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Revista da FAEEBA – Revista do Departamento de Educação – Campus I

(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA)


Ano 9, número 13, janeiro/junho, 2000 - ISSN 0104-7043

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB


Reitora: Ivete Alves do Sacramento
Vice-Reitor: Luiz Carlos Almeida de Andrade Fontes

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS I


Diretora: Adelaide Rocha Badaró
Colegiado do Núcleo de Pesquisa e Extensão: Jaci Maria Ferraz de Menezes – Jacques Jules
Sonneville – Isa Maria Faria Trigo – Narcimária Correia do Patrocínio Luz – MariaPalácios
– Yara Dulce Bandeira de Ataide

FUNDADORES
Yara Dulce Bandeira de Ataide
Jacques Jules Sonneville

COMISSÃO DE EDITORAÇÃO

EDITORA GERAL: Yara Dulce Bandeira de Ataide


EDITOR EXECUTIVO: Jacques Jules Sonneville
EDITORA ADMINISTRATIVA: Maria Nadja Nunes Bittencourt

REVISORAS: Dilma Evangelista da Silva, Lígia Pellon de Lima Bulhões, Rosa Helena Blanco Machado,
Therezinha Maria Bottas Dantas, Vera Dantas de Souza Motta.

CONSELHO EDITORIAL:
Adélia Luiza Portela (UFBa) Luiz Felipe Perret Serpa (UFBa)
Antônio Gomes Ferreira (Univ. Coimbra) Marcos Formiga (FINEP/UnB)
Cipriano Carlos Luckesi (UFBa) Marcos Silva Palácios (UFBa)
Edivaldo Machado Boaventura (UFBa) Maria José Palmeira (UNEB e UCSal)
Jacques Jules Sonneville (UNEB) Maria Luiza Marcílio (USP)
João Wanderley Geraldi (UNICAMP) Nadia Hage Fialho (UNEB)
Ivete Alves do Sacramento (UNEB), Paulo Machado (UNEB)
Jonas de Araújo Romualdo (UNICAMP) Raquel Salek Fiad (UNICAMP)
José Carlos Sebe Bom Meihy (USP) Robert Evan Verhine (UFBa)
José Crisóstomo de Souza (UFBa) Walter Esteves Garcia (ABT e Instituto Paulo
Kátia Siqueira de Freitas (UFBa) Freire)
Luís Reis Torgal (Univ. Coimbra) Yara Dulce Bandeira de Ataide (UNEB)
PRODUÇÃO DA CAPA / ARTE FINAL: Symbol Publicidade

DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO: Jacques Jules Sonneville / Uilson Morais

IMPRESSÃO: Editora UNEB

APOIO FINANCEIRO: UNEB / PROEX / DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO I


Revista da FAEEBA
Departamento de Educação - Campus I
Revista da FAEEBA Salvador ano 9 nº 13 jan./junho, 2000

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB


Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cultu-
ral. Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.
ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃO: A correspondência relativa a colaborações, pedidos de permuta,
assinaturas, etc. deve ser dirigida à:
REVISTA DA FAEEBA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
Departamento de Educação I - NUPE
Estrada das Barreiras, s/n, Narandiba
41150.350 - SALVADOR – BA

Tel. (071)387.5916/387.5933
Homepage: www.uneb.br/Campus_I/Educacao/revista.htm
Revista indexada pela REDUC/FCC - Fundação Carlos Chagas

Pede-se permuta. We ask for exchange.

Revista da FAEEBA /UniversidadedoEstadodaBahia,Departamento


de Educação I - Ano 1, nº 1 (Jan./jun., 1992) - Salvador:UNEB, 1992.
Semestral
ISSN 0104-7043
1. Educação - Periódico. I. Universidade do Estado da Bahia. Departa-
mento de Educação.
CDD: 370.5
CDU: 37(05)
SUMÁRIO
7 Apresentação
8 Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA

BRASIL 500 ANOS

11 Carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel, datada de Pôrto Seguro em 1 de maio de 1500
21 Descobrimento e alteridade: em torno da carta de Pero Vaz de Caminha
Marli Geralda Teixeira
27 Pergunta de história: quem descobriu o Brasil ?
Marcos Terena
31 Documento final da conferência dos povos e organizações indígenas do Brasil
33 A construção do Brasil e as raízes das relações interétnicas
Yara Dulce Bandeira de Ataíde
45 Bahia, a Roma negra: estratégias comunitárias e educação pluricultural
Narcimária Correia do Patrocínio Luz
63 Mosaico pluricultural da educação na Bahia
Equipe de alunos / Narcimária C. P. Luz
77 Os 500 anos de tradição excludente da educação brasileira
José dos Santos Souza
85 Viver do magistério na Bahia Imperial
José Carlos de Araujo Silva
93 A presença dos protestantes na educação da Bahia – O caso do Instituto Ponte Nova
Silvia Maria Leite de Almeida
101 A Marujada no museu aberto do descobrimento
Ricardo Ottoni Vaz Japiassu
109 A política de descentralização da educação na América Latina
Margarita Victoria Rodríguez
121 Os conselhos municipais de educação na Bahia: descentralização da gestão educacional?
Wanderley Ribeiro

HOMENAGEM A ANÍSIO TEIXEIRA

141 Anisio Teixeira, secretário de educação, ou: por que não se democratiza a educação na Bahia?
Jaci Maria Ferraz de Menezes
151 Anísio Teixeira e a arquitetura escolar: planejando escolas, construindo sonhos
Célia Rosângela Dantas Dórea
ESTUDOS

163 Hermes re-visitado. Interpretando com-textos na Etnopesquisa crítica educacional


Omar Barbosa Azevedo & Roberto Sidnei Macedo
175 A diferença / deficiência no contexto da Educação Especial
Luciene Maria da Silva
185 A questão da horizontalidade pedagógica
Ludmila Oliveira Holanda Cavalcante
195 Um olhar sobre os contos acumulativos
Ana Débora Alves Ferreira / Edil Silva Costa

RESENHAS

207 JECUPÉ, Kaka Werá. A terra dos mil povos: história indígena brasileira contada por um índio.
Maria Nadja Nunes Bittencourt
209 KOHLRAUSCH, Marlin. Semeando felicidade nas empresas do século XXI.
Jomária Alessandra Queiroz de Cerqueira e Silva

INSTRUÇÕES

213 Carta de recomendações dos editores de periódicos científicos de educação - São Paulo, 2000
216 REDUC/Fundação Carlos Chagas: Manual para elaboração de Resumos
219 Educação e Contemporaneidade / Revista da FAEEBA – Formulário de aquisição / Números e
Temas
221 Instruções aos colaboradores
APRESENTAÇÃO
Pindorama, Terra de Vera Cruz ou Terra Brasilis são nomes de origem de um
mito que se instalou no imaginário social da idade moderna para explicar o impacto
da entrada na economia e na cultura européia da nova terra achada por Cabral, que
é hoje o Brasil. Muitas expectativas foram criadas sobre a construção deste novo
paraíso tropical. Na prática, porém, as condições sócio-econômicas sob as quais se
desenvolveram os processos de apropriação, exploração e colonização deste novo
mundo nada tiveram de paradisíacas, porque foram cruéis e desumanas para os
grupos dominados. Os indígenas foram avassalados e praticamente exterminados, e
os africanos transformados em carvão humano para a expansão colonial portugue-
sa. Neste momento de avaliação e análise dos 500 anos do Brasil são necessários
novos e múltiplos olhares sobre o seu passado e presente de tão significativos con-
trastes, para que se possa compreender mais profundamente a história desta conjun-
ção étnica e sua odisséia de lutas, resistências e dominações. Ou seja, é preciso que
novos paradigmas da diversidade cultural e ideológica lancem luzes sobre o que foi
a verdadeira história deste país nos seus 500 anos de construção, desmistificando
muitos dos seus aspectos ainda obscuros ou silenciados. A presente edição, sobre o
tema BRASIL 500 anos, pretende estimular estes debates através da significativa
contribuição dos seus autores. Na oportunidade a Revista da FAEEBA presta tam-
bém uma homenagem especial ao grande educador Anísio Teixeira, por ocasião do
centenário do seu nascimento, através de dois artigos que põem em destaque sua
vida e obra. Ao contrário do que foi anunciado anteriormente, o nome da revista não
sofreu alteração. Foram mudados o formato e o lay-out, os quais pretendemos aper-
feiçoar cada vez mais, para que a forma e a apresentação da revista correspondam
à qualidade do seu conteúdo. Junto com essas mudanças, contudo, a revista quer
preservar a sua identidade original e dar continuidade a um longo percurso de nove
anos de existência em consonância com o Mestrado de Educação e
Contemporaneidade, que ora se instala no Departamento de Educação I, colocan-
do-se desde já como um de seus veículos de divulgação. A partir deste número,
portanto, a Revista assume uma nova forma e amplia seus objetivos, mantendo o
antigo compromisso de discutir uma educação plural, democrática e profundamente
entrelaçada com as causas sociais voltadas para um mundo mais humano, solidário,
igualitário e diversificado.

A Comissão de Editoração
TEMAS E PRAZOS DOS PRÓXIMOS NÚMEROS
DA REVISTA DA FAEEBA
Prazo de entrega
Nº TEMA dos artigos Lançamento previsto
14 A construção da paz:
ética e direitos humanos 30.11.00 Março de 2001

15 Educação, linguagem e sociedade 30.04.01 Agosto de 2001

16 Globalização e educação 30.09.01 Março de 2002

17 Inclusão e exclusão social 30.04.02 Agosto de 2002


BRASIL 500 ANOS
BRASIL 500 ANOS
Carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel,
datada de Pôrto Seguro em 1 de maio de 1500


“Senhor
“Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e rabo-de-asno; e a quarta-feira seguinte, pela ma-
assim os outros capitães escreveram a Vossa Alteza nhã, topamos aves, a que chamam fura-buchos; e
a nova do achamento desta vossa terra nova, que se neste dia, à horas de véspera, houvemos vista de
ora nesta navegação achou, não deixarei também terra, a saber: primeiramente de um grande monte
de dar minha conta a Vossa Alteza, assim como eu mui alto e redondo e de outras serras mais baixas
melhor puder, ainda que, para o bem contar e falar, ao sul dêle, e de terra chã com grandes arvoredos;
o saiba pior que todos fazer; porém tome Vossa Al- ao qual monte o Capitão pôs o nome o Monte
teza minha ignorância por boa vontade a qual certo Pascoal, e à terra o de Vera Cruz. Mandou lançar o
creio que, por aformosear nem afeiar aja aqui de prumo: acharam vinte e cinco braças, e ao sol pos-
por mais que aquilo que vi e me pareceu”. to, obra de seis léguas de terra, surgimos âncoras,
“Da marinhagem e singraduras do caminho, em dezenove braças ancoragem limpa”.
não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não “Ali ficamos toda aquela noite”.
saberei fazer , e os pilotos devem ter êste cuidado; “E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e se-
e, portanto, Senhor, do que hei de falar começo e guimos direito à terra, e os navios pequenos indo
digo: diante por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, tre-
“A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, ze, doze, dez e nove braças até meia légua de terra,
foi segunda-feira 9 de março, e sábado 14 do dito onde todos lançamos âncoras em direito da bôca de
mês, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as um rio”.
Canárias, mais perto da Grã Canária; e aí andamos “E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas,
todo aquêle dia em calma, à vista delas, obra de 3 pouco mais ou menos. E dali avistámos homens que
ou 4 léguas”. andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo
“E domingo, 22 do dito mês, às 10 horas pouco os navios pequenos, disseram, por chegarem pri-
mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo meira alli”. Lançamos os batéis e esquifes fora, e
Verde, a saber: da ilha de S. Nicolau, segundo o vieram logo todos os capitães das naus a esta nau
dito de Pero Escolar, pilôto, e à noite seguinte ao do Capitão-mor; e ali falaram; e o Capitão mandou
amanhecer de segunda-feira, se perdeu da frota em terra Nicolau Coelho para ver aquele rio; e tan-
Vasco de Ataíde com a sua nau sem aí haver tempo to que êle começou para lá a ir, acudiram pela praia
forte nem contrário para poder ser; fez o Capitão homens, quando dois, quando três, de maneira que,
suas diligências para o achar numas e nutras par- quando o batel chegou à boca do rio, eram ali de-
tes e não apareceu mais; e assim seguimos nosso zoito ou vinte homens pardos, todos nus, sem ne-
caminho, por êste mar de longo até terça-feira, oita- nhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas; tra-
va da Páscoa, que foram 21 de abril que topamos ziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos
alguns sinais de terra, sendo da dita ilha, segundo rijos para o batel e Nicolau Coelho lhes fez sinal
os pilotos diziam, obra de seiscentas e sessenta ou que pusessem os arcos e eles os puseram. Alí não
setenta léguas, os quais eram muita quantidade de pôde dêles haver fala, nem entendimento, que apro-
ervas compridas a que os mareantes chamam veitasse, pelo mar quebrar na costa. Sòmente deu-
botelho, e assim outras, a que também chamam lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho

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que levava na cabeça e um chapéu preto; e um deles senhos onos de ossos, brancos, de compridão de uma
lhe deu um sombreiro de penas de aves compridas, mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão,
com uma capazinha pequena de penas vermelhas e e agudos na ponta como um furador; metem-nos
pardas como as de papagaio. E outro lhe deu uma pela parte de dentro do beiço e o que lhes fica entre
ramal grande de continhas brancas miudas que que- os beiços e os dentes é feito como roque de xadrez;
rem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o e em tal maneira o trazem alí encaixado que lhes
Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se vol- não dá paixão, nem lhes torva a fala, nem comer,
veu às naus por ser tarde e não poder haver deles nem beber”.
mais fala, por causa do mar. “Os cabelos seus são corredios, e andavam tos-
“A noite seguinte ventou tanto sueste com quiados de tosquia alta, mais que de sobre pente, de
chuvaceiros que fez cassar as naus e especialmente boa grandura, e rapados até por cima das orelhas.
a Capitânea; e à sexta, pela manhã, às 8 horas, pouco E um dêles trazia por baixo da solapa, de fonte à
mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o fonte, para detrás, uma maneira de cabeleira de pe-
Capitão levantar ancoras e fazer vela, e fomos de nas de aves amarelas, que seriam do compridão de
longo da costa com os batéis e esquifes amarrados um couto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o
por popa, em direção norte, para ver se achavam toutiço e as orelhas, a qual andava pegada nos ca-
alguma abrigada e bom pouso onde nós ficássemos belos pena e pena com uma confeição branda como
para tomar água e lenha, não por nos já minguar, a cera, e não o era; de maneira que andava a cabe-
mas por nos acertarmos aqui. E quando fizemos vela, leira mui redonda e mui basta e mui igual, e não
seriam já na praia assentados, junto como o rio, obra fazia míngua mais lavagem para a levantar. O Ca-
de sessenta ou setenta homens que se juntaram ali pitão, quando êles vieram, estava assentado em uma
poucos e poucos. Fomos de longo e mandou o Ca- cadeira com uma alcatifa aos pés por estrado, bem
pitão aos navios pequenos que fôssem mais chega- vestido com um colar de ouro mui grande ao pesco-
dos à terra e que, se achassem pouso seguro para as ço; e Sancho de Toar, e Simão Miranda, e Nicolau
naus, amainassem; e sendo nós pela costa, obra de Coelho, e Aires Correia, e nós outros que aqui na
dez léguas donde nos levantamos, acharam os ditos nau com êles íamos, e assentados no chão por essa
navios pequenos um recife com um pôrto dentro alcatifa; acenderam tochas e entraram, e não fize-
muito bom e seguro, com uma muito larga entrada; ram nenhuma menção de cortesia nem de falar ao
e meteram-se dentro e amainaram, e as naus arriba- Capitão nem a ninguém; porém um dêles pôs o ôlho
ram sôbre êle, e um pouco antes de sol posto amai- no colar do Capitão, e começou a acenar com a mão
naram légua do recife, e ancoraram a 11 braças. E para a terra, e depois para o colar, como que nos
sendo Afonso Lopez, nosso pilôto, em um daqueles dizia que havia em terra ouro; e também viu um
navios pequenos, por mandado do Capitão por ser castiçal de prata, e assim mesmo acenara para a
homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no terra e então para o castiçal, como que havia tam-
esquife a sondar o pôrto dentro e tomou em uma bém prata; mostraram-lhes um papagaio pardo, que
almadia dois daqueles homens da terra, mancebos e aqui o Capitão traz; tomaram-no logo na mão e ace-
de bons corpos; e um dêles trazia um arco e seis ou naram para terra, como os havia alí; mostraram-
sete setas; e na praia andavam muitos com arcos e lhes um carneiro, não fizeram menção; mostraram-
setas e não lhes aproveitaram. Trouxe-os logo já de lhes uma galinha, quase haviam medo dela, e não
noite, ao Capitão, onde foram recebidos com muito queriam pôr a mão, e depois tomaram como espan-
prazer e festa. A feição dêles é serem pardos, ma- tados; deram-lhes alí de comer pão e pescado cozi-
neira de avermelhados, de bons rostos e bons nari- do, confeitos, fartéis, mel e figos passados; não qui-
zes, bem feitos, andam nus, sem nenhuma cobertu- seram comer daquilo quase nada, e alguma coisa se
ra, nem estimam nenhuma coisa cobrir, nem mos- provavam, lançavam-na logo fora; trouxeram-lhes
trar suas vergonhas, e estão acerca disso com tanta vinho por uma taça; puseram assim à boca tão de
inocência como têm em mostrar o rosto; traziam uma vez e não gostaram dêle nada; nem o quiseram
ambos o beiço de baixo furado, e metidos por êles mais; trouxeram-lhes água por uma albarrada, to-

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maram dela senhos bocados, e não beberam; sòmente degredado com êles, os quais assim que saíram, não
lavaram as bocas e lançaram fora; viu um dêles umas pararam mais; nem esperava um por outro, senão a
contas de rosário brancas; acenou, que lhas des- quem mais corria; e passaram um rio, que por aí
sem, e folgou muito com elas e lançou-as ao pesco- corre de água doce, de muita água, que lhes dava
ço, e depois tirou-as e embrulhou-as no braço, e pela braga, e outros muitos com êles; e foram assim
acenava para a terra e então para as contas e para o correndo, além do rio, entre umas moitas de pal-
colar do Capitão, como que dariam ouro por aqui- mas, onde estão outros; e alí pararam. E naquilo foi
lo; isto tomava-mos nós assim pelo desejarmos, mas o degredado com um homem que, logo ao sair do
se êle queria, dizer, que levariam as contas e mais o batel, o agasalhou e levou até lá. E logo o tornaram
colar, isto não queríamos nós entender, porque lho a nós, e com êle vieram os outros, que nós levára-
não havíamos de dar; e depois tornou as contas a mos; os quais vinham já nus e sem carapuças; e
quem lhas deu, e então estiraram-se assim de costas então se começaram a chegar muitos, e entravam
na alcatifa a dormir, sem terem nenhuma maneira pela beira do mar para os batéis até que mais não
de cobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas, podiam, e traziam cabaços d’água e tomavam al-
e as cabeleiras delas bem rapadas e feitas; o Capi- guns barris, que nós levávamos, enchiam-os de água
tão lhes mandou pôr às cabeças senhos coxins; e o e os traziam aos batéis, não que êles de todo che-
da cabeleira procurava assaz pola não quebrar, e gassem a bordo do batel, mas junto com êle, lança-
lançaram-lhe um manto por cima, e êles consenti- vam-o da mão e nós tomávamo-los; e pediam, que
ram e ficaram e dormiram”. lhes dessem alguma coisa”.
“Sábado pela manhã mandou o Capitão fazer “Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas;
vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui e a uns dava um cascavel, e a outros uma manilha;
larga e alta de seis a sete braças; entraram tôdas as de maneira que, com aquela encarva, quase que nos
naus dentro, ancoraram em cinco ou seis braças, a queriam dar a mão; davam-nos daqueles arcos e
qual ancoragem dentro é tão grande e tão formosa, setas por sombreiros e carapuças de linho, e por
e tão segura, que podem jazer dentro dela mais de qualquer cousa que os homens queriam dar. Dalí se
duzentos navios e naus”. partiram os outros dois mancebos, que não os vi-
“E tanto que as naus foram pousadas e ancora- mos mais”.
das, vieram os capitães todos a esta nau do Capi- “Andavam alí muitos dêles, ou quase a maior
tão-mor”. parte, que todos traziam aqueles bicos de osso nos
“E daqui mandou o Capitão Nicolau Coelho e beiços; alguns, que andavam sem êles, traziam os
Bartolomeu Dias, que fôssem em terra, e levassem beiços furados e nos buracos espelhos de pau que
aqueles dois homens, e os deixassem ir com seu arco pareciam espelhos de borracha, e alguns dêles tra-
e setas, aos quais mandou dar senhas camisas no- ziam três daqueles bicos, a saber: um na metade e
vas e senhas carapuças vermelhas e dois rosários os dois nos cabos; e andavam aí outros quartejados
de contas brancas de osso, que êles levaram nos de côres a saber: dêles a metade da sua própria côr
braços, e senhos cascavéis e senhas campainhas. E e metade de tintura negra, maneira de azulada, e
mandou com êles, para ficar lá, um mancebo degra- outros quartejados de escaques”.
dado, criado de D. João Telo, a quem chamam Afon- “Alí andavam entre êles três ou quatro moças,
so Ribeiro, para andar lá com êles, e saber de seu bem moças e bem gentis, com cabelos pretos, com-
viver e maneira, e a mim mandou que fôsse com pridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas e
Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha direitos à tão bem saradinhas, e tão limpas metade da sua pró-
praia; alí acudiram logo obra de duzentos homens, pria de cabeleiras, que de as nós muito bem olhar-
todos nus, com arcos e setas nas mãos. Aqueles que mos não tínhamos nenhuma vergonha”.
nós levávamos acenavam-lhes, que se afastassem e “Ali, por então, não houve mais fala nem enten-
pusessem os arcos e êles o puseram e não se afasta- dimento com êles, por a barbaria deles ser tama-
ram muito; abasta que puseram os seus arcos; e nha, que se não entendia nem ouvia ninguém; ace-
então saíram os que nós levávamos, e o mancebo namos-lhes que se fôssem; e assim o fizeram e pas-

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saram-se além do rio, e saíram três ou quatro ho- alí todos eram, a qual missa, segundo meu parecer,
mens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos foi ouvida por todos com muito prazer e devoção”.
barris d’água, que nós levávamos, e tornamo-nos “Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo com
às naus; e em nós assim vindo, acenaram-nos, que que saiu de Belém, a qual esteve sempre alta da
tornássemos; tornamos, e êles mandaram o degra- parte do Evangelho. Acabada a missa, desvestiu-se
dado, e não quiseram que ficasse lá com êles, o qual o padre, pôs-se em uma cadeira alta e nós todos
levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças lançados por essa areia, e pregou uma solene e pro-
vermelhas, para lá ao senhor, se o aí houvesse; não veitosa pregação da história do Evangelho; e em
curaram de lhe tomar nada e assim o mandaram fim dela tratou da nossa vinda e do achamento des-
com tudo, e então Bartolomeu Dias o fêz outra vez ta terra, conformando-se com o sinal da cruz, sob
tornar, que lhes desse aquilo em vista de nós, àquele suja obediência vimos, a qual veio muito a propósi-
que da primeira vez o agasalhou, e então veio-se e to e fêz muita devoção”.
trouxemo-lo”. “Enquanto estivemos à missa e à pregação, seri-
“Êste que o agasalhou era já de dias, e andava am na praia outra tanta gente, pouco mais ou me-
todo por loçainha cheio de penas pegadas pelo cor- nos como os de ontem, com seus arcos e setas, os
po, que pareciam assentadas, como São Sebastião. quais andavam folgando e olhando-nos, e assenta-
Outros traziam carapuças de penas amarelas e ou- ram-se”.
tros de vermelhas e outros de verdes, e uma daque- “E depois de acabada a missa, assentados nós a
las moças era toda tinta de fundo acima, daquela pregação, aevantaram-se muitos dêes, tangeram
tintura, a qual certo era tão bem feita e tão redonda, corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um
e sua vergonha, que ela não tinha, tão graciosa, que pedaço; e alguns dêles se meteram em almadias, duas
a muitas mulheres de nossa terra vendo-lhe tais fei- ou três que aí tinham, as quais não são feitas como
ções fizera vergonha, por não terem a sua como ela. as que eu já vi; são três traves atadas juntas; e alí se
Nenhum dêles não era fanado, mas todos assim como metiam quatro ou cinco ou êsses que queriam, não
nós; e com isto nos tornamos, e êles foram-se. À se afastando quase nada da terra, senão quanto po-
tarde saiu o Capitão-mor em seu batel, com todos diam tomar pé”.
nós, e com os outros capitães das naus, em seus “Acabada a pregação, moveu o Capitão com
batéis, a folgar pela baía, a carão da praia; mais todos para os batéis, com nossa bandeira alta, e
ninguém saiu em terra pelo Capitão não querer, sem embarcamos, e fomos assim todos contra terra, para
embargo de ninguém nela estar”. passarmos ao longo, por onde êles estavam; indo
“Sòmente saiu êle, com todos em um ilhéu gran- Bartolomeu Dias em seu esquife, por mandado do
de, que na baía está, que de baixa-mar fica mui va- Capitão, com um pau de uma almadia, que lhes o
zio; porém é de todas as partes cercado d’água, que mar levara, para lhos dar, e nós todos, obra tiro de
não pode ninguém ir a êle sem barco ou a nado”. besta, atrás dêle. Como êles viram o esquife de
“Alí folgou êle e todos nós outros bem uma hora
Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água,
e meia; e pescaram aí andando marinheiros com um
metendo-se nela até onde mais podiam; acenaram-
chichorro e mataram peixe miúdo, não muito, e en-
lhes que pusessem os arcos, e muitos dêles os iam
tão volvemo-nos às naus já bem noite. Ao domingo
de Pascoela, pela manhã, determinou o Capitão ir logo pôr em terra, e outros os não punham; andava
ouvir missa e pregação naquele ilheu, e mandou a aí um, que falava muito aos outros que se afastas-
todos os capitães, que se corrigissem nos batéis e sem, mas não já que me assim parecesse que lhe
fôssem com êle, e assim foi feito. Mandou naquele tinham acatamento, nem medo. Êste que os assim
ilhéu armar um esparavel, e dentro nele alevantar andava afastando trazia o seu arco e setas e andava
altar mui bem corrigido, e alí, com todos nós ou- tinto de tintura vermelha pelos peitos e espáduas, e
tros, fez dizer missa, a qual disse o padre Frei pelos quadrís, coxas e pernas até abaixo; e os vazi-
Henrique, em voz entoada e oficiada com aquela os, com a barriga e estômago eram de sua própria
mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que côr, e a tintura era assim vermelha que a água lha

14 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 11-20, jan./junho, 2000


não comia, nem desfazia; antes, quando saía da água, zer escândalo para os de todo mais amansar e a
era mais vermelhada”. pacificar; senão sómente deixar os dois degredados,
“Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias, quando daqui partíssemos. E assim por melhor pa-
e andava entre êles, sem êles entenderem nada nele, recer a todos ficou determinado”.
quanto para lhe fazerem mal, senão quanto lhe da- “Acabado isto, disse o Capitão, que fôssemos
vam cabaços de água e acenavam aos do esquife, nos batéis em terra, e ver-se-ia bem o rio quejando
que saíssem em terra; com isto se volveu Bartolomeu era e também para folgarmos. Fomos todos nos
Dias ao Capitão, e viemos às maus a comer, tan- batéis em terra, armados, e a bandeira conosco; êles
gendo trombetas e gaitas, sem lhes dar mais aten- andavam alí na praia, à boca do rio, onde nós ía-
ção, e êles tornaram-se a sentar na praia, e assim mos, e antes que chegássemos, do ensino que dan-
por então ficaram”. tes tinham, puseram todos os arcos, e acenavam que
“Neste ilheu, onde fomos ouvir missa e prega- saíssemos; e tanto que os batéis puseram as proas
ção, espraia muito a água, e descobre muita areia e em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual
muito cascalho”. não é mais ancho que um jôgo de mancal; e tanto
“Foram alguns, em nós aí estando, buscar ma- que desembarcamos, alguns dos nossos passaram
risco, e não o acharam; e sim alguns camarões gros- logo o rio e foram entre êles, e alguns aguardavam
sos e curtos, entre os quais vinha um muito grande e outros se afastavam; porém era a cousa de manei-
camarão e muito grosso, que em nenhum tempo vi ra que todos andavam misturados; êles davam dêsses
tamanho; também acharam cascas de brigões e de arcos, com suas setas, por sombreiros e carapuças
ameijoas, mas não toparam com nenhuma peça in- de linho, e por qualquer coisa que lhes davam; pas-
teira. E tanto que comemos, vieram logo todos os saram além tantos dos nossos, e andaram assim
capitães a esta nau, por mandado do Capitão-mor, misturados com êles, que se esquivavam e afasta-
com os quais se êle apartou, e eu na companhia; e vam-se, e iam-se dêles para cima, onde outros esta-
perguntou a todos, se nos parecia ser bem mandar a vam. E então o Capitão fez-se tomar ao colo de dois
nova do achamento desta terra a Vossa Alteza, pelo homens, e passou o rio e fez tornar todos. A gente,
navio dos mantimentos, para a melhor mandar des- que alí era, não seria mais que aquela que soia, e
cobrir, e saber dela mais do que agora nós podía- tanto que o Capitão fêz tornar todos, vieram alguns
mos saber por irmos de nossa viagem”. dêles a êle, não pelo conhecerem por senhor; cá me
“E entre muitas falas, que no caso se fizeram foi parece, que não entendem, nem tomavam disso co-
por todos, ou a maior parte, dito que seria muito nhecimento, mas porque a gente nossa passava já
bem; e nisto concluíram, e tanto que a conclusão foi para aquém do rio; alí falavam e traziam muitos
tomada, perguntou mais se seria bom tomar aqui arcos, continhas daquelas já ditas, e resgatavam por
por fôrça um par dêstes homens para os mandar a qualquer cousa, em tal maneira que trouxeram dalí
Vossa Alteza, e deixar aquí por êles dois dêstes de- para as naus muitos arcos, e setas e contas; e então
gradados”. tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo acudiram
“A isto acordaram em que não era necessário muitos à beira dêle. Ali veríeis galantes pintados de
tomar por fôrça homens, porque geral costume era preto e vermelho, e quartejados assim pelos corpos,
dos que assim levavam por fôrça, por alguma par- como belas pernas, que certo pareciam assim bem;
te, dizerem, que há aí tudo o que lhes perguntam, e também andavam entre êles quatro ou cinco mulhe-
que melhor e muito melhor informação da terra da- res moças, assim nuas que não pareciam mal, entre
riam dois homens dêstes degradados, que aqui dei- as quais andava uma com uma coxa, de joelho até o
xássemos, da que êles dariam, se os levassem, por quadril e nádega, tôda tinta daquela tintura preta, e
ser gente que ninguém entende, nem êles tão cedo o resto todo da sua própria côr; outra trazia ambos
aprenderiam a falar para o saberem também dizem os joelhos com as curvas assim tintas, e também os
muito melhor do que êstes outros não digam, quan- colos dos pés, e suas vergonhas tão nuas, e com
do cá Vossa Alteza mandar; e que portanto não cu- tanta inocência descobertas, que não havia aí ne-
rassem aqui de, por fôrça, tomar ninguém, nem fa- nhuma vergonha”.

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 11-20, jan./junho, 2000 15


“Também andava aí outra mulher moça com um aquela ribeira do mar é apaulada por cima, e sai a
menino ou menina no colo, atado com um pano, água por muitos lugares. E depois de passarmos o
não sei de que, aos peitos, que lhe parecia senão as rio, foram uns sete ou oito dêles andar entre os ma-
perninhas; mas as pernas da mãe e o rosto não tra- rinheiros que se recolhiam aos batéis, e levaram dalí
ziam nenhum pano”. um tubarão que Bartolomeu Dias matou; elevavam-
“E depois moveu o Capitão para cima, ao longo lho; e lançaram-no na praia; abasta que até aqui
do rio, que anda sempre a carão da praia, e alí espe- com quer que se êles em alguma parte amansassem,
rou um velho que trazia na mão uma pá d’almadia, logo de uma mão para outra se esquivavam, como
falou, esando o Capitão com êle perante nós todos, pardais de cevadouro, e ninguém não lhes ousa fa-
sem o nunca ninguém entender, nem êle a nós, lar rijo por se mais não esquivarem, e tudo se passa
quantas cousa que lhe o homem perguntava do ouro, como êles querem pelos bem amansar”.
que nós desejávamos saber se o havia na terra. Tra- “Ao velho com quem o Capitão falou, deu uma
zia êste velho o beiço tão furado, que lhe caberia carapuça vermelha, e com tôda a fala, que com êle
pelo furado um grande dedo polegar; e trazia meti- passou e com a carapuça, que lhe deu, tanto que se
do no furado uma pedra verde ruim, que cerrava expediu, começou de passar o rio, foi-se logo reca-
por fora aquêle buraco; e o Capitão lha fez tirar; e tando, e não quis mais tornar do rio para aquém. Os
êle não sei que diabo falava, e ia com ela para a outros dois o Capitão teve nas naus, a quem deu o
boca do Capitão, para lha meter. Estivemos sôbre que já dito é, nunca mais aqui apareceram; de que
isso um pouco rindo e então enfadou-se o Capitão e tiro ser gente bestial e de pouco saber e por isso são
deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um assim esquivos; êles, porém, contudo andam muito
sombreiro velho; não por ela valer alguma cousa, bem curados e limpos, e naquilo me parece ainda
mas para mostra, e depois a houve o Capitão, creio mais que são como aves ou alimárias monteses, que
para com as outras coisas a mandar Vossa Alteza. lhes faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às
Andamos por aí vendo a ribeira, o qual é de muita mansas; porque os corpos seus são tão limpos, tão
água e muito boa; ao longo dela há muitas palmas, gordos e tão formosos, que não podem mais ser, e
não muito altas, em que há muito bons palmitos; isto me faz presumir, que não têm casas nem mora-
colhemos e comemos dêles muitos”. das em que se recolham, e o ar a que se criam, os
“Então tornou-se o Capitão para baixo, para a faz tais. Nem nós ainda até agora vimos nenhumas
boca do rio, onde desembarcamos; e além do rio casas nem maneiras delas. Mandou o Capitão aquele
andavam muitos dêles, dançando e folgando, uns degradado Afonso Ribeiro que se fôsse outra vez,
diante os outros, sem se tomarem pelas mãos, e fa- com êles, o qual se foi e andou lá um bom pedaço, e
ziam-no bem”. à tarde tornou-se, que os fizeram êles vir e não o
“Passou-se então além do rio Diogo Dias, quiseram lá consentir, e deram-lhe arcos e setas, e
almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gra- não lhe tomaram nenhuma cousa do seu, antes dis-
cioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nos- se êle lhe tomara um dêles umas continhas amare-
so, com sua gaita e meteu-se com êles a dançar, las, que êle levava, e fugia com elas; e êle se quei-
tomando-os pelas mãos; e êles folgavam e riam, e xou e os outros foram logo após êle, e lhas toma-
andavam com êle mui bem, ao som da gaita; depois ram, e tornaram-lhas a dar, e então mandaram-no
de dançarem, fez-lhe alí, , andando no chão, muitas vir; disse êle, que não vira lá entre êles senão umas
voltas ligeiras e salto real, de que se êles espanta- choupaninhas de rama verde, e de fetos muito gran-
vam e riam, e folgavam muito; e conquanto os com des, como dentre Douro e Minho; e assim nos tor-
aquilo muito segurou e afagou, tomavam logo uma namos às naus, já quase noite, a dormir”.
esquiveza, como monteses, e foram-se para cima; e “A segunda-feira, depois de comer, saímos to-
então o Capitão passou o rio, com todos nós outros, dos em terra a tomar água; alí vieram então muitos,
e fomos pela praia de longo, indo os batéis assim a mas não tanto como as outras vêzes, e traziam já
carão de terra; e fomos até uma lagoa grande de muito poucos arcos, e estiveram assim um pouco
água doce, que está junto com a praia, porque tôda afastados de nós, e depois, poucos e poucos, mistu-

16 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 11-20, jan./junho, 2000


raram-se conosco e abraçavam-nos e folgavam, e vianda, que êles tinham, a saber; muito inhame e
alguns deles se esquivavam logo”. outras sementes que na terra há, e êles diziam que-
“Alí davam alguns arcos por fôlhas de papel e riam vir com êles”.
por alguma carapucinha velha e por qualquer cousa, “Resgataram lá, por cascavéis e outras cousinhas
e em tal maneira se passou a cousa, que bem vinte de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos
ou trinta pessoas das nossas se foram com êles onde muito grandes e formosos e dois verdes pequeninos,
muitos dêles estavam, com moças e mulheres, e trou- e carapuças de penas verdes e um pano de penas de
xeram de lá muitos arcos e barretes de penas de muitas côres, maneira de tecido, assaz formoso, se-
aves, dêles verdes e dêles amarelos, do que creio, gundo Vossa Alteza tôdas estas cousas verá, por-
que o Capitão há de mandar a V. Alteza; e segundo que o Capitão vô-los-á de mandar, segundo êle dis-
diziam êsses que lá foram, folgaram com êles. Nes- se; e com isto vieram, e nós tornamo-nos às naus. À
te dia os vimos mais de perto e mais à nossa vonta- terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar
de, por andarmos todos quase misturados e alí dêles guarda de lenha e lavar roupa. Estavam na praia,
andavam daquelas tinturas quartejados, outros de quando chegamos, obra de sessenta ou setenta, sem
metades, outros de tanta feição como em panos de arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram-se
armar, todos com beiços furados, e muitos com os logo para nós, sem se esquivarem e depois acudi-
ossos neles, e alguns sem ossos. Traziam alguns ram muitos que seriam bem duzentos, todos sem
dêles uns ouriços verdes de árvores, que na côr que- arcos, e misturaram-se todos tanto conosco, que nos
riam parecer de castanheiros, senão quanto eram ajudavam dêles a acarretar lenha e meter nos batéis,
mais pequenos; e aquêles eram cheios de uns grãos e tratavam com os nossos e tomavam muito prazer;
vermelhos pequenos, que esmagando-os entre os e, enquanto nós fazíamos a lenha, faziam dois car-
dedos, faziam tintura muito vermelha, do que êles pinteiros uma grande cruz, de um pau, que se on-
andavam tintos; e quanto se mais molhavam, tanto tem para isso cortou; muitos dêles vinham alí estar
mais vermelhos ficavam; todos andam rapados até com os carpinteiros, e creio que o faziam mais por
acima das orelhas, e assim as sobrancelhas e pesta- verem a ferramenta de ferro, com que a faziam, que
nas; trazem todos as testas, de fonte à fonte, tintas por verem a cruz; porque êles não tem cousa algu-
de tintura preta, que parece uma fita preta da largu- ma, que de ferro seja e cortam sua madeira e paus
ra de dois dedos; e o Capitão mandou àquele degra- com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau,
dado Afonso Ribeiro, e a outros dois degradados, entre duas talas mui bem atadas, e por tal maneira
que fôssem andar lá entre êles, e assim a Diogo Dias, que andam fortes, segundo os homens, que ontem
por ser homem ledo, com que êles folgavam; e aos às suas casas foram, diziam, porque lhas viram lá.
degradados mandou, que ficassem lá esta noite”. Era já a conversação dêles conosco tanta, que qua-
“Foram-se lá todos e andaram entre êles: e se- se nos estorvavam ao que havíamos de fazer; e o
gundo êles diziam, foram bem uma légua e meia a Capitão mandou dois degradados e a Diogo Dias
uma povoação de casas, em que haveria nove ou que fôssem lá a aldeia e a outras, se houvessem de-
dez casas, as quais diziam, que eram tão compri- las novas, e que em tôda maneira não se viessem a
das, cada uma, como esta nau capitânia, e eram de dormir às naus, ainda que êles os mandassem e as-
madeiras e as ilhargas de tábuas, e cobertas de pa- sim se foram”.
lha de razoada altura; e todos em uma só casa, sem “Enquanto andávamos nessa mata, a cortar le-
nenhum repartimento; tinham de dentro muitos es- nha, atravessavam alguns papagaios por essas ár-
teios, e, de esteio a esteio, uma rêde atada pelos vores; dêles verdes e outros pardos, grandes e pe-
cabos em cada esteio, altas, em que dormiam; e de- quenos, de maneira que me parece que haverá nesta
baixo, para se aquentarem, faziam seus fogos; e ti- terra muitos; porém eu não veria mais até nove ou
nha cada casa duas portas pequenas, uma em um dez; outras aves então não vimos; sòmente algumas
cabo e outro em outro; e diziam que, em cada casa, pombas seixas, e pareceram-me maiores, em boa
se colhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim quantidade, que as de Portugal”.
os acharam e que lhes deram de comer daquela “Alguns diziam, que viram rolas, mas eu não as

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 11-20, jan./junho, 2000 17


vi; mas, segundo os arvoredos são mui muitos e “E tanto que saímos em terra, foi-se logo com
grandes e de infinidas maneiras, não duvido que por ela que não apareceu aí mais. Andariam na praia,
êsse sertão haja muitas aves; e cerca da noite nós quando saímos, oito ou dez dêles, e daí a pouco co-
volvemos para as naus com nossa lenha. Eu creio, meçaram de vir, parece-me que viriam quatrocen-
Senhor, que não dei ainda conta a Vossa Alteza da tos e cinqüenta”.
feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e “Traziam alguns dêles arcos e setas, e todos de-
compridos, e as setas compridas e os ferros delas de ram por carapuças e por qualquer cousa, que lhes
canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por al- davam. Comiam conosco do que lhe dávamos, e
guns que creio, o Capitão a ela há de enviar. À quar- bebiam alguns dêles vinho, e outros o não podiam
ta-feira não fomos em terra, porque o Capitão-mor beber; mas parece-me que se lho avesassem, que o
andou todo o dia no navio dos mantimentos a beberiam de boa vontade. Andavam todos tão dis-
despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada um postos e tão bem feito e galantes com suas tinturas,
podia levar. Êles acudiram à praia muitos, segundo que pareciam bem”.
das naus vimos, que seriam obra de trezentos, e se- “Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com
gundo Sancho de Toar, que lá foi, disse. Diogo Dias mui boa vontade, e levavam-na aos batéis, e anda-
e Afonso Ribeiro, o degradado, a quem o Capitão vam já mais mansos e seguros entre nós do que nós
ontem mandou, e que de tôda maneira lá dormis- andávamos entre êles. Foi o Capitão, com alguns
sem, volveram-se já de noite por êles não quererem de nós, um pedaço por êste arvoredo até uma ribei-
que lá dormissem e trouxeram papagaios verdes e
ra grande e de muita água, que a nosso parecer era
outras aves pretas, quase como pegas, senão quan-
esta mesma que vem ter à praia, em que nós toma-
to tinham o bico branco e os rabos curtos. E quando
mos água. Alí ficamos um pedaço, bebendo e fol-
Sancho de Toar recolheu-se às naus, queriam se vir
gando ao longo dela, entre êsse arvoredo, que é tan-
com êle alguns; mas êle não quis senão dois mance-
to e tamanho e tão basto e de tantas plumagens, que
bos dispostos e homens de prol. Mandou-os esta
lhe não pode homem dar conta”.
noite mui bem pensar e curar, e comeram tôda a
“Há entre êles muitas palmas, de que colhemos
vianda, que lhes deram e mandou-lhes fazer cama
de lençóis, segundo êle disse, e dormiram e folga- muitos e bons palmitos. Quando saímos do batel,
ram aquela noite e assim não foi mais êste dia que disse o Capitão que seria bom irmos direitos à cruz,
para escrever seja”. que estava encostada a uma árvore, junto com o
“À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos rio, para se pôr de manhã, que é sexta-feira, e que
logo quase pela manhã e fomos à terra por mais nos puséssemos todos em joelhos e a beijássemos,
lenha e água; e querendo o Capitão sair, chegou para êles verem o acatamento que lhes tínhamos; e
Sancho de Toar, com seus dois hóspedes, e por êle assim o fizemos, e a êstes dez ou doze, que aí esta-
não ter ainda comido puseram-lhe toalhas e veio- vam, acenaram-lhes que fizessem assim, e foram
lhe vianda e comeu; os hóspedes assentaram-nos em logo todos beijá-la. Parece-me gente de tal inocên-
senhas cadeiras, e de tudo o que lhe deram come- cia, que se os homens os entendessem e êles a nós,
ram mui bem, e especialmente cação cozido frio e que seriam logo cristãos; porque êles não têm nem
arroz; não lhes deram vinho por Sancho de Toar entendem em nenhuma crença, segundo parece, e,
dizer que não bebiam bem. Acabado o comer portanto se os degradados, que aqui hão de ficar,
metemo-nos todos no batel e êles conosco. Deu um aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não
grumete a um dêles, uma armadura grande de por- duvido, segundo a santa tensão de Vossa Alteza,
co montês, bem revolta, e tanto que a tomou, me- fazerem-se cristãos e crerem na nossa santa fé, à
teu-a logo no beiço; e porque se lhe não queria ter, qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque
deram-lhe uma pequena, de cera vermelha, e êle certo esta gente é boa e de boa simplicidade, e im-
corregiu-lhe detrás seu adereço para se ter, e me- primir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que
teu-o no beiço, e assim revolta para cima, e vinha lhes quiserem dar; e logo que Nosso Senhor lhes
tão contente com ela, como se tivera uma grande deu bons corpos e bons rostos, como a bons ho-
joia”. mens, e Êle, que nos por aqui trouxe, creio, que não

18 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 11-20, jan./junho, 2000


foi sem causa. E, portanto, Vossa Alteza, pois tanto qual foi cantada e oficiada por êsses ditos. Alí esti-
deseja acrescentar na santa fé católica, deve enten- veram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta
der em sua salvação, e prazera a Deus, que com dêles, assentados todos em joelhos, assim como nós;
pouco trabalho será assim. Êles não lavram, nem e quando veio ao Evangelho, que nos erguemos to-
criam, nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem dos em pé, com as mãos levantadas, êles se levanta-
ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimaria, ram conosco e alçaram as mãos, estando assim até
que costumada seja ao viver dos homens; nem co- ser acabada; e então tornaram-se a assentar como
mem senão dêsse inhame que aqui há muito, e dessa nós; e quando levantaram a Deus, que nos pusemos
semente de frutos, que a terra e as árvores de si de joelhos, êles se puseram todos, assim como nós
lançam; e com isto andam tais, e tão rijos e tão né- estávamos, com mãos levantadas, e em tal maneira
dios, que o não somos nós tanto com quanto trigo e assossegados, que certifico a vossa Alteza, que nos
legumes comemos. Enquanto alí êste dia andaram, fêz muita devoção. E estiveram assim conosco até
sempre ao som de um tamborim nosso, dançaram e acabada a comunhão, e depois da comunhão co-
bailaram com os nossos, em maneira que são muito mungaram êsses religiosos e sacerdotes, e o Capi-
mais nossos amigos que nós seus; se lhes homem tão com alguns de nós outros. Alguns, por o sol ser
acena se queriam vir às naus faziam-se logo prestes grande, em nós estando comungando, alevantaram-
para isso, em tal maneira que, se os homens a todos se; os outros estiveram e ficaram. Um dêles, ho-
quiseram convidar, todos viriam, porém, não mem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, ficou
alí com aquêles que ficaram; o qual, em nós assim
trouxemos esta noite às naus senão quatro ou cin-
estando, ajuntava aquêles que alí ficaram e ainda
co, a saber: o Capitão-mor dois, e Simão de Miranda
chamara outros. Êste andando assim entre êles, fa-
um, que trazia já por pagem, e Áires Gomes outro,
lando-lhes acenou como o dedo para o altar, e de-
assim pagem”.
pois mostrou o dedo para o cêu, como quem lhes
“Os que o Capitão trouxe era um dêles um de
dizia alguma cousa de bem, e nós assim o toma-
seus hóspedes, que a primeira, quando aqui chega-
mos. Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta
mos, lhe trouxeram, o qual veio hoje aqui vestido
de cima e ficando na alva, assim subiu junto ao al-
da sua camisa, e com êle um seu irmão, os quais tar em uma cadeira, e ali nos pregou do Evangelho
foram esta noite mui bem agasalhados, assim de e dos apóstolos, cujo dia é tratando no fim da pre-
vianda, como de cama de colchões e lençois, pelos gação dêste vosso prosseguimento tão santo e vir-
mais amansar. Hoje, que é sexta-feira, primeiro de tuoso que nos causou mais devoção. Êsses, que à
maio, saimos pela manhã em terra, com nossa ban- pregação sempre estiveram, estavam, assim como
deira, e fomos desembarcar acima do rio, contra o nós, olhando para êle; e aquêle que digo chamava
sul, onde nos pareceu, que seria melhor chantar a alguns que viessem para alí. Alguns vinham e ou-
cruz para ser melhor vista; e alí assinou o Capitão tros iam-se. Acabada a pregação trazia Nicolau
onde fizessem a cova para a chantar”. Coelho muitas cruzes de estanho, que lhe ficaram
“E enquanto a ficaram fazendo, êle, com todos ainda da outra vinda e houveram por bem, que lan-
nos outros, fomos pela cruz, abaixo do rio, onde çassem a cada um sua ao pescoço, pela qual cousa
estava. Trouxemo-la dalí, com êsses religiosos e se assentou o padre Fr. Henrique ao pé da cruz, e aí
sacerdotes, diante, cantando maneira da procissão. a um e um lançava a sua, atada em um fio ao pesco-
Eram já aí alguns dêles, obra de setenta ou oitenta; ço fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mãos.
e quando nos assim viram vir, alguns dêles se fo- Vinham a isso muitos e lançaram-as tôdas, que se-
ram meter debaixo dela e ajudar-nos. Passamos o riam obra de quarenta ou cinqüenta, e isto acabado,
rio, ao longo da praia, e fomo-la por onde havia de era já bem uma hora depois do meio-dia. Viemos às
ser, que será do rio obra de dois tiros de besta. Alí, naus comer, onde o Capitão trouxe consigo aquêle
andando nisto, viriam bem cento e cinqüenta ou mesmo que fêz aos outros aquela mostrança para o
mais. Chantada a cruz, com as armas e divisa de altar e para o céu, e um seu irmão com êle, ao qual
Vossa Alteza, que lhe primeiro pregaram, armaram fêz muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca, e
ao pé dela e alí disse missa o padre Frei Henrique, a ao outro uma camisa destoutras”.

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“E, segundo o que a mim e a todos pareceu, esta ra assim os achamos como os de lá; as águas são
gente não lhe falece outra cousa para ser tôda cristã muitas, infindas; em tal maneira, é graciosa, que,
que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem
que nos viam fazer como nós mesmos, por onde das águas, que tem; porém o melhor fruto, que nela
pareceu a todos, que nenhuma idolatria nem adora- se pode fazer, me parece, que será salvar esta gente
ção têm; e bem creio que se Vossa Alteza aqui man- e esta deve ser a principal semente, que Vossa Alte-
dar quem mais entre êles devagar ande, que todos za em ela deve lançar; e que aí não houvesse mais
serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E, para que ter aqui esta pousada, para esta navegação de
isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo Calecut, bastaria, quanto mais disposição para nela
para os batizar; porque já então terão mais conheci- cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a
mento da nossa fé pelos dois degradados, que aqui saber: acrescentamento da nossa santa fé. E nesta
entre êles ficam, os quais ambos hoje também co- maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que
mungaram. Entre todos êstes, que hoje vieram, não nesta vossa terra vi, e se algum pouco alonguei, ela
veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sem- me perdoe, que o desejo que tinha de vos tudo dizer,
pre a missa; à qual deram um pano, com quem é mo fez assim pôr pelo miudo”.
cobrisse, e puseram-lho ao redor de si; porém ao “E pois que, Senhor, é certo, que assim neste
sentar não fazia memória de o muito estender para carrego, que levo, como em outra qualquer, cousa,
se cobrir; assim, Senhor, que a inocência desta gen- que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de
te é tal, que a de Adão não seria mais quanto em mim muito bem servido, a ela peço que, por me fa-
vergonha”. zer singular mercê, mande vir da ilha de S. Tomé,
“Ora, veja Vossa Alteza, quem em tal inocência Jorge de Soiro, meu genro, o que dela receberei em
vive, ensinando-lhe o que para a sua salvação per- muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza. Dêste
tence, si se converterão ao não. Acabado isto, fo- Pôrto-Seguro da vossa ilha de Vera Cruz, hoje sex-
mos assim perante êles beijar a cruz, e despedimo- ta-feira, 1º e maio de 1500”.
nos e viemos comer”.
“Pero Vaz de Caminha”
“Creio, Senhor, que com êstes dois degradados,
que aqui ficam, ficam mais dois grumetes, que esta

noite se saíram desta nau, no esquife, fugidos, os A carta de Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Ma-
quais não vieram mais; e cremos, que ficarão aqui, nuel, dando-lhe notícias do descobrimento da terra de
porque, de manhã, prazendo a Deus, faremos daqui Vera Cruz, hoje Brasil, pela armada de Pedro Álvares
nossa partida. Esta terra, Senhor, me parece, que Cabral, publicada na Revista do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia, Salvador, v.2, p. 185-205, 1894, foi
da ponta que mais está contra o sul, vimos até outra
reproduzida com a autorização da Professora Consuelo
ponta, que contra o norte vem, de que dêste pôrto Pondé de Sena, presidente do IGHB.
houvemos vista, será tamanha, que haverá nela vin-
te ou vinte e cinco léguas por costa; traz ao longo
do mar, em algumas partes, grandes barreiras, de-
las vermelhas e delas brancas, e a terra por cima
tôda chã, e muito cheia de grandes arvoredos de
ponta em ponta; é tôda praia parma, muito chã, e
muito formosa; pelo sertão nos pareceu do mar muito
grande, porque a estender olhos não podiam ver se-
não terra e arvoredos, que nos parecia mui longa
terra. Nela até agora não podemos saber se haja
ouro nem prata, nem nenhuma cousa de metal, nem
de ferro, nem lho vimos; porém a terra em si é de
muito bons ares, assim frios e temperados, como os
dentre Douro e Minho, porque, neste tempo de ago-

20 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 11-20, jan./junho, 2000


DESCOBRIMENTO E ALTERIDADE:
EM TORNO DA CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA

Marli Geralda Teixeira


Professora da Universidade Federal da Bahia

A expressão “Carta de Pêro Vaz de Caminha” tão de Damião de Góes como guarda-mor do arqui-
não existe no texto original desse tão citado docu- vo. Em 1505 uma versão em italiano apareceu
mento histórico. Tratando-se de um relatório redi- publicada em Roma, contradizendo os esforços por-
gido em estilo epistolar e na linguagem do portugu- tugueses para a manutenção do sigilo em torno do
ês quinhentista, seu autor dirige-se ao destinatário, assunto (Albuquerque, 1981:162). Na Torre do Tom-
o rei D. Manoel I de Portugal, com o tratamento bo ficou esquecida entre os papéis oficiais da Co-
respeitoso devido àquele monarca: “Senhor”. A de- roa.
signação popularmente divulgada decorre da neces- O terremoto que atingiu Lisboa em 1º de novem-
sidade sentida por seus comentaristas de identifica- bro de 1755, matando cerca de 40 mil pessoas e
rem o texto e classificá-lo na documentação relati- provocando uma enorme destruição e incêndios de
va ao descobrimento português das terras do Bra- diversos edifícios oficiais, trouxe como conseqüên-
sil. cia a necessidade de reorganização dos arquivos do
Trata-se do primeiro registro inequívoco da pre- Reino, tarefa que consumiria não poucos anos de
sença de europeus nessa parte do litoral do conti- trabalho dos funcionários do Estado. Em 1766, por-
nente americano, bem como do relato dos fatos ocor- tanto duzentos e sessenta e seis anos após sua reda-
ridos durante a viagem da armada lusitana coman- ção, a carta foi identificada entre os papéis oficiais
dada por Pedro Álvares Cabral, desde sua saída do pelo guarda-mor da Torre do Tombo, José de Seabra
Porto do Tejo após a missa na Ermida do Restelo e Silva, que dela mandou fazer uma cópia “...em
em 9 de março de 1500, até 1º de maio do mesmo boa letra (...) para milhor inteligencia do seu ori-
ano, data em que a carta foi enviada a Portugal a ginal.” (Baião, 1940:63). Em 1773 a cópia foi au-
bordo da nau de mantimentos de Gaspar de Lemos tenticada e assinada pelo referido guarda-mor e pelo
e a esquadra partiu do seu atracadouro para o seu escrivão Euzébio Manoel da Silva. Em 1785 o his-
destino original: os mares orientais das Índias. toriador espanhol Juan Bautista Muñoz estudou o
A narração minuciosa, à semelhança de um diá- documento com a intenção de publicá-lo numa co-
rio, traço predominante no texto, cobre um total de letânea de narrativas sobre os descobrimentos ma-
27 páginas do documento original com aproxima- rítimos.
damente 35 linhas cada uma. Seu destinatário não Mantido desde então na Torre do Tombo o do-
só a leu, como dela fez referência numa carta envi- cumento, original e cópia, ficou mais uma vez es-
ada aos Reis Católicos – El-Rei e Rainha de Castela quecido até que outro “terremoto” sacudiu a políti-
– noticiando-lhes a chegada do seu capitão Pedro ca portuguesa em 1807 com a invasão do país pelas
Álvares Cabral “...a uma terra que novamente des- tropas francesas de Napoleão Bonaparte. Os acon-
cobriu a que pôs nome Santa Cruz...” (Souza, tecimentos decorrentes envolveram a corte lusitana
1956:289). e no atropelo daqueles dias de apreensão foram reu-
O documento foi arquivado no Arquivo Real da nidos documentos e papéis importantes guardados
Torre do Tombo ainda na década de 1550, na ges- nos arquivos oficiais, que deveriam seguir

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com a corte para o Brasil, onde seria instalada a e de Mestre da Balança da Moeda da cidade do
sede do governo monárquico português. É provável Porto, de Tânger e outras localidades no além-mar.
que a cópia da Carta tenha vindo para o Brasil nes- O caráter hereditário possível em cargos públicos
se meio e tenha sido guardada no arquivo da Real portugueses na época permitiu que Pero Vaz her-
Marinha do Rio de Janeiro (Serrão, Prefácio à Car- dasse não só o cargo de Mestre da Balança da Mo-
ta de Pêro Vaz de Caminha, 2000:10). eda da Cidade do Porto, como também o título de
Aqui no Brasil foi citada pela primeira vez pelo Cavaleiro que foi exercido na casa do Rei D.
Padre Manoel Aires do Casal na sua Chorografia Manoel, ocasião em que foi nomeado para a feitoria
Brasílica publicada pela Imprensa Régia do Rio de de Calicute. Foi casado com Catarina Vaz de Ca-
Janeiro em 1817. Essa edição tantas vezes criticada minha e teve pelo menos uma filha que casou com
apresenta como peculiaridade a reprodução da lei- Jorge de Soiro, a quem o escrivão se refere no final
tura ideológica do seu comentarista que, além das de sua carta solicitando como mercê que fosse leva-
imprecisões paleográficas, alterou trechos inteiros do da Ilha de S. Tomé, onde provavelmente se en-
do seu conteúdo considerados por ele de “imorais”. contrava degredado. Caminha era um homem liga-
Em 1826, um ano após o reconhecimento oficial do aos números, ao registro de dados fiscais, mone-
da emancipação política do Brasil por Portugal, a tários e financeiros, o que se conclui tanto dos car-
Academia de Ciências de Lisboa publicou a segun- gos exercidos quanto da nomeação com a qual fora
da edição/cópia portuguesa da Carta, seguindo-se agraciado. Por isso continuou sua viagem a bordo
daí em diante diversas edições tanto lusitanas quan- da frota portuguesa em direção a Calicute, enfren-
to brasileiras. tando os embates que marcaram o avanço de Cabral
No estudo aqui apresentado serão utilizadas duas na subida do Índico. Teria sido o último desses con-
versões. A primeira, transcrição em linguagem qui- frontos entre portugueses e mouros, caracterizados
nhentista organizada por Maria Beatriz Nizza da por extrema violência. Jaime Cortesão registra sua
Silva e publicada pela Editora AGIR em 1965; a morte em 16 de dezembro de 1500, durante o assal-
segunda, em grafia atualizada, publicada em 1956 to dos mouros à feitoria portuguesa.
por T. O. Marcondes de Souza. O destaque dado a esse documento na
As informações sobre seu autor têm sido bas- historiografia colonial brasileira decorreria pelo
tante divulgadas neste ano comemorativo do quinto menos de dois fatores. Em primeiro lugar, por ter
centenário da chegada dos portugueses às terras do sido um dos poucos relatos desse episódio que so-
Brasil. Sua presença na nau-capitânea, ao lado do breviveram e foram bem recuperados pelos funcio-
comandante da armada, confere-lhe provavelmente nários do reino. A leitura das primeiras linhas do
uma importância decorrente do papel que assumi- texto não deixa dúvidas quanto à existência de ou-
ria nos futuros domínios portugueses no Oriente. tros comunicados, outros relatórios feitos pelos ca-
Pero Vaz de Caminha fora nomeado escrivão da pitães dos outros navios quanto ao mesmo fato:
futura feitoria que seria organizada em Calicute, “Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e as-
costa malabar da Índia, para onde se dirigia a frota sim os outros capitães escreveram a Vossa Alteza
de Cabral cumprindo a programação estabelecida a nova do achamento desta vossa terra nova...”.
pela Coroa portuguesa quanto à conquista do mer- Desses relatos também sobreviveram dois ou-
cado oriental. tros documentos conhecidos na historiografia como
Caminha fazia parte daquela categoria social que a “Carta do Mestre João”, médico particular de D.
em Portugal no século XV dedicava-se a atividades Manoel I, “...físico e cirurgião de vossa alteza...”,
comerciais, cujos membros eram recrutados para o datada de 1º de maio de 1500 e escrita provavel-
exercício de pontos-chave da administração fiscal mente ainda no litoral da terra descoberta, e a “Re-
pública e recebiam título de nobreza como recom- lação do Piloto Anônimo”, cujo original se perdeu
pensa aos bons serviços prestados ao Estado. Seu sobrevivendo dela uma versão publicada em 1507
pai, Vasco Fernandes Caminha, desempenhava o em Veneza, como parte integrante de uma coletânea
cargo de Recebedor-Mor de Entre-Douro e Minho de descrições de viagens e de descobrimentos

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intitulada “Poesia nuovamente ritrovati et Novo à aparência, ao ânimo e às ações dos habitantes
Mondo de Alberico Vesputio Florentino intitulato”, da terra; interpretação pessoal quanto ao ambi-
organizada por Fracanzano Montalboddo. É pro- ente, à natureza circundante e às possibilidades
vável que o relatório (relação) tenha sido obtido por de seu aproveitamento pela Coroa Portuguesa;
Giovanni Matteo Cretico, agente da República de possibilidades futuras de expansão da fé cristã
Veneza junto à Corte de Lisboa, ou mesmo escrito entre as inocentes criaturas que habitavam aquele
por ele a partir de outros documentos portugueses. verdadeiro paraíso terrestre “...porque certo esta
Marcondes de Souza (1956:147) assinala a impor- gente é boa e de boa simplicidade, e imprimir-
tância dos detalhes contidos no texto descrevendo a se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes
viagem de Cabral a Calicute e fazendo referências quiserem dar; e logo que Nosso Senhor lhes deu
concretas à chegada da frota a uma nova terra. bons corpos e bons rostos, como a bons homens,
Em segundo lugar pelo caráter minucioso já res- e Ele, que nos por aqui trouxe, creio que não
saltado anteriormente, capaz de reproduzir o dia-a- foi sem causa.” (Souza, 1956:283). Expressões
dia da viagem e da permanência dos portugueses na incontidas de encantamento e entusiasmo face
“terra brasilis”. às mulheres locais, comparando-as inclusive com
A análise do conteúdo desse texto revela, do as européias, num jogo de palavras revelador do
ponto de vista temático, a predominância dos se- seu estado de ânimo: “...era tão bem feita e tão
guintes assuntos: redonda a sua vergonha, que ela não tinha, tão
♦ Descrição da rota percorrida desde a saída graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra
do porto do Tejo em 09 de março (Torre de vendo-lhe tais feições fizera vergonha, por não
Belém) até as Ilhas Canárias, depois as Ilhas de terem a sua como ela” (Souza, 1956:276).
Cabo Verde e, por “este mar de longo”, até a ♦ Descrição das duas missas, da contrita parti-
vista dos sinais de terra próxima em 22 de abril. cipação dos integrantes da armada e da coope-
♦ Descrição da primeira visão da terra a 22 de ração/participação dos homens da terra:
abril (Monte Pascal), da primeira designação da “Chantada a cruz, com as armas e divisa de
terra (Terra de Vera Cruz), da busca de um por- Vossa Alteza, que lhe primeiro pregaram, ar-
to que permitisse a ancoragem segura em vista maram ao pé dela e ali disse missa o padre Frei
da forte ocorrência de chuva e ventos; o encon- Henrique, a qual foi cantada e oficiada por es-
tro de um porto “...muito bom e muito seguro; ses ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de
com uma mui larga entrada”. cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos
♦ Descrição dos habitantes da terra: aparência de joelhos, assim como nós...” (Souza, p.284).
física, formas de aproximação/recepção, tenta- ♦ Referência aos degredados e à tentativa de
tivas de comunicação. “A feição deles é serem integrá-los aos habitantes da terra: “...e o Capi-
pardos, maneira de avermelhados, de bons ros- tão mandou dois degredados e a Diogo Dias
tos e bons narizes, bem feitos, andam nus, sem que fossem lá a aldeia e a outras (...) e que em
nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma toda maneira não se viessem a dormir às
cousa cobrir...” (Souza, p.274); “...mostraram- naus(...) volveram-se já de noite por eles não
lhes um carneiro, não fizeram menção; mos- quererem que lá dormissem e trouxeram papa-
traram-lhes uma galinha, quase haviam medo gaios verdes e outras aves pretas (...)” (Souza,
dela, e não queriam por a mão (...) deram-lhes p.282).
ali de comer pão e pescado cozido, confeitos, ♦ As habitações daqueles homens e sua apa-
fartéis, mel e figos passados; não quiseram co- rência: “...foram bem uma légua e meia a uma
mer daquilo quase nada...”(Idem, 274); povoação de casas, em que haveria nove ou dez
♦ Relato das idas e vindas dos navegantes dos casas as quais diziam, que eram tão compri-
barcos à terra e das experiências vividas na apro- das, cada uma, como esta nau capitânea, e eram
ximação com os habitantes locais. de madeiras e as ilhargas de táboas, e cobertas
♦ Expressões pessoais de interpretação quanto de palha de razoada altura; e todos em uma só

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casa, sem nenhum repartimento (Souza, p.281). ciência de distância quanto à de proximidade e to-
♦ A formosura da terra e as boas perspectivas das as oscilações possíveis entre esses dois extre-
de aproveitamento: “Nela até agora não pode- mos.
mos saber se haja ouro nem prata, nem nenhu- Ao historiador não é permitido desconhecer a
ma cousa de metal (...); porém as terra em si é diferença entre os contextos, as situações, nem o
de muitos bons ares (...) as águas são muitas, tempo em que os fatos ocorrem. Por isso mesmo
infindas; em tal maneira é graciosa que, que- não está em julgamento a atitude tomada por Pero
rendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem Vaz de Caminha, mas estão em análise os fatores
das águas, que tem; porém o melhor fruto que que explicam sua atitude de estranhamento diante
nela se pode fazer, me parece, que será salvar do outro/diferente e sua concepção de que o me-
esta gente e esta deve ser a principal semente lhor que se faria a esse outro seria transformá-lo
que Vossa Alteza em ela deve lançar;” (p.286). num igual ao português, pelo menos no que se refe-
♦ A primeira designação da região: “Deste re à sua religião.
porto seguro da vossa ilha de Vera Cruz, hoje No caso específico de Pero Vaz de Caminha a
Sexta feira, primeiro dia de maio de 1500.” consciência da diferença foi capturada imediatamen-
(p.286). te pela ideologia religiosa cultivada pelo Estado
Não sendo a intenção deste trabalho comentar absolutista português, a serviço do qual o missivista
todos os temas abordados no seu conteúdo, procu- se encontrava. Ao perceber aquela terra tão formo-
ramos nos deter na análise de alguns aspectos desse sa e seus habitantes tão inocentes, o autor logo con-
relato sob a ótica da alteridade. Nesse sentido to- clui que “...imprimir-se-á ligeiramente neles qual-
mamos o estudo desenvolvido por Denise Jodelet quer cunho, que lhes quiserem dar...” o que signi-
(1998) no qual desenvolve, entre outros, o conceito fica, em outras palavras, massas maleáveis prontas
de “alteridade de fora” “...referente ao ‘longínquo’ para serem esculpidas a partir dos princípios religi-
e ‘exótico’, definidos em relação a uma cultura osos e morais do povo que chegava.
dada – seja ela nacional, científica ou grupal...”( Freqüentemente o estranhamento e a negação do
1998:48). Alteridade remete à visão do outro que é outro podem estar dissimulados ou mesmo elabora-
distinto do eu, distinção essa tanto mais complexa dos inconscientemente sob uma aparência de admi-
quanto quando envolve uma aproximação intencio- ração. O autor reconhece o lado positivo do habi-
nal ou casual entre culturas. Nas palavras de Jodelet tante da terra: “bons narizes e bons rostos... cor-
(1998: 49): pos rijos e nédios... inocência dessa gente é tal
“Nela, o pensamento do mesmo e do outro que a de Adão não seria mais quanto em vergo-
estaria historicamente fundado sobre a evidên- nha...”. Mas apesar disso e paralelamente a esse
cia de uma pluralidade espacial, cultural e tem- reconhecimento sua percepção do outro é limitada
poral: o outro se define em vista da ‘identidade ideologicamente pela necessidade de transformá-lo,
de um observador ocidental arquetipico’, seja anular a diferença, superar a sensação incômoda
por sua localização num alhures geográfico e provocada por sua presença e pela necessidade de
num certo afastamento cultural, seja pela reorganizar o universo e as certezas desequilibra-
exterioridade de seu posicionamento na traje- das pelo contato com a diferença.
tória duma evolução histórica cujas etapas de- No século XV os navegadores, comerciantes e
veriam conduzir a uma identidade de civiliza- portugueses em geral travaram relações mais apro-
ção”. ximadas com povos negroafricanos, escravizados
A consciência da diferença que se estabelece no bojo do processo da expansão comercial mer-
nessa relação não leva necessariamente à alteridade cantil. Boa parte desses escravos foram levados a
– que seria exatamente a aceitação do outro naqui- Portugal onde eram utilizados em trabalhos portuá-
lo que ele tem de diferente, sem o recurso à exclu- rios, urbanos e domésticos. O contato do português
são, à intransigência nem à intolerância. A ambi- com o outro negroafricano se estabelecia assim já
güidade contida nessa relação remete tanto à cons- inserido num esquema de dominação

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preestabelecido, no qual o escravo negro não era visão edênica que só a experiência amarga da colo-
pensado como “o outro” mas como “a coisa”. nização se encarregaria de mitigar.
O questionamento à legitimidade do ato de es- Quanto a esse aspecto Caminha nada mais fazia
cravizar foi devidamente justificado pela própria que reproduzir, aplicando-o à terra desconhecida, o
Igreja ainda no século XV, quando reconheceu, lou- mito europeu do paraíso terreal “localizado” em
vou e recompensou a Coroa Lusitana por seus es- diferentes ocasiões pelas lendas européias, clássi-
forços no sentido de conquistar os povos bárbaros e cas e judaico-cristãs em ilhas do mar Mediterrâneo
pagãos da África. Maurício Goulart (1975:19-20) ou mesmo além das Colunas de Hércules (estreito
destaca as bulas expedidas pelos Papas Eugênio IV, de Gibraltar). A expansão lusa do século XV no
Calixto III e Sixto IV que, reconhecendo “os escra- Atlântico fez deslocar o mito para regiões mais de-
vos e o ouro como os principais objetos do comér- finidas próximas às ilhas Canárias e Madeira. O
cio peninsular na costa africana”, reconheciam próprio Cristóvão Colombo não escapou da tenta-
implicitamente aquela legitimidade. Mais explícito ção de identificá-lo numa das ilhas do Caribe
ainda foi o Papa Nicolau V, que na bula Romanus alcançada na sua primeira viagem ao Novo Mun-
Pontifex (1454) enumerava “...entre os benefícios do, ao afirmar: “...creio que lá está o Paraíso Ter-
e títulos de glória de Portugal na África, o envio restre, onde ninguém pode chegar, salvo por von-
de negros apresados para os reinos. Muitos desses tade divina...” (Holanda, 1959:178).
negros trazidos a Portugal (...) haviam recebido o Embora em nenhum momento tenha utilizado a
batismo, sendo portanto de esperar, da continua- expressão “paraíso terreal”, Caminha encantou-se
ção do tráfico, a conversão de todos aqueles po- e descreveu-o, relacionando-o à inocência dos ho-
vos à fé cristã” (Goulart, 1975:20). mens e mulheres nus à qual “...a de Adão não seria
Outra era a situação do português face ao habi- mais, quanto em vergonha” (Souza, 1956:285).
tante das terras do Brasil. Despreparado para Era o outro desejado, o outro glorificado, com-
encontrá-lo e surpreendido mesmo pela sua presen- provando a veracidade dos textos sagrados e a se-
ça, o viajante precisou reorganizar seu universo e gurança quanto às certezas da religião de onde pro-
estabelecer critérios de classificação e identificação. vinham os símbolos e os códigos de orientação das
O outro não era um negro, nem um oriental, nem relações humanas. Inocentes vivendo no Paraíso!
um branco. Era diferente de tudo (ou de todos) que Para que o outro/habitante da terra se integrasse
já vira. Se diferente, era inimigo? A conduta dos perfeitamente à imagem só faltava a sua conversão
homens e mulheres que vagavam pela praia não o ao cristianismo. Estaria assim o universo do autor
autorizava a assim concluir. Seria amigo? Caminha reconstituído e reordenado, esmaecendo a sensação
a certa altura afirmou que “...dançaram e baila- de estranhamento. Retomando o estudo de Jodelet,
ram com os nossos, em maneira que são muito mais diríamos que o autor estaria satisfeito se os habi-
nossos amigos que nós seus;” (Souza, 1956:283). tantes da terra alcançassem as etapas que deveriam
Como estabelecer amizade com pagãos? O único conduzi-los à identidade com a civilização dos na-
caminho seria o da conversão ao cristianismo, o que vegadores.
resultaria na construção de um outro menos dife- A história se encarregaria de mostrar o quanto
rente, mais próximo do eu (Caminha). Daí as reco- Pêro Vaz esteve equivocado. A terra não era o pa-
mendações explicitas ao Rei D. Manoel no sentido raíso, seus habitantes não eram Adão, nem a
de promover a futura ocupação da terra e conver- cristianização contribuiu para salvar suas almas e
são dos pagãos como “...o melhor fruto que nela seus corpos da anomia, da dor e do extermínio. A
se pode fazer...” (Souza, 1956:286). semelhança do que acontecia com os africanos es-
A admiração e o louvor marcaram profundamen- cravizados, os interesses da expansão colonial mer-
te a relação do autor com outro desconhecido: a ter- cantil sobrepuseram-se às expressões de encanta-
ra alcançada, com suas árvores, frutos, águas, bi- mento do autor. O completo desaparecimento das
chos e aves. Pero Vaz não teve dificuldade em populações pré-cabralinas de grande parte do lito-
compará-la a um verdadeiro paraíso, construindo a ral das terras do Brasil em pouco mais de um sécu-

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lo comprova o quanto o documento datado de um tanciado de qualquer possibilidade de exercício da
“porto seguro” em 1º de maio de 1500 esteve dis- alteridade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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morações dos 500 Anos do Achamento do Brasil. Prefácio de Joaquim Veríssimo Serrão. Estudo de
Manuela Mendonça e Margarida Garcêz Ventura. Cortesia do Banco Bandeirantes. Ericeira, Ed. Mar das
Letras, Março 2000.
ALBUQUERQUE, Manoel Maurício de. Pequena História da Formação Social Brasileira. Rio de
Janeiro: Graal, 1981.
ARRUDA, Ângela (Org.). Representando a Alteridade. Petrópolis: Vozes, 1998.
GOULART, Maurício. A Escravidão Africana no Brasil. 3ª Ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e coloni-
zação do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.
JODELET, Denise. A alteridade como produto e processo psicossocial. In: Arruda, Ângela (Org.).
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PRADO, Almeida & SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Rio de
Janeiro: AGIR, 1965.
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SOUZA, T. O Marcondes de. O Descobrimento do Brasil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Michalany, 1956.
VIANA, Hélio. História do Brasil. 6ª Ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967.

