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I - O tempo e o vento
O continente faz parte da trilogia O tempo e o vento, que Erico Verissimo escreveu entre os
anos de 1949 a 1962. Se levarmos em consideração que já no final de O resto é silêncio, de
1943, o escritor Tonio Santiago (alter-ego de E. V.) imagina um livro sobre a formação
histórica gaúcha através da passagem cíclica do tempo, pode-se argumentar que o autor
levou vinte anos para a consecução de sua obra, que é, seguramente, o mais importante
romance histórico já escrito no País.
Além disso, O tempo e o vento assinala uma ruptura com aquilo que o próprio Erico vinha
produzindo, no que se convencionou chamar de sua primeira fase. Nela se percebia ainda
um escritor hesitante, cheio de talento, mas incapaz de encontrar o seu verdadeiro caminho.
São relatos urbanos, de temática sentimental, com observações sobre os costumes das
classes médias, voltados em sua maioria para jovens casais (Clarissa - Vasco; Fernanda -
Noel) que tentam um "lugar ao sol", através de existências baseadas na procura da bondade,
da ética e da beleza.
Através dos dramas individuais localizados na sucessão de várias gerações das famílias
Terra e Cambará - que se entrelaçam duas vezes - E. V. realiza uma investigação da história
rio-grandense, conotando os destinos de seus personagens com os momentos decisivos da
formação da província sulina.
2. ABRANGÊNCIA TEMPORAL
O continente tem a duração de cento e cinqüenta anos, iniciando com um episódio nas
Missões Jesuíticas, em 1745, e terminando com o fim do cerco ao sobrado dos Cambarás,
em junho de 1895.
O retrato e O arquipélago somados duram apenas cinqüenta anos, pois O tempo e o vento
acaba cronologicamente em 1945, com a queda de Getúlio Vargas, que representa o
crepúsculo da dominação dos estancieiros gaúchos sobre o país. Em seu conjunto, portanto,
o romance abrange exatamente dois séculos.
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3. O SENTIDO DOS TRÊS LIVROS
Em seu conjunto, O tempo e o vento não é apenas o mais notável romance histórico
brasileiro, tampouco uma criação artística centrada exclusivamente sobre a formação social
rio-grandense e suas origens épicas e míticas, passando pela longa hegemonia política e
econômica dos estancieiros até sua derrocada, na década de 1940. É mais do que isso, é
uma sutil discussão sobre o significado da existência. Verifica-se isso no confronto
estabelecido dentro da narrativa entre duas forças antagônicas:
Pode-se dizer que o tempo está associado aos homens, na medida em que estes antecipam o
trabalho daquele, contribuindo, através da violência sistemática, com a força destruidora a
que o tempo tudo submete.
Já o vento relaciona-se simbolicamente com as mulheres, porque estas representam a
resistência humana contra as guerras e o instinto da morte. Para isso, Ana Terra, Bibiana
Terra e Maria Valéria Terra valem-se da memória (sempre deflagrada em noites de vento).
Atiçada pelas ventanias, a memória feminina restabelece lembranças dos que já partiram e,
ao evocá-los, injeta neles um sopro de vida. Lembrar é, pois, resistir ao sem-sentido do
tempo e protestar contra a morte.
Por isso, no final da trilogia, o escritor Floriano Cambará - sentindo-se mais próximo das
recordações femininas que da arrogância guerreira dos homens - resolve salvar a memória
que as mulheres conservaram de todas as experiências fundamentais da família Terra-
Cambará. E registra, então, sob a forma de um romance, o mundo passado que o tempo,
inexoravelmente, transformaria em pó, em nada. Para o escritor, só a arte responde à falta
de significado da vida humana. Só a arte tem o poder de resistir à voragem do tempo.
"Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de
tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado."
Fechando-se sobre si mesmo, o romance termina da mesma forma que, duas mil e duzentas
páginas antes, havia iniciado: "Era uma noite fria..."
