do intendente provisório Ney Lima Costa,
quando o senador José Gomes Pinheiro Machado foi assas- 2. Segundo Flores, “a Revolução Farroupilha faz parte dos
sinado no Rio de Janeiro, por Mânsio de Paiva, que era um movimentos liberais que abalaram o Império do Brasil no
morador da região de Cacimbinhas. A mudança de nome período regencial, quando explodiram dissensões políticas
não foi aceita pela população, que se rebelou contra o entre os liberais federalistas e os conservadores unitários
intendente, forçando-o a deixar a cidade. nas províncias do Ceará (1831-1832), Pernambuco (1831-
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CARVALHO, ANA PAULA COMIN DE. O memorial dos lanceiros negros: disputas simbólicas...
listas como um momento marcante de nossa Apesar de omitidos pela maior parte da
história, um episódio de bravura que resultou em historiografia tradicional, os negros desempe-
uma separação temporária do RS do restante nharam papel fundamental para as forças
do Brasil. Essa guerra que durou dez anos é rebeldes farroupilhas durante o conflito com o
relacionada com a imagem do gaúcho como Império. Estima-se que eles tenham, durante
guerreiro valente e heróico que tem nesse essa revolução, composto de um terço à metade
conflito o pano de fundo para as suas façanhas. do exército rebelde (Leitman, 1997, p. 61-78).
Dessa forma, configura-se como uma referência Eles foram integrados às fileiras farroupilhas em
para a exaltação dessa figura, ou seja, a menção duas divisões, uma de cavalaria e outra de
aos heróis farroupilhas se insere na lógica de infantaria, criadas respectivamente em 12 de
construção desse tipo social a ser cultuado setembro de 1836 e em 31 de agosto de 1838,
(Brum, 2004). Além disso, é em torno desse denominadas de Corpos de Lanceiros Negros,
episódio que se estabelece simbolicamente a sendo compostas por negros livres e escravos
relação do gaúcho com o restante do país, seja libertados pela República sob a promessa de
para afirmar o seu caráter autônomo, seja para lutarem nas fileiras de seu exército (Carrion,
evidenciar que ele é brasileiro por opção 2003, p. 6-7). Antes mesmo da criação desses
(Barcellos, 1997; Oliven, 1986 e 1990) Todos corpos, os negros já haviam desempenhado
os anos, em vários municípios do estado, são destacado papel em conflitos como a tomada
realizados cerimônias, desfiles, acampamentos de Porto Alegre, em setembro de 1835, e de
e comemorações em tributo à memória dessa Pelotas, em abril do ano seguinte. Negros livres
guerra.3 Esses eventos são promovidos por e alforriados, juntamente com índios, mestiços
prefeituras, governo do estado e pelos movimen- e escravos fugidos do Uruguai contribuíram com
tos regionalistas. a causa farroupilha não somente como soldados,
A conformação da imagem do gaúcho mas também trabalhando como tropeiros, men-
sublinha a presença luso-brasileira no Rio Grande sageiros, campeiros, na fabricação de pólvora e
do Sul e o valor da imigração européia e simul- nas plantações de fumo e erva-mate cultivadas
taneamente omite a presença do negro (Bar- pelos rebeldes (Leitman, 1997, p. 69, nota 28).
cellos, 1996). Como observa Maciel (1994), a Na madrugada de 14 de novembro de 1844,
construção da nossa identidade regional passa no Cerro de Porongos, então município de
por cima das mais diversas clivagens de ordem Piratini, atualmente pertencente à cidade de
social, econômica, étnica e cultural, operando Pinheiro Machado, ao sul do estado do Rio
com a idéia da existência de uma homoge- Grande do Sul, parte de um dos corpos de
neidade. Ainda que se distinga da configuração lanceiros negros foi dizimada pelas tropas
do povo brasileiro, essa “fábula regional” não imperiais. Esse episódio recebeu diversas deno-
prescinde da ideologia da mestiçagem nas situa- minações: “Surpresa”, “Batalha”, “Massacre”
ções em que se torna impossível ignorar a ou, ainda, “Traição de Porongos”. A morte dos
presença dos negros na região. A elaboração guerreiros negros nesse evento gerou uma
do imaginário gaúcho sobre si mesmo exclui o acalorada controvérsia entre os historiadores e
negro dos estudos históricos e da própria socie- estudiosos que se debruçaram sobre o tema da
dade (Barcellos, 1996). Revolução Farroupilha que tem continuidade até
os dias de hoje.