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PERGUNTA DE HISTÓRIA :
QUEM DESCOBRIU O BRASIL ? 1

Marcos Terena 2

Pouco a pouco, vamos chegando aos 500 anos jovens kaiwá, a invasão da Funai pelos Xavante, o
do Brasil, época em que os portugueses, comanda- Kuarup dos Kamaiurá ou a impunidade em relação
dos por Pedro Álvares Cabral, descobriram um tipo ao assassinato de Galdino Pataxó.
de vida que jamais haviam experimentado e que, Dentro de uma pequena aldeia, já nos primeiros
certamente, trouxe algum transtorno, alguma difi- dias do choro de uma nova vida, o papel da mãe, da
culdade para um grupo de homens acostumados ao mulher indígena é sagrado, pois será ela a primeira
tipo de vida mais sórdido em suas terras, alguns pessoa a alimentar, a afagar e a conversar com a
deles fora-da-lei, indesejados, inclusive, em sua pá- nova pessoa, e isso até a mais tenra idade, quando
tria. Na verdade, os povos indígenas foram envol- então essa criança já saberá dar seus primeiros pas-
vidos em uma das mais sagazes formas de desres- sos, em alguns momentos independente, e em ou-
peito aos direitos humanos, como a atração, a sedu- tros com a ajuda de membros da família, passando
ção, a traição e a dominação. De repente, da noite pela adolescência, pela juventude, até se tornar um
para o dia, nossas terras passaram a ter novos do- homem ou uma mulher, capaz de transmitir os mes-
nos, e o que era nosso passou a ser dos colonizado- mos ensinamentos para outras crianças e seus fi-
res, em nome quem sabe dos altos interesses da na- lhos, numa cadeia que traduz o verdadeiro código
ção, ou da segurança nacional... de vida da família indígena. Tudo isso feito sem
Por isso, consideramos de suma importância a nenhuma preocupação de rendimento, de capacida-
iniciativa indígena e de qualquer outro setor da so- de, mas de aprendizado constante, onde os valores
ciedade de mais de 160 milhões de pessoas brasilei- de cada um surgirão, naturalmente, e serão respei-
ras, de buscar uma nova conscientização sobre os tados, como um dom do grande Criador; este, outro
valores nacionais, os interesses nacionais e a identi- fator de aprendizado, de respeito, pois a compreen-
dade nacional, sob a ótica de brancos, negros, índi- são é que de nada valerá o conhecimento sem os
os e de todos aqueles que para cá vieram construir valores da força espiritual, capaz de formar uma
uma nova Nação. É preciso repensar o Brasil. Nos- grande mulher ou um grande homem física, intelec-
sos antepassados sonhavam um País livre, com um tual e espiritualmente.
povo livre e que soubesse respeitar o outro, o dife- Nesse sentido, seguindo ainda os códigos de vida
rente, o meio ambiente, a terra e a paz. da família indígena, outras formas de educação vão
Poderíamos abordar esse tipo de questionamento sendo impregnadas como as cores, os artesanatos,
sob vários ângulos, mas é preciso aproveitar os no- as canções, os ritos e a capacidade de reagir e de
vos caminhos do futuro onde estão nossos filhos, as decidir, mesmo que seja uma fuga, uma caçada ou
novas gerações, que continuam muitas vezes à mer- um combate. São valores que a colonização do Brasil
cê da desinformação escolar, e que nos mostra a desrespeitou e desconsiderou como valores, mas que
necessidade de ir até eles com nossas verdadeiras certamente asseguraram, de alguma forma, para o
histórias e com a inserção de nossos valores cultu- nosso País o privilégio de poder ter ainda hoje, às
rais muitas vezes ignoradas, abandonadas ou sim- vésperas do próximo milênio, uma incomensurável
plesmente relembradas nos nomes de ruas, cidades, riqueza de biodiversidade, de terras, águas e um
pessoas, no dia do Índio, ou quando ocorre uma patrimônio ecológico ainda saudável, mesmo com
catástrofe ou alguma crise, como os suicídios de todo tipo de invasão cultural, territorial e econômi-

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co que foram impostos às nossas aldeias, sob o em qualquer situação atual ou futura, pois, apesar
manto do desenvolvimento e do progresso. de tudo, após quase cinco séculos, que alguns tei-
Desde os tempos de Pedro Álvares Cabral e Pero mam em comemorar, restaram 215 nações indíge-
Vaz de Caminha, e ainda nos dias atuais, o homem nas e um universo que muitos pedagogos, professo-
branco continua buscando decidir o melhor para nós, res e logicamente estudantes desconhecem, de 180
os índios. Naquele tempo, disseram que o melhor línguas faladas, e que ocupam apenas 11% do terri-
seria o caminho da “civilização” e da “catequese”, tório nacional. São povos distintos e que possuem
pois essa era a credencial para sermos aceitos no um sistema educacional, cultural, social e econômi-
novo mundo. Resultado: um extermínio de mais de co distintos, mas que caminham em direção ao fu-
cinco milhões de pessoas. Nesse contexto, que ain- turo, nos rastros dos antepassados. São povos que
da perdura, jamais alguém procurou saber nossa possuem uma ciência, uma riqueza natural e mine-
vontade de ser, de viver e de nos identificarmos sob ral, que incluem madeiras como o mogno ou mine-
alguma forma. Muitos erros ocorreram, inclusive rais como o ouro, o urânio e o nióbio, sem falar na
em nome da proteção, alijando-nos de quaisquer quantidade de fontes de água doce ou da
novos conhecimentos que nos levassem como éra- biodiversidade, tão cobiçada pelos estrangeiros que
mos, como somos, a um aprendizado para os novos nada mais têm, a não ser suas loucas máquinas de
códigos de vida, de sobrevivência, chegando ao ab- fabricar seres com vidas, e uma inteligência que
surdo de, não raras vezes, por sabermos usar rou- fabrica possantes e meticulosas armas de guerra,
pas, sabermos falar, ler ou escrever, sermos acusa- segundo dizem, em nome da paz. Homem branco
dos de que estávamos deixando de ser índios. Mes- criou uma civilização que não deu certo.
mo assim, temos orgulho de ser índios e de sermos Finalmente, ao analisarmos as nossas realida-
parte do Brasil. Por isso, quando olhamos o mundo des, afirmamos que compete ao Governo Federal a
que nos cerca e verificamos a quantidade de crian- execução da política indigenista, quer seja no cam-
ças, mulheres e velhos, ou até uma sociedade intei- po da saúde, da educação, da capacitação ou do
ra amordaçada pelo mesmo tipo de programa desenvolvimento como o uso e usufruto do potenci-
educativo, que coloca o nosso país como Terceiro al de cada território indígena, e disso ele não pode
Mundo, nós, como índios, não podemos aceitar a fugir, sob qualquer pretexto tecnocrata ou
tudo isso calados, pois a nossa identidade brasileira economicista. Afinal, são 500 anos de Brasil, e pelo
está sendo quebrada, sem percebermos, acreditan- menos 215 formas de sobrevivência indígena, bus-
do, muitas vezes, que estamos errados e que os co- cando assegurar, de um lado, que a verdadeira his-
lonizadores desses tempos é que estão certos. tória seja ensinada à sociedade nacional, não so-
O processo educativo de nosso país passa a ter mente pelo processo educacional tradicional, como
importância para a liberdade do nosso povo, a li- através do sistema de rádios e televisões, com um
berdade da vergonha, a liberdade da palavra, do programa educativo e de esclarecimento que leve a
ensinamento de acordo com nossos códigos cultu- própria voz indígena a contar suas verdades, bus-
rais, regionais, sem deixar de lado nossas identida- cando separar o simplismo folclórico, tão comum
des, nossas qualidades e nossa vocação, que nos na linguagem de novelas, como fazem em relação
coloque em condições de igualdade e de respeito, ao negro e ao nordestino. O povo brasileiro precisa
num mundo globalizado, este uma nova forma de ser reeducado sobre sua realidade, seu país e sua
colonização e dominação, especialmente no modelo gente, como a Amazônia, o pantanal ou as lindas
econômico. praias que fazem parte do nosso patrimônio, pois,
O Brasil, cujas terras estão alimentadas pelos se em algum tempo do passado, houve uma resis-
corpos de nossos antepassados, deve lembrar-se dis- tência à colonização francesa, espanhola, portuguesa
so sempre e nós, como índios, sempre estaremos e holandesa, certamente ela foi feita por nossos an-
citando, não como forma de provocação, de ódio ou cestrais indígenas, que lutaram contra a mesma co-
de vingança, mas de respeito, de resgate ou, no mí- lonização que ainda hoje empobrece nossos povos e
nimo, de lembrança, para que isso jamais se repita coloca em risco o fortalecimento da nossa identida-

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de, no contexto das demandas e crises nacionais e am todas as condições econômicas e tecnológicas
internacionais. para serem grandes cidadãos, não tiveram a opor-
Um dia, um grande chefe descia pelo elevador tunidade de aprender a respeitar, ou de conhecer as
do Senado Federal em Brasília, quando, em algum condições de vida do diferente, reflexo de um siste-
dos 24 andares do prédio, entrou um pai com seu ma educacional falho em casa, na escola, que sabe
filho, que, como toda criança, não parava um só cobrar boas notas e se esquece dos valores huma-
minuto. De repente, não sabemos o porquê, aquele nos. Quem sabe fortes, intelectual e fisicamente, mas
pai teve uma “brilhante” idéia: “...meu filho, se você fracos na sabedoria cultural e na força espiritual,
não parar, vou mandar esse índio te pegar....”. O muito diferente da formação das crianças e jovens
filho, assustado, olhou para o chefe que nada enten- de nossas aldeias.
dia do que se passava, e aquietou-se abraçado às Por isso, nosso desafio, nas comemorações dos
pernas do pai, que, sorridente, sentiu-se vitorioso. 500 anos de Brasil, é, no mínimo, estabelecer uma
Qual seria, a partir daquele dia, a idéia de ser índio nova aliança, ou de reatar velhas alianças de sobre-
daquela criança? vivência e de resistência com os povos do Brasil,
Nós, como índios do Brasil, possuidores de um com o homem branco, o homem negro, a fim de que
código de identidade cultural e lingüístico próprio, saibamos responder, com sabedoria, com orgulho e
não podemos mais caminhar sozinhos, pois há um dignidade, a famosa pergunta das provas de Histó-
mundo ao nosso redor, com uma velocidade impres- ria:
sionante, competitivo e modernizado por suas frias Quem descobriu o Brasil ???
máquinas. Mas sabemos, também, se aqueles cinco
jovens que mataram Galdino, em Brasília, possuí-

NOTAS

1
Este texto foi escrito para a Iª Conferência Estadu- e idealizador da Conferência Mundial dos Povos Indí-
al de Educação, sediada em Salvador, em outubro de genas durante a ECO/92, e faz parte da Comissão Bra-
1998. sil Indígena – 500 anos. É colaborador do Programa
2
Marcos Terena, Coordenador Geral dos Direitos Descolonização e Educação do Departamento de Edu-
Indígenas, é Piloto de Aeronaves da FUNAI, foi cação I / UNEB, e membro colaborador do Programa
organizador e fundador da União das Nações Indígenas Descolonização e Educação - PRODESE.

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29
DOCUMENTO FINAL DA CONFERÊNCIA DOS
POVOS E ORGANIZAÇÕES
INDÍGENAS DO BRASIL

Chegamos na aldeia Pataxó de Coroa Vermelha, Nossas principais


município de Santa Cruz Cabrália, Bahia, no dia exigências e propostas
17 de abril. Cumprimos o compromisso de refazer
os caminhos da grande invasão sobre nossos terri- São as seguintes as principais exigências e pro-
tórios, que perdura já 500 anos. postas dos povos indígenas para o Estado brasilei-
Somos mais de 3.000 representantes, de 140 ro, destacadas por esta Conferência:
povos indígenas de todo o país. Percorremos terras 1) cumprimento dos direitos dos povos indígenas
e caminhos dos rios, das montanhas, dos vales e garantidos na Constituição Federal:
planícies antes habitados por nossos antepassados. a) Até o final do ano 2000 exigimos a demarcação
Olhamos com emoção as regiões onde os povos in- e regularização de todas as terras indígenas;
dígenas dominavam e construíam o futuro, ao lon- b) Revogação do Decreto 1.775/96;
go de 40 mil anos. Olhamos com emoção as regiões c) Garantia e proteção das terras indígenas;
onde os povos indígenas tombaram defendendo a d) Devolução dos territórios reivindicados pelos
terra cortada por bandeirantes, por aventureiros, por diversos povos indígenas do Brasil inteiro;
garimpeiros e, mais tarde, por estradas, por fazen- e) Ampliação dos limites das áreas insuficientes
das, por empresários com sede de terra, de lucro e para a vida e o crescimento das famílias indíge-
de poder. nas;
Refizemos este caminho de luta e de dor, para f) Desintrusão (retirada dos invasores) de todas
retomar a história em nossas próprias mãos e apon- as terras demarcadas, indenização e recupera-
tar, novamente, um futuro digno para todos os po- ção das áreas e dos rios degradados, como por
vos indígenas. exemplo o Rio São Francisco;
Aqui, nesta Conferência, analisamos a socieda- g) Reconhecimento dos povos ressurgidos e seus
de brasileira nestes 500 anos de história de sua cons- territórios;
trução sobre os nossos territórios. Confirmamos, h) Proteção contra a invasão dos territórios dos
mais do que nunca, que esta sociedade, fundada na povos isolados;
invasão e no extermínio dos povos que aqui viviam, i) Desconstituição dos municípios instalados ile-
foi construída na escravidão e na exploração dos galmente em área indígena;
negros e dos setores populares. É uma história infa- j) Respeito ao direito de usufruto exclusivo dos
me, é uma história indigna. recursos naturais contidos nas áreas indígenas,
Dignidade tiveram, sempre, os perseguidos e os com atenção especial à biopirataria;
explorados, ao longo destes cinco séculos. Revol- k) Paralisação da construção de hidrelétricas,
tas, insurreições, movimentos políticos e sociais hidrovias, ferrovias, rodovias, gasodutos em
marcaram também nossa história, estabelecendo andamento e indenização pelos danos causados
uma linha contínua de resistência. Por isso, volta- pelos projetos já realizados;
mos a recuperar essa marca do passado para projetá- l) Apoio à auto-sustentação, com recursos finan-
la em direção ao futuro, nos unindo aos movimen- ceiros destinados a projetos agrícolas, entre
tos negro e popular e construindo uma aliança mai- outros, para as comunidades indígenas.
or: a Resistência Indígena, Negra e Popular. 2) a imediata aprovação da Convenção 169 da

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Organização Internacional do Trabalho (OIT); atenção à saúde dos povos indígena, seja apli-
3) aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas que cada;
tramita no Congresso Nacional conforme apro- 15) fortalecer e ampliar a participação ativa das
vado pelos povos e organizações indígenas (PL comunidades e lideranças nas instâncias
2.057/91); decisórias das políticas públicas para os povos
4) fim de todas as formas de discriminação, ex- indígenas, em especial, que os Distritos Sanitá-
pulsão, massacres, ameaças às lideranças, vio- rios Especiais Indígenas tenham autonomia nas
lências e impunidade. Apuração imediata de deliberações;
todos os crimes cometidos contra os povos in- 16) o atendimento de saúde deve considerar e res-
dígenas nos últimos 20 anos e punição dos res- peitar a cultura do povo. A medicina tradicio-
ponsáveis. Exigimos o respeito às nossas cul- nal deve ser valorizada e fortalecida;
turas, tradições, línguas, religiões dos diferen- 17) formação específica e de qualidade para pro-
tes povos indígenas do Brasil; fessores, agentes de saúde e demais profissio-
5) a punição dos responsáveis pela esterilização nais indígenas que atuam junto às comunida-
criminosa das mulheres indígenas a critério da des;
comunidade; 18) que seja elaborada uma política específica para
6) que a verdadeira história deste país seja reco- cada grande região do país, com a participação
nhecida e ensinada nas escolas, levando em con- ampla dos povos indígenas e de todos os seg-
ta os milhares de anos de existência das popu- mentos da sociedade, a partir dos conhecimen-
lações indígenas nesta terra; tos e projetos de vida existentes;
7) reestruturação do órgão indigenista, seu forta- 19) fortalecer o impedimento da entrada (e retira-
lecimento e sua vinculação à Presidência da da) das polícias Militar e Civil de dentro das
República, através de uma Secretaria de As- áreas indígenas sem autorização das lideranças;
suntos Indígenas, consultando-se as organiza- 20) exigimos a extinção dos processos judiciais con-
ções de base quanto a escolha dos secretários; trários a demarcação das terras tradicionais
8) que o presidente da Funai seja eleito pelos po- ocupadas pelos povos indígenas.
vos indígenas com indicação das diferentes re-
Nós, povos indígenas do Brasil, percorremos já
giões do Brasil;
um longo caminho de reconstrução dos nossos ter-
9) a educação tem que estar a serviço das lutas
ritórios e das nossas comunidades. Com essa histó-
indígenas e do fortalecimento das nossas cultu-
ria firmemente agarrada por nossas mãos coletivas,
ras;
temos a certeza de que rompemos com o triste pas-
10) que seja garantido o acesso dos estudantes in-
sado e nos lançamos com confiança em direção ao
dígenas nas universidades federais sem o vesti-
futuro.
bular;
Apesar do peso da velha história, inscrita nas
11) reforma, ampliação e construção das escolas
classes dominantes deste país, na sua cultura, nas
indígenas e oferta de ensino em todos os níveis,
suas práticas políticas e econômicas e nas suas ins-
garantido-se o magistério indígena e educação
tituições de Estado, já lançamos o nosso grito de
de segundo grau profissionalizante;
guerra e fundamos o início de uma nova história, a
12) fiscalização da aplicação das verbas destina-
grande história dos “Outros 500”.
das às escolas indígenas, criando um Conselho
A nossa luta indígena é uma homenagem aos
Indígena;
inúmeros heróis que tombaram guerreando ao lon-
13) a educação escolar indígena e o atendimento à
go de cinco séculos. A nossa luta é para nossos fi-
saúde deve ser de responsabilidade federal. Re-
lhos e netos, povos livres numa terra livre.
jeitamos as tentativas de estadualização e
municipalização;
14) a Lei Arouca, que institui um subsistema de CoroaVermelha, Bahia, 21 de abril de 2000.

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A CONSTRUÇÃO DO BRASIL
E AS RAÍZES DAS RELAÇÕES INTERÉTNICAS

Yara Dulce Bandeira de Ataíde


Professora da Universidade do Estado da Bahia

Resumo uma estrutura de convenções, esquemas e este-


reótipos, um entrelaçamento que varia de uma
Neste artigo são discutidas as relações cultura para outra”
interétnicas ocorridas no Recôncavo e em Salvador Em conseqüência desta relativização, o conhe-
no século XVI. São avaliadas as relações de pro- cimento precisa ser permanentemente atualizado,
dução e o papel social dos grupos indígenas e afri- porque cada geração reescreve a história a partir
canos nessa cultura de contato. Faz-se uma relação dos seus referenciais.
entre as contribuições sócio-culturais dos grupos
envolvidos nesse processo, tanto no passado como
Os primeiros contatos entre
no presente. Discute-se, também, o primeiro mo-
portugueses e ameríndios
mento de aproximação de culturas tão diversas e
geograficamente tão distantes, em convergência in-
Para o entendimento dessa fase, faz-se necessá-
tencional devido aos interesses mercantilistas euro-
rio um reexame dos diversos aspectos das relações
peus.
interétnicas e das relações de produção na Bahia,
PALAVRAS CHAVES: 1 – Relações interétnicas; no século XVI, através de uma história antropoló-
2 – Ameríndios; 3 – Grupos africanos; 4 – Sistema gica, visto que a historiografia tradicional trata o
escravocrata-mercantil; 5 – Etnocentrismo.
assunto de forma parcial e preconceituosa. A di-
fundida ideologia da supremacia da raça branca e o
Introdução desconhecimento dos grupos étnicos nativos e afri-
canos, bem como dos seus sistemas societários, eco-
Pretendemos, neste artigo, analisar algumas nômicos e culturais, direcionam as informações para
questões que, na origem da colonização brasileira, uma linha de conhecimento segundo o qual tudo é
caracterizaram seu processo histórico, marcado pelo explicado a partir de valores eurocêntricos deixan-
mercantilismo, expansão do catolicismo e do de enfocar toda a riqueza da diversidade cultural
etnocentrismo exacerbado que justifica todo tipo de não européia..
exploração e dominação dos demais grupos étni- Como afirma Varnhagen (Varnhagen, 1976:
cos. 53):
Neste momento em que se propõe uma análise “Foi a experiência, não o arbítrio nem a tira-
crítica sobre os quinhentos anos de história do Bra- nia, que ensinou o verdadeiro modo de levar os
sil, é imprescindível a reavaliação desse processo bárbaros, impondo-lhes à força a necessária
porque, como afirma Burke (Burke 1992:15): tutela para aceitarem o cristianismo e adota-
“Nossas mentes não refletem diretamente a rem hábitos civilizados...”
realidade. Só percebemos o mundo através de Alguns historiadores consideravam perfeita-

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 33-43, jan./junho, 2000 33


mente justificável – e mesmo um verdadeiro benefí- po seus estudos ganharam a relevância merecida,
cio – o processo de destruição do ethos tribal e a como afirma Yeda Pessoa de Castro (Castro, s/d):
imposição da cultura européia a esses grupos. A “Como, porém, chegar às origens de aproxi-
transfiguração étnica ou a simples desintegração dos madamente 12 milhões de africanos de várias
grupos indígenas e seu atrelamento marginal ao sis- procedências étnicas que foram introduzidas no
tema sócio-cultural europeu era visto como desejá- Brasil durante mais de três séculos se faltam os
vel, já que todo seu sistema era apontado como in- documentos oficiais relativos ao tráfico, quei-
ferior e bárbaro e a cultura européia considerada mados para obedecer à circular governamen-
como protótipo do patrimônio sócio-cultural ideal. tal de 13 de maio de 1891, e a documentação
Outra visão do assunto, igualmente irreal e existente, como os raros testemunhos que fica-
distorcida, é a indianista ou, modernamente cha- ram da época quanto à maneira como vivia a
mada, por Roberto DaMatta (DaMatta, 1999:34), massa escrava, não levam em consideração a
a ingenuidade citadina. Ela circula entre intelectu- variedade étnica do negro. Restam as evidenci-
ais e pessoas dos grandes centros, que, por não con- as lingüísticas para suprir a deficiência da in-
viverem com os indígenas e desconhecerem sua re- formação histórica.”
alidade, possuem deles uma imagem ideal e român- É, portanto, um grande campo de estudos ainda
tica, imaginando-os puros e frágeis como crianças por explorar, a explicação a respeito do papel dos
indefesas. grupos étnicos na étno-história e história do
Só modernamente a antropologia e a etno-logia Recôncavo, no século XVI.
procuraram compreender os sistemas étnicos como Tentando fugir da visão eurocêntica, usaremos
unidades autônomas e com valores e características alguns conceitos utilizados na teoria da fricção
próprias, explicando a situação de con- tato interétnica, desenvolvida por Roberto Cardoso de
como o momento a partir do qual a articula-ção in- Oliveira (1996:55).
tegra os diversos grupos num sistema interétnico De acordo com sua proposta, os grupos são ana-
global. Esses estudiosos, porém, dedicam-se com lisados segundo seus níveis sociais, econômicos e
mais ênfase à época atual, deixando aberta uma la- políticos. Em seguida, é abordada a articulação dos
cuna quanto às relações interétnicas do século XVI. diversos grupos em relação à cultura de contato.
Nesta linha, Florestan Fernandes foi um dos pri- Isto é feito através da avaliação do potencial de
meiros a voltar suas atenções para o período inicial integração dos grupos no sistema interétnico resul-
da colonização e estudar o nativo em interação com tante, como no nosso caso, no qual a etnia branca
o português. dominadora dirige o sentido das relações
“O estudo da evolução da situação põe em evi- interétnicas, impõe seu modo de produção e define
dência as condições dentro das quais o sistema a natureza das relações sociais de produção.
organizatório da tribo podia reagir construti- A compreensão da situação étno-histórica da
vamente à presença dos brancos. Enquanto es- época está intimamente relacionada ao conhecimento
tes eram em pequeno número e podiam ser in- das relações interétnicas que se estabeleceram entre
corporados à vida social aborígene ou se aco- brancos, índios e negros. Está também vinculada à
modavam às exigências dela, nada afetou a formação de uma cultura de contato e ao caráter
unidade e autonomia do sistema social tribal. das relações de produção, que se estabeleceram e se
Os brancos viviam nos grupos locais literal- transformaram, sucessivamente, nos diversos mo-
mente sujeitos à vontade do nativo, ou se agru- mentos do contato, desde o período inicial, entre
pavam nas feitorias dependendo tanto sua ali- 1500 e 1532, num sistema pré-capitalista de
mentação quanto segurança do que decidiam escambo e na transição e no estabelecimento poste-
fazer os aliados indígenas” (Fernandes, rior do sistema escravocrata-mercantil. O estudo
1975:47). deste período inicial é de grande importância por-
Outro aspecto também pouco esclarecido, até há que nos revela a formação da sociedade brasileira e
pouco tempo era o referido às origens étnicas dos as influencias por ela sofridas em decorrência da
negros vindos como escravos. Só há bem pouco tem- fricção entre grupos que se articulam e se integram

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para formar o modo de produção escravocrata-mer- conturbado de contatos interétnicos assimétricos e
cantil. extremamente conflituosos. As conseqüências
Em 1500, quando os portugueses aqui chega- provocadas nos grupos submetidos foi a compulsão
ram, logo iniciaram suas relações com as etnias biótica, a destribalização, a destruição do ethos
nativas. Mas, devido às diferenças culturais e ao tribal e o fomento das guerras intertribais que re-
estagio de desenvolvimento das forças produtivas sultaram na depopulação nativa. A solução alter-
portuguesas, as alternativas econômicas não eram nativa surgida foi a importação da mão-de-obra afri-
muitas. cana para o trabalho escravo.
Nesse período inicial de exploração da terra, o À contribuição sócio-cultural indígena veio so-
extrativismo vegetal foi viabilizado através da uti- mar-se a contribuição africana que, juntas, foram
lização da mão-de-obra indígena. As relações entre fundamentais para o estabelecimento e sobrevivên-
portugueses e índios eram pacíficas e o escambo cia da colonização portuguesa no Recôncavo.
era a forma dominante de comercio. A dominação As relações interétnicas entre senhores brancos
econômica do colonizador sobre os nativos come- e escravos indígenas e negros ganharam nova di-
çou quando, através do aliciamento, os nativos fo- mensão com a maior densidade populacional da clas-
ram transformados em consumidores de bens ma- se oprimida e suas diversidades culturais.
nufaturados que eles não tinham condição de pro-
duzir.
Recôncavo: espaço e tempo no
Até 1532, quando se instituiu o sistema de capi-
encontro de três mundos
tanias hereditárias, o convívio entre conquistadores
e índios era pacífico e, na medida do possível, seu
A região do Recôncavo baiano foi palmilhada
regime comunal de propriedade era respeitado.
por grupos aborígenes, da nação Tupi-Guarani, que
A mão-de-obra indígena não escrava era usada
se alternavam periodicamente na tentativa de domi-
para corte, preparo e transporte de pau-brasil, abas-
nação desta área.
tecimento das frotas, trabalho nas roças que se for-
Cita Gabriel Soares de Souza, em seu Tratado
mavam em torno das feitorias, carregamento de ma-
descritivo do Brasil, que os Tapuias eram:
deira para a marinha real, construção de casas e
“... o mais antigo gentio que vive n’esta costa,
igrejas e outros trabalhos braçais.
do qual ella foi toda senhoreada desde a boca
A partir da distribuição das donatárias até a cri-
do rio da Prata até a do rio Amazonas, como se
ação do Governo Geral, em 1549, a empresa de ex-
vê que está hoje povoado e senhoreado
ploração extrativa cedeu lugar à ocupação e cultivo
d’elles...”
da terra, criando novas fontes de riquezas. Iniciou-
“... há outra nação que se chama Aenaguig;
se, assim, a fase de transição do sistema de escambo
estes forão moradores das terras dos
para o sistema agrário-exportador, que se refletiu
Tupiniquins e porque os Tupiniquins ficarão
significativamente nas relações interétnicas.
senhores das terras, se chamão Tupiniquins...
Disciplinado o regime de propriedade e estabe-
lecido um poder central, através do Governo Geral, outros que chamão Quirigmã; estes foram se-
definiram-se as relações sociais de produção que nhores das terras da Bahia e por isso se chama
caracterizavam o modo de produção como a Bahia: Quigrigmure. Os tupinambás os bota-
escravocrata-mercantil. rão de suas terras e ficarão senhores dellas, e
A intensificação das atividades agrícolas gerou os Tapuias forão para o sul.”
choques de interesses entre os grupos conflitantes; “...Os primeiros povoadores que viveram na
os indígenas passaram a exigir melhores recompen- Bahia de Todos os Santos e sua comarca, se-
sas pelo seu trabalho, e o colonizador resolveu usar gundo as informações que se tem tomado dos
a força e a influência do seu poder para obter a índios muito antigos, foram os Tapuias...” (Sou-
mão-de-obra necessária. za, 1971:55)
Neste segundo momento, o português passou a Possivelmente recentes, as migrações litorâneas
ver o indígena como escravo. Iniciou-se um período dos Tupi-Guarani devem ter partido do Amazonas

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 33-43, jan./junho, 2000 35


e do Maranhão para o sul, sendo que os Tapuias As sociedades tradicionais africanas buscavam, tam-
dominavam a extensa costa até o Rio da Prata. Por bém, a todo custo, conservar sua identificação e
volta do século XV, provavelmente, os grupos Tupi- reagir contra o esfacelamento da aculturação das
Guarani alcançaram o litoral e, conseqüentemente, suas etnias.
o Recôncavo. ***
Também são citados, através das escrituras de A partir de 1530, as preocupações portuguesas
terras e cartas do jesuíta José de Anchieta em relação ao Brasil aumentaram devido à cons-
(1977:113), os índios Pitiguara e Carijó, acreditan- tante ameaça francesa de invasão.
do o referido sacerdote na existência dos Caetés, Este impulso ao desenvolvimento do Brasil se
mais ou menos no ano de 1562. Tomado-se por base deve a D. João III, que passou a enviar regularmen-
a escassa documentação existente, acredita-se, con- te expedições policiadoras. Passou, também, a es-
forme afirma o referido jesuíta, que os Tapuias fo- tudar um plano para o povoamento objetivo do Bra-
ram desalojados para o interior, havendo mesmo o sil, concretizando-o através da doação de
advento de grupos Tupi-Guarani em todo o Donatárias. Neste ínterim, enviou, em 1530, Martin
Recôncavo. Afonso de Souza com a dupla missão de guarda-
Somente a partir da chegada de Pedro Álvares costa e povoador, trazendo este – na esquadra – apro-
Cabral é que foram produzidos alguns documentos ximadamente quatrocentas pessoas, inclusive famí-
escritos sobre a etnia indígena, o que dificulta so- lias inteiras, artífices, agricultores portugueses e
bremaneira a pesquisa a esse respeito. Os testemu- aventureiros alemães, franceses e italianos.
nhos do homem americano pré-cabralino passa a As primeiras cartas de doação das Capitanias
ser, então, um fato arqueológico, devido à quase foram datadas de março de 1534 e a legislação com-
total inexistência dos grupos tribais na atualidade plementar foi determinada logo a seguir: “...a se-
do Recôncavo.
guir, foram estabelecidos os respectivos forais em
Foram as tribos de origem Tupi-Guarani, mais
jurisdição e as prerrogativas dos donatários, o
especificamente os Tupinambás, que possibilitaram
modo de partilha e a exploração da terra, a distri-
os contatos com a etnia colonizadora e sofreram mais
buição da justiça e os dispositivos
intensamente o processo de fricção interétnica. “A
fiscais”.(Azevedo, 1969:68). O primeiro contato
formação societária Tupinambá é tradicionalmente
permanente e bem sucedido entre índios e portu-
sagrada e fechada” (Fernandes, 1975:37). Esse tipo
gueses ocorreu nas imediações da futura Cidade do
de sociedade propiciava a integração organizatória
Salvador, através de Diogo Álvares Correia, o
através do predomínio dos mecanismos psicossociais
e socioculturais, porque eles asseguravam a conti- Caramuru. Este notável português chegou ao Bra-
nuidade da herança social através da estabilização sil mais ou menos em 1511. Logo acostumou-se ao
do padrão de equilíbrio dinâmico do sistema convívio com os nativos e uniu-se com as mulheres
societário. Os indivíduos adquiriam comportamen- de origem tupinambá, vindo a ter dez filhos, tendo
tos espontâneos e estandardizados, ao mesmo tem- esses mamelucos desempenhado importantes papéis
po em que se preparam para enfrentar as situações no posterior desenvolvimento do povoamento do
rotineiras da vida social sem tensões. Só cataclis- interior e estabelecimento dos primeiros engenhos
mos ou contatos inesperados escapavam aos con- de açúcar. Diogo Álvares Correia, apesar de ser
troles socialmente desenvolvidos. português de origem, mantinha constantes relações
Os grupos Tupi-Guarani que se encontravam no com os traficantes franceses e espanhóis.
litoral estavam em fase de expansão. Tinham uma A vinda de Francisco Pereira Coutinho, em 1536,
cultura material desenvolvida e praticavam a agri- ensejou a primeira tentativa de povoamento da re-
cultura, embora utilizassem métodos agrícolas pri- gião da Bahia de todos os Santos, hoje Salvador.
mitivos que terminavam por levar à exaustão das Embora os primeiros contatos entre índios e por-
terras, o que os forçava a mudanças continuadas. tugueses tenham sido cordiais, parece que houve uma
As relações interétnicas provocavam situações desconfiança inicial recíproca. Contudo, a influen-
de grande impacto sobre as organizações tribais. cia de Diogo Álvares Correia junto aos indígenas

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mantinha-os pacíficos e respeitosos em relação aos fumo, bem como aprenderam os meios de plantio e
novos habitantes da terra. a preparação de todos estes vegetais. Assimilaram,
Dois jovens vindos com Francisco Pereira igualmente, o sistema índio de roçar e encoivarar o
Coutinho casaram-se com filhas de Caramuru que, terreno para plantar
por seu lado, prestou excelentes trabalhos na orien- A freqüência dos banhos, a utilização de ervas
tação dos colonos quanto à agricultura, alimenta- alimentícias e medicinais, a incorporação ao voca-
ção e localização das construções. bulário português de palavras de linguagem indíge-
Foi iniciado um comercio de comestíveis. Os na, tais como chara, guapiara, apicum, massapé,
índios colaboravam, freqüentemente, quando pre- coivara, pipoca, tapioca, picum, chulé, chué,
senteados, para o trabalho na lavoura. Em face des- kuaipira, tetéia, tapera, catapora, pixaim, pitiú, e
se sucesso inicial, os colonos foram se afastando do muitos outros foram os empréstimos léxicos que
núcleo inicial, buscando novas e melhores terras para terminaram incorporados ao discurso cotidiano dos
ampliação e melhoria da lavoura. colonizadores.
Todavia, um grande número de colonos Também na musica houve uma aculturação in-
inescrupulosos e ambiciosos, passou a cometer atos direta, já que os brancos passaram a fazer, como se
de violência contra os nativos. Ocorriam de sua origem fossem, as gaitas de taquara, as
freqüentemente raptos, roubos em suas roças, maracás e vários outros instrumentos de som.
apresamento e escravidão. Esses fatos deploráveis As mulheres foram elemento significativo no pro-
e a pouca habilidade do donatário em compreender cesso de fusão étnica entre portugueses e índios. Elas
e acatar as queixas dos índios, levaram-no ao fra- eram bem aceitas e desejadas pelos portugueses, que
casso total da sua administração e à morte. se sentiam atraídos pelo exotismo da sua etnia e
Durante esse período de povoamento sistemáti- encontravam uma contrapartida favorável na dis-
co anterior à entrada dos africanos na Cidade do posição que as mulheres índias apresentavam para
Salvador, encontramos sempre relatos de sucessos se unir ao europeu. A escassez de mulheres portu-
e insucessos nas relações entre portugueses e índi- guesas proporcionou uma intensa miscigenação en-
os. Os portugueses, motivados pela inferioridade nu- tre índias e portugueses, enquanto que, por outro
mérica e despreparo para enfrentar as dificuldades lado, os índios eram aprisionados e tomados para
da nova terra, procuravam transformar os índios escravos.
em aliados. Seus contatos eram marcados pela cor- Os interesses econômicos, porém, terminaram
dialidade e pela colaboração, na medida do possí- por tornar-se divergentes, ao lado das diversas dife-
vel, levando-se em conta as grandes diferenças cul- renças socioculturais. Assim, as relações interétnicas
turais existentes entre eles. diametralmente opostas geraram um conflito per-
Diante da diversidade do ambiente e dos poucos manente entre agressores e agredidos, provocando
recursos disponíveis, os colonos passaram a utili- violentas represálias por parte destes últimos.
zar utensílios domésticos e objetos de primeira ne- Os portugueses empreendiam verdadeiras caça-
cessidade copiados ou tomados por empréstimo dos das com o objetivo definido de tomar posse das ter-
índios, tais como a rede, os vasos de barro e outros ras índias, enquanto, por sua vez, estes contra-ata-
utensílios domésticos. Aprenderam o fabrico de ces- cavam violentamente com emboscadas, saques, etc.,
tas, e quase tudo que se referia ao barquejar, à pes- espalhando o terror e a morte por toda a colônia. O
ca, ao uso das linhas de tecum para anzóis e ao insucesso e a violência que se generalizavam na re-
manejo das redes de pesca, denominadas de puçá lação entre indígenas e portugueses deveu-se, prin-
ou jereré. Passaram, também, a tinguijar os rios (usar cipalmente, ao interesse econômico do europeu, que
ervas narcóticas para imobilizar os peixes). passou a atacar, sistematicamente, os índios para
Deles adotaram, como alimentação, dentre ou- transformá-los em escravos.
tros, o consumo do milho, abóbora, feijão, maniçoba, Havia, contudo, uma política da Coroa em rela-
jerimum, carás, inhame, aipim e pirão de farinha, ção aos índios a qual preconizava o impedimento
além da banana da terra, cujo nome indígena era da escravidão indígena e defendia a necessidade de
pacoba. Adquiriram, também, o hábito de uso do sua doutrinação na fé cristã. Essa política possuía,

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porém, o grande defeito do etnocentrismo europeu 1551 os africanos começaram a chegar regularmen-
que propunha, como única solução progressista e te.
salvadora para os aborígenes, a sua cristianização Neste mesmo ano, os jesuítas pediam ao rei al-
acompanhada da adoção dos valores culturais da guns negros da Guiné para servirem no Colégio dos
etnia dominadora. Esta posição ideológica represen- Meninos. A propósito, o Padre Manuel da Nóbrega
tava um verdadeiro genocídio, visto que implicava afirmava já ter “escrito sobre os escravos, que se
na total anulação da própria identidade étnica do tomaram, dos quais um morreu logo, como morre-
índio e, em conseqüência, a perda da sua identidade ram outros muitos que vinham já maltratados no
individual. mar”. (Nóbrega, 1552)
Esse tipo de transfiguração, ocorrido em Salva- Em 1549, a colonização e o povoamento de
dor e em todas as Américas, foi mais violento e con- Salvador ganharam novo alento com a vinda de
tinuado do que o ocorrido na África, onde, embora Tomé de Souza para esta cidade. Investido dos
as diversas sociedades tenham sido dizimadas e dis- poderes de Governador Geral, ele veio fundar a ci-
persadas pelo mundo, os elementos que lá perma- dade de Salvador e estabelecer contato com Diogo
neciam puderam preservar uma relativa autonomia Álvares Correia, a quem o Rei se dirigiu, pela pri-
étnica. meira vez oficialmente, pedindo apoio para os colo-
Para Gorender (1978), um aspecto previsto em nos e para a pacificação e aliança com os índios.
lei e que trouxe muitos prejuízos à relação entre ín- O crescimento do número de engenhos e a ex-
dios e portugueses foi a permissão da escravidão pansão das plantações de cana-de-açúcar exigiam
indígena em conseqüência da chamada guerra jus- cada vez mais braços para o trabalho (cita Gabriel
ta. Os colonos instigavam tribo contra tribo, incen- Soares que, em 1587, havia trinta e seis engenhos
tivavam a delação e vingança entre os grupos indí- na Bahia). O trabalho dos índios não satisfazia aos
genas, valendo-se, para isso, de motivos banais. Em- colonos devido à sua inadaptação a este tipo de tra-
preendiam, em seguida, a campanha da guerra jus- balho e à grande mortalidade reinante entre eles por
ta, para justificar suas intervenções bélicas, que causa das doenças européias. Para dificultar a situ-
resultavam na destruição de aldeias inteiras e mas- ação, havia também a tenaz oposição dos jesuítas à
sacre de seus habitantes. Na verdade, essas supos- escravização dos índios.
tas guerras justas eram meros pretextos para en- A vinda dos escravos negros, já utilizados com
cobrir seu objetivo primordial que era a sucesso nas Ilhas Atlânticas e sul da Europa, fazia-
escravização dos índios aprisionados. (Gorender, se, então, necessária.
1978:469). “Mesmo assim, sobretudo em regiões mais
Para se avaliar o prejuízo que significou para as pobres e que não poderão pagar o elevado pre-
etnias nativas o sistema de relações interétnicas de ço dos escravos africanos, os colonos nunca
dominação do homem branco, basta se reconstituir abrirão de suas pretensões de constranger os
a brutalidade da dominação e do genocídio ao lado índios ao trabalho; e não houve lei ou limita-
do esfacelamento do seu sistema de relações sociais ção que os detivesse” (Prado Jr. 1967:36).
e divisão de trabalho, da desmistificação de suas O processo de substituição da força de trabalho
idéias de mundo e a obrigação de executar ativida- indígena pela negra se prolongou até o fim da era
des completamente estranhas aos seus sistemas eco- colonial. Nos lugares mais prósperos, a mudança
nômicos e sociais (Gorender, 1978:469). ocorreu com rapidez, enquanto que, nas áreas mais
Data de 29 de março de 1549 a autorização real pobres, ela foi lenta e quase imperceptível.
que permitia a cada senhor de engenho de Salvador A grande desvantagem do escravo africano era
receber da Ilha de São Tomé até cento e vinte escra- seu preço no desembarque, devido à alta mortanda-
vos do Congo. Existem, porém, algumas contradi- de ocorrida durante a travessia. Calcula-se em até
ções quanto a esta data, porque Jorge Luiz Lopes 50% o índice de mortalidade entre os escravos tra-
Bixorda faz referência a uma leva de negros por ele ficados, sendo que, dentre os sobreviventes, muitos
trazidos, em 1538, com destino à Vila do Pereira. chegavam doentes ou inutilizados.
Por outro lado, Luiz Viana Filho afirma que só em Utilizando escravos negros e índios, a organiza-

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ção da sociedade açucareira estruturou-se sobre um da identidade cultural dos grupos submetidos, ain-
núcleo social que reunia numerosos indivíduos sob da que alguns mecanismos de resistência tenham
a direção despótica do proprietário ou do seu feitor. permitido a sobrevivência de muitos dos membros
O número de trabalhadores era variável, calculan- destas comunidades atingidas.
do-se, em media, de oitenta a cem escravos por en- O povoamento e a colonização da Bahia, emi-
genho, enquanto que os trabalhadores livres eram nentemente de características rurais, tinham em Sal-
raros, naquela época. vador um pequeno centro administrativo e comerci-
O tráfico, na segunda metade do século XVI, al fortificado. Nas redondezas, situavam-se os en-
não era ainda muito intenso, segundo Thales de Aze- genhos, que eram os núcleos básicos da organiza-
vedo. Em 1562 e 1563, a fome e a bexiga foram ção e da realização das relações sociais interétnicas,
responsáveis por um número espantoso de óbitos em que a senzala representava o ambiente principal
entre índios e negros, atingindo um total aproxima- das relações entre índios e negros.
do de trinta mil índios mortos em menos de três O contacto social se fazia, verticalmente, entre a
meses. casa grande e a senzala (dominadores e dominados)
Luiz Vianna Filho revela que, em 1583, existi- e, a nível horizontal, nas senzalas, entre índios e
am nas lavouras de cana-de-açúcar e engenhos cer- negros. Paralelamente, ou melhor, marginalmente,
ca de três mil africanos. Somando-se esses escra- nos quilombos, os negros fugidos mantinham, tam-
vos aos que trabalhavam em outras atividades, os bém, uma intensa interação com os índios; escondi-
africanos totalizavam cerca de sete mil trabalhado- dos no seu interior, à proporção que aumentava o
res. trafico de escravos e as fugas se realizavam com
Na época de Gabriel Soares de Souza e José de maior freqüência, aumentava consideravelmente a
Anchieta, havia em Salvador oitocentos habitantes, interação existente. A proximidade entre os
e, em todo o Recôncavo, cerca de dois mil portu- quilombos e as aldeias, e a necessidade da presença
gueses, oito mil índios e três ou quatro mil escravos de mulheres para o acasalamento, contribuíram para
da Guiné. o sincronismo interétnico. O elemento feminino fun-
Em 1577, pelo menos oitenta mil índios tinham cionou, também, como vínculo de aproximação
sido capturados e conduzidos a Salvador e interétnica e de mestiçagem, e os quilombos (ou
adjacências, como afirma Gilberto Freire: “O açú- aquilombados), freqüentemente, realizavam incur-
car matou o índio. Para livrar o indígena da tira- sões nas aldeias próximas, raptando mulheres índi-
nia do engenho é que o missionário o segregou em as. Temos, portanto, esse local como foco de inte-
aldeias.” (Freire, 1963:36). resse e de intensa convivência interétnica, além da
Mas, certamente, este não terá sido o único nem troca de valores sócio-culturais.
o verdadeiro motivo dos aldeamentos e missões. No início do século XVI, a inconsistência da
infra-estrutura econômica ainda não propiciava a
importação intensiva de negros. Todavia, a despei-
Contatos de índios e negros to das leis de proteção ao índio e da pressão dos
nas senzalas e quilombos jesuítas, a escravidão era generalizada.
Os negros, ao chegarem ao Brasil, encontraram
Os contatos ou as relações de produção são consi- os índios prestando serviços na escravidão ou semi-
deradas como determinantes de todas as outras re- escravidão.
lações na vida social. Elas se realizam independen- “A par da escravidão dos negros, houve a es-
temente da vontade pessoal do sujeito e de maneira cravidão dos índios. Esta oscilou entre a forma
necessária, definindo a infra-estrutura econômica completa e variadas formas incompletas, resul-
da qual depende a superestrutura social. tantes de restrições à legalização jurídica da
O processo de articulação étnica gerado por um propriedade servil, de obstáculos com relação
sistema de exploração latifundiária – monocultura à inenalienabilide e à transmissão por heran-
– escravocrata é dos mais complexos e cruéis, como ça, de regimes de trabalho compulsório (...).”
bem prova o processo de deculturação e destruição (Gorender, 1978:468).

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Em outras oportunidades este mesmo autor ex- suficiência dos quilombos exigiam maior numero
plica ainda de forma mais clara: de componentes e de mão-de-obra para prover seus
“A escravidão dos índios cedo se tornou habitantes de alimentação. Isto leva a crer que os
objeto de complicado jogo de interesses. En- contatos poderiam ser feitos em dois níveis:
quanto os colonos viam no índio somente o es- a) assimetricamente, através da
cravo, os jesuítas pretendiam catequizá-lo e dominação do índio pelo negro, trans-
submetê-lo, também, ao domínio temporal da formando-o em mão-de-obra escrava
Companhia de Jesus. Uma vez que a escravi- para a lavoura e fortificações;
dão de indígenas concorria com a venda de b) simetricamente, através de um
negros e restringia seu mercado , os traficantes contato igualitário, buscando no gru-
de africanos não deixariam de aprovar a ori- po ameríndio colaboração e elementos
entação dos jesuítas, mesmo que fizessem taci- para a defesa do problema escravista.
tamente. Por sua vez, os jesuítas recomenda- Índios e negros, submetidos à escravidão, com
ram explicitamente a introdução de africanos suas consciências étnicas minadas pelo processo de
como meio de afastar os colonos da explora- dominação, terminam por assimilar os elementos que
ção dos índios, além do que a companhia de passam a constituir a cultura de contato, que per-
Jesus encheu de escravos negros seus próprios mite, assim, a manutenção de relações sem supre-
estabelecimentos econômicos.” (Gorender, macia de uma cultura em relação à outra, a não ser
1978: 469). em circunstancias especiais. A despeito das dife-
O conjunto de processos geradores da forma renças culturais, o modus vivendi é, também, pau-
completa de escravidão indígena, os atributos da tado e influenciado por pressões exteriores à senza-
perpetuidade, transmissão hereditária por via ma- la e aos quilombos.
terna e irrestrita alienabilidade pode ser assim resu- As senzalas e os quilombos apresentam no seu
mido: interior hierarquias sociais construídas a partir da
a) guerras justas própria caracterização histórica dos diversos tipos
b) expedições de apresamento de escravos, tais como, do eito, domésticos, de ofi-
c) resgate de índios de corda cio, etc. Os escravos do eito, por exemplo, ficavam
d) escravidão voluntária quase completamente isolados do contato com a casa
e) processo informal de escravidão grande. Os escravos domésticos e de oficio, por se-
Segundo Oliveira (1986:55), considerando-se - rem mais valorizados e estarem em contato mais
teoricamente - a proteção que os ameríndios recebi- estreito com a casa grande, recebiam atenções e
am da Coroa e dos jesuítas, imagina-se que eles cons- cuidados especiais, pois sua qualificação lhes con-
tituíam uma classe social diferente e superior ao es- feria uma posição de destaque e até mesmo de co-
cravo africano. Na realidade, porém, no contato mando nas senzalas. Os escravos domésticos man-
social dos engenhos em que foram obrigados a con- tinham estreitas e constantes relações com os se-
viver, eles representavam simples força de trabalho nhores e gozavam de sua privacidade; razão pela
- carvão humano - e eram escravizados em igual- qual sofriam maiores influencias do grupo domi-
dade de condições com os negros. A relação nante, que lhes imprimia mais fortemente suas ca-
interétnica como mão-de-obra e de convívio nas sen- racterísticas através de relacionamento.
zalas e quilombos pode, portanto, ser considerada, Para Chaunu (Chaunu, 1969:18):“Na América
em geral, igualitária e simétrica. Nos quilombos, é mais importante viver como branco, índio ou ne-
porém, devido à sua organização militar e acentua- gro que sê-lo de origem”
damente de origem africana, supõe-se que as rela- Dentro desta concepção, que privilegia os pa-
ções interéticas – algumas vezes – eram assimétricas. drões culturais, a assimilação do modus vivendi e o
Esta hipótese é corroborada pelo fato de o elemento domínio da língua do grupo dominante eram ele-
indígena ser raptado e, portanto, subjugado. mentos considerados mais importantes que as pró-
Em segundo lugar, o caráter militar e a auto- prias condições do nascimento. Por isso, dominar

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os padrões culturais e lingüísticos do colonizador uma ideologia capaz de unificar o grupo em torno
conferia prestigio social ao dominado. de ideais e objetivos comuns.
Através da convivência, muitos elementos da cul- Índios e negros eram tidos como mercadorias.
tura negra foram inicialmente transmitidos aos por- No mercado de Salvador, na segunda metade do
tugueses colonos, os quais foram se adaptando às século XVI, o escravo da terra valia muito menos
praticas africanas, por considerá-las exóticas ou di- que o negro. Os ameríndios valiam menos porque
vertidas. Naquele momento da colonização brasi- eram considerados mais indóceis, inadaptados ao
leira, os colonizadores portugueses, deslocados do trabalho e, por estarem tribalizados e adaptados ao
seu ambiente geográfico e cultural de origem, ado- ambiente, ofereciam mais resistência ao trabalho es-
taram inúmeros procedimentos ameríndios para fa- cravo.
cilitar sua sobrevivência e seu desenvolvimento O negro, considerado mais disciplinado pelo co-
numa terra tropical desconhecida e distante. lonizador, foi promovido comercialmente pelos tra-
A condição indispensável e necessária para a pro- ficantes, ganhando maior significado como investi-
dução de mudanças é o estímulo provocado pela mento. Dentro dessa conjuntura, ganhou, também,
vivência de novas experiências. Sem dúvida algu- maior importância na senzala; na hierarquia servil
ma, neste contexto, ocorreu uma multiplicidade de passou a se constituir o contingente mais privilegi-
condições bio-psico-sociais que muito favoreceram ado, assumindo os papeis mais importantes junto
a miscigenação branco-indio-negro. Nas três etnias ao senhor.
em contato entre si, o grau de resistência às mudan- Constituíam fontes de prestígio na senzala:
ças estava diretamente ligado ao caráter arcaizante a) dominar o idioma do grupo dominador, pois
de cada uma. As culturas indígenas e africanas eram isso lhe possibilitava uma posição de mando e
as mais arcaicas, sendo que, dentre elas, a africana, supervisão como feitor, capitão do mato e ou-
por se encontrar fora de seu habitat, era a mais pre- tras condições;
disposta a ser aculturada. Os ameríndios resistiram b) possuir algum grau de especialização, prin-
mais a este processo por serem os habitantes natu- cipalmente na indústria do açúcar o que lhe pos-
rais da região. Na Salvador do século XVI, os índi- sibilitava ser escravo de oficio ou doméstico;
os eram elementos numericamente dominantes; da c) ser jovem e fisicamente forte, demonstrando
sua miscigenação com os negros resultou uma nova resistência para o trabalho braçal;
categoria étnica e social: o curiboca ou cafuzo. d) ser do sexo masculino, pois tinha maior va-
A relação horizontal entre as duas etnias se fa- lor no mercado.
zia de maneira conflituosa, visto que os mecanis- Francisco A. de Varnhagen e Gabriel Soares re-
mos de integração entre estas unidades étnicas se ferem-se duas vezes a escravos da terra de oficio.
apresentavam bastante dificultados pela condição Os índios tinham menos valor comercial que os afri-
de dominação e servidão a que ambas eram subme- canos, visto que o preço de aquisição dos negros
tidas. Estas dificuldades eram agravadas pelas pro- era bastante elevado. No engenho, os negros esta-
fundas diversidades lingüísticas, religiosas e cultu- vam em situação social superior ao índio, em face
rais que separavam os dois grupos, visto que esses da desvalorização comercial deste último. Era, por-
valores se constituem como pontos de maior resis- tanto, uma mercadoria barata, consumida com ra-
tência às influencias culturais exógenas. pidez e total descuido. “Os negros eram a mão-de-
A interação social era intencionalmente dificul- obra fundamental dos engenhos, enquanto aos ín-
tada pelos portugueses através da mistura de afri- dios não se confiavam senão tarefas acessórias”.
canos de diversas etnias e de índios de tribos (Varnhagen, 1976: 78)
diversificadas. Evitavam, com isto, rebeliões, pois O aumento demográfico do contingente africa-
impossibilitavam o desenvolvimento do sentimento no na senzala e o contato com índios e cafuzos re-
nativista e do reforço da ideologia étnica. Bloque- forçou as influencias culturais recebidas dos pri-
ando o desenvolvimento de uma identificação grupal meiros elementos étnicos africanos. O reforço des-
através da fragmentação dos grupos, não se criava tas influências veio através das novas levas de tra-

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dições dos negros bantus procedentes do oeste da plano do boi de carro e do burro de carga, em-
África. bora estes fossem menos infelizes, pois os irra-
Os traços culturais africanos ainda hoje são en- cionais não têm consciência para alcançar o
contrados nas manifestações religiosas, emprésti- horror da humilhação. Cavalos, burros e bois
mos léxicos, instrumentos musicais como tambo- estavam dispensados da tirania do tronco, dos
res, agogôs, flautas, cuícas, berimbaus e diversos bolos de palmatórias, do suplicio das masca-
outros. Dentre os pratos da culinária bantu e iorubá ras de flandres, das torturantes prisões em so-
se destacam, notadamente na cozinha baiana, o efó, litárias soturnas, das terríveis agonias dos lon-
o vatapá, o acaçá, o bobó, o acarajé, o abará, etc. gos jejuns, da ignomínia dos grilhões e de to-
Na vestimenta, vale destacar o pano da Costa, as das as outras formas de desumanos e humilhan-
saias rodadas e os trajes característicos da baiana tes castigos físicos e morais (Luna, 1968: 175).
(provenientes do grupo hauçá). A vida nas senzalas refletia a irrealização dos
A influência também é manifesta em danças sonhos e a frustração das ambições daquela gente
como o maracatu, bumba-meu-boi e congadas. Na arrancada à força de suas terras e privada sua cul-
Bahia, em Pernambuco e no Rio de Janeiro, as cren- tura. Não raro, pelas ruas das cidades, viam-se ca-
ças religiosas africanas se espalharam mais ampla- deirinhas de arruar carregadas por príncipes e súdi-
mente que nos outros lugares, por serem estas pro- tos reais das terras africanas, aprisionados e trazi-
víncias os principais mercados escravistas do Bra- dos como escravos para os engenhos e fazendas,
sil Colônia. onde trocavam a posição de destaque e nobreza nas
A medicina natural sempre foi usada em larga suas tribos pela condição de trabalhador escravo.
escala pelos africanos, que trouxeram várias práti-
cas curandeiristicas e religiosas de sua terra natal. Conclusão
Essas práticas eram severamente reprimidas na ten-
tativa de eliminação dos traços significativos e subs- A bagagem cultural dos ameríndios foi o
tanciais de uma etnia alquebrada e ultrajada, porém embasamento do que veio a se constituir, posterior-
jamais sufocada. mente, a cultura brasileira.
É certo que, em todos os setores da vida escrava Embora a América vitoriosa seja a América bran-
brasileira, essencialmente na Bahia, a população ca (Chaunu, 1969:78), a cultura brasileira é uma
escrava vivia permanentemente ultrajada. Dentre os cultura mulata e cafuza, fundida num caleidoscó-
escravos oprimidos, destacavam-se, muitas vezes, pio de culturas homogeneizadas pela mestiçagem.
guerreiros africanos destemidos que lideravam suas A língua portuguesa foi enriquecida por uma ampla
tribos e que, aprisionados e humilhados, eram trafi- mescla de termos indígenas e africanos e o cristia-
cados como escravos. Suas tentativas de revolta nismo que foi o culto oficial da colonização hoje
eram logo sufocadas e abafadas pelos senhores do- convive bem com manifestações africanas e indíge-
nos de sesmarias e engenhos. nas. O folclore é a própria imagem da interação de
O desenvolvimento econômico da terra brasilei- três etnias, e o tipo físico do brasileiro reflete o
ra, notadamente da baiana, exigia cada vez mais caldeamento das etnias branca, vermelha e negra,
um maior contingente de mão-de-obra. Assim, ho- com toda sua imensa gama de combinações genéti-
mens e mulheres provindos da África chegavam à cas.
Bahia, em navios chamados negreiros. Imediatamen- O século XVI mostra, assim, com todas as suas
te, após a chegada, eram conduzidos para os cam- peculiaridades, as raízes históricas das relações
pos dos engenhos, onde predominavam o fausto e a interétnicas e sócio-culturais no Brasil, determina-
riqueza dos feudos fechados, dominados por uma das por uma organização econômica escravocrata,
sociedade oligárquica e opressora. desenvolvida pela deculturação e assimilação das
“A maioria dos senhores, na sua impiedade contribuições étnicas dominadas.
e ignorância, tratava o cativo como animal de Apesar da fricção interétnica e da permanente
serviço, abaixo do cavalo de sela e no mesmo deculturação resultante da dominação e humilha-

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ções sofridas, é impressionante a capacidade de los seus descendentes na busca da igualdade de di-
resistência que os negros e índios têm demons- reitos e do resgate de suas raízes culturais e identi-
trado através dos séculos. Ainda hoje, quinhentos dade social.
anos depois, a luta continua, agora sustentada pe-

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BAHIA, A ROMA NEGRA:
Estratégias Comunitárias e Educação Pluricultural

Narcimária Correia do Patrocínio Luz


Professora da Universidade do Estado da Bahia

“(...) O colono faz a história e sabe que a faz. E porque se refere constante-
mente à história de sua metrópole, indica de modo claro que ele é aqui o
prolongamento dessa metrópole. A história que escreve não é portanto a his-
tória da região por ele saqueada, mas a história de sua nação no território
explorado, violado e esfaimado. A imobilidade a que está condenado o coloni-
zado só pode ter fim se o colonizado se dispuser a por termo à história da
colonização, à história da pilhagem, para criar a história da nação, a história
da descolonização. Mundo compartimentado, maniqueísta, imóvel, mundo de
estátuas: a estátua do general que efetuou a conquista, a estátua do engenhei-
ro que construiu a ponte. Mundo seguro de si, que esmaga com suas pedras os
lombos esfolados pelo chicote. Eis o mundo colonial (...)”
Frantz Fanon

Introdução * míticas milenares, cuja arkhé 1, ou seja, os princí-


pios inaugurais organizam, instituem, revitalizam,
Nossa intenção, aqui, é celebrar e reverenciar o promovem e dinamizam as lutas de afirmação só-
centenário de vida de uma personalidade cio-existencial dos afro-descendentes no Brasil.
exponencial do continuum civilizatório africano nas “(...) O mito é o discurso capaz de representar
Américas. Refiro-me a Iyá Oxum Miuwá, conhe- a vida e a morte, o tudo e o nada, o pleno e o
cida como Mãe Senhora Asipá, que foi Ialorixá de vazio, o visível e o invisível, o dito e o inefá-
uma das mais tradicionais comunidades-terreiro das vel, o mistério da existência (...). É o mito que
Américas, o Ilê Axé Opô Afonjá. se constitui no discurso capaz de elaborar e
No contexto temático desta Revista, em que os realizar o reconhecimento da alteridade , dos
“500 anos de descobrimento do Brasil” constituem outros e do outro, ao contrário da ciência to-
o foco das discussões, essa celebração pretende ser talitária, que querendo explicar tudo, muito
um marco de referência à compreensão de novas e fala e pouco ou nada diz.” (Luz, 1995:21)
significativas percepções e elaborações da socia- Desse continuum civilizatório africano-brasi-
bilidade africano-brasileira. leiro, nos dedicaremos a explorar aspectos que dêem
Procuraremos destacar, de um lado, os modos relevância à ética da coexistência, valores mítico-
de insurgência das populações africano-brasileiras políticos e religiosos, hierarquias comunais, lingua-
face às políticas genocidas e de recalcamento da gem, modos e formas de comunicação, concepções
sua alteridade própria; de outro, as narrativas estéticas, modos de vida, princípios filosóficos,
códigos estéticos, concepções culinárias, organi-
∗ Este trabalho se desdobra a partir de algumas abor- zação político-social, elaborações territoriais, en-
dagens expostas na tese doutoral ABEBE: A Cria- fim, todo um complexo sistema cultural, cujas
ção de Novos Valores na Educação, UFBA/1997. manifestações procuram caracterizar aspectos
Narcimária é Doutora em Educação, professora do
Departamento de Educação I e Coordenadora do estruturadores da identidade profunda das
Programa Descolonização e Educação, Universidade comunalidades tradicionais de origem africana nas
do Estado da Bahia - UNEB. Américas.

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O nosso propósito é que esses aspectos, que 2. Ancestralidade,
ressaltam as formas de sociabilidade, valores e Memória e Continuidade
linguagem dessa presença africana, sejam capazes
de contribuir na percepção sobre a dinâmica da Nas comunidades-terreiro nagô, o princípio fe-
educação, em meio ao contexto adverso do minino da existência é muito venerado e poderoso,
colonialismo, neocolonialismo e imperialismo. pois magnifica o poder de expansão dos valores e
Por isso, abordaremos questões que realizam o linguagem das comunalidades africano-brasileiras.
aprofundamento analítico da gênese da estruturação Esses princípios estão representados pelas Iya-
da sociedade brasileira, cujos prolongamentos Mi-Agbá, nossas Mães Ancestrais, que são possui-
coloniais subjazem no Brasil contemporâneo. doras e transmissoras de axé.2
Sabemos que esse recorte temporal dos 500 anos, Na órbita acadêmico-científica existem leituras
instituído pelos valores coloniais branco-europeus, que recalcam, profundamente, as elaborações so-
e exaltado, nesse final de século, pela Razão de bre a dinâmica dos princípios femininos da existên-
Estado, pretende atualizar os princípios originários cia; isto porque esses discursos ficam confinados
das culturas greco-romana e judaico-cristã que, ao eixo do discurso marxista, em que a identidade
durante séculos, orientam as políticas educacionais de escravo e proletário ganham relevo e, infeliz-
e/ou pedagogias de embranquecimento do nosso mente, tendem a ser referências absolutas, no to-
país. cante à compreensão do ethos feminino e sua influ-
As populações de descendência aborígene e ência na estruturação dos valores comunais, e, prin-
africana sempre foram abordadas pelas políticas cipalmente, na constituição de valores educacionais.
oficiais de educação como “incapazes de Pretendemos dar visibilidade a um outro con-
civilização”, “pagãs”, “portadoras do pecado texto, ou seja, aquele que sai da lamentação da equi-
original” e, portanto, aptas para serem convertidas, vocada “mama África”, da mulher negra escrava,
e sem direito à alteridade própria. da relação “casa grande e senzala”, que geralmente
Baseando-nos nessa perspectiva, procuramos descamba para a mulatice, mistura das raças,
romper, radicalmente, com as análises sincretismo, enfim, do nucleamento semântico da
evolucionistas e com o historicismo linear que historiografia oficial.
sobredeterminam o nosso pensamento educacional. Trata-se do contexto que magnifica e possibilita
Daí a necessidade de inserirmos, como referência a plenitude do existir da mulher negra, através do
fundamental no nosso trabalho, as noções de reconhecimento ou legitimação do poder feminino,
sociabilidade, comunalidade, arkhé, populações ancestral das Iya Mi Agbá.
tradicionais, alteridade própria e civilização. Como salientamos, inicialmente, a nossa abor-
Destacaremos as formas de resistência, reposição dagem considera a arkhé das comunidades
e expansão dos valores da civilização africano- nagô.
brasileira, face às políticas educacionais As Iya Mi Agbá são as nossas mães ancestrais,
recalcadoras. e elas concentram o mistério da gestação, fertilida-
O ânimo que encontramos, como educadores de, expansão, realização e continuidade dos valo-
afro-descendentes, na elaboração das idéias aqui res que dinamizam o patrimônio simbólico da
reunidas, é acreditar que, através do riquíssimo comunalidade nagô. Elas são representadas por
legado sócio-político e existencial da Oxum Miuwá, grandes pássaros e peixes, cujas penas e escamas
que hoje integra a corrente mítica das nossas Mães simbolizam filhos que se despregam do corpo ma-
Ancestrais, poderemos nos aproximar e tomar terno.
consciência de elaborações de mundo originais, que O poder feminino das mães ancestrais é venera-
encontram, no mito, a dinâmica capaz de do nas comunidades-terreiro nagô e se “(...) desdo-
impulsionar, por exemplo, uma ética do futuro, bram em vários orisa genitores femininos, pode-
assentada na perspectiva pluricultural de educação. res míticos sagrados; também são cultuadas e

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invocadas como ancestrais, representando as mais Oxum, e que constituiu o posto mais alto que uma
destacadas figuras femininas de linhagens e co- mulher pode alcançar na tradição. Ela será, portan-
munidades” (Santos e Santos, 1993:47). Oxum é a to, a cabeça das mulheres e da representação do
detentora dos princípios femininos da existência, poder ancestral feminino.
mistério da transformação do corpo feminino, ven- Esse breve exemplo sobre a vida sacerdotal de
tre fecundado, capaz de gerar filhos e alimentá-los. Omoniké serve para destacar a importância do po-
É ela que zela pelo feto e protege os recém- nasci- der ancestral feminino constituído pelas Iya-Mi
dos, daí o título de Olutoju Awon Omo, pois olha e Agbá, as mães respeitadas e veneráveis, zeladoras,
protege as crianças. Além desse título, Oxum tam- e transmissoras de ase que, por morte, integram a
bém é Iya-Mi Akoko, a mãe ancestral suprema, e poderosa corrente mítica da comunidade.
também Olori Iya-Agbá Aje Eleye, chefe suprema No seu livro A Cidade das Mulheres, Ruth
das mães ancestrais. Landes, antropóloga americana que, na década de
Assim como Oxum, outros Orixá possuem títu- trinta, esteve no Brasil, destacou que, na Bahia:
los que expressam seus poderes míticos. Nanã de- “(...) as mulheres negras encontraram mais re-
tém a matéria-prima da vida, a lama; por isso é Omo conhecimento, do seu próprio povo (...) Uma
Atioró Oké Opa, pois sua origem está ligada ao gran- distinta sacerdotisa chamou a sua cidade de
de pássaro Atioró. Yemanjá é Iye-omo-eja, mãe dos Roma Negra, dada a sua autoridade cultural;
filhos peixes. foi aqui que as mulheres negras atingiram o
Os poderes das nossas mães ancestrais auge de eminência e poder, tanto sob a escravi-
reinstauram e presentificam modos e formas de ela- dão como após a emancipação. Controlando
boração cósmico-social, capazes de zelar e per- os mercados públicos, as sociedades religiosas
mitir a expansão e afirmação dos vínculos e também suas famílias”
comunais. (Landes, 1961:112)
“No começo do mundo, era o nada. Com a cri- A sacerdotisa que usou a expressão Roma Ne-
ação da Terra e das florestas, Olorun enviou ao gra, à qual se referiu Ruth Landes, foi Mãe Aninha,
aiyê sete pássaros. Três pousaram na árvore do a Iya Oba Biyi, fundadora da comunidade-terreiro
bem, três pousaram na árvore do mal, e um voa de Ilê Axé Opô Afonjá.
uma para outra árvore.” Essa história caracteriza Essa expressão, Roma Negra, metaforicamente,
a ambigüidade do grandioso poder das Iya-Mi Agbá, procura caracterizar, de um lado, a Bahia como uma
as mães ancestrais. Elas não deverão abusar desse polis, que confere existência transatlântica à África
poder conferido por Olorun. Deverão dar filhos e negra, e, de outro, se constitui num marco funda-
alimentos aos que pedirem, mas castigará e matará mental de referência à compreensão da arkhé que
aos que não a escutarem e desrespeitarem (Luz , funda, estrutura, revitaliza, atualiza e expande a
1995:104). energia mítico-sagrada da comunalidade africano-
Através dos festivais Geledés cultuam-se as Iya- brasileira.
Mi Agbá, isso na África, pois no Brasil não temos Estamos dando relevo a existência feminina, a
registros que nos informem, com profundidade, so- partir da homenagem e reconhecimento da impor-
bre a sociedade secreta Geledés que existiu aqui na tância das nossas mães ancestrais, na constituição
Bahia. e fundação dos valores que caracterizam a sociabi-
Nos registros sobre o culto Geledés, na Bahia, lidade e que vêm dinamizando as lutas de afirma-
consta que a sua última sacerdotisa suprema foi ção do patrimônio africano no Brasil.
Omonike, cujo nome católico era Maria Júlia A Iyá Oba Biyi, famosa sacerdotisa suprema do
Figueredo. Omoniké foi iniciada por Oba Tosi, uma Ilê Opô Afonjá, implantou a comunidade nas
das mais antigas Iyalaxé do Ilê Iyá Nassô. É a mais imediações do Cabula, por considerar o local
antiga comunidade-terreiro do Brasil. profundamente associado ao passado heróico, à
A trajetória de Omoniké, na tradição, levou-a a continuidade cultural e, segundo a tradição, pleno
obter o título honorífico de Iyalodé, da casa de de axé, de poder mítico emanado dos antepassados

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africanos enterrados nessas terras. Esse território Visando ainda à compreensão sobre a influência
se impregnou de profundo significado histórico para do poder das Iya-Mi-Agbá na estruturação das co-
a população africano-brasileira, que nele munidades africano-brasileira, salientamos que, pela
reimplantou várias comunidades, embora nada prove organização complexa e tradição, três principais
que o terreiro Opô Afonjá, realmente, esteja no lo- terreiros repõem, expandem e dão continuidade ao
cal exato onde existiram as roças que constituíam o universo sócio-existencial nagô na Bahia.
quilombo do Cabula, desterritorializado em 1807. Essas comunidades-terreiro são originárias do
As Iyá Mi Agbá investiram toda a sua vida, sua Ilê Iyá Nassô, que foi o primeiro culto público co-
existência, na continuidade do processo civilizatório nhecido de Xangô, e estava localizado no bairro da
africano. As Iyá Mi não foram heroínas, dentro do Barroquinha.
enquadramento da historiografia oficial; não exer- Hoje, o Ilê Iyá Nassô está situado no Engenho
ceram lideranças sindicais, se nos detivermos no Velho, e é conhecido como Casa Branca ou, origi-
recorte limitado das lutas de classe; mas, podemos nalmente, Iyá Nassô Oyó Acalá Magbô Olodumaré.
afirmar que, no âmbito de um contexto hostil colo- As outras comunidades que se originaram do Ilê
nial, as Iya Mi investiram sua vida com sabedoria e Iyá Nassô são o Ilê Axé Omin Iamassê, mais co-
dedicação, de forma visceral e comprometida, na nhecido como Gantois, localizado na Federação; e
expansão da pujança do continuum africano-brasi- o Ilê Opô Afonjá, em São Gonçalo do Retiro, no
leiro. Cabula.
Retomando a crítica que fizemos, inicialmente, Nessas comunidades existem ciclos rituais onde
às análises sobre as categorias gênero, classe e raça, são invocadas as Iya Mi Agbá. São cerimônias re-
gostaríamos de salientar alguns comentários que pletas de emoção, que mobilizam toda a comu-
deverão estar incluídos nas agendas contemporâne- nidade para homenagear as Mães inaugurais.
as sobre a existência feminina. É importante destacar, desse universo sócio-exis-
A categoria gênero encobre a auto-estima da tencial pleno de beleza e emoção, um poema e/ou
identidade comunal da afro-descendente, pois oriki que, há cinco gerações, é invocado, visando
recalca, através da categoria “mulher”, aplicada celebrar a primeira Iyalasé do mais antigo terreiro
genericamente às características histórico-culturais, da Bahia, o Ilê Iya Nassô, fundado por Marcelina
denegando as diferenças do continuum civilizatório da Silva, a Oba Tosi, sacerdotisa de Xangô e filha
que estabelece a identidade feminina. da legendária Odanadana, que integrava a tradicio-
Quanto à categoria classe, desdobra-se no nal linhagem Asipá.
recalque das diferenças étnico-culturais, pois con- Esse extrato do poema, que transcrevemos aqui,
cebe a dinâmica da sociedade apenas como resul- homenageia e celebra os feitos e infinitudes de to-
tante das relações sociais de produção. das as Iyá, fundadoras e transmissoras da arkhé
A noção de “raça” também é equivocada, pois nagô, possibilitando a renovação e os vínculos de
não responde às estruturações biogenéticas da es- sociabilidade comunal.
pécie humana, e não atende à compreensão do uni-
verso feminino eminentemente africano-brasileiro.

Iya o bogunde A guerra trouxe a Mãe,


Omo Asipá o bogunde. Filha de Xangô que chegou com a guerra.
E ma be ru ja, Mas não tema a batalha,
Iya asa o. Pois a Mãe perdeu o medo.
Eni ma be orisa, Roguemos aos Orixás,
Aiye b’ode. Para que a alegria se expanda no mundo.