II - O CONTINENTE
ESTRUTURA NARRATIVA
O outro desvio nasce da inserção no texto de "intermezzos", isto é, de rápidos quadros - seis
ao total - escritos em linguagem próxima à lírica, quase em versos, e no tempo verbal do
presente. Funcionam como passagens intermediárias da narrativa central, e são verdadeiros
poemas em prosa. A rigor, parecem desempenhar um tríplice papel no romance:
Divisão de episódios
Argumento
Uma índia grávida (estuprada por algum bandeirante) aparece nas Missões, dá a luz a um
menino mestiço e morre. O garoto é batizado de Pedro e se torna protegido do padre
Alonzo, um jesuíta espanhol que, mais tarde, o presenteará com um punhal de cabo e
bainha de prata, punhal este que atravessará os duzentos anos de O tempo e o vento, como
um símbolo da bravura de seus portadores.
Pedro, à medida que cresce, é dominado por uma visão mística da existência: fala com a
Virgem Maria e profetiza que Sepé Tiaraju vai morrer. Tem grandes pendores musicais e
toca flauta admiravelmente. Quando as tropas luso-espanholas, em função do Tratado de
Madri, derrotam os exércitos indígenas e aproximam-se para destruir os Sete Povos, Pedro
monta num cavalo baio e foge sem destino.
Argumento
Ana Terra descobre, nas terras de seu pai, Maneco Terra, um índio ferido, de tez
relativamente clara (Pedro Missioneiro). Olhado com desconfiança pelos Terra, o índio se
recupera e acaba permanecendo na fazenda como uma espécie de agregado. Surpreende a
todos com suas habilidades campeiras, com seu repertório de histórias e lendas e com sua
capacidade de tocar flauta. Na primeira vez que Pedro executa uma música, Ana é tomada
de grande emoção:
"Sentiu então uma tristeza enorme, um desejo amolecido de chorar. Ninguém ali na
estância tocava nenhum instrumento. Ana não se lembrava de jamais ter ouvido música
naquela casa."
A solidão de Ana Terra e o desejo que atormenta seu corpo levam-na a desenvolver uma
paixão contraditória pelo estranho:
"E ali, no calor do meio-dia, ao som daquela música, voltava-lhe como nunca o desejo de
homem. Pensava nas cadelas e tinha nojo de si mesma."
Até que, por fim, ela termina por se entregar ao missioneiro. Desses furtivos encontros
amorosos resulta a gravidez da moça, descoberta pela mãe e também pelo pai, que,
escondido, ouve a confissão da filha. Em seguida, Horácio e Antônio, irmãos de Ana,
arrebatam Pedro Missioneiro e carregam-no para um ermo, a fim de assassiná-lo,
confirmando a visão do próprio índio, que antevira em sonho a sua morte.
Pedrinho (Pedro Terra) nasce e, a exemplo de sua mãe, recebe total desprezo do avô,
Maneco, e dos tios criminosos. Ana, por seu turno, tem o coração definitivamente seco em
relação a seus familiares. A única pessoa que estima é a mãe, D. Henriqueta. E quando esta
morre, Ana Terra não tem pena, porque "a mãe finalmente tinha deixado de ser escrava".
Alguns anos mais tarde, o avô se reconcilia com o neto, Pedro, por ocasião do plantio do
trigo, velho sonho de Maneco Terra. Sonho de que o menino compartilha
emocionadamente.
Mortos todos os homens da casa, Ana Terra resolve partir com as duas crianças
sobreviventes e a cunhada. Viajam de carreta com uma família em busca de um lugarejo
(Santa Fé) que acaba de ser fundado por um "coronel", Ricardo Amaral, e constituído até
então por apenas cinco ranchos. Ana constrói o seu. E com o passar do tempo - valendo-se
de uma tesoura de podar - torna-se a parteira do povoado.
a) Seu erotismo, ampliado pela solidão e pela sensação de infelicidade de viver naquele
mundo perdido que é a fazenda do pai. Daí a sua entrega corpórea a Pedro Missioneiro.
