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O CONTINENTE

I - O tempo e o vento

O continente faz parte da trilogia O tempo e o vento, que Erico Verissimo escreveu entre os
anos de 1949 a 1962. Se levarmos em consideração que já no final de O resto é silêncio, de
1943, o escritor Tonio Santiago (alter-ego de E. V.) imagina um livro sobre a formação
histórica gaúcha através da passagem cíclica do tempo, pode-se argumentar que o autor
levou vinte anos para a consecução de sua obra, que é, seguramente, o mais importante
romance histórico já escrito no País.

Além disso, O tempo e o vento assinala uma ruptura com aquilo que o próprio Erico vinha
produzindo, no que se convencionou chamar de sua primeira fase. Nela se percebia ainda
um escritor hesitante, cheio de talento, mas incapaz de encontrar o seu verdadeiro caminho.
São relatos urbanos, de temática sentimental, com observações sobre os costumes das
classes médias, voltados em sua maioria para jovens casais (Clarissa - Vasco; Fernanda -
Noel) que tentam um "lugar ao sol", através de existências baseadas na procura da bondade,
da ética e da beleza.

A tendência excessiva de poetizar a realidade - exceto em Caminhos cruzados - conspira


contra a força dramática desses livros. Todavia, ao elaborar O tempo e o vento, E. V. rompe
com o sentimentalismo exagerado e com as "facilidades" artísticas da primeira fase e
alcança o seu apogeu.

Ilustração: Herrmann Wendroth

1. CONCEPÇÃO GERAL DE O TEMPO E O VENTO

Através dos dramas individuais localizados na sucessão de várias gerações das famílias
Terra e Cambará - que se entrelaçam duas vezes - E. V. realiza uma investigação da história
rio-grandense, conotando os destinos de seus personagens com os momentos decisivos da
formação da província sulina.

2. ABRANGÊNCIA TEMPORAL

O continente tem a duração de cento e cinqüenta anos, iniciando com um episódio nas
Missões Jesuíticas, em 1745, e terminando com o fim do cerco ao sobrado dos Cambarás,
em junho de 1895.

O retrato e O arquipélago somados duram apenas cinqüenta anos, pois O tempo e o vento
acaba cronologicamente em 1945, com a queda de Getúlio Vargas, que representa o
crepúsculo da dominação dos estancieiros gaúchos sobre o país. Em seu conjunto, portanto,
o romance abrange exatamente dois séculos.
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3. O SENTIDO DOS TRÊS LIVROS

A palavra "continente" significa no romance, em primeiro lugar, o território conquistado a


ferro e fogo durante os séculos XVIII e XIX. A conquista dá-se simultaneamente por ação
privada e por ação estatal. A primeira, iniciada nos Campos de Cima da Serra, e comandada
por aventureiros sorocabanos e lagunenses, estende-se rumo ao oeste e ao sul da região, em
busca de planícies férteis para o pastoreio. A segunda é mais litorânea, através da imigração
açoriana e do estabelecimento de fortificações militares pelo Estado português. Ambas
confluem e se unificam, no entanto, em um grande objetivo comum: a tomada da "terra de
ninguém" e do gado alçado - vacum e eqüino - que vagava às centenas de milhares pelos
campos da Serra e da Campanha.

Em segundo lugar, o "continente" significa, no romance, o tempo histórico da conquista e


da consolidação do poder dos estancieiros na região, associado à solidificação do núcleo
familiar, originando os primeiros clãs dominantes. Aqui, "continente" significa aglutinação,
coesão, esforço familiar num sentido comum. Bem diferente de "arquipélago", que traz a
idéia de desintegração, fim do clã, estilhaçamento, isolamento dos indivíduos.

Se O continente traça a origem da sociedade rio-grandense, sob o controle de uma elite


audaciosa e guerreira (e também machista e sanguinária) - forjada em lutas fronteiriças e
revoluções fratricidas - a partir de fins do século XVIII e durante todo o século XIX; O
retrato - já centralizado nas primeiras décadas do século XX - registra o momento em que
os velhos oligarcas são substituídos por caudilhos ilustrados, a exemplo do Dr. Rodrigo
Cambará; por fim, O arquipélago mostra não apenas a derrocada da família dirigente e a
decadência política dos estancieiros gaúchos, como também a emergência vitoriosa dos
novos grupos sociais, especialmente o dos alemães e dos italianos.

4. O SENTIDO FILOSÓFICO DA TRILOGIA

Em seu conjunto, O tempo e o vento não é apenas o mais notável romance histórico
brasileiro, tampouco uma criação artística centrada exclusivamente sobre a formação social
rio-grandense e suas origens épicas e míticas, passando pela longa hegemonia política e
econômica dos estancieiros até sua derrocada, na década de 1940. É mais do que isso, é
uma sutil discussão sobre o significado da existência. Verifica-se isso no confronto
estabelecido dentro da narrativa entre duas forças antagônicas:

Tempo: passagem, corrosão, destruição, morte


versus
Vento: repetição, continuidade, permanência

Pode-se dizer que o tempo está associado aos homens, na medida em que estes antecipam o
trabalho daquele, contribuindo, através da violência sistemática, com a força destruidora a
que o tempo tudo submete.
Já o vento relaciona-se simbolicamente com as mulheres, porque estas representam a
resistência humana contra as guerras e o instinto da morte. Para isso, Ana Terra, Bibiana
Terra e Maria Valéria Terra valem-se da memória (sempre deflagrada em noites de vento).
Atiçada pelas ventanias, a memória feminina restabelece lembranças dos que já partiram e,
ao evocá-los, injeta neles um sopro de vida. Lembrar é, pois, resistir ao sem-sentido do
tempo e protestar contra a morte.