Iya iya o! Oh, Mãe, Mãe,

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Mo ni ebo Afirmo tua existência.
Kebo Keto! Boa saúde e longa vida!
Iya iya o! Oh, Mãe, Mãe,
Bori ala, Cabeça que nos cobre
Keto Baba! Com coisas boas!
Dugbe dugbe Ala do firo, Assim como Xangô imortaliza o relâmpago no ar,
Iya, ope, l’aiye. Mãe, estaremos sempre gratos ao mundo (por vossa
existência),

Egbomi se bo. A minha mãe anciã fez o sacrifício (por todos nós).
Iya ope l’aiye Mãe, estaremos sempre gratos ao mundo (por vossa
existência).
(Santos e Santos, 1993:49)

O que podemos extrair desses versos é a afirma- Esse aspecto que destacamos da arkhé nagô é
ção de continuidade e expansão quase ininterrupta capaz de inspirar e conceber a dinâmica de uma
dos valores africanos nas Américas. educação pluricultural, pois ela tem o poder de con-
No primeiro verso identificamos a dor e o sofri- ferir existência ao ethos e eidos 3 africano nas Amé-
mento causados na passagem transatlântica, por- ricas, apesar das políticas de recalcamento
que foi a guerra que trouxe a Mãe inaugural, a Iyá impetradas pelo colonialismo, neocolonialismo e
fundadora da primeira comunidade-terreiro. imperialismo. As comunidades se expandem,
Com a Iyá, e nela, veio Xangô, orixá do fogo, aprofundando suas alianças internas, organizando-
Alaafin, rei de Oyó, dinastia, origem ancestralidade, se institucionalmente, estabelecendo espaços pró-
princípio estruturador social e político. prios, paralelos e alternativos à sociedade oficial.
Não esqueçamos que a Iyá Oba Tosi era sacer- É o caso da potência encantadora da literatura
dotisa de Xangô e fundou o Ilê Iyá Nassô, a mais eminentemente africano-brasileira, capaz de influ-
antiga comunidade-terreiro do Brasil. enciar uma dimensão pedagógica infanto-juvenil em
“ ... A mãe venerada a mais antiga fez o sacri- que valores míticos e religiosos, cosmovisão, ética
fício, as oferendas iniciais e iniciáticas que abri- comunitária, hierarquias comunais, línguas, modos
ram os caminhos. Assim como Xangô se imor- de vida, princípios filosóficos, códigos estéticos,
taliza revivendo em cada trovão, assim também modos e formas de comunicação, concepções culi-
o poder de expansão da mãe inaugural e o po- nárias, organização político-social, elaborações
der dinástico de Xangô se representam e revivem territoriais, enfim, todo um complexo civilizatório
em seus descendentes e estes reafirmam seu está expresso e procura caracterizar aspectos
existir. Continuadores das Iyá, eles se investem estruturadores da identidade profunda das
da onipotência de Xangô e de seu poder de ‘pan- comunalidades tradicionais da Bahia.
tera’. Mantendo a comunicação com os orixá e Trata-se de uma literatura que constitui o cotidi-
os antepassados, forças estruturadoras cósmi- ano das comunidades-terreiro de origem nagô, e re-
cas e sociais, não haverá poder que atinja ou siste há cinco gerações. Na Bahia, um exemplo sig-
destrua a comunidade, essencialmente se todos nificativo da preservação, até hoje, desse acervo li-
se mantêm unidos num “mesmo corpo”, nas terário riquíssimo, é da linhagem Asipá, originária
alianças que harmonizam e selam o pacto se- de Oyó, e uma das sete famílias fundadoras de Ketú.
mântico renovado no cantar ritual.” (Santos e Os contos são transmitidos de geração a geração,
Santos,1993:49) e mais que isso, eles comunicam experiências entre

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gerações para outra, conforme, também, as hie- Os contos são narrados na língua portuguesa,
rarquias comunitárias detentoras da sabedoria predominando o português falado pelos velhos
milenar. africanos. Mas a língua nagô resiste nas canti-
Mas essas transmissões só se realizam atra- gas, fórmulas, parábolas e versos, bem como se
vés de relações interdinâmicas e interpessoais, en- rememoram os espaços geográficos e históricos,
volvendo os mais velhos e os jovens, numa di- personagens, modos de sociabilidade comunal,
mensão pedagógica que apela para códigos e for- entidades sobrenaturais, estrutura e conteúdo sim-
mas de comunicação genuinamente africanos, bólico, todo um sistema de valores revividos e
resultando em ensinamentos profundos. reatualizados, num aqui e agora.
“(...) Os terreiros nagô não são apenas co- Esse riquíssimo acervo literário vivo se ex-
munidades religiosas; a prática litúrgica é pande e se consolida devido ao princípio básico
fator aglutinante e transmissor de uma de comunicação exigido, que é a relação
riquíssima tradição. O terreiro veicula e re- interpessoal, caracterizada por:
cria através de suas atividades, não somente “(...) uma pedagogia negra iniciática. Os
uma língua particular, como uma conforma- contos revelam um aspecto da maneira ne-
ção hierárquica, uma morfologia social e gra de ensinar, de transmitir o acervo de sa-
individual baseada em uma maior ou menor bedoria da cultura (...) Eles ilustram a ma-
absorção inicial de princípios e conhecimen- neira de como os nagô procuram promover a
tos (...)” (Santos, 1976:14) adaptação ou socialização de seus integran-
Os contos possibilitam a reatualização de as- tes, através do aspecto pedagógico de seu rico
pectos sócio-históricos e cosmogônicos do uni- sistema simbólico, assegurando assim uma
verso nagô, e isso ocorre através de recitações, forma própria de obter a coesão social.”
cânticos, instrumentos musicais, dramatizações, (Santos, 1976:14)
mobilizados a partir do rito ou da transmissão Os contos reúnem a riqueza própria do
viva e participante, permitindo a expansão de todo patrimônio civilizatório milenar africano, e esse
um complexo sistema civilizatório de conheci- é um fator muito significativo e exemplar para
mentos. os educadores baianos, que tendem a ser seduzi-
A palavra emanada nesse contexto detém dos pela proposta evolucionista/etnocêntrica dos
muito poder de ação e realização, assim: Parâmetros Curriculares Nacionais.
“(...) a transmissão simbólica, a mensagem É significativo, de um lado, porque, face à ide-
se realiza conjuntamente com gestos, com mo- ologia do recalque, que sobredetermina o currí-
vimentos corporais; a palavra é vivida, pro- culo das escolas brasileiras, os contos podem e
nunciada, está carregada com modulações, devem ser utilizados como recurso didático-pe-
com emoção, com história pessoal, o poder e dagógico, que tendem a abordar a presença afri-
a experiência de quem a profere. A palavra cana, e a tratar os seus descendentes como capa-
transporta o alento-veículo existencial e atin- zes de civilização; de outro, contextualizam for-
ge os referentes e planos mais profundos da mas de insurgência contra os valores coloniais e
personalidade.” (Santos, 1976:14) neocoloniais, expandindo e legitimando o modo
Outro aspecto fundamental é que os contos, de vida e a sociabilidade africanos.
na sua maioria, são originários do itan, que são É necessário enfatizar que as palavras emana-
histórias; ou ese, que constituem os textos das através dos contos têm muito poder de reali-
oracula-res do Ifá, no caso da presença nagô no zação, porque mobilizam, encantam, fascinam e
Brasil, e integram o sistema erindilogun. exploram o imaginário da comunalidade afri-
Todas as histórias representam os diversos cano-brasileira, recriando e reatualizando todo o
“caminhos” do odú, e apresentam uma fórmula, sistema simbólico e de conhecimentos éticos e esté-
cantiga e versos que, nas suas interrelações, são ticos: “(...) antes de serem formas de arte, [os tex-
capazes de expressar o sentido da história. tos] são formas que levam a carga de significar

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as múltiplas relações do homem com seu meio téc- importância nas comunidades-terreiro, bem como a
nico e ético.” (Luz, 1977:66) necessidade de preservá-la, como forma de expres-
Como ilustração desse complexo e erudito acer- são identitária e de comunicação.
vo educacional milenar africano-brasileiro de ori- A partir daí, outros livros, ensaios e monografias
gem nagô, apresentamos um conto de Mestre Didi, sobre a presença africana na Bahia e Américas fo-
adaptado para um auto coreográfico, visando de- ram publicados, inclusive após o desenvolvimento
sencadear e contemplar o currículo da primeira ex- de pesquisas através da UNESCO, feitas na África
periência de Educação Pluricultural no Brasil, a Ocidental, Nigéria e Daomé, territórios consagra-
Mini Comunidade Oba-Biyi desenvolvida na comu- dos pelo rico universo mítico-político do povo nagô.
nidade do Ilê Axé Opô Afonjá, no período de 1976 O conto que selecionamos, do acervo literário,
à 1986. A concepção e execução do projeto ficaram preservado por Mestre Didi, é: A Vendedora de
sob a responsabilidade da Sociedade de Estudos da Acaçá que Ficou Rica, extraído do livro Contos
Cultura Negra no Brasil – SECNEB. Crioulos da Bahia. Esse foi um dos contos escolhi-
A iniciativa de constituição do projeto foi do dos pelo Grupo de Jovens que integravam a Mini
Mestre Didi, e também a dinâmica pedagógica que Comunidade Oba Biyi, para apresentar, em um dos
orientou a experiência da Mini Oba-Biyi teve a sua Festivais semestrais dessa experiência de educação
orientação, como integrante do Grupo de Trabalho pluricultural, e que, de forma excepcional, conse-
em Educação-GTE da SECNEB. guiu mobilizar a comunidade do Opô Afonjá e a
Deóscoredes Maximiliano dos Santos, Mestre sociedade do entorno do terreiro.
Didi, nascido, criado e iniciado nas comunidades O cenário, coreografia, figurinos, a música
nagô da Bahia, é Alapini - Supremo Sacerdote do polirrítimica e os cânticos foram recriados pelos
Culto Egungun, e Assogbá - Sumo Sacerdote do jovens e pelo GTE, a ponto de se acrescentar, ao
culto Obaluaiyê, artista consagrado nacional e in- conto, um samba-de-roda animadíssimo, pleno em
ternacionalmente, e também escritor. Toda a sua vida ODARA, isto é, criaram-se condições para que as
tem sido dedicada à preservação e continuidade da expressões estéticas se tornassem utilitárias e dinâ-
tradição africano-brasileira, imbuída dos valores e micas. Toda a concepção estética do auto coreográ-
ensinamentos do legado ancestral nagô nas Améri- fico e o seu conteúdo simbólico original foram
cas. aprofundados e aprendidos pelos jovens sob a ori-
Como escritor, Mestre Didi publicou, em 1946, entação do Mestre Didi.
um vocabulário yorubá-português, onde destacou
as formas de resistência dessa língua africana e sua

A VENDEDORA DE ACAÇÁ QUE FICOU RICA

Em uma cidade africana, existia uma senhora, que há muitos anos


vendia acaçá e mingau pela manhã.
Já se achando muito cansada, um dia, ela resolveu ir à casa do Babá
Ifá pra saber o que ela devia fazer para deixar de vender mingau e acaçá,
e viver mais descansada para o resto da vida, pois já estava um bocado
velhinha.
Depois de feita a consulta, Ifá disse para ela: - Você me traga uma
galinha, um porco, enfim, tudo o que lhe ocorra pela cabeça.
Imediatamente, ela saiu para dar as providências, a fim de conseguir
as coisas, o mais depressa possível, para levar ao Babá Ifá, pois queria
se ver livre daquela vida de qualquer jeito.
Logo que conseguiu tudo o que lhe pareceu suficiente para o trabalho
que Ifá ia fazer, foi levar.
Depois de feita a entrega, Ifá disse para ela: - Vá minha filha, dentro

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de sete dias, vai terminar a grande guerra que está sendo travada
pelo general Ogum, muito perto daqui; na volta dele, você terá a re-
compensa merecida obtendo uma melhor posição na vida, por todos
estes anos que vem ajudando à alimentação de todo o povo desta
cidade com seu acaçá e com seu mingau.
A velhinha foi-se embora e recomeçou a fazer seu mingauzinho
com os acaçás. Quando completou sete dias, ela já nem se lembrava
mais do que tinha feito, nem do que lhe tinha dito Ifá, quando viu e
ouviu uma zoada e um bocado de soldados que vinham em sua dire-
ção com muitos gritos de satisfação, vivas e toques de tambores, pa-
rando em frente ao lugar onde ela estava vendendo.
Nisto, um deles que era o general Ogum, e que estava comandan-
do toda aquela gente vinda da guerra com muita fome, chegou junto
dela com todo o pessoal dizendo: - Minha velhinha, não morremos na
guerra, será que vamos morrer aqui com fome? - Em resposta ela
prontamente, de muito bom grado, mandou todos se sentarem e co-
meçou a servir um por um.
Terminada a refeição, Ogum que não tinha dinheiro nenhum para
pagar o almoço, pois devorara com os companheiros tudo o que foi
comer da velhinha, pontual como era, dividiu com ela de tudo o que
trazia de saques da guerra, ficando assim a vendedora de acaçás e
mingau, riquíssima, de surpresa. Esta transferência foi divulgada por
todos os lugares do mundo. (Santos,1961:107-108)
Transcrevemos a totalidade do conto não só para inúmeros ensinamentos e informações relacionadas
ilustrar a forma de narrativa da literatura que emer- aos mais diversos conteúdos. O currículo da Mini
ge da tradição comunitária, como também para sub- Oba Biyi possuía uma dinamicidade contextual,
linhar o valor da relação com o sagrado, que cons- aberta em movimento. No caso específico da Mate-
tituiu uma das fontes de adesão e participação dos mática, por exemplo, as ilustrações de conjunto se
jovens e das crianças na Mini Comunidade Oba Biyi. alimentavam da simbologia de Ogum, suas ferra-
O destino revelado e a mobilização de axé, na mentas, sua ambiência, possibilitando infinitas com-
forma de oferenda, permitem a realização do desejo binações, pois Ogum está relacionado com técnica
e a superação das dificuldades em alcançá-lo. Se, e natureza, nos seus aspectos animais, vegetais etc.
por um lado, esse aspecto fundamental dos valores Luta e desbravamento também são características
da cultura Nagô envolvia a Mini Comunidade Oba dos valores que envolveram a abordagem de Mate-
Biyi, encontrava, todavia, nos professores, a difi- mática na Mini Comunidade Oba-Biyi.
culdade imposta por um recalcamento, oriundo da Na Língua Portuguesa, exploravam-se as nar-
formação que receberam, nos cursos de formação rativas dos contos, o vocabulário, sem desprezar a
das escolas normais e/ou cursos de Pedagogia, que presença da Língua yorubá, elemento significativo
geralmente têm seus valores assentados no repertó- de identidade comunitária, presente nas cantigas,
rio etnocêntrico-evolucionista de educação. frases, contos e provérbios.
O conto gira em torno da feira, do mercado, uma Certamente, esses variados aspectos exigirão do
ambiência muito rica de conteúdos, levando à abor- professor muita sensibilidade e criatividade e com-
dagem da Geografia, Matemática, Contabilidade, petência para absorver as experiências e vivências
Ciências, História, envolvendo mercadoria, troca, que irão mobilizar as crianças, e a capacidade de
moeda, higiene, culinária, uma infinidade de refe- estabelecer a ponte com o currículo oficial que, in-
rências possibilitadas pelo tema. felizmente, tende a abortar as características exis-
Do cenário da feira, poderiam ser desdobrados tenciais próprias do universo africano-brasileiro.

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Mas a Mini Oba Biyi conseguiu promover o res- to com o gesto, do transcender do discurso
peito aos códigos da comunidade e reforçar a lin- manifesto dos mitos e ações estruturadores de
guagem sagrada norteadora da experiência identidade” (Santos,1982:14)
caracterizadamente pluricultural de educação. Imbuídos do propósito de transcender a compre-
Com o decorrer do tempo, as crianças e jovens ensão linear, equivocada, sobre a presença africana
ficaram cada vez mais orgulhosos desses valores na conjuntura nacional, e afirmar sua capacidade
comunitários, e, com a sua identidade própria de elaboração teórica e epistêmica sobre educação,
fortalecida, conseguiram enfrentar, com dignidade, é que estamos investindo, exaustivamente, em dis-
as adversidades colocadas pelo sistema oficial de sertar a partir do reconhecimento da arkhé africa-
ensino à sua alteridade. Puderam, também, afirmar, no-brasileira.
nesse cotidiano escolar, a existência de um rico Tem-se dado ênfase, fundamentalmente, neste
patrimônio civilizatório africano, base da formação trabalho, à arkhé da tradição africana, como nú-
social da nação, para além do recalcamento, do fol- cleo propulsor de continuidade dos valores
clore, do exotismo, sincretismo, miscigenação e da civilizatórios, constituintes dos vínculos de socia-
identidade de escravo. bilidade e de alianças comunitárias que permeiam,
há quatro séculos, a formação social brasileira.
3. Da Porteira pra Dentro, Em meio à luta secular de afirmação própria e
da Porteira pra Fora de adaptação-resistência, vimos que a tradição foi
capaz de fortalecer, expandir e legitimar o continuum
Aqui vale lembrar uma observação de Roger sócio-existencial, político-mítico-religioso que en-
Bastide, de que a sociedade, imersa nos valores volve os valores culturais da comunalidade africa-
colonialistas, tem dificuldade de aceitar produções no-brasileira.
teóricas e/ou epistemes capazes de expressar a ri- Nos interstícios dessa relação, instaura-se
queza do pensamento africano-brasileiro, seu siste- a dinâmica “da porteira pra dentro, da porteira
ma simbólico, estruturado por uma filosofia coe- pra fora”, expressão muito utilizada por Mãe Se-
rente de visão de mundo e do destino da humanida- nhora, a Oxum Miuwá, também Iyami a Mãe Po-
de. derosa que, em vida, na liderança da comunidade-
Para Bastide, essa sociedade colonialista tem a terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá, criou espaços de
intenção e/ou desejo de tratar o patrimônio milenar legitimação da tradição perante a sociedade oficial,
africano como folclore, espetáculo artístico, pois afirmando a diferença entre o mundo africano-bra-
sente-se ameaçada pela riqueza de perspectivas, cuja sileiro e a sociedade oficial europocêntrica
erudição manifesta uma outra filosofia. neocolonial.
O mundo acadêmico-científico, que durante sé- É importante insistirmos nisso, pois nos leva a
culos tratou a presença africana como objeto de ci- evidenciar o significado da “porteira pra dentro”,
ência, produziu deformações radicais sobre a histó- que se refere à:
ria dessa civilização, a partir de metodologias, que “(...) continuidade dinâmica e ininterrupta da
fascinadas: prática litúrgica e ritual, seus valores, lingua-
“(...) pela ‘beleza’ e ‘exotismo’ do ‘bom primi- gem, hierarquias. É o espaço e o tempo onde se
tivo’, se limitam a fotografá-lo, descrevê-lo. São dá a mobilização do axé, que garante a pereni-
compiladores, contadores de histórias, de ri- dade do mundo, da existência. (...) Da porteira
tos, de herói. Parece que não acompanham o pra fora se refere aos contatos com o mundo
andamento progressivo do acontecer contem- exterior à comunidade, para onde se irradia
porâneo. Parecem não compreender que se está suas diversas dimensões culturais, e que esta-
encerrando o ciclo das descrições, dos traços belecem uma relação dinâmica e dialética que
culturais, dos documentos justapostos. Ainda promove mudanças históricas excepcionais.
não descobriram as subjacências simbólicas, a (Luz, 1993:70)
relação do visível com o invisível, do movimen- Essa estratégia, expressa por Mãe Senhora, na

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verdade, é o resultado da convivência entre ela e Mãe tural Nagô, que sobredetermina a existência indivi-
Aninha, a Iyá Oba Biyi. Ao substituir Mãe Aninha na dual e coletiva, “da porteira pra dentro”, da comu-
liderança do Ilê Axé Opô Afonjá, Mãe Senhora dá nidade-terreiro com uma particular visão de mun-
prosseguimento às formas de atuação de sua do. A sabedoria e conhecimento de Mãe Senhora
antecessora, visando, em última instância, à não podem ser transmitidos através dos códigos e
legitimação da tradição, perante a sociedade oficial. repertórios que apelam apenas para a relação visão
Há alguns fatos interessantes que merecem des- e cérebro, exigidos pela escrita. Aqui, a sabedoria e
taque sobre Mãe Senhora e suas atuações da por- o conhecimento são vivos, dialéticos, dinâmicos,
teira pra dentro, da porteira pra fora, demonstrando diretos, interpessoais, grupais, criativos e plurais.
como ela soube atrair e ligar o terreiro e suas tradi- Talvez essas características tenham deixado
ções à sociedade oficial. Sartre impressionado, principalmente se considerar-
Em 1952, no mês de agosto, Pierre Verger havia mos que ele provém de um contexto civilizatório
chegado da África e trouxe para Mãe Senhora um neocolonial, imperial positivista, calcado nos valo-
xerê e um Edun Ará Xangô, vindos da Nigéria. res da escrita.
Quem mandou Pierre Verger trazer essas encomen- Outro episódio marcante na vida de Mãe Senho-
das foi Onã Mogbá, por ordem do Obá Adeniran ra, que corrobora sua liderança comunitária, deu-
Adeymi, Alaafin Oyó, através de uma carta que deu se quando da visita do Cônsul americano ao Ilê Axé
a Mãe Senhora o título de Iyanassô. Opô Afonjá. Naquela época, os problemas raciais
No dia 9 de agosto, no Ilê Opô Afonjá, foi feita nos EUA se acirravam, inclusive pelo regime do
a confirmação do título de Iyanassô de Mãe Senho- apartheid, que caracterizava o Estado americano.
ra, com a presença da comunidade-terreiro, repre- Pois bem, o Cônsul foi levado a uma sala, para
sentantes de outros terreiros, intelectuais, escrito- esperar a presença de Mãe Senhora, que demorava
res, jornalistas, reiniciando, desta forma, as antigas muito. O tempo passava e ela não aparecia, e o
relações da tradição entre a África e a Bahia, que Cônsul estava impaciente, até que uma pessoa da
depois foram ampliadas, por Mãe Senhora, através comunidade, meio deslumbrada com o status do
de intercâmbio permanente de mensagens e presen- Cônsul e, principalmente, por se tratar de um bran-
tes com os reis e outras personalidades africanas. co americano, ficou preocupada e foi solicitar à Mãe
(Luz, 1993:72) Senhora que não demorasse em atendê-lo.
Outro fato marcante foi o IV Colóquio Luso- Mãe Senhora ficou muito chateada com a inter-
Brasileiro realizado em 1959, em Salvador, sob a ferência da pessoa e disse-lhe que iria fazê-lo espe-
organização da Universidade Federal da Bahia. A rar o tempo que ela quisesse, pois o que o governo
confraternização desse Colóquio ocorreu no Ilê Axé dos EUA estava fazendo com os seus irmãos ne-
Opô Afonjá, quando foi servido um amalá de Xangô, gros era muito perverso e injusto.
numa grande festa pública que reuniu todos os par- Assim, o que valia, naquele território, era o po-
ticipantes. O escritor Jorge Amado, que é Obá Otun der da “porteira pra dentro”, em que o Cônsul per-
Arolu do Axé, saudou a Iyá Oxum Muiwa e a todos dia, de certa forma, seu status e tinha que se sub-
com um discurso que teve grande repercussão na meter ao poder da Iyá Oxum Muiwa que, na oca-
cidade. sião, protestou veementemente, e fez entender sua
Numa visita feita à Bahia por Sartre e Simone revolta e indignação ante o regime racista dos EUA.
de Beauvoir, Jorge Amado levou-os ao encontro de Em maio de 1965, Mãe Senhora foi homenagea-
Mãe Senhora. Posteriormente, Sartre declarou que da como “Mãe Preta do Ano”, no Rio de Janeiro,
foram poucas as vezes em que encontrou alguém por meio de uma bela cerimônia no estádio do
com tão grande sabedoria de vida, como Mãe Se- Maracanã. Na ocasião da homenagem, Mãe Senhora
nhora. agradeceu, dizendo:
O que impressionou Sartre foi a sabedoria de “É com grande alegria que recebo esta home-
vida, que se caracteriza, neste contexto africano- nagem, e em nome de todos os Orixás, aben-
brasileiro, pela arkhé, a ancoragem da herança cul- çôo meus filhos brancos e negros de todo

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Brasil, e faço votos para que no dia das mães potência à dinâmica secular dos nossos ancestrais -
de 1965, tenhamos todos paz e bem-estar neste da “porteira pra dentro, da porteira pra fora”.
Brasil que é a melhor terra do mundo.” (San-
tos, 1988:17)
4. Descolonização e Educação
É necessário também sublinhar que Mãe Senho-
ra, além de ter descendência direta de príncipes e Gostaríamos de dar relevo ao Programa
reis, era neta, bisneta e trineta de Iyalorixás. E Mes- Descolonização e Educação, que se desdobra a
tre Didi, seu descendente, a descreve de forma fa- partir da preservação, continuidade e expansão
bulosa. dessa arkhé africana, e cujo legado ancestral tem
“Os Orixás africanos tiveram, em Mãe Senho- possibilitado a criação de estratégias político-
ra, a melhor forma de serem cultuados no Bra- institucionais, a exemplo da dinâmica “da por-
sil como na África, pois ela era zeladora da teira pra dentro, da porteira pra fora”.
tradição e dos mitos africanos, a grande Dama Quando adotamos o conceito de
da Nação Ketu. A história dos terreiros Nagô é descolonização, nos inspiramos um pouco na
a história de sua família.” (Santos, 1988:24) perspectiva de Frantz Fanon, segundo o qual:
Mestre Didi, neto espiritual de Mãe Aninha e “(...) a descolonização jamais passa desper-
filho de sangue de Mãe Senhora, também herda des- cebida porque atinge o ser, modifica funda-
sas grandes Iyás, nossas Mães Ancestrais, essa pro-
mentalmente o ser, transforma espectadores
funda sabedoria que o alimenta e o torna capaz de
sobrecarregados de inessencialidade em ato-
dar continuidade, atualizar, divulgar e afirmar a di-
res privilegiados, colhidos de modo quase
nâmica “da porteira pra dentro, da porteira pra
grandioso pela roda viva da história. Intro-
fora”, expandindo, taticamente, fronteiras.
duz no ser um ritmo próprio, transmitido por
Como herdeiro desse patrimônio milenar africa-
no, da arkhé civilizatória africana no Brasil, Mes- homens novos, uma linguagem, uma nova
tre Didi dá prosseguimento às estratégias de afir- humanidade. A descolonização é, em verda-
mação do legado de seus ancestrais, abrindo fron- de, criação de homens novos. Há portanto
teiras e legitimando-as, no âmbito da sociedade ofi- na descolonização a exigência de um reexame
cial brasileira. integral da situação colonial.” (Fanon,
Isso tem-se refletido, particularmente, nas insti- 1968:21)
tuições idealizadas e fundadas por Mestre Didi, a O Programa Descolonização e Educação é de-
saber, a Sociedade de Estudos da Cultura Negra no senvolvido no âmbito do Departamento de Edu-
Brasil – SECNEB, instituição que tem vínculos com cação I. A equipe também é composta pela pro-
a Organização das Nações Unidas – ONU, de onde fessora Gilca Antônia dos Santos Assis e alunos
emergiu a primeira experiência de educação dos Programas de Iniciação Científica do PIBIC-
pluricultural no Brasil, a Mini Comunidade Oba CNPQ e PICIN- UNEB, a saber: Jackeline Pin-
Biyi; o Instituto Nacional da Tradição Afro-Brasi- to do Amor Divino, Léa Austrelina Ferreira,
leira - o INTECAB, do qual Mestre Didi é presi- Márcio Nery de Almeida, Ana Rita dos Santos
dente, além de liderar a realização de congressos, Barbosa e Rosemary Rufina dos Santos.
conferências, seminários e reuniões que envolvem Nele estão abrigadas atividades de ensino,
representações mais expressivas das comunidades pesquisa e extensão, alimentadas pelo complexo
tradicionais em nível estadual, nacional e internaci- sistema simbólico africano, que levou vários sé-
onal, buscando e promovendo a afirmação da iden- culos para se estruturar e investir-se de um po-
tidade própria africano-brasileira, baseada nos va- der criativo, e onde foram radicados costumes,
lores da tradição religiosa. hierarquias, literatura, arte e mitologia, dinami-
Em 14 de dezembro de 1999, o Mestre Didi re- camente reelaborados nas Américas.
cebeu, da Universidade Federal da Bahia, o título Quando concebemos o Programa Descoloni-
de Doutor Honoris Causa, dando, mais uma vez, zação e Educação, foi pelo ânimo da nossa inser-

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ção comunitária no Ilê Asipá, comunidade- sistemas explicativos necessários à educação no
terreiro que cultua nossos ancestrais masculinos, Brasil, estão desmoralizadas, saturadas. Mudam os
Egunguns. donos dos códigos, a educação está se
Através dessa inserção comunitária, pudemos descolonizando. Surgem instituições e gerações de
aprofundar uma reflexão erudita em nível individu- educadores que vêem elaborando novas perspecti-
al e grupal, impulsionando significativas ativida- vas teórico-epistemológicas comprometidas com a
des, a exemplo do Núcleo de Educação Pluricultural nação.
- NEP, que envolveu a característica multicampi da “Depois de tantos genocídios, e lutas, o exer-
UNEB, no período de 1984 a 1985. A concepção e cício decidido da descolonização e a afirma-
implementação inicial foram realizadas pela equi-
ção das alteridades como ‘sujeitos sociais’
pe da Coordenação de Educação Superior - CES,
numa coexistência dialética e democrática nos
do Centro de Estudos das Populações Afro-Indo
parece ser o melhor caminho para nossas na-
Americanas - CEPAIA, cuja sede fica no Largo do
ções substancialmente pluralistas”. (Santos,
Carmo, Pelourinho e que integrou, no período de
1996 a 1998, a Secretaria de Educação. Também 1982:31)
merecem destaque inúmeras publicações, seminá- O Programa Descolonização e Educação vem se
rios, conferências, intercâmbios e consultorias ins- dedicando à elaboração e produção de conhecimentos
piradas pelo legado civilizatório africano. sobre educação que contemplem as alteridades
Descolonização e Educação é um binômio que civilizatórias próprias da formação social brasileira;
tende a restituir, aos afro-descendentes, a compre- engendrem uma revisão nos conceitos, categorias e
ensão e dignidade de seu sistema de pensamento, “discursos-verdades” de bases etnocêntricas que
de sua alteridade própria, civilização, elaborações sobredeterminam a compreensão da educação brasi-
intelectuais e estratégias políticas positivas de ação. leira; desestabilizem os obstáculos teórico-
A educação no Brasil vive as amarras do con- epistemológicos que denegam a diversidade étnico-
texto colonial, que se caracteriza pela fragmenta- cultural que caracteriza o cotidiano da escola brasilei-
ção e folclorização. A ação descolonizadora é ra; indiquem novas percepções e abordagens sobre as
impostergável, pois procura, de um lado, revitalizar sociedades contemporâneas nas Américas, destacan-
a identidade e conteúdos próprios das do a pluralidade cultural que se origina da reposição e
comunalidades africano-brasileiras; de outro, per- expansão dos valores e visão de mundo africano e da
ceber suas especificidades estruturadoras, resistên- continuidade das tradições aborígenes.
cias, processo histórico de lutas, variáveis e vari- Procuraremos destacar alguns resultados pro-
antes, diversidades de modelos e situações missores que vimos alcançando, através de inicia-
comunais.
tivas significativas para a educação na Bahia.
Para entender o Brasil e sua riqueza
pluricultural, é necessário enfocar o papel das dis- 4.1. Educação, comunicação e processos
tintas presenças civilizatórias como fontes de iden- civilizatórios: formas de transmissão
tidade, de matrizes de sociabilidade, modos e estra- do saber em diferentes contextos
tégias de ocupação de espaços e territórios, afirma-
pluriculturais
ção existencial, e emersão de condutas face a um
outro diverso. Na nossa experiência, adquirida na convivência
O propósito descolonizador reflete também as contínua e intermitente com a comunalidade africano-
atitudes éticas, pessoais e profissionais do educa- brasileira, especificamente no que se refere aos
dor, em relação à sua comunicação e conduta com problemas relativos à educação, temos tido
o outro. oportunidade de produzir conhecimentos pertinentes
As ideologias paternalistas e conservadoras pro- à presença civilizatória africana nas Américas, a
duzidas por aqueles tidos como únicos represen- exemplo da nossa tese de doutorado em Educação,
tantes e detentores do código cultural e dos grandes ABEBE: A Criação de Novos Valores na Educação.

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Isso nos leva a propor um desdobramento e forma, por sua vez, exige uma política educacional
ampliação dos aspectos que vimos abordando em do corpo, aprisionando-o ao sentido da visão, com
pesquisas anteriores. Trata-se de pesquisa de caráter recalque dos demais sentidos, e utiliza-se de uma
etnográfico, que visa destacar as diferenças de postura e uma arquitetura que tendem à imobilidade.
linguagens entre universos civilizatórios distintos e É interessante ressaltar que essa característica
suas conseqüências, no âmbito da educação. da educação do Estado tem nos encaminhado à re-
Estamos considerando o significado das formas alização de uma arqueologia dos valores inerentes
de comunicação como dimensão básica na à formação do professor, na Bahia. Partimos da
constituição dos diferentes processos civilizatórios aproximação com o momento histórico de funda-
e, portanto, das distintas culturas que desde aí se ção da primeira Escola Normal da Bahia, que sin-
desdobram. tomaticamente surge em 1836, um ano após a
Outro aspecto que vem nos mobilizando, nessa insurgência Malê, um dos mais importantes levan-
pesquisa, são os significados dos conteúdos homólogos tes africanos das Américas.
às formas de comunicação constituintes de uma A intenção da ideologia do Estado, na época,
determinada civilização, sua visão de mundo, que, era a formação do “cidadão livre”, voltado para
instituída socialmente, sobredetermina a estruturação atender às novas expectativas do mercado capita-
das identidades. Nesse ponto, há todo um esforço em lista. Mas a maioria da população de descendência
caracterizar as relações que subjazem aos meios de africana vivia subjugada aos valores escravistas e
comunicação e à visão de mundo. Sendo o Brasil um insurgiam-se, freqüentemente, de diversas formas
país cuja nação se constitui por três continuuns ao recalque à sua alteridade própria. A Escola Nor-
civilizatórios, desde aí se desdobram diferentes mal assumia, nesse contexto, o papel de formar
culturas, com sistemas de comunicação distintos. “normalistas”, que colaborariam na educação dos
Destaca-se, porém, um elemento de fundamental afro-descendentes, docilizando-os, adestrando-os,
importância, marco diferenciador entre eles: as que através da pedagogia do embranquecimento, para
adotam a comunicação direta, interdinâmica, pessoal os novos valores coloniais que surgiam, calcados
ou intergrupal, e as que adotam a troca de informações na ideologia da cidadania.
mediatizadas, impessoal, indireta, individual e de Os documentos que estamos conseguindo anali-
massa. sar, no arquivo público, cada vez mais ratificam
Todo um esforço está sendo feito no sentido de essa perspectiva da Escola Normal, como uma das
caracterizar o sistema de comunicação da tradição alavancas da política de embranquecimento do Es-
milenar africano-brasileira, sublinhando as tado colonial. Estamos procurando apresentar uma
diferenças existentes em relação à civilização outra leitura original e inédita sobre a presença da
européia, no Brasil, especificamente no que se refere Escola Normal na história da educação da
à constituição do Estado e sua política educacional. Bahia .
Já identificamos diferentes formas de educação A política educacional unidimensional, totalitá-
pertinentes a cada contexto cultural, em sua ria e etnocêntrica, contraria, profundamente, as con-
dinâmica sócio-histórica, na medida em que cepções de educação de outras civilizações. O que
consideramos o modo como as comunalidades já identificamos é que o recalcamento de ou-tras
constituintes da nação se empenham em manter possibilidades de concepções civilizatórias sobre
as tradições estruturadoras de sua própria educação ocasiona muitos transtornos para a po-
identidade. pulação, a exemplo da rejeição à escola, pela mai-
Simultaneamente a essas análises, nas oria de crianças ou jovens que emergem de contex-
comunidades, estamos problematizando a questão tos étnico-culturais distintos, e o baixo índice de
da educação emergente do Estado, que elabora um aproveitamento escolar. Essas ocorrências dão
sistema de ensino caracterizadamente etnocêntrico, oportunidade ao surgimento de teorias
baseado, essencialmente, na forma de comunicação evolucionistas sobre repetência, fracasso escolar e
escrita, impessoal, individual e de massa. Essa evasão.

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Sentindo-se rejeitados em sua identidade Jackeline Pinto do Amor Divino.
própria, já que o sistema de ensino oficial
procura destacar os valores do processo civili- 4.2. Odemodé Egbe Asipá -
za-tório europeu, recalcando, deformando e até Juventude da Sociedade Asipá
mes-mo degradando sua própria alteridade. Es- Trata-se de uma atividade de extensão, cuja coor-
ses estudantes, por sua vez, reagem de modos denação pedagógica está sob a responsabilidade do
diversos. Infelizmente, eles ainda não consegui- Programa Descolonização e Educação. A iniciativa
ram harmonizar sua busca por maiores oportu- do projeto é da comunidade-terreiro Ilê Asipá, que
nidades de mobilidade social com os valores de cultua os ancestrais masculinos Egungun. A lideran-
sua tradi-ção cultural própria, realçando a gra- ça da comunidade é exercida por Deóscoredes
vidade dos problemas educacionais da formação Maximiliano dos Santos, Mestre Didi, Alapini Supre-
social brasileira. mo Sacerdote do Culto Egungun, também responsá-
Outra vertente desta pesquisa dedica-se à vel pelo projeto. A coordenação geral do Odemodé é
adaptação, para a linguagem infanto-juvenil, dos de Juana Elbein dos Santos.
contos míticos milenares nagô, a exemplo do O Ilê Asipá é uma associação sem fins lucrativos e
autocoreográfico Ajaká: Iniciação para a Liber- se caracteriza pelas atividades religiosas e culturais.
dade, de Deóscoredes Maximiliano dos Santos, O objetivo primordial da comunidade é a preservação
Juana Elbein dos Santos e Orlando Sena. Ajaká e expansão dos valores africano-brasileiros como está
é um mito iniciático milenar, e foi adaptado para expresso na ata de fundação da comunidade, em 02 de
o teatro, em 1982, pela Sociedade de Estudos da dezembro de 1980:
Cultura Negra no Brasil – SECNEB. Nossa pes-
quisa vem se dedicando a adaptar os textos para “com absoluto respeito à liturgia deixada como
a linguagem infanto- juvenil, procurando recriar legado pelos antepassados da família Asipá, de
os elementos dramáticos milenares, através de Marcos Teodoro Pimentel, Arcênio Ferreira dos
uma linguagem estética que promova a circula- Santos, Miguel Santana e tantos outros impor-
ção do universo simbólico africano. tantes representantes das mais dignas e respon-
Como matriz de pesquisa do Programa sáveis correntes da cultura afro-brasileira con-
Descolonização e Educação, o projeto Educa- correndo para a divulgação conseqüente e res-
ção, Comunicação e Processos Civilizatórios ponsável dos valores éticos que fizeram da
mobilizou alguns alunos do curso de graduação ancestralidade seu patrimônio.”
do Departamento de Educação I, visando esti-
O projeto reúne 20 jovens entre 16 e 21 anos.
mulá-los à iniciação científica e formar uma ge-
Esses jovens, que participam da vida comunitá-
ração de educadores que dêem continuidade e
ria, estavam encontrando dificuldades para atu-
colaborem na consolidação do Programa. Con-
ar no mercado de trabalho, fortalecer-se sócio-
seguimos gerar cinco subprojetos, a saber: Novo
economicamente e contribuir para reforçar os
Horizonte de Volta ao Começo, desenvol- vido
valores comunitários.
por Márcio Nery de Almeida; Ancestrali- dade
Eles escolheram, para sua formação no pro-
e Educação: A Experiência do Odemodé Egbé jeto, a área de Informática e Manutenção de
Asipá, sob a responsabilidade de Léa Austrelina Microcomputadores, área que atualmente vem
Ferreira Santos; Educação Comunal: A Expe- oferecendo melhores perspectivas no mercado de
riência dos Cadernos Pedagógicos do Ilê trabalho.
Aiyê, por Rosemary Rufina dos Santos; Cul- A proposta do Ilê Asipá é oportunizar, aos jovens
tura Africano-Brasileira e Educação no contexto da comunidade, a formação na área de Informática e
da Sociedade Informatizada, de Ana Rita de Manutenção de Computadores. Essa seria a jus-
Cássia Santos Barbosa; Da Educação Positivista tificativa mais simplória, se não estivéssemos
para uma Educação Pluricultural, autoria de lidando com uma comunidade que prima pela

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continuidade dos valores milenares africanos. cação. Aspectos como a ancestralidade africana e
Há todo um esforço para que as metodologias, sua influência no cotidiano curricular, a ética da
materiais didáticos, temporalidades e linguagens, coexistência a partir das relações entre a língua
levem em consideração a concepção de mundo, sis- Portuguesa e Yorubá, e a aprendizagem das novas
tema de pensamento e as formas de aprendizagem tecnologias como estratégia de preservar e expan-
da comunidade. Buscamos caminhos educacionais dir o legado civilizatório e comunal, são alguns itens
que permitissem a promoção da auto-percepção e explorados nos relatórios sobre o Odemodé.
auto-estima individual e coletiva dos jovens, aju- Nossa equipe de pesquisadores de Iniciação Ci-
dando-os a integrar-se na sociedade nacional, não entífica - IC - elaborou um trabalho intitulado Mo-
apenas porque adquiriram bagagem informativa e saico Pluricultural da Educação na Bahia, em que
técnica mas, principalmente, pela conscientização e procura expressar um pouco das suas inquietações
mobilização dos valores comunitários. e proposições, a partir da experiência pedagógica
A singularidade do Odemodé reside em acolher, do Odemodé Egbé Asipá. Acreditando nas contri-
legitimamente, uma rede de relações comunitárias, buições que são apresentadas nesse Mosaico, é que
cujo modo de sociabilidade se caracteriza por afir- deixamos para a nossa equipe de pesquisadores de
mar uma identidade cultural significativa do IC o detalhamento sobre as características básicas
patrimônio civilizatório africano-brasileiro. Os do Projeto .
modos e códigos de comunicação predominantes no Gostaríamos ainda de destacar que o Odemodé
Odemodé transcendem a escrita e primam pela co- finalizou suas atividades teórico-práticas. Como
municação direta, interpessoal e dinâmica. desdobramento, estamos implantando o Núcleo de
Todo o projeto pedagógico foi alicerçado na abor- Informática Communitates Mundi – COMUM, com
dagem de educação pluricultural, em que a arkhé recursos aprovados pelo Centro de Apoio ao De-
africano-brasileira enriquece as dinâmicas. Nosso senvolvimento Científico e Tecnológico - CADCT,
objetivo foi criar um grupo que se organizasse em com o intuito de desenvolver produções sobre a pre-
uma sociedade cooperativa para serviços de insta- sença africana nas Américas e estabelecer e ampli-
lação e monitoração de microcomputadores, além ar as alianças comunais.
de procurarmos expandir os conhecimentos adqui- O Núcleo acolherá atividades de implantação
ridos para outros membros da comunidade, de bancos de dados, acervo de imagens e textos,
objetivando o apoio a serviços de comunicação inter- estímulo às atividades de pesquisa, apoio a iniciati-
comunitária e com a sociedade global. vas de intercâmbio comunitário, editoração, even-
Outra singularidade do Odemodé é que ele tos, a exemplo do Fórum Direitos do Homem e Di-
reúne jovens de outras comunidades-terreiros, além versidade Humana: Ética da Coexistência Desa-
do Asipá. São eles: Oxumaré e Ilê Opô Afonjá. fio Contemporâneo, e o Fórum Virtual, ambos in-
Realizamos parcerias com o Núcleo de Tecnologias tegrando o calendário das Nações Unidas no ano
Inteligentes-NETI do Departamento de Educação 2000.
I, da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, e Aqui vale lembrar a projeção de uma ética do
com o Centro Federal de Educação Tecnológica da futuro, feita por Mãe Aninha, a Iyá Oba-Biyi, que
Bahia - CEFET. Atualmente, estamos iniciando uma hoje integra a corrente mítica das nossas Mães An-
parceria com o Núcleo de Estudos Canadenses-NEC cestrais, com relação a seus descendentes do Ilê Axé
da UNEB, visando à aproximação e/ou Opô Afonjá envolvidos no Odemodé. Dizia ela:
familiarização dos jovens com a língua inglesa que “Quero ver nossas crianças no dia de amanhã de
sobredetermina os códigos de comunicação da área anel nos dedos, mas aos pés de Xangô”.
técnica da Informática. Nossos jovens Odemodé receberam o
Todos os desdobramentos sobre a dinâmica “anel”, que representa, metaforicamente, o certi-
pluricultural do Odemodé são abordados com den- ficado das instituições da sociedade oficial, o
sidade nos relatórios dos pesquisadores de Inicia- reco-nhecimento do Estado, mas continuam
ção Científica do Programa Descolonização e Edu- profundamente vinculados ao pai mítico an-

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cestral e dinástico que é Xangô. ronamento do contexto colonial, em que o intelec-
Não podemos deixar de destacar, mais uma vez, tual, ainda portador desses valores, não mais con-
o significado de Xangô, que comentamos no segue coexistir na ex-colônia (Fanon, 1968:91). Fica
início deste trabalho através do oriki, que há cinco esse alerta para os que não se libertaram das amar-
gerações alimenta as comunalidades africano-bra- ras da educação colonial.
sileiras, a saber: continuidade ininterrupta de vida, E, para fortalecer esse alerta, aproveitamos a
expansão de linhagens e dos reinos em todas as di- oportunidade, neste trabalho, para projetar a com-
reções, ancestralidade, poder genitor mas-culino, preensão de determinados obstáculos teórico-
imagem coletiva dos ancestrais, fertilidade, capaci- epistemológicos do currículo da escola brasileira,
dade de espalhar filhos para os quatro cantos do que consideramos um dos grandes desafios para os
mundo, proteção dos filhos e justiça. educadores que vivem a utopia do mundo
A perspectiva da “porteira pra dentro e da por- globalizado.
teira pra fora” está presente nessa projeção milenar Na virada do milênio, já está mais do que na
e mítica, e o Odemodé Egbé Asipá caracteriza e hora de acolhermos as características originais da
realiza o desejo dos nossos ancestrais, de promover nossa identidade nacional, que também recebeu a
a expansão desse patrimônio civilizatório. influência milenar africana na constituição da nos-
sa história.
Conclusão A passagem transatlântica, expressa no oriki que
apresentamos no início deste trabalho, caracteriza,
Nossa intenção foi homenagear o centenário de com muita propriedade, as conformações e expres-
Mãe Senhora, destacando o seu legado e sua capa- sões da identidade profunda dos que respiram os
cidade de influenciar uma ética do futuro na educa- valores da comunalidade africano-brasileira e seus
ção dos seus descendentes. desdobramentos, que estabelecem,
Assim, destacamos a arkhé africano-brasileira, contemporaneamente, dimensões estratégicas singu-
a dimensão dos modos e formas de comunicação lares, permitindo o direito à alteridade própria de
característicos dessa civilização, bem como sua toda uma população .
continuidade e processo histórico, especificamente Por fim, gostaríamos de reverenciar os nos-
na Bahia. sos ancestrais que, nas suas trajetórias de vida,
Ilustramos e conceituamos as linguagens cons- lutaram com afinco para assegurar o direito às con-
tituintes do processo dinâmico das comunalidades dições existenciais necessárias, para que as gera-
tradicionais, procurando inserir, na abordagem do ções sucessoras expandissem seu legado
processo educativo, a maneira como se educa e se civilizatório.
institui o corpo, como linguagem receptora e
transmissora de mensagens, como também a com-
binação e síntese dos sentidos, no contexto do sis- “Mo juba
tema de comunicação direta. Dentro dessa perspec- Gbogbo asse tinu ara
tiva, apresentamos algumas iniciativas que vêm im- Saúdo e venero
pulsionando e consolidando nossa produção aca- A todos os asese, nossas origens,
dêmico-científica e suas ressonâncias na socieda- Contidos em nosso corpo comunitário.
de. As origens e sua permanente recriação permi-
Como pudemos constatar, a dimensão ética e tem o existir da comunidade.
estética da educação brasileira não deveria estar Bibi bibi lo bi wa
assentada nos 500 anos que reificam e/ou legiti- Nascimento do nascimento que nos traz o exis-
mam a temporalidade existencial judaico-cristã, que
tir.”
ergue o leitmotiv do colonialismo e neocolonialismo
durante esses séculos.
Frantz Fanon já advertia sobre o desmo- (Santos e Santos, 1993:40)

60 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 45-62, jan./junho, 2000


NOTAS
NOTAS

1 2
Arkhé: alguns autores têm utilizado a noção de Poder mítico-sagrado, elemento constituinte do
arkhé para interpretar o discurso da comunalidade sistema dinâmico da tradição, conteúdo fundamen-
africano-brasileira, inserindo-a no âmbito do dis- tal para a vida das comunidades-terreiros, que
curso teórico da sociedade oficial. Trata-se, por- presentifica a linguagem abstrato-conceitual e
tanto, de um recurso da tradução da episteme afri- cognitivo-emocional da nossa ancestralidade, atu-
cana, que utilizamos procurando emitir idéias que alizando num aqui e agora, nossas origens africa-
contextualizem, no discurso acadêmico, o universo nas. Expressa a força que assegura a existência e é
epistemológico africano no Brasil. Princípios inau- transmitido por meios materiais simbólicos, que
gurais que imprimem sentido e força, direção e pre- podem ser adquiridos por introjeção ou contato com
sença à linguagem. Princípio-começo-origem, e seres humanos ou objetos.
princípio-poder-comando. Não se trata, apenas, de 3
Ethos é o discurso significante, o enunciado da
referir-se à antigüidade e/ou anterioridade, mas o
linguagem, a configuração estética, o estilo ou modo
princípio inaugural, constitutivo, recriador de toda
de vida. Eidos confere poderes míticos
experiência. É equivocado referir-se à arkhé como
presentificados, simbolizados e absorvidos no con-
volta ao passado; ela inclui, também, o significado
senso da comunidade, as elaborações profundas das
de futuro.
necessidades existenciais.

1900-2000 Centenário de Mãe Senhora a Oxum Miuwá


Foto do acervo de Deóscoredes Maximiliano dos Santos

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 45-62, jan./junho, 2000 61


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961
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_________. Pierre Verger e os Resíduos Coloniais - o Outro Fragmentado. Revista Religião e Sociedade,
n.º 8, 1982, p.11-14.

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MOSAICO PLURICULTURAL
DA EDUCAÇÃO NA BAHIA
Equipe de alunos:
Léa Austrelina Ferreira Santos
Márcio Nery de Almeida
Jackeline Pinto Amor Divino
Rosemary Rufina dos Santos
Ana Rita de Cássia Santos Barbosa
Orientadora:
Narcimária C. P. Luz

Apresentação * sileira através do ensino da língua portuguesa e


Yorubá. Outro destaque significativo é apresenta-
Reunimos neste trabalho algumas reflexões que do por Rosemary Rufina dos Santos que procura
se originaram de pesquisas desenvolvidas no âmbi- caracterizar a dimensão da herança quilombola dos
to do Programa Descolonização e Educação, in- Cadernos Pedagógicos do Ilê Aiyê. Por fim, temos
crementadas, principalmente, por uma equipe de uma breve análise realizada por Ana Rita Santos
pesquisadores de Iniciação Científica que vem se Barbosa sobre a relação interdinâmica possível en-
preocupando em identificar na Bahia, comunalida- tre o patrimônio pluricultural brasileiro e o univer-
des tradicionais influenciadas pelos valores civili- so das novas tecnologias.
zatórios africano-brasileiro e aborígene, conside- Todas as contribuições que conseguimos reunir
rando suas elaborações e iniciativas no tocante à neste mosaico estão em perfeita sintonia com os
educação. objetivos da Iniciação Científica, conforme expec-
Várias questões sobre educação pluricultural são tativas do Conselho Nacional de Desenvolvimento
abordadas constituindo um rico mosaico de possi- Científico e Tecnológico - CNPq que propõe às
bilidades pedagógicas, cujo repertório ético-estéti- Universidades que estabeleçam espaços para esti-
co indica caminhos político-criativos, originais e de mular o:
grande relevância para as comunalidades envolvi- “despertar da vocação científica e incentivar
das. talentos potenciais entre estudantes de gradu-
O primeiro aspecto, abordado por Léa Austrelina ação, mediante sua participação em projetos
Ferreira Santos, trata da importância da de pesquisa, introduzindo o jovem universitá-
ancestralidade na estruturação das identidades pró- rio no domínio do método científico;( ...) des-
prias da nossa população infanto-juvenil no con- pertar no bolsista uma nova mentalidade em
texto de uma comunalidade africano-brasileira. O relação à pesquisa; (...) estimular o desenvol-
segundo, apresentado por Márcio Nery de Almeida, vimento do pensar cientificamente e da
destaca como o cotidiano escolar pode ser enrique- criatividade decorrentes das condições criadas
cido pelo repertório cultural das comunalidades de pelo confronto direto com problemas de pes-
Sussuarana Velha, Sussuarana Nova e Novo Hori- quisa”. 1
zonte. A contribuição de Jackeline Amor Divino Este mosaico tem por objetivo abrir um canal
propõe uma ética da coexistência para a escola bra- de interlocução com as diversas instâncias
acadêmicas desta Universidade e afirmar
institucionalmente o quanto é interessante e
∗ Trabalho produzido pela equipe de Iniciação Ci- necessário para o cotidiano dos docentes, discentes
entífica do Programa Descolonização e Educação. e comunalidades do entorno da UNEB o estímulo

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e/ou o apoio às atividades de iniciação científica no das populações tradicionais, mas o respeito aos
âmbito dos cursos de graduação. antepassados e ao legado desse patrimônio
milenar, transportados da África para o Brasil.
1. Ancestralidade africano-brasilei- O que torna a civilização africano-brasileira
ra: continuidade e renovação singular, entre os demais processos civilizatóri-
os, é o tratamento dado às formas e modos de
O mosaico que vem se delineando em torno das sociabilidade e comunicação através dos víncu-
comemorações pelos 500 anos do Brasil, nos re- los ancestrais e reelaborações que estimulam a
mete a uma reflexão sobre as origens, o caminhar e produção de estratégias comunitárias. Historica-
o futuro dos processos socioculturais nos quais es- mente, o legado de valores herdados pela civili-
tamos inseridos e que delinearam a nossa identida- zação africano-brasileira permitiu a sua conti-
de nacional . nuidade transatlântica, garantindo a sua expan-
Um dos aspectos que consideramos mais signi- são mesmo nos momentos históricos cujas con-
ficativos para a compreensão da dinâmica da soci- junturas demonstravam maior dificuldade para
edade brasileira são as questões que envolvem a a sua afirmação. Esses princípios e valores se
coexistência entre as vertentes civilizatórias aborí- expressam através de diversas formas a exem-
gene, africana e européia, que se constituem como plo: a linguagem litúrgica, sistema de pensamen-
verdadeiros pontos de ancoragem dos valores e prin- to, organização política, elaborações espaço-tem-
cípios presentes na nossa nação influenciando de- porais, estilo e formas de comunicação-expres-
cisivamente as nossas vidas. É necessário que os são de valores ético-míticos e estéticos, culiná-
educadores brasileiros aprendam a identificar a ri- ria baseada no sagrado, que caracterizam não
queza desses valores para terem condições de pro- apenas o continuum africano-brasileiro, mas tam-
mover uma educação que dê dignidade à nossa po- bém sua forma de recriação no Brasil, especial-
pulação infanto-juvenil. mente na Bahia, o que levou ao desenvolvimento
É importante ressaltarmos que as vertentes de códigos originais que caracterizam a identi-
civilizatórias aborígene e africana, passados 500 dade própria das pessoas de descendência afri-
anos, não foram acolhidas pelo projeto “democrá- cana.
tico” do Estado oficial eminentemente A religião é o que consubstancia a continui-
europocêntrico. O que notamos na sociedade ofici- dade de valores. “Desde a África a religião ocu-
al brasileira é o desejo de estabelecer a predomi- pa um lugar de irradiação de valores que
nância dos valores e visão de mundo pertencentes sedimentam a coesão e a harmonia social ,
à cultura euroamericana, que não legitima a pre- abrangendo, portanto as relações do homem
sença das vertentes civilizatórias aborígene e afri- com o mundo natural” (Luz, 1995:35)
cana. A existência das populações de origem afri-
Procuramos refletir sobre as possibilidades de cana sempre esteve assentada na dinâmica
coexistência entre os processos civilizatórios pre- comunal que se revigora nas relações entre vida
sentes no Brasil, de modo especial o processo e morte, ou seja, um membro da comunidade
civilizatório africano-brasileiro, suas origens, con- morre e outro nasce, caracterizando um ciclo vital
tinuidade, expansão e suas estratégias contempo- necessário à continuidade da tradição.
râneas de afirmação. O integrante da comunidade, quando morre,
Os princípios vividos pelas comunalidades afri- passa desse mundo, o aiyê, para o além, o órun
cano-brasileiras têm como sustentáculo valores que integrando a corrente mítica da comunidade. Essa
garantem não somente a continuidade desse pro- dinâmica é revestida de especial respeito princi-
cesso civilizatório, como também a sua expansão. palmente se tratando de um ancião, que pelo seu
Dentre esses valores destacamos a ancestralidade, tempo de vida representa sabedoria e experiên-
entendida, nesse contexto, não só como uma forma cia.
de manutenção da memória individual e coletiva Então, a existência dessas populações é pautada

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numa dinâmica em que o ciclo vital permite a con- tiva Pedagógica do Odemodé Egbé Asipá – Ju-
tinuidade, renovação e expansão, pois aquele que ventude da Sociedade Asipá, pudemos perceber a
morre, muitas vezes, é cultuado como um ancestral complexidade da relação estabelecida entre
e toda sua experiência e sabedoria são interpreta- ancestralidade e educação.
das pela comunidade como uma maneira de propi- O Odemodé nos deu a esperança de que uma
ciar a continuidade de seus valores, de seu modo de nova geração de educadores deverá se formar com
vida, de sua visão de mundo. um novo olhar que considere a nossa pluralidade
Quando os primeiros africanos chegaram aqui, cultural e suas múltiplas possibilidades.
eles já trouxeram consigo toda uma maneira de vi- O projeto Odemodé foi uma iniciativa da Socie-
ver e elaborar o mundo, toda uma estrutura sócio- dade Religiosa e Cultural Ilê Asipá, fundada por
política sofisticada que foram sendo incorporadas Deóscoredes Maximiliano dos Santos – Mestre Didi,
através da referência ancestral, ou seja, foram apren- Alapini, sacerdote supremo do culto aos ancestrais
didas de seus pais, de seus avós, de seus antepassa- masculinos. Essa sociedade procura zelar e manter
dos, como uma linha da continuidade de valores e a continuidade da tradição africano-brasileira com
princípios que são capazes de estruturar identida- absoluto respeito à liturgia deixada como legado
des individuais e grupais. A ancestralidade tem pa- pelos antepassados da família Asipá. A família
pel fundamental para a civilização africano-brasi- Asipá constitui um dos principais pontos de anco-
leira, pois através desse legado perpetuam-se a cul- ragem, o princípio-começo-origem da ancestralidade
tura e as formas de resistência e insurgência frente africana nas Américas. Assim definiu Marco Au-
às políticas escravistas coloniais. rélio Luz em entrevista:
Salvador situa-se como um grande pólo de irra- “A família Asipá marca o reconhecimento da
diação dessa ancestralidade, até mesmo por causa continuidade transatlântica dos valores da re-
do seu processo histórico. O comércio escravista ligião africana no Brasil, tendo consequente-
foi muito atuante aqui, o que ocasionou a vinda de mente importância especial no que se refere a
muitos líderes religiosos da África provenientes das ancestralidade africana na Bahia, pois dentre
guerras no Reino de Daomé e Ketu. Esses líderes, as lideranças religiosas que vieram para Sal-
segundo Luz, significavam a força de uma cidade e vador com o comércio escravista veio também
a sua proteção também. Esse fato proporcionou a uma pessoa da família Asipá trazendo consigo
Salvador e à Bahia a irradiação dos matizes da iden- elementos da tradição, concorrendo assim para
tidade cultural ligadas à alma ancestral africana, a reposição dos valores culturais e da ances-
permitindo a todo tempo, o processo contínuo e inin- tralidade.”
terrupto capaz de fortalecer as identidades própri- A comunidade-terreiro Ilê Asipá, imbuída dos
as dos afro-descendentes. objetivos de capacitar profissionalmente os jovens
Em entrevista que realizamos com Marco Au- ligados a ela, criou o projeto Odemodé Egbe Asipá
rélio Luz ele comentou:“O significado de ances- – Juventude da Sociedade Asipá. Esse projeto teve
tralidade na cultura africano-brasileira é funda- como objetivo a capacitação dos jovens na área de
mental pois se não houvesse os ancestrais não Informática e Manutenção de Microcomputadores,
poderíamos valorizar a cultura que temos. fortalecendo, desse modo, a rede de relações comu-
A ancestralidade, a nosso ver, contribui de forma nitárias onde pulsa a sociabilidade que caracteriza
significativa para a expansão e continuidade desse a identidade dos jovens. Através da capacitação
processo civilizatório, pois para sobreviver a séculos profissional procurou fortalecer sócio-economica-
de tormentos, de racismo, de genocídios, de mente os jovens de modo que eles ganhassem deter-
colonialismo e escravidão é necessário que a cultura minada estrutura política e técnica para inserção
seja fortemente auto-afirmada como uma civilização no mercado de trabalho da sociedade oficial e prin-
cujo sistema filosófico e tecnológico é magnífico. cipalmente para que eles pudessem concorrer para
Em nossa pesquisa de iniciação científica reforçar os valores comunitários.
intitulada Ancestralidade e Educação: A Perspec- A experiência do projeto Odemodé Egbe Asipá-

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 63-76, jan./junho, 2000 65


Juventude da Sociedade Asipá nos trouxe uma ver- outro aspecto que merece destaque, pois foi essa
dadeira gama de possibilidades de educação sensibilidade, emoção e a afetividade que também
pluricultural, pois apelou tanto para os aspectos da contribuíram para o enriquecimento da dinâmica
cultura africana, sua linguagem, como também para curricular e as relações grupais que se estruturaram
aspectos da cultura urbano-industrial, no caso es- durante os meses do Odemodé .
pecífico das novas tecnologias. A metodologia da proposta pedagógica impli-
Essa pesquisa representa uma ação desenvolvi- cou em dois módulos distintos, mas
da no sentido de apontar para uma nova interdependentes: o Fortalecimento da Identidade
epistemologia educacional que está presente em tra- Cultural e a Capacitação Profissional.
balhos como os de Deóscoredes Maximiliano dos Dentro do bloco “Fortalecimento da Identidade
Santos, Juana Elbein dos Santos, Marco Aurélio Cultural” destacam-se as aulas de História da Áfri-
Luz e Narcimária Correia do Patrocínio Luz, que ca, ministradas pelo professor Marco Aurélio Luz.
trazem uma maneira distinta de ver a sociedade e a Essas aulas foram muito ricas. Como conteúdo cur-
diversidade cultural presente no Brasil, principal- ricular esteve presente a História do Reino de Oyó
mente através de uma abordagem teórico- e Ketu, no século XIX, as etnias que deram conti-
metodológica que rompe com as ideologias que de- nuidade ao processo de instalação e expansão das
formam e recalcam a cultura africana e deturpam o comunidades institucionalizadas, conhecidas como
legado dos valores desse significativo segmento terreiros, valores, linguagem e tradição.
populacional. Nesse momento de realização das aulas emer-
A metodologia utilizada para a realização da giu a riqueza das formas de comunicação que sur-
nossa pesquisa buscou englobar a dimensão do “vi- gem da relação entre ancestralidade e educação, que
vido-concebido”, na perspectiva “desde dentro para são os contos míticos.
desde fora” (Luz N., 1998:159-162) permitindo a “(...) os contos presentes na liturgia africano-
nossa participação em experiências com a comuni- brasileira representam a nossa ancestralidade,
dade envolvida. Procuramos obter, através dessa a continuidade e os vínculos comunitários e
convivência com a comunidade Asipá, um repertó- também são uma forma de diálogo entre a
rio dos elementos simbólicos próprios e seus des- comunalidade e a sociedade oficial. Sua origi-
dobramentos e relações com os códigos nalidade está no modo pelo qual expressam
euroamericanos da sociedade oficial. formas específicas de transmissão de valores
Procuramos realizar uma verdadeira revisão de da tradição, sendo de cunho pedagógico, em
conceitos que caracterizam-se como obstáculos te- que o desenvolvimento ocorre numa situação
órico-epistemológicos de caráter evolucionista- do aqui e agora, referida a uma experiência da
etnocêntrico. vida, capaz de gerar uma sabedoria acumula-
Depois de realizada a coleta de dados, observa- da. Nesse contexto a comunicação ocorre de
ções e entrevistas pudemos perceber que a comuni- maneira direta, pessoal ou intergrupal, dinâ-
dade-terreiro tem um significado muito especial na mica, acompanhada por cânticos, culinária,
vida dos jovens. Lá eles se sentem, segundo seus liturgia, danças e dramatizações.” (Luz N.,
relatos, em uma família, uma irmandade. 1998:65)
Quando perguntados sobre a escola oficial e a O elemento estético está muito presente nessa
inserção dos seus valores culturais no cotidiano da forma de comunicação principalmente na consti-
mesma as opiniões foram conclusivas: “Se eu fa- tuição das identidades desses jovens, a música, a
lasse a minha religião lá eu não seria muito acei- dança, a dramatização são elementos da liturgia que
to”. O projeto Odemodé deu-lhes motivação para dão magnitude a transmissão do saber. Os contos
continuarem cultivando a sua cultura e fortalece- míticos, como forma de comunicação surgem des-
rem os seus laços comunitários. sa relação também como um elemento motriz do
A sensibilidade da equipe do projeto para as currículo do Odemodé.
questões que envolvem a sociabilidade dos jovens é Nas aulas de História foi trabalhado um conto

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de Mestre Didi chamado “A Fuga do Tio Ajaí”. 2. Novo Horizonte, de volta ao co-
Esse texto, produzido para a primeira experiência meço: significado do repertório ético-
de Educação Pluricultural do Brasil Mini Comuni- estético da música na constituição do
dade Oba Biyi, se transformou em uma ópera, e cotidiano escolar
hoje se constitui num marco da dramaturgia africa-
no-brasileira. O nosso trabalho teve por objetivo identificar e
As reflexões do professor Marco Aurélio sobre afirmar aspectos da arkhé civilizatória africana e
o conto mítico de Mestre Didi revelam: aborígene presentes na população dos bairros de
“(...) a Fuga do Tio Ajayi possui três caracte- Sussuarana Velha, Sussuarana Nova e Novo Hori-
rísticas. A primeira refere-se à vida no enge- zonte, localidades pertencentes ao Subdistrito de
nho, no tempo da escravidão. A segunda se ini- Pirajá, as quais reunidas, segundo dados do IBGE/
cia quando um Tio da Costa de nome Ajayi 1996, possuem cerca de 130.000 habitantes origi-
convoca seus irmãos para fazerem as obriga- nários de áreas rurais do interior da Bahia e Sergipe
ções a um orixá adorado por eles. A terceira e cujo deslocamento para a capital se deu em virtu-
começa quando um escravo da casa grande, de da busca por trabalho tendo em vista a obtenção
mandado pelo senhor, espiona o que está se de melhores condições de vida.
passando e dá o serviço do local onde estão, Como características de sua identidade étnico-
os negros, reunidos. Segue-se a saga da perse- cultural, os integrantes dessa comunalidade trazem
guição do grupo pelos soldados enviados pelo consigo tentativas de reproduzir, nesse novo espa-
comissário, a mando do senhor de engenho.” ço territorial, um universo semelhante ao que vivi-
(Luz, 1993:62) am anteriormente, sem a preocupação de subme-
A partir da dramatização o professor Marco ter-se a modelos urbano-industriais. Há nessa
Aurélio Luz explorou uma diversidade de aspectos comunalidade um aguçado espírito de confiança
que abordavam a História, a Geografia, questões mútua e solidariedade, formas simbólicas e poéti-
ético-políticas, proporcionado vários desdobra- cas de expressar a realidade e os acontecimentos da
mentos. Essa História além de fortalecer as identi- vida cotidiana, conhecimentos baseados nas pró-
dades culturais dão dignidade e afirmação para os prias experiências e na dinâmica de valores presen-
nossos jovens . te também no repertório lítero-musical, onde se des-
O Odemodé Egbe Asipá foi, portanto, um mar- tacam pequenos contos e cantigas, os quais consti-
co na realização de proposta pluricultural de edu- tuem toda uma pedagogia iniciática pela qual os
cação A nossa pesquisa conseguiu perceber um conhecimentos e valores são passados de uma ge-
pouco da magnitude das relações entre ancestrali- ração para outra com o intuito de preservar as ca-
dade e educação, de seu significado e capacidade racterísticas da comunidade.
de fortalecer as identidades culturais, na transmis- As cantigas de roda, tais como Pai Francisco,
são de valores de um patrimônio milenar para gera- Peixe Vivo, Vapor de Cachoeira dentre outras can-
ções sucessoras, garantindo a sua continuidade, seu tigas, assim como outros repertórios musicais com
poder de perpetuação civilizatório, de onde ema- os quais as crianças da comunalidade têm contato,
nam as formas e modos de comunicação tão origi- emergem de forma repentina durante as aulas con-
nais e sublimes para inspirar políticas curriculares seguindo proporcionar um colorido especial às au-
que realmente contemplem alteridades próprias das las do Ciclo de Estudos Básicos da Escola Munici-
nossas crianças, jovens e adultos. pal Novo Horizonte.
O nosso desejo agora é que essa perspectiva cri- Escolhemos para pesquisa uma classe com
ada pelo Odemodé possa render frutos nas ações 14 alunos, na faixa etária de 6 a 9 anos, oriun-
dos educadores em nosso contexto baiano e brasi- dos dos bairros Sussuarana Velha, Sussuarana
leiro, para que nossos jovens possam sempre afir- Nova e Novo Horizonte. A escolha dessas cri-
mar sua existência, reconhecer, admirar e cultuar anças se deve ao fato de pertencerem a uma
as suas origens. população cujas características são marcadas

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 63-76, jan./junho, 2000 67


pela arkhé africano-brasileira e aborígene. ram-se as mesmas estratégias de recalcamento. No
Como professores e moradores do bairro, resol- entanto, os africanos resistiram e recriaram no con-
vemos realizar algumas intervenções de cunho di- texto adverso colonial modos e formas de comuni-
dático-pedagógico explorando o repertório musical cação que estabeleciam a coexistência com os ele-
desses territórios, com o objetivo de mostrar que é mentos da cultura européia, com a finalidade de
possível utilizar conteúdos próprios das vivências preservar seus princípios e dinamizar e expandir
dos alunos na educação formal, partindo de uma com sabedoria seu processo civilizatório.
perspectiva pluricultural que respeite e legitime Na música de base africana identificamos reper-
nossa diversidade étnico-cultural e estabeleça rela- tórios seculares ricos e criativos gerados aqui no
ções significativas com o saber institucionalizado Brasil tanto no cativeiro como no seio das
pelo Estado e os saberes elaborados dentro da pró- comunalidades quilombolas, a exemplo do samba-
pria comunidade. de-roda, capoeira, bumba meu boi, folia de reis,
No entanto, para que essas intervenções fossem maracatu, repertório litúrgico que proporcionava o
eficazes, foi necessário enfrentar, além do recalque re-ligare comunal e expansão dos valores
ideológico imposto aos conteúdos civilizatórios afri- civilizatórios.
cano e aborígene, obstáculos gerados pelos progra- As cantorias, típicas do nordeste, se caracteri-
mas propostos pelas Secretarias de Educação e zam por narrativas de tradição oral de grande arte
institucionalizados no interior da escola. poética que:
Nos estudos teóricos que realizamos aprende- “(...) em sua luta pela ocupação do espaço só-
mos que, ao longo da história, a música foi utiliza- cio cultural próprios, teve de enfrentar as ten-
da pelos mais diferentes povos e civilizações com tativas de cooptação e imposição normativas,
diversas funções. Entre os orientais, hindus, ára- por parte de outros gêneros litero musicais
bes, civilizações africanas e povos aborígenes do apoiados pelos discursos de poder de Estado
Pacífico, a música mobiliza o acervo de conheci- impositivo, da literatura oficial, assentados no
mentos dos povos. Desde os tempos mais remotos sistema escolar europocêntrico” . (Luz,
a música simboliza e traduz a dinâmica do univer- 1995:590)
so, transmitindo conhecimentos milenares e permi- O samba, por sua vez, permaneceu durante muito
tempo no embrião das comunidades-terreiro no
tindo a coesão grupal, re-ligare, e como instrumen-
morro, resistindo arduamente ao recalque ideológi-
to de afirmação cultural.
co das políticas ascéticas e puritanas do Estado ofi-
Na Grécia Antiga o que se considerava como
cial. Muitos dos grandes compositores tiveram que
“boa música” era privilégio de poucos e era essen-
se manter no anonimato, usando pseudônimos ou
cial para a formação do caráter do indivíduo. Para
tendo outras pessoas que assinassem suas obras. O
ser músico era necessário estar dentro dos padrões
samba trazia a ginga, a malandragem, a expressão
e normas ascéticas do mundo grego e, para produ-
corporal, o entrosamento das emoções, a quebra das
zi-la, era necessário dominar com competência os
regras e padrões totalitários da sociedade. No en-
códigos ético-estéticos dessa sociedade.
tanto: “... a linguagem e a política de corpo ca-
Herdamos, na formação social brasileira, essa
racterístico da cultura negra não podem se limi-
característica grega de tratamento da música. Du- tar a esses enquadramentos”. (Luz, 1995:604). E
rante o processo colonial-escravista procurou-se mais:
silenciar os conteúdos civilizatórios aborígenes e “(...) a música negra tornou-se um verdadeiro
africano-brasileiro. ponto de resistência à política do corpo
Os povos indígenas foram os primeiros a terem ascético, do racismo, da eugenia, da mecâni-
seu patrimônio civilizatório recalcado pelo coloni- ca, da medicina social, etc. Do corpo domesti-
zador. O processo de catequese dos Jesuítas tinha o cado, do ‘viver para trabalhar’ em oposição
intuito de destruir os repertórios culturais e toda a ao corpo constituído dos valores ‘trabalho para
arkhé aborígene, imprimindo valores alheios a sua viver’.” (Luz, 1995:608)
cultura. Com as nações de origem africana tenta- Marco Aurélio Luz esclarece que o samba cai

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no esquecimento e no abandono, ao ser condenado estão em constante contato, é tratado como se não
pelos verdadeiros sambistas: existisse.
“(...) quando ele passa da boca da gente da Estilos como o “brega”, o “sertanejo”, o “pago-
roda para o disco da vitrola (...) ao mesmo tem- de” (ultimamente descaracterizado, mas que tem
po que recalcava a originalidade da música suas origens nas matrizes civilizatórias africana e
negra os meios da indústria cultural, esse pro- aborígene) são consideradas como “inadequadas”
cesso de difundi-la nos meios radiofônicos e para o ambiente escolar. Lembramos que esses es-
eletrofônicos abriu espaços inimagináveis de tilos emergem de continuuns civilizatórios
projeção de linguagem musical negra no mun- milenares, os quais a nossa escola, embasada por
do.” (Luz, 1995:607) valores euroamericanos, denega.
Nos nossos estudos identificamos que as músi- O panoptismo da arquitetura escolar imprime
cas de origem africano-brasileira e aborígene retra- um cotidiano do encarceramento, do enrijecimento
tam acontecimentos da vida cotidiana, envolvem o do corpo dos alunos cujo objetivo é controlar a tudo
imaginário coletivo e atraem as crianças que as uti- e a todos, tentar recalcar, silenciar:
lizam amplamente em suas brincadeiras e jogos, “Paradoxalmente, no sistema de ensino brasi-
sendo de fundamental importância para a leiro, a música não tem sido tão valorizada,
estruturação das suas identidades. Além de possuir com exceção das escolas que valorizam o pro-
todo um significado próprio para as crianças das cesso de recreação e de festividades. A grande
comunidades de origem afro-ameríndia, as canti- diversidade de músicas existentes no território
gas as estimulam desde cedo a aprender o respeito nacional ainda não foi devidamente estudado
aos mais velhos, aos valores inerentes à existência pelos etnomusicólogos, a ponto de facilitar o
da comunidade. seu entendimento por aqueles que se interes-
No âmbito educacional oficial o ensino da mú- sam em usá-las na educação musical.” (Oli-
sica se restringiu ora a aprendizagem do canto (como veira, 1993:26)
se a capacidade de cantar não fosse algo inerente O educador deve ter consciência de que a músi-
ao ser humano), ora a instrumentos ou a voz, nun- ca em si possui formas simbólicas, cujos elementos
ca como expressão ético-estética pluricultural, mas estruturais são capazes de expressarem as
como modo de reforçar valores de referência alteridades próprias da população que freqüenta
europocêntrica. nossas escolas. Por essa razão o educador deve de-
Os únicos apelos para a gestualidade infantil que senvolver atitude de aceitação, compreensão e co-
o ensino da música na escola realiza, ocorrem quan- nhecimento daquilo que é trazido pelo seu aluno e,
do há coreografias durante as festividades cívicas, no que diz respeito à música, deve possibilitar a
ao som da banda ou fanfarra, com o mesmo objeti- introdução de diferentes repertórios. Temos que res-
vo das paradas militares. As canções utilizadas ser- saltar a importância dessa adesão ao repertório
vem para o exercício do “comando”, para o ades- musical originário das comunalidades tradicionais
tramento, para formar a fila, ir ao banheiro, lavar com as quais nossos alunos convivem. Para isso
as mãos, pegar a merenda, visando adaptar o corpo devemos utilizar a escuta sensível permitindo que
desde a mais tenra idade aos valores e normas da conteúdos próprios das vivências comunais emerjam
sociedade urbano-industrial capitalista visando à no contexto escolar, consolidando laços de respeito
formação do sujeito produtor-consumidor no con- e confiança, porque só assim nossas crianças e jo-
texto da ordem para o “progresso”. As canções es- vens compartilharão aquilo que lhes é tão precioso:
colhidas pela escola por exemplo estão voltadas para sua auto-estima.
comemorações das datas e eventos do calendário Toda criança, de um modo geral, gosta de can-
escolar . tar, e a utilização da música como meio de aprendi-
A música na escola é caracterizada pela zagem motivará a mesma à apreciação dos conteú-
dicotomia do popular/erudito e o repertório dos a serem abordados, pois esses conteúdos deve-
comunal, com os quais nossas crianças e jovens rão acolher também o conhecimento comum infanto-

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juvenil. Através da música pode ser criada uma do a emersão de outras referências para além da
atmosfera favorável para aquilo que se deseja temporalidade colonial dos quinhentos anos.
ensinar, devendo a mesma estar adequada ao As políticas que vêm sendo adotadas pela edu-
conteúdo proposto e ao nível de compreensão da cação brasileira tentam anular o que é diferente,
criança. diverso e plural. Em meio às comemorações fala-
Com Novo Horizonte - de volta ao começo, a mos de “portugueses”, “caravelas”, “descobrimen-
partir de intervenções de cunho didático-peda- to” e esquecemos da existência das civilizações
gógico, a nossa proposta permitiu que os con- aborígenes e africanas que sofreram o recalque à
teúdos próprios das vivências comunais emergis- sua alteridade própria durante todo esse processo
sem e fossem utilizados no contexto escolar. colonial.
Acreditamos que é possível utilizar os saberes O sistema educacional do Estado brasileiro con-
pertencentes ao universo das comunalidades den- tinua reproduzindo idéias falsas e alienantes de um
tro da educação considerada formal, respeitan- Brasil “descoberto”. Insiste em colocar índios nus
do e legitimando a diversidade étnico-cultural e e felizes, convivendo em harmonia com portugue-
redefinindo assim o papel da escola, consideran- ses amáveis e dóceis, tendo como pano de fundo
do-a como um espaço onde haja respeito e de- suas caravelas. Há também um cenário da história
senvolvimento das reais características de nos- oficial que, de um lado, não revela a absurda,
sas crianças e jovens. prepotente e violenta educação catequética dos je-
O profissional de educação, principalmente o suítas, e, de outro, ilustra uma Princesa Isabel que
da educação infantil e o de séries iniciais, deve num gesto de extrema “bondade” liberta todos os
enriquecer suas aulas com repertórios musicais “escravos” assinando a Lei Áurea.
próprios da identidade cultural da comunidade A escola é uma das instituições onde circulam
em que seus alunos estão inseridos, estabelecen- ideais e valores euroamericanos e positivistas. A
do relações significativas entre os conteúdos pro- história dos chamados “vencedores” é contada e
postos pelo currículo escolar e os conteúdos e legitimada, enquanto a história dos “vencidos” é
valores trazidos pelos mesmos a partir de suas censurada e denegada. A estrutura e o funciona-
vivências comunais. Estamos propondo um coti- mento do cotidiano escolar: arquitetura, linguagem,
diano curricular visto a partir de uma perspecti- temporalidade, sua ética e estética caracterizam-se
va pluricultural de educação que legitima a arkhé pela homogeneização, perspectiva unívoca, totali-
da comunalidade onde a escola está implantada tária e colonial, não contemplando a diversidade
a dinâmica dos seus valores e a contribuição dos existencial de civilizações milenares, a exemplo da
continuuns civilizatórios aborígine e africano africana e da aborígene que têm seus descendentes
característicos do território baiano. no interior das escolas. Instaura-se a ideologia do
embranquecimento “(...) que rejeita completamen-
te a criança negro-brasileira, lançando esse sig-
3. A Ética da Coexistência:
nificativo segmento populacional à margem da
A Língua Yorubá e Portuguesa - cidadania e no mercado de trabalho desvaloriza-
duas referências dialéticas no coti- do” (Luz N., 1989:15)
diano escolar O supremacismo da civilização greco-romana e
judaico-cristã subjaz às práticas pedagógicas e aos
É importante desmistificar a idéia de “descobri- meios de comunicação. Em meio a todo esse pro-
mento”, tão intensamente divulgada pelos meios de cesso de denegação sócio-cultural surge uma inda-
comunicação e no cotidiano escolar, sobretudo a
gação: onde estão inseridos as civilizações aborí-
institucionalização em toda nossa história de ideais
genes e africanas na história da nação? E na educa-
neocoloniais e positivistas.
Quinhentos anos de exclusão! É o que devemos ção, o que circula sobre a existência dessas civili-
comemorar? Aqui utilizaremos como indicadores es- zações?
tratégias que consideram a pluralidade cultural visan- Neste contexto do Brasil oficial e seus 500 anos,

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identificamos caminhos que ficaram censurados contos míticos, a poesia, a música percussiva, a lín-
no decorrer da nossa história. Através da pes- gua yorubá, a culinária, a fauna e flora, a dramaturgia
quisa Desconstruir e Reconstruir: Uma Dinâ- represen- tam o repertório interdinâmico do patrimônio
mica que Transcende a Educação Positivista ancestral africano-brasileiro.
para Uma Educação Pluricultural, identifica- Nosso trabalho enfocou a dinâmica das aulas
mos outros caminhos que nos levam à diversida-
de Português onde a professora Nadja Bittencourt
de de culturas, línguas, formas de comunicação,
acolheu com muita criatividade o conteúdo do
que emanam de distintas comunalidades que ex-
patrimônio civilizatório africano. Através da in-
pandem contemporaneamente seus valores
civilizatórios fortalecidos por arkhés que lhes dão serção da língua yorubana nas aulas, foi possí-
legitimidade e inspiram outras formas de conce- vel promover uma ética da coexistência com os
ber a educação. valores predominantes na sociedade oficial rati-
“(...) Podemos propor um que fazer pedagó- ficados pela língua portuguesa.
gico que proporcione uma educação em que Dessa relação singular, extraíram-se aspectos do
a sistematização do conhecimento nasça da conhecimento yorubá e seus desdobramentos na lin-
experiência pluricultural da nossa socieda- guagem oral e escrita considerando: ortografia, as-
de e permaneça em continuidade com ela. pectos gramaticais, dinâmica discursiva e textualidade.
Onde o aluno use a sua experiência pessoal Tudo isso visando atender à qualidade da produção
contemplada, enriquecida com o que apren- lingüística contextualizada a partir do território étni-
de. Assim a escola passará a ser a síntese do co-cultural dos jovens.
patrimônio coletivo pluricultural”. (Luz N.,
O resultado dessa dinâmica foi a produção de vá-
1989:51)
rias biografias relativas à identidade própria de cada
Tivemos oportunidade durante a nossa pes-
quisa de participar do projeto Odemodé Egbé jovem onde eles exploravam seu cotidiano comunitá-
Asipá-Juventude da Sociedade Asipá da Comu- rio e aspectos da sua identidade cultural. Outra pro-
nidade Religiosa e Cultural Ilê Asipá. O Ilê Asipá dução foi o dicionário yorubá-português que retomou
é uma sociedade sem fins lucrativos fundada a memória da língua yorubana na Bahia, principal-
pelo Alapini Deóscoredes Maximili-ano dos mente do século XIX, que ainda resiste em solo brasi-
Santos - Mestre Didi. Esse projeto trabalhou com leiro.
20 jovens de 16 a 21 anos, estabelecendo um Aprendemos com o Odemodé que não podemos
currículo que envolvia módu-los com conteú- mais sustentar, na educação, as políticas de denegação
dos de Língua Portuguesa e Yo-rubá, à diversidade civilizatória que constituem a identida-
Informática, Matemática, História da África de da nação. Temos que identificar outros caminhos
Ocidental e Manutenção de Computadores. Esse para o cotidiano das nossas escolas, a exemplo do
projeto permitiu que realizássemos comparações que significou a experiência do Odemodé.
entre as formas de transmissão dos saberes em A educação precisa transcender ao confina-mento
diferentes contextos pluriculturais consideran- dos corpos infanto-juvenis prostados na cadeira, no
do a possibilidade de convivência entre a Língua
papel, na sala de aula, submetidos ao etnocentrismo
Portuguesa e a Língua Yorubá. De um lado,
da Língua Portuguesa e suas derivações. É necessá-
temos a escola de base euroamericana, onde a
rio romper com a ideologia do recalque, estabelecen-
produção do conhecimento se alicerça na Lín-
gua Portuguesa ratificada pela leitura e escrita, do um currículo pluricultural que satisfaça as nossas
que satisfazem e limitam o fazer pedagógico res- características pluriculturais .
trito à relação olho e cérebro. De outro, a comu- Propomos uma ética da coexistência para a edu-
nidade-terreiro Ilê Asipá, que adota uma edu- cação, a partir do exemplo Odemodé Egbé Asipá e
cação pluricultural contemplando diversos códi- toda a riqueza do patrimônio civilizatório africano-
gos e formas de comunicação onde a dança, os brasileiro que o fomentou.