"Era assim que o tempo se arrastava, o sol nascia e se sumia, a lua passava por todas as
fases, as estações iam e vinham, deixando sua marca nas árvores, na terra, nas coisas e nas
pessoas."
d) A profissão de parteira que Ana adota como uma metáfora da vida, enquanto a seu redor
guerras e revoluções campeiam com todo um tributo à destruição e à morte. Decorre daí
também o seu ardente pacifismo e seu entranhado ódio à violência em que os homens
parecem se comprazer.
e) A relação que Ana estabelece entre o vento e as coisas importantes de sua vida, a
associação entre as "noites de vento, noite dos mortos" e, por fim, a própria ligação do
vento com a memória feminina. Esta memória - açulada pela natureza - é ao mesmo tempo
o tormento, o consolo e a arma de defesa das mulheres contra a falta de sentido da
existência.
3. Um certo Capitão Rodrigo
Gaudério de bela figura física e não menor carisma pessoal, Rodrigo Cambará conquista a
vila de Santa Fé com seus ditos espirituosos: "Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de
prancha e nos grandes dou de talho!" Ou ainda: "Cambará macho não morre na cama!"
Juvenal, filho de Pedro Terra, é o primeiro a simpatizar com o estranho. Bibiana, sua irmã
(e reprodução da avó, Ana Terra) logo se apaixonará pelo forasteiro, reafirmando sua
indiferença a Bento Amaral, filho do coronel que manda no povoado. Já Pedro Terra,
homem reservado e circunspecto, detesta desde o início aquele gaudério anarquista, cujo
único propósito na vida parece ser o de atender aos seus impulsos básicos, especialmente os
guerreiros e os eróticos.
O Coronel Ricardo Amaral Neto exige que Rodrigo parta de Santa Fé, mas este se recusa.
Em seguida, o alegre capitão desentende-se - por causa de Bibiana - com Bento Amaral. No
duelo que se segue, Rodrigo Cambará consegue colocar sua marca à faca na cara do rival,
não conseguindo concluir a perna do R. Vencido e humilhado, Bento atira com arma de
fogo, ferindo gravemente o Capitão. Este oscila entre a vida e a morte e, nessas
circunstâncias, solidifica sua amizade com o padre Lara que vai ajudá-lo e tentar convertê-
lo ao cristianismo. Rodrigo se safa da morte, tão ateu quanto antes, mas completamente
apaixonado (desejo físico, acima de tudo) por Bibiana. Juvenal e o padre auxiliam-no em
sua tarefa, facilitada pelo ardoroso sentimento que a moça (tem vinte e dois anos) nutre por
ele. Com a visível discordância de Pedro Terra, Rodrigo e Bibiana acabam se casando no
Natal de 1829.
Após os ardores dos primeiros meses, Rodrigo começa a se entediar. A nova profissão
(tornara-se "bodegueiro" em sociedade com o cunhado Juvenal) lhe parece intolerável. Os
próprios cheiros da venda lhe causam aborrecimento. Mesmo os filhos que vão nascendo -
Anita, Bolívar e Leonor - não lhe restituem a perdida alegria de viver. Trai Bibiana, torna-
se um jogador e um bêbado, recusa-se a voltar para casa quando o chamam por causa da
doença da filha Anita. Ao retornar, enfim, já pela madrugada encontra a menina morta.
Mesmo assim, Bibiana continua apaixonada pelo "seu" capitão.
A chegada dos primeiros alemães em Santa Fé, no ano de 1833, é o grande assunto da vila.
Rodrigo obviamente enlouquece por uma jovem imigrante, Helga Kunz, e com ela se
relaciona, mas para sua surpresa a alemã abandona-o, partindo para São Leopoldo a fim de
casar-se com um conterrâneo alemão.
a) O fato do personagem central ter se transformado - mesmo que não fosse a intenção de
E. V. - no símbolo do gaúcho, com seu misto de bravura, fanfarronice, generosidade e
pensamento libertário. Talvez os gaudérios da época não tivessem o mesmo carisma.