Por isso, no final da trilogia, o escritor Floriano Cambará - sentindo-se mais próximo das
recordações femininas que da arrogância guerreira dos homens - resolve salvar a memória
que as mulheres conservaram de todas as experiências fundamentais da família Terra-
Cambará. E registra, então, sob a forma de um romance, o mundo passado que o tempo,
inexoravelmente, transformaria em pó, em nada. Para o escritor, só a arte responde à falta
de significado da vida humana. Só a arte tem o poder de resistir à voragem do tempo.

As primeiras páginas do romance de Floriano Cambará terminam O tempo e o vento:

"Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de
tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado."

Fechando-se sobre si mesmo, o romance termina da mesma forma que, duas mil e duzentas
páginas antes, havia iniciado: "Era uma noite fria..."

II - O CONTINENTE

Ilustração: Herrmann Wendroth

ESTRUTURA NARRATIVA

O romance é narrado em terceira pessoa, numa linguagem tradicional. Há apenas um desvio


na linearidade cronológica do texto. A ação do episódio O sobrado, apesar de ser
temporalmente a última de O continente, é dividida em sete fragmentos. Estes, por seu
turno, são espalhados pelo narrador dentro do volume, de maneira que o primeiro
fragmento abra o livro e o último o encerre. Cria-se assim, na narração, um contraponto
temporal.

O outro desvio nasce da inserção no texto de "intermezzos", isto é, de rápidos quadros - seis
ao total - escritos em linguagem próxima à lírica, quase em versos, e no tempo verbal do
presente. Funcionam como passagens intermediárias da narrativa central, e são verdadeiros
poemas em prosa. A rigor, parecem desempenhar um tríplice papel no romance:

a) Preencher vazios, tanto na construção de personagens secundários quanto em aspectos


históricos rio-grandenses que não foram suficientemente elaborados nos episódios.

b) Reforçar o caráter simultaneamente épico e brutal da conquista do território chamado


continente de São Pedro.
c) Apresentar um contraponto social, na figura dos Carés, gente sem eira nem beira,
desvalidos, arranchados na fazenda do Angico, e que servem de "bucha-de-canhão" nas
guerras locais e de amantes baratas para os fazendeiros.

Divisão de episódios

Por ordem temporal a divisão é a seguinte:

A fonte · Ana Terra · Um certo Capitão Rodrigo · A teiniaguá ·


A guerra · Ismália Caré · O sobrado
1. A fonte

Substrato histórico: os últimos anos das Missões Jesuíticas (Sete Povos).

Argumento

Uma índia grávida (estuprada por algum bandeirante) aparece nas Missões, dá a luz a um
menino mestiço e morre. O garoto é batizado de Pedro e se torna protegido do padre
Alonzo, um jesuíta espanhol que, mais tarde, o presenteará com um punhal de cabo e
bainha de prata, punhal este que atravessará os duzentos anos de O tempo e o vento, como
um símbolo da bravura de seus portadores.

Pedro, à medida que cresce, é dominado por uma visão mística da existência: fala com a
Virgem Maria e profetiza que Sepé Tiaraju vai morrer. Tem grandes pendores musicais e
toca flauta admiravelmente. Quando as tropas luso-espanholas, em função do Tratado de
Madri, derrotam os exércitos indígenas e aproximam-se para destruir os Sete Povos, Pedro
monta num cavalo baio e foge sem destino.

O que destacar em A fonte

a) A confluência da cultura mística católica e a consciência mágica dos índios na figura de


Pedro, explicando a sua tendência a visões e premonições.

b) A criação de uma origem mitológica para o estabelecimento da sociedade rio-grandense,


na medida em que Pedro, mais tarde, fecundará Ana Terra, dando início - em termos
simbólicos - a um tipo local, o gaúcho. É visível - neste romance de "fundação" de um
mundo regional - a influência de Iracema, de José de Alencar.
2. Ana Terra

Substrato histórico: a conquista do território por famílias paulistas e a fundação dos


primeiros povoados.

Duração: 1777 a 1811

Argumento
Ana Terra descobre, nas terras de seu pai, Maneco Terra, um índio ferido, de tez
relativamente clara (Pedro Missioneiro). Olhado com desconfiança pelos Terra, o índio se
recupera e acaba permanecendo na fazenda como uma espécie de agregado. Surpreende a
todos com suas habilidades campeiras, com seu repertório de histórias e lendas e com sua
capacidade de tocar flauta. Na primeira vez que Pedro executa uma música, Ana é tomada
de grande emoção:

"Sentiu então uma tristeza enorme, um desejo amolecido de chorar. Ninguém ali na
estância tocava nenhum instrumento. Ana não se lembrava de jamais ter ouvido música
naquela casa."