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4. EDUCAÇÃO COMUNAL: públicas do bairro da Liberdade e nas escolas mantidas
As Experiências dos Cadernos Pe- pela Associação Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê.
dagógicos do Ilê Aiyê A proposta de Educação Pluricultural é defini-
da em entrevista, concedida pelo coordenador dos
Procuramos analisar as propostas dos Cader- Cadernos Pedagógicos do Ilê Aiyê, Jônatas Con-
nos Pedagógicos do Ilê Aiyê e a arkhé civiliza- ceição, como: “uma educação preocupada em con-
tória que os inspira e os orienta, possibilitan- templar os diversos segmentos étnicos de uma
do uma rica compreensão da história dessa maneira que permita a formação de cidadãos e
singular comunalidade afro-descendente de gran- cidadãs com identidade cultural, consciente do seu
de expressão nas Américas-Bahia. papel social”.
A proposta dos Cadernos procura uma forma De acordo com os aspectos destacados por An-
de educar voltada para a afirmação dos valores tônio Carlos Vovô, presidente e fundador da Asso-
culturais africanos. Os Cadernos abordam a ciação Cultural em entrevista concedida à nossa
temática da história dessa civilização, visando a pesquisa, o “objetivo do Ilê Aiyê não é fazer um
superação do pensamento pedagógico apartheid diferente, mas de brigar por espaço,
etnocêntrico-colonial, o incentivo à auto-estima igualdade e principalmente pela afirmação dos
das crianças e jovens que estudam nas escolas valores culturais africanos, aqui na Bahia”.
públicas do entorno do Bloco Carnavalesco Ilê Na arkhé quilombola dos Cadernos Pedagógi-
Aiyê, situado no bairro da Liberdade-Curuzú. cos do Ilê Aiyê podemos identificar propostas que
Na relação da ancestralidade e dos vínculos visam afirmar os valores africanos em “Terras de
comunais, identificamos em Hilda dos Santos, a Palmares”, como se referem, politicamente, Vovô e
Mãe Hilda de Jitolú, Ialorixá da comunidade-ter- Jônatas ao bairro da Liberdade-Curuzú.
reiro Ilê Axé Jitolú, fundadora da Associação Ilê O Ilê, antes do surgimento dos Cadernos, já re-
Ayê, o exemplo da expansão dos valores africa- alizava publicações com as músicas do carnaval.
nos no bairro da Liberdade-Curuzú. Após a criação do projeto de extensão pedagógica,
O nome Ilê Aiyê em yorubá, para os integran- através dos Cadernos de Educação, passaram a
tes dessa Associação Cultural, significa Casa de adotar uma abordagem mais sócio-política, dando
Negro, nome escolhido por seus fundadores que ênfase a temas que tratavam sobre a presença da
consideraram adequado para usar dentro do Axé. civilização africana nas Américas e no mundo, sua
Mãe Hilda não concordou com o nome inicial repercussão nos vários campos do conhecimento
PODER NEGRO. Segundo Mãe Hilda em humano.
entrevista:“iria abalar a sociedade baiana. E Os Cadernos estão ancorados na história dos
realmente abalou!” quilombos e, como recriação dos instrumentos de
O objetivo do nome inicial do Ilê era o de se luta quilombola, se tornam singulares pelas estra-
aproximar do movimento negro americano, os tégias de afirmação e legitimação dos valores afri-
Black Powers, nos Estados Unidos. Em entre- canos.
vista para a nossa pesquisa Antônio Carlos Vovô O bairro da Liberdade chamava-se Estrada da
informou que: “O objetivo era que o negro che- Boiada e, depois da batalha de Pirajá, começou a
gasse ao poder e à administração, de modo a ser chamado de Estrada da Liberdade, hoje, bairro
acabar com o preconceito racial na cidade de da Liberdade, ou, como afirma Vovô presidente fun-
Salvador”. dador do Ilê, quilombo da “era moderna”. O
Nos anos 80, Mãe Hilda amplia a ação social da quilombo do bairro da Liberdade é definido pelas
sua comunidade, criando a Escola Mãe Hilda, que suas lideranças como aquele que resiste à política
funciona no próprio espaço do terreiro, permitindo, genocida e de embranquecimento do Estado Mo-
em 1995, o surgimento de uma proposta de educação derno neocolonial.
pluricultural que fomentou o Projeto de Extensão Pe- Diante das adversidades do mundo escravagista
dagógica do Ilê Aiyê, cuja atuação se dá nas escolas colonial os africanos não conseguiam retornar a

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África seu território de origem, não tinham como da Alegria; 7) Revolta Búzios-200 anos; 8) Terra
expressar com liberdade seus valores e modos de Palmares.
de existência face aos valores coloniais, que es- É importante destacar aqui um pouco da abor-
tabeleciam o recalque ao seu patrimônio dagem contida em cada Caderno que estudamos para
civilizatório. Os quilombos representavam, para realizar a nossa pesquisa. A seguir passaremos a
os africanos, a possibilidade de recriação da comentar aspectos de cada Caderno:
África nas Américas. Nos quilombos, as formas, 1. Resistência Negra: aborda de forma geral as
os modos de comunicação próprios que se esta- principais organizações negras brasileiras, do sé-
beleciam, proporcionavam dinâmicas de socia- culo XVI até a fundação do Ilê Aiyê, em 1974. O
bilidade singulares que fizeram dessas organiza- primeiro enfoque são os núcleos de resistência reli-
ções político-territoriais um grande desafio para giosa no Brasil. Durante quatro séculos recebemos
o mundo colonial. O Ilê Aiyê herda esse legado um grande contigente de africanos, dentre eles os
quilombola e procura atualizá-lo afirmando a sudaneses que eram os yorubanos, originários da
presença da civilização africana na Bahia. Nigéria. Os povos africanos trazidos para o Brasil
Dessa forma, os Cadernos se insurgem de for- entre o século XVI a XIX agrupavam-se em diver-
ma magnífica às abordagens de educação que cir- sas organizações negras, sendo todas de resistência
culam no Brasil, apresentando conteúdos e valo- à escravidão, em busca de melhores condições de
res que dão dignidade aos afro-descendentes, pro- vida.
movendo sua auto-estima e recuperando aspec-
2. Zumbi 300 Anos: apresenta uma espécie de re-
tos negligenciados pela historiografia oficial.
sultado parcial da implantação do projeto de edu-
Em entrevista, Jônatas, o coordenador dos Ca- cação do Ilê nas escolas públicas. Podemos encon-
dernos, destacou: trar nesse Caderno expressões plásticas feitas pe-
“(...) os temas abordados são selecionados las crianças, a exemplo do desenho de Zumbi feito
primeiramente para o carnaval que trazem pelos alunos como uma representação simbólica do
toda a discussão e polêmica da questão ra- que foi Zumbi dos Palmares na perspectiva dos afro-
cial na educação baiana. As pessoas que aju- descendentes.
dam na elaboração dos Cadernos são pes-
soas conscientes do seu papel nessa socie- 3. Civilização Bantu: aborda a contribuição do
povo Bantu para o mundo e para o Brasil; esses
dade, e geralmente os colaboradores são
povos trouxeram muitos saberes científicos, como
artistas, educadores e antropólogos. Além
o da utilização do ferro e outros. Esses saberes aju-
disso, é importante destacar que os Cader-
daram na constituição da nação brasileira.
nos são elaborados a partir da pesquisa re-
A metalurgia foi uma importante contribuição
alizada para o carnaval de cada ano, sendo
que a África deu ao mundo: “a história prova que
que neste material pesquisado encontram-
os povos africanos possuíam um estágio de desen-
se as ilustrações do artista plástico J. Cu-
volvimento bem evoluído no que diz respeito às
nha, como forma de caracterizar e dar mais técnicas industriais”. 2
significado à produção”.
Os Cadernos do Ilê Aiyê, até o presente momen- 4. A Força das Raízes: trata da história do
to, constituem-se de oito volumes, tendo uma rela- surgimento da Associação Cultural Ilê Aiyê, sua
ção interdependente entre os mesmos. arkhé e seus objetivos.
Cada volume aborda temas diversificados, com- 5. Pérolas Negras: representa uma síntese dos ca-
pondo uma coletânea com textos de diversos auto- minhos percorridos pela Associação até os seus 23
res. São eles: 1) Resistência Negra; 2) Civilização anos. Sem deixar de afirmar os seus princípios:
Bantu; 3) Zumbi 300 Anos; 4) As Forças das “afirmação de uma cidadania negra com auto-es-
Raízes; 5) Pérolas Negras do Saber; 6) Ilê, Estação tima, reafirmando a herança ancestral que

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cultiva as raízes africanas e seus processos de historiografia do currículo oficial, que contem-
reconstrução no Brasil e, especialmente, na pla uma única civilização de modelo etnocêntrico-
Bahia”.3 neocolonial que só concebe a história da nossa
Esse Caderno faz uma rápida síntese dos repre- nação através da ideologia do recalque.
sentantes da luta de afirmação dos valores cultu- Um dos maiores objetivos dos Cadernos é que
rais africanos, tais como Antônio Carlos Vovô, essas propostas sejam inseridas no currículo ofici-
Abdias do Nascimento, Benedita da Silva e outros. al. Para isso acontecer Vovô afirmou em entrevista
6. Ilê, Estação da Alegria: relata um pouco da his- que: “por sermos maioria é preciso fazermos um
tória da África, fazendo uma abordagem da civili- trabalho de base na família, na escola, na comu-
zação Guiné Conakry, contando a história dessa nidade e na sociedade para expandirmos esse gran-
de e valioso projeto de extensão, pois nós traba-
civilização antes da invasão do colonizador e a sua
lhamos com os Cadernos como uma forma de re-
luta de resistência pela liberdade.
forço a auto-estima”.
7. Revolta de Búzios: destaca as falas dos envolvi- Como aluna do curso de Pedagogia e pesqui-
dos na revolta, trazendo um repertório fidedigno sadora no campo da Pluralidade Cultural e Edu-
dos acontecimentos e símbolos que representam a cação no Programa Descolonização e Educação,
liberdade do povo negro. estou sendo mediadora entre a riqueza das pro-
8. Terras de Palmares. Este Caderno é o mais re- postas dos Cadernos e a necessidade de tê-las
cente. Foi lançado no dia 17 de abril de 2000. Abor-
inseridas no currículo de Pedagogia.
da a história da organização quilombola de Palmares
Nesse processo percebo que o currículo do
e o marco referencial que esta representou.
curso de Pedagogia é profundamente
O que percebemos é que os Cadernos Pedagógi- europocêntrico e se difere radicalmente da linha
cos do Ilê a cada lançamento são esperados como de pesquisa que venho atuando.
se fosse o primeiro, com muita curiosidade, desejo Portanto, percebo que a Universidade tem que
de pesquisa, com muita expectativa pelas crianças proporcionar maior abertura para essas novas
e jovens, pelos professores, pelos organizadores e formas de abordagens educacionais geradas no
pela comunidade em geral. âmbito das diversas comunalidades da Bahia,
Os Cadernos Pedagógicos do Ilê Aiyê represen- visando criar entre os seus discentes condições
tam um dos instrumentos de luta mais importantes de crescimento acadêmico-científico iguais a esse
pela afirmação dos valores africano-brasileiros, de pesquisa que eu tive o privilégio de vivenciar.
além de trazerem uma grande contribuição para essa Depois dessa experiência minha concepção de
nova geração de afro-descendentes, pois neles en- educação mudou muito, e para melhor!
contram indicadores de valores e princípios que dão
possibilidades de mudança e formas de
enfrentamento às adversidades estabelecidas pela 5. Pluralidade cultural
sociedade racista e preconceituosa. e novas tecnologias
Os Cadernos possuem uma riqueza
transdisciplinar, porque trabalham com diversas Nosso trabalho dedicou-se a analisar, no âm-
áreas do conhecimento, com distintas perspectivas bito do Odemodé Egbé Asipá - Juventude da So-
para a constituição de uma nova abordagem em ciedade Asipá, como os jovens aprenderam a li-
educação além de privilegiar a expressão artística dar com as novas tecnologias.
infantil. O projeto, como vimos anteriormente, foi pro-
Esses Cadernos estiveram vinculados às es- movido pela Sociedade Religiosa e Cultural Ilê
colas estaduais durante um período de dois anos, Asipá, fundada com o objetivo de zelar pela li-
mas o Estado retirou as propostas das suas es- turgia deixada como legado pelos antepassados
colas porque a forma de abordagem histórica que da família Asipá, originária da cidade do Ketu,
o Ilê faz circular é radicalmente diferente da Nigéria.

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Paralelo à aprendizagem técnica do uso do com- vieram forçados pra trabalhar aqui como es-
putador e seus programas, foi utilizada uma meto- cravos, só (...). São poucas as coisas (...). É
dologia baseada na educação pluricultural, que muito rica a nossa cultura!”
buscava aliar todo conhecimento apreendido à cul- A história dos povos africanos não é valorizada
tura dos jovens envolvidos, tornando assim as au- na sua íntegra, pois é “contada” apenas por um
las mais interessantes, significativas e dinâmicas. ângulo superficial e recalcador. Além disso, a es-
Os jovens digitaram textos e músicas; do seu cola não provoca reflexões diante dos fatos descri-
patrimônio cultural fizeram desenhos bastante sig- tos pela história oficial, não favorecendo, conse-
nificativos sobre o universo simbólico da comuna- quentemente, o desenvolvimento da criticidade.
lidade; pesquisaram na Internet; trocaram e-mails; No Odemodé, apesar de todas as dificuldades
produziram textos em yorubá,; assistiram a filmes identificadas sobre a frágil formação escolar, todos
sobre ancestralidade africana; elaboraram home- os jovens conseguiram assimilar de forma dinâmi-
page e CD-Rom, tudo ancorado no repertório ema- ca os processos da linguagem que permitem o ma-
nado pela comunalidade Asipá. nuseio do computador e a utilização dos seus pro-
A adesão dos jovens ao Odemodé foi plena e gramas. É notável que a valorização e o respeito à
significativa, pois abrimos canais para eles revela- arkhé, à alteridade, à identidade cultural dos jo-
rem no decorrer do projeto, alguns dos problemas vens, tenham tornado o processo de aprendizagem
vivenciados no sistema educacional, a exemplo da mais significativo e tenham possibilitado o desen-
deficiência do ensino, a evasão e a repetência cons- volvimento sócio-comunitário e a elevação da auto-
tante em suas vidas. estima de toda comunidade envolvida.
Esse é um grave problema que aflige a socieda- Foram produzidos belíssimos trabalhos que re-
de brasileira, caracterizada por uma economia de- fletiram todo o esforço entre os jovens e a equipe
pendente e de passado colonialista-escravista, na pedagógica no comprometimento da realização de
qual a educação é oferecida de forma desigual ou uma proposta de educação pluricultural e que con-
até discriminatória para a diversidade étnico-cultu- tribuíram também para o fortalecimento dos laços
ral da população que abrange. comunitários existentes.
Os currículos escolares apresentam-se então “Isso nos levará a perceber que a civilização
vazios e descontextualizados na medida que não africana é viva, pujante, criativa, dinâmica nas
atendem às características pluriculturais das crian- interações com a sociedade oficial da qual ela
ças e jovens brasileiros, ignorando suas vivências, não é marginal, mas um elemento dialético.”
experiências, emoções, desprezando a capacidade (Luz N., 1998:156)
criativa e de elaboração de saberes originários das O projeto favoreceu a inserção da comunidade
comunalidades do entorno escolar. no universo da sociedade informatizada, sem con-
Dessa forma, a escola ainda não se constitui em tudo prejudicar ou subjugar seu rico patrimônio
um ambiente dinâmico e democrático. As amarras cultural. Dessa forma obteve-se uma perspectiva
coloniais ainda a impedem de superar ideologias interessante acerca da pluralidade cultural como
etnocêntricas de recalque à alteridade da civiliza- elemento capaz de enriquecer e dinamizar o univer-
ção africana, da qual a maioria da população de so das novas tecnologias na medida que se possibi-
Salvador é descendente. litou a convivência entre conhecimentos cujas arkhés
No relato de um dos jovens do Odemodé há uma se diferenciam por ser uma, eminentemente africa-
crítica à omissão e ao descaso da escola às caracte- no-brasileira, alimentada pelo legado ancestral, e
rísticas tão relevantes como a tradição africano-bra- outra, euroamericana de base urbano-industrial.
sileira: Na perspectiva filosófica do Odemodé, as novas
“Ela não é muito divulgada nas escolas, só são tecnologias foram encaradas como canais urgentes de
divulgadas as culturas da Europa, dos países fortalecimento das identidades culturais da
da Ásia. Os países africanos (...) a cultura é comunalidade Asipá e de continuidade e expansão dos
muito pouca, só falam mesmo dos negros que valores milenares que passam a atualizar-se com

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linguagens que preservam a memória da civiliza- subculturas locais, afirmem sua identidade, para
ção para as gerações sucessoras. Além de poder se tornarem visíveis e poderem ser reconhecidas.”
contribuir para a superação do recalque, abrindo (Nogueira, 1996:14)
novos horizontes de reflexões em relação à educa- Como desdobramento o Odemodé influenciou
ção e à pluralidade cultural da nossa nação. Isso só a implantação do Núcleo de Informática Commu-
depende da maneira como a tecnologia for utiliza- nitates Mundi - Comunidades do Mundo, que será
da, porque: sustentado pelos jovens que participaram do Pro-
“Com os computadores e a televisão, a tela pas- jeto. O objetivo desse Núcleo é a preservação da
sou a ser um espaço público por excelência (...). memória sobre a presença da civilização africa-
Isso oportuniza uma multiplicação generalizada
na nas Américas e suas formas contemporâneas
de visões de mundo, podendo significar um pro-
cesso de libertação das diferenças, através do qual de continuidade e expansão do seu patrimô-
culturas dominadas ou colonizadas, bem como nio.

NOTAS
NOTAS

1
Extraído dos objetivos estabelecidos no Manual to Científico e Tecnológico – CNPq.
do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação 2
Cf. Caderno de Educação do Ilê Aiyê, Nº 3, p. 9.
Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimen- 3
Cf. Caderno de Educação do Ilê Aiyê, Nº 5, p.7.
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OS 500 ANOS DE TRADIÇÃO EXCLUDENTE
DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
José dos Santos Souza 1
Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB

Até 1930, no Brasil, a educação da classe tra- no próprio espaço produtivo – a fazenda. Inclusi-
balhadora não tinha muito significado para a cons- ve, essa era a justificativa para que os filhos primo-
tituição da sociedade e, por isso, foi tratada de for- gênitos não fossem para a escola, pois precisavam
ma desorganizada e assistemática. Essa falta de permanecer nas terras dos pais para ali aprenderem
prioridade se fundamentava numa concepção que a zelar pelo patrimônio familiar e, assim, garantir a
outorgava a este tipo de ensino um caráter eminen- reprodução de suas condições de dominação eco-
temente assistencial em função da conotação nega- nômica e política.
tiva atribuída ao trabalho manual, considerado uma Todavia, a educação escolar da época era des-
atividade degradante, relacionada à pobreza e a es- tinada àqueles que não tinham função economi-
cravidão __ herança cultural do longo regime escra- camente produtiva nas relações sociais, emana-
vista de produção que vigorou por longos anos no das de uma estrutura fundada na monocultura
País (Pronko, 1996:1). agrário-exportadora e de uma superestrutura fun-
Na análise de Otaíza Romanelli (1997:33) so- dada nos princípios aristocráticos. A esse seg-
bre a evolução do ensino no Brasil, o período colo- mento social era atribuída uma educação cujo
nial é caracterizado por uma organização das for- conteúdo cultural era fundamentado no apego ao
ças produtivas fundada na grande propriedade e na dogma e à autoridade, na tradição escolástica e
mão de obra escrava, por um modelo de relações de literária, no desinteresse quase total pela ciência
produção baseado no isolamento e estratificação e na repugnância pelas atividades técnicas e ar-
sociais e por uma superestrutura de poder fundada tísticas, mantendo-se fechada e irredutível ao
na autoridade sem limites do dono de terras. Desse espírito crítico e de análise, à pesquisa e à expe-
modo “a sociedade latifundiária e escravocrata rimentação. Tratava-se, portanto, de um conteú-
acabou por ser também uma sociedade aristocrá- do desinteressado,2 destinado a dar cultura geral
tica. E, para isso, contribuiu significativamente a básica, sem a preocupação de qualificar para o
obra educativa da Companhia de Jesus” __ afirma trabalho, uniforme e neutro. Modelada pela Me-
a autora. trópole e dada pelos jesuítas, de algum modo essa
Nesse contexto a escola era freqüentada somen- educação veio a corresponder aos anseios da mi-
te por um limitado grupo de pessoas pertencentes à noria dominante na estrutura da sociedade nascen-
classe dominante: os filhos homens, que não os pri- te. Se, por um lado, esse modelo educacional não
mogênitos. Era natural que, em uma sociedade onde podia contribuir para modificações estruturais na
o trabalho manual era exercido pela força de traba- vida social e econômica do Brasil, por outro, a ins-
lho escrava e onde a principal atividade produtiva trução em si não representava grande coisa na cons-
era a agricultura, não se exigisse maiores qualifi- trução da sociedade nascente, pois as atividades de
cações nem para quem exercia o trabalho manual produção não exigiam preparo, quer do ponto de
nem para quem o administrava. Por esse motivo, vista de sua administração, quer do ponto de vista
aos filhos primogênitos a quem era atribuído o pa- da mão-de-obra (Romanelli, 1997:33-34).
pel de zelar pelo patrimônio da família, o qual iria Esse modelo educacional logo foi transformado
herdar, não era atribuído qualquer tipo de preocu- em educação de classe, com as características que
pação com sua formação além daquela que se dava tão bem distinguiam a aristocracia rural brasileira.

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Afirmada como modelo educacional dominante, a ção de candidatos ao ensino superior.
educação jesuítica predominou no decorrer de todo “Esse caráter propedêutico assumido pelo en-
o período colonial e imperial e, inclusive, no perío- sino secundário, somado ao seu conteúdo hu-
do que compreende a chamada I República, sem ter manístico, fruto da aversão a todo tipo de ensi-
sofrido em suas bases qualquer modificação estru- no profissionalizante, próprio de qualquer sis-
tural, mesmo quando a demanda social para a edu- tema escolar fundado numa ordem social es-
cação começou a aumentar, atingindo as camadas cravocrata, sobreviveu até há pouco e consti-
mais baixas da população e obrigando a sociedade tuiu o fator mesmo do atraso cultural de nos-
a ampliar sua oferta escolar. Contudo, não se pode sas escolas.” (Romanelli, 1997:39).
desconsiderar que: Isso acabou gerando uma desorganização com-
“[...] a classe dirigente, aos poucos, foi toman- pleta na construção do sistema educacional, ou
do consciência do poder dessa educação na melhor, dos sistemas educacionais brasileiros. A
formação de seus representantes políticos jun- própria criação do Ministério da Instrução, Correi-
to ao poder público. Os primeiros representan- os e Telégrafos, de curta duração, reunindo num só
tes da Colônia junto as cortes, foram os filhos órgão a administração de coisas tão díspares, de-
dos senhores de engenho educados no sistema nuncia o baixo nível de preocupação que o Gover-
jesuítico. Casaram-se, assim, portanto, a gran- no vinha manifestando para com a reconstrução do
de propriedade, o mandonismo e a cultura sistema educacional.
transplantada e expandida pela ação pedagó- Mesmo com a proclamação da República não
gica dos jesuítas.” (Romanelli, 1997:36). prevaleceu o pensamento ou a decisão de reali-
Já o século XIX, se por um lado foi marcado zar uma transformação radical no sistema de
pelo surgimento de uma camada social intermediá- ensino para provocar uma renovação intelectual
ria no Brasil,3 acentuada pela economia de minera- da elite dominante necessária às novas institui-
ção que criou e reforçou o mercado interno, por ções democráticas. Se levarmos em conta que a
outro, também foi o cenário de outro elemento im- elite dominante, que passou a controlar o poder,
portante na evolução da educação escolar no Bra- representava as oligarquias do café e, aos pou-
sil, que foi a presença do príncipe regente que, além cos, articulou-se com as velhas oligarquias ru-
de iniciar um processo de autonomia que iria de- rais de atuante ação política no tempo do Impé-
sembocar na Independência política, trouxe sensí- rio, é justo concluir que o tipo de educação que
veis mudanças no quadro das instituições educaci- se tornou hegemônico só poderia ser aquele ao
onais da época, tais como a criação dos primeiros qual ela mesma vinha sendo submetida. Assim a
cursos superiores não-teológicos na colônia, embo- renovação intelectual de nossa elite dominante
ra com o propósito exclusivo de proporcionar edu- foi um fato que não se deu, visto que o comando
cação para uma elite aristocrática e nobre de que se político, econômico e cultural se conservou nas
compunha a corte. Desse modo, os outros níveis do mãos da classe formada por aquela educação li-
ensino foram entregues ao abandono total (Roma- terária e humanística, originária da Colônia e que
nelli, 1997:38). tinha atravessado todo o Império sem modifica-
No Império, a educação escolar no Brasil, além ções essenciais (Romanelli, 1997:43).
de consagrada à descentralização e à dualidade de Nesse período, portanto, como as classes médi-
sistemas,4 assumiu grande importância na forma- as emergentes não possuíam nenhuma afinidade ou
ção dos letrados que viriam preencher o quadro geral ligação com as camadas mais pobres da popula-
da administração e da política, assumindo assim o ção, almejavam o mesmo modelo de educação da
papel de fornecedora de pessoal qualificado para elite. Até mesmo a massa de trabalhadores não “via
essas funções. A forma universalista e humanística com bons olhos” a educação para o trabalho, mas
do currículo do ensino superior, por sua vez, aca- também almejava a educação humanística e literá-
bou por influenciar ou mesmo condicionar a estru- ria como forma de ascensão social. A velha menta-
tura do ensino secundário, destinando-o à prepara- lidade escravocrata era também uma característica

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marcante do comportamento das massas que se classe trabalhadora passa a fundamentar-se numa
acostumaram, após três séculos, a ligar trabalho concepção pragmática e tecnicista de aquisição
com escravidão. Além disso, a autora ressalta que: do conhecimento, submetida às necessidades eco-
“para uma economia de base agrícola, [...] nômicas – especificamente às demandas do merca-
sobre a qual se assentavam o latifúndio e a do de trabalho – e baseadas na divisão social do
monocultura e para cuja produtividade não trabalho e na sua racionalização. Nesse período,
contribuía a modernização dos fatores de pro- prevaleceu a repressão da organização autônoma
dução, mas tão-somente se contava com a exis- da sociedade civil, dificultando assim as possibili-
tência de técnicas arcaicas de cultivo, a educa- dades de experiências educacionais alternativas,
ção realmente não era considerada como fator bem como qualquer tipo de reivindicação contradi-
necessário. [...] Foi somente quando essa es- tória às determinações do Estado Autoritário.
trutura começou a dar sinais de ruptura que a Se bem que nesse período verificou-se uma am-
situação educacional principiou a tomar rumos pla expansão da educação básica no Brasil, tanto
diferentes.” (Romanelli, 1997: 45). no aspecto quantitativo quanto no aspecto qualita-
A partir de 1920, esses sinais de ruptura co- tivo. Ao passo que buscou criar as condições obje-
meçam a se materializar em ações concretas no tivas para a inserção subalterna do Brasil no mer-
seio da sociedade civil.5 Mas é somente no perí- cado internacional, o Regime Militar ampliou o
odo de 30 a 45 que há uma preocupação mais padrão de consumo de uma parcela restrita da po-
significativa no que diz respeito às políticas de pulação e condicionou o processo de industrializa-
educação da classe trabalhadora por parte de ção do país à criação de um excedente de mão-de-
nossos governos, numa perspectiva de melhorar obra, minimamente qualificada, através da amplia-
a formação e a qualificação do conjunto dos tra- ção das oportunidades de escolarização básica. Di-
balhadores, consolidando assim a chamada “ide- ante da necessidade de adequar o sistema nacional
ologia do trabalho”, dando origem ao SENAI e de ensino às exigências do estágio de desenvolvi-
SENAC como alternativa de formação e qualifi- mento das forças produtivas e aos requisitos de
cação para o trabalho simples, em contraposi- conformação ético-política da classe trabalhadora,
ção à insuficiência do Estado no atendimento à o Regime Militar amplia a escolarização básica de
emergente demanda industrial por força de tra- quatro para oito anos de escolaridade e implanta a
balho qualificada, decorrente do processo de profissionalização compulsória do ensino médio
substituição de importações (Romanelli, através da Lei 5692/71.
1997:47-61; Freitag, 1980:49-54). Os anos 80 representaram para o País um
Já no período de 45 a 64, a educação da clas- período de agravamento da crise econômica, sen-
se trabalhadora é repensada no sentido de ade- do muitas vezes identificada como a década
quá-la às novas exigências do modelo econômi- perdida para o Brasil, por causa da drástica que-
co voltado para a internacionalização do merca- da dos índices de crescimento, do refluxo na
do interno, o que fortalece a influência empresa- produtividade agrícola e industrial, da perda em
rial na educação da classe trabalhadora de for- competitividade tecnológica, etc. Além das per-
ma indireta na escola básica – formação profis- das econômicas, o País perdeu também em qua-
sional em sentido lato – e de forma direta no en- lidade de vida com o aumento da criminalidade,
sino profissionalizante – formação profissional poluição, doenças, epidemias, aumento da taxa
em sentido estrito –, com vistas à consolidação de desemprego, estagnação do declínio da taxa
do capital monopolista no País (Romanelli, de analfabetismo, extermínio de crianças, as-
1997:47-61; Freitag, 1980: 54-59). sassinatos de líderes sindicais e rurais... Mas,
No período pós-64, com a consolidação do foi também nessa década que a sociedade, de
capitalismo monopolista de Estado no Brasil, um modo geral, aprendeu a se organizar
cuja expressão política se consubstanciou na im- para protestar contra o regime político vigen-
plantação da Ditadura Militar, a educação da te para reivindicar eleições diretas, melhores

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condições de vida, melhores salários e/ou melhores contribuição para a ampliação dos direitos de cida-
condições de trabalho, de modo que se pode dizer dania, particularmente dos direitos sociais, e enri-
que nem só de perdas se constituíram os anos 80 queceu a organização da sociedade civil. Os parti-
(Gohn, 1992:58). dos políticos, por sua vez, embora com suas limita-
A própria abertura patrocinada pelo Estado ções, tiveram uma importante atuação na transição
Militar, conforme Emir Sader (1990:48), foi uma política da década de 80, enquanto buscaram sinte-
necessidade do capital nacional passar a uma etapa tizar as demandas sociais das classes em conflito,
superior no seu caminho rumo à monopolização e à bem como buscaram atuar como articuladores en-
integração nos circuitos financeiros internacionais, tre Estado e sociedade civil (Neves, 1994:37).
rompendo com a ordem tutelada que presidiu as No decorrer dos anos 80, ao que diz respeito
relações entre Estado e sociedade civil ao longo do à organização e luta dos trabalhadores no bojo
processo de modernização do capital nacional. Ou- do processo de abertura, a classe trabalhadora
tro aspecto desse processo, apontado por Lúcia Ma fortaleceu sua organização autônoma, contribu-
W. Neves (1994:34), foi o alargamento dos marcos indo para o alargamento dos marcos estreitos do
estreitos desse projeto de abertura decorrente do projeto de abertura do Estado Militar, com re-
surgimento de novos sujeitos na arena política bra- percussões na estruturação do próprio Estado e
sileira, até então represados. na organização da sociedade civil. Desde o vigo-
Assim, com o fim do regime militar, a composi- roso movimento de greve do ABC paulista, em
ção da Nova República, a eleição de uma Assem- maio de 1978, até o final da década de 80, con-
bléia Nacional Constituinte e o avanço dos movi- tabilizam-se inúmeras e significativas transfor-
mentos sociais urbanos, inicia-se a redefinição das mações: a retomada das ações grevistas, a ex-
práticas sócio-políticas da classe trabalhadora, as- plosão do sindicalismo dos assalariados médios
sim como da burguesia nacional. O Estado reduz a e do setor de serviços, o avanço do sindicalismo
sua função repressora dos conflitos entre capital e rural, o nascimento das centrais sindicais, as ten-
trabalho de tal modo que a burguesia nacional se vê tativas de consolidação da organização dos tra-
obrigada a repensar sua prática política e redefinir balhadores nas fábricas, o aumento do índice de
sua organização na defesa de seus interesses e no sindicalização, as mudanças na relação entre sin-
enfrentamento da pressão da emergente organiza- dicatos e Estado, as mudanças e conservações
ção da classe trabalhadora e dos movimentos po- no âmbito da estrutura sindical pós-Constitui-
pulares de um modo geral, configurando-se, assim, ção de 1988, etc. Tais transformações nos per-
o quadro de acirramento da luta de classes e das mitem afirmar que o movimento sindical brasi-
contradições sociais. Tantas transformações aca- leiro desenvolveu-se no contrafluxo da crise do
bam por modificar o cenário sócio-político do con- mundo do trabalho do ocidente avançado (Antu-
fronto capital e trabalho na nova conjuntura nacio- nes, 1995:83).
nal do fim dos anos 80. Assim: Depois de tantos anos sob a ditadura militar,
“Ao priorizar a estratégia política da busca embora com motivação predominantemente eco-
do consenso para seu projeto social e educaci- nômica, o movimento sindical brasileiro recolo-
onal, o empresariado brasileiro passa a se uti- cou a classe trabalhadora na cena social e políti-
lizar, mais sistematicamente, dos aparelhos ca do País, e acabou por preencher muitas das
privados de hegemonia, especialmente da mí- lacunas abertas pela limitação dos partidos polí-
dia e da aparelhagem escolar, na tentativa de ticos de esquerda, na medida em que assumiu,
tornar hegemônico, a curto e médios prazos, o de forma relevante, o papel político contra-ideo-
modelo neoliberal de desenvolvimento social.” lógico no embate de forças políticas na disputa
(Neves, 1994:37). pela hegemonia da sociedade em diferentes mo-
A presença dos movimentos sociais urbanos na mentos da década de 80 (Antunes, 1995:45).
arena política, enquanto instrumentos de democra- Contudo, já no final dos anos 80, o movimento
cia direta de massas, significou a mais importante sindical brasileiro é forçado a assumir uma ação

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mais defensiva na medida em que a reestruturação Observa-se que, devido ao avanço da ciência e
das forças produtivas do capital e a globalização da tecnologia e da socialização da política verifica-
da economia avançam. Como conseqüência, os anos dos no Brasil, mais claramente a partir dos anos
90 trazem consigo grandes mudanças na ação sin- 90, o capital tem sido obrigado a reestruturar a or-
dical, tanto no seu conteúdo quanto nas suas estra- ganização de suas forças produtivas e a redefinir o
tégias. O movimento sindical brasileiro, no momento modo de regulação de suas relações de produção.
em que buscava avançar do caráter reivindicativo Contudo, ao passo que tais transformações vêm se
para o caráter propositivo no enfrentamento do ca- consolidando no nível estrutural, uma verdadeira
pital, é atropelado pelas repercussões locais da cri- redefinição das práticas políticas dos diferentes su-
se do mundo do trabalho em nível mundial. Nas jeitos coletivos vem se consolidando tanto no âmbi-
palavras de Ricardo Antunes: to dos aparelhos privados de hegemonia quanto no
“Os sindicatos foram forçados a assumir uma âmbito dos aparelhos de Estado. Nesse contexto,
ação cada vez mais defensiva, cada vez mais ao buscar condições objetivas de regularidade para
atada ao imediatismo, à contingência, regre- o sistema, dentre outras medidas, o capital tem bus-
dindo em sua já limitada ação de defesa de clas- cado ampliar ainda mais as oportunidades educaci-
se no universo do capital. Gradativamente fo- onais em nível básico, ampliando de oito para onze
ram abandonando seus traços anti-capitalis- anos a escolaridade básica do País (Lei 9394/96).
tas visando preservar a jornada de trabalho Paradoxalmente, as iniciativas políticas para au-
regulamentada, os demais direitos sociais já mentar o nível de conhecimento científico e tecno-
conquistados. E quanto mais a “revolução téc- lógico da população brasileira, ao mesmo tempo
nica” do capital avançava, maior era a luta em que têm contribuído para a manutenção das
para manter o mais elementar e defensivo dos bases de acumulação do capital em um nível mais
direitos da classe trabalhadora, sem o qual sua avançado do conteúdo do trabalho e da sociabilida-
sobrevivência está ameaçada: o direito ao tra- de urbano-industrial, têm contribuído também para
balho, ao emprego. [...] As perspectivas gene- o estreitamento da relação entre ciência e vida, en-
rosas da emancipação humana, tão caras a tre trabalho e educação, tão necessários para eman-
Marx, foram ou estão sendo pouco a pouco tro- cipação da classe trabalhadora.
cadas pelos valores da acomodação social-de- A história da educação no Brasil nos remete às
mocrata.” (Antunes, 1995: 52). seguintes considerações: a) é evidente que a evolu-
De fato, a ampliação quantitativa e qualitati- ção do ensino no Brasil tem estado articulada, so-
va da educação básica durante o Regime Militar bretudo, com a história da divisão do trabalho na
com vistas à garantia de um exército industrial sociedade e na educação, e tem sido demarcada pela
de reserva no País, contraditoriamente, consubs- distinção entre formação para o trabalho simples
tanciou-se em condições objetivas e subjetivas para as classes subalternas e formação para o tra-
para a ampliação da demanda popular por esco- balho complexo para as elites;6 b) a organização
larização básica manifestada pelos movimentos da classe trabalhadora no Brasil, até meados dos
sociais urbanos no decorrer dos anos 80 (Ver: anos 80, ainda não havia apresentado para a socie-
Gohn, 1992). Já no processo de transição demo- dade uma concepção educacional alternativa à con-
crática, a partir de 1979, no contexto do surgi- cepção dualista de educação imposta pela burgue-
mento do Novo Sindicalismo e demais movimen- sia nacional.
tos sociais, as concepções educacionais alterna- Até os dias de hoje, final do milênio, pode-se
tivas às da ótica do capital são equacionadas em observar que nos momentos em que a classe traba-
propostas concretas da classe trabalhadora atra- lhadora organizada esteve articulada politicamen-
vés de seus organismos de representação, conso- te em torno de propostas concretas para a educa-
lidando-se, assim, a bandeira de luta em defesa ção no país, em linhas gerais, não chegou a ultra-
da escola pública, gratuita, universal e de quali- passar as propostas contidas no Manifesto dos Pi-
dade. oneiros da Educação Nova em defesa da escola

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pública, gratuita e universalizada, provenientes da ponto de vista científico, especialmente o que se
ótica do capital, na sua vertente liberal-democrata. refere ao movimento sindical 7 e seu tratamento das
Não obstante, parece que a organização da classe questões educacionais. Com projetos políticos di-
trabalhadora ainda não incorpora, nessa bandeira ferentes, decorrentes de concepções de mundo e de
de luta, a opção por uma proposta educacional fun- sociedade distintas, duas centrais sindicais têm-se
dada no desenvolvimento de potencialidades huma- destacado por sua representatividade no movimen-
nas num processo unitário – síntese entre a forma- to sindical brasileiro dos anos 90 – a CUT e a For-
ção para o trabalho intelectual e a formação para o ça Sindical. Ao passo que uma parcela do movi-
trabalho manual. Noutras palavras, podemos afir- mento sindical, representada pela CUT, vem dispu-
mar que a organização da classe trabalhadora, no tando com o setor empresarial a hegemonia da so-
contexto do processo de reestruturação produtiva e ciedade, uma outra parcela, representada pela For-
de redefinição da sociabilidade brasileira, sob os ça Sindical, vem compondo com os empresários e o
marcos estreitos da transição democrática, ainda governo um bloco de parceria política para defen-
não assimila o projeto da escola unitária enquanto der os interesses dos trabalhadores. Indepen-dente
alternativa ao projeto de escola dualista e exclu- disso, ambas as frações do movimento sindical bra-
dente do capital, permanecendo, assim, no nível do sileiro vêm se deparando com questões do campo
ideário liberal-democrata em defesa da escola pú- educacional que representam verdadeiros desafios
blica e da gratuidade do ensino, já presente nas rei- históricos que precisam ser superados. Assim, em-
vindicações do Movimento Renovador a partir dos bora mais fortalecidos, os trabalhadores brasi-lei-
anos 20. ros, hoje, enfrentam o desafio de ter que decidir entre
A própria história da educação brasileira tem dois projetos educacionais de natureza distinta e,
confirmado essa dificuldade da classe trabalhadora além disso, num contexto de crise de paradigmas
em assimilar uma proposta educacional concreta em praticamente todos os campos da vida social.
fundada na racionalidade própria da ótica do tra- Em suma, como saldo de 500 anos de educação
balho. Tanto que o Estado tem delegado, de modo no Brasil, poderíamos afirmar que após cerca de
recorrente, a execução de políticas de educação pro- 430 anos de educação de caráter dogmático e hu-
fissional, especialmente para a formação para o tra- manista tradicional, o processo de industri-aliza-
balho simples, a setores do empresariado que, difi- ção no país demandou a formação de um novo tipo
cilmente, têm encontrado posicionamentos divergen- de trabalhador, tanto para o trabalho manual quan-
tes para confrontar-se, haja vista a carência de pro- to para o intelectual, rompendo com o formalismo
postas radicalmente fundadas na ótica do trabalho. da escola desinteressada, exigindo maior relação
Contudo, é necessário ressaltar as dificuldades re- entre a escola e o mundo do trabalho. Tal fato, ine-
ais para a formulação de propostas de formação rente ao processo de desenvolvimento do industria-
básica e profissional da ótica do trabalho devido a lismo no Brasil, ao passo que garante maiores pos-
diversas variáveis obscurecidas por teses de cunho sibilidades de acumulação do capital, contraditori-
mais ideológico que científico. Hoje, por exemplo, amente, possibilita a ampliação da participação das
temos as teses do “Fim da Sociedade do Traba- camadas populares na disputa do poder na socie-
lho”, que ocultam a continuidade do caráter da ex- dade civil. Contudo, a classe trabalhadora organi-
ploração capitalista no interior dos processos de zada no país ainda não conseguiu capitalizar tal
trabalho, cada vez mais sofisticados com a intro- possibilidade a seu favor, de modo que nossa elite
dução da microeletrônica e da informática (Ver: dominante, hoje, está prestes a completar 500 anos
Frigotto, 1995). de tradição excludente no campo educacional: an-
Sem dúvida, os anos 90 têm imposto para a so- tes como a aristocracia rural; hoje, como o moder-
ciedade brasileira uma problemática instigante do no empresariado urbano-industrial.

82 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 77-84, jan./junho, 2000


NOTAS

1
José dos Santos Souza é mestre em educação pela UFF sobre o ensino superior, instituindo assim a co-
e professor do Dep. de Filosofia e Ciências Humanas existência de dois sistemas educacionais distintos,
da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB superposição de poderes no campo educacional e
2 desarticulação de uma política nacional para a educação
Quem melhor explicita a categoria “saber
primária e média. O resultado foi que o ensino
desinteressado” é Gramsci, pois utiliza com freqüência
secundário acabou ficando nas mãos da iniciativa
esta expressão. Para este autor, o saber desinteressado
privada e o ensino primário foi relegado ao abandono,
não significa um saber neutro ou interclassista. É uma
com pouquíssimas escolas. Cabe questionar se o
expressão difícil de traduzir para a língua portuguesa
conceito de “sistema” é o mais adequado para se referir
e, mesmo em língua italiana, esse termo, tomado fora
a uma estrutura dual, fragmentada, sem articulação
do contexto, não traduz o sentido que Gramsci lhe dá.
interna e até mesmo contraditória como era a estrutura
Para ele, o saber desinteressado se contrapõe ao saber
educacional naquela época (Cf.: Romanelli, 1997:39-
voltado para o interesse imediato, ao saber que é útil a
40).
muitos, a toda a coletividade, histórica e objetivamente.
5
Talvez possamos ser ajudados a entender melhor esse O Movimento Renovador promovido por um grupo
conceito, recorrendo ao par lingüístico inglês “lowbrow/ de educadores brasileiros imbuídos de idéias liberal-
highbrow”, que originalmente significam um tipo de renovadoras sobre o ensino e que cria a Associação
olhar que passa pelos cílios inferiores e o olhar que Brasileira de Educação, era o início de uma luta
passa pelos cílios superiores, designando assim visão ideológica no âmbito do Estado que iria culminar na
próxima (por baixo) e visão superior (por cima). publicação do “Manifesto dos Pioneiros da Educação
Indicam maneiras existenciais de ser: há pessoas que Nacional”, em 1932, e nas lutas travadas mais tarde
só enxergam o imediato (lowbrow-interessado) e em torno do projeto de lei de Diretrizes e Bases da
pessoas capazes de ver o limite do horizonte possível Educação Nacional. O Movimento Renovador pretendia
(highbrow-desinteressado). O primeiro se envolve com sensibilizar o poder público e os profissionais da
sua pessoa, seus parentes, seus amigos, seus negócios, educação para os problemas cruciais da educação
seus interesses; o segundo é o que vê longe no espaço e nacional __ o arcaísmo das relações sociais fundadas na
no tempo, vê a humanidade, a história, o coletivo. Essa aristocracia rural e reforçado pela educação tradicional
__
referência à expressão inglesa “lowbrow/highbrow” sem e a necessidade urgente de se tomarem medidas
dúvida ajuda a entender o conceito gramsciano de concretas para equacionar e resolver esses problemas
interessado/desinteressado, sem porém a conotação de (Cf.: Romanelli, 1997:128-129).
menosprezo que, na expressão inglesa, qualifica o 6
Contudo, essa concepção dualista da educação, embora
homem ‘highbrow’ como sendo o filósofo que anda nas
hegemônica, não é consensual nem nunca foi, mesmo
nuvens, que descuida de si mesmo. Também a expressão
no Brasil Colônia. Em sua análise acerca da disputa
da língua portuguesa ‘interesseiro’ poderia ajudar, se
capital e trabalho na concepção e na formulação de
não possuísse conotação moralista que torna toda atitude
políticas de formação técnica e profissional, Pronko
interesseira desprezível e condenável. (Cf.: Nosella,
assinala que nesse campo, as propostas “não
1992:116-117).
vencedoras” elaboradas tanto pela ótica do capital
3
Otaíza Romanelli ressalta a relevância do papel quanto pela ótica do trabalho, têm sido, na maioria das
desempenhado por essa classe na evolução da política vezes, esquecidas por uma história que só retrata, crítica
no Brasil monárquico e nas transformações por que ou acriticamente, o sucesso dos “vencedores”. Nesse
passou o regime no final do século XIX. E se ela pôde sentido, embora tenham existido propostas alternativas
fazê-lo, segundo a autora, isso se deve sobretudo ao àquelas que se tornaram hegemônicas, é evidente a
instrumento de que dispôs para afirmar-se como classe: dificuldade para pesquisá-las por conta da opção
a educação escolarizada (Cf.: Romanelli, 1997:37). metodológica predominante na análise histórica (Cf.:
4 Pronko, 1996:8 e 9).
A dualidade de sistemas, aqui, refere-se às
7
conseqüências do Ato Adicional de 1834 que conferiu É oportuno ressaltar que o termo “movimento
às Províncias o direito de legislar e promover a instrução sindical” refere-se tanto à organização dos empregados
pública, enquanto garantia o monopólio do poder central quanto à organização dos empregadores em defesa de

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 77-84, jan./junho, 2000 83


seus interesses no âmbito da sociedade civil, segundo trabalhadores em defesa dos seus interesses no âmbito
determinada atividade produtiva. No entanto, no da sociedade civil, tendo em vista que a pesquisa
presente trabalho, esse termo foi utilizado para fazer limitou-se a analisar apenas essa parcela do movimento
referência apenas ao movimento organizado dos sindical.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, R. O Novo Sindicalismo no Brasil. Campinas: Pontes, 1995.


BRASIL. Lei 4024/61.
BRASIL. Lei 5692/71.
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FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e Crise do Capitalismo Real. São Paulo: Cortez, 1995.
GOHN, Mª da Glória. Movimentos Sociais e Educação. São Paulo: Cortez, 1992)
NEVES, Lúcia Mª Wanderley. Educação e Política no Brasil de Hoje. São Paulo: Cortez, 1994.
PRONKO, M. La Disputa Capital y Trabajo en la Concepción y en la Formulación de Políticas de
Formación Técnica e Profesional: una aproximación histórica. Niterói, 1996 [mimeo].
RIBEIRO, M. L. S. História da Educação Brasileira: a organização escolar. São Paulo: Cortez e Mora-
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ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1997.
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SAVIANI, Dermeval; LOMBARDI, José Claudinei; SANFELICE, José Luís (Orgs.). História e História
da Educação. Campinas: Autores Associados: HISTEDBR, 1998.

84 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 77-84, jan./junho, 2000


VIVER DO MAGISTÉRIO
NA BAHIA IMPERIAL

José Carlos de Araujo Silva


Professor da Universidade do Estado da Bahia

Um dos períodos menos conhecidos da histó- do nos colégios jesuíticos, possibilitou a forma-
ria da educação brasileira está relacionado com ção de um magistério laico, pelo menos em tese,
em virtude da orientação religiosa de cunho ca-
o estabelecimento das escolas de primeiras letras,
tólico romano ser também, nesse modelo, a gran-
nas vilas e locais populosos das províncias im-
de corrente ideológica.
periais, conforme o Decreto Imperial de 15 de
As aulas régias, que consistiam concretamente
outubro de 1827. em cursos avulsos de latim, filosofia, retórica, ge-
Essas escolas, que de fato foram a primeira ometria, etc., eram supridas, na maioria das vezes,
iniciativa oficial no sentido de organizar o ensi- por professores “recrutados” na metrópole, que
no de primeiras letras na nação brasileira recém- atravessavam o Atlântico e aqui se deparavam com
independente, ainda não foram objeto de estudos uma realidade completamente diferente da européia,
sistemáticos e rigorosos, principalmente, tratan- confrontando-se com um alto índice de analfabe-
do-as como instituições estritamente relaciona- tismo e uma quase impossibilidade de exercer suas
das ao modelo de estado que se pretendia estabe- atividades, devido à frágil estrutura do modelo de
lecer na jovem nação. instrução pública, como se pode notar nas pala-
Dessa forma, o presente texto objetiva contri- vras de um contemporâneo, o Professor João dos
buir com o conhecimento dessas escolas em seu Santos Vilhena (1969:282):
funcionamento e inquietações cotidianas; aqui no “Cumpre noticiar-te que não haverá parte onde
caso específico, nos deteremos na configuração se veja mais falta de ordem nas Aulas do que
de aspectos relativos à caracterização dos seus
nesta cidade, e isto por ser uma repartição
mestres, em seu trabalho diário, na importante
deixada ao desamparo. Há nela quem dá uma
tarefa de ministrar as primeiras letras no serviço
só aula por dia, o que não parece ser bem en-
público baiano.
Assim, pretendemos neste trabalho, conscien- tendido, pois que não podem aqui militar as
tes dos limites do mesmo, conhecer um pouco de mesmas razões que na Universidade...”.
como pensavam, questionavam e viviam esses Por outro lado, Vilhena define os professores
impor-tantes agentes históricos costumeiramen- como uma categoria que, além de sofrida em de-
te relega-dos à margem dos estudos das institui- corrência da falta de prestígio junto às autorida-
ções educacionais.1 des, também era despreparada para a função, o
que, segundo esse nosso interlocutor, era
Quem queria ser professor? normal, em se tratando dos professores da
Bahia.
Sobre a função do magistério, teremos que, bre- A questão do despreparo dos professores tam-
vemente, nos reportar à expulsão dos jesuítas, como bém se refletiu, posteriormente, quando da escolha
parâmetro de análise para a contextualização dos do método de ensino mútuo como o oficial para as
professores no período estudado. escolas de primeiras letras. Sobre essa ques-
Sendo assim, a instituição do modelo de aulas tão, sabemos que, além da propagada economia
régias, criado para substituir o ensino ministra- em relação ao número de alunos potencialmente

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 85-91, jan./junho, 2000 85


beneficiados pela atuação de um único professor, tras culminaram no Decreto Imperial de 15 de ou-
havia a necessidade de um treinamento específico tubro de 1827, que estabeleceu, no seu art. 3º, o
dos professores para a utilização eficaz desse mé- concurso público como forma de ingresso no ma-
todo. gistério oficial; isso visaria a exercer um controle
Os métodos de ensino também deveriam ser ele- real das habilidades do candidato e, principalmen-
mentos para a formação de um magistério eficaz. te, das suas condutas individuais. Assim dispunha
O Manual do Ensino Simultâneo assim se referia a lei:
às características dos professores antes da introdu- “Os presidentes, em conselho, farão que se
ção desse método nas escolas: examinem os pretendentes, cujo ato deve ser
“Por essa épocha, raros professores se encon- público, e a vista do seu exame nomearão pro-
travam nas aldêas sabendo lêr, escrever e con- fessores, preferindo os de melhor conduta e
tar bem. Liam mediocremente, escreviam instrução; (...).” (Xavier, 1985:41)
soffrivelmente, com a mão assentada e calcu- O advento do concurso público foi um marco de
lavam mal (...). O que se podia esperar de ho- extrema importância para a caracterização dos pro-
mens grosseiros, que, de ordinario não esco- fissionais do magistério. Durante a pesquisa reali-
lhiam esta profissão senão para evitar as fadi- zada, pudemos “conhecê-los” em suas habilitações,
gas mais arduas da lavoura?” (Portella, 1868:3/ suas perspectivas no exercício do magistério e, por
4) vezes, sua idade, cor e porque pleiteavam tal cargo.
Quando das discussões sobre a criação de um Sobre essa questão, encontramos os pleitos por
sistema escolar de primeiras letras, já após a nossa indicação para a disputa do concurso público para
independência política, esta foi uma questão bas- provimento das vagas no magistério de primeiras
tante evocada. Continuamos não tendo efetivamen- letras, conforme o já citado Decreto Imperial, ten-
te um magistério para realizar, competentemente, do origem nos setores empobrecidos da sociedade e
as suas típicas tarefas nas Escolas Nacionais, uma com os mais variados motivos. Na maioria dos ca-
nova terminologia para a mesma instituição defici- sos, encontramos como motivo principal a necessi-
ente. dade de emprego, principalmente público.
A formação dos professores foi um das princi- Um dos primeiros pressupostos que poderíamos
pais preocupações desde a criação do sistema esco- levantar refere-se à visão que o emprego público
lar de primeiras letras. Era muito comum no dis- sempre produziu dentro do imaginário da socieda-
curso dos representantes do Legislativo referir-se de brasileira, em que a estabilidade passa a ser a
aos professores como indivíduos sem a menor qua- principal virtude que uma atividade profissional
lificação para a função que exerciam, como nas poderia conter, ao lado da concepção do Estado
palavras do deputado Cunha Mattos: como um patrão invisível e despreocupado.
“Todos nós convimos que nos sertões do Bra- Também a garantia de direitos não existentes na
sil faltam homens instruídos que queiram ser iniciativa privada, como o recebimento de salários
mestres de primeiras letras; as pessoas de edu- durante as licenças, motivava a entrada no magis-
cação liberal são ordinariamente os fazendei- tério de indivíduos que postulavam realizar alguns
ros, que não largam os seus trabalhos para desejos que seriam mais facilmente possíveis no
ensinarem meninos, ou são os vigários, que nem serviço público.
quererão fazê-lo sem faltarem as suas princi- Sobre essas vantagens, podemos exemplificar
pais obrigações. Quem encontramos nós ensi- com a existência de uma prática relativamente co-
nando nesses arraiais? Homens mum, principalmente ocorrida entre as dé- cadas
ignorantíssimos, tabeliões inimigos da huma- de 20 e 30 do século passado, que consis- tia na
nidade, perturbadores das sociedades e causa- solicitação pelos professores, de licença para
dores de todas as desavenças que há entre os cursarem os Estudos Jurídicos em Olinda,
povos (...).” (Xavier, 1985:46) pleito, muitas vezes deferido, apenas com o
As discussões sobre as escolas de primeiras le- adendo de que os substitutos desses professores

86 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 85-91, jan./junho, 2000


deveriam ser pagos pelos solicitantes. no magistério por militares, acreditamos que, com
Com base nesta informação, pressupomos que a saída das tropas portuguesas da Província em
o magistério servisse, então, de uma espécie de de- 1823, deve ter havido logicamente uma diminuição
grau para a consecução da realização profissional no efetivo das tropas nacionais, o que seria um fa-
de seus membros em outra área. Assim como nos tor motivante na busca do magistério como fuga de
possibilitou também concluir que a condição sala- um eminente desemprego.
rial desses substitutos era ainda mais degradante, Essa busca por um emprego fixo e moradia dei-
pois achamos difícil que, na prática, estes fossem xava transparecer, mais claramente, que outro tipo
pagos integralmente no valor percebido pelos pro- de indivíduo pleiteava o cargo de professor de pri-
fessores oficiais. meiras letras, como: “Raulino Moreira Gibirana,
Quanto à origem social dos professores de pri- pardo, casado, morador nesta cidade que vive do
meiras letras, as indicações documentais nos per- Ofício de Alfaiate de idade de quarenta e oito anos
mitiram considerá-los como oriundos de setores (...).” 3
economicamente menos privilegiados e/ou empo-
brecidos, que apenas podiam postular o acesso ao
serviço público via magistério, como um meio de O professor
professor,, sua vida e estratégias
tentar alçar objetivos mais significativos. de sobrevivência cotidiana
Em muitas situações, a opção de ser professor
era a única que se apresentava como a possível para Portanto, se o magistério não oferecia grandes
garantir um parco sustento e um teto sobre as cabe- satisfações materiais aos professores, como eles
ças de toda uma família, conforme no caso do se- viviam dentro do quadro exposto de grandes difi-
guinte candidato a professor: culdades? Como tais professores viviam diariamen-
“ Diz João Nepomuceno Gomes, que estan- te? Em suas casas? Com suas famílias? Quais as
do para ir a concurso a cadeira de primei- suas dificuldades e formas de resistência?
ras letras da Freguesia de S. Pedro da As dificuldades financeiras eram talvez o prin-
Muritiba, termo da cidade de Cachoeira, e cipal motivo que levava os civis ao magistério pú-
elle Suppe. axando-se até agora desempre- blico, mesmo sabendo que esta atividade era muito
gado do serviço [...] desde a restauração mal remunerada, além de sofrer atrasos constantes
desta cidade, em cujo serviço sempre desem- no pagamento dos salários.
penhou sem nodoa, como dos Documentos Acerca desses salários, o Decreto Imperial de
que junto apresenta, além disso se veja 15/10/1827 estabeleceu que estes seriam da ordem
honerado de sua Mae de idade, oitenta anos de trezentos mil réis anuais para os professores de
sem que o Suppe. tenha rendimentos para lhe primeiras letras, o que era, já no período, um salá-
prestar os devidos socorros por isso que se rio muito modesto. Também caberia ao professor,
acha nas circunstâncias de se propor a fazer com este salário, alugar casa à sua custa para esta-
exame com os demais candidatos quando V. belecer sua aula, o que, por sua vez, motivou o fun-
Exa. Se dignar marcar o dia.” 2 cionamento da mesma na própria residência do pro-
De fato, o magistério público era encarado, por fessor, resolvendo a questão oficial do espaço esco-
boa parte dos professores, especialmente os não- lar e residencial do professor.
religiosos, pela ótica da garantia da sobrevivência, Inclusive, sobre a estreita relação que foi criada
visto que era sinônimo de salário e moradia. Ape- pela residência do professor no local das aulas, in-
nas pudemos caracterizar, como vozes dissonantes ferimos a entrada, aos poucos, das esposas e dos
de tal “visão” do magistério, os padres, que consi- filhos, especialmente os do sexo feminino no ma-
deravam o magistério uma extensão de sua ativida- gistério, como substitutas dos pais-maridos profes-
de sacerdotal, ou seja, além da salvação do espíri- sores, enquanto estes procuravam exercer, de fato,
to, a libertação da ignorância. outras atividades mais rentáveis.
Quanto às freqüentes solicitações por cadeiras Ainda sobre a questão salarial dos professores,

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 63-76, jan./junho, 2000 87


podemos, a título de exemplo, estabelecer uma com- 20 de Dezembro de 1824, determinar que os pro-
paração com os rendimentos percebidos por outras fessores poderiam estar fora dos seus distritos no
categorias profissionais, também não privilegiadas período de férias, vemos nesta lei a real impossibi-
pelo serviço público. Nesta comparação podemos lidade de deslocamento do professor durante o pe-
notar que, mesmo entre essas atividades, o magis- ríodo letivo. Podemos reforçar tal afirmação com
tério tinha o menor salário. base no documento do professor José Rodrigues
Com base na Lei de 23 de junho de 1835, que
no qual:
estabeleceu os salários dos Alferes (600$000), dos
“O supplicante aproveitou-se do tempo das fé-
sargentos (360$000) e dos soldados (300$000),
rias para ir ver seos pais, que morão no lugar
logicamente salários anuais, veremos que os pro-
dos humildes, termo da cidade da Cachoeira e
fessores de primeiras letras que, nesse período, per-
com elles passar os dias santos do Natal, e por
cebiam na capital e nas maiores vilas 400$000 anu-
isso não tirou licença; porque pela pratica e o
ais, ainda se colocavam de fato em condição de in-
uso usado sempre foi licito aos professores du-
ferioridade, uma vez que boa parte desses mestres
rante as ferias poderem residir, onde bem lhes
ainda pagava do seu próprio salário os aluguéis das
conviesse.” 5
suas casas escolares, além de provê-las do mobiliá-
Outras vezes encontramos o professor efe-
rio necessário e da sua manutenção.
Além das dificuldades provocadas pelos baixos tivamente burlando a lei, em trânsito constante
salários, eram freqüentes também os atrasos, os não- durante o período letivo, justificando-se junto
pagamentos de gratificações, além da centraliza- ao Presidente do Conselho de Instrução Públi-
ção dos salários na Tesouraria Provincial, situada ca, com a alegação de ter ido visitar sua mãe
na capital da Província, que obrigava os professo- que se encontrava doente, justificativa que o
res a se deslocarem das regiões onde lecionavam citado Presidente afirmou ser falsa:
para receberem seus salários. Esta prática motivou “(...) pois sendo verdade que a Mãe desse pro-
grandes críticas por parte das autoridades munici- fessor estivera doente, o que dera lugar este
pais, como no caso dos Vereadores da Vila de São professor ter ido vê-la (também sem licença)
Francisco do Conde, que assim postulavam resol- agora se acha melhorada, pelo que não tendo
ver a questão: outro motivo a dar de sua falta, procurou mais
“Esta Câmara tomando em consideração, este frisante,(...).” 6
quanto é prejudicial aos alunos que frequen- Outra prática comum, e que visava a evitar o
tam as aulas de primeiras letras o tempo que deslocamento dos professores à capital para o re-
por ausência dos respectivos professores dei- cebimento dos quartéis de seus ordenados, consis-
xam de frequentar, pois que estes lançando mão tia na constituição de procuradores que cobravam
do pretexto de hirem receber do Thesoureiro um determinado percentual para realizarem tal ta-
Publico os quarteis de seus ordenados se de- refa. Esses procuradores eram, na maioria dos ca-
moram na cidade quanto lhes parece, e deste sos, os comerciantes das localidades onde se situa-
jeito causam no decurso do ano irreparavel vam as escolas. Essa intermediação provocava um
prejuizo a seus alunos, leva ao conhecimento maior ônus sobre os mestres.
de V. Exa. Que ela julga acautelar-se este mal, Dessa maneira, uma das maiores dificuldades
sendo pelo Tesoureiro remetido o dinheiro a esta em ser professor foi realmente como viver sendo
Câmara nos devidos tempos para pelo inter- professor, e para isso os mestres de primeiras letras
médio dos Juízes de Paz serem os mesmos Pro- foram extremamente criativos em buscar a sua so-
fessores indenizados de seus ordenados.”4. brevivência apesar de todas dificuldades cotidia-
A proposta acima deveria resolver o problema, nas, ainda que por meio de ardis.
pois nos parece ter sido muito comum o desloca- Uma das formas mais comuns de superar as di-
mento de professores das localidades onde minis- ficuldades tratava-se da solução do problema da
travam suas aulas, apesar da Decisão nº 272, de moradia, resolvido parcialmente pela escola

88 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 85-91, jan./junho, 2000


funcionando no mesmo local da casa do professor. Rio Vermelho suburbio dessa cidade, recusa-
Apenas devemos aqui deixar claro que, a partir de se a empregar a mobília (é certo que com a
1832, com o pagamento de gratificação para casas nota de bastante arruinada) deixada por seu
escolares, este benefício ficou consignado à utiliza- antecessor e constante do rol apenso ao seu
ção do método do ensino mútuo. requerimento, que devolvo; e apresenta um rol
Essa medida, por sua vez, suscitou uma prática de outra que orça em 78$.
que detectamos ter sido muito comum e que consis- Já tive a honra de notar a V. Exa., que a cadei-
tia no pedido desta gratificação, baseando-se no pré- ra de Jaguaripe de 1844 para cá tem tido três
requisito de ensinar pelo método do ensino mútuo. professores, e recebido o subsidio de 116$420rs.
Mas realmente a prática de ensino por este método para os seus misteres, além dos livros, que re-
sempre foi significativamente inferior em quanti- cebera por diversas distribuições ordenadas
dade ao requerimento dos professores por tal bene- pelo governo.
fício. Da nota com que encerra o inventario da mo-
Posteriormente, para confirmar essa prática, bilia, que entregou Sérvulo José Fernandes, ao
encontramos a afirmação da Presidência da Pro- deixar a cadeira de Jaguaripe, e de não ter
víncia, que, em 1848, reconhecia ser apenas no declarado o Contador da Tesouraria que tives-
Convento do Carmo em Cachoeira onde se ensina- se prestado contas, infere-se que o dito profes-
va por este método, através do Pe. Manoel Joaquim sor Sérvulo não empregou os 46$420rs, que
d’Azevedo, apesar de continuarem, nesse mesmo recebeu em 10 de dezembro de 1846, os tem em
período, incidindo as solicitações de gratificação si; e portanto V. Exa. Ordenará o que for servi-
para imóvel, baseados no ensino por esse método. do.
A mesma justificativa, ou seja, a de ensinar pelo Apesar de arruinada, a mobília está servindo;
método do ensino mútuo, serviria de argumento para e sendo reparada, melhor satisfará às preci-
o recebimento da gratificação para a mobília. Esta sões da escola. Uma quantia igual a que rece-
prática foi flagrantemente notada pelo Presidente beu seu antecessor, seria mais que suficiente
do Conselho de Instrução Pública, que assim o re- ao atual professor para esse reparo.” 8
latou ao Presidente da Província: Em outro documento, entre os mesmos emissá-
“Quanto a mobilia, objeto que deve estar liga- rio e destinatário afirmava-se:
do com a casa, até hoje não tem sido medida “Tenho sempre mostrado os artifícios empre-
geral, pois recebem esse subsidio os professo- gados afim de se conseguir-se os 70$ ditos para
res desta Cidade com o pretexto de ensinarem a mobilia que nunca a realizam, ao menos,
pelo método do ensino mutuo, e algumas das aqueles professores, que sempre, por meio de
principais vilas do interior, segundo um de- permutas, estão a remover-se de uns para ou-
monstrativo que Exmº General Andrea mandou tros Distritos.” 9
para o Conselho”7 Outra prática comum, já citada anteriormente,
Por vezes, a gratificação era deferida, o profes- tratava-se da manutenção oficial da aula em nome
sor recebia, mas não eram feitos os reparos na mo- de um professor que era seu representante legal,
bília. Nestes casos, a gratificação funcionava como mas que realmente era ministrada por sua esposa
complementação salarial, como podemos notar no ou filho(a).
extenso, mas interessante documento enviado pelo Também muito comum era o não-cumprimento
Presidente do Conselho de Instrução Pública ao da dedicação exclusiva ao magistério, o que fazia
Presidente da Província, João José de Moura Ma- com que, mesmo nos casos em que o representante
galhães: legal da aula fosse seu professor, este tivesse outra
“Olegário José de Bragança de posse da Ca- atividade. Nesse caso, encontramos como mais co-
deira primária da Vila de Jaguaripe desde ou- muns, além dos padres, os militares, principalmen-
tubro do ano passado por suceder a Sérvulo te na patente de alferes, alfaiates e sapateiros.
José Fernandes, que foi removido para a do Mas, talvez a prática utilizada pelos mestres de

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 85-91, jan./junho, 2000 89


primeiras letras que mais incomodava as autorida- midos em manutença diaria de Empregados sem
des, ao ponto de ser criticada em um relatório anu- propinas, e que não tem outro algum meio de
al, fosse a utilização da casa escolar, custeada com negocio (o que lhes é vedado pelo codigo) e
dinheiro público, também como escola particular. nem lhes sobra tempo de os manejar, pelo
Nessas escolas particulares havia liberdade quanto mortifero emprego de dar Aula duas vezes ao
ao método de ensino a ser utilizado, segundo dizia dia acrescendo mais ao supe o grave prejuizo
claramente o Presidente da Província, Antônio de ter a sua custa pago o aluguel de hum so-
Ignácio de Azevedo:
brado a rua da Faisca (...)”10
“Dá-se dinheiro para as casas e muitos pro-
Por fim, o que estes professores poderiam
fessores a titulo de servirem de aulas, e alguns almejar para o fim de suas atividades no magistério
deles, morando nelas hão cometido o escanda- consistia, principalmente, na possibilidade da ob-
lo de terem ao mesmo tempo, a mesma hora, e tenção do jubilamento, após 20 anos de trabalho
na mesma casa, duas escolas; uma nas salas ininterrupto, ou proporcional, para aqueles com
melhores, dos discipulos particulares, que lhes menor tempo de serviço e/ou impossibilitados por
pagam; e outra dos discipulos publicos, meti- motivo de saúde, ou ainda, quando houvesse a su-
dos pelos sotãos ou lugares mais incomodos pressão de uma determinada aula, da qual não po-
com os quais não se importam. Tais professo- deria ser removido o professor.
res devem ser demitidos por este simples fato.” No ato dessa aposentadoria, todas as gratifica-
(Moacyr, 1939:78) ções percebidas eram suspensas, ficando o profes-
Em nenhum momento, esses professores, que sor apenas com o seu salário, fator que o obrigava
tanto buscaram formas de solução para os seus pro- a exercer qualquer outra atividade remunerada, por
blemas mais elementares e cotidianos, mostraram- vezes ainda no âmbito da instrução, especialmente
se conformados com a sua condição. Encontramos no setor privado. Situação como esta foi a do pro-
contestações principalmente acerca da vida que eram fessor Lázaro Muniz da Costa, famoso por ter sido
obrigados a levar, devido à falta de reconhecimento incumbido pelas autoridades de ensinar aos outros
pecuniário e social de sua profissão. professores da província a prática do método do
Vimos que tais críticas eram eminente- ensino mútuo, ainda no ano de 1828.
mente derivadas de tais problemas financeiros, Já no ano de 1850, de novo o encontramos como
como nas considerações tecidas por um profes- professor particular na Povoação do Rio Vermelho
sor, de quem solicitou-se a restituição de uma gra- e, em um documento no qual remonta toda a sua
tificação paga indevidamente, ao que o mestre res- vida no magistério público, concluiu que: “(...)
pondeu ante a impossibilidade da devolução do bastando o prejuízo, q teve tirado da boca de seus
dinheiro: filhos a beneficio da mocidade, attenta a sua po-
“(...) e não positiva reposição dos indivíduos breza depois que tanto tem servido a Nação sem
que os receberao legalmente, por ser premio algum...” 11
impraticavel fazer exibir alimentos já consu- Segundo ele, não valeu a pena ser professor.