1835), Minas Gerais (1833-1835), Grão-Pará (1835-1840), Um primeiro grupo defende a tese de que
Bahia (1837-1838), Maranhão (1838-1841) e Rio Grande
do Sul (1835-1845)” (2004, p. 25). É chamada de revolu- o comandante do destacamento de negros em
ção porque implicou a mudança de governo com a institui- questão, o general farroupilha David Canabarro,
ção do sistema republicano, mas, de acordo com o autor, teria desarmado e separado os lanceiros do
trata-se de uma guerra civil entre aqueles que aderiram ao
movimento e os que não o fizeram. restante das tropas acampadas nas imediações
3. Como observa Maciel (1999), as representações associ- do Cerro de Porongos para que fossem aniqui-
adas ao gaúcho construídas pelo tradicionalismo foram lados pelo exército imperial sem oferecer
gradativamente adotadas pelo poder público, estabelecen-
do-se como “oficiais”. Uma análise mais aprofundada desse resistência. Ele teria feito um acordo com o líder
processo pode ser encontrada em Oliven (1991). imperial Barão de Caxias objetivando livrar-se
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dos soldados negros para facilitar a assinatura administrativos (federal, estadual e municipal)
do tratado de paz que vinha sendo negociado. para que ele promovesse políticas públicas em
O Império do Brasil mostrava-se contrário à relação ao tema. Desde 2003, está em anda-
idéia de premiar com liberdade os escravos mento o processo de constituição de um memo-
insurretos. Além disso, parcelas da elite gaúcha rial aos lanceiros negros em área do Cerro de
temiam a possibilidade de que esses negros Porongos promovido pela Prefeitura Municipal
politizados e militarizados pudessem se somar a de Pinheiro Machado, em parceria com o gover-
outros em algum levante contra a ordem vigente. no estadual e contando com o apoio da Fundação
O indício que corrobora essa tese é a existência Cultural Palmares, ligada ao Ministério da
de uma carta remetida pelo Barão de Caxias Cultura. Embora o referido memorial venha a
para o coronel Francisco Pedro de Abreu, ser edificado no município de Pinheiro Machado,
comandante da força imperial que atacou os esse fato mobiliza pessoas de outras cidades do
lanceiros em Porongos. Esse enfoque interpre- Rio Grande do Sul. Até mesmo porque a idéia
tativo vê esse episódio como uma traição do de construí-lo partiu inicialmente de um grupo
general farrapo aos soldados negros a ele subor- de integrantes do movimento negro de Guaíba,
dinados. Essa posição é adotada na atualidade município da região metropolitana de Porto
por alguns pesquisadores e por integrantes do Alegre. Foram eles que, no ano de 2002, procu-
movimento negro. raram a administração da referida cidade para
Por outro lado, um segundo grupo de apresentar o projeto, que não foi, ao menos
estudiosos defende que a citada carta teria sido naquele momento, levado adiante. Posterior-
forjada pelos imperiais com o intuito de desmo- mente, no ano de 2003, em função da visibilidade
ralizar David Canabarro e criar cisões entre os nacional que produções cinematográficas deram
farrapos. Nessa perspectiva, o assassinato dos ao tema, os governos municipal e estadual
lanceiros negros teria sido uma surpresa e não retomaram a idéia e buscaram parceria com o
uma traição, já que teriam sido pegos despre- governo federal e a sociedade civil para concre-
venidos. Tal enfoque é adotado principalmente tizá-la. Constituiu-se um grupo de discussão para
pelos tradicionalistas. a viabilização do projeto e, a partir de então,
Embora o movimento tradicionalista tenha
foram realizadas diversas atividades sobre o
se apropriado da questão dos lanceiros negros
tema. Dentre elas, destacam-se seminários e
há bastante tempo,4 somente nos últimos anos o
celebrações no dia 14 de novembro (data prová-
Massacre de Porongos voltou a ser discutido
vel do massacre dos lanceiros negros) na cidade
de forma mais evidente, não apenas por histo-
de Pinheiro Machado. A prefeitura do município
riadores e estudiosos da Revolução Farroupilha,5
comprou uma área junto ao Cerro de Porongos
mas por negros que buscam o reconhecimento
de três hectares para a construção do memorial.