Documentos da época pintam esses homens "sem rei nem lei" quase como párias. No caso
de Rodrigo, contudo, "a mentira histórica vira verdade artística".
b) A paixão instintiva (próxima do mundo animal) que o Capitão experimenta pela vida e
seus prazeres, especialmente os da cama e da mesa. Apesar disso, há em sua conduta um
substrato ético que o leva, por exemplo, a se posicionar contra os tiranos e a respeitar sua
mulher, Bibiana.
c) O forte sopro épico que percorre todo o episódio. A exemplo de Aquiles e de outros
heróis das epopéias gregas, Rodrigo Cambará acredita que só a ação guerreira dá sentido à
vida dos homens. A domesticidade e o cotidiano são os maiores inimigos desses
personagens, que só se sentem felizes no fragor das batalhas e das conquistas. Antológica é
a cena do Capitão, transformado em dono de venda:
"Rodrigo foi até a porta (da venda) e olhou para o alto. O vento trazia um cheiro bom de
capim e, aspirando-o, ele como que se embriagava. O fedor de cebola, alho e banha que
havia dentro de casa nauseava-o. Meter-se naquele negócio tinha sido a maior estupidez de
sua vida."
g) A paixão de Bibiana pelo gaudério é a melhor realizada entre todos os casos amorosos
que povoam O tempo e o vento. Independentemente dos adultérios de que é vítima, do
abandono e do desprezo do marido pela vida doméstica, ela continua amando-o como no
primeiro dia em que o viu. "Queria vê-lo mais uma vez, só uma vez"- pensa ela durante a
Revolução e um pouco antes do último encontro amoroso, numa sublime confissão de
desejo e afeto.
h) O fato de Bibiana reproduzir sua avó, Ana, tanto na obstinação, nos silêncios, no ódio à
guerra e às revoluções, na profissão de parteira e na lembrança dos mortos, dando
seqüência ao arquétipo feminino do romance.
4. A teiniaguá
Duração: 1850-1855
Argumento
Em 1850, Santa Fé já possui sessenta e oito casas e trinta ranchos. Chama a atenção o
magnífico sobrado construído por um nortista de origem misteriosa, Aguinaldo Silva. Dele
também é a melhor fazenda da região, a do Angico. Porém a sua principal atividade
econômica é a agiotagem e muitas terras, inclusive a pequena propriedade de Pedro Terra
tinham passado para suas mãos.
Aguinaldo tem uma neta adotiva, Luzia, de esplêndida beleza e "modos de cidade": veste-
se bem, é culta e toca cítara. Desperta paixões, especialmente entre os dois primos, Bolívar
e Florêncio (filho de Juvenal Terra) que a disputam. Luzia termina optando por Bolívar,
filho do Capitão e de Bibiana, herói juvenil na guerra contra o tirano argentino, Rosas.
É o Dr. Winter o primeiro a perceber a doença da alma que corrói a bela Luzia: a moça tem
prazer com o sofrimento alheio. Na hora do enforcamento do escravo, ela corre para a
janela a fim de se deliciar com o espetáculo:
"Primeiro o rosto dela se contorceu num puxão nervoso, como se tivesse sentido uma súbita
dor aguda. Depois se fixou numa expressão de profundo interesse que aos poucos foi se
transformando numa máscara de gozo que pareceu chegar ao orgasmo."
Por isso, casando-se com Bolívar, uma mente singela, ela se aproveitará para atormentá-lo.