NOTAS
NOTAS
1
O autor é Professor Auxiliar da Universidade do Estado 6
APEB, Instrução Pública, 3815, 02/09/1848.
da Bahia - UNEB – Campus IV. Mestre em Educação. 7
2
APEB, Instrução Pública, 3815, 07/03/1848.
APEB, Ensino Elementar, 4006, 20/07/1840. 8
3
APEB, Instrução Pública, 3815, 15/01/1848.
APEB, Pessoal do Magistério, 3893, 1826. 9
4
APEB, Instrução Pública, 3815, 06/03/1848.
APEB, Câmaras, 1433, 20/09/1831. 10
5
APEB, Ensino Elementar, 4006, 14/03/1836.
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A PRESENÇA DOS PROTESTANTES
NA EDUCAÇÃO DA BAHIA
O caso do Instituto Ponte Nova

Silvia Maria Leite de Almeida


Professora da Universidade do Estado da Bahia

Este artigo é o resultado de uma parte de es- presença desta Missão no estado. A presença dos
tudos realizados para o projeto “Redescobrindo protestantes e sua influência tem sido objeto de al-
a História da Educação na Chapada Diamanti- guns estudos no Estado de São Paulo, porém no
na” do Departamento de Educação do Campus Nordeste são poucos os estudos que relatam a sua
em Itaberaba e de estudos realizados para a ela- presença, bem como estudos que analisam a sua
boração de um anteprojeto de pesquisa com vis- ação educativa.
tas ao processo de seleção para o Curso de Dou- A seguir comento alguns aspectos que me cha-
torado em Educação da Universidade Federal do maram a atenção nesse contato com a literatura que
Rio Grande do Sul. consultei, tendo por objetivo iniciar um processo
Esse projeto está associado ao Projeto Memória de contextualização e melhor entendimento da pre-
da Educação na Bahia, que consiste num projeto sença dos protestantes, sobretudo dos presbiteria-
amplo que possui sub-projetos nos diversos Depar- nos, no cenário educacional brasileiro, bem como o
tamentos da UNEB e tem como principal objetivo contexto educacional baiano.
“recolher, organizar, manter um acervo e fazer A história da educação brasileira está majorita-
circular informações sobre a Educação na Bahia, riamente calcada dentro de uma tradição católica
de modo a consolidar um conhecimento sobre a trazida pelos jesuítas nos tempos da colônia e afir-
mesma e sua história”. O projeto “Redescobrindo mada pelas disputas entre liberais e católicos du-
a História da Educação na Chapada Diamantina”, rante os primeiros cinqüenta anos de República.
assim como as outras pesquisas vinculadas, não só Mesmo quando a educação se dava em colégios lei-
possui objetivo de coletar dados para esse acervo, gos, o ensino da religião católica era obrigatório
como também visa realizar estudos e levantamen- por lei.
tos de experiências educacionais na Bahia. Neste A inauguração de um outro tipo de tradição
contexto, possui duas linhas de ação, uma voltada educativa só se viabiliza após a laicização do esta-
para a alimentação do acervo do projeto Memória, do brasileiro, devido à proclamação da República
e outra que busca fazer um levantamento das ações no final do século XIX.
educativas da região no qual se insere o Campus A presença dos protestantes no estado brasilei-
XIII. Ao realizar parte desse levantamento, emer- ro vai representar uma série de mudanças não só na
giram algumas possibilidades de investigação, como sociedade, mas também na educação.
o Colégio Afrânio Peixoto, no município de Len- Os estudos de Boanerges (1973), Ramalho
çóis, o Mosteiro da Ordem de Cistér, fundado na (1976) e Barbanti (1977), todos eles sobre a pre-
década de 40, em Jequitibá, a Escola Agrícola Mãe sença dos protestantes na educação, centrados na
Jovina, em Ruy Barbosa e, em especial, o Instituto Região Sudeste, informam que os primeiros pro-
Ponte Nova, no município de Wagner. testantes, sobretudo de nacionalidade inglesa,
A presença dos protestantes na educação na chegam ao Brasil por volta da primeira década do
Bahia tem sido pouco estudada, como a própria século XIX, devido à abertura dos portos. No

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entanto, estes primeiros protestantes não possuem importantes colégios protestantes, disponíveis
a pretensão de uma atividade proselitista, mesmo para servir aos filhos dos protestantes (para
porque havia restrições sérias em torno de uma ou- os quais havia programas de bolsas de estudo)
tra religião, nas terras brasileiras, que não fosse a e abertos aos setores modernos da população
católica. que desejem outro tipo de educação e possuam
Segundo Boanerges (1973:18), é no ano de 1824 recursos para custeá-lo.”
que desembarca a primeira “colônia protestante”, No Estado da Bahia, a presença dos protestan-
mas sem a pretensão de conversão do povo brasi- tes inicia-se com a instalação da primeira Igreja
leiro. Somente “a partir de 1835, igrejas norte Batista, em 1822. No ano de 1898, essa mesma
americanas se interessam pela introdução do cul- missão funda o primeiro Colégio protestante, o
to protestante entre brasileiros...” . Taylor-Egídio, na capital. Em relação a esse colé-
Segundo esse mesmo autor, gio, Ramalho (1976:77) refere-se a documentos que
“(...) os imigrantes protestantes que aqui se “(...) Relatando a fundação do Colégio America-
estabeleceram a partir de 1824, encontraram no Taylor-Egídio, em Salvador, lê-se: ‘Os funda-
um governo tolerante e regalista, que lhes as- dores se felicitaram pelo fato de seus 120 alunos
segurou a liberdade de culto, subvencionou seus pertencerem às melhores famílias’ (...)”
pastores, evitou muitas vezes a desagregação Alguns anos mais tarde, os presbiterianos vão
da fé evangélica, providenciando pastores para fundar no interior do Estado da Bahia, na região da
comunidades protestantes.” (Boanerges, Chapada Diamantina, o Instituto Ponte Nova. Vale
1973:47) salientar que o Ponte Nova é pertencente à missão
Ramalho (1976:53) chama atenção para o fato presbiteriana do Sul dos Estados Unidos. E cabe
de que a chegada do protestantismo está relaciona- aqui uma breve explicação dessa diferença.
da às condições favoráveis do contexto histórico. Boanerges (1973:140) caracteriza os
“(...) É de se notar, entretanto, que não somen- presbiterianos pelo “governo democrático-repre-
te se abrem possibilidades para esse sistema sentativo, e pela teologia calvinista com ênfase na
religioso, outras correntes de pensamento en- soberania divina”. Ainda ressalta que:
contram campo também para se estabelecerem. “(...) Os pregadores presbiterianos traziam,
Aproximadamente no período de um século,
com a diferenciação calvinista do Protestan-
depois de 300 anos de predomínio quase abso-
tismo, aspectos culturais do presbiterianismo
luto do catolicismo, instalam-se no Brasil,
norte-americano: a plenitude de direitos do
movimentos como a maçonaria (1801) e o po-
crente devia resultar da internalização religio-
sitivismo (1881, como igreja); o anglicanismo
sa, por experiências conscientes, por ‘conver-
(1835); ramos protestantes, como o luterano
são’; o filho de presbiteriano, batizado em sua
(1823), metodista (1835), congregacional
infância na igreja presbiteriana, somente teria
(1855), presbiteriano (1859), batista (1882),
participação na eucaristia e em toda a vida
episcopal (1890); religiões cientificistas, como
eclesiástica se se ‘convertesse’, isto é, se tives-
o espiritismo (1865) e o esoterismo (1909). (...)
se consciência de experiências de fundo emo-
Acrescente-se, ainda, os pentecostais que che-
cional, ligadas ao reconhecimento de suas cul-
garam em 1910.”
pas e à aceitação do perdão divino, conseqüente
Os protestantes vão aliar a ação de conversão
de novos adeptos à atividade educativa. Assim, o à fé, do convertido, em Jesus Cristo”
protestantismo de denominação histórica (luteranos, No entanto, Barbanti (1977:111) atenta que há
batistas, presbiterianos e metodistas) vai fundar uma diferença quanto às Igrejas Presbiterianas do
instituições educativas nos maiores centros do país, Norte e do Sul dos Estados Unidos
como afirma Ramalho (1976:80) “É importante ressaltar, no entanto, que nos
“(...) em menos de cinqüenta anos, todos os Estados Unidos as igrejas do Norte e do Sul
principais centros do país são cobertos por tinham posições diferentes a respeito da

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‘propagação do Reino de Deus’ através da as escolas, a maioria das quais era de alu-
Escola. Os ministros protestantes das igre- guel, - e de aluguel pago pelo próprio pro-
jas nortistas, mais liberais, não faziam ques- fessor. Criticava a fiscalização, então feita
tão de atuar em escolas públicas ou particu- pelas Comissões Literárias. E para mostrar o
lares, sectárias ou não, é óbvio que excetua- que valiam, transcrevia ofícios, de alguns dos
das as católicas. (...) Já entre os sulistas, seus presidentes, nos quais os erros de lingua-
mais conservadores, encorajava-se somente gem se confundiam com os erros de interpreta-
a ação em escolas privadas, quando não se ção das suas funções. Mas essas Comissões
recusavam, da parte dos mais radicais, as nasciam das conveniências políticas.”
práticas indiretas de evangelização (...)”. Vemos que critérios políticos e clientelistas se
Vale, aqui, um parêntesis sobre a realidade fazem presentes na distribuição das escolas na Pro-
educacional baiana. No final do século XIX e víncia da Bahia. Segundo Tavares (1957:58), a edu-
início do século XX, o Estado da Bahia possuía cação estabelecida aqui era reflexo de uma econo-
um sistema de educação precário. Havia muitas mia agrária centrada no trabalho escravo e de uma
discussões na Assembléia, aprovação de diver- fórmula política retrógrada – a Monarquia – na qual
sas legislações, mas que, ao fim e ao cabo, não a elite aristocrática baiana se respaldava e na qual
alteram a situação da educação nesse Estado. era incapaz de resolver problemas práticos.
Assim, ao referir-se a reforma de 1881, Tavares Durante a República, o quadro educacional na
(1957:58) afirma: Bahia só sofre alteração após a posse de Anísio
“Na reforma de 1881 refletiam-se modifica- Teixeira no cargo de Inspetor Geral da Instrução
ções na estrutura básica da economia baia- em 1924, no governo de Góes Calmon. Até este
na. O período que a antecedera imediatamen- período, a educação no Estado era privilégio de uma
te vira o início da construção das fábricas, - pequena elite da população. Em 1925, Anísio pre-
os barracões rústicos de trabalho manufatu- para, junto a outros colaboradores, a lei 1.846, que
reiro – de linhas férreas, de companhias de estabelece na Bahia o ideal escolar do ensino uni-
transporte urbano, de engenhos a vapor, - versal, prático e democrático. Tavares (1957:58)
tudo processando um gradativo esfacelamen- informa que havia, no ensino primário, cerca de
to nas relações escravistas. Contudo, os re- 47.500 alunos matriculados no ano de 1924, pas-
petidos relatórios dos Diretores de ensino sando para aproximadamente 80.000 alunos em
ressaltam o número ridículo de escolas. A 1927. Outro dado significativo, segundo esse au-
propósito, Eduardo Pires Ramos, ao tomar tor, é o aumento com as despesas com educação
posse da Diretoria Geral, procurou criar uma que, em 1924, representavam cerca de 4,33% da
estatística escolar, coisa que ainda não exis- receita geral do Estado, para, no ano de 1927, che-
tia. Com os resultados da primeira apura- gar a 12,18%. Após a passagem de Anísio Teixeira
ção, demonstrou que o ensino estava concen- pela educação baiana, até o ano 1945 – período
trado na Capital, de onde diminuía gradati- estipulado para este estudo – não há dados mais
vamente à medida em que se distanciava para significativos que mudem o cenário educacional
o interior; que havia uma política absurda baiano.
na distribuição das escolas, aparecendo co- A região geográfica que os presbiterianos irão
marcas populosas com menor número de es- escolher para se fixar na Bahia é a Região da
colas outras de pequena população; que o Chapada Diamantina, mais precisamente na Vila
número de matriculados estava aquém da de Itacira, distrito de Lençóis na época, hoje mu-
população escolar estimada e que a matrí- nicípio de Wagner. Essa região, a partir de mea-
cula não correspondia à freqüência, encon- dos do século XIX, alcança grande desenvolvi-
trando-se sempre abaixo daquela. Declaran- mento devido à exploração diamantífera. Por
do que a “inanidade da educação aqui é radi- causa da mineração, não somente se povoou
cal”, refere-se às casas em que funcionavam a região como a população aí se fixou.

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Um fato curioso é que a Missão Presbiteriana, jas-Mães norte-americanas, a autora vai de-
antes de instalar-se no local, procurou, na região monstrar que:
da Chapada, cidades mais prósperas para se fixar. “A penetração das escolas protestantes ame-
No entanto, não encontrou receptividade. Um fa- ricanas, iniciada na Província de São Pau-
zendeiro da região, ao saber do interesse da Mis- lo, com a fundação do “Colégio Internacio-
são vendeu uma de suas propriedades, a “Fazenda nal”, da “Escola Americana”, do “Piraci-
Ponte Nova”. Esse fazendeiro acabou sendo exco- cabano” e outros estabelecimentos de ensi-
mungado pela Igreja Católica. Isso não destoa do no, assim amparada, pôde alastrar-se por
que ocorre em outras regiões do país. Boanerges outras províncias brasileiras. Os presbiteri-
(1973:21) afirma que a aceitação do protestantis- anos, até o final do século XIX, já tinham
mo no Brasil: fundado mais de quarenta escolas primári-
“(...) resultou da proposta de novos cânones as, as chamadas Escolas Americanas, a mai-
de comportamento no sistema religioso, feita oria delas em São Paulo. Fundaram também
oralmente e por escrito, e recebida individual- o “Colégio Agrícola de Jaú” (1887), a “Es-
mente. Foi aceito de livre e espontânea vonta- cola Americana de Curitiba” (1892), o
de e muitas vezes em face de severas sanções “Gammon” de Lavras, transferência do “In-
sociais negativas.” ternacional” de Campinas (1892), “Colégio
Outro fator do contexto baiano da época a ser Americano de Natal” (1895), o “Colégio
levado em conta é a presença, na Chapada Dia- Americano” do Recife (1904) e a “Escola
mantina, dos chamados “coronéis”. O coronelismo de Ponte Nova”, na Bahia (1906).”
foi uma forma específica de poder que se instalou Os estudos citados apontam o efeito da ação
no Brasil no início do século XIX, permaneceu du- dos protestantes na educação das regiões estuda-
rante toda a República Velha e, de uma forma dife- das. Mostram, também, a aceitação dessa educa-
renciada, durante a vigência do Estado Novo. ção pelas camadas abastadas da região onde se ins-
Segundo Muritiba (1997:31): talavam. Assim, referindo-se ao Colégio Internaci-
“Os coronéis foram figuras típicas e repre- onal de Campinas, Boanerges (1973:106) vai afir-
sentativas de um período no Brasil, que dei- mar que foi a “primeira escola protestante a de-
xaram marcas profundas na nossa história. senvolver-se no País e a atrair filhos de famílias
No seu mandonismo existe um misto de ca- notáveis da terra”. Refere-se ainda à educação das
valheirismo, fidalguia, ação violenta e exér- mulheres (p.150-151):
cito privado (jagunços); constante preocu- “A conversão de damas da alta sociedade pau-
pação em manter um clima de paz e harmo- lista, ou aparentadas na alta sociedade, o in-
nia entre os grupos de poder e execução de gresso de famílias completas e numerosas, da
ações violentas e rebates a qualquer motiva- classe média rural do interior (...) deram ao
ção que possa aparentar violação dos rígi- Presbiterianismo paulista a coesão, o otimis-
dos padrões sócio-culturais.” mo e a agressividade propagandística que, em
A presença de coronéis na Chapada Diamantina última análise, introduziram na cultura nacio-
era muito forte. Nas principais cidades daquela re- nal a denominação protestante.”
gião, como Lençóis, Jacobina e Morro do Chapéu, É de se supor que, na Bahia, isso não fosse di-
havia verdadeiros clãs de coronéis influentes. Cu- ferente, mesmo porque quando da inauguração do
rioso notar a instalação, o crescimento e a influên- primeiro colégio batista - o Taylor-Egídio - em Sal-
cia que o Instituto Ponte Nova vai possuir nesse vador, “Os fundadores se felicitaram pelo fato de
contexto. seus 120 alunos pertencerem às melhores famíli-
Segundo Barbanti (1977:118), os as”, segundo Ramalho (1976:77).
presbiterianos vão utilizar a educação como fer- O suposto sucesso dos colégios protestantes, e da
ramenta de ação indireta de evangelização. Apoi- própria expansão do movimento protestante, prin-
ados nos maciços recursos oriundos das Igre- cipalmente de tradição norte-americana, no final

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do século XIX e nas primeiras décadas do século tabelecimento de Ensino Superior no país –
XX, pode ser atribuída a uma série de fatores. A Escola de Engenharia (1896).
quebra da hegemonia da Igreja Católica represen- 5. Primeira Escola de Comércio (1890), visan-
tando a laicização do Estado Brasileiro, as trans- do a preparar pessoal para atender à necessi-
formações materiais do país – principalmente os dade de contabilidade moderna nas empresas
relacionados aos movimentos de “modernização” do país.
na década de 20 – a introdução de idéias liberais, o 6. Curso Geral de Preparatórios (1896), sepa-
movimento da escola renovada, entre outros. rado por áreas de interesse dos alunos, o que
Um fator que contribuiu positivamente para viria muito mais tarde a ser adotado no Brasil.
o sucesso das instituições escolares protestantes 7. A abertura de cursos de química industrial e
deveu-se à parca regulamentação e orientação go- de eletrotécnica, no ensino técnico.
vernamental em relação aos cursos de nível pri- 8. A organização e adoção de esportes em for-
mário e secundário, o que propiciou, na visão de ma obrigatória (sic) e sistemática introduzin-
Ramalho (1976:76), uma maior autonomia e fle- do novas modalidades de práticas no Brasil.
xibilidade “na organização do currículo; intro- 9. Incentivo ao Departamento Cultural, desen-
dução de novos experimentos pedagógicos; pos- volvendo interesses, atividades extracurricula-
sibilidades amplas de aplicação de diferentes res, com grupo orfeônico, grupo orquestral,
práticas de ensino; e campo aberto para a in- teatro, cinema, etc.
fluência cultural (...)”. 10. Organização moderna da biblioteca, com
Os educadores dessas escolas protestantes, de um prédio de quatro andares (1826), cabendo-
tradição norte-americana, fazem uma série de críti- lhe a primazia do uso dos Sistema Dewey de
cas em relação à educação brasileira: consideram a catalogação no Brasil.”
escola extremamente autoritária e vertical; a peda- Barbanti (1977:165) também vai chamar aten-
gogia baseada na memorização e lições monóto- ção quanto às alterações no sistema educacional no
nas; excesso de ênfase nas disciplinas literárias e Estado de São Paulo, ainda no século XIX, por conta
humanísticas; programas desvinculados da realidade da ação pedagógica dos protestantes:
brasileira (baseados nos sistemas europeus, basi- “Mas não foi apenas no aspecto das condi-
camente o francês); excesso de matérias sem ções materiais que os colégios protestantes
vinculação entre si; falta de preparo dos professo- americanos se apresentaram como inovado-
res; separação dos sexos nas classes (inexistência res no panorama do ensino paulista nos fins
da co-educação); curso secundarista elitista e, por do Império. Mais do que sua aparelhagem
fim, falta de atenção à educação física. moderna, foram os procedimentos metodo-
Devido a essa “liberdade” legal, as instituições lógicos, os novos objetivos e as transforma-
educacionais protestantes tornam-se vanguardistas ções curriculares exibidos por esse colégios
em mudanças de caráter pedagógico que vão refle- que lhes permitiram oferecer um ensino atu-
tir-se em mudanças na política educacional de al- alizado e eficiente, bem de encontro às rei-
guns estados e, até mesmo, do país. vindicações das vanguardas provinciais.
Ramalho (1979:93) relaciona algumas ativida- Currículo seriado e diversificado, com in-
des que são consideradas pioneiras realizadas pelo clusão de matérias científicas ou profissio-
Colégio Mackenzie, no período entre 1870 a 1940: nalizantes ministradas em lições curtas
“1. Curso primário com pedagogia moder- mas graduadas e integradas, fins estabele-
na, usando-se o método intuitivo. cidos segundo uma orientação prática e pro-
2. Introdução de atitudes liberais, com res- gressiva, emprego do “método intuitivo”, en-
peito à raça, religião e idéias políticas. tendido na época como a observação corre-
3. Adoção da co-educação desde o curso pri- ta de objetos reais, uso de coleções de
mário (1870). espécimes, etc, são aspectos desse ensino re-
4. Instalação por iniciativa não oficial de es- novado a nortear as atividades do

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“Internacional”, do “Piracicabano” e da “Es- O outro questionamento encontra-se intimamente
cola Americana”.” vinculado ao primeiro: conhecer a influência dessa
Ramalho (1976) ainda chama atenção para um escola protestante, instalada 15 anos após a decla-
outro aspecto da ação dos protestantes, a preocu- ração de laicidade do estado brasileiro e sua sepa-
pação não só com a expansão da educação, mas, ração da Igreja Católica, após mais de três séculos
sobretudo, da qualidade na formação de “bons e da presença da Igreja Católica. Que novos valores
úteis cidadãos” a serviço da democracia e garantia e práticas escolares foram trazidos pela escola pro-
de seu “evolutivo aperfeiçoamento”. testante de origem norte-americana?
Enfim, diante desse breve quadro, percebe-se que Ainda nessa mesma perspectiva, até que ponto
a educação protestante de tradição norte-america- o Instituto Ponte Nova contribuiu para a formação
na, representa uma “modernização pedagógica” em do “cidadão republicano” brasileiro/baiano, nessa
alguns estados brasileiros, que estavam atentos às região dominada por “coronéis”?
grandes questões como democracia, liberalismo, Outra preocupação seria vislumbrar que tipo de
cientificismo, laicização da vida pública, formação professor formou – já que era uma escola de for-
da mulher, educação popular. mação de professores.
A prática educativa dessas instituições não só E por fim, uma última preocupação insere-se na
vai estar de acordo com estas grandes questões, perspectiva de perceber até que ponto a instituição
como nessas instituições vai estar uma boa parte contribuiu, a exemplo de outras instituições seme-
dos filhos das famílias influentes no cenário políti- lhantes, na consolidação da política pública oficial,
co. Nesta perspectiva, Barbanti (1977:156) afirma sob forma de legislação estadual para a educação,
que: “... era nas escolas americanas de fé protes- na década de 20, tendo em vista a ação de Anísio
tante que residia a possibilidade de se formar as Teixeira na Direção Geral da Instrução do Estado
novas gerações na prática das qualidades políti- da Bahia nesse período e de sua reforma de caráter
cas e intelectuais necessárias para se colocar o escolanovista. Até que ponto a ação do Instituto
país à altura do século”. Ponte Nova se aproxima do pensamento de Anísio?
Tomando como referência essas evidências, o Para analisar a presença da Missão
estudo que se pretende fazer se circunscreve à pre- Presbiteriana no Estado da Bahia na consolida-
sença da Missão Presbiteriana no Estado da Bahia, ção da política educacional desse Estado no pe-
na consolidação da política educacional desse Es- ríodo entre 1906 a 1945, será necessário utilizar
tado no período entre 1906 a 1945, através da ins- a História como ferramenta de pesquisa, no sen-
talação e do funcionamento do Instituto Ponte Nova, tido da realização de registros e da análise da
na vila de Itacira, hoje município de Wagner. A de- documentação pertinente. A pesquisa que se pre-
limitação do período estipulado – 1945 – deveu-se tende terá como fonte principal de análise os
ao fato de ser este ano o da saída dos americanos documentos produzidos acerca do Instituto Pon-
da direção do Instituto naquele ano. te Nova. No entanto, será necessário o uso de
O interesse da pesquisa é analisar a presença da uma metodologia que englobe várias técnicas e
Missão através dos documentos existentes, além de instrumentos. Santos (1996), ao falar do conhe-
depoimentos de ex-alunos, professores e outros ato- cimento pós-moderno, que tem como caracterís-
res da região. E para tal, parto de algumas ordens tica ser local e total, vai afirmar que “um co-
de questionamentos: nhecimento deste tipo é relativamente
A primeira delas é um suposto paradoxo que imetódico...” vai indicar ainda a necessidade de
percebo na presença dos presbiterianos numa re- uma “constelação de métodos” como forma de
gião do sertão da Bahia, num período de domínio captação de silêncios não levados em conta pela
dos “coronéis”. Até que ponto a ideologia liberal ciência moderna.
de caráter norte-americano trazida pelos Na perspectiva de uma análise de um paradigma
presbiterianos, vem chocar-se com o domínio auto- emergente para a ciência pós-moderna, o que Santos
ritário dos “coronéis”? (1996) vai denominar de“paradigma prudente para

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uma vida decente”, a indicação de uma da história oral, a realização de entrevistas com
metodologia não contempla a complexidade que professores, ex-alunos e atores da região, análi-
o tema impõe. Dessa forma, uma “constelação se de dados quantitativos entre outras que
de métodos” será necessário. Métodos que en- poderão auxiliar no desvelamento dessa com-
volvam a análise documental, o levantamento plexidade.

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A MARUJADA NO MUSEU
ABERTO DO DESCOBRIMENTO
Ricardo Ottoni Vaz Japiassu 1
Professor da Universidade do Estado da Bahia

A devoção a São Benedito em nenhum país do mundo é tão grande efervorosa como no
Brasil. (...) Nossas tradições, nosso folclore, nossas cantigas e lendas tra-
zem o nome do santo (...) chamado ‘o santo preto’.
Monsenhor Ascânio Brandão

Uma abordagem aspectos cênicos da Marujada em Prado/Ba será


sociológica do folclore feita, a seguir, entendendo-a como expressão cul-
tural popular no âmbito do folclore.
Carlos Rodrigues Brandão, em seu estudo O que
é folclore, faz questão de esclarecer que “o folclore Fundamentação teórica e
é sempre uma fala (…) uma linguagem que o uso procedimentos metodológicos da
torna coletiva (…) são símbolos. Através deles as
pesquisa
pessoas dizem e querem dizer” (1982:107). Ele
esclarece que a cultura, também em sua dimensão
Na Bahia é possível verificar que a Marujada
folclórica, envolve processos materiais de produ-
ção/socialização do saber e revela que, onde quer ainda sobrevive em algumas regiões do Estado.
que haja processos de produção de bens, serviços e No entanto, só nos foi possível, até agora, uma
símbolos, constata-se a existência de relações de aproximação dessa curiosa expressão da cultu-
controle e poder (1982: 90). ra popular no extremo-sul baiano, mais precisa-
A realidade culturalmente diversificada do mun- mente no município de Prado – que integra a
do contemporâneo ajuda-nos a entender por cultu- região denominada Museu Aberto do Descobri-
ra popular uma forma de representação e compre- mento - MADE.
ensão da realidade que pressupõe a elaboração e A Marujada no extremo-sul baiano encon-
afirmação de significados próprios por parte de de- tra-se em meio ao processo através do qual ma-
terminados membros de grupos sociais e econômi- nifestações culturais que se originam nas clas-
cos. Esta sua significação específica permite ses dominadas – e que no início são às vezes
caracterizá-la como movimento de resistência à reprimidas – passam a ser apropriadas e
homogeneização/massificação do imaginário e afir- ressignificadas pelas classes dominantes
mação da “diferença”. Isto é, possibilita identifi- (Oliven,1983). Não se pretende aqui relacionar
car-lhe como questionamento de valores éticos, os seus aspectos formais nem apresentar uma
morais e estéticos planetariamente hegemônicos. análise exaustiva de suas metáforas mas, antes,
Assim sendo, o sentido das manifestações da cultu- saber quem são os sujeitos que a produzem, em
ra popular nem sempre pode ser revelado aberta- que condições materiais a realizam e onde se
mente, já que envolve metáforas que colaboram para inscrevem do ponto de vista histórico-cultural e
ocultar o que dizem e querem dizer. A busca da com- sócio-político.
preensão dessas metáforas deve ser uma tarefa dos Segundo Carlos Brandão, Maria Isaura Pereira
estudos sobre o folclore. A abordagem de alguns Queiroz, em seu estudo Sociologia do folclore – a

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dança de São Gonçalo no interior da Bahia, lem- mapear as expressões culturais populares no extre-
bra que Florestan Fernandes revelou ter sido mo-sul baiano, como parte da disciplina Ensino de
Amadeu Amaral quem primeiro reclamou a abor- educação artística do pré-escolar à quarta série,
dagem sociológica como uma nova maneira de fo- oferecida sob minha responsabilidade no Curso de
calizar os fatos folclóricos, estimando que o signi- Graduação em Pedagogia da Universidade do Es-
ficado destes só poderia ser plenamente compreen- tado da Bahia - UNEB/Campus X (Teixeira de
dido quando fossem estudados mergulhados no con- Freitas/Ba), durante o primeiro semestre acadêmi-
texto sócio-cultural de que fazem parte. Ainda, se-
co de 1996.2
gundo Brandão, o próprio Florestan Fernandes de-
O palco da Marujada
fendeu:
“uma abordagem do folclore brasileiro, não só
O município de Prado situa-se a 788 Km de
do ponto de vista de relações sociais cujo teor
Salvador. Tem como limites Porto Seguro ao norte,
determinante é o político (...) relações que mis-
Alcobaça ao sul, Itamaraju e Vereda a oeste e o
turam o simbólico com o político, manipulam
oceano atlântico a leste. É acessível através das Br:
pessoas e grupos, introduzem nos rituais e nos
101, Ba: 001 e Ba: 456. A cidade possui campo de
trabalhos folclóricos de outra qualquer natu-
pouso para aeronaves de pequeno porte e localiza-
reza interesses “extra-folclóricos”, servem à
se a aproximadamente duas horas do aeroporto de
redução de tensões e conflitos sociais derivan-
Caravelas. Existem linhas de ônibus interurbanas
do, por exemplo, para FESTA o que poderia
com saídas diárias de Salvador com destino a
ser LUTA” (1982:98-99)
Itamaraju, de onde partem outros coletivos a inter-
Já Niomar de Souza Pereira destacou o fato de
valos regulares rumo ao terminal rodoviário muni-
que “tais manifestações fazem parte da cultura
cipal de Prado.
espontânea do homem, aquela que não se aprende
O censo demográfico do IBGE de 1991 estimou
na escola” (1986:13). No entanto foi Rossini
a população de Prado em 22.632 habitantes. O
Tavares de Lima, em seu estudo A ciência do fol-
município possui 84 Km de praias despoluídas como
clore, quem buscou sintetizar e esclarecer os pro-
Viçosa, Paixão, Japara Grande, Japara Mirim e
cedimentos metodológicos da pesquisa sobre o fol-
Areia Preta (é possível observar a presença de gol-
clore, ao alertar que:
finhos em algumas delas). Foi em Prado, na foz do
“(...) o folclore se desenvolve como uma plan-
rio Cahy, que o capitão Nicolau Coelho, integrante
ta no terreno da vida social, do qual tira suas
da esquadra de Pedro Álvares Cabral, fez o primei-
formas e seus caracteres. Portanto, não se pode
ro contato com os habitantes da terra antes do de-
fazer uma boa análise e uma interpretação dos
sembarque oficial português no Brasil. No local
traços e complexos culturais espontâneos se não
existe um marco simbólico em memória deste acon-
os observarmos no contexto da sociedade em
tecimento histórico (uma cruz de madeira) e a praia
que existem, buscando esclarecimentos sobre
na qual desemboca o rio Cahy chama-se Praia
sua significação como manifestação da classe
Nicolau Coelho.
baixa, média, alta ou de todas as classes e tam-
O município foi contemplado com a inclusão de
bém nas características profissionais”.
(1978:30) 17 Km (da Foz do rio Cahy até Corumbau) na fai-
O tempo exíguo destinado à pesquisa bibliográ- xa territorial designada Museu Aberto do Desco-
fica e de campo (entrevistas, áudio-vídeo registro e brimento - MADE pelo governo do Presidente
documentação iconográfica), assim como a carên- Fernando Henrique Cardoso. A partir de
cia de recursos financeiros, materiais e humanos Cumuruxatiba, um dos distritos do Prado, é possí-
destinados ao seu exame, impuseram limites ao pre- vel refazer parte da rota seguida pela esquadra lu-
sente trabalho sobre a Marujada em Prado. Este sitana em 1500 ao longo da costa brasileira. Além
estudo resultou do conjunto de esforços empreendi- do turismo, a economia municipal está voltada para
dos com a intenção de resgatar, documentar e a agricultura, a pesca, a pecuária e a extração

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madeireira. Na atividade agrícola os principais cul- da região, convertida em abastecedora de importan-
tivos temporários são os do abacaxi, do amendoim, tes mercados do nordeste naquele século. Destacou-
arroz, batata-doce, cana-de-açúcar, feijão, mandi- se especialmente a cultura do café nas áreas próximas
oca, melancia e milho. E as mais importantes cul- do atual município de Nova Viçosa.
turas permanentes são as da banana, do cacau, café, Com a abolição da escravatura no Bra-
coco, laranja, limão, mamão, maracujá e pimenta sil em fins do século XIX, ainda de acordo com
do reino. Dos treze pontos ideais para pesca no ex- o documento da ASTRESB, negros libertos,
tremo-sul baiano, quatro pertencem ao município brancos, pobres e mestiços organizaram na re-
de Prado. A atividade pesqueira é um setor que gião uma sociedade baseada na pequena pro-
absorve significativa quantidade de mão-de-obra e priedade familiar, acompanhando as margens
se constitui em importante fonte de renda para gran- dos rios no sentido litoral-interior. Foi somen-
de número de famílias. O processo de extração e te a partir de 1960 que novo ciclo madeireiro
beneficiamento da madeira também é bastante ex- se iniciou devido à abertura e posterior asfalta-
pressivo no município – que abriga treze unidades mento da Br: 101 – que viabilizou o escoamento
industriais ligadas à atividade madeireira.
da madeira. Este processo de derrubada da mata
Breve histórico da ocupação atlântica foi liderado por empresários capixa-
do extremo-sul baiano bas que em pouco mais de dez anos promove-
ram o quase completo desmatamento da região.
Sabe-se que o extremo sul da Bahia foi a pri- Derrubada a mata, instalou-se o pasto. A pecu-
meira área geográfica brasileira a ser avistada e ária se expandiu sob o comando de criadores mi-
abordada pela esquadra portuguesa sob o coman- neiros, e algumas cidades localizadas no interior da
do de Pedro Álvares Cabral. A ocupação da re- região, como Itanhém e Medeiros Neto, passaram
gião teve início com o ciclo do pau-brasil, e in- a se destacar. No entanto é às margens da Br: 101
crementou-se ao longo do século XVI com o plan- que se desenvolveram importantes pólos regionais,
tio de cana-de-açúcar. Mas a descoberta de solos como Eunápolis, Itabela, Itamaraju e Teixeira de
mais apropriados ao desenvolvimento da cultura Freitas, cidades nas quais se concentravam as ser-
da cana fez com que a sua população se fixasse rarias e o setor de serviços. Por ser muito intensa, a
na faixa litorânea, justificando-se assim o fato de extração da madeira acarretou a rápida decadência
existirem até meados do século XVIII apenas as desta atividade econômica – que ainda hoje carac-
vilas de Porto Seguro, Santa Cruz e alguns pou- teriza parte da economia da região. Itamaraju e Ita-
cos povoados. bela deixaram de crescer e os municípios de Euná-
O documento Agricultura Familiar no Extremo polis e Teixeira de Freitas assumem a liderança do
Sul da Bahia, assinado pela ASTRESB (Articulação desenvolvimento regional, apoiados na expansão do
dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais do Extremo setor de serviços. Recentemente, os municípios de
Sul da Bahia) e pelo grupo Terra Viva (Centro de Porto Seguro e Prado começaram a se destacar com
Desenvolvimento Agroecológico do Extremo Sul da base em outra atividade econômica de importância
Bahia), fornece dados sobre o contexto sócio-históri- cada vez maior: o turismo.
co onde ocorre a manifestação folclórica da Maruja- A agricultura de mercado desenvolveu-se há
da. De acordo com este documento, só com a incor- pouco tempo no extremo sul da Bahia, a reboque
poração da Capitania de Porto Seguro à Capitania da da chegada de japoneses e de empreendedores su-
Bahia, no século XVIII, é que a região passou a ser listas e de outras regiões do país. Destaca-se, neste
mais intensivamente ocupada. Nesta época teve início o processo, a cultura mecanizada do mamão com
incremento da extração madeireira. Paralelamente à ex- ampla utilização de insumos químicos e defensivos
tração da madeira, rapidamente se desenvolveu a produ- agrícolas. A adoção do modelo de agricultura
ção de gêneros alimentícios – que acabou por transfor- mecanizada sinaliza atualmente para a diver-
mar-se rapidamente na principal atividade econômica sificação de culturas. Mais recentemente se

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instalaram na região indústrias de celulose: tórico de ocupação e as condições de relevo deter-
“(...) São grandes empresas que com grandes minaram diferenças mais significativas no sentido
incentivos fiscais e financiamentos públicos litoral-interior. Ao lado de grandes latifúndios coe-
estão construindo fábricas de celulose e plan- xistem onze áreas de reforma agrária e várias ou-
tando grandes maciços homogêneos de tras ocupações de terras ainda não regularizadas.
eucalipto. Ao sul da região se instalam a A faixa litorânea tem seu desenvolvimento atual
Aracruz Celulose (com fábrica no norte do Es- associado ao turismo e nela se localizam o Parque
pírito Santo) e a Bahia Sul Celulose. Ao norte Nacional do Monte Pascoal, a reserva indígena do
pretende-se instalar a Vera Cruz Florestal, que grupo Pataxó e municípios de importância históri-
já iniciou o plantio de eucalipto. Esta ativida- ca como Prado. No litoral a população regional
de agrava o processo de concentração de ter- chega a dobrar na temporada de verão.
ras e poder e provoca um alto impacto
ambiental constituindo-se na maior preocupa-
O culto a São Benedito, o santo preto
ção do atual modelo de desenvolvimento regi-
onal, especialmente porque sua tendência é de
expansão, com permanente apoio do Estado. Embora o turismo se constitua numa ativida-
Embora não exista um plano de desenvolvimen- de econômica de importância crescente no extre-
to oficial por parte do Estado, sabe-se do com- mo-sul, particularmente em Prado, não foi pos-
promisso dos atuais governantes com o setor sível constatar nenhuma ação da administração
de produção de celulose e documentos chegam municipal, até abril de 1996 (época da coleta de
a propor a instalação de 05 (cinco) unidades dados), no sentido de apoiar e incentivar a ex-
produtoras de celulose, o que transformaria a pressão cultural popular da Marujada ou mesmo
região em uma grande monocultura de de incluí-la na programação turística oficial da
eucalipto.” (ASTRESB/Terra Viva, 1996:24) cidade. A organização de figurinos, ensaios, ins-
Diante do acima exposto não é difícil concluir trumentos e adereços era iniciativa exclusiva dos
que a pequena economia baseada na agricultura festeiros – geralmente membros da comunidade
familiar vem sendo substituída por grandes propri- vinculados à atividade pesqueira, católicos e/ou
edades destinadas à pecuária, agricultura mecani- devotos de São Benedito.
zada e monocultura de eucalipto. Esta situação in- .Segundo Monsenhor Ascânio Brandão, a de-
crementa o êxodo dos ex-pequenos proprietários voção a São Benedito, em nenhum país do mundo,
para a periferia dos grandes centros urbanos regio- nem mesmo na Sicília (Itália) - pátria do taumatur-
nais, nos quais passam a sobreviver subemprega- go - é tão grande e fervorosa como no Brasil. A
dos – por não possuírem a qualificação profissio- Marujada em Prado ocorre no segundo dia de Pás-
nal exigida pela competitividade crescente do mer- coa, inclusa nas comemorações do aniversário de
cado de trabalho. morte deste santo. Benedito fora pastor de ovelhas
Em resumo, o extremo-sul baiano constitui-se desde criança. Aos 18 anos sentiu o desejo de se
de vinte e um municípios, abrangendo uma área de consagrar totalmente à Igreja e, incentivado por Frei
30.420 quilômetros quadrados. Limita-se ao norte Jerônimo Lanza, ingressou então na Ordem dos Ir-
com as regiões sudoeste e sul da Bahia, tendo como mãos Eremitas de São Francisco onde passou a
referência o rio Jequitinhonha; ao sul com o estado aconselhar pessoas, curar enfermos, cegos e operar
do Espírito Santo; a oeste com Minas Gerais e a milagres – ainda que analfabeto e irmão “leigo”.
leste com o Oceano Atlântico. De acordo com o Em 1562 o Papa Pio IV ordenou que os eremitas
censo de 1991, a região possuía 532.342 habitan- de Frei Jerônimo se recolhessem a qualquer dos con-
tes, sendo que 137.459 na zona rural (excetuando- ventos aprovados pela Santa Sé. Benedito elegeu
se a população de povoados). Apesar de ser muito então a Ordem dos Frades Menores Reformados.
mais extensa no sentido norte-sul, o processo his- Morreu em 4 de abril de 1589, terça-feira de Páscoa,

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às 19:00h, com 65 anos de idade (Brandão,1979). aos escravos não trabalharem” – o que explicaria
Monsenhor Ascânio esclarece que: a incorporação dos batuques, cânticos, danças e a
“A família de Benedito era descendente da alegria do povo negro à festa.
África. Oriundos da Etiópia, os avós do Santo Ivo Soares de Matos (1980:57), examinando as
eram tipos legítimos do africano daquela origens de folguedos populares de Minas Gerais e
região. Benedito nasceu com aquela cor dos extremo sul da Bahia, diz que:
nascidos na África (...) A mais humilde “Por vezes, as músicas (...) se tornam
possível, foi a origem do Santo. Era filho de incompreensíveis em vista de seus temas serem
Cristóvão Manasseri e Diana Larcan, antigos e da influência africana (…) Os marujos
descendentes de escravos trazidos da Etiópia pela influência dos portugueses, vestem-se de
para a Sicília. O pai fora escravo de um rico marinheiros, cantam e dançam descrevendo a
senhor: Vicente Manasseri, e dele recebera o guerra entre mouros e cristãos, acompanhados por
sobrenome. (...) Os escravos tomavam o nome instrumentos de percussão e uma viola.” (Grifos
do seu senhor.” (1979:9-10) meus)
Em 1592 o corpo do frei negro foi transladado Ainda é o próprio Ivo quem explica que:
para a sacristia da igreja do convento de Santa “Quando os portugueses chegaram ao Brasil
Maria, em Palermo. Diante do crescente número de o ideal luso era dilatar as fronteiras não só do
visitantes à sua sepultura, em 1611 os restos mortais Império, mas também da fé católica. E isso
do santo foram transferidos para uma urna de cristal ficava a cargo dos jesuítas, que sentiram logo
e permanecem em exposição junto ao altar da a necessidade de orientar o instinto guerreiro
Virgem na igreja daquele convento. No ano de 1652 do índio e as velhas práticas africanas para o
o povo de Palermo proclamou o beato Benedito seu cristianismo. Inspirando-se portanto, na
protetor. Aos 23 de maio de 1807 o Papa Pio VII epopéia francesa “Canção de Rolando”, deram
declarou sua santificação. Atualmente o corpo do ao bailado popular, já existente, um conteúdo
frei encontra-se em uma urna numa capela lateral totalmente novo: o sentido religioso.
da igreja de Santa Maria, em Palermo, Itália Assim (...) numa crescente propagação da fé, e
(Brandão, 1979). cujo enredo desenvolvia o tema da conversão,
Ainda é Monsenhor Brandão quem identifica as todos deveriam se conscientizar da grande luta
origens do culto a São Benedito, no Brasil: que o homem tem de enfrentar: o bem e o mal.
“Iniciou-se na Bahia. Na catedral da Bahia, O mal deve perecer, o bem, vencer; o mal é
em 1686, já se festejava o Beato e, neste mesmo mouro, o bem, cristão.” (1980:57) (Grifo meu)
ano, foram criados e encaminhados a Roma os
estatutos da Irmandade do Bem Aventurado Frei
Benedito de Palermo. Antes da canonização o
Santo já estava sendo popular no Brasil.” Aspectos Cênicos
(1979:105-106) da Marujada em Prado
O espetáculo
Origem da Marujada em Prado
A organização da Marujada em Prado é uma
iniciativa de pescadores (marujos), devotos de São
Segundo dona Ditosa, professora aposentada Bendito. O evento não possui fins lucrativos ou ca-
e antiga moradora do Prado, a festa de São Benedito ráter de exibição para turistas. Até 1996 não con-
teve início no município por volta de 1866. A tava com nenhum auxílio financeiro ou apoio cul-
realização da Marujada no período de
tural da administração municipal. O folguedo tem
comemorações do aniversário de morte do santo
início à meia-noite do domingo de Páscoa, com
católico passou a existir, de acordo com o seu relato,
a alvorada. A alvorada consiste de cânticos
“porque no segundo dia de páscoa era permitido

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ritmados acompanhado por violão, viola, pandeiro com pano e cada participante escolhe individual-
e vozes, além de queima de fogos de artifício e mente os seus motivos e cores. Alguns chapéus
rojões. Os cânticos geralmente se referem ao santo possuem uma espécie de árvore minúscula e cinti-
negro da igreja católica, muitas vezes enunciados lante que sai de um pequeno espelho ovalado, fixa-
numa espécie de “dialeto” afro-ameríndio. Partici- do na parte frontal
pam da alvorada o festeiro ou festeira do ano e os
musgos (tocadores de instrumentos), entre os quais Repertório gestual, música, coreografia e
se encontram os puxadores - espécie de corifeu, isto caracterização dos brincantes
é, líderes corais do grupo que canta.
À alvorada, segue-se a organização do cortejo. As pessoas que integram o cortejo são oriundos
A sua formação dá-se na casa do(a) festeiro(a), onde de grupos populares como pescadores, pequenos
é montado um altar com as imagens dos santos ho- lavradores e comerciantes do município. O reper-
menageados. A decoração do altar é feita basica- tório gestual é muito simples e as melodias e letras
mente de papel crepom, flores naturais coloridas e das músicas são de fácil acompanhamento. Os mo-
toalhas brancas. Diante desse altar, antes da saída vimentos são ritmados, com pisadas fortes sobre o
em procissão até a igreja matriz do município, de- chão (duas vezes para um lado e outras duas para o
votos rezam e reverenciam as imagens. Da casa do outro). Os procedimentos cênicos dos brincantes
festeiro, o cortejo segue até a residência do pároco no cortejo são transmitidos oralmente, de geração a
local. Dali as pessoas dirigem-se até o templo, em geração, sem auxílio de nenhuma espécie de cader-
procissão, para participarem da missa, onde can- nos de festa ou outro qualquer registro escrito. As
tam, caracterizadas, ao som de instrumentos de pessoas participam da festa por devoção a São Be-
corda e de percussão. Durante a celebração religio- nedito e pelo fato de solicitarem bênçãos ou paga-
sa participam entoando cantigas nos momentos pre- rem promessas ao santo negro.
viamente determinados pelo padre. Após o ato reli-
gioso reúnem-se na frente da igreja matriz e voltam Produção e
Produção xecutiva do evento
ex
a formar o cortejo, desta vez de caráter profano,
que segue pelas ruas da cidade parando em frente A Marujada em Prado é organizada com um ano
às casas daqueles que querem encomendar bênçãos, de antecedência – quando se faz o sorteio do festeiro
pagar promessas ao santo ou de quem lhes solicita ou festeira do ano seguinte. O sorteio ocorre da se-
a presença e lhes oferece, em troca, bebidas alcoó- guinte forma: em uma caixa de papelão são coloca-
licas e comida. Do cortejo participam moços, ido- dos os nomes de todos os devotos do Santo (os
sos e crianças de ambos os sexos, trajados “a ri- marujos). Em outra é colocada uma mesma quanti-
gor”. dade de papéis em branco com exceção de apenas
um deles – em que vai escrita a palavra festeiro.
Figurinos e adereços Dois a dois os devotos se dirigem às caixas e reco-
lhem os papéis, até que um par traga a público o
As roupas dos marujos são de cor branca: espé- nome do responsável pela festa do ano seguinte.
cie de “batas” sobre calças. As “batas” - camisões Conhecido o próximo festeiro ou festeira, este(a)
largos sobre as calças - são enfeitadas com franjas se obriga a “produzir” a festa, com a colaboração e
e fitas com cores a critério de cada um. As calças ajuda dos demais devotos de São Benedito.
possuem fita colorida na costura lateral externa de
cima a baixo. São utilizados também, compondo o Sincretismo religioso
traje, chapéus de formas e materiais variados, de-
Marujo também é o nome dado a uma entidade
corados com fitas na parte posterior e espelho na
que se manifesta durante os cultos mágico-religiosos
parte anterior, além de purpurina, miçangas e da umbanda, que é regida pelo elemento água. Esta
lantejoulas em formatos e tons diversos. Estes são entidade é representada por um marinheiro travesso,
muitas vezes confeccionados de cartolina forrada que gosta de cantar, beber, fumar e ajudar seus

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“protegidos” sempre em troca de oferendas que Conclusão
lhe agradem (cigarros, bebida e dinheiro). Embora
não haja uma alusão explícita a tal entidade duran- Não foi constatada a construção de nenhuma
te a festividade, alguns cânticos e a maneira de se espécie de personagem dramática e nem a encenação
mover de alguns brincantes durante o cortejo, ao de quaisquer dos episódios que costumam ser
som dos instrumentos de corda e percussão, são representados nas Cheganças ou Fandangos, de
seme- lhantes aos mesmos utilizados pelos mé- estrutura dramática. Assim sendo, pode-se
diuns que incorporam o Marujo nos cultos de classificar com segurança esta Marujada do Prado
umbanda. Durante a parte profana da festa, espe- como um folguedo popular de caráter teatral com
cialmente após a ingestão de grande quanti-dade estrutura coreográfica e de cortejo, de temática
de bebida alcoólica, muitos dos brincantes pare- marítima, inserido no ciclo de festas religiosas
cem ser levados a uma espécie de transe – quando (Páscoa).
sua performance assemelha-se demasiado àquela O presente trabalho, realizado em 1996, é ape-
dos médiuns que incorporam o Marujo. nas uma abordagem inicial da Marujada, conforme
Segundo os depoimentos colhidos durante a festa ocorre no extremo sul do estado, no município de
de 1994, alguns pescadores do município, devotos Prado. As informações que foram obtidas em cam-
de São Benedito, afirmaram que a Igreja Católica po só fizeram crescer em nós o desejo de um exame
sempre aceitou a participação popular na devoção mais profundo e demorado desta expressão cultural
a São Benedito, permitindo a presença dos maru- popular na Bahia. Este artigo, uma modesta contri-
jos com seus instrumentos, indumentária e cânticos buição aos saberes sobre folguedos populares bra-
no interior da igreja matriz da cidade durante a sileiros, testemunha os esforços, na área de Artes,
de valorização da pesquisa acadêmica nos cursos
missa, na parte religiosa do evento.
de graduação da UNEB/Campus X – Teixeira de
Ivo Soares de Matos assinala alguns aspectos
Freitas/Ba.
sincréticos na utilização de determinadas cores e Para encerrar, só nos resta concordar com Matos
“títulos hierárquicos” nos folguedos populares de-
quando este diz que:
nominados Marujada, Fandango ou Congada,
“É amargo, ao mesmo tempo, ver se extin-
como é possível verificar a seguir: guirem essas manifestações tão autênticas, tão
“(…) em vários pontos do país, os grupos co- puras, de um sentimento que chega a emocionar,
meçaram a adotar as cores nacionais para a não pelo visual, mas pela fé estampada nos
sua indumentária. Deixaram em parte o azul olhos claros, escuros, apagados, maltrapilhos,
(dos Cristãos) e o vermelho (dos Mouros), para suados, esfomeados, curtidos, mas
adotar o verde (batalhão de periquitos) e o essencialmente VIVOS.
amarelo-berrante (do ingênuo nacionalismo). Essas manifestações estão sendo esmagadas
Foi adotado, ainda, um sincretismo militar, pela televisão, pelo rádio, pelas multinacionais,
donde surgiu a hierarquia de alferes, tenentes, pelas revistas comerciais (...) o que se ouve hoje
são vozes roucas, cantando, ao som de violas
capitães e generais, que perdura até hoje.”
enfeitadas de fitas azuis, as ladainhas e os
(1980:56) lamentos cativos. E os filhos da hereditariedade
No entanto, pelo menos na Marujada objeto não sofrem mais a influência de seus pais,
deste estudo, não se confirmou tal sincretismo “mi- porque foram roubados na sua pureza.” (Grifos
litar” ou de “cores”. meus)

NOTAS
NOTAS

1
Professor da UNEB/Campus X - Teixeira de UFBa; mestre em Artes pela ECA-USP; doutorando
Freitas/Ba; licenciado e bacharel em Teatro pela da Faculdade de Educação da USP sob orientação

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 101-108, jan./junho, 2000 107


da Profª. Drª. Marta Kohl de Oliveira. E-mail: Cristina F. de Souza, Maria do Socorro
rjapias@bol.com.br Genu Bastos e Paulo César Vieira Dantas.
Uma cópia do vídeo-registro foi entregue à
2
A pesquisa de campo contou com a colaboração biblioteca da UNEB/Campus X – Teixeira de
dos alunos Ana Maria F. Favarato, Karina Freitas/Ba.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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reprográfica, 1996.
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PEREIRA, Niomar de Souza. Folclore: teorias-conceito-campo de ação. São Paulo: Nacional, 1986.

108 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 101-108, jan./junho, 2000


A POLÍTICA DE DESCENTRALIZAÇÃO DA
EDUCAÇÃO NA AMÉRICA LATINA
Margarita Victoria Rodríguez
Professora da Universidade Federal do Maranhão

Resumo assumir uma ação subsidiária, concentrando suas


funções no financiamento, regulação e desenho das
O trabalho pretende realizar algumas políticas sociais, e o setor privado foi ocupando um
considerações sobre as reformas educacionais na importante espaço na provisão dos “serviços
América Latina durante a década de 90, visando sociais”.
aprofundar o estudo das características que a Este fenômeno obedece a varias razões. Por um
descentralização dos “serviços educativos” assumiu. lado, a profunda crise econômica da região impede
Foram focalizados alguns países que iniciam a que os Estados continuem assumindo, em sua
transferência das responsabilidades educativas totalidade, as funções que, de maneira tradicional,
durante a década de 70 e 80 – como Argentina e vinham desenvolvendo. Por outro, o financiamento
Chile – , e países que se incorporam a este processo externo começou a ficar restrito e condicionado a
de “transformação” na década de 90 – Colômbia, uma “verdadeira modernização do Estado” –
México e Bolívia. Com efeito, os governos latino- traduzida numa redução dos gastos públicos – ,
impossibilitando a expansão de políticas sociais, em
americanos enfrentaram a crise econômica do setor
razão da baixa taxa de crescimento econômico da
público, adotando a descentralização dos serviços
região.
educativos como uma estratégia para melhorar a
Neste contexto, os governos adotaram uma série
“qualidade da prestação”, constituindo, além disso,
de estratégias para assegurar o uso “eficiente” dos
um recurso de caráter econômico e político. O
magros recursos disponíveis destinados ao
processo de transferência procura envolver a
financiamento das diferentes políticas sociais. A
comunidade local na gestão escolar, visando
descentralização1, a desregulação e a privatização
diminuir os gastos do Estado em educação e
dos serviços sociais foram o instrumento principal
propiciar uma maior participação do setor privado.
para “melhorar a qualidade da prestação”, mas
Por outro lado, a descentralização permitiu
também representaram um recurso de caráter
aumentar o controle dos atores sociais vinculados econômico e político. Com efeito, as diferentes
ao setor educativo (professores, família etc.) administrações centrais iniciaram um processo de
facilitando a “fiscalização” e contenção dos conflitos recorte de gastos, mediante o qual passaram a
setoriais, como resultado do processo de dispersão responsabilidade do setor educativo para os níveis
administrativa. de gestão menores (estados e municípios), deixando,
muitas vezes, de financiar de modo adequado o
Introdução processo de descentralização. Da mesma forma, a
descentralização significou, politicamente, um
A América Latina, durante a década de 80 e maior controle dos atores sociais, facilitando a
início dos 90, desenvolveu reformas estruturais, contenção de conflitos setoriais.
visando transformar o papel do Estado. Diminuiu Essas reformas foram aplicadas na maioria dos
sua intervenção direta na economia e adotou países da região: Argentina, Chile, Brasil, Colômbia,
políticas sociais de caráter compensatório, México, Bolívia, Nicarágua, Venezuela, Equador,
abandonando as práticas de bem-estar social que entre outros. Devemos destacar que em alguns países
haviam caracterizado os Estados americanos, – Bolívia, Nicarágua, Peru – este processo é mais
durante as últimas décadas. O Estado passou a recente (Moura Castro e Carnoy, 1997).

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A descentralização da educação, na Argentina, o desenvolvimento dos estabelecimentos privados
iniciou-se durante a ditadura militar em 1978, (Tedesco, 1992).
aprofundando-se em 1992, durante o governo de Por outro lado, a região registra diferentes níveis
Carlos Menem. No Brasil, a partir de 1970, começa de ruralidade. Existem países, como Bolívia,
a descentralização, chegando à sua máxima Nicarágua e México2, com altos índices de matrícula
expressão durante a década de 90. Já no Chile nas zonas rurais (aproximadamente 40% da
começa em 1981, durante a ditadura de Augusto matrícula são na zona rural), e países como Brasil,
Pinochet. Colômbia, entretanto, desenvolve uma Chile e Colômbia, que possuem uma matrícula rural
forte política descentralizadora a partir de 1991, em torno de 20% sobre o total da matrícula.
México em 1992, Bolívia em 1994. A situação educativa da América Latina, no
início dos anos 90, é ainda insatisfatória, se a
comparamos com outras regiões de desenvolvimento
Os desafios atuais: a semelhante. A escolaridade média da população
universalização da educação em adulta, em 1996, é de apenas 5,2 anos. Segundo a
nível acadêmico e a superação das opinião dos especialistas, a região tem um atraso
desigualdades de aproximadamente dois anos, no que diz respeito
aos outros países de mesmo desenvolvimento. O
A América Latina apresenta profundas maior problema detectado é a baixa qualidade da
diferenças regionais no seu desenvolvimento educação, que se manifesta nos indicadores de
econômico, que se manifestam tanto entre os países repetência3 e nos resultados de provas internacionais
que compõem a região, quanto no interior dos países. de rendimento. Com efeito, em 1989, menos da
Por exemplo, Argentina, Chile e Uruguai são países metade dos estudantes de ensino de primeiro grau
que se caraterizam por baixos níveis de pobreza, terminou o ciclo escolar. Outro problema que os
mortalidade infantil e analfabetismo, denotando uma países enfrentam é o baixo nível socio-econômico,
satisfatória qualidade de vida. Colômbia e México que se vê aprofundado na década de 80 e 90, com
estão colocados num patamar intermédio dos uma taxa de crescimento relativamente baixa.
indicadores antes mencionados. Entretanto, Bolívia, Todos os estudos coincidem em assinalar que,
Brasil, Peru, Equador, Nicarágua, entre outros, durante os anos 80, os sistemas educativos da região
registram altos índices de pobreza, mortalidade privilegiam as políticas de acesso, ampliando a
infantil e analfabetismo (CEPAL, 1990/1998). cobertura, especialmente no ensino básico4. Esta
Durante as décadas de 80 e 90 aumentaram os política de universalização contribuiu para a
índices de pobreza na maioria dos países da América incorporação de grandes massas ao sistema, fazendo
Latina, onde as crises das economias regionais têm com que a escola atuasse dentro de um contexto
condicionado o crescimento e desenvolvimento extremamente complexo, devido à diversidade
global. Os setores sociais de baixa renda foram os cultural, social e étnica da população. O grande
mais afetados. A pobreza, o desemprego, a inflação, desafio consiste em melhorar a qualidade do ensino,
os ajustes econômicos, as privatizações, a redução
num espaço de profundas desigualdades sócio-
das inversões em políticas sociais marcaram o
econômicas.
cotidiano da sociedade latino-americana, nos
No decorrer dos anos 90 aparece, no discurso
últimos anos.
Embora as reformas estruturais dos Estados das autoridades e organismos internacionais, a
Nacionais tenham sido caraterizadas por uma preocupação por uma maior “eqüidade” no ensino,
agressiva política de privatizações, existe, ainda, que deixa de estar associada ao conceito de
na região um predomínio do setor público na igualdade de acesso e igualdade de resultados, e
provisão de educação, sendo maior sua presença passa a ser entendida como uma forma de ação que
no ensino básico, denotando a forte presença do setor supõe uma melhor e progressiva distribuição dos
público, apesar das tendências privatizadoras. O meios materiais. Ou seja, implica destinar mais
Chile comporta-se de modo diferenciado, já que na recursos, tempo de aprendizagem e assistência aos
década de 80 instaurou uma reforma que favoreceu mais desfavorecidos. Podemos constatar, na região,

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uma recuperação dos gastos em educação durante organização de um fundo destinado ao ensino básico
os anos 90 5, subsistindo, contudo, grandes (Brasil, Chile, Colômbia), visando fortalecer as
problemas que demandam uma maior inversão na instituições escolares, financiando programas de
área (Cominetti e Di Gropello, 1994). capacitação de professores, provisão de materiais
Existem notórias diferenças entre os países, no didáticos, livros, equipamentos de informática, entre
que diz respeito aos gastos em educação anteriores outros. Mas tais esforços ainda não satisfazem às
às reformas 6. Assim, verificamos os casos de demandas de todo o sistema. É preciso desenvolver
Bolívia e Chile, que destinam 4% do PBI - Produto uma estratégia global que atenda a toda a população.
Bruto Interno, enquanto Colômbia, Argentina e Também é imprescindível que os órgãos
México não alcançavam mais de 3%. Constatamos, governamentais exerçam suas ações na gestão com
na maioria dos países da região, um leve incremento maior transparência, acompanhada por uma
nas porcentagens destinadas à educação durante a verdadeira participação da sociedade, tanto na
década de 90. Porém, deve-se destacar que a Bolívia execução quanto na avaliação e no controle da
não gasta mais de 40 dólares per capita em gestão. As autoridades deverão assumir que
educação, e o México apenas 27 dólares. Entretanto, representam os interesses da sociedade e que estão
conforme os últimos dados, o Brasil gastava 76,3 obrigadas a prestar contas de sua administração.
dólares, em 1990; e, em 1994, o Chile gastava 67,4 Não é admissível que, nos diferentes níveis de
dólares, e a Colômbia 44 dólares, respectivamente. gestão, considerem-se as ações oficiais como
Com efeito, o ensino, em todos seus níveis, “segredo de Estado”. Uma administração
durante a década de 80, foi vítima das políticas de transparente, capaz de agir de modo dinâmico, que
ajuste, agravando a já abalada qualidade. avalie permanentemente sua ação e que não tenha
Atualmente, os governos estão fazendo esforços medo de expor suas fragilidades poderá caminhar
direcionados a superar a deterioração do ensino, para uma reforma da educação, no sentido de
mas isto implica grandes investimentos financeiros impulsionar estimáveis melhorias no setor.
na área educativa, além de um projeto político que
realmente privilegie o desenvolvimento do ensino A descentralização da educação e
público, gratuito e de nível acadêmico. No entanto,
suas conseqüências
sabemos que nossos países enfrentam problemas
sérios de déficit fiscal, dívidas externas que são
Alguns países latino-americanos encararam as
praticamente impagáveis, falta de lideranças suas reformas descentralizadoras durante os anos
qualificadas para desenvolver projetos e propostas oitenta e, ainda antes, com motivações iniciais de
inovadoras, profunda corrupção nos diferentes índole fiscal. Embora nos anos noventa subsista a
níveis do governo e na burocracia do Estado, entre intencionalidade de ajuste econômico, as reformas
outros. Isto nos leva a pensar que será muito difícil ainda têm uma preocupação de ordem política – o
superar estas diferenças, num curto prazo. discurso é: “estimular a participação da sociedade”
Devemos destacar, ainda, que as perspectivas – e procurar dar uma maior eficiência ao sistema
de melhoria no nível acadêmico, assim como a educacional (Di Gropello, 1997).
universalização maciça do ensino, são metas que A seguir, destacaremos algumas características
demandaram um grande esforço, tanto das da descentralização em alguns países como
autoridades governamentais, quanto das próprias Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia e México.
pessoas envolvidas no processo educacional.
Nesse sentido, a melhoria da qualidade 1. A Argentina descentralizou a educação básica,
educacional é um tema que está presente na agenda em 1978, e o ensino médio, em 1992, visando
política e no discurso oficial dos diferentes países. transferir o peso financeiro do estado central para
Observa-se um interesse de recuperação do gasto os estados provinciais, e provocando, em meados
educativo. Muitos países da região têm aplicado da década de 80, uma considerável diminuição no
medidas, nesse sentido, como por exemplo a gasto público educativo. Em 1992, a transferência

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do ensino médio para as províncias foi uma Administrativa (1995), que define a estrutura de
iniciativa do governo central, que organizou, junto poder, a nível departamental, estabelecendo os
às províncias, as estratégias de descentralização, recursos e mecanismos de transferência dos recursos
procurando obter o necessário consenso para financeiros para os departamentos (Secretaría
efetivar a reforma (Braslavsky, 1998). Porém, as Nacional de Bolivia Educación, 1996).
motivações continuaram sendo de índole fiscal e A descentralização também apóia-se na Lei de
macro-econômica. Reforma Educativa promulgada em julho de 1994,
A transferência de responsabilidades para os que normatiza os aspectos interculturais,
estados provinciais foi feita sem ter um marco multilingüísticos, universais e participativos da
normativo adequado que regulasse o setor. Só em educação boliviana, e estabelece uma estrutura
1993 sancionou-se a lei federal de educação, descentrada de administração do sistema.
promovendo o marco legal regulador (Tiramonti, A Lei de Participação Popular estabelece a
1997). Este processo aumentou as responsabilidades transferência da infra-estrutura física da educação
do Conselho Federal de Cultura e Educação, que aos municípios, que deverão responsabilizar-se pela
procurou unificar vários aspectos educacionais entre operacionalidade do serviço e dos gastos. A Lei de
as províncias, além de promover a participação da Descentralização Administrativa transfere aos
sociedade no planejamento educacional. Mas esta departamentos responsabilidades de planejamento
instituição não dispõe de recursos próprios, nem e administração dos serviços educativos e dos
tem faculdades decisórias, comprometendo a “tão recursos humanos. Contudo, a municipalização foi
esperada participação social”. aplicada rapidamente, sem estabelecer um programa
O “modelo” implementado pretendeu privilegiar
progressivo de transferência municipal, enquanto a
a autonomia econômico-financeira e administrativa,
departamentalização está sendo desenvolvida de
deixando, num segundo plano, a autonomia
modo gradual.
programática. Estruturou-se um tipo de gestão
fundada em algumas diretrizes centrais, Este processo se carateriza por uma
oficializadas a partir da promulgação da Lei Federal, “descentralização de gestão”, em que 95 % do
visando dar autonomia decisória às províncias. Mas financiamento estão a cargo do governo central,
estas, por falta de participação dos grupos locais assim como a administração de pessoal e as
nos assuntos educativos, desenvolvem ações de principais decisões na política educacional ficam
caráter centralizado. Com efeito, em alguns casos, concentradas no MEC. Existe uma co-respon-
as jurisdições provinciais não contavam com os sabilidade de gestão, no que diz respeito à provisão
técnicos devidamente capacitados para discutir com do serviço por parte dos municípios que administram
as autoridades do MEC o rumo da política de os recursos, a inversões no setor e à manutenção
descentralização, e optavam por aceitar, sem das escolas. A supervisão do sistema educacional,
restrições, as diretrizes do governo nacional. a gestão da política trabalhista e a escolha de
conteúdos são responsabilidades compartidas entre
2. A descentralização educativa na Bolívia fica o governo central e os departamentos (Secretaria
dentro de um marco político mais amplo de Nacional de Educación, Bolivia, 1996).
descentralização, que tem como substrato legal: a) Está previsto um espaço para a participação da
A Lei de Participação Popular, de 1994, que comunidade local em assuntos pedagógicos e de
estabelece as bases legais e mecanismos de supervisão, organizada através de conselhos
participação cidadã na tomada de decisões, e departamentais, juntas distritais e escolares
promove a organização de governos municipais (Secretaria Nacional de Participación Popular de
autônomos, conjuntamente com a transferência de Bolivia, 1996). Porém, a autonomia escolar ainda
recursos e meios de ação; b) A lei de Reforma da não existe. No entanto, o governo, eleito em 1997,
Constituição Política do Estado (1994), que está fazendo esforços para modificar esta situação,
reconhece o caráter multi-ético e pluricultural da fortalecendo, gradualmente, as responsabilidades
população boliviana; c) A lei de Descentralização das escolas

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3. No caso chileno, o processo de descentralização docentes. A partir de 1993 começou um processo
começou no início dos anos 80, durante a ditadura de revisão do estatuto do magistério – que
militar, por razões políticas e fiscais. Por um lado, flexibilizava as relações trabalhistas, segundo o
pretendia-se reduzir o poder dos sindicatos, modelo de ajuste instaurado para todos os setores
conforme o modelo neoliberal. Por outro, visava-se trabalhistas da região. Mas os protestos do setor
reduzir os gastos em educação e diminuir o tamanho detiveram a sua reforma. No entanto, a partir de
do Estado, impulsionando a privatização do setor. 1996, como conseqüência da crise, ocorreu uma
A partir de 1991, observa-se uma abertura à série de demissões por razões econômicas.
participação da sociedade, como conseqüência do A partir de 1996, os municípios foram obrigados
processo democrático. Mas, também, registra-se o a elaborar os Planos Anuais de Desenvolvimento
inicio dos movimentos oposicionistas dos sindicatos da Educação Municipal (PADEM), promovendo
docentes, que questionam a falta de consulta e uma maior participação dos municípios na gestão
participação do setor na política oficial. educacional. No que diz respeito à autonomia das
O processo de descentralização foi muito intenso escolas, também em 1996 deu-se um processo de
entre 1980 e 1981 (87% das escolas públicas
descentralização curricular, com base na Lei
passaram à jurisdição municipal), sendo
Orgânica Constitucional do Ensino de 1990,
interrompido durante a crise macroeconômica de
permitindo a elaboração de seus próprios planos e
1982. Apesar dos municípios serem responsáveis
programas educacionais (Ministerio de Educación
pela administração dos estabelecimentos públicos,
de Chile, 1998).
não foi aumentada a sua autonomia financeira. Alem
Apesar das medidas tomadas pelo governo
disso, a norma vigente impossibilitava a criação de
chileno em direção à descentralização, existe ainda
novos impostos locais para financiar o ensino, além
um tipo de descentramento com pouca autonomia.
de impedir a mudança das taxas dos impostos já
Tanto o aspecto financeiro quanto o administrativo
existentes (Tedesco, 1991 e Cox, 1997).
ficam em poder do Ministério de Educação, e a
No que diz respeito à participação dos
escola só participa na tomada de decisões dos
municípios na definição de conteúdos, tem sido
aspectos curriculares. Aliás, são poucos os
muito limitada, existindo uma forte ingerência do
municípios que conseguiram organizar o PADEM
Ministério da Educação na fixação dos planos e
de modo satisfatório. A descentralização curricular
programas de estudo. Porém, deve-se destacar que,
não deixa de ser um passo importante na política
nos últimos anos, existe uma maior participação
educacional chilena, mas o sistema é,
dos atores escolares nos assuntos de gestão
administrativamente, ainda muito rígido.
educacional, fundamentalmente no nível secundário,
Apesar da eleição democrática dos prefeitos,
contribuindo para a autonomia escolar, mas ainda
desde 1991, e do intento de envolver a família nos
permanecem os problemas de financiamento do setor
centros e associações escolares, a participação da
(Ministerio de Educación de Chile, 1996).
população no processo educativo é muito escassa.
Registra-se uma tendência de maior flexibilidade
na política trabalhista dos municípios, assim como
4. A descentralização da educação colombiana
maior espaço para que o município assuma um papel
mais dinâmico na gestão educativa. Durante toda a começa, fundamentalmente, a partir de 1993. Foi
ditadura militar, os docentes sofreram sérias uma decisão do governo central, com escassa
mudanças na sua vida profissional. O governo participação dos outros níveis de governo. A razão
aplicou uma política de “medo” – caracterizada pela fundamental da descentralização é política: o Estado
perseguição aos grupos dissidentes – e flexibilização procura uma maior legitimação das suas ações de
do trabalho, provocando uma escassa estabilidade governo, além de buscar uma redistribuição do
no trabalho. Mas esta tendência de flexibilização poder entre os níveis territoriais. Também serve
foi limitada em 1990, com a aprovação do Estatuto como uma estratégia para controlar situações
do Docente, que repôs a carreira do magistério e conflituosas, e forçar o enfraquecimento dos
introduziu uma certa imobilidade dos cargos sindicatos docentes. Em verdade, esta reforma esteve

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mais vinculada ao confronto entre o governo e os descentralizadoras, e a participação, assim como a
grêmios docentes do que a uma decisão de caráter autonomia escolar, ficam muito comprometidas.
estratégico ou economia de gestão e administração 5. O México implementou sua reforma educacional
do setor (Vargas e Sarmiento, 1997). através de uma descentralização de caráter estadual,
Este processo de descentralização transcorreu seguindo motivações de índole política: legitimação
de maneira extremamente irregular, caracterizado do governo, controle do setor educativo e dos
por momentos de consideráveis avanços e de sindicatos docentes, visando à fragmentação da
retrocessos. A partir de 1986, iniciou-se a categoria, mediante a negociação estadual dos
municipalização da educação. Os municípios conflitos docentes. O governo central fixa as
assumiram a construção e a manutenção da infra- diretrizes, e a política educacional continua sendo
estrutura escolar, o controle e vigilância do sistema, o principal financiador do setor.
e, especialmente, a administração direta do corpo Esta estadualização da educação passou por
docente. Foram obrigados a lidar com o setor duas etapas, entre 1978 e 1982. O Ministério de
docente sem a capacidade administrativa e de gestão Educação realizou uma descentralização da
para desenvolver estas novas funções. administração dos serviços educativos em 31
Com a promulgação da Constituição em 1991, delegações estaduais, uma para cada estado. Este
os municípios passaram a responsabilizar-se pela processo aprofundou-se em 1992, quando o governo
administração do setor educativo, assumindo fez um acordo com o sindicato docente, que
responsabilidades quanto às construções, possibilitou uma reforma de maior alcance,
manutenção e dotação de infra-estrutura física das envolvendo todos os estabelecimentos escolares
escolas, e recebendo, para tanto, transferências federais, cuja gestão foi transferida para os estados.
gerais do Estado Central. Os departamentos Porém, o processo de autonomia efetiva foi mais
arrogaram-se o poder decisório, no que diz respeito lento.
ao financiamento e à designação dos docentes que A descentralização da educação mexicana teve
prestavam serviços nos municípios. Este processo como base o Acordo Nacional para a Modernização
de descentralização, que em seus inícios foi da Educação Básica, que marcou as pautas centrais,
acelerado, hoje comporta um ritmo mais gradual, as mudanças na Constituição em 1992 7 e a
pretendendo levar em conta a capacidade real dos promulgação da Lei Geral de Educação, em 1993,
departamentos (Departamento Nacional de documentes que reforçaram os princípios de um
Planeación de Colombia, 1996). regime educativo descentralizado, federativo, que
Inicialmente, a descentralização do ensino visa aumentar a qualidade, eficiência e eqüidade da
colombiano seguiu um modelo de municipalização, educação.
de gestão compartida entre o nível central, o Com efeito, através do Acordo Nacional para a
departamental (financiamento, gestão trabalhista e Modernização da Educação 8, o governo federal
poder decisório compartidos) e o municipal, transferiu o controle dos serviços da educação
encarregado da gestão corrente e de capital. Nos Básica 9 e a formação de professores aos governos
últimos anos, a descentralização tem transferido aos dos estados da República. Em maio de 1992, as
estabelecimentos escolares a responsabilidade – autoridades educativas federais, os governos de 31
como no caso chileno – de elaborar os planos de estados da República e o Sindicato de Trabalhadores
estudo, e da organização autônoma das áreas da Educação (SNTE) assinaram o mencionado
fundamentais do conhecimento, habilitando-os a Acordo, comprometendo-se a reorganizar o sistema
introduzir algumas disciplinas optativas e temáticas escolar e reforçar o federalismo educativo10. A partir
regionais, seguindo sempre as diretrizes gerais de então, os governos estaduais são responsáveis
delineadas pelo Ministério de Educação. Mas, como pelo funcionamento de todas as escolas11 de sua
já assinalamos no caso chileno, também a Colômbia jurisdição.
enfrenta o problema da falta de recursos financeiros Neste sentido, foram descentralizados a
e administrativos para efetivar as propostas administração e o controle de quase 100 mil prédios

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escolares de educação básica no interior do país, autoridades educativas dos estados e da federação,
700 mil professores sindicalizados no SNTE, e mais para coordenar as ações e os programas, divulgar a
de 115 mil funcionários. A federação comprometeu- legislação da SEP, assim como proporcionar
se a transferir recursos suficientes a cada governo assessoria e apoio.
estadual para o funcionamento dos estabelecimentos Em agosto de 1998, o Colégio Nacional de
escolares. A Secretaria de Educação Pública (SEP) Educação Profissional Técnica (Conalep) iniciou a
conserva, provisoriamente, a direção e a transferência de seus serviços aos governos
administração da educação básica no Distrito estaduais, através do qual se produz um avanço para
Federal. a descentralização da educação média, superior, e
O Estado central ainda mantém o controle da da educação tecnológica.
contratação e designação de professores, Enfim, o governo federal mexicano passou para
conservando os métodos e práticas corporativas de os Estados a responsabilidade da administração dos
seleção – as decisões são tomadas pela Secretaria serviços educativos básicos. Mas tem assumido
de Ensino Público e pelo comitê executivo nacional quase todo o peso do financiamento, mediante
do Sindicato Nacional de Trabalhadores da transferências específicas. Por outro lado, promoveu
Educação. Entretanto, os governos estaduais e as uma política de maior participação do sindicato
sessões sindicais regionais participam em menor nacional de trabalhadores da educação nas
medida. administrações estaduais, compartilhando o poder
O segundo compromisso do acordo foi a decisório nos assuntos ligados aos conteúdos
reformulação dos conteúdos e materiais de educação educativos, mas ainda com uma forte centralidade
básica – pré-escolar, primária e secundária. Foram por parte da União (Secretaría de Educación
reformulados os planos e programas do ensino Pública, 1996).
básico e também elaborados novos livros de texto Uns dos aspectos mais importantes da reforma
gratuitos para as seis séries do ensino primário, e educativa implantada é a prioridade atribuída à
materiais educativos complementares. educação básica dentro do sistema educativo,
O acordo destacou o papel fundamental do confirmada pela importância relativa que tem a
professor no processo educativo, revalorizando a inversão nesse setor. Não obstante o incremento da
sua função profissional. Neste sentido, o governo inversão no setor educacional, que passou de 2,6%
começou um processo de aumento salarial dos do PIB para 5%, em 1998, a alocação de recursos
professores e ofereceu programas de atualização destinados à educação é ainda um entrave para a
permanente aos educadores. Por outro lado, foi sua melhoria e ampliação da cobertura12. Os
criada a “Carreira do Magistério”, que é um recursos destinados à educação superior são um
mecanismo de promoção trabalhista – que premia tema de profunda discussão.13
a produtividade docente – , visando estimular a Os estudos mostram uma notável expansão do
melhoria na qualidade da educação. subsistema de educação básica nas últimas três
Como resultado da descentralização da educação décadas, mas existem sérios problemas de
básica, em 26 estados da República criaram-se desigualdade, deficiência na qualidade e nos
organismos específicos, com o propósito de assumir resultados escolares neste nível14. Por outro lado,
a responsabilidade de oferecer os serviços os termos do acordo nacional não vêm-se
educativos transferidos pelo governo federal. Outros cumprindo. Depois da crise econômica de 1994, o
cinco estados assumiram, indiretamente, a prestação governo aplicou uma redução dos salários dos
dos serviços educativos, através de suas próprias professores, além de evidenciarem-se sérios
secretarias de Educação, e 29 estados da República problemas e confusas situações entre o governo
contam com leis estaduais de educação. central e os estados quanto à determinação de
Por outro lado, a Secretaria de Educação responsabilidades na reforma curricular e na
pública, visando à integração da educação, realiza formação de professores (Castro e Carnoy, 1997).
reuniões periódicas – nacionais e regionais – com O perigo da proposta mexicana, assim como o

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da iniciativa argentina, é que podem gerar ainda, inversão no setor educativo; porém a utilização e
uma maior centralização, devido à ausência de níveis alocação de recursos financeiros oferecem sérios
inferiores de descentralização, além de problemas, como, por exemplo, a deficiente
estabelecerem poucos órgãos de participação social. utilização da infra-estrutura, o excessivo gasto em
pessoal, além de não se contar com programas de
planejamento estratégico e órgãos de controle
Considerações finais
eficientes, que dêem continuidade às transferências.
Para finalizar, destacamos que existem diversas Ainda não se tem conseguido uma igualdade
motivações na adoção de diferentes modelos de regional no que diz respeito ao nível de cobertura e
descentralização, e que, na maioria dos países, as qualidade do ensino. Existem evidências de que as
razões têm sido de origem fiscal, fundamentalmente desigualdades tendem a ser maiores, porque os
nas reformas instituídas nas décadas de 70 e 80 critérios distributivos são pouco eqüitativos. Falta
(Argentina, Chile). Entretanto, as reformas mais uma adequada correlação entre as inversões no setor
recentes têm sido direcionadas por objetivos de educativo e o nível de ingresso e pobreza da
ordem política. Os governos procuram uma maior população. Os estudos mostram que a
legitimação, o controle de situações conflituosas, descentralização não tem mudado muito os
especialmente as de caráter sindical, além de buscar resultados de eficácia do Sistema Educacional, em
uma maior democratização da gestão, direção, e termos de retenção e promoção dos alunos, além de
execução das políticas educacionais. Não obstante, registrarem-se níveis de desigualdades alarmantes.
continuam tendo uma orientação econômica que visa Enfim, as reformas não têm dado conta de um
controlar e reduzir os gastos públicos no setor verdadeiro avanço na melhoria das condições
educacional. educacionais e sociais da região.
Apesar da promulgação de normas e estratégias Apesar dos governos terem procurado
que incentivam a participação popular na gestão estabelecer mecanismos para obter um maior
educacional, observa-se uma baixa participação, consenso e uma orientação mais democrática das
embora exista uma clara intenção de delegar as reformas, criando canais de participação, subsistem
responsabilidades educacionais à sociedade local. problemas muito importantes, como a escassa
Por outro lado, a autonomia vê-se comprometida, autonomia real dos órgãos de níveis inferiores
na medida que os recursos financeiros são, na comprometidos na descentralização. Os marcos
maioria dos casos, de origem central, e insuficientes legais e instrumentos de gestão, capazes de exercer
para acompanhar uma adequada gestão uma verdadeira regulação, têm sido pouco
descentralizada. Nesse sentido, na maioria dos desenvolvidos. Necessita-se de um sistema de
países, os entes federados exercem uma autonomia informação que possibilite a atualização e
relativa e extremamente dependente do poder modernização das formas de organização e consulta
central. de dados. Finalmente, destacamos que a capacitação
Embora exista, nas agendas dos governos latino- dos atores envolvidos no processo de
americanos, a intenção de melhorar o serviço descentralização é extremamente insuficiente e
educativo, fazendo uma melhor distribuição dos deficiente.
recursos financeiros, ainda não se detecta melhoria Enfim, o processo de descentralização não pode
na execução. No entanto, destaca-se uma evolução ser uma estratégia isolada. Ele deve inserir-se num
positiva nos esforços para descentralizar o processo maior que envolva os diversos setores
financiamento da educação, como no caso brasileiro, sociais, políticos, econômicos, e os diferentes níveis
que destina recursos diretos aos municípios, apesar do Estado. Deve-se contar com os recursos
das sérias dificuldades que se registram na gestão financeiros e humanos suficientes e necessários para
financeira − desvio de dinheiro, cálculos errados, provocar uma estratégia global de mudança, que
falta de preparo das autoridades etc. vise à verdadeira participação da cidadania no
Existe uma tendência, na região, de maior processo descentralizador.