da participação de seus antepassados, como
No ano de 2004, foi colocada uma pedra que
protagonistas, da constituição do Rio Grande do
servirá de base à futura edificação e publicado
Sul e de momentos cruciais de sua história.6
um protocolo de intenções para a realização de
Integrantes do movimento negro pressio-
um concurso nacional para a escolha do artista
naram o Estado em seus diferentes níveis
que a produzirá. Cabe salientar que, nos últimos
4. Entre as entidades ligadas ao Movimento Tradicionalista
dois anos, as celebrações do 14 de novembro
Gaúcho encontramos quatorze que utilizam a palavra no município de Pinheiro Machado contam com
lanceiros em sua denominação. O movimento tradiciona- a presença de negros de várias partes do Rio
lista colocou um marco em homenagem aos “bravos farra-
pos” à beira da estrada dos Cerros de Porongos em 1983, em
um projeto de levar a chama crioula a diversos pontos do 6. É importante lembrar também que o tema obteve visibi-
estado significativos para os gaúchos. Em 1996, um piquete lidade nacional por meio de produções cinematográficas
do município de Pinheiro Machado apresentou no desfile de como o filme Netto perde sua alma, dirigido por Beto Sou-
20 de setembro o tema dos lanceiros negros, causando sur- za e Tabajara Ruas, lançado em 2001, e a minissérie da TV
presa e curiosidade no público. Globo A casa das 7 mulheres, baseada no romance homôni-
5. Vide como exemplo FLORES, Moacyr. Negros na Revo- mo de Letícia Wierzchowski, dirigida por Jayme Monjardim
lução Farroupilha. Traição em Porongos e farsa em Ponche e Marcos Schechtmann e exibida entre 7 de janeiro e 8 de
Verde. Porto Alegre: EST Edições, 2004. abril de 2003.
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CARVALHO, ANA PAULA COMIN DE. O memorial dos lanceiros negros: disputas simbólicas...
Grande do Sul.7 Durante esse período, em muni- exercício da cidadania com base na alteridade,
cípios como Caçapava do Sul e Porto Alegre, do reconhecimento da existência de grupos
foram erigidas placas em homenagem aos étnicos diferenciados.
lanceiros negros. Como membro da equipe de pesquisa do
Em nível federal, o Instituto de Patrimônio Inventário sobre o Massacre de Porongos tive
Histórico e Artístico Nacional (Iphan), também a oportunidade de conversar com várias pessoas
ligado ao Ministério da Cultura, está realizando envolvidas no processo de discussão para a
desde 2004 um inventário de referências construção do memorial em homenagem aos
culturais sobre o tema para o eventual registro lanceiros negros e identificar um contexto de
deste como patrimônio imaterial. Fui convidada, disputas simbólicas em torno dessa figura de
como antropóloga, a compor a equipe de forma bastante similar ao observado por Brum
pesquisa que realizou a etapa de levantamento (2004) em relação ao personagem de Sepé
preliminar do inventário sobre o Massacre de Tiarajú. Trata-se de um campo de interlocução11
Porongos. regional onde diferentes atores sociais (movi-
Essas ações do poder público foram inicia- mento negro, movimento tradicionalista, pesqui-
das em virtude da mobilização política do sadores, políticos, entre outros) debatem e
movimento negro, mas também em decorrência produzem narrativas sobre o tema.