A solidão de Ana Terra e o desejo que atormenta seu corpo levam-na a desenvolver uma
paixão contraditória pelo estranho:

"E ali, no calor do meio-dia, ao som daquela música, voltava-lhe como nunca o desejo de
homem. Pensava nas cadelas e tinha nojo de si mesma."

Até que, por fim, ela termina por se entregar ao missioneiro. Desses furtivos encontros
amorosos resulta a gravidez da moça, descoberta pela mãe e também pelo pai, que,
escondido, ouve a confissão da filha. Em seguida, Horácio e Antônio, irmãos de Ana,
arrebatam Pedro Missioneiro e carregam-no para um ermo, a fim de assassiná-lo,
confirmando a visão do próprio índio, que antevira em sonho a sua morte.

Pedrinho (Pedro Terra) nasce e, a exemplo de sua mãe, recebe total desprezo do avô,
Maneco, e dos tios criminosos. Ana, por seu turno, tem o coração definitivamente seco em
relação a seus familiares. A única pessoa que estima é a mãe, D. Henriqueta. E quando esta
morre, Ana Terra não tem pena, porque "a mãe finalmente tinha deixado de ser escrava".
Alguns anos mais tarde, o avô se reconcilia com o neto, Pedro, por ocasião do plantio do
trigo, velho sonho de Maneco Terra. Sonho de que o menino compartilha
emocionadamente.

Um ataque de bandidos castelhanos termina com a permanência de Ana Terra na fazenda


do pai. Antes do massacre, ela esconde o filho, a cunhada, mulher de Antônio, e sua filha
numa cova no meio do mato e volta para casa, onde será sucessivas vezes estuprada pelos
bandoleiros.

Mortos todos os homens da casa, Ana Terra resolve partir com as duas crianças
sobreviventes e a cunhada. Viajam de carreta com uma família em busca de um lugarejo
(Santa Fé) que acaba de ser fundado por um "coronel", Ricardo Amaral, e constituído até
então por apenas cinco ranchos. Ana constrói o seu. E com o passar do tempo - valendo-se
de uma tesoura de podar - torna-se a parteira do povoado.

Ilustração: Herrmann Wendroth


Começam as guerras platinas e Pedro Terra, já um rapagão de vinte anos, é convocado para
lutar. Ana chega a pedir ao coronel Amaral que não leve o filho, mas o velho estancieiro a
repele. Também começa a terrível espera das mulheres, que é um dos aspectos centrais do
romance de E. V.. Elas esperam pelos seus homens que estão sempre partindo para os
confrontos militares que delimitam a vida na província desde suas origens até, pelo menos,
o final do século XIX. O episódio finaliza com a segunda espera de Ana, já que Pedro
retornara de sua primeira experiência bélica e - alguns anos depois - fora novamente
convocado.

O que destacar em Ana Terra

Ana Terra é o capítulo definitivo de O tempo e o vento. Além da representatividade


histórica da personagem (símbolo da mulher rio-grandense), devemos atentar para:

a) Seu erotismo, ampliado pela solidão e pela sensação de infelicidade de viver naquele
mundo perdido que é a fazenda do pai. Daí a sua entrega corpórea a Pedro Missioneiro.

b) A consciência natural (e quase a-histórica) do tempo. Este é determinado primitivamente


pelo ritmo das estações, assim como os dias o são pelo nascer e pelo desaparecer do sol.
Não há calendários e as referências aos anos são imprecisas. Assim, o tempo está
relacionado indissoluvelmente à natureza:

"Era assim que o tempo se arrastava, o sol nascia e se sumia, a lua passava por todas as
fases, as estações iam e vinham, deixando sua marca nas árvores, na terra, nas coisas e nas
pessoas."

c) A sua garra, obstinação e capacidade de resistência. A forma que sobrevive interiormente


à violência do estupro dos bandidos castelhanos indica não apenas resignação ao destino,
mas estupenda força subjetiva e crença na vida. No limite mais dramático e profundo, estes
serão os valores de todas as mulheres no romance.

d) A profissão de parteira que Ana adota como uma metáfora da vida, enquanto a seu redor
guerras e revoluções campeiam com todo um tributo à destruição e à morte. Decorre daí
também o seu ardente pacifismo e seu entranhado ódio à violência em que os homens
parecem se comprazer.

e) A relação que Ana estabelece entre o vento e as coisas importantes de sua vida, a
associação entre as "noites de vento, noite dos mortos" e, por fim, a própria ligação do
vento com a memória feminina. Esta memória - açulada pela natureza - é ao mesmo tempo
o tormento, o consolo e a arma de defesa das mulheres contra a falta de sentido da
existência.
3. Um certo Capitão Rodrigo

Substrato histórico: a emergência e apogeu dos gaudérios. A Revolução Farroupilha. A


chegada dos primeiros imigrantes alemães.