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As reformas não podem ser vistas como mecanismos de gestão vertical e horizontal. A
estratégias de caráter econômico, objetivando transparência financeira é outro aspecto a levar em
poupar o estado central de gastos na área conta. A distribuição dos recursos entre os
educacional. Elas devem levar em conta o contexto diferentes níveis deve seguir critérios sócio-
sócio-econômico e político institucional de cada econômicos baseados numa política social mais
país, e procurar promover um verdadeiro consenso igualitária, em benefício de uma verdadeira reforma
para a execução das reformas. que vise à democratização do sistema educacional.
A autonomia real dos níveis envolvidos nas Para tal, é necessário que o Estado garanta
descentralização é uma condição indispensável para financiamento para todos os níveis sub-nacionais,
o êxito das reformas. Por outro lado, deve-se proporcional às suas condições sócio econômicas,
estabelecer diretrizes claras e distribuir, condição indispensável para a “garantia do direito
adequadamente, as responsabilidades, instaurando à educação”.

NOTAS

1
A descentralização consistiu, fundamentalmente, ano, destinava 4,4% do PIB para a educação.
numa transferência de responsabilidades do governo
7
central para os governos estaduais e municipais. O artigo terceiro da Constituição Política dos Estados
Unidos Mexicanos e a Lei Geral de Educação
2
Segundo estudos da CEPAL, a matrícula escolar nas representam o marco legal que regula o Sistema
regiões rurais, em alguns países, é muito alta; por Educativo Nacional, em seu conjunto, e estabelece os
exemplo, para 1991, a Bolívia registrava 40% de sua fundamentos da educação no México. Em 1993, foi
matrícula escolar no setor rural; Chile, 16,2%; aprovada uma reforma do artigo terceiro da constituição,
Colômbia, 21,1%; México, 35,7%; Nicarágua 43% e, que deu o atual perfil à educação. Além de estabelecer
em 1989, o Brasil tinha una matrícula rural de 22,1%;. o direito que têm todos os indivíduos à educação,
3
Segundo dados da Unesco, 1996 e Cepal, 1995, estendendo a obrigatoriedade ao ensino secundário,
registra-se a seguinte taxa de repetência nas primeiras também determina que o Poder Executivo Federal tem
6 series: Chile, 11,2; México, 18,9; Argentina, 23.6; a faculdade de elaborar os planos e programas de estudo
Colômbia, 23,5; Bolívia, 24,4; Brasil, 48,1; e Nicarágua, da educação primária, secundária e normal para toda a
47,5. República. O artigo 31 também foi reformado, para
estabelecer o dever dos pais de enviar seus filhos à escola
4
Sobre o tema, ver GAJARDO, M. e ANDRACA A.M. primária e secundária.
de (1997); LAVÍN, S. (1995), MAYOR, F. (1995) e 8
No início dos anos noventa, o Programa para a
Naciones Unidas/CEPAL (1995).
Modernização Educativa − um acordo político
5
Registra-se, na década de 80, uma notória queda do semelhante ao assinado na Colômbia − teve como
gasto por aluno no ensino básico, passando de 164 objetivo central prolongar a educação mexicana para
dólares a 118 dólares, entre 1980 e 1989. onze anos como mínimo: dois de pré-escolar, seis de
6 ensino primário e três de ensino secundário.
Para os países que possuem dados, constatam-se os
seguintes percentuais: a Argentina, entre 1970 e 1977, 9
A estrutura do sistema educativo mexicano está
gastava 2,6% do PIB, passando, em 1994, a gastar 3.6%. constituída pelo nível Pré-escolar (de 3 a 5 anos de
A Bolívia, em 1991, destinava 3,1% do PBI e, em 1994, idade) não obrigatório; nível Primário, obrigatório para
passou para 4,4%. O Brasil, em 1990, destinava 4,6%. crianças de 6 a 14 anos de idade; nível secundário,
O Chile, em 1980, gastava 4,3% e, em 1994, baixou obrigatório para os jovens de 12 a 16 anos de idade;
para 2,8%. A Colômbia, em 1991, gastava 2,4% e, em nível médio superior, formado por três modalidades:
1994, aumentou para 3,2%. O México gastava 3% do bacharelado geral, bacharelado tecnológico e educação
PIB, em 1991, e, em 1994, aumentou para 4,5%. Os profissional técnica; e educação superior, tecnológica e
dados de Nicarágua são de 1993, informando que, neste normal.

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OS CONSELHOS MUNICIPAIS
DE EDUCAÇÃO NA BAHIA:
DESCENTRALIZAÇÃO DA GESTÃO EDUCACIONAL?

Wanderley Ribeiro
Professor da Universidade do Estado da Bahia 1

1. Introdução dos o accusão, quando se manifesta o mais pe-


queno mal.. Todos tem mais ou menos razão, e
O tema descentralização via Conselho Municipal os negocios não andão para diante. O centro
de Educação (CME) é assunto muito debatido não póde ver e providenciar tudo”.
ultimamente, ainda que não seja uma problemática Além disso, conforme Marcelino (1988:7): “O
nova, pois há cerca de 50 anos, na Constituição século XVI, logo após o descobrimento, represen-
baiana de 1947, Anísio Teixeira (1967:87-108) ta o primeiro fluxo de descentralização no Brasil,
defendia um modelo mais autônomo para a educação com a criação das capitanias hereditárias”.
e que só seria concretizado via Municípios. Essa tese é refutada por Hely Lopes Meirelles
Mas se 50 anos passados já dão uma idéia de (1994:28) que afirma:
quão discutido é o tema, apesar de não ter sido “No período colonial, a expansão municipalista
colocado em prática, salvo por experiências isoladas, foi restringida pela idéia centralizadora das Ca-
que dirá de mais de 130 anos? Em 1862, o Visconde pitanias, afogando as aspirações autonômicas
do Uruguay já defendia a descentralização. Uruguay dos povoados que se fundavam e se desenvolvi-
(apud Marcelino:1988:11) assinala: am mais pelo amparo da Igreja que pelo apoio
“Ha muitos assumptos nos quaes a acção do dos donatários”.
interesse particular ou local he mais activa, E também por José Nilo de Castro (1992:23):
prompta, mais efficaz, mais economica do que “A expansão municipalista que se produziu inici-
a do governo. A absorpção da gerencia de todos almente, no Brasil-Colônia, foi restringida pela
os interesses ainda secundarios e locaes pelo centralização das Capitanias”.
Governo Central, mata a vida nas localidades, A primeira lei brasileira referente à educação,
da lhes deixa a fazer, perpetua nellas a assinada em 15 de outubro de 1827 por D. Pedro I,
indifferença e a ignorancia de seus negocios, determinava a criação de escolas de primeiras le-
fecha as portas da unica escola, em que a tras “...em todas as cidades, vilas e lugares mais
população póde aprender, e habilitar-se populosos...” do Império.
praticamente para gerir negocios publicos. Como se observa, a temática da descentralização
Ao mesmo tempo habitua-se a esperar tudo, e é antiga e mesmo a descentralização da educação
ainda mesmo o impossivel, do Governo. He o também não é fato recente. Por que então, concre-
mais funesto presente que se lhe póde fazer, pelo tamente, ela não se efetivou? Quais são os argu-
muito que o compromette. Em lugar de fortificar mentos dos que se colocam como favoráveis ou con-
o poder, enfraquece-o, tornando a sua missão trários à descentralização? Qual o papel do Conse-
cada vez mais complicada e onerosa. Todos lho Municipal de Educação nesta descentralização
cruzão os braços e se voltão para elle, to- do poder? São questões que serão aqui aborda-

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das para uma tentativa de obtenção de suas respos- Deste problema, surgem quatro questões que
tas. devem ser investigadas. A primeira, sabendo-se que
Modernamente, grande interesse pelo tema pode o Brasil dispõe de mais de 5.000 municípios, al-
ser constatado, também, com o número de sites so- guns extremamente ricos, com alta renda per capita,
bre descentralização, presente na Internet, até 03 de outros bastante pobres, em que medida o CME,
maio de 1998. Conforme Manoel Fernandes na re- como órgão da política de descentralização via
vista VEJA (Fernandes:1998:16), o tráfego na rede municipalização do ensino, pode ser visto como fa-
mundial de computadores “...dobra a cada 100 tor de melhoria da qualidade escolar municipal, en-
dias”, já existindo a respeito desse tema 105.550 tendida como menor número de evasão e repetência,
sites, não incluindo, logicamente, as listas de dis- taxa de analfabetismo, professores com melhor qua-
cussão e os chats (“bate-papos”). Ainda conforme lificação e remuneração, escolas com melhor infra-
Fernandes: estrutura e acesso escolar garantido a todos em ida-
“Desde 1993 quando foi aberta ao público, a de própria? Ou seria a descentralização, via
rede cresce exponencialmente. Um relatório do municipalização do ensino, uma forma de se nive-
governo americano afirma que desde aquele ano lar por baixo a educação formal oferecida ao cida-
o número de pessoas que navegam pela rede dão, ou ainda de ampliação das desigualdades exis-
passou de 3 milhões para 100 milhões. Nesse tentes, uma vez que os municípios mais pobres não
ritmo, em 2003 quase 20% de todo o tráfego de teriam recursos suficientes para equiparação aos
telefonia doméstica do planeta será conduzido mais ricos?
via Internet. Em 2005, um em cada seis habi- Em segundo lugar, tendo em vista a realidade
tantes do planeta vai ter acesso à rede. Nunca econômica, social e cultural dos 415 municípios
uma tecnologia se tornou tão popular em tão baianos, e de seus habitantes − já que em boa parte
pouco tempo. O rádio, por exemplo, levou 38 desses municípios, pobreza, miséria, analfabetismo,
anos para atingir 50 milhões de pessoas. A falta de acesso à escola são comuns −, as funções
Internet conseguiu esse feito em apenas quatro do CME representam para essas populações garan-
anos”. tias de acesso à educação, e conhecimento do que é
O número de endereços, ainda conforme a cita- e para que serve o Conselho?
da revista, aumentou de 26 mil em 1993, para 1,3 Em terceiro lugar, conforme a atuação do CME
milhão, em 1998, um aumento de 50 (cinqüenta) — com ou sem delegação de competência — pode-
vezes. se evidenciar algum impacto na melhoria da quali-
Assim, o problema que norteia este estudo é sa- dade no ensino municipal?
ber se o CME, órgão integrante da administração Por último, com a nova LDB, Lei nº 9.394/96, e
da educação local, se insere no efetivo cumprimen- a possibilidade de o município integrar o sistema
to do direito à educação escolar de sua respectiva estadual de ensino, formando um sistema único, o
população. Em que a criação deste órgão contribui processo de descentralização via municipalização
para a educação sistemática oferecida nos Municí- não será transformado numa estadualização, com
pios baianos? Pergunta-se se a criação e a possível centralização, ou será, parodiando Romão
implementação destes Conselhos geram realidades (1992), um passo na publicização municipal?
mais cidadãs ou realidades mais autoritárias, en-
tendendo-se por realidade cidadã aquela onde a co-
2. Os conselhos Municipais
munidade tenha mais acesso aos seus direitos soci-
de Educação (CMES)
ais, assim como aos deveres, e por realidade autori-
tária, aquela em que apenas os deveres são exigidos Surgimento
da comunidade.
O Brasil é um país reconhecidamente de con- Coube ao Estado do Rio Grande do Sul o
trastes, com municípios onde a renda per capita se pioneirismo em Conselho Municipal de Educação
iguala a de países de primeiro mundo e outros onde (CME). Assim, em 1954, através do Decreto Esta-
a miséria, a pobreza e demais males sociais grassam. dual nº 5.044, de 13 de junho, “...determinou-se a

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criação de Conselhos escolares municipais, com Inovação da atual constituição federal
certa gama de atribuições”. Colocava, assim, o Até 1988, o município tinha sistema de ensino
Estado do Rio Grande do Sul, em prática, o precei- de fato, mas não de direito, pois não podia estabele-
to da descentralização via municipalização do ensi- cer normas pedagógicas. Afirma Boaventura
no preconizado na CF de 1946 e defendido por (1996:9):
Teixeira (1967:96): “A Constituição da República Federativa do
“Felizmente, agora, por essa Constituição, po- Brasil de 1988 colocou o Município como sis-
deremos ter 21 sistemas escolares no Brasil e tema de educação ao lado da União, Estados e
isto significa 21 possibilidades para idéias boas Distrito Federal. Incontestavelmente, do ponto
e progressivas. Uma delas poderá ser a melhor de vista educacional, foi uma das maiores ino-
e estimular os demais para imitá-las ou buscar vações possibilitar à esfera do poder local o
ainda outras idéias melhores, o que seria im- estabelecimento de normas pedagógicas”.
Assim, possui o Brasil, como Estado Federal,
possível com o sistema centralizador”.
uma organização educacional que acompanha,
E mais adiante, Teixeira (1967:97) reforçava:
descentralizadamente, os entes políticos e constitu-
“Tenho quatorze anos de lutas dentro dos Gover- cionais — União, Estados, Distrito Federal e Mu-
nos procurando reivindicar para a educação a nicípios — com os seus respectivos sistemas de en-
autonomia, que me parece indispensável ao desen- sino. Temos, portanto, para cada entidade política e
volvimento dos seus serviços”. Apesar de opiniões administrativa um conjunto de instituições educaci-
contrárias à municipalização do ensino (na época e onais e de normas que regulam a organização e o
ainda hoje), Darcy Ribeiro (1988:60) escrevia a res- funcionamento de redes de escolas. Cada ‘sistema
peito do pensamento de Teixeira: de ensino’, expressão consagrada desde a Consti-
“Ele acreditava que era preciso conceder ao tuição de 1946, tem os seus componentes com atri-
governo estadual e, menos que ao estadual, ao buições e competências diferenciadas que decorrem
municipal, o poder e a obrigação de educar, do federalismo e da política municipalista.
para que um dia a própria comunidade tomas- Como se observa, a elevação do município a sis-
tema de ensino, proporcionada pela Constituição
se em suas mãos a educação de seus membros,
vigente, foi uma grande inovação e que vem ao en-
porque só assim a instrução pública encontra-
contro da política municipalista tão em voga.
ria uma base na realidade para se afirmar e
difundir a todos. Eu dizia: Dr. Anísio, veja bem, Os CMEs na Bahia
município é Montes Claros, distrito é Bela Vis-
ta de Montes Claros. Nenhum deles está inte- Apesar de a descentralização via Conselhos
ressado em educação popular, se nem Belo Municipais de Educação ter sido proposta na Bahia,
Horizonte está! Pode ser que o Rio de Janeiro, através de Anísio Teixeira, nosso primeiro CME com
ou agora Brasília estejam preocupados em edu- delegação de competência surgiu 40 anos após o
car o povão, mas será pouco. Belo Horizonte início dos debates provocados por Teixeira, em 1987,
o CME de Salvador.
está muito menos. Montes Claros infinitamente
Além de Salvador, poucos municípios na Bahia
menos. E o distrito nada. Nada! Quem manda
têm Conselhos e Conselhos com delegação de com-
no distrito é o fazendeirão. Aqui não há essa
petência. São: Vitória da Conquista e Simões Filho,
comunidade ianque”.
em 1992 e, mais recentemente, Barreiras,
A Lei nº 4.024/61 não fazia referência aos
Paripiranga, Guanambi e Camaçari, em 1996.
CMEs, mas a tendência de descentralização se afir- Há, entretanto, muitos municípios cujas Leis
maria e se concretizaria em legislações posteriores, Orgânicas Municipais (LOMs) estabelecem a ne-
como a Lei nº 5.692/71 (cf. artigos 41, 58 e pará- cessidade dos seus respectivos CMEs, dando os
grafo único, bem como o artigo 71). primeiros passos para a municipalização do ensino

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(Cf. Boaventura:1995). Seguem, nesta linha, que tem sido feito pela efetiva municipalização
Itabuna, Ilhéus, Dias D’Ávila, Catu, Jequié, do ensino? Visto que os CMEs são apenas uma eta-
Juazeiro, Feira de Santana, Serrinha, dentre outros. pa da municipalização do ensino, qual tem sido a
Até dezembro de 1995, apenas quatro municípi- verdadeira atuação desses Conselhos? Que têm fei-
os - Salvador, Vitória da Conquista, Simões Filho e to os CMEs para o cumprimento do extensivo di-
Catu - , tinham recebido delegação de competência reito à educação dos cidadãos brasileiros, ao menos
do CEE-BA. Atualmente, inserem-se nesta catego- na faixa etária que a lei garante? Qual tem sido o
ria também os CMEs de Barreiras, Paripiranga, papel dos CMEs na melhoria da qualidade de edu-
Guanambi e Camaçari; assim sendo, considerem- cação formal oferecida a estes cidadãos?
se:1) a efetiva implantação e funcionamento dos Faz-se necessário estudar, portanto, a criação e
CMEs; 2) o relativo tempo destes Conselhos, vistos a implementação desses Conselhos e a relação de-
serem os mais antigos dos Municípios baianos; e 3) les com o que se chama de melhor qualidade educa-
a proximidade com a capital. cional: atendimento escolar a todos em idade pró-
Com o progressivo aumento no número de CMEs pria, professores com a devida qualificação para
com delegação de competência, fez-se necessário atuar nas séries respectivas, recursos financeiros e
uma amostra, pois não seria possível o estudo dos materiais suficientes, taxas de evasão e repetência
415 Municípios baianos, ou de CMEs, em cidades se não nulas, pelo menos baixas.
muito distantes, como Barreiras. É importante assinalar que o estudo pretende
Para tanto, usou-se a amostragem intencional, revelar a influência que a educação do Município
tendo sido escolhidos os seguintes municípios: Sal- recebeu da ação do CME, pois assim se constatará
vador, Simões Filho, Vitória da Conquista, Catu, se a municipalização do ensino é uma falácia, mais
Paripiranga, Guanambi e Camaçari representando uma entre os tantos engodos educacionais brasilei-
os Conselhos com delegação de competência e os ros, ou será a possibilidade da melhoria do nosso
de Feira de Santana e Serrinha, representando os sistema educacional.
Conselhos que ainda não obtiveram delegação de
competência do CEE-BA. Funções dos CMEs
Assim, foram estudados 9 (nove) municípios,
sem contudo esquecer 7 (sete) dos 8 (oito) municí- De modo geral, os CMEs apresentam quatro
pios que já possuem delegação de competência até funções:
a presente data, o que representa cerca de 2,2% dos a) consultivas, quando respondem a indaga-
municípios baianos. Observe-se que a amostra ori- ções e consultas sobre questões atinentes à educa-
ginal constava de 10 (dez) municípios, ção;
correspondendo a 2,5% dos municípios baianos, b) normativas, quando estabelecem regras,
entretanto, houve a exclusão do município de Caetité, dispositivos e normas a serem observadas no siste-
quando da execução da pesquisa de campo, pois o ma sob sua jurisdição;
Conselho implantado neste município é o do Fundo c) deliberativas, quando decidem questões
de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fun- submetidas à sua apreciação; e
damental e de Valorização do Magistério d) fiscalizadoras, quando acompanham o
(FUNDEF), apesar da insistência da Secretária de cumprimento das normas sob sua jurisdição.
se tratar de CME. Como componente do Poder Público, o CME não
pode se furtar a exercer as quatro funções acima
A importância dos CMEs
referidas. Não pode, como órgão máximo da esfera
municipal, deixar de cumprir e de exigir o cumpri-
Apesar da proclamação da municipalização do mento da educação como direito do cidadão, como
ensino não ser determinação recente, como visto, o proclama a Constituição Federal.

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3. A polêmica da pelo menos ao nível do discurso - através do
municipalização do ensino fortalecimento da autoridade municipal”.
Neste sentido, deve-se estabelecer um Municí-
pio em que seus habitantes não apenas votem nos
A favor da descentralização via
futuros prefeitos, mas em que haja uma comunida-
municipalização do ensino
de participativa e uma autoridade municipal com
Os argumentos dos que defendem a suficiente força política para democratizar direitos
descentralização via municipalização do ensino po- e deveres e não apenas delegar direitos a poucos e
dem ser assim sintetizados: deveres a muitos.
1) Maior proximidade com a comunidade. 3) Como elemento formador da cidadania.
Segundo Anísio Teixeira (1967:54): Chopin T. de Lima (1988:198-199) defende a
“Para a escola primária ter, portanto, as con- descentralização, assim como a parceria entre os
dições adequadas de eficiência, faz-se necessá- entes políticos — União, Estados e Municípios —
rio que se crie um estado de continuidade entre como uma solução para o problema educacional:
a experiência da criança fora da escola e a sua “Não bastasse essa dissociação entre a Secre-
nova experiência no meio escolar. Por isto mes- taria da Educação e a Unidade Escolar, esta
mo, a escola, sobretudo a primária, deve inse- também se encontra dissociada da Comunida-
rir-se no meio local, desenvolvendo a criança de em que está inserida e do poder local, visto
por intermédio deste seu meio, a fim de que as ser o Estado encarado como o único responsá-
experiências de ensino tenham raízes e o indis- vel. Ora, a Escola Pública atende o alunado de
pensável caráter integrativo que as deve mar- uma determinada Comunidade, a qual juridi-
car. É pois de toda conveniência que a escola camente existe em um determinado Município.
primária seja uma instituição local, adminis- Esse alunado não pode ser atendido como se a
trada localmente e em profunda participação Comunidade e o poder local nada tivessem a
com o meio local. Heimatkunde é como os ale- ver com a escolaridade dessas crianças: afi-
mães designam este princípio fundamental, que nal, está em jogo a formação da cidadania dos
deve comandar a organização do ensino pri- educandos e com isso todos temos a ver e pre-
mário”. cisamos envolver-nos: União, Estado, Municí-
Boaventura (1996:11) reforça: “Por conseguin- pio e Comunidade. Na busca desse
te, onde a escola estadual não vai, não costuma ir envolvimento, surge a proposta de
ou não pode ir, a pequena escola municipal faz-se municipalização, concretizável através de uma
presente, na maior intimidade com o interior”. Por parceria efetiva, com o objetivo claro de todos
sua vez, Meirelles (1993:334) confirma esta proxi-
interagirem na promoção de uma Escola Pú-
midade, baseado na obrigação legal do Município:
blica eficiente no atendimento à criança brasi-
“A criança, ao deixar a casa para freqüentar a
leira.”
escola municipal, permanecerá no mesmo am-
Marshall (apud Neves:1994:25) corrobora esta
biente de que provém, pois se verá rodeada de
tese, ao defender três dimensões para a cidadania:
amigos e conhecidos do bairro, facilitando-lhe
“(...) a primeira é a civil, que inclui os direitos
a adaptação e o aprendizado escolar. Daí por-
necessários à liberdade individual (locomoção,
que a própria Constituição já forçou a dedica-
ção do Município ao ensino fundamental e pré- pensamento, fé etc.); a segunda é a política,
escolar (art. 211, § 2º)”. que se configura no direito de participar do
A mesma idéia destaca Benedicto Silva (1995:29) exercício do poder político, e a 3ª é a social,
ao expor que: “O Governo Municipal é, por assim que inclui desde o direito do indivíduo a um
dizer, um governo de vizinhos e, como tal, suscetí- mínimo de bem-estar econômico e segurança
vel de fiscalização direta e ininterrupta”. até o de compartilhar a herança social e viver
2) Democratização da sociedade. Jorge C. Nas- como ser civilizado, segundo os padrões da
cimento (1987:49) escreve que ela ocorrerá “... - sociedade a que pertence. Como direito social,

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a educação não só permite que o indivíduo par- tal ponto que, em grande parte deles, são os
ticipe do patrimônio cultural acumulado, como prefeitos que nomeiam os diretores e até pro-
torna possível ou facilita a concretização de fessores das escolas. Por outro lado, o nível de
outros direitos sociais que lhe forem formalmen- organização da sociedade civil, que vem cres-
te atribuídos (saúde, trabalho, renda etc.)”. cendo significativamente no País todo, ainda é
Teixeira (1967:51-83) defendia a educação pú- bastante frágil na esfera dos municípios.
blica no Município, independente da esfera a que Fracionar algumas organizações, bem
pertencia, mas com a participação de todas, o que estruturadas a nível estadual e nacional, como
José E. Romão (1992:66) chamaria de a dos professores e a dos estudantes pode ser
“publicização”. uma tática importante na estratégia de
4) Aprimoramento das instituições democráticas. desmobilização política. Este é o verdadeiro
Como explica Silva (1995:30): objetivo daqueles que, sob o manto da
“A existência de núcleos municipais bem orga- descentralização, pretendem apenas perpetuar-
nizados, autônomos de direito e de fato, além se no poder. Dada sua dependência do governo
de assegurar aos munícipes o gozo e o uso dos central e a menor capacidade de pressão da
serviços públicos de primeira necessidade, con- sociedade civil, para conseguir ver atendidas
tribui ativamente para a nobilitação e refina- as reivindicações da comunidade, o ensino
mento das instituições democráticas”. municipalizado pode vir a ser mais autoritário
Tal visão é corroborada por Willian Anderson e que o estadual”.
Eduard Weidner (apud Silva:1995:31): “O Muni- 2) Sobre a competência da responsabilidade do
cípio vale por um fórum de participação política, Estado. Elena V. Jarry e Maria de Fátima S. Vieira
em que todos contam, inclusive os eleitores mais (1993:6), ao se referirem à descentralização, são
humildes, e cada um sente que o seu voto pesa mais bastante enfáticas:
que nas eleições estaduais ou federais”. “Enquanto, aparentemente, através da argu-
mentação discursiva, busca atingir a democra-
A negação da descentralização via tização pela descentralização dos serviços pú-
municipalização do ensino blicos, na prática, o que o Estado mais intenta
Apesar de todo o movimento democratizante por é desincumbir-se de tão onerosa tarefa que lhe
que o país passa, causando até situações de excesso é cabida”.
de democracia e que Moacir Gadotti (s.d:19) cha- Lisete R.G. Arelaro (1981:63) confirma:
mou de “democratismo”, há vozes contrárias à “Na maioria das nossas escolas (maioria esta
municipalização do ensino, conforme aqui sinteti- de sala única), a descentralização se concreti-
zado: za não como expressão de uma conquista de
1) Acerca da fragilidade do Município brasilei- autonomia do grupo educacional, mas pelo
ro, favorecendo práticas clientelísticas, Nascimen- abandono a que elas são relegadas, tanto pelo
to (1987:49) afirma que o Município brasileiro é Ministério como pelo próprio Estado.
uma “... esfera de administração extremamente Descentralização significando aqui apenas
vulnerável a pressões que favorecem uma política inexistência de acompanhamento e avaliação.
de clientela.” Descentralização enquanto uma forma de
Lia Rosemberg, Madza J. Nogueira e Selma G. descompromisso e não de auto-realização. E
Pimenta (1984:57) argumentam que: essa é uma realidade educacional que merece
“Na verdade, essa descentralização das deci- uma reflexão mais profunda. já que envolve a
sões não existe. Quanto mais pobre o municí- maioria da população escolar”.
pio, maior sua dependência financeira em re- 3) Argumentando sobre a necessidade de uma
lação ao poder central. Daí decorre uma pro- reforma tributária, ainda na vigência da CF de 1969,
funda dependência política. O município é al- Rosemberg, Nogueira e Garrido (1984:56-57)
tamente manipulável. O clientelismo impera a alertam:

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“A municipalização do ensino será inviável “Vai-se observar, nos atuais Prefeitos, uma
enquanto não se proceder a uma reforma tribu- acentuada modificação no padrão ocupacional
tária que transfira aos Estados e Municípios os em relação a períodos anteriores. Os Prefeitos
recursos necessários para arcar com as respon- eleitos para o período 1973-1976 eram princi-
sabilidades daí decorrentes. Mesmo assim, essa palmente fazendeiros (26,8%), comerciantes
medida, isolada, não seria uma garantia da (23,1%), servidores públicos (16,9%) e profis-
democratização do ensino; teria que vir anco- sionais liberais (11,6%). Aqueles eleitos para
rada a um projeto político mais amplo de edu- o mandato de 1977 a 1980 tinham ainda em
cação, que possibilitasse a ampliação das opor- primeiro lugar os fazendeiros (32,5%), segui-
tunidades educacionais oferecidas às camadas dos pelos servidores públicos (23,4%), pelos
populares”. comerciantes (17,4%) e pelos profissionais li-
As contradições na berais (14,5%). Para os atuais Prefeitos nota-
descentralização via se uma verdadeira reviravolta no perfil
municipalização do ensino ocupacional. Em primeiro lugar estão os pro-
fissionais liberais (41,1%), seguidos dos comer-
Algumas questões colocadas pelos que são a fa- ciantes (17,7%), dos fazendeiros ou empresári-
vor ou contrários à municipalização do ensino são os rurais (10,0%) e dos servidores públicos
destaques nesta seção. (8,4%)”.
1) Quanto à incompetência dos Municípios, dado 3) Redução de burocracia não significa amplia-
o despreparo de seus prefeitos, Bremaeker ção de eficiência. Segundo Anamaria Medina
(1990:14), em uma série de quatro pesquisas sobre (1987:46):
o perfil dos prefeitos eleitos em diferentes épocas, “O pressuposto subjacente é o de que a redu-
com o apoio do IBAM — Instituto Brasileiro de ção de tamanho da burocracia, através da
Administração Municipal —, chegou às seguintes descentralização, presumivelmente levaria à
conclusões: melhor prestação de serviços, permitindo aos
“Observa-se de pronto um fato altamente órgãos implementadores concentrá-los em áre-
auspicioso: o nível de instrução dos Prefeitos é as menores, reduzindo o volume de demandas
hoje muito mais elevado do que há 20 anos no âmbito central. Desse modo, eles poderiam
atrás. Dos Prefeitos que assumiram o governo atender de perto a seus clientes, com maior
no período 1973-1976, 49% possuíam o nível agilidade, tornando seus programas melhor
primário de instrução, 34% o nível médio (gi- administrados e ampliando seu impacto positi-
vo.”
nasial e científico) e 17% o nível superior. No
Quanto à descentralização política, implicaria
período seguinte, entre 1977 e 1980, 41% pos-
que a autoridade fosse exercida por organiza-
suíam nível primário, 37% o nível médio e 22%
ções ou residentes locais, com poderes gerais
o nível superior. Hoje em dia, mais da metade
para decidir e alto nível de discrição. Eles ten-
dos Prefeitos eleitos possuem nível de instru-
deriam a aplicar seus recursos na busca de pri-
ção superior (52,3%), apresentam nível médio oridades e interesses da localidade.
— ginasial e científico — 31,41% dos Prefeitos As propostas de descentralização política mos-
e nível primário apenas 15,1% das respostas. tram grande diversidade com relação a quem
Daqueles que apresentaram nível médio, 18,5% deteria poder local. Enquanto autores mais
possuem o científico e 12,3% o curso ginasi- moderados propõem o poder ao governo do
al”. município, alguns falam em conselhos ou
2) Os prefeitos, em sua maioria, são “coronéis”. colegiados comunitários e os mais radicais pe-
O que refuta Bremaker (1990:18), afirmando ter ha- dem o ‘poder para o povo’, indivíduo, cidadão.
vido uma “...acentuada modificação...” quanto à Os sistemas nacionais administrados
ocupação profissional dos prefeitos: descentralizadamente teriam dificuldades em

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obter integração horizontal, ou seja, acompa- Apesar deste ano ser comemorado o centenário
nhar e coordenar as atividades de suas diver- de nascimento de Anísio Teixeira, a idéia da
sas agências na mesma ou em diferentes áreas descentralização via municipalização do ensino ain-
geográficas. Os problemas seriam trabalhados da não se efetivou, exigindo algumas condições para
de forma segmentar, com pequena atenção às sua concretização, que serão aqui apresentadas a
políticas ou programas como um todo. E, obvi- título de sugestões:
amente, o poder continuaria, em boa medida, • O CME deve ter, até para facilitar o seu traba-
concentrado nos níveis superiores da hierar- lho, um livro de registro de processos, no qual
quia”. constem, por exemplo, por que foi procurado,
A questão da desconcentração, da quando e a solução para a iniciativa.
descentralização, via municipalização de ensino, da • Se o CME está sendo solicitado para desempe-
gestão local precisa ser encarada com a seriedade nhar funções que não lhe dizem respeito, cabe
com que Anísio Teixeira, no passado tão atual, e esclarecer quais são suas funções e isto pode se
mais Paulo Reis Vieira (1971), Gadotti, Romão, dar de diversas formas, como seminários, distri-
Ivone Poletto (1982), Ailton Aziz Lima (1985), Ivo buição de “folders”, cartilhas e até mesmo pe-
José Both (1997), Dalila Andrade Oliveira (1997), quenos livros contendo tais informações, como
Wanderley Ribeiro (1998) entre outros, tratam do fez o Conselho Estadual de Educação do Ceará
tema. Analisada sem paixão, mas com (CEE-CE), com a coleção Vida & Educação,
discernimento, acima de plataformas eleitorais, a volume 1, “Conselhos Municipais de Educação:
municipalização do ensino poderá ser uma das so- criação e instalação”, em 1995.
luções para as mazelas do sistema educacional bra- • O CME deve desenvolver algum instrumento que
sileiro. permita saber se vem conseguindo desempenhar,
a contento, o seu papel. Instrumentos como reu-
niões dos conselheiros podem até servir de auto-
4. Os CMES na Bahia e a avaliação, mas não bastam. É importante que os
descentralização CMEs saibam da real dimensão de sua função
da gestão educacional social, a fim de que possam realizá-la com igual
competência.
A descentralização da gestão educacional ainda • Não tem utilidade um CME que exista apenas
não é uma realidade na Bahia, o que não significa no papel. É importante, cada vez mais, que este
que a teoria da descentralização não possa ser utili- órgão dê provas de sua operacionalidade. As-
zada com sucesso. sim, os conselheiros devem saber claramente não
O que vem ocorrendo, também, é que há uma só as funções do órgão como as suas próprias.
preferência dos municípios baianos na criação dos Se não têm o devido discernimento, devem pro-
Conselhos do FUNDEF, em detrimento dos CMEs. curar auxílio, seja com outros CMEs, seja com
Paradoxalmente, muitos municípios vêm crian- o CEE-BA, com o CNE ou mesmo com outras
do seus CMEs, apesar de não darem a eles o desta- entidades como a UNDIME, o Instituto Brasi-
que necessário, por exemplo: 1) nomeiam conselhei- leiro de Administração Municipal (IBAM), do
ros que não sabem quais suas funções, seus limites Rio de Janeiro, a Federação das Associações de
e possibilidades; 2) estabelecem regimentos inter- Municípios do Rio Grande do Sul, ou mesmo
nos em conflito com a lei que os criou, que é, hie- com consultores de educação que militem na área.
rarquicamente superior e não pode, assim, ser con- • O CEE-RJ é bastante enfático com relação à fi-
trariada; e 3) dispõem de pessoal em número insufi- gura da delegação de competência, tendo-se
ciente e não qualificado para desempenhar determi- manifestado através do Parecer nº22/96, escla-
nadas funções, além da ausência de recursos finan- recendo que:
ceiros e algumas vezes, de local próprio para funci-
“I - valorização do processo de institucionalização
onamento. Chega-se até ao ponto de Conselhos não
do Conselho Municipal de Educação, condicionando
emitirem resoluções porque não sabem como
a delegação de competências à qualidade do mes-
fazê-las.

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mo. Assim, o instituto da delegação ocorrerá quan- em um conselheiro mais comprometido, porque
do: ciente de seus deveres e direitos.
1 - o conselho municipal esteja organizado de for- • Utilizar os modernos meios de comunicação,
ma a evidenciar sua capacidade de ação como ór- como a Internet, disponibilizando uma home
gão regulador do sistema municipal de ensino. (Grifo page, como o faz o Conselho Estadual de Edu-
do autor). cação de São Paulo, também é uma forma de se
(...) O que se deseja evitar é a delegação de compe- chegar a um público de proporções
tências a um órgão instável do ponto de vista de sua inimagináveis.
permanência no sistema e inviável pela falta de con- Como falar, porém, de home page, quando nos
dições adequadas para sua atuação. municípios baianos, em especial, as taxas de anal-
2 - a administração do município demonstre esfor- fabetismo são enormes e os professores percebem
ço para a melhoria quantitativa e qualitativa salários aviltantes? Sirva-se de exemplo o caso abai-
do atendimento que oferece nas áreas constitucio- xo constante em matéria da Folha de São Paulo
nalmente definidas como prioritárias para o inves- (Ari Cipola:1996:8):
timento municipal. (Grifo do autor). “Com apenas um ano de estudo, Salete Martins
(...) Assim, avaliar o esforço e a capacidade do de Menezes, 41, tornou-se professora da 3ª sé-
município em empreender ações voltadas para a rie de Brejão, a 35 km da sede de Pedro Ale-
expansão da rede escolar, o crescimento da matrí- xandre, no sertão da Bahia.
cula, a redução dos índices de evasão e repetência, Ela conseguiu o diploma da 1ª série do 1º grau
a valorização do magistério, entre outras, é funda- há 30 anos e há três anos alfabetiza cerca de
mental para a tomada de decisão do Conselho Esta- 50 alunos em sua própria casa. Para o traba-
dual em lhes delegar competências próprias. lho, ela tem um salário de R$23 da prefeitura,
3 - o sistema municipal de ensino seja capaz de exer- mas recebe R$40 mensais por dar aulas em dois
cer com competência a fiscalização e o controle das turnos.
ações de seus órgãos operacionais, através da exis- Ela não sabe fazer prova, chamada ou preen-
tência de um corpo de Supervisores Educacionais cher o diário de classe.
devidamente habilitados e credenciados para este Para dar aula, usa uma lousa que ela mesma
exercício. (Grifo do autor). comprou. Não há merenda nem carteiras — os
(...) A delegação de responsabilidades é um bom alunos estudam sentados no chão da sala e da
princípio administrativo, mas evidentemente o Es- varanda.
tado não tem demonstrado, objetivamente, disposi- Agência Folha - Como a Sra. avalia seus alu-
ção para usufruir dos benefícios da descentralização. nos?
Programas como o da municipalização do ensino Salete - Meu estudo é pouco, não nego. Não sei
sofreram ao longo do tempo o desgaste de medidas fazer prova nem preencher o diário de classe.
autoritárias incompatíveis com a autonomia do Sei que um aluno aprendeu quando ele faz as
município”. mesmas coisas que eu. (grifo acrescido)
• Assim como acontece com a área de Saúde, na Agência Folha - O Município não exige as pro-
qual, em virtude da municipalização, muitos vas da sra.?
Municípios vêm capacitando os seus conselhei- Menezes - Eles não podem exigir muito de mim.
ros, por que não fazer o mesmo com os conse- Como ganho pouco, acho que eles devem ter
lheiros municipais de Educação? Como obser- tolerância comigo. No ano passado, dos 51 alu-
vado ao longo deste trabalho, muitos CMEs não nos, só meu filho e a filha da vizinha passaram.
operam por absoluto desconhecimento de suas O resto não sabe nada e não pode sair do pré.
atribuições. Então, é imprescindível proporcio- (grifo acrescido).
nar uma capacitação dessas pessoas, para que Meu filho foi para o primeiro ano e já vai me
possam ter o devido esclarecimento, resultando, ajudar a ensinar. Ele já escreve o nome todo. A

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filha da vizinha já está no terceiro ano. analisar esses CMEs, percorrendo distâncias entre
Agência Folha - Como a sra. dá aulas para uma esses Municípios, enfrentando estes e outros reve-
aluna da 3ª série? ses, era difícil manter o ânimo. O ideal anisiano,
Salete - Como também não sei nada da 3ª sé- embora ainda não concretizado, ainda serve de estí-
rie, o jeito é aprender junto com ela”. (grifo mulo ao pesquisador que busca realizar seriamente
acrescido). seu trabalho.
Entretanto, conectando-se à Internet, o CME Ao ser lido e analisado o conteúdo dos docu-
estará ligado ao mundo, podendo receber colabora- mentos dos CMEs, pôde-se constatar que a maioria
ções muito úteis e proveitosas para seu trabalho e, (sete) tem leis de criação curtas, isto é, com poucos
conseqüentemente, para a população que visa aten- artigos, e uma minoria (dois) apresenta leis com
der. maior quantidade de artigos.
• Pode-se utilizar, inclusive, a EAD — Educação Quanto aos regimentos, todos foram muito bem
à Distância — para formação e capacitação de feitos, buscando ser, efetivamente, “a lei da casa”.
conselheiros municipais de educação pelo CNE, Mas, se apresentam disposições muito pertinentes,
assim como pelos CEE’s. não se deve esquecer que, em alguns CMEs, os re-
• Sugere-se, também, a formação e qualificação gimentos conflitam com a lei de criação, o que, con-
de professores via EAD, para que, ao fim da forme a hierarquia das leis, não pode acontecer. É o
Década da Educação, o objetivo da extinção da que ocorre com o CME de Guanambi que estabele-
figura tão conhecida do professor leigo, ce, em lei, 8 (oito) Conselheiros e, no regimento,
desqualificado, servindo para práticas esse número é alterado para 9 (nove). Além do mais,
clientelísticas, possa ser atingido. no que tange à função de Conselheiro, que, na lei,
Um dado digno de nota e que se faz presente aparece como de relevante serviço público e de exer-
antes mesmo das disposições legais, é o difícil aces- cício gratuito, no regimento, é estabelecido um jeton,
so que alguns municípios criaram ao exame de suas como forma de retribuição a cada presença em reu-
legislações referentes aos respectivos Conselhos. nião deste mesmo CME.
Que razões levariam tais agentes municipais a Com essas considerações, pode-se inferir que ou
se comportarem desta forma? Afinal, a legislação a lei de criação do CME não foi muito bem discuti-
de um País, Estado, Município é para ser conhecida da, apreciada e acabou incorporando erros em seu
por todos, é um dos passos advindos da feitio, ou os conselheiros, na ânsia de implementar
concretização da lei (publicação em Diário Oficial) o CME, não deram o devido cuidado ao regimento,
e, afinal, já estabelece a Lei de Introdução ao Códi- ou, pior ainda, numa afronta à lei de criação e, op-
go Civil, Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de tando por modificar os aspectos em que a lei não
1942, em vigor, em seu artigo 3º, que “Ninguém se correspondia aos seus anseios, alteraram, via regi-
escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhe- mento, essas características da lei de criação.
ce”, o que seria confirmado também pela letra cons- O número de conselheiros dos CMEs, também,
titucional federal de 1988, artigo 5º, II: “Ninguém parece ser uma dificuldade a ser estabelecida pela
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa legislação: uns estabelecem 7 (sete), outros 9 (nove),
senão em virtude de lei”. o que conforme Romão (1992) é um bom número,
Era extremamente constrangedor e frustrante, por facilitar reuniões e decisões. Mas, se alguns
numa entrevista com conselheiros de qualquer des- CMEs foram felizes nesta questão, outros não obti-
ses municípios, observações do tipo: “Bem, nosso veram tal êxito e fixaram em 13 (treze), 26 (vinte e
Conselho foi criado, mas ainda não está funcio- seis) e até 50 (cinqüenta) conselheiros.
nando”, o que, às vezes, já correspondia a vários Logicamente, a relação quantidade/qualidade,
anos de inoperância. neste particular, não pode ser avaliada, mas é até
A luta de Anísio Teixeira pela municipalização questão de bom senso: um Conselho com 50 mem-
do ensino, na prática, mais de 40 anos depois, ainda bros apresenta dificuldades em ser produtivo até pela
não foi concretizada. Para alguém empenhado em questão regimental do quorum.

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O que se pode depreender dessas disparidades é 3. A organização de um calendário de trabalho anu-
que, na ânsia de contentar setores representativos al, onde, na última reunião do ano, já se prepara
da sociedade, contribuindo para uma participação o cronograma de trabalho do ano seguinte, pre-
mais ampla, alguns municípios criaram um verda- vista nos CMEs de Vitória da Conquista (art. 23
deiro entrave ao funcionamento dos seus Conselhos. do regimento interno), Paripiranga (art. 37 do
Não parece haver, por parte dos conselheiros, regimento), Catu (art. 23 do regimento),
real consciência do que seja seu papel e da impor- Camaçari (parágrafo único, art. 30, do regimen-
tância de tal órgão. Esta afirmativa pôde ser com- to), Salvador (parágrafo único, art. 13, do regi-
provada com o posicionamento que alguns CMEs mento).
assumiram, já referidas anteriormente. Não basta, entretanto, constatar a inoperância
Apesar de toda essa problemática envolvendo os da maioria dos CMES estudados, não basta fazer a
CMEs analisados, não quer isto significar que o crítica e não apresentar alternativas. É importante
processo de descentralização via municipalização que sejam apontados caminhos, propostas e, neste
do ensino não deva ser efetivado nos próximos anos, sentido, alguns pontos são aqui colocados:
pelo contrário. Paralelamente a essas dificuldades, • O CME não é para ser criado apenas porque o
percebe-se a criação de novos Conselhos, e que os Município que não souber administrar sua edu-
já criados, mesmo que ainda não funcionem, bus- cação (e isso se faz não apenas com a SME)
cam apoio para se tornarem efetivos. será penalizado via verbas não recebidas do
Municípios que, como Simões Filho, já em sua FUNDEF;
LOM, definem que a manutenção do padrão de qua- • O CME não é apenas mais um órgão na, muitas
lidade da educação municipal é responsabilidade do vezes, inchada administração municipal. É um
CME, deixam claro a importância, ao menos teóri- órgão para ser operante, eficiente e eficaz;
ca, que tais Conselhos assumem. O grande proble- • Deve ser representativo das diferentes entidades
ma tem sido colocar a lei em ação, o que não deixa que atuam em educação, com a participação dos
de ser uma prática corrente no Brasil. docentes, pais e comunidade, mas não deve ser
Se há dificuldades para ser implementada, não composto por pessoas que não tenham a real
significa que a municipalização do ensino seja um consciência da função de conselheiro;
grande engodo, mas que, entre a sua proclamação e • Deve ter um número ímpar de membros, de pre-
a sua efetivação, ainda resta um grande terreno a
ferência 7 (sete) ou 9 (nove), para não inviabilizar
ser percorrido, como as distâncias entre o Brasil
o trabalho do Conselho, como já foi demonstra-
real e o Brasil legal, já salientadas por Teixeira
do;
(1976) e Benno Sander (1977).
• A sua lei de criação não deve ser prolixa, deven-
Apesar do exposto, muitas qualidades podem ser
do se ater aos pontos principais, como: funções
destacadas no esforço desses CMEs, enumerando-
se, além das já citadas anteriormente: — normativa, consultiva, fiscalizadora e
1. A preocupação com dotação própria, presente deliberativa; a exigência para ser conselheiro —
nos Conselhos de Salvador (art. 11, Decreto nº pessoa de notável saber e experiência em maté-
6.570/82), Guanambi (art. 6º, Lei nº 83/95), ria de educação, além de representar a categoria
Paripiranga (art. 31, 32, 36, 37 e 38 Lei nº 1/ que o indicou; número de conselheiros, bem
94), Catu (art. 15, II e 16, Lei nº 29/94) e como de suplentes e mandato (3 anos); se a fun-
Serrinha (art. 30 e 31, Lei nº 466/94); ção deve ou não ser remunerada e de que for-
2. A abertura para uma possível participação da mas, apesar de ser de relevante interesse públi-
comunidade, na apresentação de propostas, des- co; e definir prazo — no máximo 60 (sessenta)
de que previamente cadastrada: “Qualquer ci- dias, para a elaboração do regimento interno;
dadão ou entidade poderá, previamente cadas- • Apesar da função de conselheiro ser de relevan-
trado, apresentar propostas no Plenário do Con- te interesse público, os dados revelam que nos
selho” (Art. 12, Lei nº 1.902/97). CMEs onde houve uma retribuição pecuniária,

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ainda que mínima, para esta tarefa, houve uma • O CME deve adquirir uma biblioteca básica ou
certa operacionalidade. centro de documentação que lhe permita funda-
Isso não significa que a função deve ser vista mentar-se nas suas decisões, pareceres, enfim,
como meio de aumento de salário, mas por que di- na sua atuação.
ferenciar esta função daquelas de conselheiros de Essas são sugestões oportunas para
outros órgãos, como o do Tribunal de Contas dos implementação dos CMEs e que não significam
Municípios que, ao menos confere maior status ao grandes dificuldades para estes órgãos, mas que
seu titular? podem trazer-lhes, juntamente com outras, um im-
• O regimento também não deve ser utópico, mas pulso considerável na busca pela melhoria da qua-
conter os aspectos básicos e que permitam ao lidade da educação municipal. Afinal, como salien-
Conselho atuar com eficiência e eficácia. ta Sylvia Schmelkes (1994:41):
• O regimento ainda deve, assim, conter: as fun- “Um movimento de busca da qualidade é, por
ções do CME e seu intuito em receber delegação este motivo, um processo que, uma vez inicia-
de competência do CEE-BA; a estrutura do Con- do, nunca termina. Não existem os tais ‘níveis
selho e as responsabilidades de cada uma das aceitáveis’ de qualidade. Sempre temos que es-
Câmaras; os direitos e deveres dos conselheiros, tar insatisfeitos com os níveis de qualidade al-
como jeton, ausências, licença para tratamento, cançados, porque será possível melhorá-los. O
exoneração somente após a votação de, pelo aprimoramento alcança níveis mais elevados a
menos, a maioria de 2/3 (dois terços) dos mem- cada problema resolvido”.
bros; e os prazos para dar pareceres e relatar Apesar de longo o caminho a ser percorrido - a
processos. distância entre o dispositivo legal e o seu efetivo
• O CME não pode ficar na dependência de dota- cumprimento - é inexorável o processo da
ções e repasses da SME. Precisa ter verba pró- municipalização do ensino. Com relação ao traba-
pria, a fim de não ser dependente da estrutura lho desenvolvido, pode-se dizer que, atualmente, a
burocrática da Administração, trazendo efeitos descentralização ainda não deu provas de sua
centralizadores num trabalho descentralizado. efetivação a contento; quanto à centralização, em
• Precisa contar com pessoal próprio, que tam- pelo menos 3 (três) dos municípios pesquisados —
bém não denote empreguismo. Para seu bom Camaçari, Guanambi e Simões Filho —, este pro-
funcionamento, por exemplo, o CME não ne- cedimento se fez notar, fato comprovadamente ex-
cessita mais do que 5 (cinco) a 10 (dez) funcio- plicado anteriormente. Se é um engodo político, não
nários, sendo 1 (um) secretário, 1 (um) recepci- se pode afirmar, mas fica patente que, se a atual
onista e 1 (um) auxiliar de serviços gerais, 1 (um) estrutura destes Conselhos não for alterada, essa
bibliotecário e 1 (um) consultor para solucionar hipótese poderá ser concretizada em futuro não tão
possíveis dúvidas. Com o crescimento do Con- distante.
selho e a compreensão dos conselheiros sobre Esdras Paiva, em matéria na revista Veja
sua função, a consultoria pode ser dispensada (Paiva:1998:94-97), põe a municipalização do en-
da sua estrutura, ficando, entretanto, a possibi- sino como uma das “Idéias que estão dando cer-
lidade de eventuais solicitações. to”, ao lado de outras como o FUNDEF, a melhoria
• Além dos recursos humanos, o CME não pode dos salários dos professores, dentre outras, daí o
prescindir de um local próprio, ainda que seja título da matéria (“O simples que funciona”). Re-
uma sala modesta na SME, até que possa ter um almente, são propostas simples, mas que, assim
local definitivo e mais amplo, além de recursos como os “...projetos mirabolantes”, necessitam do
mínimos, como arquivos, mesas, máquina de apoio da comunidade para saírem do papel.
escrever, na impossibilidade de um As soluções para esses problemas são muitas e
microcomputador com acesso a internet, linha estariam, de início, na conscientização da popula-
telefônica, fax e, conforme o crescimento, copi- ção em reivindicar seu direito à educação pública,
adora. gratuita e de qualidade. Se a comunidade não se

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interessar pela busca desta educação, se se conten- lho, assim como a SME.
tar com uma educação pública de segunda classe, Deve-se, ainda, buscar o envolvimento dos mei-
que forma cidadãos sem acesso à cidadania, como os de comunicação de massa do município, seja a
integrantes de camadas de baixa renda do país, rádio da comunidade, o jornal semanal, ou mesmo
mantendo a renovação do chamado “exército de re- o serviço de alto-falante para que eles também pos-
serva” e gerando, assim, indivíduos que lutam para sam dar sua contribuição no sentido de que a popu-
sobreviver, abrindo mão, para isso, de dignidade, lação tenha direito à educação, como vem buscan-
para não se referir aos direitos humanos e sociais, do o Projeto Nordeste e o UNICEF, através das
mas apenas a deveres, então a política do Oficinas de Radiojornalismo e Educação (projeto
fisiologismo continuará a imperar e o Estado conti- desenvolvido pela Direção Geral do Projeto Nor-
nuará a oferecer concessões a estas comunidades deste - DGPN - e o UNICEF que busca a participa-
apenas com o fim de manter seus próprios interes- ção de radialistas no envolvimento da questão edu-
ses e os das classes dominantes, como adverte cacional brasileira, Cf. Boletim Técnico a.2., n.17,
Cipriano Luckesi (1989). p.10-11, nov. 1997.).
Outra questão que merece ser mencionada é a Pondo-se em prática essas sugestões e outras que
busca por soluções viáveis dos problemas. Anteri- as próprias municipalidades possam ter, o CME não
ormente, fez-se referência à manutenção pelo CME será um apenas mais um órgão na estrutura munici-
de sua home page. Mas, se o Conselho não tem pal, porém um órgão com reconhecida capacidade
condição para tanto, busque-se por soluções ade- técnica e fundamental na busca da melhoria da qua-
quadas à sua realidade. Por exemplo, se não é pos- lidade educacional do município.
sível a home page, será possível um curso para ca-
pacitar os conselheiros via EAD, usando-se a rádio
Conclusões
local ou mesmo o material impresso e enviado via
postal? Realmente, se se buscam soluções para pro- Quanto ao problema que guiou a análise dos
blemas, não adianta almejar aquelas que estão aci- Conselhos Municipais de Educação, pode-se con-
ma da possibilidade do município e das pessoas en- cluir que, na maioria dos municípios pesquisados o
volvidas, mas soluções viáveis, eficazes e eficien- Órgão ainda não traz benefícios para a garantia do
tes. direito à educação da comunidade local. Não pôde
Também digna de nota é a crescente união entre ser constatada uma realidade mais cidadã, devido à
Estado e iniciativa privada. Assim, os municípios presença do CME. Entretanto, no que concerne à
podem buscar parceiros na iniciativa privada, para melhoria da educação sistemática oferecida nos
que eles possam também assumir responsabilida- municípios, pôde-se constatar que em alguns deles
des com a educação da comunidade, investimento houve uma certa melhoria, como, por exemplo, a
que retornará na própria melhoria da mão-de-obra população estudar em colégios autorizados e a uti-
para suas empresas (Cf. Boaventura (1996) e Ama- lização da convalidação de estudos, obtenção de
do Jr.(1997). direito que se deve à consciência e cidadania dos
Os CMEs devem, ainda, buscar maior intercâm- munícipes.
bio com os Conselhos Estadual e Nacional de Edu- Com relação às questões que guiaram esta pes-
cação, visitando-os, pedindo orientação, enfim, e quisa, pode-se dizer que a primeira (em que medida
assumindo o desconhecimento das funções, para o CME, como órgão da política de descentralização
proporcionar à comunidade uma realidade educaci- via municipalização do ensino, pode ser visto como
onal mais digna. fator de melhoria da qualidade escolar municipal,
É necessário que sejam compactados consulto- entendida a melhoria da educação como menor nú-
res em educação e destinadas verbas específicas para mero de evasão e repetência, menor taxa de analfa-
que essas pessoas possam prestar assessorias peri- betismo, professores com melhor qualificação e re-
ódicas ao Município, com palestras, cursos e mes- muneração, escolas com melhor infra-estrutura e
mo pareceres sobre dúvidas que afligem o Conse- acesso escolar garantido a todos em idade própria?)

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pôde ser constatada, em parte, quanto à melhoria dade no ensino municipal, conforme o CME tivesse
da qualidade escolar pela atuação do CME. Isso ou não delegação de competência, de acordo com o
porque dos 9 (nove) municípios apenas 3 (três) - que foi colocado na terceira questão, (“conforme a
Paripiranga, Vitória da Conquista e Catu - tinham atuação do CME, com ou sem delegação de compe-
CMEs em pleno funcionamento. Ainda assim, nes- tência, pode-se evidenciar algum impacto na
ses três, nem todas as condições da pergunta foram melhoria da qualidade no ensino municipal?”). To-
satisfeitas. Pode-se, então, concluir que este órgão dos os três CMEs em atividade — Paripiranga, Vi-
não tem contribuído a contento para melhoria da tória da Conquista e Catu — tinham tal atribuição.
qualidade da educação municipal. Entretanto, é preciso chamar atenção para a impor-
A segunda parte da questão (seria a tância da figura da delegação de competência. Um
descentralização via municipalização do ensino uma Conselho que não tem condições para tanto, não
forma de se nivelar por baixo a educação formal pode recebê-la, como parece óbvio. Mas não é o
oferecida ao cidadão, ou ainda de ampliação das que aconteceu com Guanambi, Simões Filho e
desigualdades existentes, na medida em que os mu- Camaçari, onde todos alegaram que não estavam
nicípios mais pobres não teriam recursos suficien- cientes de suas atribuições, sendo o caso de
tes para equiparação aos mais ricos?), também não Guanambi o mais inquietante.
pôde ser comprovada, porque diante da Deve-se ressaltar, todavia, que os CMEs de
estacionariedade dos CMEs não houve como utili- Paripiranga e Vitória da Conquista vêm desempe-
zar os instrumentos nesta aplicação. Entretanto, sou nhando um bom trabalho, o mesmo acontecendo com
de opinião que municípios com CMEs mais o de Catu.
estruturados, independentemente de suas riquezas A última questão (com a nova LDB, Lei nº 9394/
econômicas, apresentariam uma rede escolar mais 96, e a possibilidade de o município integrar o sis-
equilibrada, com menores desigualdades entre es- tema estadual de ensino, formando um sistema úni-
colas de sua própria rede. co, o processo de descentralização via
A resposta à segunda questão (tendo em vista a municipalização não será transformado numa
realidade econômica, social e cultural dos 415 mu- estadualização, com possível centralização, ou será,
nicípios baianos, e de seus habitantes — já que em parodiando Romão (1992), um passo na
boa parte desses municípios, pobreza, miséria, anal- publicização municipal?) indicou uma tendência à
fabetismo, falta de acesso à escola são comuns —, centralização, não no sentido da estadualização, mas
as funções do CME representam para essas popu-
numa centralização na própria esfera municipal, em
lações garantias de acesso à educação, e conheci-
que a SME, muitas vezes confundindo-se com o
mento do que é e para que serve o Conselho?) reve-
próprio secretário, abarca as funções tanto da SME
lou que, paulatinamente, essas populações vêm lu-
como do CME.
tando por seus direitos, quando, por exemplo, bus-
cam o Conselho para registro de diplomas, convali- Apesar da centralização acima citada, não se
dar estudos ou solicitar autorização para abertura pode negar que as CMEs funcionam. Muitas ope-
de escolas. Há um longo caminho a ser percorrido ram improvisadamente, sem pessoal qualificado para
ainda, como exigir as funções consultiva e exercer as funções designadas, dando origem a uma
fiscalizadora deste Órgão, mas essa procura inicial espécie de autoritarismo como forma de esconder
já revela que as comunidades querem mais atenção sua incompetência, seu não-saber.
do Poder Público. É recomendável que a problemática da
O CME não deve servir apenas para convalidar descentralização via municipalização do ensino pos-
estudos, mas, paralelamente à sua atuação e sendo sa ser estudada novamente, quando a nova LDB
feito um trabalho de divulgação de suas funções, estiver mais sedimentada e o FUNDEF implantado,
como já foi referido anteriormente, essas comuni- em um número maior de municípios, procurando
dades poderão ser beneficiadas a médio prazo. responder a estas questões e a outras, pois a tendên-
Não ficou evidenciada uma melhoria da quali- cia descentralizante no país inteiro é cada vez mais

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forte e, no Nordeste e entre nós baianos, não haverá Outra mudança que o FUNDEF provoca é com
de ser exceção. relação ao ensino fundamental. Os Municípios pro-
Muito importante, também, é a relação da ques- curarão aumentar seu número de matrículas ou con-
tão salarial com o desempenho dos professores, in- tinuarão a manter escolas de ensino médio e, às ve-
fluindo na qualidade do ensino municipal. No Bra- zes, de ensino superior?
sil, a rede municipal, reconhecidamente, sempre ofe- Assim, fica a recomendação para posteriores
receu parcos salários, sendo exceções os municípi- estudos, afinal, como já escrevia Anísio Teixeira
os que remuneram seus professores mais dignamen- (1954:55):
te, como Salvador e outras capitais. Não são desco- “A finalidade da educação se confunde com a
nhecidos salários de até R$6,00 (seis reais). Assim, da vida. No fundo de todo este estudo, paira a
embora não possa ser considerado um salário de- convicção de que a finalidade da vida é boa e
cente, o piso médio proposto através do FUNDEF é que pode ser tornada melhor. É essa a filosofia
de R$315,00 (trezentos e quinze reais) por 20 (vin-
que nos ensina o momento que vivemos. Edu-
te) horas de trabalho, o que muda consideravelmen-
cação é o processo de assegurar a continuida-
te a renda desse trabalhador. Será que tal mudança
de do lado bom da vida e de enriquecê-lo,
se refletirá no seu trabalho? Será que continuará a
acumular trabalhos? alargá-lo e ampliá-lo cada vez mais”.

NOTA
1
Professor Assistente da UNEB, Campus XI e Assistente Acadêmico da FIB.

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HOMENAGEM A
ANÍSIO TEIXEIRA
ANISIO TEIXEIRA, SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO,
OU: POR QUE NÃO SE DEMOCRATIZA
A EDUCAÇÃO NA BAHIA?

Jaci Maria Ferraz de Menezes


Professora da Universidade do Estado da Bahia

Estamos, na Universidade do Estado da Bahia, No nosso trabalho de pesquisa, que toma como
professores e alunos de graduação e pós-gradua- recorte o período que se inicia a partir da Procla-
ção, coletando, sistematizando e pretendendo divul- mação da República, nos perguntamos da trajetó-
gar informações sobre educação na Bahia, educa- ria percorrida pela instituição escolar, vista como
dores baianos e sua produção intelectual, tentando, um requisito para a implantação de uma cidadania
desta forma, não apenas organizar uma Memória plena (lembremo-nos de que, até 1986, ser alfabe-
da Educação na Bahia1 - o que por si só já é uma tizado era critério para qualificação do cidadão
difícil tarefa - mas, sobretudo, organizar um grupo brasileiro): por que não conseguimos ainda
de pesquisadores que, tomando a história como fer- universalizar a escola básica? Que fatores ajudam
ramenta de trabalho, procure entender os tortuosos a explicar este segundo “enigma baiano” – por que
caminhos pelos quais passa e passou a não se democratizou a escola entre nós?
institucionalização da escola entre nós. Este Grupo O que faz com que a Bahia continue com um
incluiu professores dos Departamentos de Educa- dos maiores índices de analfabetismo entre jovens
ção de Salvador, Teixeira de Freitas, Itaberaba, e adultos no país e com uma escola pública com
Senhor do Bonfim, Juazeiro, Valença, do Núcleo de características de extrema seletividade, registran-
Irecê, de Serrinha, de Letras de Alagoinhas, de Con-
do ainda altos percentuais de reprovação? Será a
ceição do Coité e de História, de Jacobina e Sto
escola uma instituição necessariamente comprome-
Antonio de Jesus.
O trabalho tem como objetivo juntar gente que, tida com o atraso, infensa a ações transformadoras?
por força até do seu ofício de educador, ajude a le- Que providências tomou e toma a população para
vantar documentação sobre educação na Bahia e, educar-se, se não consegue chegar ou permanecer
sobretudo, em torno da construção desta Memória na escola pelo tempo necessário?
a ser organizada, retomar o espírito de luta pela Isto acontece ainda, apesar da presença de Aní-
democratização da escola pública entre nós. sio Teixeira entre nós. Teria, de fato, a proposta
O ano de 2000, muito fortemente marcado pela dos educadores do movimento dos Pioneiros da
revisão e rediscussão de momentos da nossa histó- Educação Nova, exeqüibilidade? 2 Quais as rela-
ria, é também o ano do Centenário de Anísio ções desta proposta, gerada em torno da crise da
Teixeira. Mais que educador baiano, educador do década de 30, no Brasil, com a visão burguesa de
Brasil e das Américas, Anísio é figura que precisa mundo e com o aprofundamento e a modernização
ser retirada da sombra a que os grandes democratas do capitalismo entre nós?
foram relegados. Neste momento de refluxo das uto- Queremos, neste texto, discutir um período da
pias de transformação do mundo e da sociedade – História da Educação na Bahia, a partir de docu-
desigual e injusta – em que vivemos, o pensamento mentação existente no arquivo pessoal do
sobre educação e vida e educação e democracia no professor Anísio Teixeira, sob a guarda da Funda-
Brasil, que Anísio Teixeira, ao lado de outros bra- ção Getúlio Vargas, que mostra algumas das difi-
sileiros ilustres, encarnou, precisa ser retomado. culdades encontradas no modo de fazer política

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baiano. A década de 40/50, no período de retorno seu progresso (...) submetendo o bem comum
ao Estado de direito, no Governo de Otávio ao de classes e, mais ainda, ao de indivíduos.
Mangabeira, quando Anísio Teixeira foi, pela se- O melhor remédio que encontramos para este
gunda vez e agora como educador de renome inter- grande mal é, antes de tudo, a difusão da ins-
nacional, secretário da educação. trução (...); aí está o alicerce das democraci-
Nos pareceu sempre surpreendente que, sendo as, que não podem ser comprometidas nem pra-
Mangabeira o governador eleito pela conjunção dos ticadas por um povo que não possua pelo me-
partidos mais fortes então existentes, e sendo Aní- nos a consciência dos seus deveres e direitos.
sio Teixeira um grande educador, a sua proposta de É preciso que seja uma realidade o regime da
educação para a democracia, tão adequada àqueles opinião popular e este jamais existirá onde a
anos imediatamente pós-guerra e de retorno ao es- instrução não for realmente cuidada, mas cui-
tado de direito, não tivesse logrado êxito. Os docu- dada com o maior empenho do governo.”
mentos encontrados mostram a existência de um Góes Calmon convida Anísio Teixeira, advoga-
conflito no seio do governo Mangabeira e a quase do recém-formado, para a função de dirigir a edu-
desistência de Anísio, que se mostra inclinado a cação na Bahia. Desde aí, alicerçado na idéia da
voltar para a UNESCO, de onde recém saíra. A educação para a democracia e da educação como
função pública, prega, além da difusão e da fiscali-
análise destes documentos nos ajuda a entender o
zação do ensino primário, a necessidade de um en-
momento e a Bahia.
sino de qualidade - o que associa à sua duração,
não só em termos de número de anos, como de nú-
1. O governo Góes Calmon: mero de horas do dia letivo.
primeira experiência de Anísio Já no ano seguinte, em 1925, Anísio Teixeira
propõe e realiza uma reforma do sistema de ensino
Teixeira como educador
na Bahia, no qual reforça a implantação do ensino
primário elementar, de quatro ou três anos (zona
Anísio Teixeira dirigiu a educação na Bahia em
rural), e mais:
dois momentos: entre 1925 e 1928, no Governo Góes
- ensino primário superior, de mais três anos de
Calmon, e entre 1947 e 1950, no Governo de Otá-
duração;
vio Mangabeira. Ambos os governadores buscaram,
- ensino complementar, preparatório à escola nor-
nos seus períodos, imprimir um novo ritmo à vida
mal;
econômica e social baiana.
- ginásio e ensino secundário, preparatórios ao en-
Em seu relatório à Assembléia Legislativa, em
sino superior.
1925, Góes Calmon afirma, articulando as idéias
Aparecem, nessa lei, embriões do sistema de
de progresso e desenvolvimento com a perspectiva
ensino para filhos de trabalhadores industriais
de uma ação acima das classes e da importância da
(instituindo escolas maternais nas fábricas que
educação para a democracia:
ofereçam casas para sua instalação e alimento
“Chegamos ao momento em que é preciso pro-
para as crianças), bem como da sistemática au-
mover com coragem e fé no futuro o desenvol-
xiliar de manutenção do ensino (hoje salário-edu-
vimento do Estado. Se devemos fazê-lo com cação).3
prudência (...), não devemos neste caminho A Lei de 1925 4 estabelece as bases para o
marchar com tibiesa, para a consecução deste sistema de ensino e sua administração, discrimi-
desideratum, que não é de indivíduos nem de nando conteúdos e organização curricular nos
classes, mas de coletividade como um só cor- seus diversos níveis. Cria o sistema de fiscaliza-
po. (...) É a aspiração de toda a Bahia, até hoje ção do ensino, no qual aparece a figura do Con-
dominada pelas idéias ferrenhas do selho Escolar Municipal. E, o que é extremamente
partidarismo, criado e fomentado sempre interessante, unifica o sistema de ensino: o ensi-
em torno de ambições individuais, muitas no primário municipal constituiria, com o do
vezes de mando e outras de mando e de Estado, um só serviço, sob a direção geral,
riquezas. É isto o que tem perturbado todo o superintendência e fiscalização do governo do

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Estado. Os professores municipais seriam nomea- exames.
dos e pagos pelo Estado, cabendo ao município re- Na proposta de reforma, assume como necessi-
colher 1/6 da sua renda tributária, mensalmente, dades educativas da população e como função da
aos termos do Estado - sob pena de suspensão do escola:
prefeito que não o fizesse. “1. A escola deve preparar o indivíduo para
No período entre 1925 e 1928, passa o pensa- participar no governo do Estado e da União,
mento de Anísio Teixeira por profundas transfor- com eficiência e independência;
mações - da visão jesuítica sob cuja influência esti- 2. A escola deve preparar o indivíduo para
vera até aí, para a concepção pragmática de escola exercer o auto-governo de sua vila ou cidade e
sob a influência de Dewey e Kilpatrick. O contato município;
com o pensamento destes filósofos reforça e am- 3. A escola deve habilitar o indivíduo a pro-
plia sua visão de educação e democracia e mesmo gredir na eficiência e rendimento de seu traba-
os seus conhecimentos sobre uma pedagogia reno- lho;
vadora. 4. A escola deve habilitar o indivíduo a cui-
Em 1928, Anísio Teixeira propõe uma revisão dar da sua saúde e melhorá-la;
da organização escolar na Bahia. Estabelece uma 5. A escola deve cooperar para o melhora-
crítica da escola baiana, em quantidade e qualida- mento geral das condições de vida da popula-
de. Nessa crítica, aparecem alguns dos elementos ção.”
básicos do seu pensamento, sempre perseguidos daí Propõe a reorganização do sistema escolar ur-
em diante. Segundo sua visão, a escola primária bano, a reorientação da escola rural, e a revisão
elementar teria os seguintes problemas de qualida- das escolas normais, de modo a transformar os pro-
de: fessores em especialistas da educação com espírito
• desorganização do currículo escolar, profissional, após cursar o ensino secundário unifi-
no conteúdo e na graduação pelos diversos anos cado de cinco anos. O plano de transformação do
escolares; ensino secundário e normal seria implantado pro-
• inexistência de relação entre o progra- gressivamente. Sua proposta, apresentada ao novo
ma escolar e as atividades ordinárias da vida governador, Dr. Vital Soares, não foi aceita, dei-
das crianças; xando, então, Anísio Teixeira a direção da educa-
• métodos de ensino artificiais e ção na Bahia e, como principal saldo do seu pri-
livrescos; meiro período, a unificação do sistema estadual de
• não-desenvolvimento da iniciativa do ensino e a expansão da matrícula.
aluno, nem da sua participação ativa no traba-
lho escolar;
• não-oferecimento, à criança, de pos- 2. A revolução de 1930 e o Estado
sibilidades de compreensão de seus problemas Novo: nacionalismo x
e dos problemas de sua terra e de sua gente; internacionalismo; democracia x
• não-oferecimento pela escola de opor- fascismo; escola pública x escola
tunidades para formação do caráter. privada; escola leiga x
Assim, a escola estaria com sua finalidade real confessional
muito restrita, não estaria fazendo “educação para
a vida”.
Desde os fins da década de 20, Anísio filia-se
Com relação à escola secundária, critica a cen-
à Associação Brasileira de Educação - ABE,
tralização administrativa, no nível federal - onde a
necessidade de unidade da educação estaria sendo mediante a qual se engaja no movimento de
entendida como forma de assegurar a uniformida- renovação da escola no Brasil. Após a Revolução
de; a concepção dualística da educação - separan- de 1930, dentro da própria ABE, a discussão
do-se as escolas secundárias das profissionais e sobre os rumos do país - estreitamente
considerando-se estas como de segunda classe; a sintonizada com as discussões internacionais
organização caótica dos programas de ensino; o entre as duas guerras mundiais, estas últimas
ensino livresco e a vinculação dos cursos aos polarizadas entre a democracia liberal, o

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socialismo e o nazi-fascismo - começa a delinear Nova. A proposta educacional do Estado Novo,
diferenças entre os educadores a ela filiados, for- reafirmando caber às famílias o dever de educar a
mando correntes entre os próprios educadores “re- prole, vai retomar o ensino religioso e reforça a for-
novadores”. mação cívica: Deus, Pátria, Família. O entrecho-
Em 1932, a corrente progressista comprometi- que das duas posições - progressista um, tradicio-
da com o pensamento democrático - na qual Anísio nalista outro - se mantém ainda hoje, na Bahia, en-
Teixeira se inscrevia - lança à nação o Manifesto tre seus seguidores.
dos Pioneiros da Educação Nova, cuja pregação Anísio Teixeira mantém-se no Distrito Federal,
básica é a consideração da educação - pública, gra- influindo largamente, juntamente com os progres-
tuita, universal e laica - como direito de todos e sistas da Associação Brasileira de Educação, no
conteúdo do capítulo de Educação da Constituição
dever do Estado. Esta proposição, que supõe um
Federal de 1934 6, respondendo também pela cria-
conceito de Estado prestador de serviços básicos e
ção da Universidade do Distrito Federal. Aí fica
uma ampliação da visão dos direitos do cidadão
até a implantação do Estado Novo. Passa a ter pe-
para além da simples liberdade de ir e vir, encontra,
dida a sua cabeça após a Intentona Comunista, le-
desde logo, ferrenhos opositores. Entre estes, des-
vante realizado em 1935. Nesse ano, Anísio estive-
taca-se a Igreja Católica, em defesa do ensino reli- ra particularmente sob a oposição do clero e da li-
gioso e das escolas confessionais, aliando-se aos derança católica e contra ele foram dirigidos os ata-
defensores da livre empresa e da redução do papel ques a Pedro Ernesto, prefeito do então Distrito
do Estado na sociedade – justificado como forma Federal e simpatizante da Aliança Libertadora Na-
de combater o comunismo “ateu e estatizante”. A cional, sob a acusação de que Anísio era o “conse-
eles se somam ainda os defensores de uma visão de lheiro político de Pedro Ernesto”7. A saída de
ordem social que privilegiaria as “elites”, negando Anísio foi colocada como condição para a continu-
a possibilidade da igualdade e da plena cidadania ação no cargo do Prefeito. Ele entrega o cargo e
para todos e reafirmando os valores tradicionais da passa então a desenvolver atividades particulares,
nação e das famílias brasileiras. numa espécie de exílio interno até o final da segun-
Ligado à corrente progressista, Anísio Teixeira da Guerra Mundial. Tem início, com o Estado Novo,
passa a ser persistentemente combatido como “es- a consolidação de um “Brasil Moderno”, porém
querdista”, “socializante” e “estatizante”. Inicia-se conservador.
a oposição ao educador, então Secretário de Edu-
cação na capital da República, da qual faz parte
3. Anísio Teixeira - Secretário de
seu antigo companheiro na diretoria de Instrução
Pública da Bahia e seu auxiliar no Rio de Janeiro, Educação de Otávio Mangabeira.
o professor Isaías Alves5. A polarização entre Aní-
sio Teixeira e Isaías Alves provoca o rompimento Otávio Mangabeira assume o governo da Bahia
entre os dois. em 1947, numa conjuntura de retorno ao estado de
Isaías Alves retorna à Bahia onde se torna Se- direito, após o fim do Estado Novo, a queda de
cretário da Educação, em 1937, na interventoria de Vargas e o final da segunda Guerra Mundial. É um
Landulfo Alves. A partir daí, rompido com Anísio momento em que se poderia acreditar terem sido
e com a corrente progressista, aprofunda o seu pa- afastadas algumas idéias e fortalecidas outras, como
a necessidade de paz, a solidariedade entre os povos,
pel como ideólogo do grupo que, com Gustavo
a República, a democracia, a igualdade, a liberdade,
Capanema, assume a educação no Brasil durante o
os direitos humanos. Otávio Mangabeira assume o
Estado Novo. Comprometido com a formação de
governo com uma aura de “maior baiano vivo” -
elites intelectuais e com a destinação de escolas
no dizer de Jaime Abreu 8 - contando com o apoio
profissionais “àqueles de vocação monetária”, as-
maciço da Assembléia Legislativa, desde que sua
sume, explicitamente, a manutenção do sistema dual
escolha fora apoiada tanto pelo PSD como pela
de ensino, tão criticado por Anísio e pelos signatá-
UDN. Ainda de Jaime Abreu é a observação sobre
rios do Manifesto dos Pioneiros da Educação o seu secretariado como “um Secretariado que valia

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um Ministério”. Orgânica de Ensino, que regulamentaria e
O convite para Secretário de Educação da Bahia colocaria em execução as prescrições da
alcança Anísio na UNESCO, onde exerceu, de 1946 Constituição Estadual. No projeto de Lei Orgânica
a 1947, cargo de Conselheiro de Estudos Superiores. propõe:
Já é, portanto, não apenas um nome nacional em a) a unidade do sistema de ensino, compreendendo
educação; é conhecido internacionalmente e o ensino público - estadual e municipal - e o
comprometido com a reorganização dos organismos privado, e a progressividade dos serviços
internacionais voltados para a paz e a convivência educacionais;
fraterna entre os povos. b) a concepção da escola como forma de suprir
A primeira atividade de Anísio Teixeira foi a deficiências inatas, “do lar e da herança
preparação e a defesa do capítulo de Educação e social” dos alunos, devendo ministrar, “sempre
Cultura na Constituinte Baiana de 1947. que possível, educação integral, desdobrando-
Fundamentado no espírito e nas idéias defendidas se, para o aluno, em lar, ensino e vida e, para
pelos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, e pela a democracia, numa instituição promotora da
ABE, em 1924, quando da elaboração da justiça social e igualdade fundamental dos
Constituição Federal, o capítulo propõe9, e consegue cidadãos”, cuidando ainda da difusão da
aprovar normas e princípios mais avançados do que cultura.
os previstos na Constituição Federal de 1946. São Para cumprir estas funções, previa organizar-se
eles: a escola primária, obrigatória, da seguinte forma:
1) a existência do Conselho Estadual como a) nos núcleos urbanos de mais de 3.000
responsável pela administração da educação e
habitantes, a escola constituir-se-ia o centro
mesmo pela indicação do Diretor de Instrução,
cultural da comunidade, mantendo-se uma
com o objetivo de garantir autonomia
biblioteca de finalidade escolar e pública e,
administrativa dos serviços educacionais;
sempre que possível, auditório para rádio-
2) a criação do Fundo Estadual de Educação,
difusão e cinema, agência de informações,
previsto em 1934, e retirado em 1946, para
cursos de adultos e serviços de extensão
garantir autonomia financeira;
cultural;
3) a existência de uma Lei Orgânica de Ensino só
modificável por maioria absoluta na b) nas escolas isoladas, haveria, além de classe,
Assembléia, de modo a assegurar estabilidade uma pequena biblioteca escolar e área suficiente
à concepção pedagógica e à organização escolar para trabalhos agrícolas;
criadas; c) nos centros de grande densidade urbana,
4) garantia na Constituição baiana de gratuidade deveriam conjugar-se “escolas-classe” e parque
em todos os níveis de ensino, avançando mais escolar, onde seriam proporcionadas educação
do que o previsto na Federal, na qual a física e de saúde, educação artística, e artes
gratuidade é limitada ao ensino primário. industriais. No parque escolar, ficariam
O plano de trabalho do Secretário Anísio localizados a biblioteca e o auditório para
Teixeira inclui, além da defesa dos princípios atividades sociais e artísticas.
aprovados, a sua prática. Propõe e desenvolve um Na organização da escola secundária, propunha
programa de construções escolares, visando a a oferta de um conjunto de cursos, entre os quais o
ampliação do acesso à escola; propõe a preparatório para a universidade. Retoma, assim, a
descentralização e a multiplicação do ensino médio proposta da escola única.
em dez Centros Regionais de Educação, e a Previa, por fim, a existência de um ensino
descentralização do ensino secundário, então supletivo. Esse ensino teria “organização
oferecido em apenas um estabelecimento de ensino particularmente flexível quanto a tempo, horários
- o Colégio Estadual da Bahia. e programas, buscando adaptar-se às necessidades
Entretanto, o desafio fundamental da sua e conveniências do aluno”.
administração consistiu na elaboração da Lei O ponto central do Projeto de Lei Orgânica era,