de um contexto político mais amplo, no qual se
afirmam a questão identitária e o reconheci- O contexto local
mento da diversidade. Referimo-nos a um pro-
cesso que se intensificou a partir dos debates Com a emancipação de Pedras Altas em
da Constituição de 1988 e que implicou mudan- 1996, antigo distrito da cidade onde se localiza o
ças no regime de visibilidade da etnicidade castelo da Granja Pedras Altas, construído por
brasileira, de uma situação de invisibilidade8 para Joaquim Francisco de Assis Brasil,12 o município
uma crescente hipervisibilização das diferenças. de Pinheiro Machado perdeu uma de suas
A incorporação da multiculturalidade por meio principais atrações turísticas.13 A construção de
de leis e políticas de Estado9 se fez acompanhar uma edificação em referência aos lanceiros
de programas e linhas de financiamento de negros possibilitaria à cidade pleitear sua inclusão
agências internacionais para a promoção de na Rota Farroupilha.14 A importância que o
grupos tradicionalmente excluídos.10 O discurso
assimilacionista de outrora que buscava tornar 11. Segundo Grimson (s/d), um campo de interlocução é um
os étnicos nacionais, os diferentes iguais, é espaço social e simbólico no qual um conjunto de atores
interage e, portanto, reconhece nos outros – incluindo seus
substituído na atualidade por outro em que se adversários ou inimigos – um interlocutor necessário. O
discutem mecanismos de garantia de direitos e conceito pode aplicar-se a níveis globais, regionais ou naci-
onais, entre outros.
12. Assis Brasil ergueu a fortaleza com traços medievais em
7. A celebração ocorrida em 14 de novembro de 2004 con- uma das paisagens mais isoladas do Rio Grande do Sul para
tou com a participação de mais de três mil negros oriundos mostrar que era possível desfrutar a natureza sem ficar
dos municípios de Cachoeira do Sul, Caxias, Guaíba, Pelotas, embrutecido. A idéia não era ostentar, mas enobrecer o
Piratini, Porto Alegre, Rio Grande, São Lourenço, entre campo. O diplomata, que privou com reis e chefes de Esta-
outros. do, achava que o arado e o livro eram as ferramentas do
8. A invisibilidade pode ocorrer no âmbito individual, cole- progresso. Em 1999, o governo tentou tombar o castelo de
tivo, nas ações institucionais, oficiais e nos textos científi- Pedras Altas como monumento histórico, mas os descen-
cos. Não implica dizer que a diversidade não é vista, mas que dentes de Assis Brasil recusaram, preferindo manter o cas-
é tida como inexistente. Trata-se de um mecanismo de telo com a família.
negação do outro, muitas vezes inconsciente, que produz e 13. Entre as atrações turísticas do município de Pinheiro
reproduz a discriminação e o preconceito (Leite, 1996). Machado, o grande destaque é a realização da Comparsa da
9. Refiro-me ao Artigo 68 do Ato de Disposições Constitu- Canção Nativa, considerado um dos maiores festivais de
cionais Transitórias da Constituição Federal de 1988: “Aos música nativista do estado. É realizado anualmente no últi-
remanescentes das Comunidades dos Quilombos que este- mo final de semana de janeiro, durante a realização da Feira
jam ocupando as suas terras é reconhecida a propriedade e Festa Estadual da Ovelha (Feovelha), também considera-
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos tí- do um dos maiores eventos do gênero em nível nacional.
tulos”. 14. Cinco cidades estão envolvidas na implantação da Rota
10. Vide o exemplo da atuação da Fundação Ford no Brasil Farroupilha: Alegrete, Candiota, Piratini, Caçapava do Sul
nos últimos anos. e Dom Pedrito. Participaram prefeitos, secretários de Tu-
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CARVALHO, ANA PAULA COMIN DE. O memorial dos lanceiros negros: disputas simbólicas...
minado Nossos heróis não morreram – 160 Ato de Abertura: Lançamento da Pedra Fundamental
anos de Porongos, nos dias 13 e 14 de do Memorial Lanceiros Negros.
novembro de 2004, no município de Pinheiro Horário: 11h.