Duração: 1828 a 1836


Argumento

Gaudério de bela figura física e não menor carisma pessoal, Rodrigo Cambará conquista a
vila de Santa Fé com seus ditos espirituosos: "Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de
prancha e nos grandes dou de talho!" Ou ainda: "Cambará macho não morre na cama!"

Juvenal, filho de Pedro Terra, é o primeiro a simpatizar com o estranho. Bibiana, sua irmã
(e reprodução da avó, Ana Terra) logo se apaixonará pelo forasteiro, reafirmando sua
indiferença a Bento Amaral, filho do coronel que manda no povoado. Já Pedro Terra,
homem reservado e circunspecto, detesta desde o início aquele gaudério anarquista, cujo
único propósito na vida parece ser o de atender aos seus impulsos básicos, especialmente os
guerreiros e os eróticos.

O Coronel Ricardo Amaral Neto exige que Rodrigo parta de Santa Fé, mas este se recusa.
Em seguida, o alegre capitão desentende-se - por causa de Bibiana - com Bento Amaral. No
duelo que se segue, Rodrigo Cambará consegue colocar sua marca à faca na cara do rival,
não conseguindo concluir a perna do R. Vencido e humilhado, Bento atira com arma de
fogo, ferindo gravemente o Capitão. Este oscila entre a vida e a morte e, nessas
circunstâncias, solidifica sua amizade com o padre Lara que vai ajudá-lo e tentar convertê-
lo ao cristianismo. Rodrigo se safa da morte, tão ateu quanto antes, mas completamente
apaixonado (desejo físico, acima de tudo) por Bibiana. Juvenal e o padre auxiliam-no em
sua tarefa, facilitada pelo ardoroso sentimento que a moça (tem vinte e dois anos) nutre por
ele. Com a visível discordância de Pedro Terra, Rodrigo e Bibiana acabam se casando no
Natal de 1829.

Após os ardores dos primeiros meses, Rodrigo começa a se entediar. A nova profissão
(tornara-se "bodegueiro" em sociedade com o cunhado Juvenal) lhe parece intolerável. Os
próprios cheiros da venda lhe causam aborrecimento. Mesmo os filhos que vão nascendo -
Anita, Bolívar e Leonor - não lhe restituem a perdida alegria de viver. Trai Bibiana, torna-
se um jogador e um bêbado, recusa-se a voltar para casa quando o chamam por causa da
doença da filha Anita. Ao retornar, enfim, já pela madrugada encontra a menina morta.
Mesmo assim, Bibiana continua apaixonada pelo "seu" capitão.

A chegada dos primeiros alemães em Santa Fé, no ano de 1833, é o grande assunto da vila.
Rodrigo obviamente enlouquece por uma jovem imigrante, Helga Kunz, e com ela se
relaciona, mas para sua surpresa a alemã abandona-o, partindo para São Leopoldo a fim de
casar-se com um conterrâneo alemão.

Em 1835 estoura a Revolução Farroupilha. Rodrigo, que é amigo de Bento Gonçalves,


adere imediatamente e desaparece de Santa Fé. Em 1836, o Capitão a frente de tropas
revolucionárias retorna para enfrentar os Amarais e sua gente, que permaneceram fiéis ao
Império. Antes do cerco ao casarão dos inimigos, Rodrigo ama pela última vez sua esposa
Bibiana. Depois parte para o combate. Os farroupilhas triunfam, mas no ataque o Capitão
Rodrigo encontra a morte. O episódio termina no dia de Finados, quando Bibiana vai ao
cemitério com seus dois filhos:
"Ergueu Leonor nos braços, segurou a mão de Bolívar, lançou um último olhar para a
sepultura de Rodrigo e achou que afinal de contas tudo estava bem. Podiam dizer o que
quisessem, mas a verdade era que o Capitão Cambará tinha voltado para casa."

O que destacar em Um certo Capitão Rodrigo

a) O fato do personagem central ter se transformado - mesmo que não fosse a intenção de
E. V. - no símbolo do gaúcho, com seu misto de bravura, fanfarronice, generosidade e
pensamento libertário. Talvez os gaudérios da época não tivessem o mesmo carisma.
Documentos da época pintam esses homens "sem rei nem lei" quase como párias. No caso
de Rodrigo, contudo, "a mentira histórica vira verdade artística".

b) A paixão instintiva (próxima do mundo animal) que o Capitão experimenta pela vida e
seus prazeres, especialmente os da cama e da mesa. Apesar disso, há em sua conduta um
substrato ético que o leva, por exemplo, a se posicionar contra os tiranos e a respeitar sua
mulher, Bibiana.

c) O forte sopro épico que percorre todo o episódio. A exemplo de Aquiles e de outros
heróis das epopéias gregas, Rodrigo Cambará acredita que só a ação guerreira dá sentido à
vida dos homens. A domesticidade e o cotidiano são os maiores inimigos desses
personagens, que só se sentem felizes no fragor das batalhas e das conquistas. Antológica é
a cena do Capitão, transformado em dono de venda:

"Rodrigo foi até a porta (da venda) e olhou para o alto. O vento trazia um cheiro bom de
capim e, aspirando-o, ele como que se embriagava. O fedor de cebola, alho e banha que
havia dentro de casa nauseava-o. Meter-se naquele negócio tinha sido a maior estupidez de
sua vida."

d) A criação de um modelo de Cambará: o macho audacioso, mulherengo e sempre metido


em revoluções. O Dr. Rodrigo Cambará, em O retrato e em O arquipélago, será a
reduplicação quase que perfeita do bisavô, apesar de já ser um caudilho ilustrado. Porém,
mesmo Bolívar e Licurgo, filho e neto respectivamente, apresentarão traços do Capitão
Rodrigo. De certa forma, os valores caudilhescos e machistas desse personagem cristalizam
o ideal de hombridade vigente na província até meados do século XX.

e) A cena espetacular da extrema-unção que o padre Lara oferece a Rodrigo moribundo,


exigindo antes que o seu amigo se arrependesse de todos os pecados. Reunindo suas
últimas forças, o Capitão Cambará faz uma figa ao sacerdote que sai dali horrorizado.

f) Igualmente importante é a cena - já referida no resumo - do duelo entre Rodrigo e Bento


Amaral, e a marca incompleta que o Capitão deixa no rosto do último.

g) A paixão de Bibiana pelo gaudério é a melhor realizada entre todos os casos amorosos
que povoam O tempo e o vento. Independentemente dos adultérios de que é vítima, do
abandono e do desprezo do marido pela vida doméstica, ela continua amando-o como no
primeiro dia em que o viu. "Queria vê-lo mais uma vez, só uma vez"- pensa ela durante a
Revolução e um pouco antes do último encontro amoroso, numa sublime confissão de
desejo e afeto.

h) O fato de Bibiana reproduzir sua avó, Ana, tanto na obstinação, nos silêncios, no ódio à
guerra e às revoluções, na profissão de parteira e na lembrança dos mortos, dando
seqüência ao arquétipo feminino do romance.
4. A teiniaguá

Substrato histórico: a consolidação da vida urbana no RS.

Duração: 1850-1855

Argumento

Em 1850, Santa Fé já possui sessenta e oito casas e trinta ranchos. Chama a atenção o
magnífico sobrado construído por um nortista de origem misteriosa, Aguinaldo Silva. Dele
também é a melhor fazenda da região, a do Angico. Porém a sua principal atividade
econômica é a agiotagem e muitas terras, inclusive a pequena propriedade de Pedro Terra
tinham passado para suas mãos.

Ilustração: Herrmann Wendroth

Aguinaldo tem uma neta adotiva, Luzia, de esplêndida beleza e "modos de cidade": veste-
se bem, é culta e toca cítara. Desperta paixões, especialmente entre os dois primos, Bolívar
e Florêncio (filho de Juvenal Terra) que a disputam. Luzia termina optando por Bolívar,
filho do Capitão e de Bibiana, herói juvenil na guerra contra o tirano argentino, Rosas.

Bolívar está completamente enfeitiçado por Luzia. Atendendo a uma determinação da


própria jovem (que tem dezenove anos) marca-se o noivado para a mesma hora em que um
escravo, suspeito de crime hediondo, vai ser enforcado. Os sinais de estranha doença
começam a aparecer na moça que veio do Norte.

Também surge neste episódio um dos protagonistas mais importantes de O continente, o


Dr. Carl Winter, médico alemão, culto, solitário, extremamente observador e um pouco
bizarro, e que havia fugido da Alemanha por razões sentimentais e políticas. Ele será uma
espécie de "comentarista" da vida cotidiana e dos costumes, tanto de Santa Fé quanto da
província de São Pedro. Não é errado considerá-lo como um "alter-ego"(um "outro eu") de
E. V.. Fascinado por Luzia (uma mescla de curiosidade e desejo), ele a compara à lenda
local da teiniaguá, a princesa moura transformada pelo diabo numa lagartixa, cuja cabeça
consiste numa pedra preciosa de brilho ofuscante que atrai e cega os homens.

É o Dr. Winter o primeiro a perceber a doença da alma que corrói a bela Luzia: a moça tem
prazer com o sofrimento alheio. Na hora do enforcamento do escravo, ela corre para a
janela a fim de se deliciar com o espetáculo:
"Primeiro o rosto dela se contorceu num puxão nervoso, como se tivesse sentido uma súbita
dor aguda. Depois se fixou numa expressão de profundo interesse que aos poucos foi se
transformando numa máscara de gozo que pareceu chegar ao orgasmo."

Por isso, casando-se com Bolívar, uma mente singela, ela se aproveitará para atormentá-lo.
No entanto, contraditoriamente, Luzia tem momentos de ternura e alegria para com o
marido, estraçalhando, pouco a pouco, os seus nervos de homem enfeitiçado. Esta
alternância de loucura e fascinação, revela uma Luzia não apenas sádica, mas também
masoquista, porque há passagens em que ela parece se comprazer com o próprio
sofrimento. Bibiana, a sogra, também percebe o que o Dr. Winter já enxergara e passa a
odiar a nora.