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contudo, a autonomia dos serviços educacionais. pela Assembléia Legislativa, no governo
Propõe, para isto, a criação de uma autarquia Mangabeira. O projeto chegou a ser discutido pelo
pública - o Departamento Estadual de Educação e relator, mas nunca foi levado à votação, mesmo após
Cultura, constituído pelo Conselho Estadual de elaboração de substitutivo, apesar dos insistentes
Educação e Cultura - órgão deliberativo - e pelo reclamos de Anísio Teixeira. Isso impedia que fosse
Diretoria de Educação e Cultura - órgão executivo. concretizada a nova estruturação do sistema de
Ao secretário de Estado de Educação competia a ensino, inclusive nos aspectos mais transformadores:
presidência do Conselho e a supervisão geral das a unificação das redes públicas, o financiamento
atividades do Departamento. único, a formação do Fundo Estadual de Educação
O Conselho seria composto de seis membros, e, principalmente, a administração colegiada em que
além do seu presidente, nomeados pelo governador se procurava articular um pólo técnico - o Conselho
com aprovação do poder Legislativo. Era e o Diretor do Departamento - ao pólo político -
considerado impedimento para a função de representado pelo Secretário de Educação.
Conselheiro o exercício concomitante de atividades Essa situação de impasse coloca em crise a
político-partidárias - aí compreendidos o presença de Anísio Teixeira no Governo
desempenho de funções de direção dos partidos Mangabeira. Em 1948, entre maio e junho, Anísio
políticos ou o exercício de mandato eletivo. O cargo discute com o governador os problemas que enfrenta
de Diretor do Departamento seria preenchido por na condução da pasta e pede demissão. Surge, no
nomeação do Governador do Estado - “dentre três episódio, um convite da UNESCO para que o Dr.
pessoas de notório saber em questão de ensino”, Anísio retorne a essa organização, o que lhe
eleitos pelo Conselho em voto secreto. proporciona justificativa pública para seu pedido
A Lei Orgânica regulamentaria, ainda, o Fundo de exoneração. Entretanto, sua saída não é aceita
de Educação constituído das dotações por Otávio Mangabeira e ele determina por
orçamentárias do estado e dos municípios e outras permanecer no cargo até o fim do governo.
taxas, multas, etc. O não recolhimento dos recursos Durante a crise, Anísio Teixeira escreve pelo
previstos na Constituição Federal pelos municípios menos dois textos extremamente interessantes. Um,
seria, inclusive, causa de processo de de cunho intimista, após uma primeira conversa com
responsabilidade para a perda do cargo de prefeito. o governador, nunca dado a público10, outro, carta
Constituiriam patrimônio do Fundo os prédios formal entregando o cargo e tecendo considerações
e os terrenos das escolas e instituições públicas de sobre a atitude.
ensino, educação e cultura, e seus recursos podiam No primeiro documento, reflete sobre o estilo
ser depositados ou aplicados para obtenção de de governo de Mangabeira, rebelando-se contra o
rendimento; sua utilização seria exclusivamente nos que chama de “programa de paz política” e
serviços de educação e cultura, não podendo a atribuindo-o, de um lado, ao estilo, ao método de
despesa total com pessoal exceder a 70% do governo e, de outro, a uma certa inexperiência. Dizia
orçamento de custeio. A administração estava a ele:
cargo do Conselho e do Diretor do Departamento. “Agora, trabalho com alguém bem mais difícil
Ficava, pela Lei, o ensino municipal que os dois outros [Góes Calmon e Pedro
incorporado ao sistema estadual, num sistema Ernesto, n.a.]. O senhor é um político e um
único, podendo, entretanto, obter autonomia, atra- idealista com uma confiança em si tão grande
vés de delegação do Conselho Estadual de quanto a sua inexperiência administrativa e
Educação, que criaria o Conselho Municipal de executiva. Tudo lhe parece fácil e possível,
Educação e autorizaria a criação do Fundo sobretudo porque não conhece os contornos
Municipal correspondente. Previa ainda, nas sequer da obra a ser realizada”
suas disposições transitórias, prazo até 1º de E segue:
janeiro de 1950 para a unificação do sistema de “Com o Calmon, a minha docilidade encontrou
ensino. um diretor, com o Pedro Ernesto, um confiante,
A Lei Orgânica de Ensino nunca foi aprovada mas com o senhor não tenho o diretor nem o

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confiante. Perco-me assim numa obediência seu governo prende-se à suposição de que
sem lucidez (...) Não posso deixar de admirar tivesse algo a realizar de caráter orgânico e
o seu modo de ser no govêrno, não posso deixar fundamental. Os meses já numerosos de minha
de admirar o seu programa de paz política, mas administração levaram-me, entretanto à certeza
receio que (...) os meios passem a fins e os fins da inviabilidade desses planos. Neste ponto,
sejam esquecidos. A paz política é indispensável estamos ambos de acordo.”
para o trabalho (...). Para qualquer programa Argumentando sobre a inutilidade da sua
de trabalho é essencial a aceitação do permanência na Secretaria de Educação, formaliza
programa. Mas o programa divide, por sua o pedido de demissão, concluindo:
própria natureza. (...) Força é separar os que “Por outro lado, conforta-me a consciência
o apoiam para a execução e os que o combatem saber que nada poupei para encontrar para o
para a crítica.(...) Impossível governar, sem meu problema outra solução. Tudo fiz para me
descontentar. Mas, descontentar, em seu convencer de que deveria ficar. Somente diante
governo, é crime de lesa-governador. (...) E o da real impossibilidade do trabalho que julgo
resultado não deixa de ser irônico – todos estão dever ao seu governo e ao nosso Estado é que
descontentes.” me conformo em sair para outro posto”.
E conclui, formalizando o pedido de demissão: Em ambos os textos, deixa clara a sua visão de
“ Mas não julgo que deva continuar a desserví- que o Estado precisava, naquela ocasião, de uma
lo. (...) Será, bem o sei, mais uma decepção. É transformação “estrutural e orgânica”, e que esta,
de bom aviso que se corrija tão cedo quanto objetivo principal da sua vinda para a Bahia, estava
possível um erro. O erro foi a escolha de minha ameaçada na sua concretização. Para isso seria
pessoa”. necessária uma tomada de posição do governador,
No segundo texto, formal, datado de 13 de junho que não se faria, dada a natureza da aliança no
de 1948, não deixa transparecer esta crítica tão governo - representada por uma maioria na
contundente a Otávio Mangabeira e a seu governo, Assembléia com o equilíbrio de contrários - PSD e
mas é também muito firme. Refere-se a um encontro UDN - e que o redirecionamento das ações da
entre Secretário e Governador em que se discutem Secretaria, sugerido pelo governador, seria tornar
os problemas para a aprovação do programa da principal o que era secundário. O “outro posto”
pasta e as alternativas. Lembra Anísio: aludido era a volta à UNESCO.
“Acertamos à luz dessas considerações que não Anísio resolve ficar na Secretaria de Educação,
me seria possível ficar sem uma revisão dos e em carta a uma amiga da UNESCO 11, datada de
meus projetos de levar avante a reorganização 27 de setembro de 1948, reflete sobre a decisão:
do sistema educativo do Estado. Tais projetos “Não sei se me decidi como devia, mas não creio
deviam ser colocados como objetivos mais haver escolhido o mais fácil nem o mais
remotos, atacando-se imediatamente os cômodo. O meu trabalho aqui é bracejar
trabalhos mais ou menos acidentais que se sozinho e sem maior esperança - mas julguei
apresentassem viáveis.” que devia minha presença à Bahia (...). Estamos
No entanto, o homem público convocado a ser em um destes momentos do mundo, em que no
Secretário de Educação não quer aceitar que se lhe centro a confusão é maior do que na periferia
diminuam a estatura de educador. Revolta-se: e, daí, ser mais possível trabalhar-se nesta
“Voltando à casa e continuando a refletir, chego fímbria distante do planeta do que neste foco
à conclusão de que a minha substituição se iluminado e trágico que é Paris, ou que seriam
impõe, exatamente para que se possam New York, Londres ou Moscou. (...)”
desenvolver aquelas soluções acidentais, isto E, após refletir sobre as dificuldades da
é, mais modestas e mais adequadas ao UNESCO no que chama de sua contradição
momento. Com efeito, a razão de uma certa essencial - uma organização pela paz mundial em
expectativa em torno de minha colaboração ao um mundo que acredita no esforço permanente da

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guerra - despede-se: servidores pago pelo Governo Federal. Depois, foi
“Diga-lhes que sou aqui um pequeno mestre- entregue ao governo estadual.
escola, perdido em uma praia distante e No seu famoso discurso de inauguração do
longínqua, mas a ela arrastado pela mesma Centro, em setembro de 1950, ressalta a necessidade
força confusa e tumultuosa, que agita, nesse de resistir à simplificação da escola primária -
centro do mundo, a cada um de vocês e a nossa reduzida quase que à alfabetização - praticada a
grande UNESCO (...). E como receita para a título da sua democratização. Observa que uma
nossa perplexidade, ainda não existe outra, escola de qualidade tem que ser cara e por isto
senão, a de cumprir o que nos parecer, no precisa ser assumida pelo Estado - é seu o preço da
momento, o dever, custe o que custar (...)” liberdade e da paz. Alia às funções da escola os
cuidados com a alimentação e a saúde dos alunos,
enfatizando: “toda a infância, com exceção dos
4. A Escola Parque: modelo de filhos das famílias abastadas, podia ser
escola para a democracia e a considerada abandonada”.
cidadania. O CECR, na sua Escola Parque, compreendia
o outro lado da educação básica. Ali se
Continuando no cargo, Dr. Anísio concentra sua desenvolviam as atividades dos setores de
atuação na construção da sua proposta de escola socialização, de arte-educação, de esporte, de lazer
primária, o Centro Educacional Carneiro Ribeiro. e de trabalho compreendido este como um elemento
Pretende, com a construção, demonstrar a a mais da formação da personalidade do homem
exeqüibilidade de uma escola pública de qualidade, comum, vez que, na democracia, sendo todos os
traçando o que seria o currículo da escola primária, homens iguais, todos devem trabalhar e não como
obrigatória, comum para todos. formação para o trabalho ou menos ainda como
Sua intenção deliberada é demonstrar a desenvolvimento de atividades profissionalizantes.
viabilidade de uma proposta consistente de educação Um anfiteatro e um teatro, construído de tal forma
primária para todos os brasileiros. Para tanto, que não precisa de ar condicionado nem de sistema
procura articular quantidade e qualidade, num de som, completavam a obra. Uma biblioteca.
Correio interno, mantido pelos alunos, e padaria,
conjunto de unidades escolares que desenvolviam o
que até hoje fornece pão para a comunidade. Para
conhecimento de um conteúdo básico, de um
completar a obra, grandes painéis de artistas
conjunto de informações, ao lado das demais
plásticos: Carybé, com a representação dos cinco
atividades do currículo que visavam completar a elementos, preside o grande salão do setor de
construção de uma visão de mundo e a “preparação trabalho. Nele, construído em 1953, a Bahia: as
para a vida”. torres de petróleo que então marcavam o sonho de
Um complexo escolar funcionando em dois progresso. Terra, ar, fogo, água; no centro, a luz,
turnos, atendendo a 4.000 alunos simultaneamente, em traços quase abstratos, carrega átomos e cadeias
construído num grande bairro proletário de Salvador de carbono. “Eu cresci vendo cada parte daquele
- a Liberdade - de modo a afastar a idéia de ser painel”, diz um artista plástico que foi aluno da
apenas uma “experimentação”, ou de uma proposta escola.
voltada para um pequeno grupo, uma elite. Além da construção do Centro Educacional,
Apesar de todo o empenho e de destinar ao ficaram como saldo da administração 1947/1951
projeto grande soma de recursos, Anísio só um enorme programa de construções escolares,
consegue, em 1950, inaugurar as 4 escolas-classe, destacando-se a construção de escolas rurais em
para 1.000 alunos cada. Posteriormente, como quase todos os municípios então existentes, e a
diretor do Instituto Nacional de Estudos descentralização do ensino médio secundário, com
Pedagógicos - INEP - vem a concluir a Escola a construção de extensões do Colégio da Bahia, ex-
Parque, que é mantida como atividade do INEP até liceu provincial e única escola secundária pública
a década de 70, inclusive com seu corpo de por mais de um século. Quanto aos Centros
Regionais de Educação, 12 não consegue a

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construção de nenhum deles, apesar do decreto que serão dados àquele monumento à Escola Pública
estadual criando-os,13 apesar da desapropriação de na República.14
terreno (Itabuna), tendo a Assembléia Legislativa Neste ano, em que se comemora o centenário de
aprovado crédito especial para sua construção. Na Anísio Teixeira, nos parece cabível uma profunda
área do ensino superior, põe em funcionamento a reflexão sobre a educação e as propostas de sua
Fundação Baiana de Ciências, com departamentos democratização – colocando-a a serviço das classes
de Ciências Físicas, Biológicas e Sociais, os quais populares, por uma escola de tempo integral, que
teriam a função de alavancar a pesquisa e o forme a personalidade como um todo, única,
desenvolvimento, financiando a formação de universal, plural, gratuita, para todos. Houve
pesquisadores e a realização de estudos. momento em que alguns pensavam que a proposta
de democratização da escola estava a serviço de
um modelo burguês de sociedade. A nós parece que
5. Epílogo
o fato de as proposições de Anísio Teixeira terem
acontecido no conjunto de transformações sociais e
A proposta educacional de Anísio Teixeira não
econômicas que levaram à consolidação do modelo
teve continuidade no governo seguinte. Diretor do
capitalista no Brasil, não transforma as idéias de
INEP a partir de 1952, Anísio desde aí concluiu a
Educação, como direito de todos e dever do Estado,
Escola Parque, que foi mantida como modelo para
em propostas a serviço de um projeto capitalista de
a educação primária brasileira, sendo depois
sociedade – e, como tais, inválidas para os interesses
aplicado, pelo próprio Anísio, na nova capital
dos trabalhadores. Concretamente, a reivindicação
brasileira. Sua concepção serviu de modelo também de mais e melhor escola passou a fazer parte da
para outros educadores, como Darcy Ribeiro, em pauta de luta por melhores condições de vida.
novo momento de redemocratização. Gênese não se confunde com validade, como se sabe.
A Lei Orgânica do Ensino somente veio a ser Aparentemente, na Bahia, as forças progressistas
aprovada na década de 60, para logo ser modificada, têm encontrado muitas dificuldades na sua luta pela
em 1967. Depois de 1964, foi Anísio Teixeira implantação de uma sociedade mais justa e
afastado da Universidade de Brasília e do INEP, o democrática, inclusive pela expansão do acesso à
que acarretou, entre outros prejuízos, a deterioração escola na quantidade e qualidade demandadas pelo
e fechamento da Escola Parque. Em 1988, projeto de Anísio. Sua derrota implicou a construção
inteiramente reformada, a Escola Parque – melhor, de uma sociedade rica, mas desigual, marcada pelo
o Centro Educacional Carneiro Ribeiro - foi fisiologismo e pelo coronelismo. Precisamos
devolvido à comunidade educacional baiana e avançar para uma ação que garanta alguns direitos
nacional. As notícias que temos hoje, entretanto, básicos à população baiana.
são de uma nova reforma do complexo escolar, com Por fim, do ponto de vista do grupo do Projeto
o desmembramento do complexo Escola Parque - Memória da Educação na Bahia, como de outros
escolas classe, que se tornaram autônomas desde o amigos e estudiosos da obra de Anísio Teixeira, a
ano de 1998, e da desativação quase completa da melhor maneira de comemorar o centenário de Aní-
Escola Parque. As razões? Aparentemente, o modo sio seria a união de todos em torno da recuperação
como se entendeu que devia ser realizada a aplicação do Centro Educacional que foi o núcleo da sua
da emenda constitucional que criou o Fundo de proposta pedagógica de formação para a cidadania.
valorização do professor – escolas de ensino Resgatar o grande educador das Américas por sua
fundamental ficam com a prefeitura, e escolas de obra, tomando a Escola Parque como símbolo de
ensino médio, com o governo do Estado... escola republicana e democrática no Brasil. Basta
O complexo desfeito, escolas-classe separadas da de trabalhar a Memória de grandes obras e vê-las
Escola Parque, a comunidade hoje aguarda os rumos sendo destruídas, para chorá-las depois.

AUTORA
Profa. Dra. Jaci Maria Ferraz de Menezes é professora titular de História da Educação e Política da Universidade do Estado da Bahia – UNEB.

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NOTAS

1
A Universidade do Estado da Bahia, através do Núcleo papéis da União e dos Estados, cria o Conselho Federal
de Memória, Pluralidade Cultural e Desenvolvimento, de Educação e o Fundo para o Desenvolvimento do
vem retomando, desde dezembro de 1997, o Projeto Ensino. Vincula, ainda, parcela da receita de impostos
Memória da Educação na Bahia, com o apoio do CNPq. da União e dos estados aos serviços educacionais.
Participam também do projeto Memória da Educação 7
A respeito, ver Hermes Lima, Anísio Teixeira,
na Bahia as professoras Maria José Palmeira, Maria do Estadista da Educação, que inclusive publica as cartas
Carmo Costa Souza, Regina Martins da Matta, de Anísio (renunciando ao cargo) e Pedro Ernesto
Elizabete Conceição Santana, Maria Alba Guedes (aceitando a renúncia).
Mello, e Conceição Costa e Silva (consultora), tendo o
8
grupo como assessor do CNPq o prof. Dr. Luis Henrique ABREU, Jaime. Anísio Teixeira e a educação na Bahia.
Dias Tavares. In: Anísio Teixeira, pensamento e ação (coletânea). Rio
2 de Janeiro. Civilização Brasileira, 1960 (coleção
Em entrevistas realizadas para o Projeto Memória da Retratos do Brasil, n. 3).
Educação na Bahia, desenvolvido pelo Centro de
9
Pesquisas e Estudos - CPE durante o ano de 1982, Da defesa do capítulo da Educação ficou uma das mais
figuras eminentes colocaram: “Anísio pensou, mas belas páginas escritas por Anísio Teixeira: “Confesso
quem realizou foi Isaías Alves”, dando a entender a que não venho, até aqui, falar-vos sobre o problema da
inexeqüibilidade das propostas de Anísio Teixeira para educação sem certo constrangimento: quem percorrer
a educação baiana. a legislação do país a respeito da Educação, tudo aí
3 encontrará. Sobre assunto algum se falou tanto no Brasil
Qualquer estabelecimento industrial do Estado, por e, em nenhum outro, tão pouco se realizou. Não há,
grupo de 200 operários, seria obrigado a manter, à sua assim, como fugir à impressão penosa de nos estarmos
custa, uma escola primária elementar para os filhos dos a repetir. Há cem anos os educadores se repetem entre
operários, e cursos noturnos para operários adultos nós. Esvaem-se em palavras e nada fizemos. Atacou-
analfabetos, prevendo a fiscalização das escolas pela nos, por isso mesmo, um estranho pudor pela palavra.
Diretoria Geral de Instrução, e multa para as empresas Pouco falamos, os educadores de hoje. Estamos
que não cumprissem a lei. possuídos de um desespero mudo pela ação”. Discurso
4
A Lei tem alguns aspectos que merecem ser aos Constituintes Estaduais da Bahia - 1947.
destacados: 10
Encontramos o original dos textos no arquivo pessoal
- a reafirmação da gratuidade e obrigatoriedade do de Anísio Teixeira, entregue por sua família à Fundação
ensino primário elementar; Getúlio Vargas - CPDOC e por esta organizado e aberto
- a reafirmação da laicidade do ensino público; ao público. Também lá se encontram abaixo-assinados
- a criação das escolas profissionais; e cartas de professores e alunos de várias regiões da
Bahia pedindo a Dr. Anísio que permanecesse no cargo.
- a limitação de subvenções a escolas particulares, em Texto 1 – Ref At 46-05-26-III-24
locais onde não existisse ensino público e, em especial,
11
na zona rural; FGV Ref. At. 46 - 05 - 26 - IIII - 28.
12
- o estabelecimento de um prazo de 10 anos para Decreto n. 14.296-A, de 29 de janeiro de 1950.
alfabetização da população, findo o qual nenhum 13
Os Centros Regionais instalados em Alagoinhas,
“cidadão” que não soubesse ler e escrever poderia retirar Juazeiro, Barra, Caetité, Vitória da Conquista, Ilhéus,
título ou carteira para o exercício de qualquer profissão,
Itabuna, Jequié, Feira de Santana e Lençóis. Os Centros
ofício ou mister. seriam compostos de Escola Normal - com jardim
5
Inicialmente ligado ao movimento renovador da de infância e escola elementar modelo, escola
escola, o professor Isaías Alves apóia sua proposta numa secundária, parque escolar, centro social e de cultura, e
visão psicológica - inclusive através da introdução de internato.
testes individuais - como base para um aperfeiçoamento 14
O governo do Estado deu início, nesta semana (12
da didática e dos métodos de ensino. maio de 2000) a novo processo de recuperação do prédio
6
A Constituição de 1934 consagra as idéias de e da proposta pedagógica, cujo conteúdo ainda não é
estruturação do Sistema Nacional de Ensino, define os do conhecimento da comunidade baiana.

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ANÍSIO TEIXEIRA E A ARQUITETURA ESCOLAR:
PLANEJANDO ESCOLAS, CONSTRUINDO
SONHOS
Célia Rosângela Dantas Dórea
Professora da Universidade do Estado da Bahia

RESUMO: Com base na análise preliminar das educacionais nesses Estados. Em suas três
políticas de edificações escolares implementadas administrações públicas, na área educacional, deu
pelo educador Anísio Teixeira (1900-1971), no Rio ênfase especial ao planejamento das edificações
de Janeiro-DF (1931-1935) e na Bahia (1947-1951), escolares, criando até mesmo setores específicos
este artigo visa caracterizar a organização do espaço para tratar dessas questões. Para ele, sem instalações
escolar nesses dois períodos, buscando identificar adequadas não poderia haver trabalho educativo, e
os aspectos pedagógicos e arquitetônicos que o prédio, base física e preliminar para qualquer
permitem estabelecer aproximações entre os programa educacional, tornava-se indispensável
“modelos” de escolas aí adotados. para a realização de todos os demais planos de
Palavras-chave: Arquitetura escolar; espaço escolar; ensino propriamente dito. (Teixeira, 1935)
edificações escolares; organização do espaço físico. Anísio entendia que a educação não era apenas
um fenômeno escolar, mas um fenômeno social que
ABSTRACT: Taking into account first analyses se processava permanentemente em toda a socieda-
of school building politics, advised by professor de. Mas ele acreditava que, enquanto as demais ins-
Anísio Teixeira (1900-1971), in Rio de Janeiro-DF tituições exerciam ação educativa sem plano defi-
(1931-1935) and Bahia (1947-1951), this article nido e sem controle de resultados, a escola era “a
aims to describe the school physical space design instituição conscientemente planejada para edu-
at these times. It also identifies some similar features car”. (Teixeira, 1997:255)
of pedagogic and architectonic different school Assim, este estudo visa apresentar os resultados
model designs. até agora obtidos com base numa análise prelimi-
Key-words: School architecture; school physical nar das políticas de edificações escolares
space; school building; physical space design. implementadas por esse educador, em suas admi-
nistrações à frente das Secretarias de Educação, no
Introdução * Rio de Janeiro-DF (1931-1935) e na Bahia (1947-
1951). A pesquisa apoia-se, em primeiro lugar, nos
Anísio Spínola Teixeira (1900-1971), educador Relatórios Administrativos e Livros de autoria do
baiano de renome internacional, assumiu os cargos próprio educador, relativos aos períodos estudados,
de Inspetor Geral do Ensino da Bahia (1924-1928), com o objetivo de caracterizar a organização do
Diretor da Instrução Pública do Distrito Federal-RJ espaço escolar e identificar os aspectos pedagógi-
(1931-1935) e Secretário de Educação e Saúde do cos e arquitetônicos que configuraram cada um dos
Estado da Bahia (1947-1951), entre outros; e “modelos escolares” adotados.
implementou uma série de reformas e medidas
A Escola como Lugar da Educação
∗ Este artigo foi elaborado com base em nosso pro-
jeto de tese intitulado “Arquitetura e Educação:
Anísio Teixeira e a organização do espaço esco- A preocupação com um lugar específico para
lar”, apresentado à PUC/SP, sob a orientação da
Profª Dra. Marta Maria Chagas de Carvalho. a escola, ou seja, com o prédio escolar

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propriamente dito, só começa a surgir a partir organizando, higienizando, ordenando o espaço
da segunda metade do século XIX. Segundo físico da cidade e, por conseqüência, o espaço físico
Souza (1998:122): da escola. Os prédios escolares surgem, então, com
“(...) em determinado momento, políticos e uma finalidade específica, ou seja, o lugar onde se
educadores passaram a considerar processa a formação do cidadão.
indispensável a existência de casas escolares Mas, apesar dos ideais republicanos, o sonho
para a educação de crianças, isto é, passaram de popularizar o ensino esbarrava-se num “antigo
a advogar a necessidade de espaços edificados empecilho: o da ausência de prédios, mobília e
expressamente para o serviço escolar. Esse material escolar adequados.” (Costa e Silva,
momento coincide com as décadas finais do 1997:59). Assim, passadas as primeiras décadas,
século XIX e com os projetos republicanos de verificou-se que a escola básica foi facultada a
difusão da educação popular.” poucos, e era acusada de ter relegado ao abandono
Com a instauração da República, a escola passa “milhões de analfabetos de letras e ofícios”
a assumir um novo papel como instrumento de (Carvalho, 1989:7).
progresso histórico, com um caráter regenerador. Dessa forma, em outubro de 1931, ao assumir a
Dessa forma, enquanto veículo para a tão desejada Diretoria Geral de Instrução Pública do Distrito
“reconstrução nacional”, a escola básica incorpora Federal, Anísio Teixeira encontra um cenário pouco
uma função salvacionista, como a única capaz de favorável à educação pública na capital do país,
transformar o homem comum. tanto que, ao iniciar o Relatório do primeiro ano de
A escola se converte em um lugar de referência sua administração, ele acentua:
para as cidades e passa a ser tomada como “o aspecto mais impressionante dos problemas
“modelo”. Nesse contexto, vale ressaltar a de educação pública, no Rio de Janeiro, D.F.,
importância da escola – o grupo escolar – na (...) é o da insuficiência de escolas para atender
arquitetura das cidades. As escolas começam a a milhares de crianças em idade escolar, que,
ocupar lugares privilegiados, tornando-se os “novos em plena capital do país, deveriam ter direito,
templos” de civilização. pelo menos, às oportunidades elementares da
Para Souza (1998:123): educação primária...” (Teixeira, 1932:307).
“(...) o edifício escolar torna-se portador de Para Anísio Teixeira (1932), o mal do brasileiro
uma identificação arquitetônica que o era a falta de escolas, mas era também a própria
diferenciava dos demais edifícios públicos e escola existente. Considerava que mais grave do
civis ao mesmo tempo em que o identi- que a negligência em abrir escolas, era julgar que o
ficava como um espaço próprio – lugar programa escolar se limitasse à simples
específico para as atividades de ensino e do “alfabetização”. Para ele, a escola deveria ensinar
trabalho docente. (...) O espaço escolar passa a criança a “viver melhor”, proporcionando padrões
a exercer uma ação educativa dentro e fora de mais razoáveis de vida familiar e social,
seus contornos.” promovendo o progresso individual e criando
Por essa época, a monumentalidade das hábitos de leitura, estudo e meditação.
construções dos grupos escolares torna-se Segundo Anísio, outra preocupação básica do
representativa de um ideal de modernidade ou de sistema escolar deveria ser a criança do povo, pois
República. E, segundo Souza (1998:124), “a esta só tinha a escola como meio de formação.
arquitetura escolar haveria, pois, de simbolizar Assim, a escola deveria oferecer a essas crianças
as finalidades sociais, morais e cívicas da escola algo mais do que o simples ensino; deveria preparar-
pública. O lugar de formação do cidadão lhes, simultaneamente, o caráter, a ambição e o
republicano teria que ser percebido e hábito de fazer bem tudo quanto lhes fosse
compreendido como tal.” necessário fazer. Essas crianças deveriam encontrar
Se a República era o lugar do “homem novo”, na escola,
tornava-se necessário repensar esse ambiente, “(...) um ambiente civilizado, sugestões de

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progresso e desenvolvimento, oportunidades prejuízo substancial da qualidade. Talvez por isso,
para praticar nada menos do que uma vida Anísio tenha privilegiado, em todas as suas
melhor, com mais cooperação humana, mais administrações, o planejamento e a organização das
eficiência individual, mais clareza de percepção edificações escolares.
e mais tenacidade de propósitos orientados” Segundo dados do Relatório de 1932, ao assumir
(Teixeira, 1932:310). a Diretoria Geral de Instrução Pública do Distrito
A escola, que antes visava apenas formar alguns Federal, Anísio Teixeira observa que, para uma
indivíduos em especialidades, assumia agora a população escolar mínima – crianças de 6 a 12 anos
função de educar todos os indivíduos para a – de 196.000 indivíduos, só existiam escolas para
participação numa nova sociedade, intelectual e cerca de 45% das crianças.
técnica. Dessa forma, a educação primária No Rio de Janeiro, como em todo o Brasil, o
elementar deveria estar na base desse sistema e problema de edificações escolares não havia sido
deveria ser ministrada, inevitavelmente, a todos os antes objeto de soluções previamente planejadas e
cidadãos. Tratava-se, portanto, de uma educação sistematicamente seguidas. Segundo o arquiteto
para todos e não de uma educação para alguns bem Nereu de Sampaio, chefe do Serviço de Prédios e
dotados. Tratava-se de uma “educação em massa”. Aparelhamentos Escolares, a administração
Mas, para que a escola pudesse cumprir a sua anterior, do diretor Fernando de Azevedo, chegou a
dupla função – a de formar a inteligência e formar esboçar um plano geral proibindo em lei a compra
o caráter – ela deveria ter seu ambiente preparado. de propriedades particulares e fixando as dimensões
Para tanto, Anísio considerava essencial, mínimas dos terrenos a serem adquiridos e conseguiu
“... que o prédio escolar e as suas instalações deixar construídas quatro grandes escolas: a Escola
atendam, pelo menos, aos padrões médios da Normal (naquela época, Instituto de Educação), a
vida civilizada e que o magistério tenha a “Uruguai”, a “Estados Unidos” e a “Argentina”.
educação, a visão e o preparo necessários a De resto, grande parte dos prédios escolares,
quem não vai apenas ser a máquina de ensinar existentes no Distrito Federal até o ano de 1932,
intensivamente a ler, a escrever e a contar, mas não passava de escolas-pardieiros, como as
vai ser o mestre da arte difícil de bem viver”. denominou o próprio Nereu de Sampaio, escolas
(Teixeira, 1935:39) estas que repeliam alunos e professores.
Assim, além da preocupação com a formação O Serviço de Prédios e Aparelhamentos
do professor, as edificações escolares – as Escolares do Departamento de Educação realizou
instalações físicas da escola – vão se constituir, nas inquéritos e levantamentos dos prédios existentes,
reformas educacionais implementadas por Anísio tanto os públicos como os alugados, e identificou
Teixeira, no marco fundamental de todas as suas que a maioria deles se constituía de residências
gestões administrativas. particulares adquiridas pela Prefeitura, impróprios
ou inadequados ao funcionamento escolar. Até as
A Política de Edificações Escolares salas de aula, unidades primordiais do edifício
escolar, em sua grande maioria, não tinha a área
no Rio de Janeiro-DF (1931-1935)
mínima de 40m2. A essa deficiência de área, se
Em suas administrações públicas, na área acrescentavam ainda o problema de sua localização
no prédio, o da forma, da iluminação, da aeração, e
educacional, Anísio Teixeira se vê diante do mesmo
dos equipamentos. Além disso, existiam também
dilema: resolver o problema da escassez da educação
as deficiências do próprio prédio escolar, como a
pública oferecida à população. Essa escassez se
localização, a vizinhança, as condições de
dava tanto em quantidade como em qualidade mas, construção e de instalação.
para o administrador escolar, era preciso resolver Com base nesses levantamentos, os prédios
primeiro o problema da quantidade, ou seja, era escolares foram classificados de acordo com suas
preciso oferecer mais educação sem que houvesse condições de uso. Dos 79 prédios municipais

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existentes em 1932, apenas 12 deveriam ser prover um orçamento específico para o
conservados; 32 adaptados, reformados, ampliados financiamento da educação pública; era necessário
ou totalmente reconstruídos, e 35 condenados, constituir fundos, independentemente das oscilações
podendo ser utilizados para qualquer outra coisa, de critério político de nossos administradores. Ele
menos para escolas (Teixeira, 1935:196). entendia que as instituições educativas, por sua
Diante dessa situação, o Departamento de própria natureza, eram instituições materiais que
Educação avaliou a necessidade de construção de envolviam despesas de construção e instalação, que
74 prédios novos, para abrigar uma população não podiam ser esquecidas nas verbas regulares de
escolar de 156.480 alunos, ainda assim, inferior à sua manutenção.
população atual. Considerando-se um plano de Para resolver o problema da escassez de prédios
atuação a ser desenvolvido no período de 10 anos, escolares, era necessário, também, levar em
projetou-se uma população escolar de 320.000 consideração as dificuldades encontradas em relação
alunos para o ano de 1942, o que exigiria a ao terreno, a localização, as condições do prédio, a
construção de mais 82 novos prédios. Dada a economia ou ao programa educacional,
extensão do problema e a impossibilidade de resolvê- principalmente quanto às grandes concentrações
lo em um só período administrativo, adotou-se uma escolares. Era preciso encontrar soluções em que
solução progressiva e gradual: a construção de um se contrabalançassem as deficiências de cada um
plano geral diretor das edificações escolares e um desses elementos sem diminuir, entretanto, as
programa anual de construções. condições recomendáveis para a escola.
O plano geral, regulador das edificações Dessa forma, em sua administração no Rio de
escolares, foi elaborado com base na distribuição e Janeiro (1931-1935), Anísio concebe uma proposta
nas tendências de crescimento da população, e inovadora para as edificações escolares, um
deveria servir de parâmetro para a localização de “sistema” escolar que conciliava essas dificuldades
qualquer edifício escolar da cidade e orientar o e previa edificações de duas naturezas: as escolas
desenvolvimento do parque escolar do Rio de nucleares, ou escolas-classe, e os parques
Janeiro. escolares, devendo as crianças freqüentarem
O programa anual de construções foi dividido regularmente as duas instalações. Para isso, o
em dois períodos de 5 anos. O primeiro, o plano sistema escolar deveria funcionar em dois turnos,
mínimo de construção (Teixeira, 1935:198), a ser para cada criança. No primeiro turno, a criança
realizado até o ano de 1938, visava atender, tão receberia, em prédio adequado e econômico (escola-
somente, à população escolar atual e compreendia classe), o ensino propriamente dito; no segundo
as seguintes etapas: turno, receberia, em um parque escolar aparelhado
- 16 ampliações de prédios municipais existentes, e desenvolvido, a sua educação propriamente social,
que ficariam com 306 salas de aula; a educação física, a educação musical, a educação
- 74 edificações novas, com o tipo médio de 25 sanitária, a assistência alimentar e o uso da leitura.
classes, que ficariam com 1.431 salas de aula; Com esse plano, esperava-se resolver os
- 25 prédios que poderiam ser aproveitados, com seguintes problemas (Teixeira, 1935:200):
219 salas de aula. - o dos terrenos: seriam necessários somente 25%
Assim, dentro de cinco anos, seriam 1.956 salas de terrenos de grande área (10.000m2 em média),
de aula que, funcionando em dois turnos, uma vez que cada parque escolar serviria a quatro
comportariam 156.480 alunos, isto é, escolas-classe; e os demais terrenos poderiam ter
aproximadamente 80% das crianças que, no ano de uma área equivalente a um lote de casa particular
1932, estavam em idade escolar. (13 m x 40 m);
No segundo período de cinco anos, até 1942, - o da economia: cada escola possuiria somente o
deveria ser continuado o programa de construção que fosse estritamente indispensável para o ensino
dentro das previsões do plano regulador. em classe, reduzindo os custos de construção;
Mas Anísio tinha clareza de que era necessário - o do programa: nenhum dos objetivos da escola

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deixaria de ser atendido; a escola seria educativa, Esses prédios estavam assim distribuídos, de acordo
sem a diminuição das suas funções instrutivas; com o tipo arquitetônico adotado: 02 Escolas Tipo
- o da localização: as crianças teriam escolas mais Mínimo de 3 classes, 11 Escolas Tipo Nuclear de
próximas de casa, e os terrenos menores seriam mais 12 classes, 05 Escolas Platoon de 12 classes, 02
fáceis de ser encontrados nos locais necessários; Escolas Platoon de 16 classes, 03 Escolas Platoon
- o do prédio: divididas as funções da escola entre de 25 classes, 01 Escola Tipo Especial de 6 classes
o parque escolar e a escola-classe, tornava-se mais e 01 Acréscimo de 12 classes.
fácil atender às condições adequadas de instalação. Assim, segundo Oliveira (1991:167)):
Dessa maneira, no Rio de Janeiro, atendendo às “embora esse número estivesse ainda distante
recomendações do plano diretor, os prédios foram daquele calculado para cumprir a primeira
construídos obedecendo a cinco tipos, projetados etapa de edificações (74 prédios para atender
pelo arquiteto-chefe Enéas Silva, da Divisão de 156.480 alunos), a realização podia ser
Prédios e Aparelhamentos Escolares: considerada excepcional dado o período de sua
- a “Escola Tipo Mínimo”, com 2 salas de aula e execução que compreendeu os anos de 1934 e
uma sala de oficinas, destinava-se a regiões de 1935, logo após a definição da política e dos
reduzida população escolar; programas em educação.”
- a “Escola Tipo Nuclear” ou escola-classe: era É importante ressaltar que, embora o
constituída de 12 salas de aula, além de locais Relatório Administrativo de 1935, do próprio
apropriados para administração, secretaria e Departamento de Educação, faça referência ao
biblioteca de professores, e deveria ser “parque escolar” ou escola-parque, como
complementada com o parque escolar; complemento aos demais tipos de escola, não
- a Escola Platoon 12 classes (6 salas comuns e 6 encontramos registro de planta baixa, nem indicação
salas especiais); de que tenha sido construído. De fato, as onze
- a Escola Platoon 16 classes (12 salas comuns e 4 escolas nucleares ou escolas-classe, construídas
salas especiais); dentro dessa nova proposta, funcionavam nos
- o Escola Platoon 25 classes (12 salas comuns, antigos moldes impossibilitando, dessa maneira, a
12 salas especiais e o ginásio). permanência da criança na escola durante os dois
Os últimos três tipos obedeciam, turnos, como havia sido previsto inicialmente.
organizacionalmente, ao sistema administrativo Como se pode observar, a proposta de educação
“Platoon”. Esse sistema era constituído de salas de integral idealizada por Anísio Teixeira para o Rio
aula comuns e salas especiais para auditório, de Janeiro, na prática, não se efetivou.
música, recreação e jogos, leitura e literatura,
ciências, desenho e artes industriais. O seu
funcionamento dava-se pelo deslocamento dos A Política de Edificações
alunos, através de “pelotões”, pelas diversas salas, Escolares na Bahia (1947-1951)
conforme horários pré-estabelecidos.
Todos os tipos de prédios escolares tinham Após a demissão do Rio de Janeiro, Anísio
ambientes projetados para abrigar as atividades Teixeira afasta-se da vida pública por um período
administrativas, o gabinete médico-dentário e as de 12 anos. Acusado e perseguido politicamente
instalações sanitárias para ambos os sexos, além refugia-se no sertão da Bahia, região de Caetité
das salas de aula. O que os diferenciava era a onde, no período de 1935 a 1945, dedica-se à
existência ou não de salas especiais, bibliotecas e exploração de manganês, à comercialização de
auditório. automóveis, à tradução de livros para a Companhia
Ao final de 1935, época da demissão de Anísio Editora Nacional, e à correspondência com os
Teixeira da então Secretaria de Educação, o Rio de amigos.
Janeiro contava com 25 novos prédios escolares Em 1946, é convidado a participar como
construídos em conformidade com o plano diretor. Secretário Executivo da UNESCO, em Londres e,

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em 1947, a convite do governador Otávio apresentamos parte de seu discurso proferido em
Mangabeira assume a Secretaria de Educação e 1950, por ocasião da inauguração de três escolas-
Saúde do Estado da Bahia (1947-1951), retomando classe que integrariam o conjunto do Centro
a luta pela causa da educação pública em sua terra Educacional Carneiro Ribeiro:
natal. “(...) A escola primária seria dividida em dois
Em seu Relatório datado de 1949, Anísio setores, o da instrução, propriamente dita, ou
apresenta ao governador da Bahia um balanço da seja, o da antiga escola de letras, e o da
situação em que se encontravam os serviços educação, propriamente dita, ou seja, o da
educacionais e elabora um plano de atuação escola ativa. No setor instrução, manter-se-ia
específico para o interior e para a capital. o trabalho convencional da classe, o ensino de
Para o interior do Estado, além do sistema de leitura, escrita e aritmética e mais ciências
educação elementar, prevendo atendimento também físicas e sociais, e no setor educação as
para a zona rural, foi planejado um sistema de ensino atividades socializantes, a educação artística,
médio ou secundário, com a previsão de construção o trabalho manual e as artes industriais e a
de Centros Regionais de Educação, a serem educação física A escola seria construída em
localizados em 10 regiões administrativas, e que pavilhões, num conjunto de edifícios que melhor
deveriam compreender: jardim de infância, escola se ajustassem às suas diversas funções.(...)
elementar modelo, escola normal, escola secundária, Fixada, assim, a população escolar a ser
parque escolar, centro social e de cultura e atendida em cada centro, localizamos quatro
internatos. pavilhões, como este, para as escolas que
Na capital, o plano escolar compreendia um chamamos de escolas-classe, isto é, escolas de
sistema de escolas elementares, seguido de um ensino de letras e ciências, e um conjunto de
conjunto de escolas secundárias de cultura geral e edifícios centrais que designamos de escola-
técnica e da escola de formação de professores em parque, onde se distribuiriam as outras funções
nível de ensino superior. Mas, segundo Anísio, as do centro, isto é, as atividades sociais e
escolas elementares teriam uma organização artísticas, as atividades de trabalho e as
especial, constituindo os Centros de Educação atividades de educação física...” (Teixeira,
Popular que, localizados na periferia da cidade, 1977:145).
funcionariam como um núcleo de articulação do Esse sistema, cujo projeto arquitetônico ficou a
bairro, e onde as funções tradicionais da escola cargo dos arquitetos Diógenes Rebouças (da Bahia)
seriam preenchidas em determinados prédios, e as e Hélio Duarte (de São Paulo), foi planejado para
de educação física, social, artística e industrial, em atender a um grupo de 4.000 alunos, em sua
outros. O conjunto compreenderia, assim, escolas- capacidade máxima. O conjunto foi constituído de
classe e escolas-parque. quatro “escolas-classe”, compostas tão somente de
Dos dez Centros Populares planejados salas de aula e dependências para o professor, para
inicialmente, só foi possível a construção de um atender a 1.000 alunos, cada uma, em dois turnos;
deles: o Centro Educacional Carneiro Ribeiro. e uma “escola-parque” para 2.000 alunos em cada
Localizado no bairro da Liberdade, em Salvador, turno, compreendendo salas de música, dança,
esse Centro ficou conhecido como “Escola Parque” teatro, educação artística e social, salas de desenho
e se transformou em obra máxima de seu idealizador. e artes industriais, ginásio de educação física,
Uma escola que é marcadamente caracterizada por biblioteca, restaurante, serviços gerais e residência
sua organização espacial e que se notabilizou pela ou internato para as chamadas crianças
adoção de uma proposta pedagógica inovadora, uma abandonadas.
experiência pioneira de escola pública de educação A conclusão desse Centro só foi possível graças
integral em meados deste século. ao empenho do próprio Anísio Teixeira. Em 1952,
Para uma rápida ilustração de como Anísio ao ser nomeado diretor do INEP (Instituto Nacional
Teixeira concebia os Centros de Educação Popular, de Estudos Pedagógicos), viabilizou um convênio

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de colaboração e assistência técnica com a dia em que se montar, no Brasil, a máquina
Secretaria de Educação da Bahia, possibilitando o que prepara as democracias. Essa máquina é a
prosseguimento e a conclusão da obra da Escola da escola pública. Mas, não a escola pública
Parque. Em 1964, com o término da construção da sem prédios, sem asseio, sem higiene e sem
Escola-classe nº 4, o Centro foi dado por concluído mestres devidamente preparados e, por
mas, ainda assim, sem a construção do orfanato. conseguinte, sem eficiência e sem resultados.”
Quando acusado de que o “Centro de Educação (Teixeira, 1935:181).
Popular” se tratava de uma obra cara, Anísio E acrescenta:
argumentava: “Não desejamos palácios luxuosos, mas
“É custoso e caro porque são custosos e caros construções econômicas e nítidas que apoiem,
os objetivos a que visa. Não se pode fazer como uma simples e forte base física, a obra
educação barata – como não se pode fazer educacional entrevista pelos que acalentam os
guerra barata. Se é a nossa defesa que estamos ideais de uma reconstrução da própria vida,
construindo, o seu preço nunca será demasiado pela escola.” (Teixeira, 1935:204).
caro, pois não há preço para a sobrevivência.”
(Teixeira, 1994:175). Considerações Finais
Segundo análise de Jayme Abreu (1960), na
segunda administração de Anísio Teixeira na Bahia, A escolha desse tema como objeto de estudo deu-
a questão de prédios escolares foi daquelas que se em função da representatividade adquirida pela
ganhou os mais seguros critérios planejados de obra do educador Anísio Teixeira e pela importância
expansão e de eficácia. Para o autor, o êxito na com que ficou caracterizada sua concepção de uma
execução dos planos deu-se pelo fato de que todo o proposta arquitetônica específica para a escola, no
empreendimento foi acompanhado e desenvolvido caso do Rio de Janeiro, nos anos 30, assim como,
dentro da Secretaria de Educação, sob a pela proposta pedagógica e arquitetônica do modelo
coordenação direta do próprio Anísio: de Escola Parque, construída na Bahia, e exemplo
“O serviço respectivo, dentro da Secretaria de de uma experiência inovadora de escola pública de
Educação e Saúde, beneficiou-se seja de uma educação integral, em meados de nosso século.
harmoniosa e constante fertilização de ponto Assim, com base numa rápida incursão pelas
de vista do educador para com os engenheiros políticas de edificações escolares implementadas por
construtores, seja pelo fato de, da planta à Anísio Teixeira, em suas administrações no Rio de
execução final da obra, ser um empreendimento Janeiro-DF (1931-1935) e na Bahia (1947-1951),
inteiramente dentro da Secretaria de Educação, cabe-nos indagar sobre as relações entre as
ao invés de ser confiada a sua execução a uma concepções pedagógicas desse educador e a
outra Secretaria, distante do educador, no caso organização do espaço escolar nesses dois
a de Viação e Obras Públicas. Esta foi uma momentos. De início, é possível identificar alguns
reivindicação firme de Anísio, não fácil de obter, aspectos, pedagógicos e arquitetônicos, que
mas que se realizou com os melhores caracterizaram essas políticas e que nos permitem
resultados.” (Jayme Abreu. In: ANÍSIO estabelecer aproximações entre os “modelos” de
TEIXEIRA: pensamento e ação, 1960:56) escolas aí adotados:
O empreendimento e a garra com que Anísio − Proposta de uma educação integral para a
defendia o planejamento e a execução das escola pública. Esta proposta é anunciada por
edificações escolares pode ser traduzido com uma Anísio, já no Rio de Janeiro. No Relatório de
de suas falas, quando ainda era Secretário de 1935, ele descreve o “modelo” de escola que
Educação no Rio de Janeiro, e que continuaria comportaria esse sistema: escolas nucleares e
valendo para justificar a sua grande obra parques escolares, tendo a criança que
educacional concretizada na Bahia: freqüentar regularmente as duas instalações, em
“(...) só existirá uma democracia no Brasil no dois turnos diários. Essa proposta concretizou-

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se na Bahia, com a construção do Centro pedagógicas e dos novos hábitos de higiene,
Educacional Carneiro Ribeiro (Escola Parque) tudo isso aliado à economia das construções
onde, apesar de todas as dificuldades, a escola escolares.
pública pôde oferecer à “criança do povo” uma − A escola desempenhando um papel social no
educação integral e de qualidade. ambiente da cidade. Com essas conquistas
− Opção por uma arquitetura moderna para as pedagógicas e arquitetônicas, a escola passa a
edificações escolares. Nesse sentido, Anísio incorporar novos ambientes em seus programas,
Teixeira pode ser considerado como “o arquiteto como os anfiteatros, a biblioteca, o refeitório,
da educação brasileira” tal era o seu empenho os jardins e as “áreas livres” e, no caso do Rio
em prover a escola de um espaço de Janeiro, isso promoveu uma “reapropriação
especificamente planejado para educar. Em suas de espaços de sociabilidade crescentemente
administrações, as escolas foram projetadas por sonegados às classes trabalhadoras pelas
arquitetos com base nos princípios da reformas urbanas que lhes empurravam para
os morros ou a periferia da cidade” (Nunes,
racionalidade e da funcionalidade, próprios da
1993:120). Em Salvador, a Escola Parque
arquitetura moderna, que determinaram a
também possibilitou essa inter-relação com a
concepção de programas arquitetônicos
cidade, uma vez que a sua construção em uma
distintos (Tipo Mínimo, Nuclear, Platoon de 12,
região pobre da periferia da cidade, permitia
16 e 25 classes e Escola Parque), de acordo
que ela funcionasse como um núcleo de
com a localização e as necessidades de cada
articulação do bairro, ao mesmo tempo em que
escola. Esses programas buscavam dar conta possibilitava à criança praticar situações que
de uma melhor organização do espaço para iria vivenciar na sociedade.
atender às exigências das modernas conquistas

AUTORA

Célia Rosângela Dantas Dórea é professora da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Doutoranda em
Educação: História, Política, Sociedade - PUC/SP, Graduada em Arquitetura pela Universidade Federal
da Bahia - UFBA. E-mail: vcdorea@ig.com.br

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ESTUDOS
HERMES RE-VISITADO.
INTERPRETANDO COM-TEXTOS NA
ETNOPESQUISA CRÍTICA EDUCACIONAL

Omar Barbosa Azevedo


Mestrando em Educação da Universidade Federal da Bahia e
Bolsista da CAPES
Roberto Sidnei Macedo
Professor da Universidade Federal da Bahia e
da Universidade do Estado da Bahia

“As sensações da espécie humana em peso, quero-as eu dentro de mim;


seus bens, seus males mais atrozes, mais íntimos, se entranhem
aqui onde à vontade a mente minha os abrace, os tateie;
assim me torno eu próprio a humanidade;
e se ela ao cabo perdida for, me perderei com ela.”
O Fausto, de Goethe

Uma breve introdução articulamos com a etnopesquisa crítica educacional


é o problema hermenêutico no âmbito deste tipo de
No presente artigo, retomamos a perspectiva da investigação e o valor da interpretação para a
etnopesquisa crítica em educação esboçada no artigo formação do pesquisador. O segundo eixo crítico-
“Hermes re-conhecido. Etnopesquisa Crítica, reflexivo da antropologia, articulado com a vertente
Currículo e Formação Docente” ∗ (Macedo, 1999) qualitativa das pesquisas educacionais, é o tema da
e rediscutimos alguns de seus fundamentos como produção do texto etnográfico e a política do
prática fecunda na formação do professor- conhecimento que permeia esta atividade do
pesquisador, desta vez, promovendo um retorno às pesquisador, assim como suas possibilidades
origens propriamente antropológicas desta vertente, estéticas e até mesmo, poéticas...
introduzindo dois objetos de reflexão auto-crítica
da antropologia contemporânea1, a fim de enriquecer Situando o com-texto
e aprimorar as investigações educacionais realizadas
com o caráter de “Etnografia da Prática Escolar” No verbete “Texto” da Enciclopédia Enaudi,
(André, 1995). O primeiro eixo crítico-reflexivo que Segre (1989) nos ensina que o mundo (ou a cultura)
pode ser metaforicamente compreendido como um
texto. Segre argumenta que, se a cultura funciona
∗ Em 1999, o professor Roberto Sidnei Macedo publi- como um sistema de signos, é lícito considerar as
cou o artigo “Hermes Re-conhecido. Etnopesquisa Crí- expressões desta cultura, literárias ou não, como
tica, Currículo e Formação Docente”, cujo título, neste um texto em seu conjunto, e chega a afirmar que,
trabalho, foi abreviado para “Hermes Re-conhecido”.
em sentido lato, “podemos chamar texto a qualquer
Para uma melhor introdução ao tema, recomendamos
uma leitura cuidadosa de “Hermes Re-conhecido”.
tipo de comunicação registrada num determinado

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sistema de signos” (p.172). Compreendemos, então, texto: seu conjunto de inter-relações que configuram
como o mundo (ou a cultura) pode ser lido como uma dada realidade. É evidente, que, apesar de o
um texto, mas como, ao contrário da leitura de textos mundo (ou a cultura) não ser um discurso
escritos, esta leitura se dá por um operação de lingüistico, o tecido complexo de “acontecimentos,
remontagem do texto do mundo (ou da cultura), acções, interacções,...” pode ser lido e expresso
através de outros textos: por um discurso. A leitura destas inter-relações,
“...o texto está entre um emissor e um receptor, interessadas por um dado aspecto da trama do
duas competências que se reconhecem pela mundo (ou da cultura), e a sua expressão por meio
performance textual. Quando, pelo contrário, de um novo tecido discursivo, são em si mesmas
se considera o mundo como texto, não se pode um ato interpretativo.
apelar a nenhum processo comunicativo: trata- A pesquisa qualitativa em Educação,
se de remontar directamente ao sistema a partir denominada genericamente por Marli André (1995)
de um número indefinido de processos, estes, de “Etnografia da Prática Escolar”, é uma forma
sim, comunicativos, mas através de outros de leitura da complexidade social, do mundo e da
textos.” (Segre, 1989:173, grifos nossos) cultura escolares, que exercita sua curiosidade,
Partindo destas premissas, entendemos que a debruçando-se sobre o tecido, ou teia, das inter-
tarefa da pesquisa qualitativa em educação é relações que se dão neste com-texto, através da com-
justamente a leitura do texto da cultura escolar - vivência, da captura de discursos de seus atores
que não emite um texto legível - remontando-a, sociais, e, também, pela atuação participativa nas
através de outros processos comunicativos, outros suas atividades cotidianas.
textos.
Após levantar diversas expressões metafóricas
Etnografia e pesquisa em educação
que remontam à etimologia da palavra texto: trama,
intriga, teia, enredo e urdidura, Segre circunscreve
Traçando um breve histórico das abordagens
o que entende por texto, com outra metáfora que
qualitativas em pesquisa social, desde Dilthey e
também está relacionada com as anteriores: “O
Weber, Marli André procura explicar o que vem a
texto é, portanto, o tecido lingüístico de um
ser etnografia para a antropologia, e porque este
discurso.” (1989:153, grifo nosso). É interessante
tipo de abordagem só passou a ser utilizada na
notar que a mesma imagem do tecido, é evocada
pesquisa educacional a partir dos anos 60. Citando
por Edgar Morin (1995) para responder à pergunta
um autor chamado Spradley, que procura
que ele formula a si e aos leitores: “O que é a
circunscrever os objetos de estudo da etnografia,
complexidade?”
Marli André (1995:19) esclarece que:
“À primeira vista, a complexidade é um tecido
“(...) a principal preocupação na etnografia é
(complexus: o que é tecido em conjunto) de
com o significado que têm as ações e os eventos
constituintes heterogêneos inseparavelmente
para as pessoas ou os grupos estudados. Alguns
associados: coloca o paradoxo do uno e do
desses significados são diretamente expressos
múltiplo. Na segunda abordagem, a
complexidade é efectivamente o tecido de pela linguagem, outros são transmitidos
acontecimentos, acções, interacções, indiretamente por meio das ações. De qualquer
retroacções, determinações, acasos, que maneira, diz ele, em toda sociedade as pessoas
constituem o nosso mundo fenomenal” (Morin, usam sistemas complexos de significado para
1995:20, grifos nossos) organizar seu comportamento, para entender
A imagem de um tecido e do entrelaçamento de a sua própria pessoa e os outros e para dar
seus fios a que ela logo nos remete, utilizada para sentido ao mundo em que vivem. Esses sistemas
explicar o sentido dos conceitos de texto e de de significado constituem a sua cultura. (...)
complexidade, nos faz atentar para o aspecto do Nesse sentido a cultura abrange o que as
mundo (ou da cultura) que pode ser lido como um pessoas fazem, o que elas sabem e as coisas

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que elas constroem e usam, explica ele.” sobre os motivos que os impulsionaram justamente
A autora prossegue esclarecendo, então, que a neste momento histórico. A autora responde,
etnografia é a tentativa de descrição da cultura e, evidenciando o fato de que no início do século as
para falar de descrição, recorre ao antropólogo investigações educacionais eram fortemente
Clifford Geertz e sua noção de “descrição densa” influenciadas pela psicologia de inspiração
para elucidar as pretensões da etnografia. Geertz, positivista. Como a década de 1960 foi marcada
citado por Marli André (1995:20), afirma que a por movimentos e lutas contra a discriminação racial
cultura, como sistema de símbolos construídos: e social, pela igualdade de direitos, pelas rebeliões
“(...) não é um poder, algo a quem pode ser estudantis na França, ela acredita que todo este
atribuída a causa de eventos sociais, contexto histórico precipitou o interesse dos
comportamentos, instituições ou processos: é educadores pelo que realmente se passava nas
um contexto, algo dentro do que os símbolos escolas e salas de aula, assim como pela utilização
podem ser inteligivelmente - ou densamente - da abordagem antropológica ou etnográfica como
descritos”. forma de investigação do dia-a-dia escolar. Do ponto
Para a autora, o etnógrafo, então, encontra-se de vista da autora, algo semelhante aconteceu
diante de diferentes formas de interpretações da vida, historicamente com a sociologia, e demonstra a
de compreensão do senso comum, dos significados pertinência histórica da emergência dos estudos
variados atribuídos pelos participantes às suas qualitativos a partir dos anos 60:
experiências e vivências, e, portanto, o seu desafio “(...) os métodos qualitativos também
é mostrar esses significados ao leitor. Se atentarmos ganharam popularidade porque buscavam
para a centralidade da dimensão simbólica neste retratar os pontos de vista de todos os
conceito de cultura e nas palavras de Geertz, participantes, mesmo dos que não detinham
entenderemos o motivo pelo qual estará posto para poder nem privilégio, o que casava muito bem
o pesquisador, o desafio de mostrar este mundo ao com as idéias democráticas que apareceram
leitor. Eco (1994:143) nos ensina que: na década de 1960. Além disso, a área de
“... é simbólica a actividade pela qual o homem sociologia, que vinha sendo dominada pelas
dá conta da complexidade da experiência idéias do funcionalismo por mais ou menos 20
organizando-a em estruturas de conteúdo a que anos, também se volta para o enfoque
correspondem sistemas de expressão. O fenomenológico durante os anos 60. É quando
simbólico não apenas permite ‘nomear’ a ressurgem os estudos baseados no
experiência como também organizá-la e, interacionismo simbólico e quando é valorizada
portanto, construí-la como tal, tornando-a a etnometodologia, dois enfoques que vão
pensável e comunicável.” (grifos nossos) influenciar bastante os trabalhos de pesquisa
Sendo assim, caberá ao pesquisador, em sua na área de educação.” (André, 1995:21, grifos
atividade simbólica, organizar a experiência de nossos)
leitura do mundo escolar para torná-la pensável e Marli André (1995) nos ensina que a etnografia
comunicável. Esta atividade não é meramente é uma forma de investigação desenvolvida pelos
interpretativa, mas também, tradutora, quando antropólogos para estudar a cultura e a sociedade,
pensamos na função de comunicação para o público e que, para eles, a palavra tem dois sentidos: “(1)
leitor, do texto etnográfico. um conjunto de técnicas que eles usam para coletar
Marli André (1995) nos mostra que, apesar de dados sobre os valores, os hábitos, as crenças, as
estas concepções estarem em discussão nas ciências práticas e os comportamentos de um grupo social;
sociais desde o final do século XIX e início do século e (2) um relato escrito resultante do emprego dessas
XX, os estudos em educação só passam a se técnicas.” (p.27) A autora nos diz que uma
apropriar da possibilidade de utilizar a etnografia investigação pode ser caracterizada como de tipo
como recurso e a ganhar destaque, a partir da década etnográfico em Educação “(...) quando faz uso das
de 60, e se pergunta sobre as razões dessa demora e técnicas que tradicionalmente são associadas à

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etnografia, ou seja, a observação participante, a - a pesquisa qualitativa em educação necessita
entrevista intensiva e a análise de documentos” preocupar-se com o modus hermeneuticus com o
(p.28). qual aborda seu objeto e com a forma como expressa
O que desejamos neste artigo é chamar atenção esta abordagem: a produção do texto endo-
para aquilo que o pesquisador faz, enquanto autor, etnográfico. A pré-ocupação com uma reflexão a
quando lê e escreve sobre os dados que refletem o respeito da interpretação não se dá gratuitamente,
texto do mundo e da cultura escolar: a interpretação, pois esta reflexão nos remete ao debates mais
seus horizontes e possibilidades, pois como nos intensos a respeito da natureza do fazer científico e
lembra Soares (1994:13 e 14): de seu compromisso social. Este verdadeiro drama
“O aporte da ciência para a hermenêutica não cujo problema hermenêutico sempre evoca, é
passa de um apoio lateral, justamente porque formulado da seguinte maneira por Soares
interpretar não é uma ação especializada de (1994:38):
um investigador treinado, mas o modo mesmo “A prática hermenêutica se instala no seio da
de ser do ser que nós somos: seres humanos fazer científico, que se mostra, assim, aberto
produtores e captadores de significação, ao investimento reflexivo relativamente liberto
realizadores e detectadores de valor, criaturas de constrangimentos operativos, exigindo,
de linguagem. (...) Hermeneutas todos somos, portanto, mais sensibilidade, maturidade,
mas, filosoficamente, cumpre à hermenêutica sabedoria e criatividade – é proposital o
explorar a estrutura essencial do ato de emprego destas palavras, aparentemente
interpretar, refletir sobre as suas condições de impróprias em um texto sério. Com a
possibilidade, seus limites e as extraordinárias hermenêutica vem à tona, no centro mesmo
implicações derivadas da compreensão dessa do drama científico, a questão ética, isto é, a
estrutura e desse processo”. (grifos nossos) problemática relativa ao estabelecimento de
É dentro desta mesma tradição de pesquisa valores, a suas apropriações interpretativas e
qualitativa em Educação que encontramos a a suas articulações com a prática.” (grifos
Etnopesquisa Crítica Educacional, que se utiliza das nossos)
mesmas técnicas etnográficas e que propõe como O pesquisador, muito freqüentemente um
forma de compreensão e de expressão, a endo- professor em formação científica, estará pouco
etnografia escolar. Dissemos em “Hermes Re- favorecido pela opção das abordagens qualitativas
conhecido”, que a etnopesquisa crítica nasce da em pesquisa educacional, se não tiver em mente que
inspiração etnográfica, diferenciando-se quando seu âmbito de trabalho é um mundo-vida de inter-
aprofunda-se na hermenêutica de natureza sócio- relações a ser lido e interpretado, de maneira tal a
fenomenológica e crítica; e que, por sua gerar um texto revelador e tradutor do que não havia
preocupação etno (do grego ethnos, povo, pessoas), sido antes, nem revelado, nem traduzido.
a etnopesquisa volta-se para o conhecimento das Freqüentemente, a revelação do “...relevante que
ordens culturais em organização, constituídas por incomoda” (Macedo, 1999:54, grifos do autor).
sujeitos intersubjetivamente edificados e edificantes, Seguramente, a tradução daquilo que nos parece
em meio a uma “bacia semântica” (Durand, 1989) familiar, mas que teremos que estranhar
mediada socialmente. voluntariamente, pois como dissemos em Hermes
No caso da etnopesquisa crítica, uma forma de Re-conhecido (1999:42):
endo-etnografia da prática escolar, temos a opção “(...) ao estudarmos as realidades sociais, não
pelo recorte educacional e pela trama de relações estamos lidando com realidade formada por
sociais que configuram este mundo de “fatos brutos”, lidamos com uma realidade
particularidades institucionais e psicológicas, ou constituída por pessoas relacionando-se
seja, um mundo-vida - expressão que utilizamos através de práticas que recebem identificação
em “Hermes Re-conhecido”. E por isso, desde seu e significado pela linguagem usada para
primeiro ato - a eleição do mundo-vida pedagógico descrevê-las, invocá-las e executá-las, daí o

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interesse pelas especificidades predominante- não se purifica ao entrar em seu laboratório”
mente qualitativas da vida humana.” (grifos (Ardoino e Barbier, 1998:23) – implicação assumida
nossos) e levada em conta na elaboração do texto endo-
etnográfico da etnopesquisa crítica. Ricoeur
(1990:57) diria que “... o texto é a mediação pela
Etnopesquisa educacional: os qual nos compreendemos a nós mesmos” e daí
horizontes da trama concluímos que a leitura do texto do mundo-vida
escolar proporciona ao etnopesquisador uma
As dificuldades interpretativas não são pequenas,
compreensão de si próprio, possibilidade que não
porque em verdade não temos apenas um contexto
deve ser excluída de qualquer processo formativo.
tranqüilamente eleito, a partir do qual o pesquisador
O segundo horizonte de relações que se configura
extrairá apenas as relações que lhe interessam.
na trama da etnopesquisa em educação, é o do
Dissemos em Hermes Re-conhecido que Hermes é
encontro do mundo do pesquisador com o mundo-
um deus inteligente, mundano, sábio pelo fato de
vida da realidade psico-institucional da cultura
conviver com a opacidade dos saberes inacessíveis
singular de uma dada instituição escolar. Sem
por vias diretas, e que, por isso mesmo, ele é um
entrarmos nas polêmicas que envolvem o sentido
conhecedor que não contorna a complexidade do
do conceito de cultura, que no momento não é o
mundo e de sua teia de relações.
foco de nossos interesses, olhemos para a escola
Hermeneuticamente, entendemos que Hermes é um
como uma comunidade dotada de uma cultura
deus que transita entre o Olimpo e o povo. O
própria e consideremos que uma das tarefas do
etnopesquisador, assim como Hermes, vive a
pesquisador é exatamente “escutá-la
delicada tensão de seu movimento entre a com-
sensivelmente” (Barbier, 1998) para encontrar as
vivência com a tribo do mundo-vida da instituição
peculiaridades da “bacia semântica” (Durand,
escolar e o Olimpo, metaforicamente reconhecido
1989) que caracteriza a cultura desta instituição e
aqui como, a Universidade – procedência tal que
que configura as relações que geram a dinâmica do
confere ao etnopesquisador um certo ar de
clima institucional (as tensões, os afetos, as alegrias,
estrangeiro no primeiro momento de suas
etc.) - elementos tão caros ao professor-pesquisador
investigações. Enfim, o etnopesquisador é ele
para a compreensão qualitativa dos processos de
próprio um mundo subjetivo pleno de afetos e
aprendizagem e suas conseqüências mais amplas.
tensões, negociando significados numa instituição
O mundo-vida da escola é, em sua cotidianidade,
com uma cultura própria e que não escapa às
um universo vivo de simbologias, rituais,
relações com os contextos mais amplos,
mecanismos sutis de interação e representações
principalmente, os contextos econômicos e políticos,
sociais.
geralmente vistos como realidades sociais, distantes
O terceiro nível de relações na urdidura do tecido
dos muros da escola.
da etnopesquisa, é o das interferências econômicas
Tentaremos didaticamente situar, assim, três
e políticas no contexto estudado por um dado
níveis de inter-relação do etnopesquisador
investigador. Do nosso ponto de vista, os fatos
educacional que podem ser a fonte de suas
políticos e econômicos de um estado, de um país e
dificuldades interpretativas e expressivas, mas que
de uma cidade, não interferem na realidade escolar
podem também ser a matriz da fecundidade de sua
apenas como fatos externos que modificam
formação científica. O primeiro nível seria o da
procedimentos e determinam condutas de seus atores
relação consigo mesmo vivida pelo professor-
sociais pela força da coação das leis. Este é um
pesquisador e o legítimo movimento de auto-
ângulo destas relações. Outro ângulo, de grande
conhecimento envolvido com a atividade de
importância para a tarefa interpretativa do
etnopesquisa, e, por conseguinte, não podemos
professor-pesquisador, é o fato de estes mesmos
pensar a atividade de investigação qualitativa
fatos econômicos e políticos ingressarem na
educacional, longe de seu valor formativo,
exatamente pela “...implicação do pesquisador, que instituição escolar na carne destes mesmos atores

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sociais, fazendo com que surjam fenômenos mais capaz de narrar o mundo-vida da escola em
singulares em cada instituição educacional: os sua complexidade, e por isso mesmo, mais próximo
estilos de gestão, as hierarquias instituídas e do caráter literário que a etnografia antropológica
implícitas, as fidelidades e preferências, as possui.
discrepâncias entre o dito e o feito, e muitas outras Se tivermos a capacidade de re-visitarmos o
nuances marcadas pelo traço ideológico de cada ator otimismo pedagógico que um dia seguramente
social. animou (ou ainda anima, para alguns...) e
A leitura do texto da realidade psico-sociológica impulsionou cada um de nós ao trabalho em
da instituição escolar, e a expressão escrita desta educação, seguramente abriremos a possibilidade
inteligibilidade, são de extrema fecundidade para de ler poeticamente o texto do mundo-vida da escola,
formação do professor-pesquisador, na medida em de atuar poeticamente com os atores sociais deste
que este leva em conta estes três grandes horizontes mundo e de escrever a seu respeito, com emoção e
de sua atividade. Não perder de vista estes horizontes lirismo, produzindo uma prosa-poética,
pode fazer com que o investigador não produza uma propositadamente articulada para apaixonar o
interpretação parca de seu objeto. Partindo de uma público leitor, e motivá-lo ao envolvimento com as
leitura articuladora de contextos aparentemente mesmas causas. Esta capacidade de convencimento,
desconexos, pressupomos a elaboração de textos de persuasão, de sedução do leitor, enfim, faz parte
ricos em informação e originais em termos de da realização de um empreendimento científico
explicitação de relações novas a serem ditas e socialmente vinculado e está intimamente ligada com
traduzidas para a comunidade acadêmica e para a o ato de escrever a interpretação tradutora da com-
sociedade. O etnopesquisador, enquanto autor, vivência com os atores sociais do com-texto escolar.
necessitará vencer as dificuldades observadas por Mais uma vez, podemos recorrer a Geertz (1989:14)
Geertz (1989:27): e à fonte antropológica da etnografia para aprender
“Adentrar em seu próprio texto (ou seja, entrar sobre a perspectiva desta alquimia pela via da
representacionalmente no texto) pode resultar escrita:
tão difícil para os etnógrafos quanto penetrar “ A habilidade dos antropólogos para nos fazer
no interior de uma cultura (ou seja, penetrar levar a sério o que dizem, tem menos a ver
imaginariamente numa cultura)” 2. com seu aspecto factual ou seu ar de elegância
Ou seja, queremos relembrar, uma vez mais, que conceitual, que com sua capacidade para nos
o leitor a quem se endereça o texto etnográfico, tem convencer de que o que dizem é resultado de
um papel importante no ato de criação deste texto. ter penetrado (ou, se se prefere, ter sido
O mesmo acontece com o ato de escrever a endo- penetrado por) em outra forma de vida; de ter,
etnografia escolar: há toda uma tensão no ato de um modo ou de outro, realmente “estado
criativo da escritura, “...adentrar em seu próprio ali”, e, na persuasão de que este milagre
texto...” , resultante das implicações políticas que invisível ocorreu, é onde intervém a escrita.”
3
rondam este processo. Como estar atento a elas? (grifos nossos)
Como superá-las sem no entanto abandoná-las de Enxergar relações é admitir realidades ambíguas,
modo negligente? duais, paradoxais, até mesmo realidades
Atento a si próprio e à sua implicação com seu polifacéticas como nos fractais. Como não
objeto de estudo, o pesquisador encontra-se em visualizamos o mundo desta maneira pela lente do
condições diferenciadas para considerar as relações pensamento linear e reducionista, a perspectiva do
de poder implícitas na execução da pesquisa Pensamento Complexo, preconizada por Edgar
qualitativa e na produção do texto endo-etnográfico Morin (1995), surge como proposta epistemológica
da prática escolar. Paradoxalmente, é também este que se pretende mais aberta para esta forma de
exercício socrático que pode levar o pesquisador, abordar a realidade sócio-educacional, e, por isso
enquanto autor, a libertar-se das amarras do mesmo, um aporte epistemológico do qual surge
pensamento linear e a produzir um texto etnográfico uma ciência mais próxima da arte. Daí não nos

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surpreendermos com o fato de o texto etnográfico professores-pesquisadores poderiam estar
em etnopesquisa crítica aproximar-se da narrativa resgatando a seminalidade das sábias atividades
literária e até mesmo da poesia... caminhantes de Hermes.
O antropólogo Stephen Tyler (1986:136) nos fala Acreditamos que o valor da pesquisa qualitativa
de uma etnografia pós-moderna, cujo: em educação se dá pela realização de um trabalho
“(...) texto realiza seus propósitos, não por pautado pelo rigor fecundo. Partindo deste
revelá-los, mas por fazer estes propósitos pressuposto, entendemos que a simples realização
possíveis: um texto que trata do físico, do dito de entrevistas, grupos focais, as coletas de relatos e
e do feito e que, por isso, constitui-se numa de histórias orais, a redação de diários de campo,
evocação da experiência e do discurso não se constituem, por si mesmas, num trabalho de
cotidianos que sugerem sua dimensão etnopesquisa crítica em educação. Estes recursos
inefável”. 4 captam fragmentos do texto da cotidianidade e
Enfim, Tyler (1986:136) almeja um texto constituem-se em preciosas fontes para a
etnográfico para ser lido “(...) não apenas com os interpretação reveladora das sutilezas simbólicas
olhos, mas com os ouvidos prontos para escutar desta cotidianidade. A etnopesquisa crítica nasce
as vozes das páginas (...)”. Tyler nos aponta para com a teorização profana do investigador sobre estes
uma possibilidade de apreensão e registro da vida dados e a expressão desta teorização através da
do homem em sua cotidianidade – seu drama, sua endo-etnografia escolar. É, enfim, um ato
comédia e sua poesia. Propomos realizar a endo- irremediavelmente interpretativo, que em última
etnografia escolar dentro do mesmo espírito... instancia é um ato compreensivo penetrante.
Não produzimos estudos qualitativos em Encontramos um comentário quase poético sobre a
educação apenas porque realizamos entrevistas, natureza desta compreensão que enriquece a leitura
grupos focais, anotamos relatos, histórias orais e do com-texto educacional em Palmer (1986:245):
escrevemos diários de campo. Todos estes textos “Temos que encarar a tarefa da interpretação,
são registros do texto do mundo-vida da escola. São não essencialmente como análise – pois
textos que podem dizer da cotidianidade escolar e imediatamente transforma o texto em objecto –
podem ser a chave para uma compreensão de suas mas como <<compreensão>>. A compreensão
estruturas simbólicas. Cabe ao etnopesquisador tem a sua amplitude máxima quando é
crítico interpretá-las lendo os textos de seus concebida como algo que pode ser captado pelo
registros, juntamente com o texto de si mesmo e ser, mais do que uma consciência auto-
dos fatos históricos. Por isso dissemos que a suficiente. Um <<acto interpretativo>> não
etnopesquisa escolar é uma prática que se dá deve ser uma apreensão compulsiva, uma
interpretando com-textos, ou seja, lendo criticamente <<violentação>> feita ao texto, mas sim uma
as teias que compõem uma realidade social, em união amorosa...” (grifos nossos)
nosso caso, o mundo-vida da escola. A interpretação dos textos coletados no tecer de
uma endo-etnografia, aparece aqui como um ato de
grande valor formativo. De caráter pessoal e
Revisitando Hermes:
projetivo, uma interpretação é sempre fruto da
interpretar e traduzir tensão emocional entre o mundo subjetivo do
etnopesquisador e sua forma de compreender o
Em Hermes Re-conhecido, estivemos a nos
mundo-vida da instituição educativa e sua cultura.
questionar se os etnopesquisadores estariam
Ricoeur (1990:56), nos ensina que “(...) interpretar
inspirando-se na itinerância deste personagem da
é explicitar o tipo de ser-no-mundo manifestado
mitologia grega, e como estes investigadores do
diante do texto”. Interpretar é uma atividade cuja
mundo-vida educacional se situariam natureza básica é a busca de uma compreensão, que,
ressignificando pós-modernamente os caminhos
mesmo operando sob certo distanciamento, é ao
(métodos) de Hermes. Queremos saber, enfim, como
mesmo tempo uma compreensão do mundo e de si

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 163-173, jan./junho, 2000 169


mesmo - o que de forma alguma redundaria numa Enfim, vislumbramos a pesquisa em educação
atividade solipsista, pois como nos esclarece Soares como um ato de tradução. Da com-vivência do
(1994:37): etnopesquisador no mundo-vida da escola para
“Compreensão é, assim, fusão de horizontes. construção artesã da prosa-poética do texto endo-
Não vemos apenas a própria imagem etnográfico, entendemos que ao interpretar os textos
narcisicamente refletida, esmagando a coletados nesta cotidianidade, o pesquisador
positividade do Outro; mas o Outro aparece enquanto autor cria a própria inteligibilidade de seus
para nós sempre situado, porque também nós dados, e, fazendo-a de maneira cuidadosa tendo em
sempre estamos situados: ele se recorta para mente o leitor, ele está realizando uma operação de
nós sobre o fundo de nossos conhecimentos e tradução destes textos para aqueles leitores que
valores, determinando o próprio perfil com espera atingir. Só mesmo um deus das encruzilhadas
autonomia e clamando por nossa aventurar-se-ia por tais empreitadas... Este papel
contemplação ativa-criativa, capaz de de tradutor do etnopesquisador reveste-se de uma
transcender limites e preconcepções.” (grifos importância fundamental na formação do professor-
nossos) pesquisador, pois trabalhando com liberdade de
O ato de escrever sobre esta interpretação interpretação para realizar a etnopesquisa crítica,
compreensiva e teorizar de forma profana sobre o pesquisador em formação estará criando numa
dados etnográficos, sempre produzidos em perspectiva que o remete ao sentimento de
interações sociais vivas, é também um ato auto- responsabilidade social, pois esta é uma perspectiva
biográfico e existencial. Nas palavras de Ricoeur de investigação cuja:
(1990:53), “(...) graças à escrita, “o mundo” do “...atitude de pesquisa tem uma conseqüência
texto pode fazer explodir o mundo do autor”. democrática radical: trazer para a investigação
Entendemos que, discursando sobre o que foi dito as vozes dos segmentos sociais oprimidos e
pelo Outro, o etnopesquisador constrói na verdade, alijados, calados pelos estudos normativos e
um outro discurso, em realidade criado com o outro, prescritivos, legitimadores da voz da
e, mesmo assim, um discurso que narra a própria racionalidade descontextualizada. A noção de
vida do autor, mas numa perspectiva tal que este objeto entra definitivamente no mundo-vida dos
novo discurso nasce do fato de perceber-se no humanos, ativamente, o pesquisador mostra as
mundo-com-o-outro. Aliás, este é outro traço inteligibilidades do senso comum e, com elas,
singular da perspectiva da etnopesquisa crítica e constrói suas compreensões.” (Macedo,
seu texto endo-etnográfico, a importância que recebe 1999:42, grifos nossos)
o discurso do Outro, pois: Queremos lembrar que, para além do caráter
“No processo de construção do saber científico, projetivo do texto endo-etnográfico, está seu caráter
a etnopesquisa não considera os sujeitos do histórico. Não há interpretação fora da historicidade.
estudo um produto descartável de valor Palmer (1986:252) diria que “A compreensão não
meramente utilitarista. Entende como é um conhecimento histórico fora do tempo; situa-
incontornável a necessidade de construir juntos, se num lugar específico no tempo e no espaço – na
traz irremediavelmente e interpretativamente história.”
a voz do ator social para o corpus empírico Se em Morin (1995) e sua epistemologia da
analisado e para a própria composição complexidade encontramos um desejo e uma
conclusiva do estudo, até porque a linguagem esperança de ruptura com a fragmentação do
assume aqui um papel constitutivo central. O conhecimento, através do pensamento complexo,
ator social não fala pela boca da teoria ou de encontramos em Palmer (1986:253 e 254) os
uma estrutura diabólica, ele é percebido como mesmos sentimentos, quando o autor propõe a
estruturante, em meio às estruturas que, em interpretação como conhecimento pessoal e histórico
muitos momentos, reflexivamente, o que não nega a riqueza desta complexidade para a
performam.” (Macedo, 1999:41, grifos nossos) hermenêutica:

170 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 163-173, jan./junho, 2000


“Hoje a tarefa da interpretação é libertar-se desafio de criar uma inteligibilidade que posta em
da objectividade científica e da maneira como texto irá afetar o público leitor, e tanto mais afetará
o cientista vê as coisas, é recuperar o sentido quanto mais traduzir o familiar propositadamente
da historicidade da existência. Estamos tão estranhado, novamente em termos familiares, e
obcecados com a perspectiva do pensamento como dissemos antes, a prosa-poética mostra-se
tecnológico que só de um modo disperso temos como a via aurea para a realização desta tradução.
consciência da nossa historicidade. Isto porque a liberdade para escrever de modo
(...) literário, narrativo, quase ficcional, proporciona ao
Chegamos ao histórico quando lutamos por autor a possibilidade de criar textos miméticos, que
um conhecimento pessoal, impacientes com a descrevem densamente e que mostram ao leitor sua
busca frenética da ciência que procura as leitura do mundo-vida educativo com o qual
origens, os fundamentos causais, os conviveu. Ninguém melhor que Ricoeur (1990:57)
antecedentes neurológicos, e quando lutamos para oferecer um argumento a favor para esta
por um regresso à riqueza e complexidade de possibilidade:
uma consciência concreta na interpretação “... a ficção é o caminho privilegiado da
literária. Intuímos a historicidade da descrição da realidade, e a linguagem poética
existência quando justapomos o mundo limpo é aquela que, por excelência, opera o que
e nítido dos conceitos científicos com o mundo Aristóteles, refletindo sobre a tragédia,
de conflito, de ambigüidade e de sofrimento chamava de mimesis da realidade. A tragédia,
em que vivemos o nosso quotidiano, pois a com efeito, só imita a realidade, porque a recria
experiência vivida é histórica na sua estrutura. através de um mythos, de uma “fábula”, que
A linguagem é histórica – é o repositório do atinge sua mais profunda essência.” (grifos
modo de ver de toda a nossa cultura. aspeados do autor; grifo em negrito, nosso.)
Resumindo, a própria interpretação é histórica,
e se tentarmos fazer dela qualquer outra coisa
acrescentando-lhe ou tirando-lhe algo,
Que significa,
empobrecemos a interpretação e
afinal, a palavra formação?
empobrecemos a nós mesmos.” (grifos nossos)
Se pensarmos e sentirmos a tarefa da
Para exercitarmos nossas propostas, pensemos
etnopesquisa crítica em educação a partir destes
um pouco no sentido do termo “formação”.
desejos de ruptura com a objetividade reducionista
Formação docente, formação científica, etc. Já na
e de regresso a uma interpretação histórica e pessoal,
linguagem, que nossa cultura consagra, temos um
entenderemos que, para ler o texto do mundo-vida
indício daquilo que está instituído. A palavra
escolar, o etnopesquisador crítico necessita levar
“formação” nos remete ao ato de dar forma, e é
em conta sua história pessoal, a história das relações
importante perceber criticamente, que a perspectiva
estruturantes de uma dada instituição, e o momento
(paradoxalmente) formativa que propomos aqui, não
presente do contexto sócio-político-econômico que
é a de meramente dar forma a alguém. Isso é
condiciona a estruturação das relações de poder nas
instituições escolares e suas singularidades. estimular a pessoa em “formação”, a permanecer
Não é demais lembrar que em termos de na superficialidade daquilo que é externo, a forma.
formação pós-graduada, e sua já consagrada cultura Propomos a valorização dos conteúdos vivos da
de sofisticação quanto à exigência de uma pessoa em formação. Ou seja, a formação que pode
contextualização histórica de qualquer objeto, se dar pela prática da etnopesquisa crítica nada tem
podemos vislumbrar a possibilidade de o de meramente formal, porque valoriza aquilo que é
etnopesquisador tornar-se um intérprete e tradutor explorado em profundidade na pessoa do
das problemáticas educacionais de seu tempo. investigador e nas relações de pesquisa vividas com
Atividade na qual o etnopesquisador enfrenta o as pessoas que compõem a tribo da instituição

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 163-173, jan./junho, 2000 171


.educativa. Como dissemos em Hermes Re- escamotear seu descompromisso com a sociedade.
conhecido...: Neste contexto, os Narcisos do saber, que em tudo
“(...) o ato formativo requer, para ser coerente, opõem-se a Hermes e sua mundanidade, defendem
uma constante reflexão sobre si mesmo sob a construção de textos acadêmicos, relatórios,
pena de transformar-se em meras práticas monografias, dissertações, teses, etc., cuja
receitadas e petrificadas que, em muitos característica principal é a organização
momentos, transformam-se em atos compartimentar, sempre guiadas por fórmulas
esquizofrenizados face à fragmentação que rígidas e roteiros enclausurantes.
transportam em nível do saber e do fazer.” Para estas instituições, a prosa-poética da endo-
(Macedo, 1999:47, grifos nossos)
etnografia proposta pela etnopesquisa crítica pode
O conceito qualitativo de formação que
soar como um ato de rebeldia e resistência. Mas
vislumbramos é o de uma formação que se dá pelo
como nosso mentor é um artífice que transita entre
acolhimento cuidadoso dos conteúdos do outro.
o Olimpo e a Pólis, caberá a nós a tarefa de camuflar
Entendemos “conteúdo” aqui, como aquilo que se
opõe à “forma que contém”, e não como conteúdo sabiamente nossos escritos densos de vida, sem
memorizado, característico da educação bancária, perder a fidelidade aos nossos princípios e, fazendo
denunciada por Paulo Freire (1997). Ao contrário, como Hermes, que prometeu a Zeus dizer sempre a
o conteúdo do discurso capturado na endo- verdade - mas não toda verdade -, utilizar um pouco
etnografia escolar é algo pleno de vida, porque traz da linguagem que os Narcisos querem ouvir, mas
em seu bojo as inteligibilidades legítimas do senso- sem concordar jamais com os pressupostos da anti-
comum, presentes neste mundo-vida do cotidiano formação pela cientificidade estéril, de modo a ir
escolar. A formação do professor pela prática da cuidadosamente expondo a fragilidade destes
etnopesquisa, estimula seu aprofundamento “castelos nas nuvens”, na medida em que vamos
compreensivo das realidades humanas na escola, abrindo espaço para uma produção de conhecimento
de maneira a fortalecer seu vínculo e seu mais vinculada e comprometida com a realidade
compromisso com a qualidade do trabalho social da qual, na verdade, é fruto.
pedagógico e com as pautas políticas por uma De acordo com o que, apaixonadamente, e sem
educação digna. culpas, defendemos em “Hermes Re-conhecido”,
acreditamos que, como no mito de Hermes, nosso
Por concluir, interpretando esforço, quando optamos pela perspectiva da
o próprio Olimpo etnopesquisa crítica, deve ser na direção de se fazer
ciência relacional, conectada, caminhante,
Com apreciáveis exceções, as agências humanizada e humanizante, sedenta de “insights”
formadoras de professores e pesquisadores padecem socialmente pertinentes e relevantes. Por isso
de uma cultura burocrática e narcisista que teima mesmo, uma ciência que possa oferecer, como
em povoar seus corredores. Pautadas no frutos, textos que não se transformem na “...poeira
cumprimento quase eclesiástico de rituais dos livros desesperados”, mas em textos de
meramente formais, estas instituições que também monografias, dissertações e teses sempre visitados
são educativas, costumam ser nichos de uma e re-visitados pelo simples fato de serem
mentalidade iluminista que defende hipocritamente comprometidos, vinculados e significativos para a
uma ciência de racionalidade estreita para comunidade que os gestou...