Machado/RS. Este foi organizado pela Comissão Leitura da Carta de Duque de Caxias a Canabarro.
Memorial Lanceiros Negros – composta pelo Assinatura de Protocolo de Intenções para Edital de
Ministério da Cultura/Fundação Cultural Pal- Concurso Público Pró-Memorial. Apresentações:
mares, governo do Estado/Secretaria da Cultura, Poema “Carga de Lança”, recitado por Sirmar Antu-
Prefeitura Municipal de Pinheiro Machado, nes. Toque de Tambor com a chegada dos Cavaleiros
Movimento Negro Unificado, entre outras enti- Lanceiros Negros. Toque de Clarim.
dades. A programação foi a seguinte: Almoço afro na cidade de Pinheiro Machado.
Horário: 14h.
Dia 13/11/2004.
Recital de Poesia, com Liliana Cardoso. Apresentação
Ato Solene de Abertura.
do Grupo Teatral de Encruzilhada do Sul.
Local: Teatro Municipal de Pinheiro Machado.
Horário: 18h. Para fins de análise, não descreverei de
Atividades Culturais: Grupo de Teatro Tropeiros dos forma cronológica o desenrolar dos fatos, mas
Sonhos, Grupo de Dança Liberdade de Expressão, sim em virtude das possíveis interpretações que
Grupo de Dança 100% Hip Hop, Associação de me proponho a fazer sobre o significado deles.
Capoeira Filhos da Roda. No final da tarde do dia 13, no Teatro
Horário: 19h. Municipal Ludovico Pórzio, ocorreu uma sole-
Espetáculo de música e dança Lanceiros Negros. nidade de abertura na qual estavam presentes
Artistas: Loma, Sirmar Antunes, Gel e Cia de Dança, representantes do governo municipal, estadual,
Raízes D´África. federal, do Iphan, do movimento negro, entre
Horário: 20h30. outros. As autoridades falaram algumas pala-
Atividades Artísticas: Grupo de Teatro Tropeiros do vras sobre os lanceiros negros e a importância
Sonho, Grupo de Pagode Tempero do Samba, Grupo da construção do memorial para uma platéia de
de Pagode Nosso Jeito, Grupo de Pagode Quilom- aproximadamente quinhentas pessoas oriundas
bolas do RJ. da própria localidade e de entidades do movi-
Local: Praça Municipal de Pinheiro Machado. mento negro de outras cidades.
Horário: 22h30. O prefeito Carlos Ernesto Betiollo e o
Vigília: Toque de Tambor Afro. Recepção aos secretário de Indústria, Comércio e Turismo do
Cavaleiros de Porto Alegre e CTG Lila Alves. município, Paulo Ricardo Javiel Rezende,
Local: Praça Municipal de Pinheiro Machado. referiram-se à Batalha de Porongos como um
Horário: 1h. “evento”. Nas palavras do prefeito, a questão
Recital Poético com Sirmar Antunes. dos lanceiros negros tornou-se um projeto social,
Horário: 2h. cultural e turístico.16 O representante da Secre-
Dia 14/11/2004.
taria de Cultura do Estado, Manoel Claúdio
Local: Cerro de Porongos – Município de Pinheiro
Borba, disse que esperava que o resgate dessa
Machado.
história permitisse a verdadeira integração do
Abertura de “Caminhos” por Ialorixás.