Em 1853, Aguinaldo Silva cai do cavalo e fratura o crânio, sobrevivendo ainda três dias. A
neta acompanha-o, minuto após minuto, comprazendo-se com o sofrimento do avô. Seu
sado-masoquismo é visível. O nascimento de Licurgo Cambará, o filho do casal, atenua
brevemente a situação. Em seguida, deixando o nenê nas mãos de Bibiana, Bolívar e Luzia
partem, numa viagem recreativa, para Porto Alegre.

Na capital da província uma epidemia de cólera dizima a população. Em vez de retornar, o


casal permanece no centro da grande epidemia. E. V. não narra os acontecimentos na
capital, mas meses depois, quando os dois voltam, Bolívar está tão destruído
psicologicamente que o Dr. Winter e Bibiana intuem o que havia ocorrido: a euforia e o
gozo de Luzia, vendo o terror de todos diante da peste, deliciando-se com o desespero das
pessoas que caíam nas ruas, agonizantes.

Ao tentar rever o filho, Licurgo, a teiniaguá é impedida por Bibiana e tem um ataque de
fúria, chamando a sogra de "cadela". Bolívar então espanca a esposa e sai da sala, cada vez
mais arrasado interiormente. O Coronel Bento Amaral, aproveita-se do contexto para
vingar-se dos Cambarás, decretando a quarentena do sobrado. Isto é, durante quarenta dias
ninguém, a não ser o dr. Winter, poderia entrar ou sair do casarão. Capangas dos Amarais
cercam então o local para que a ordem do caudilho fosse cumprida. Bolívar - exasperado
pelas circunstâncias - não suporta a prepotência de Bento Amaral e com uma pistola na
mão sai de casa, tentando romper a quarentena. Há um tiroteio e quando o dr. Winter chega
à janela vê Bolívar "caído de borco, no meio da rua, com a cara metida numa poça de
sangue."

O que destacar em A teiniaguá

a) O caráter doentio de Luzia, indicando, de certa forma, que todas as mulheres que
ousassem quebrar o silêncio e a aceitação resignada da dominação masculina, teriam um
preço muito alto a pagar por sua autonomia.

b) A identificação - feita pelo Dr. Winter - entre Luzia e a lenda da teiniaguá - a princesa
moura transformada em lagartixa e que leva os homens à perdição.
c) A quebra da hegemonia masculina nas relações afetivas e sexuais. Bolívar é um escravo
de Luzia, em proporção semelhante à prisão amorosa e social de que Bibiana e as demais
mulheres sofriam em seus relacionamentos com os homens.

d) A personalidade complexa do Dr. Winter, que, além de suas penetrantes análises da vida
provinciana, revela forte ambigüidade diante do universo local. O que um europeu educado
e sensível faz naquela sociedade "tosca e carnívora, que cheirava a sebo frio, suor de cavalo
e cigarro de palha"? Ao mesmo tempo, aquele mundo primitivo o prende com o fascínio de
sua selvageria, com a beleza de suas paisagens e com a disposição hercúlea de seus homens
e mulheres que iniciam uma nova sociedade.

e) De alguma maneira, o Dr. Winter é a expressão da acentuada curiosidade européia pela


vida nas regiões remotas, traduzida, por exemplo, em centenas (ou talvez milhares) de
viajantes cultos que estiveram no Brasil, no século XIX, e que sobre suas viagens deixaram
uma significativa quantidade de belos relatos.

Repare numa dessas fascinantes observações do Dr. Winter sobre a vida em Santa Fé,
dirigidas ao intelectual alemão Carlos von Koseritz:

"Mein lieber Baron. Faz hoje quatro anos que estou em Santa Fé. Já não uso mais chapéu
alto, minhas roupas européias se acabam e eu desgraçadamente me vou adaptando. Sinto
que aos poucos, como um pobre camaleão, vou tomando a cor do lugar onde me encontro.
Já aprendi a tomar chimarrão, apesar de continuar detestando essa amarga beberagem. (...)
Estes invernos rigorosos de Santa Fé, em que às vezes sentimos mais frio dentro das casas
que fora delas, me ensinaram a beber uma mistura deliciosa. É cachaça com mel e suco de
limão. Positivamente divino! Se te contarem, Carlos, que morri embriagado numa sarjeta
em Santa Fé, podes acreditar na história, apenas com uma restrição: é que em Santa Fé não
tem sarjetas pela simples razão que não tem calçadas, como também não tem lampiões nas
ruas e como, em última análise, não tem nada. Talvez seja essa carência de tudo que me
fascina e me prende."
5. A guerra

Substrato histórico: a Guerra do Paraguai

Duração: 1869-1870

Argumento

Semi-inválido, Florêncio retorna da guerra quase em seu final. Através do Dr. Winter sabe
do confronto entre Bibiana e Luzia, dentro do Sobrado. Sabe também que Luzia tem um
tumor maligno no estômago e que cada mulher espera a morte da outra. Enquanto isso, na
fazenda do Angico, o adolescente Licurgo Cambará efetiva sua educação à maneira rio-
grandense, guiado por Fandango. Típico gaúcho fanfarrão, exímio contador de histórias,
conhecedor de casos e lendas, expressando-se por ditados, tendo apurada memória por
quadras, trovas e modinhas, dono, por fim, de grande sabedoria campeira, Fandango é o
professor do seu futuro patrão. A partir dessas experiências gratificantes, - e tendo como
contraponto, na cidade, a sombria doença da mãe - Licurgo só se sentirá à vontade no
campo, desenvolvendo uma primitiva identificação com as lides pastoris e as coxilhas.