No entanto, contraditoriamente, Luzia tem momentos de ternura e alegria para com o
marido, estraçalhando, pouco a pouco, os seus nervos de homem enfeitiçado. Esta
alternância de loucura e fascinação, revela uma Luzia não apenas sádica, mas também
masoquista, porque há passagens em que ela parece se comprazer com o próprio
sofrimento. Bibiana, a sogra, também percebe o que o Dr. Winter já enxergara e passa a
odiar a nora.
Em 1853, Aguinaldo Silva cai do cavalo e fratura o crânio, sobrevivendo ainda três dias. A
neta acompanha-o, minuto após minuto, comprazendo-se com o sofrimento do avô. Seu
sado-masoquismo é visível. O nascimento de Licurgo Cambará, o filho do casal, atenua
brevemente a situação. Em seguida, deixando o nenê nas mãos de Bibiana, Bolívar e Luzia
partem, numa viagem recreativa, para Porto Alegre.
Ao tentar rever o filho, Licurgo, a teiniaguá é impedida por Bibiana e tem um ataque de
fúria, chamando a sogra de "cadela". Bolívar então espanca a esposa e sai da sala, cada vez
mais arrasado interiormente. O Coronel Bento Amaral, aproveita-se do contexto para
vingar-se dos Cambarás, decretando a quarentena do sobrado. Isto é, durante quarenta dias
ninguém, a não ser o dr. Winter, poderia entrar ou sair do casarão. Capangas dos Amarais
cercam então o local para que a ordem do caudilho fosse cumprida. Bolívar - exasperado
pelas circunstâncias - não suporta a prepotência de Bento Amaral e com uma pistola na
mão sai de casa, tentando romper a quarentena. Há um tiroteio e quando o dr. Winter chega
à janela vê Bolívar "caído de borco, no meio da rua, com a cara metida numa poça de
sangue."
a) O caráter doentio de Luzia, indicando, de certa forma, que todas as mulheres que
ousassem quebrar o silêncio e a aceitação resignada da dominação masculina, teriam um
preço muito alto a pagar por sua autonomia.
b) A identificação - feita pelo Dr. Winter - entre Luzia e a lenda da teiniaguá - a princesa
moura transformada em lagartixa e que leva os homens à perdição.
c) A quebra da hegemonia masculina nas relações afetivas e sexuais. Bolívar é um escravo
de Luzia, em proporção semelhante à prisão amorosa e social de que Bibiana e as demais
mulheres sofriam em seus relacionamentos com os homens.
d) A personalidade complexa do Dr. Winter, que, além de suas penetrantes análises da vida
provinciana, revela forte ambigüidade diante do universo local. O que um europeu educado
e sensível faz naquela sociedade "tosca e carnívora, que cheirava a sebo frio, suor de cavalo
e cigarro de palha"? Ao mesmo tempo, aquele mundo primitivo o prende com o fascínio de
sua selvageria, com a beleza de suas paisagens e com a disposição hercúlea de seus homens
e mulheres que iniciam uma nova sociedade.
Repare numa dessas fascinantes observações do Dr. Winter sobre a vida em Santa Fé,
dirigidas ao intelectual alemão Carlos von Koseritz:
"Mein lieber Baron. Faz hoje quatro anos que estou em Santa Fé. Já não uso mais chapéu
alto, minhas roupas européias se acabam e eu desgraçadamente me vou adaptando. Sinto
que aos poucos, como um pobre camaleão, vou tomando a cor do lugar onde me encontro.
Já aprendi a tomar chimarrão, apesar de continuar detestando essa amarga beberagem. (...)
Estes invernos rigorosos de Santa Fé, em que às vezes sentimos mais frio dentro das casas
que fora delas, me ensinaram a beber uma mistura deliciosa. É cachaça com mel e suco de
limão. Positivamente divino! Se te contarem, Carlos, que morri embriagado numa sarjeta
em Santa Fé, podes acreditar na história, apenas com uma restrição: é que em Santa Fé não
tem sarjetas pela simples razão que não tem calçadas, como também não tem lampiões nas
ruas e como, em última análise, não tem nada. Talvez seja essa carência de tudo que me
fascina e me prende."