Rio Grande do Sul, uma vez que, antes de sermos
Horário: 9h.
desta ou daquela raça, éramos gaúchos. A
posição desses políticos de diferentes esferas
Leitura de Documento da Comissão Pró-Memorial
Lanceiros Negros.
16. Em todos os eventos oficiais sobre o tema, os políticos
Horário: 9h15. locais evitam se posicionar sobre o caráter do episódio his-
Apresentação Grupo Teatral de Pinheiro Machado. tórico – se surpresa ou traição –, reafirmando a importân-
cia de seu resgate para o município como um todo. Como já
Horário: 9h30. foi mencionado anteriormente, a administração municipal
Apresentação de Grupo Temático Ponto Z. de Pinheiro Machado adquiriu três hectares nas proximida-
Horário: 10h. des do Cerro de Porongos para a construção do memorial.
Além disso, ela colocou placas de sinalização ao longo do
Apresentação Grupo Quilombolas RJ. percurso que leva até o local. O prefeito está construindo
Horário: 10h30. com recursos próprios um hotel na cidade.
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(municipal e estadual) reflete o interesse pela mudanças na execução do hino demonstram que
exploração turística de um fato histórico sem o processo de construção do memorial aos
que isso implique discutir o que tal evento lanceiros negros constitui um momento privile-
significou ou passa a significar para os negros giado para que atores sociais historicamente
do RS ou de que forma ele se relaciona com o marginalizados – como os negros e, dentre eles,
contexto das relações interétnicas em nosso nesse caso, as mulheres negras – tentem inscre-
estado. Como foi explicado anteriormente, há ver performativamente contracoerências – sobre
um conjunto de fatores que tornam o desenvol- o fim dos lanceiros negros e sobre os próprios
vimento do turismo uma questão muito atraente negros – na narrativa dominante sobre a história
para a cidade de Pinheiro Machado. O destaque do Rio Grande do Sul. Dessa forma, através de
que se dá à identidade gaúcha como algo suas performances, as mulheres negras
primordial, mais importante que outras identi- desvelam o caráter ideológico da história oficial
dades sociais, remete a uma figura unificadora, de nosso estado, subvertendo os sentidos
homogênea, que se sobrepõe às diferenças atribuídos à escravidão e ao extermínio dos
sociais, econômicas, culturais e étnicas. soldados negros (vide Bhabha, 1998).
Ao fim dos discursos, uma representante Na encenação da peça Lanceiros negros,
do movimento negro local, Rosa Claudete Vaz na noite do dia 13, diversos elementos foram
Duarte, cantou o hino riograndense,17 mas com associados às suas figuras: a religiosidade afri-
algumas alterações. No verso que diz “povo que cana, a musicalidade e a própria África. Eles
não tem virtude acaba por ser escravo”, ela foram representados como combatentes se-
cantou “povo que não tem virtude acaba matan- minus, descalços, com lanças em punho, guer-
do escravo”. Em outro momento do evento, reando ao som do batuque. As correlações com
atores e dançarinos encenaram a peça Lancei- o continente africano não pararam por aí. No
ros negros, dirigidos por Ney Ortiz,18 com a dia 14 pela manhã, distante 27 km do centro de
participação especial de Sirmar Antunes. 19 Pinheiro Machado e junto ao Cerro de Porongos,
Entre as músicas do espetáculo, mais uma vez foi inaugurada a pedra fundamental no local onde
o hino riograndense é interpretado por uma deverá ser construído o memorial aos lanceiros
mulher negra. Desta vez, a expressão “povo que negros. Nela foi gravado um poema que trans-
não tem virtude acaba por ser escravo” é crevo a seguir:
substituída por “povo que é lança e virtude a
clava quer ver escravo”. Na solenidade de aber- ANCESTRALIDADE
tura do evento, na manhã do dia 14, essa mesma
performance pôde ser observada. A alteração Ouço no vento
O soluço do arbusto.
dessa estrofe do hino muda o sentido da palavra
É o sopro dos antepassados.
escravo de uma condição em que se chega pela Nossos mortos não partiram,
falta de virtude para a de possuidor dessa Estão na densa sombra.
qualidade que é vítima daqueles que não a têm. Os mortos não estão sob a terra.