No Sobrado, Bibiana consegue afastar os pretendentes de Luzia, revelando-lhes pormenores


da "loucura" da nora. Seu objetivo é impedir um novo casamento da jovem viúva porque
assim Licurgo herdará sozinho todas as propriedades da mãe. O Dr. Winter acompanha a
luta entre as duas, mas não toma partido de nenhuma, embora sua maior intimidade com
Bibiana. O episódio encerra-se sem que a vitoriosa seja conhecida.

O que destacar em A guerra

a) A astúcia do narrador que começa o capítulo falando da Guerra do Paraguai e, em


seguida, abandona o conflito bélico para revelar a luta surda e odiosa das duas mulheres
pela posse dos bens e de Licurgo. A guerra entre nações transforma-se em guerra de
mulheres.

b) A obstinação cruel de Bibiana em destruir a nora, Luzia. Isso serve para quebrar uma
certa idealização - construída nos capítulos anteriores - a respeito das mulheres da linhagem
Terra.

c) A cena terrivelmente dramática em que Luzia, tocando cítara em surdina, diz várias
vezes a Licurgo que vai morrer por causa do tumor em seu estômago e que ele ficará
abandonado, completamente sozinho, ao contrário de outros jovens que têm pai e mãe,
levando o rapaz à exasperação.

d) A figura de Fandango, calcada em Blau Nunes, de Simões Lopes Neto. Depositário de


todo um mundo gauchesco de referências, de uma linguagem de rica originalidade, centrada
em ditos e provérbios regionais, ele encarna a sabedoria popular dos homens do campo. É
com ele que Licurgo faz sua educação informal.
6. Ismália Caré

Substrato histórico: o surgimento da oposição republicana e abolicionista. (PRR - Partido


Republicano Rio-grandense).

Duração: 1884

Argumento

Em 1884, Santa Fé é elevada à categoria de cidade. O Coronel Bento Amaral ainda domina
politicamente, mas Licurgo Cambará representa a oposição republicana que já não aceita a
hegemonia da oligarquia monarquista. O ódio entre as duas "casas" fica latente numa
cavalhada festiva, em que se enfrentam "mouros" e "cristãos", e o que deveria ser
encenação quase vira um confronto sangrento.

No plano pessoal, Licurgo vai se casar com sua prima Alice Terra (filha de Florêncio). A
irmã dessa, Maria Valéria Terra também o ama, mas sufoca seu afeto proibido.
Independentemente dos amores que desperta, o Cambará sente-se preso sexualmente a
Ismália Caré, filha de um agregado pobre que vive num rancho, na fazenda do Angico.

Sob a influência de um bacharel baiano que vive em Santa Fé, Toríbio Rezende, Licurgo
torna-se republicano e abolicionista fanático, libertando seus próprios escravos. Na noite da
libertação, ele vem a saber que Ismália Caré está grávida e decide que a amante "vai botar o
filho fora", isto é, que precisa abortar.

Além disso, há referências neste episódio a respeito da morte de Luzia. Surge também um
personagem interessante, o sacerdote Atílio Romano, italiano de nascimento e formação,
brasileiro de coração, magnífico orador e intransigente defensor da miscigenação étnica e
da paz entre os grupos que se hostilizam na província.

O que destacar em Ismália Caré

a) O quadro vivo da contenda política entre as frações dirigentes (Amaral versus Cambará),
cujos rancores e ódios já estão latentes antes da República e do triunfo do castilhismo.

b) A ambigüidade moral de Licurgo perante a sua futura esposa, Alice, pois não pretende se
livrar (nem se livrará) da amante, Ismália Caré.

c) A sua ambigüidade ética no caso da libertação dos escravos. Apesar da grandeza de seu
gesto, subjetivamente ele sente raiva e irritação com "aqueles negros" que pisam na sala do
Sobrado, alguns aturdidos e outros, arrogantes.

d) O surgimento de Maria Valéria Terra, cunhada de Licurgo, de grande importância em


episódios seguintes.
7. O Sobrado

Substrato histórico: toda a ação transcorre em três dias de junho de 1895, nos estertores da
Guerra Civil entre republicanos ("chimangos") e federalistas ("maragatos").