5. A guerra
Duração: 1869-1870
Argumento
Semi-inválido, Florêncio retorna da guerra quase em seu final. Através do Dr. Winter sabe
do confronto entre Bibiana e Luzia, dentro do Sobrado. Sabe também que Luzia tem um
tumor maligno no estômago e que cada mulher espera a morte da outra. Enquanto isso, na
fazenda do Angico, o adolescente Licurgo Cambará efetiva sua educação à maneira rio-
grandense, guiado por Fandango. Típico gaúcho fanfarrão, exímio contador de histórias,
conhecedor de casos e lendas, expressando-se por ditados, tendo apurada memória por
quadras, trovas e modinhas, dono, por fim, de grande sabedoria campeira, Fandango é o
professor do seu futuro patrão. A partir dessas experiências gratificantes, - e tendo como
contraponto, na cidade, a sombria doença da mãe - Licurgo só se sentirá à vontade no
campo, desenvolvendo uma primitiva identificação com as lides pastoris e as coxilhas.
b) A obstinação cruel de Bibiana em destruir a nora, Luzia. Isso serve para quebrar uma
certa idealização - construída nos capítulos anteriores - a respeito das mulheres da linhagem
Terra.
c) A cena terrivelmente dramática em que Luzia, tocando cítara em surdina, diz várias
vezes a Licurgo que vai morrer por causa do tumor em seu estômago e que ele ficará
abandonado, completamente sozinho, ao contrário de outros jovens que têm pai e mãe,
levando o rapaz à exasperação.
Duração: 1884
Argumento
Em 1884, Santa Fé é elevada à categoria de cidade. O Coronel Bento Amaral ainda domina
politicamente, mas Licurgo Cambará representa a oposição republicana que já não aceita a
hegemonia da oligarquia monarquista. O ódio entre as duas "casas" fica latente numa
cavalhada festiva, em que se enfrentam "mouros" e "cristãos", e o que deveria ser
encenação quase vira um confronto sangrento.
No plano pessoal, Licurgo vai se casar com sua prima Alice Terra (filha de Florêncio). A
irmã dessa, Maria Valéria Terra também o ama, mas sufoca seu afeto proibido.
Independentemente dos amores que desperta, o Cambará sente-se preso sexualmente a
Ismália Caré, filha de um agregado pobre que vive num rancho, na fazenda do Angico.
Sob a influência de um bacharel baiano que vive em Santa Fé, Toríbio Rezende, Licurgo
torna-se republicano e abolicionista fanático, libertando seus próprios escravos. Na noite da
libertação, ele vem a saber que Ismália Caré está grávida e decide que a amante "vai botar o
filho fora", isto é, que precisa abortar.
Além disso, há referências neste episódio a respeito da morte de Luzia. Surge também um
personagem interessante, o sacerdote Atílio Romano, italiano de nascimento e formação,
brasileiro de coração, magnífico orador e intransigente defensor da miscigenação étnica e
da paz entre os grupos que se hostilizam na província.
a) O quadro vivo da contenda política entre as frações dirigentes (Amaral versus Cambará),
cujos rancores e ódios já estão latentes antes da República e do triunfo do castilhismo.
b) A ambigüidade moral de Licurgo perante a sua futura esposa, Alice, pois não pretende se
livrar (nem se livrará) da amante, Ismália Caré.
c) A sua ambigüidade ética no caso da libertação dos escravos. Apesar da grandeza de seu
gesto, subjetivamente ele sente raiva e irritação com "aqueles negros" que pisam na sala do
Sobrado, alguns aturdidos e outros, arrogantes.
Substrato histórico: toda a ação transcorre em três dias de junho de 1895, nos estertores da
Guerra Civil entre republicanos ("chimangos") e federalistas ("maragatos").