Ela também remete ao evento em que os lan- Estão na árvore que se agita,
ceiros negros foram mortos e ao caráter daqueles Na madeira que geme,
que foram os responsáveis por tal ato. Essas Estão na água que geme,
Estão na água que flui,
Na água que dorme,
17. O hino farroupilha foi elevado a hino do Rio Grande do
Sul por uma lei estadual de 1966, como parte de um proces- Estão na cabana, na multidão.
so de expansão do tradicionalismo junto ao poder público, Os mortos não morreram.
que colaborou em muito para oficializar a ideologia do mo- Nossos mortos não partiram.
vimento (vide Oliven, 1991, e Maciel,1999). Estão no ventre da mulher,
18. Artista plástico negro, fundador do grupo cultural Raízes No vagido do bebê e no tronco que queima.
da África, e residente em Porto Alegre (RS).
Os mortos não estão sob a terra,
19. Ator negro gaúcho, ficou nacionalmente conhecido por
sua atuação no filme Netto perde sua alma, no qual inter-
Estão no fogo que se apaga,
pretou o sargento Caldeira, integrante do corpo de lanceiros Nas plantas que choram,
negros durante a Revolução Farroupilha. Na rocha que geme,
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Ney Ortiz, visivelmente alterados pela ingestão Centro de Tradições Gaúchas por dois anos.
de bebidas alcóolicas, discursaram do alto da Temos, sim, que ter em nossas ruas, avenidas,
sacada do teatro municipal para algumas deze- logradouros públicos os nomes dos nossos
nas de pessoas que permaneceram em vigília à heróis farrapos; dos nossos políticos como
Getúlio Vargas e outros, que, pela coragem e
espera do espetáculo pirotécnico. Eles falaram
pela competência, fizeram deste Estado um dos
explicitamente sobre a traição de Canabarro e mais respeitados da Nação Brasileira.22
da obrigação que os tradicionalistas tinham de
pedir perdão aos negros gaúchos por cultuarem A posição do artigo expressa a insatisfação
tal figura. Entre a platéia que assistia, estavam dos tradicionalistas com o teor das declarações
os representantes do poder público municipal proferidas por integrantes do movimento negro
que se mostravam contrariados com tais decla- ou por seus representantes na esfera estatal.
rações, principalmente aqueles que dentre eles Como foi dito no início do texto, a Revolução
faziam parte de entidades tradicionalistas. Farroupilha é um dos principais elementos que
Alguns dias depois, em um site do município de compõem o imaginário sobre a figura do gaúcho.
Pinheiro Machado, encontramos o seguinte Colocar em discussão o seu caráter ou o de seus
comentário de Luiz Henrique Chagas da Silva, heróis representa uma afronta à tradição e ao
secretário de Administração da cidade, que próprio movimento. Além disso, aceitar a idéia
acompanhou todo o evento: de uma traição implica assumir que o precon-
ceito fazia e ainda faz parte da sociedade gaúcha
Os Homens de Preto.
e que as relações entre brancos e negros não
Nos dias 13 e 14 de novembro, mais precisa- são pautadas pelos ideais liberais, progressistas
mente no final do dia 13 e na manhã do dia 14, e democráticos atribuídos ao movimento farrou-
Pinheiro Machado viveu um importante pilha. No entanto, ao mesmo tempo em que
momento histórico, eis que aqui foi realizado alguns negros atacam a figura de David Cana-
um grande evento alusivo aos 160 anos do
barro, outros se apropriam do tradicionalismo,
Episódio dos Porongos. Pelo que fomos infor-
mados, dezessete ônibus estavam estaciona- como ilustra o momento da madrugada do dia
dos junto ao Cerro dos Porongos. Realmente 14, em que dois negros a cavalo e devidamente
uma atividade cultural intensa, com pronun- pichados entregaram uma placa aos represen-
ciamentos bem colocados, outros nem tanto – tantes do movimento negro local. Eles eram de
carregados de ideologia política – culminando um piquete de Porto Alegre criado recentemente
com descerramento da placa na pedra funda- e que se denomina Lanceiros Negros.