Ilustração: Herrmann Wendroth

Argumento

Vencendo seu medo, o maragato José Lírio chega na torre da igreja, de onde se domina o
quintal do Sobrado e, conseqüentemente, o poço de água que garante a sobrevivência dos
Cambarás e de seus homens. No entanto, ao pensar nas mulheres e nas crianças que estão
na casa fortificada, José Lírio acaba errando intencionalmente o tiro no chimango que, em
desespero, tentava buscar água no poço para matar a sede dos sitiados. Esta capacidade de
tolerância e de compreensão "daqueles que estão no outro lado" não são compartilhadas por
Licurgo Cambará, que se recusa a pedir trégua aos maragatos, tanto para cuidar dos feridos
e sepultar os mortos, quanto para atender sua esposa, Alice Terra, que está em trabalho de
parto e necessita de urgentes cuidados médicos. Inflexível e autoritário, Licurgo não aceita
os olhares recriminatórios do sogro, Florêncio Terra e da cunhada, Maria Valéria, mesmo
que a esposa e a criança corram perigo de vida. Para ele seria um ultraje à honra solicitar a
complacência dos inimigos.

O resultado de sua intolerância é que a menina nasce morta e é enterrada no porão da casa,
cheio de ratos. Também o sogro, Florêncio, provavelmente enfraquecido - durante o cerco
não havia mais nada a comer senão laranjas - termina morrendo no final do episódio, logo
após o fim do cerco do Sobrado, com o abandono da cidade pelas forças maragatas.

Na última página, Bibiana Terra já catacega e meio caduca, pede silêncio a Fandango, que
ia lhe levar a notícia da morte de seu sobrinho, e apontando para janela onde o vento uiva,
diz: "Está ouvindo?".

O que destacar em O Sobrado

a) O brilhante jogo entre vida e morte, representado pelo parto de um lado e pela guerra, de
outro. Torna-se evidente o pacifismo do autor, pois o machismo, o sentido de honra e a
inflexibilidade ideológica de Licurgo Cambará são completamente impugnados no
andamento do episódio.

b) A "covardia" de José Lírio que, na verdade, obriga-o a superá-la através da legítima


coragem, produzida pela vitória sobre o medo. Além disso, o referido protagonista rompe
com a intolerância e com o radicalismo políticos, mostrando-os como repugnantes à
consciência humanista.

c) Não por acaso o começo de O continente (O Sobrado I) se dá com ele, José Lírio, ou
seja, um indivíduo que coloca o respeito à condição humana acima das ideologias e
interesses que arrastam os homens para a guerra. Este livro sobre a guerra começa, na
verdade, com um libelo a favor da paz.

d) O aparecimento - ainda que de modo periférico - dos dois irmãos, Toríbio e Rodrigo,
tendo este último papel decisivo nos livros subseqüentes.

e) A presença, agora mais intensa, de Maria Valéria Terra com idêntica função de Ana
Terra e de sua tia-avó, Bibiana. A mesma força interior, a mesma resistência silenciosa, o
mesmo desprezo pela violência guerreira dos homens.

f) A particularização - através do cerco do Sobrado - da mais sangrenta e cruel de todas as


lutas rio-grandenses, a Guerra Civil (1893-1895) com seu terrível rosário de crueldades,
degolas, estupros e terrorismo de Estado, este desenvolvido pelos autodenominados
"progressistas" da época: Júlio de Castilhos e sua horda republicana.
UMA ANÁLISE DE O CONTINENTE
Flávio Loureiro Chaves*

"Uma crônica de sangue pontuada por sucessivas guerras, eis o cenário onde brota a gênese
da Província de São Pedro. Ao início de O continente, no episódio de Ana Terra, o espaço
físico foi inteiramente destruído após um ataque de castelhanos que massacraram todos os
homens válidos da fazenda de Maneco Terra. Sob a imensidão do campo, duas mulheres e
duas crianças sepultam os seus mortos. Desses escombros surge a personagem de Ana
Terra, armada de uma confiança absurda em si mesma, que se integra na caravana pioneira
para fundar, muito distante, a vila de Santa Fé. Com ela segue o filho, que será o pai de
Bibiana; e assim fica assegurada a continuidade da vida. A mesma intriga, distribuída por
diferentes níveis de temporalidade, repete-se várias vezes na sucessão de gerações de
Terras e Cambarás. (...)

Na personagem Ana Terra se reedita o primeiro dia da criação, a imagem primitiva da


fecundação, enquanto antítese da morte. Diz Erico: 'Penso nela como uma espécie de
sinônimo de mãe, ventre, terra, raiz, verticalidade, permanência, paciência, espera,
perseverança, coragem moral.'

Há um estranho paradoxo em O continente. Essa epopéia, cuja linha episódica foi traçada
no encadeamento dos feitos guerreiros, parece ter sido escrita para reafirmar a insanidade
da guerra. Enquanto a seqüência cronológica avança mediante lutas fratricidas entre
Cambarás e Amarais, a visão de mundo do autor, sua crença nos valores permanentes da
vida, está expressa na saga de Ana Terra e nos silêncios de Bibiana."

Árvore genealógica de O continente

Árvore genealógica de O continente

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