Argumento
Vencendo seu medo, o maragato José Lírio chega na torre da igreja, de onde se domina o
quintal do Sobrado e, conseqüentemente, o poço de água que garante a sobrevivência dos
Cambarás e de seus homens. No entanto, ao pensar nas mulheres e nas crianças que estão
na casa fortificada, José Lírio acaba errando intencionalmente o tiro no chimango que, em
desespero, tentava buscar água no poço para matar a sede dos sitiados. Esta capacidade de
tolerância e de compreensão "daqueles que estão no outro lado" não são compartilhadas por
Licurgo Cambará, que se recusa a pedir trégua aos maragatos, tanto para cuidar dos feridos
e sepultar os mortos, quanto para atender sua esposa, Alice Terra, que está em trabalho de
parto e necessita de urgentes cuidados médicos. Inflexível e autoritário, Licurgo não aceita
os olhares recriminatórios do sogro, Florêncio Terra e da cunhada, Maria Valéria, mesmo
que a esposa e a criança corram perigo de vida. Para ele seria um ultraje à honra solicitar a
complacência dos inimigos.
O resultado de sua intolerância é que a menina nasce morta e é enterrada no porão da casa,
cheio de ratos. Também o sogro, Florêncio, provavelmente enfraquecido - durante o cerco
não havia mais nada a comer senão laranjas - termina morrendo no final do episódio, logo
após o fim do cerco do Sobrado, com o abandono da cidade pelas forças maragatas.
Na última página, Bibiana Terra já catacega e meio caduca, pede silêncio a Fandango, que
ia lhe levar a notícia da morte de seu sobrinho, e apontando para janela onde o vento uiva,
diz: "Está ouvindo?".
a) O brilhante jogo entre vida e morte, representado pelo parto de um lado e pela guerra, de
outro. Torna-se evidente o pacifismo do autor, pois o machismo, o sentido de honra e a
inflexibilidade ideológica de Licurgo Cambará são completamente impugnados no
andamento do episódio.
c) Não por acaso o começo de O continente (O Sobrado I) se dá com ele, José Lírio, ou
seja, um indivíduo que coloca o respeito à condição humana acima das ideologias e
interesses que arrastam os homens para a guerra. Este livro sobre a guerra começa, na
verdade, com um libelo a favor da paz.
d) O aparecimento - ainda que de modo periférico - dos dois irmãos, Toríbio e Rodrigo,
tendo este último papel decisivo nos livros subseqüentes.
e) A presença, agora mais intensa, de Maria Valéria Terra com idêntica função de Ana
Terra e de sua tia-avó, Bibiana. A mesma força interior, a mesma resistência silenciosa, o
mesmo desprezo pela violência guerreira dos homens.
"Uma crônica de sangue pontuada por sucessivas guerras, eis o cenário onde brota a gênese
da Província de São Pedro. Ao início de O continente, no episódio de Ana Terra, o espaço
físico foi inteiramente destruído após um ataque de castelhanos que massacraram todos os
homens válidos da fazenda de Maneco Terra. Sob a imensidão do campo, duas mulheres e
duas crianças sepultam os seus mortos. Desses escombros surge a personagem de Ana
Terra, armada de uma confiança absurda em si mesma, que se integra na caravana pioneira
para fundar, muito distante, a vila de Santa Fé. Com ela segue o filho, que será o pai de
Bibiana; e assim fica assegurada a continuidade da vida. A mesma intriga, distribuída por
diferentes níveis de temporalidade, repete-se várias vezes na sucessão de gerações de
Terras e Cambarás. (...)
Há um estranho paradoxo em O continente. Essa epopéia, cuja linha episódica foi traçada
no encadeamento dos feitos guerreiros, parece ter sido escrita para reafirmar a insanidade
da guerra. Enquanto a seqüência cronológica avança mediante lutas fratricidas entre
Cambarás e Amarais, a visão de mundo do autor, sua crença nos valores permanentes da
vida, está expressa na saga de Ana Terra e nos silêncios de Bibiana."