mental e assinatura do Protocolo que autoriza Como o leitor pode observar, ao longo do
a abertura de Concurso Público Federal visando texto o processo de construção do memorial aos
à construção do Memorial ao Lanceiro Negro.
lanceiros negros apresenta várias categorias em
Tivemos importantes colocações, porém outras
que além de carregadas de desconhecimento ação. Dentre elas, destacamos as de gaúcho e
da nossa história e da nossa cultura, como a negro. Ao colocá-las em prática num evento
que exigia que todos os logradouros públicos como o que descrevemos, corre-se o risco que
que levassem o nome de David Canabarro elas tenham as estruturas de significados que
fossem substituídos, como se não tenha sido normalmente lhe são impostas subvertidas.
o General um grande defensor da causa Dessa forma, diversos atores sociais – políticos,
Farroupilha e um bravo guerreiro, como se integrantes do movimento negro, tradicionalistas,
fosse possível acreditar que a Carta de Caxias
entre outros – disputam seus sentidos em uma
indiscutivelmente não foi forjada. Convenha-
mos!!! Comungo da tese de que os negros não verdadeira luta simbólica na qual o que está em
lutaram por um ideal que não fosse a alforria, a jogo é o poder de definir o que venham a ser
liberdade; que não tinham tratamento igual aos tais categorias em termos conceituais (Sahlins,
demais “soldados”; que foram traídos nesta 2003). Se, para os tradicionalistas e para muitos
essência, mas não posso partilhar da idéia de políticos, a categoria negro deve ser englobada
que tudo na Revolução Farroupilha tenha sido
traição e mentira como aqui foi plantado, ou 22. Coluna de 26 de novembro de 2004, disponível em
então seria um idiota quando fui patrão de http//www.pinheironline.com.br.
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CARVALHO, ANA PAULA COMIN DE. O memorial dos lanceiros negros: disputas simbólicas...
pela de gaúcho, para os integrantes do movi- FLORES, Moacyr. A Revolução Farroupilha. Porto
mento negro as duas não se excluem e até Alegre: Ed. da UFRGS, 2004.
mesmo podem se complementar, isto é, gaúcho _____. Negros na Revolução Farroupilha. Traição
também é negro e vice-versa, em um processo em Porongos e farsa em Ponche Verde. Porto Alegre,
no qual nossa identidade regional enegrece e a EST Edições, 2004.
identidade étnica desse grupo se agaúcha, o que GRIMSON, Alejandro. La nacion después del
nos possibilita pensá-las de forma mais plural. desconstructivismo. La experiencia argentina y sus
fantasmas. Sociedad, n. 20-21, Buenos Aires, 2003.
_____. La etnicidade migrante. [s/d.]
ILHA, Adair Silva; ALVES, Fabiano Dutra e
Abstract: Taking as universe empirical a event on behalf SARAIVA, Luis Heitor Barboza. Desigualdades
of building the one memorial in honour at black lancers in regionais no RS: o caso da metade sul. Texto
the Pinheiro Machado city (RS), I undertake for the
disponível em http// www.fee.tche.br/sitefee/
symbolic disputes what is happening around this figures.
I look for to demonstrate what the differents appro- douwload/eeg/1/mesa_3_ilha_alves_saraiva_pdf.
priations the one historic experience in commom – the LEITE, Ilka Boaventura (Org.). Negros no Sul do
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