NOTAS

1
Agradecemos ao antropólogo e Prof. Dr. Ordep Serra realização deste trabalho. Os subsídios para as
pela forte inspiração que nos proporcionou para a discussões propostas aqui, foram encontrados durante

172 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 163-173, jan./junho, 2000


a disciplina por ele ministrada “Hermenêutica na elegancia conceptual, que con su capacidad para
Antropologia Social Contemporânea” do Programa de convencernos de que lo dicen es resultado de haber
Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de podido penetrar (o, si se prefiere, haber sido penetrado
Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. por) otra forma de vida, de haber, de uno u otro modo,
2 realmente “estado allí” y en la persuasión de que este
O livro de Clifford Geertz consultado ainda não foi
milagro invisible ha ocurrido, es donde interviene la
traduzido para o português. No original da edição
escritura.” Novamente, a tradução é de nossa autoria.
espanhola utilizada, encontramos: “Meter-se en su
4
proprio texto (es decir, entrar representacionalmente No original da edição americana, ainda não traduzida
en el texto) puede resultar tan difícil para los etnógrafos para nossa língua, encontramos: “The ethnographic text
como meterse en el interior de una cultura (es decir, will thus achieve its purposes not by revealing them,
entrar imaginariamente en una cultura).” A tradução but by making purposes possible. It will be a text of the
apresentada é de nossa própria autoria. physical, the spoken, and the performed, an evocation
3
of quotidian experience, a palpable reality that uses
No original da edição espanhola: “La habilidad de los everyday speech to suggest what is ineffable...”. A
antropólogos para hacernos tomar en serio lo que dicen tradução deste trecho em inglês também é de nossa
tiene menos que ver con su aspecto factual o su aire de autoria.

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Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 163-173, jan./junho, 2000 173


A DIFERENÇA / DEFICIÊNCIA NO
CONTEXTO DA EDUCAÇÃO ESPECIAL
Luciene Maria da Silva
Professora da Universidade do Estado da Bahia

“Pedir que não anoiteçam meus olhos seria uma loucura; sei de milhares
de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias.”
Jorge Luis Borges

Resumo significada pela subjetividade. O estar no mundo,


portanto, é decorrente dos limites e condi-
Este trabalho é uma tentativa de mapear e cionamentos que a natureza impõe, ao mesmo tempo
desenvolver algumas reflexões sobre a educação de em que decorre da intervenção dos sujeitos em face
alunos com deficiência, tema que vem sendo a esses condicionamentos. A realidade objetiva é
marcada pelos significados e subjetividades
debatido ao longo dos últimos anos pelos educadores
atribuídos pelos homens e mulheres por meio de
no Brasil, em função das novas resoluções da Lei
suas ações.
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/
No âmbito da ação humana, coexistem várias
96. É importante pontuar a oportunidade dessa
formas de ser e estar no mundo as quais constituem
discussão, nesse momento em que as ciências
a pluralidade humana marcada por diferenças
humanas enfatizam questões sobre identidade,
sociais, étnicas, culturais e religiosas. Por meio da
alteridade, unidade e pluralidade, contribuindo para
socialização, o ser humano torna-se um indivíduo
uma compreensão que busca superar a visão
que se constrói no espelho do outro, num
homogeneizante e estereotipada da Educação
reconhecimento que não se limita a uma relação
Especial. Dentro dessa perspectiva, pretendeu-se
interpessoal.
destacar a inclusão desses alunos nas escolas Por que homens e mulheres, seres de relações,
regulares enquanto princípio, respeitando-se as transformam a pluralidade em preconceitos, em
peculiaridades e condições reais para tal instrumentalização do outro e de si mesmo?
empreendimento.

Introdução O semelhante/diferente

As reflexões sobre a diversidade humana Segundo Larrosa (1998), as aproximações


enfatizam, prioritariamente, as relações pessoais e sociológicas sobre o outro consistem na aplicação
intergrupais. Nesse contexto, a semelhança entre os de um certo dispositivo do saber que fala pelo outro.
indivíduos, conferida pela dotação genetica, possui, Portanto, a descrição sobre a diversidade humana
na sua essência, um componente histórico de tem sido feita sob várias perspectivas. A perspectiva
evolução da espécie, fruto das interações com o meio: etnocêntrica é a caricatura natural dos que se
o processo de humanização implica uma pluralidade empenham em eleger os valores próprios da
de existências e de indivíduos no mundo. O estar no sociedade a que pertencem em valores universais,
mundo pauta-se na facticidade dada pelos limites julgando os costumes alheios a partir de analogias
da natureza biológica e pelas circunstâncias que tiradas dos próprios costumes. Em conseqüência, o
envolvem a existência humana. Mundo, nesse julgamento do outro informa mais sobre aqueles que
contexto, é a perspectiva na qual a realidade é falam do que sobre quem é falado, restringindo a

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 175-183, jan./junho, 2000 175


amostragem do humano às culturas hegemônicas. deficiência física, 16.227 de deficiência auditiva,
A perspectiva relativista proclama o valor igual para 13.636 de deficiência visual e 6.478 de deficiências
todas as diferenças, com privilégio para a descrição múltiplas (IBGE/1991). A Organização Mundial da
da coerência interna do grupo e do dinamismo Saúde afirma que 10% da população no Brasil é
criativo autônomo. A perspectiva legitimista destaca portadora de alguma deficiência. Nos países de Ter-
as relações de poder em que estabelece o poder ceiro Mundo, a porcentagem total, ou não
dominante como legítimo e, ao mesmo tempo, o desagregada, pode chegar a 15% ou até 20% (Ribas,
critério para os outros serem considerados legítimos 1983:25).
ou não. Para além dessas concepções, é possível
afirmar que a convivência na diversidade não
significa o assumir a posição de espectador passivo Por onde andam os deficientes?
e tolerante. O pressuposto essencial está em admitir
que cada indivíduo tem direito de combinar Parece que existe um processo instituído
experiências pessoais de vida com a coletividade, socialmente de incomunicabilidade e invisibilização
imprimindo, todavia, uma identidade particular. social desse contigente. A arquitetura urbana
Um dos grandes desafios das ciências humanas impeditiva e os valores sociais excludentes as
hoje, portanto, é entender o processo que leva confinam em espaços privados, limitando-as ao
homens e mulheres à afirmação do igual e à negação universo familiar ou a instituições especializadas
do diferente, dando um status ontológico negativo que, por si só, são pouco estimulantes para o
ao “estrangeiro”, transformando-o num problema desenvolvimento de habilidades e relações variadas
que se fabrica e esculpe, traço por traço, o pobre, o e possíveis. Por outro lado, aqueles que se
índio, o negro, o velho, a mulher, entre outros. “mostram” não são “vistos” ou respeitados nos seus
O tecido social contemporâneo, marcado pela direitos, produzindo a percepção no imaginário
diversidade/multiplicidade das diferenças humanas coletivo de que são pessoas incompletas e incapazes
- físicas, sociais, étnicas, econômicas, culturais, de realizações. Com efeito, a negação social
religiosas, etc. - incorpora também os indivíduos constitui-se a partir dessa dupla segregação que vai,
que não se encaixam nos chamados padrões de por conseguinte, moldar a identidade e a auto-
normalidade física ou mental, devido a causas imagem desses indivíduos.
acidentais, congênitas e/ou sócio-geográfico- A condição de deficiência evidencia uma situação
político-econômicas que os tornaram pessoas de desvantagem só compreensível numa situação
portadoras de deficiências. relacional ou em consideração ao outro:
A maioria dessas pessoas localiza-se nas desvantagens, incapacidades ou deficiências são
camadas de baixa renda da população. A consideradas sempre na relação do indivíduo
prevalência de incapacidades está associada, em portador de tais características com os seus pares
geral, a precárias condições de renda, escolaridade, de convivência. Como afirma Larrosa (1998:7),
moradia e acesso a serviços de saúde (OPAS, 1998). quando a uns é dado o poder de decidir o que é o
As informações estatísticas sobre portadores de outro, reforça-se um tipo de racionalidade, tornando-
deficiência são precárias no Brasil. As que existem a hegemônica:
são controversas, visto que a obtenção dos dados é “(...) se trata da imagem dos loucos feita pelas
definida por frações amostrais distintas para os pessoas com uso da razão que, afinal, são as
diferentes municípios, e pela atitude social do nosso que definem o sentido da razão e da sem razão;
contexto de ocultamento das informações, por as imagens das crianças feitas pelas pessoas
preconceito ou desinformação1. No entanto, mesmo adultas que são as que determinam o que é a
com essas fraturas, alguns registros são possíveis. maturidade; (...) a imagem dos marginalizados
O último censo demográfico informa que, na Bahia, feita pelas pessoas integradas que são as que
dentre os 11.867.562 habitantes, 46.566 são definem o que é ser ou não ser uma pessoa
portadores de deficiência mental, 44.675 de corretamente socializada; a imagem dos
deficientes feita pelas pessoas normais que são

176 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 175-183, jan./junho, 2000


as que definem o que é a normalidade e a logo após o parto; a visão cristã medieval
anormalidade”. correlacionava a deficiência, especialmente a
A referência de normalidade é produto de um cegueira, à culpa, pecado ou qualquer transgressão
quantitativo que é também social. A sociedade moral ou social; bem mais recente, já na
estabelece como um dos fatores essenciais para seu contemporaneidade, tivemos a eliminação bárbara
funcionamento e coesão, a semelhança entre os de pessoas com deficiência em favor da eugenia
indivíduos, fazendo surgir a norma a partir da nazista. A investigação de períodos mais recentes
ocorrência de uma infração que impõe uma série de poderá identificar formas de estigmatização em
reajustamentos diante da possibilidade da outras referências culturais. Atualmente, a
transgressão. Tudo e todos que não se encaixam no deficiência se constitui, ela própria, em sinal ou
padrão social estabelecido são discriminados por estigma por estar registrada, explicitamente, nos
serem considerados como uma espécie de negação corpos e nos seus movimentos. O corpo marcado
da ordem estabelecida socialmente. Essa é a imagem mostra uma unidade explícita que conta algo da
do outro produzida por alguns que decidem como história do indivíduo ainda que sua auto-imagem
ele deve ser, o que lhe falta, de que necessita, quais não aceite.
são suas carências e aspirações. O outro se fabrica A atual imagem social do corpo, fruto do
no processo de alterização, social e cotidiano: a dualismo psicofísico2, implica a sua glorificação
família, a escola, o trabalho, a ideologia, a ciência, exacerbada enquanto corpo são e perfeito que se
o poder político, enquanto mecanismos de correção opõe à velhice, a determinadas características
e/ ou reafirmação das diferenças. étnicas ou de deficiência, prestando-se, também, a
Nesse processo, a leitura social que é feita das funções de distinção social. A obsessiva ênfase no
diferenças tem resultado em atitudes, preconceitos racional engendra o processo de descorporalização
e estereótipos que delegam à pessoa portadora de ou gradual independência entre o indivíduo e seu
deficiência o lugar de cidadão de segunda categoria corpo, na medida em que ocorre a secundarização
na sociedade, inclusive passíveis de um violento da comunicação empática do corpo com o mundo
processo de estigmatização. Segundo Goffman ou a redução da capacidade de percepção sensorial
(1975), estigma é um valor negativo atribuído a uma e apreensiva. Esse corpo fragmentado, porém, dito
condição existencial e gerado na trama das relações saudável, passa a ser cultuado e manipulado, sendo
sociais a partir do que é construído ideologicamente reduzido a uma materialidade desvinculada da
acerca do outro. Na sua obra antológica sobre a subjetividade. A estética predominante tem um
manipulação de identidades deterioradas, o autor referente no qual o corpo esgota-se em si mesmo.
investigou diversos fatores ligados ao estigma, tais Porém, como nos diz Maffesoli (1996:134), o corpo
como a visibilidade, o encobertamento e a identidade engendra comunicação, “porque está presente,
pessoal, destacando que o termo estigma foi criado ocupa espaço, é visto, favorece o tátil”. Ou seja, o
pelos gregos para identificar explicitamente através corpo não é facticidade pura, pois que sendo um
de sinais - cortes, marcas de fogo, tatuagem, etc. - significante contém o mundo na sua totalidade.
pessoas que evidenciavam comportamentos tidos A análise realizada por Foucault (1987), sobre
como indesejáveis (traição, crime, homos- a construção de corpos dóceis na modernidade,
sexualismo), baixo status social (escravidão, etnia, denuncia os esquemas manipulativos colocados em
opção religiosa), ou deformidades físicas (cegueira, prática pela sociedade, através de suas instituições
surdez, deficiência física). em favor da correção e da submissão das operações
Amaral (1995) faz excelente percurso histórico do corpo. A anatomia política impõe um domínio
sobre a percepção social da deficiência: na Grécia, sobre o corpo dos outros, através de técnicas que
as pessoas com deficiência eram mortas ou consideram rapidez e eficácia como o produto
abandonadas à sua sorte, numa espécie de fundamental da disciplina. Diferente da escravidão,
exposição; os romanos tinham uma lei que dava da domesticação, da vassalidade ou do ascetismo
direitos ao pai de eliminar a criança com deficiência, monástico, configura-se numa arte que visa a

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formação de uma atitude corporal: o corpo útil. reservam-se escolas especiais, ou classes especiais
Esse corpo desarticulado, desalinhado, são e inseridas em algumas escolas regulares. Isso faz
produtivo, apesar de falso na sua essência, faz parte surgir um sistema especial paralelo que, com
de uma idealização cujo afastamento caracteriza o objetivo de educar os possuidores de uma diferença,
desvio ou a anormalidade. A rejeição à diferença, acaba por segregá-los mais ainda, assinalando-os,
na nossa sociedade, é um fenômeno que tem como indubitavelmente, com a marca da “diferença
referente o modelo jovem, masculino, cristão, indesejada” e assim exercendo um papel
heterossexual, produtivo, branco e fisicamente estigmatizador.
perfeito. Esse sistema paralelo de educação legitimou-se
Os estudos de Amaral (1998) identificam três no Brasil com duas frentes: as “associações de pais
parâmetros sociais para a definição da diferença e amigos” e as instituições ou escolas especiais
significativa enquanto desvio ou anormalidade. O públicas ou particulares. As primeiras são
primeiro, refere-se ao critério estatístico que impõe conhecidas enquanto organizações filantrópicas e
uma “média aritmética” dos valores sociais que de beneficência (Associação de Pais e Amigos dos
predominam. Cita, como exemplo, a existência de Excepcionais - APAE, Sociedade Pestalozzi,
uma altura média do homem brasileiro, assim como Instituto de Cegos, Associação de Assistência à
uma freqüência média de profissões por gênero. O Criança Defeituosa, entre outras) surgidas a partir
segundo diz respeito às características da espécie da década de 30, por iniciativa de pais de alunos
humana que tem, na “vocação” de sua forma e considerados “não elegíveis” aos serviços
função, uma estrutura própria que a diferencia de educacionais oferecidos pela rede de ensino
outros seres; e, por último, o parâmetro que compara (D’Antino, 1998). Os alunos considerados especiais
determinada pessoa com um tipo ideal construído não são percebidos, na sua heterogeneidade, no que
pelo grupo dominante. O certo é que esses critérios se refere às classificações de deficiência, resultando
estão engendrados intimamente, sendo difícil que uma parte dos que estão matriculados nessas
identificar a predominância, principalmente porque escolas institucionais ou especiais não apresenta um
a elaboração do significativamente diferente é quadro grave de distúrbios psicopatológicos e/ou
processual, portanto histórico-cultural. orgânicos que os impeçam de estudar nas escolas
regulares.
Enquanto modalidade de ensino, o campo de
A escola e a inclusão social
Educação Especial insere-se na Pedagogia de forma
bastante anacrônica sob o ponto de vista teórico-
A escola é o locus natural não só de acolhimento prático. Para muitos, é uma área de atuação voltada
das diferenças humanas e sociais como também de
à assistência e não à educação. Januzzi (1996:15)
rejeição e engendramento de novas diferenças e
afirma que “é freqüente a referência a situações
demandas. Nela, encontram-se diferenças baseadas
de atendimento a pessoas deficientes (crianças e/
nos três parâmetros citados acima. Porém os
ou adultos) como sendo educacionais, quando uma
modelos - corpo belo e corpo útil - são reforçados,
análise mais cuidadosa revela tratar-se de
fazendo-se predominar apenas com estes
situações organizadas com outros propósitos que
significantes, que impõem a unilateralidade na escuta
não o educacional”. Aliás, o especial que adjetiva
dos alunos no que se refere à normalidade. O sistema
a educação configura algo pouco explícito: o que
de ensino regular reforça esse modelo de
torna a educação especial? Qual o sentido que
normalidade, na medida em que exclui do seu
justifica o entendimento de uma Educação Especial?
contingente os alunos com algum tipo de deficiência.
A Educação Especial consolidou-se destinada a Em princípio, sugere uma exclusividade que é
esses alunos, com o pressuposto de que indivíduos determinada pelas características do alunado e suas
especiais podem ser educados através de necessidades; a prática, no entanto, expressa uma
procedimentos educacionais especiais, em locais diferenciação estigmatizante: ser aluno especial é o
apartados do sistema regular de ensino. Para eles, substituto suave e politicamente correto para aluno

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deficiente. Será que as características desses alunos serviços especializados só deverá ser oferecido
impõem um corte particular da educação enquanto quando não for possível a integração desses alunos
área de conhecimento? em classes regulares, devido às suas condições
A Educação Especial no Brasil tem sido objeto específicas. No Artigo 59, a Lei prevê, dentre outras
de investigação científica pouco prestigiado, condições, que sejam assegurados pelos Sistemas
principalmente nos seus aspectos contextuais no de Ensino, currículos, métodos, técnicas, recursos
quadro da educação geral do país. Romero educativos e organização específica para o
(1993:67) chama atenção para a exclusão dos atendimento aos “Portadores de Necessidades
profissionais que atuam na área de educação Especiais”.
especial: Essa orientação diz respeito a 5,7 milhões de
pessoas com deficiência, em idade escolar, dos quais
“A Educação Especial, tal como o deficiente é
apenas 6% estão matriculados em escolas que
segregada, isolada, em vários aspectos. Seus
oferecem algum tipo de atendimento3. Isso equivale
alunos, seus profissionais, suas instalações e
a 94% de crianças desse universo, na sua grande
às vezes suas próprias reflexões vivem um es-
maioria, excluídas do sistema educacional ou sendo
paço comum, mas separado.”
atendidas, em número reduzido, nas Instituições
Segundo Glat et al. (1998), em estudo analítico filantrópicas que seguem diretrizes determinadas
sobre as pesquisas de pós-graduação nessa área, prioritariamente pelos grupos gestores. É
foi somente a partir da década de 70 que a produção reconhecida a importância e a necessidade das
científica foi impulsionada, com o surgimento dos organizações da sociedade civil, mas o atendimento
cursos de mestrado em educação da Universidade pedagógico nessas instituições fica comprometido
Federal de São Carlos e Universidade do Estado do com a ideologia que alicerça a filantropia e a
Rio de Janeiro. Com base em referências e beneficência.
categorias classificatórias, os autores formularam O fracasso escolar é um fenômeno que atinge,
algumas considerações críticas sobre os temas massivamente, esses alunos, como comprovam os
abordados, questões teórico-metodológicas e dados estatísticos, ao registrarem a redução gradual
concepções sobre deficiência. As conclusões do de alunos com deficiência, matriculados nos níveis
estudo indicam que a maioria dos trabalhos voltam- posteriores de escolaridade: dos 201.142 alunos
se para os aspectos cognitivos e comportamentais, matriculados em Educação Especial no Brasil,
com pouco destaque para os aspectos emocionais e 78.948 estão no pré-escolar, 118.575 estão no ensino
afetivos. Chama atenção para a necessidade de fundamental e apenas 3.619 estão no ensino médio4.
investigação das situações ou condições Esses dados comprovam que grande parte desses
propiciadoras do processo de inclusão, a partir da alunos abandona a escola antes de finalizar a
escuta dos alunos com deficiência sobre suas educação obrigatória, ou não termina com êxito os
necessidades e dificuldades. ciclos iniciais.
Com as atuais resoluções da LDB, não mais Observa-se que a LDB já incorpora a
será possível ignorar a demanda e a necessidade de terminologia “Portadores de Necessidades
reflexões sobre novas concepções e/ou aspectos da Especiais” que passou a ser utilizada na Inglaterra
educação e integração desses alunos. O capítulo desde a década de setenta, para significar “aluno
dedicado à Educação Especial prevê, em seu Artigo que apresenta algum problema de aprendizagem
58, parágrafo 1º e 2º, o atendimento aos ao longo de sua escolarização, que exige uma
denominados Portadores de Necessidades atenção mais específica e maiores recursos
Educativas Especiais – PNEE – preferencialmente educacionais do que os necessários para os colegas
na rede regular de ensino, em classes regulares, de sua idade” (Marchesi e Martin, 1995:11). A
sendo oferecidos, quando necessário, serviços de consideração da deficiência como um fenômeno
apoio especializado para atender às peculiaridades relacional, e não autônomo do aluno, a concepção
do alunado. O atendimento em classes, escolas ou mais interativa do papel do desenvolvimento sobre

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a aprendizagem, novos métodos de avaliação mais incorporação das mudanças demandam condições
voltados para os processos e a demanda social materiais de aparelhamento das escolas e
gradativa por escolarização foram tendências que capacitação dos professores, sob pena da proposta
impulsionaram as novas terminologias. constituir-se em uma nova exclusão. Segundo Glat
No entanto foi a Conferência Mundial de (1998:28):
Educação Especial realizada em Salamanca - “Tem sido exaustivamente apontado (Glat,
Espanha, em 1994, que popularizou o conceito de 1995; Goffredo, 1992; Mazzota, 1994, e outros
“necessidades especiais”, através da Carta de autores) o fato de que a política de integração
Salamanca. A Conferência inaugurou, também, o escolar, na prática, não funciona, porque, entre
princípio da Inclusão, palavra chave que pressupõe outros fatores, o professor da classe regular
o modelo social da deficiência, ou seja, a sociedade não está preparado para receber o aluno
deve adaptar-se para incluir, em seus sistemas especial. Logo, se quisermos considerar uma
gerais, as pessoas com deficiência, e estas devem proposta ainda mais radical, como a da escola
preparar-se para assumir papéis dentro de suas inclusiva, é pré-requisito que os professores
possibilidades. As escolas devem garantir vagas sejam, efetivamente, capacitados para
para todas as crianças independente da condição transformar sua prática educativa. Sem tal
intelectual, social, emocional, lingüística, étnica, ação, que não se resume a curso ou seminário
física, etc. O princípio da Integração, que isolado, e sim a uma capacitação e
anteriormente pautava a política educacional, acompanhamento contínuo, este debate não
caracteriza-se como uma forma de inserção segundo sairá da esfera da própria educação especial e
a qual o aluno com deficiência buscava adaptar-se a escola inclusiva nada mais será do que mais
às condições do meio. uma utopia”.
Em função dessas novas orientações, a distância A autora reforça sua posição favorável ao
entre Educação Especial e educação geral tende a conceito de inclusão, porém condicionado a uma
ser cada vez mais tênue, determinada não somente modificação do sistema educacional brasileiro,
pela política oficial de inclusão, mas também pela considerando, principalmente, os alunos com
perspectiva hoje declarada de afirmação das deficiência mental severa ou acoplada a outras
diferenças. A comunicação globalizada e as novas deficiências.
configurações de sociabilidade na sociedade Outros se posicionam de forma mais radical em
contemporânea vêm impondo uma reflexão sobre favor da inclusão, tendo como idéia central a de
o processo de ensino e aprendizagem, considerando que o convívio com a diversidade das condições
a diversidade de interesses e olhares. A escola não humanas é necessário e benéfico à formação de todas
mais poderá ignorar as diferenças de interesses e as crianças, consideradas especiais ou não.
as especificidades dos seus alunos, devendo Defendem a desinstitucionalização de todas as
considerá-los como grupos heterogêneos que crianças e têm como meta primordial não deixar
demandam métodos, material didático e avaliação ninguém fora do ensino regular. Como defensora
diversificados. desta proposta, Montoan (1998:32) critica a
Nesse contexto, vem se consolidando no Brasil, integração parcial que, de fato, não admite a
em função dessas novas tendências, um debate entre mobilidade do aluno para as escolas regulares. Diz
os educadores que trabalham com Educação ela:
Especial, a respeito da pedagogia da inclusão / “É certo que a inclusão se concilia com a
educação inclusiva, que propõe a incorporação das educação para todos e com um ensino
crianças com deficiência, nas escolas regulares. especializado no aluno, mas não se consegue
Alguns entendem que é o princípio da inclusão social implantar uma opção de inserção tão
que deve ser defendido, na medida em que reforça revolucionária sem enfrentar um desafio ainda
um outro princípio semelhante que é o de educação maior, o que recai sobre o fator humano. Os
para todos. Para estes, a viabilização e a recursos físicos e os meios materiais para a

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efetivação de um processo escolar de qualidade “normais” ou “adaptadas”, mas de respeitar os
cedem sua prioridade ao desenvolvimento de limites sobre suas reais capacidades, sobre como
novas atitudes e formas de interações na escola, pensam, o que querem, o que lhes interessa, tendo
exigindo mudanças no relacionamento pessoal como horizonte a ampliação de seus espaços de
e social e na maneira de se efetivarem os participação cultural, política e econômica.
processos de ensino-aprendizagem”. Essa reflexão tem sido, ultimamente, motivada
A desconsideração da complexidade que permeia por uma literatura que aponta para a importância
esse debate resulta no reducionismo do princípio do princípio de educação para todos. Novas
da inclusão a uma obrigatoriedade imposta pela abordagens de cunho mais antropológico vêm sendo
legislação. Ora, não se trata apenas da inclusão incorporadas ao parâmetro da diversidade,
física do aluno na escola. Para que a inclusão possibilitando o questionamento da visão
aconteça de fato, é necessário ultrapassar os unidimensional e pragmática vigente nas instituições
aspectos retóricos no sentido de garantir a especiais e o distanciamento dos pesquisadores da
escolaridade desses alunos por serem eles sujeitos área de educação em relação à temática.
inseridos no processo histórico social, independente
de suas características biológicas. O papel da Universidade na
Está a escola preparando-se para receber discussão sobre a resignificação
crianças com deficiência física, sensorial ou mental? das diferenças
Que dizer das classes com mais de quarenta alunos,
das barreiras arquitetônicas e da inexistência de A Universidade não pode ficar omissa em relação
professores e profissionais de apoio? Visitas a ao processo de inclusão real de todos os que
escolas que têm alunos com deficiências, para coleta compõem sua comunidade, tampouco pode ser um
de dados da pesquisa que estamos desenvolvendo espaço que privilegia apenas alguns. Entendemos
na UNEB5, mostram que a fase de sensibilização que o desconhecimento e a falta de discussão
dos professores tem se prolongado sem que seja contribuem para aumentar ou consolidar o mito e o
efetivado um programa amplo de capacitação que preconceito frente ao que não está dentro das
os habilite para o trabalho com tal diversidade, e as referências aceitas pelos grupos que têm o poder de
necessárias reformas físicas e organizacionais das ditar os padrões de normalidade. É necessário
escolas. Sem isso, fatalmente a responsabilidade considerar a resignificação da diferença e, acima
pelo sucesso ou fracasso da proposta recairá sobre de tudo, a promoção da igualdade de direitos para
eles. que estes se concretizem no cotidiano. O esforço
E o que pensam os alunos com deficiência sobre para a inclusão vai além das prerrogativas legais,
essas questões? O que é a criança com deficiência passa pelo respeito à cidadania e pela definição de
para si própria? O diferente se vê como diferente? uma orientação acadêmica de ingresso, acesso e
Como se vê refletido na imagem daqueles que o permanência de qualquer aluno.
têm como ser humano não completo? Como é A legislação tem papel fundamental e contribui
construída pelas pessoas com deficiência a para atitudes sociais mais favoráveis; entretanto,
discursividade sobre a diferença? Que formas de isoladamente, não produz modificações relevantes
saber a constituem? Em que medida as no atendimento educacional, principalmente se
representações dos alunos com deficiência sobre as considerarmos que ela ainda não tem uma orientação
situações de comunicação determinam a maneira acadêmica específica e necessária à atuação das
pela qual elas concebem seu próprio papel e como Instituições de Ensino Superior, apesar dos esforços
se comportam a partir daí? Qual será a memória dos Fóruns de Educação Especial, evento que reúne,
educativa desses alunos? O que pensam sobre a anualmente, docentes e pesquisadores das
inclusão proposta pela LDB? universidades brasileiras com o objetivo de refletir
Pensar essas incursões é considerar a formação sobre a educação dos portadores de deficiência,
dessas pessoas não com o objetivo de torná-las envolvendo ações de ensino, pesquisa e extensão.

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Podemos afirmar que as discussões empreendidas alternativa a atividades orais; valorização do
nesse espaço de debates resultaram na recente conteúdo semântico na correção de provas
publicação da portaria do MEC orientando as escritas; material de informação sobre a
Universidades sobre a infra-estrutura que deve ser especificidade linguística do aluno com
oferecida para os portadores de deficiência. De deficiência auditiva.
acordo com a nova Portaria, “uma infra-estru- Temos no nosso quadro, professores,
tura insatisfatória baixará o conceito da faculdade funcionários e alunos com deficiências variadas,
no provão, no critério de condições de oferta de apesar de não haver informação precisa sobre esse
curso” 6. Essas condições referem-se: contingente nos campi da UNEB. Contudo, por
a) para alunos com deficiência física: reserva de menor que seja esse número, é necessário garantir
vagas em estacionamentos; construção de as condições de acesso e permanência com qualidade
rampas ou colocação de elevadores; adaptação para todos, inclusive para os futuros ingressantes.
de portas e banheiros; colocação de barras de A Universidade, em respeito a essas pessoas e a
apoio nas parede dos banheiros; instalação de todo percurso que antecedeu à sua chegada nesta
bebedouros, pias e telefones públicos acessíveis; Instituição, não pode agir com assistencialismo ou
b) para alunos com deficiência visual: máquina deixar a responsabilidade a cargo de quem sempre
de datilografia e impressora em braille; necessitou integrar-se a partir de um processo
computador com sistema de síntese de voz; unilateral. Urge incluir todos os participantes desta
scanner acoplado; aquisição de livros gravados comunidade num processo bilateral que denote a
em áudio ou em braille; lupas e réguas de leitura; intenção mútua − dos que buscam exercitar suas
c) para alunos com deficiência auditiva: intér- atividades e dos que têm por obrigação social
pretes de língua de sinais, conforme a oferecer condições que possibilitem seu acesso e
necessidade; aplicação de prova escrita como permanência.

NOTAS
1 2
Já foi constatado, por exemplo, que muitas das crianças Ou polarização do ser humano em corpo e alma / corpo
que têm deficiência visual ou auditiva são categorizadas e consciência.
pela família ( e até pela escola) como deficiente mental; 3
Folha de São Paulo. 25/08/1998.
isso pode justificar o número altíssimo de portadores 4
Informe Estatístico MEC / INEP - 1994.
de deficiência mental no último Censo do IBGE: 5
Pesquisa intitulada “Identificação e Caracterização da
considerando a porcentagem de 1,50% de portadores Situação de Atendimento em Educação Especial no
de deficiência no Brasil, 0,44% são portadores de Município de Salvador”.
deficiência mental (IBGE/1991). 6
Folha de São Paulo, 17/01/2000.

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A QUESTÃO DA HORIZONTALIDADE
PEDAGÓGICA
Ludmila Oliveira Holanda Cavalcante1
Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana

Ao começar o semestre nos cursos de realidade que parece estar significada em tempo e
licenciatura, eu sempre busco, no primeiro dia de espaços bem longínquos. É nesta dicotomia que
aula, algumas informações dos meus alunos. A eles experimentamos a relação teoria/prática tão
pergunto porque escolheram o curso que fazem e se necessária ao trabalho de formação docente, pois
gostam dele; se já têm experiência docente; quais “num curso de Didática, mais que em outras
suas perspectivas sobre o exercício do magistério e, disciplinas, é preciso lembrar que a prática
por fim, quais as suas representações sobre Didática pedagógica vivenciada na sala de aula é também
e o que esperam desta disciplina. conteúdo da disciplina e, portanto, objeto de
Por incrível que pareça, um número significativo reflexão na e sobre a ação”. (Schon, apud Caldeira
não tem qualquer experiência, em sala de aula, no e Azzi, 1997).
papel de ‘professor’. Alguns não querem trabalhar Desta forma, o que existe de instigante na
como professores (!), e uma grande parte trabalha disciplina Didática no curso de licenciatura é que
como professor2 e quer descobrir, com a ajuda da trabalhamos, ao mesmo tempo, com aquele que é
Didática, a melhor maneira de dar uma aula e o aluno/a e o que está sendo professor/a, sendo
que e como fazer para ter controle de disciplina relevante retomarmos a visão do real e do ideal
em classe. perpassada nesta relação.
Faz parte desta primeira aula, portanto, tentar Vejo, no entanto, que, ao discutir a noção de
esclarecer, entre outras coisas, que licenciatura é “horizontalidade”3, inicialmente defendida por
um curso para formação de professores e que para Paulo Freire e muito bem articulada no texto de
tanto, concluí-la implica na necessidade da prática Veiga (1995), consigo perceber, nos meus alunos,
docente. Esclareço também que a Didática pode não o discurso de quem se sente aluno e não consegue
ter a receita da melhor aula e não ser o ‘grande sentir-se professor. Desta forma, narram, dentro
manual de controle disciplinar’ esperado, mas pode de uma perspectiva, por vezes, vitimizada de
trazer, no decorrer do curso, algumas reflexões e “aluno”, a falta de compreensão, entendimento,
questionamentos que buscam desenvolver a sensibilidade que, segundo eles, “seus professores”
sensibilidade social necessária a um bom trabalho (em sua maioria) transmitem. Poucos são os que,
docente. (Vale ressaltar que tais “explicações” são ao vivenciar situações nas escolas e refletir sobre o
enfatizadas e reforçadas no decorrer de todo o curso). que lá encontram, conseguem evidenciar e
Como parte destes questionamentos e reflexões, verbalizar o grau de dificuldade em estabelecer uma
venho, através deste artigo, ilustrar uma das relação horizontal com seus próprios alunos. Ou
relevantes temáticas do nosso curso - a relação seja, ao descrever as relações conflituosas, na
professor aluno e sua influência diante dos universidade, entre professor e aluno, eles
problemas enfrentados no cotidiano da prática relacionam o problema com a atitude do professor,
pedagógica, partindo do pressuposto de que a relação e ao discutir o mesmo tipo de conflito em suas
dialógica em sala de aula pode significar um grande experiências em escolas, eles transferem o problema
avanço no trabalho do professor e no processo de para o aluno.
formação profissional do seu aluno. “Existem professores aqui que nem conhecem o
Ao trabalhar com Didática, percebo a grande nosso nome no final de cada semestre. Um dia
dicotomia entre o que, sensatamente, acredito ser o um professor pediu que um colega saísse da sala
referencial em educação na virada do século e a mas nem sabia o seu nome. Foi a maior polêmica

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e o meu colega falou que não sairia pois estava portanto, o professor de Didática “trabalha como
fazendo parte da aula e que a sala não era só educador e pedagogo”, “age como pedagogo”, fala
dele!” (risos) (Vivian, 5º semestre do curso de como “pedagogo”, ou seja, faz coisas que só os
Licenciatura em História, sem experiência educadores e pedagogos fazem ou se preocupam
docente) em fazer, reforçando desta forma um estereótipo
“... eu tenho alunos que simplesmente não que desmerece o trabalho do educador e desacredita
conseguem prestar atenção à minha aula e outros o trabalho do pedagogo. Estamos, portanto, diante
que vão à aula só para me provocar, para de um contexto no qual alunos estudam Didática,
perturbar o meu trabalho! Um dia perdi o mas não visualizam como esta pode traduzir-se
controle e pedi que um aluno saísse de minha na disciplina do aluno que terá/tem na escola.
sala e ele quis bater boca na frente dos colegas...” Demonstra, desta forma, ser um trabalho que ainda
(Sandra, 5º semestre do curso de História, dando não consegue efetivar-se dentro da perspectiva
aulas em escola do município) ensino-pesquisa.
Como podemos ver, no trecho abaixo, Garrido, Na minha experiência, enquanto professora
ao descrever seus alunos do curso de licenciatura, (pedagoga) nos demais cursos de licenciaturas,
afirma: percebo de forma clara e objetiva que, por vezes, o
“(...) quando os alunos chegam à licenciatura meu trabalho é avaliado como um trabalho que pode
já têm saberes sobre o que é ser professor. Os ser interessante, mas, muitas vezes, não se aplica
saberes de sua experiência de alunos de ao que seria um trabalho “específico”, por questões
diferentes professores em toda sua vida como tempo, currículo programático ou avaliação
escolar... Outros alunos já têm atividade do conhecimento específico. Ao trabalhar as noções
docente. Alguns, porque fizeram o magistério de “horizontalidade” na relação professor aluno, por
no ensino médio; outros, a maioria, porque são exemplo, noto um interesse crescente na discussão,
professores a título precário. Sabem, mas não mas uma vaga noção do caráter operacional da
se identificam como professores, na medida em mesma, o que traduzo como sendo uma temática
que olham o ser professor e a escola do ponto que funciona de forma catártica, mas que
de vista do ser aluno. O desafio, então, posto dificilmente poderá ser vista como instrumento de
aos cursos de licenciatura é o de colaborar no atuação profissional, ou até mesmo, segundo Veiga
processo de passagem dos alunos de seu ver o (1997), como “pressuposto” à formação do
professor como aluno ao seu ver-se como profissional de educação. De forma consciente ou
professor.” (1999:43) não, é através desta atuação em classe e reflexão
Tal problemática insere-se em um contexto dentro e fora dela que nós conseguimos trabalhar a
acadêmico, por vezes contraditório, que forma importância de avaliar a relação professor-aluno
licenciados resistentes à idéia de trabalhar como no contexto educacional.
professores (!?!). Desta forma passam pelo curso A questão disciplinar na escola, por exemplo,
de licenciatura, divididos entre disciplinas de pode ser vista como um elemento de fundamental
conhecimento específico e disciplinas de educação, importância no desenvolvimento do trabalho do
como se as mesmas não fizessem parte de um mesmo professor. As diversas formas de lidar com o outro
contexto e se tornassem indispensáveis a um no ambiente escolar e o caráter subjetivo, e de
trabalho pedagogicamente significante e equilibrado. tamanha complexidade, inserido no comportamento
A impressão que tenho é que as disciplinas “de dos sujeitos em sala de aula, significam um excelente
educação” acontecem no meio do curso de ponto de reflexão na análise da relação professor-
licenciatura como anexas de um trabalho aluno.
acadêmico. Fazem-se necessárias mas não se fazem As relações de poder que estão inseridas na
integrantes do processo, são outsiders, têm a escola são vivenciadas e interpretadas de formas
linguagem do outro, vivem um outro referencial diversas e sob diferentes representações por seus
acadêmico. Ao trabalhar com tais referências, sujeitos. O comportamento do aluno, diante da

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autoridade do professor, pode significar a leitura como ensinar em uma dinâmica social bem diferente
que o mesmo faz desta relação de poder. É evidente do que a priori imaginava ter diante de si. Alunos
o grau de ansiedade nos discursos dos alunos dos desinteressados, rebeldes e muitas vezes agressivos
cursos de licenciatura 4 ao exercer a prática - ou os “alunos concretos” 5 - amedrontam o
pedagógica e defrontar-se com uma dinâmica, por professor, que vê na in-disciplina um dos grandes
demais familiar e paradoxalmente desconhecida, que problemas de sua carreira.
é a questão da disciplina/indisciplina escolar. Segundo Vasconcelos (1998:39):
Reconhecemos que a questão da disciplina/ “O conceito de disciplina associado à
indisciplina escolar é pautada em um contexto obediência está muito presente no cotidiano da
político-social amplo e complexo que está implícito escola, mais ou menos conscientemente; isto
e explícito na relação escola-professor-aluno e que porque há uma verdadeira “luta em classe”
não pode nem deve ser desmerecido... onde o professor está procurando sobreviver,
“o conceito de disciplina acha-se num contexto de tantos desgastes. O trabalho
intrinsecamente vinculado ao conceito de poder do educador é estressante; ele procura um
que, em seu sentido etimológico, significa uma pouco de paz para poder respirar; daí esperar
atividade social que se propõe garantir pela o comportamento dócil, passivo do aluno. É
força, fundada geralmente no direito, a claro que esta expectativa se coloca a partir do
segurança externa e a concórdia interna de uma círculo de alienação em que se encontra, onde
unidade política particular (Lebrun,1991). seu desejo, alienado, não busca a interação, o
Portanto, poder está ligado à dominação, encontro, a comunicação, mas o isolamento, o
embora nem sempre esta dominação seja fechamento, a obediência a submissão (...).
exercida pela utilização da força física direta. Querendo resolver o problema, na verdade,
Pode ser exercido de forma simbólica. Por acaba agudizando-o, já que se isola, não entra
exemplo, o poder do charme do ser amado; o em efetiva comunicação com seus alunos, que
princípio de autoridade do professor, o pátrio passam a rejeitar - ainda que de forma
poder.” (Costa/Silva, 1997:69) inconsciente - sua postura”
A (in)disciplina envolve uma problemática do Sabemos que as questões disciplinares podem
comportamento discente diante da representação representar um problema de difícil solução para o
hierárquica da escola - um problema que a própria professor que está iniciando seu trabalho em classe,
escola, muitas vezes, resiste em enfrentar - criando vez que o andamento das atividades planejadas, bem
uma relação ainda mais conflitante para os como o seu conceito como profissional, que precisa
profissionais por ela prejudicados. Não raras são construir uma imagem positiva, podem ser
as vezes que, não tendo o apoio desta instituição, o seriamente prejudicados no cotidiano da escola, o
professor, em sua própria sala de aula, vê-se diante que, de certa forma, justifica a ansiedade dos alunos
de questões éticas e até de sobrevivência ao lidar estagiários.
com comportamentos imprevisíveis e, muitas vezes, É interessante perceber, no entanto, que “A
fora do seu controle enquanto educador. Sentimentos disciplina é também um conceito antropológico.
de fragilidade e despreparação para a realidade que Se há certos comportamentos que são amplamente
enfrentam fazem de muitos desses profissionais inaceitáveis, existem aqueles que são aceitos por
pessoas preocupadas, ansiosas e desanimadas com uns e rejeitados por outros. Ou seja, a disciplina,
o trabalho que se propõem e precisam fazer, em um antes de mais nada, precisa ser contextualizada e
contexto para o qual não foram preparados para historicizada” (Tura, 1997:80)
atuar. Podemos, por exemplo, partir da análise de Veiga
Desta forma, a questão da disciplina escolar (1995) ao utilizar a expressão “aluno concreto”,
passa a ser uma questão complexa no dia a dia do descrevendo o aluno como um personagem real, não
professor que, ao concentrar-se no que vai ensinar, necessariamente e intencionalmente rebelde ou
não se prepara para os possíveis inconvenientes do problemático, mas, muitas vezes, o ser social que

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faz parte do nosso dia a dia, que vive e se forma na por causa de faltas na caderneta” (Marcelo, 6º
nossa sociedade e, por conseguinte, é integrante da semestre, experiência docente de 6 meses em
nossa realidade. escola pública)
“São provenientes dos mais distintos meios No entanto, podem ter uma outra significação,
socioculturais, com valores e expectativas, quando estes mesmos alunos assumem a sala de
interesses e experiências decorrentes de suas aula, enquanto professores, e passam a se confrontar
condições concretas de vida e, muitas vezes, de com realidades que urgem tais procedimentos.
trabalho, que não poderão ser ignorados pelo “As provas são importantes; outro dia me peguei
professor” (Veiga, 1995:92) falando para meus alunos assim: cuidado, este
O aluno concreto pode ser visto nos alunos que assunto vai cair na prova!! Você sabe que
professores classificam de “desinteressados”, ou resolveu? Depois, fiquei pensando nisto e morri
mesmo nos alunos que resistem ao trabalho que a de vergonha de fazer o que sempre odiei ouvir
escola se propõe a fazer, por não se identificar com dos meus professores na escola!!!!” (Andréa, 5 º
a mesma, sentindo-se rejeitado pela instituição e suas semestre de letras vernáculas)
representações, ou por simplesmente não conseguir Confrontar tais posturas, no intuito de re-avaliar
funcionar ‘eficazmente’ diante dos parâmetros e nossos valores e expectativas no que concerne o
valores da própria escola. trabalho em sala de aula, constitui uma excelente
Assim nos defrontamos com uma realidade contribuição da Didática na formação do futuro
complexa nas escolas, onde professores, sem as professor.
condições mínimas de trabalho, fragilizados, em sua O segundo passo é entender a relação de
maioria, pela própria formação e postura horizontalidade como uma prática docente que
profissional, estão lidando no dia a dia com alunos acredita em alunos como seres pensantes e
que rejeitam a escola e tudo que a mesma representa, autônomos, capazes de possuir opiniões semelhantes
em um conflito diário, desgastante e perigoso, no ou divergentes e capazes de expressá-las com
lugar de um trabalho pautado na cooperação, segurança e amadurecimento no contexto da sala
entendimento e construção do saber. de aula. Desta forma, o conceito de (in)disciplina
Desta forma, questiono o que poderíamos fazer assumirá um caráter muito mais subjetivo do que
para desenvolver no nosso aluno, futuro professor, originalmente pensávamos existir.
uma postura profissional pautada numa relação Perceber a reação do aluno “indisciplinado”,
democrática, sem, contudo, adotar uma postura como uma mensagem que não consegue ser
populista, espontaneísta ou inconseqüente no transmitida de outra forma, pode ser um grande
cotidiano escolar? avanço no trabalho do professor que busca uma
Acredito que, para tanto, precisaríamos dar certa harmonia e produtividade em classe. Pois nem
alguns passos. O primeiro passo seria o de todo comportamento, tido como “indisciplinar”,
analisarmos as nossas práticas pedagógicas através pode ser visto como uma atitude negativa por parte
do que somos (enquanto alunos) e do que nos do aluno.6
propomos a ser (enquanto professores). “Se o controle perfeito da disciplina não
Venho testemunhando, no decorrer da minha permite, segundo Foucault, que se lhe escape o
experiência docente, os depoimentos que repudiam mínimo detalhe, é exatamente, na possibilidade
atitudes disciplinares por parte do professor: rigores de atuar sobre aquilo que foge ao controle, que
em relação à pontualidade, assiduidade, entrega de os movimentos de resistência se constituem.
trabalhos, avaliações etc. Tais depoimentos encaram Nisto está seu desafio e ousadia. No campo da
estas atitudes como práticas por demais rígidas e educação, os autores que aderiram a este
“autoritárias” da docência. paradigma têm estudado certos
“A chamada é uma arma do professor, e quando comportamentos que tradicionalmente foram
eu estiver em sala vou querer que meu aluno definidos como indisciplinados ou desviantes,
frequente as aulas porque gosta de mim e não sob a ótica da resistência, que lhes confere

188 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 185-193, jan./junho, 2000


positividade.” (Tura, 1997:84) Podemos compreender aqui autoridade no seu
É neste contexto que surge a postura mediadora sentido mais radical e transformador que é a
do professor que não vê o aluno como uma ameaça capacidade de fazer o outro autor. Em função
mas como um/a parceiro/a em seu trabalho, um/a disto, o professor deve viver esta eterna tensão
parceiro/a que precisa de organização, entre a necessidade de dirigir, orientar, decidir,
compromisso, seriedade e desejo de realizar um limitar e, a necessidade de abrir, possibilitar,
trabalho significativo. Como temos consciência da deixar correr, ouvir, acatar.” (1997:100)
complexidade de tal ação, nos confrontamos com a Assim o aluno é co-autor do trabalho
eterna busca por uma posição intermediadora entre desenvolvido em sala de aula e o professor o parceiro
a “autoridade” legitimada7 (e muitas vezes exigida) de cada aluno, ajudando-o no processo de
pela escola e a necessidade da postura democrática crescimento para a autonomia. Desse modo
na efetivação do trabalho. imprime-se uma relação pedagógica prazerosa sem
Segundo Veiga, a “relação de horizontalidade” negligenciar a seriedade e o compromisso exigidos
é necessária a um trabalho baseado no respeito dual para a construção do conhecimento.
entre alunos e seus respectivos professores: É complicado, no entanto, conseguirmos passar
“O diálogo ocorre a partir da própria esta concepção de forma clara e objetiva em
experiência do aluno e em função dos contextos por demais viciados em relações verticais
problemas a serem enfrentados no contexto de aprendizagem. A depender do contexto, claro,
social. O diálogo abre espaço para o aluno tais iniciativas podem tomar uma leitura bem diversa
participar, aprender, descobrir, criticar, criar. do que originalmente teríamos em mente.
Para tanto, será necessário estimular o Desta forma o terceiro passo seria o de
comportamento de independência e o assegurar a proposta de trabalho como uma opção
pensamento divergente do aluno. Assim, o aluno teórica fundamentada e justificada em sua íntegra,
deve ser incentivado a questionar, argumentar, ou seja, acreditar e compreender o porquê de atuar
contra-argumentar, avaliar, explicitar seus dentro desta perspectiva, para que, ao primeiro sinal
interesses e necessidades objetivas, suas de resistências e questionamentos, o professor se
expectativas, de modo a definir objetivos sinta seguro para manter sua proposta de trabalho
comuns.” (1997:95) na escola.
O que de forma alguma implica em uma postura Por exemplo, o medo de “não ser levado à sério”
espontaneísta de trabalho, paternalista em relação pelos seus próprios alunos e colegas é uma
ao aluno ou um trabalho sem organização do espaço preocupação real, e pode comprometer todo um
e tempo, caracterizado por uma atitude trabalho que implique na construção desta relação
desinteressada por parte do professor e aluno. Muito horizontal entre professor e alunos.
pelo contrário, como já afirmei anteriormente, a “Ao chegar na escola na primeira semana de
relação desejável parte do pressuposto que estágio e pedir que os alunos me ajudassem na
trabalhemos conjuntamente com nossos alunos, elaboração de um programa de curso com
sendo necessário que se ouça o que eles têm a dizer sugestões de avaliações e atividades, percebi que
e o que podem sugerir neste processo. É necessário eles não me levaram a sério e chegaram a
que se integrem ao nosso trabalho, em vez de se comentar pelos corredores que eu não tinha
submeterem ao mesmo. segurança para estar ali, pedindo ajuda até para
Segundo Vasconcelos, “A autoridade fazer o meu trabalho” (Rosana, 6º semestre do
pedagógica é uma prática complexa e curso de História, dando aula em escola pública,
contraditória, pois a autêntica autoridade leva à noite)
em si sua negação, qual seja, a construção da “Quando cheguei na escola em que trabalho e
autonomia do outro. A própria palavra latina falei que gostaria de fazer uma avaliação
auctoritas (autoridade) vem de augere e indica diferente com meus alunos da oitava série, a
uma atitude que faz o outro crescer (...) coordenadora falou que não podia. Me disse que

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 185-193, jan./junho, 2000 189


eu era nova e estava chegando agora da municipal)
universidade; por isso eu ‘tinha essas idéias’; A escola parece, muitas vezes, estar fazendo um
com o tempo eu ia aprender com a vida real.” trabalho à parte, sem qualquer colaboração com este
(Tereza, 6 º semestre do curso de Letras, professor, simplesmente estabelecendo regras acerca
estagiando como professora de Português em do que é permitido e do que não é concebível no
escola estadual) território escolar.
Ou seja, o que diante do discurso “democrático O quarto passo, portanto, é tentar trabalhar
e participativo” da academia seria considerado uma junto à escola em momentos de reflexão, discussão
postura adequada ou até mesmo de tamanha e estudos que possam ajudar a todos a atuar dentro
atualidade (para alguns, vale ressaltar!), na escola de uma proposta educacional conjunta, que vise uma
pode ser visto como uma atitude de insegurança ou educação crítica e transformadora, pois a existência
até mesmo incompetência diante do seu trabalho e, de conflitos no ambiente escolar não chega a ser
o que é pior, uma resistência refletida na postura um problema, mas a forma como tais conflitos
dos alunos e dos próprios colegas professores que, passam a ser trabalhados, no entanto, pode gerar
muitas vezes, desmerecem qualquer tentativa de muitos problemas. O trabalho do professor e do
trabalho que implique em uma reflexão sobre a aluno deve estar inserido em uma dinâmica
prática pedagógica, pois: institucional que corresponda às expectativas
“(...) na escola as relações sociais não são educacionais de todos os seus sujeitos. Para tanto
mecânicas nem lineares, pelo contrário, existem propostas nas novas e atuais discussões em
inscrevem-se num jogo dinâmico de torno do Projeto Político Pedagógico Escolar9, onde
contradições em que as formas assumidas pelo
a escola passa a ser parte integrante do dia a dia do
exercício do poder definem as regras desse jogo
aluno, do professor, e demais envolvidos. Passa a
e, por conseguinte, da disciplina.” (Costa/Silva,
ser construída coletivamente, pois, acredito, rejeita-
1997:70)
se menos o que se ajuda a construir...
Desta forma, nos deparamos com o eterno
“compete àquele que lidera seus educandos
conflito: o que se discute teoricamente na
universidade não é o que se aplica na escola; o que auxiliá-los a não fazer uma linguagem
se ouve, enquanto aluno 8, não é o que se faz, fantasiosa da vida cotidiana, como se esta fosse
enquanto professor (de novo a relação fragilizada apenas um grande brinquedo. Para deixar
entre a teoria e a prática prejudica o processo de nascer a disciplina não é nem nunca foi
formação do educador). necessário sufocar o lúdico ou eliminar a
“O diretor da minha escola já avisou que lá não alegria. A vida não é isto ou aquilo, mas na
se ‘dá mamata’ a aluno, o negócio é ser rígido e verdade isto e aquilo.” (Morais, 1997:28)
impor respeito. A participação do aluno é fazer Por isso, insisto, cabe a nós professores e futuros
cópia, ditado e questionário, pois tendo o que professores refletir sobre a condição do trabalho
fazer eles não terão tempo de procurar docente, tentando redimensioná-la em função de um
confusão!” (Laís, 6º semestre de Letras trabalho conjunto na realidade de cada escola. Esta
Vernáculas dando aulas de estágio em escola reflexão ajudará na avaliação de nossa própria
municipal) prática, indicará novos rumos ou retomará os velhos
“Outro dia houve um problema com um aluno conceitos, re-dimensionando a postura ideal/real na
na minha sala e procurei o diretor da escola para sala de aula.
me ajudar, ele virou e disse: não adianta, deixe No quinto passo, afirmo, é necessário a
ele para lá, já temos muitos problemas com ele experiência prática da sala de aula no processo
e o professor que provocá-lo só sairá perdendo. de formação do aluno de licenciatura. Esperar
No fim do ano ele vai passar de ano e sair da que chegue ao 7º ou 8 º semestre, para expe-
escola de vez.” (Débora, 6º semestre de Letras rienciar o que foi lido e discutido desde o 4º
Vernáculas, dando aula em escola pública e 5º, é legitimar a dualidade perigosa entre

190 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 185-193, jan./junho, 2000


ensino/pesquisa e teoria/prática. • a valorização da prática pedagógica e a
“Enquanto aluna, tenho muitas vezes responsabilidade dos professores e do estagiário
‘apedrejado’ alguns dos meus professores que diante dela;
têm agido por meio desta redução do ser humano • a compreensão da complexa dinâmica da sala
ou que, talvez, simplesmente não tenham-se de aula, com seus agentes, histórias e contextos
encaixado no modelo que eu convencionei como diversos;
ideal... No entanto, ao chegar na sala, verifico • a importância da metodologia no trabalho do
que não sou diferente. Tenho avaliado meus professor e, conseqüentemente, sua influência
alunos apenas pelo desempenho que eles na compreensão do conteúdo e na reação dos
apresentam em minha disciplina, nunca procurei alunos diante do mesmo;
saber de seu desempenho em outras áreas ou da • o fortalecimento do trabalho interdepartamental
capacidade deles em aprender e criar... tenho na tentativa de romper com preconceitos e
reduzido meus alunos da mesma forma que estereótipos no que tange às disciplinas de
sempre fui reduzida por alguns professores de
conhecimento específico e de educação;
português pelo fato de sempre ter apresentado
• a garantia da relação ensino-pesquisa;
dificuldades ortográficas. Todavia, alguns
• a conscientização do aluno de que a grande
levaram em conta a minha facilidade com
parcela do mercado de trabalho do curso de
interpretação e produção de textos e assim me
licenciatura está na docência.
ajudaram a superar alguns bloqueios e, ainda
por cima, me trouxeram ao curso de letras, que São muitas as questões em torno do trabalho
tanto gosto.” (Kátia, 6º semestre do curso de docente na realidade educacional que temos. A
Letras Vernáculas, dando aulas de Português no indisciplina escolar, como vimos, pode fazer parte
ensino médio, escola pública noturna) de um contexto que ultrapassa a fronteira da escola,
A angústia deste depoimento traduz, independe da “performance” do professor, ou das
paradoxalmente, a reprodução de uma atuação intenções acadêmicas que trazemos para a nossa
docente que a marcou negativamente enquanto prática.
aluna, embora tenha consciência de que, enquanto Acredito que a Didática, como muitos outras
professora, persiga o exemplo docente dos que nela disciplinas em educação, não se propõe a responder
apostaram e a eles atribui a conquista do espaço ou a resolver tais questões, que, sabemos, têm raízes
que tem na universidade. Ressalvo, neste no contexto macro de nossa sociedade... porém
depoimento, que a aluna, ao analisar-se, enquanto discutir, refletir, colocar em perspectiva nosso
professora, redimensiona sua prática estudantil, trabalho de sala de aula e nossas aulas reproduzidas
avalia-se, ao avaliar seus professores, e consegue, em outras aulas faz parte do processo de formação
desta forma, construir sua própria compreensão do do educador em sua totalidade, e busca uma
papel do educador e sua responsabilidade social. dinâmica que só legitima o curso de Didática.
No último e sexto passo, gostaria que nós Assim, acreditando na relativa autonomia do
(professores, alunos, colegiados e departamentos), trabalho do educador, insisto na necessidade da
ao analisarmos o curso de licenciatura, nos valorização da Didática (e demais disciplinais tidas
detivéssemos nas seguintes questões: como “de educação”) que, ao trabalhar com as
• a necessidade de entender o conteúdo relações sociais, culturais e psicológicas inseridas
acadêmico como um possível conteúdo na escola, poderão trazer indispensáveis
pedagógico que será utilizado por nosso aluno contribuições ao processo de formação do futuro
lá fora; professor.

NOTAS
NOTAS

1
Pedagoga, Mestre em Sociologia da Educação pelo Professora assistente de Didática na Universidade
Institute of Education - Universidade de Londres. Estadual de Feira de Santana.

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 185-193, jan./junho, 2000 191


2 5
O curso de Didática é geralmente ministrado no 5º Ver “aluno concreto” em Veiga (1995) “A construção
semestre dos cursos de Licenciatura, e como já afirmei, da Didática...” p. 92.
embora os alunos ainda não tenham passado pela
6
disciplina de “estágio” na universidade, um significativo Ver P. Willis “Aprendendo a ser trabalhador: escola,
número de alunos já vivenciam o estágio através de resistência e reprodução cultural”
programas de recrutamento de estagiários pela 7
secretarias de educação do município e estado. Refiro-me apenas a uma representação hierárquica
na palavra “autoridade”, não me detendo no momento
3
“A horizontalidade caracteriza-se pela existência do na complexidade de seu conceito.
diálogo que, por sua vez, implica ‘responsabilidade,
8
direcionamento, determinação, disciplina, objetivos’ Faz-se necessário afirmar que esta postura não é
(Freire, 1986) em I. Veiga “A construção da didática comungada por todo e qualquer professor universitário,
numa perspectiva histórico-crítica da educação, estudo sendo muitas vezes comum a resistência em relação à
introdutório”, 1995. “horizontalidade” em sala de aula, dentro da própria
4
Depoimentos (escritos e verbais) que foram colhidos academia.
ao longo dos meus dois anos de trabalho com alunos de 9
“Reflexões em torno do projeto político pedagógico”,
licenciatura na Universidade Estadual de Feira de Veiga, 1999.
Santana.

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192 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 185-193, jan./junho, 2000


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ZABALA, Antoni. A prática educativa – como ensinar. Porto Alegre, RS: Artes Médicas Sul Ltda, 1995.

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 185-193, jan./junho, 2000 193


UM OLHAR SOBRE OS CONTOS
ACUMULATIVOS
Bolsista: Ana Débora Alves Ferreira
Orientadora: Edil Silva Costa
Professora da Universidade do Estado da Bahia

Resumo* was applied to the cumulative tales. The so called


cumulative folktales show us a concatenated series
of events that are put together with out any break.
O presente trabalho é uma tentativa de aplica- The aim of this paper is both check how far is the
ção, no estudo dos contos acumulativos, da teoria Propp’s theory applicable and to find an inner
formulada por Propp para os contos maravilhosos. structure to the cumulative tales. We use the
Os contos chamados acumulativos apresentam uma comparative method and from the corpus (38
seqüência encadeada de elementos e acontecimen versions), we took in detail the tale “A Formiga e a
tos que se articulam e se acumulam, numa série inin- Neve”.
terrupta, ao longo da narrativa. O objetivo do tra-
balho é a um tempo testar a aplicabilidade da teoria
de Propp a outros tipos de contos(no caso, os acu- Introdução
mulativos) e analisar/observar como se comporta a
estrutura interna particular desses contos. Através Vladimir Propp, com seu livro Morfologia do
do método comparativo e dentro do corpus obser- Conto Maravilhoso (1928), dá uma grande
vado (38 versões), faço um recorte para o estudo contribuição para o estudo dos contos orais. O autor
mais detalhado, com versões do conto “A Formiga demonstra que a especificidade do conto
e a Neve”. maravilhoso não residia nos seus motivos, ou seja,
Abstract as menores unidades temáticas do texto, já que
motivos semelhantes existem em vários tipos de
Vladimir Propp, in his Morphology of the contos. Para o autor, existiriam algumas unidades
folktale (1928), suggests to separate the folktales estruturais em torno das quais se agrupavam os
by the functions of their character. Propp’s theory motivos, a que ele chamou de funções. Propp propõe
distinguir os tipos de contos a partir das funções.
A partir desse estudo comparativo percebi que:
1) os estudos estruturais são de importância
∗ O Núcleo de Estudos da Oralidade (NEO) pesquisa a fundamental para o desenvolvimento de uma Teoria
Literatura Popular e História Oral, abarcando as da Literatura aplicável aos textos orais; 2) pode-se
microrregiões do Nordeste baiano, principalmente a
região de Alagoinhas e cidades vizinhas (Pojuca, Catu, testar a aplicação das funções de Propp em outros
Inhambupe). O projeto abre espaço para ouvir a voz tipos de contos; 3) as classificações estruturais e
tradicional do interior baiano, contribuindo para que temáticas não são mutuamente excludentes e sim
este rico material, através do registro desses textos da partes constituintes de um processo de análise.
tradição oral, não se percam ao sabor do tempo. O acer- Após a análise do corpus, do ponto de vista
vo do NEO é constituído por um valioso material refe-
rente à oralidade, nem tanto quantitativo, pois o NEO
temático e morfológico, percebo a importância da
tem pouco tempo de vida, mas bem diversificado: ane- estrutura para a permanência e conservação do texto
dotas, cantigas, rezas, depoimentos, advinhas, casos, na memória coletiva, uma vez que a variação,
contos etc. Neste trabalho, os contos são tomados como processo inerente à transmissão oral, se dá a nível
objeto de estudo, particularmente os contos temático e figurativo, não atingindo a estrutura do
acumulativos. texto.
Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 195-203, jan./junho, 2000 195
Analisando os contos populares pertencentes ao italiano Giovanni Boccaccio, publicada em 1353.
corpus desse estudo, nota-se que apesar de o texto Muitos dos seus relatos saíram da tradição oral
oral (enquanto texto virtual) ser único, cada versão popular. Isso vai acontecer com outras publicações
de uma mesma história apresentava “algo” que também.
variava e “algo” que se mantinha, O conto já vem de longe, de longo tempo. Uma
independentemente do narrador, apontando para o das mais antigas coletâneas de contos folclóricos
fato de os contos possuírem uma invariante, apesar do Antigo Oriente, data provavelmente de
das inovações e variações que o narrador, o público, primórdios do século X. Nos contos de Sherazade,
enfim, o espaço e o tempo determinam, ao longo em Mil e Uma Noites, através do ato de contar, a
dessa jornada, de geração em geração. É essa tensão vida vence seu duelo com a morte. Temos o contar
entre invariante e variante a responsável pela como ato criador e vontade transformadora da vida
permanência do texto oral através dos tempos. e da realidade que nos limita. Na obra Decameron,
já citada, seus dez personagens fogem de Florença,
As Duas Faces do Conto assolada pela peste de 1348. Também buscando
vida, tecem narrativas oralmente. Ao longo de dez
dias, cada um faz seu relato, relatos esses que
O conto enquanto relato se encontra tanto na
compõem as cem narrativas desta obra. O ato de
tradição oral popular, quanto na literatura escrita.
contar está intima e inexoravelmente ligado à
Em língua portuguesa, o termo “conto” tanto serve
existência humana.
para designar a forma popular, folclórica, de criação
coletiva da linguagem, oralmente transmitida de
geração em geração, como também a forma artística A Fundamentação Teórica
elaborada pela escrita, advinda de um estilo
particular, individual de um certo escritor. O que É sabido que os estudos relativos ao conto
não ocorre em outras línguas, por exemplo: a popular a partir dos anos 20, tomam uma nova força
inglesa, a alemã, a italiana etc. que vão empregar e um caráter mais sistemático com os estudos
termos distintos para cada uma dessas modalidades. morfológicos de Vladimir Propp. Essa ênfase na
Essas modalidades do conto apresentam feições sistematização não se deveu a um aumento da
e características peculiares. A tradição oral define quantidade de material disponível à pesquisa, mas
o conto segundo critérios ligeiramente diferentes. a uma mudança de estratégia metodológica que se
Segundo Michèle Simonsen, o conto popular fazia necessária. Não havia nem uma classificação
apresenta critérios mais precisos, inclusive nem uma terminologia unificada; havia sim, uma
“resultado da conjunção de vários fatores dificuldade de nitidez e de precisão agravada pela
heterogêneos: oralidade, ficticidade confessa, natureza diversa do material que constitui os contos.
estrutura arquetípica particularmente obrigatória, Michèle Simonsen em O Conto Popular, diz que
função social no seio de uma determinada os folcloristas tentam classificar os contos segundo
comunidade, principalmente rural.”(Simonsen, critérios heterogêneos; não há um critério comum
1984:2) que permita uma classificação mais geral e coerente.
O Conto, na sua forma escrita, provavelmente Chega a exemplificar o caso do catálogo francês
surgiu, como fala Luzia de Maria em O Que é Delarue-Tenèze que segue os procedimentos do
Conto, de um prolongamento ou ramificação das Índice Internacional Aarne-Thompson. Tomando
antigas narrativas da tradição oral – sua primitiva como exemplo os contos de animais, a autora fala
forma. que teoricamente é difícil justificar esta categoria
As primeiras coletâneas de estórias curtas enquanto tal, uma vez que os animais têm papel
apresentavam as duas modalidades indife- importante tanto nos contos maravilhosos como em
rentemente, não se preocupando em distinguir o que alguns contos humorísticos. Tanto os contos
pertencia ao domínio coletivo e o que era criação maravilhosos como os humorísticos têm como
do autor, como é o caso de Decameron do escritor protagonistas seres humanos, ogros ou animais e

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existem sob várias formas, reunindo relatos de temas especificidade do conto maravilhoso (seu objeto de
bem diversos. O conto “O Macaco e a Negrinha de estudo) não residia nos seus motivos, ou seja, as
Cera”, por exemplo, recolhido por Cascudo e menores unidades temáticas do texto, já que motivos
publicado em Contos Tradicionais do Brasil, é semelhantes existem em vários tipos de contos.
classificado entre os contos de animais. Mas este
macaco da história é encantado. Sabe-se que alguns Propp distingue os tipos de contos segundo as
autores tomam como critério o fato de nos contos variedades das funções. Para o autor, existem
de animais, estes terem unicamente características algumas unidades estruturais em torno das quais se
humanas e que há recusa do sobrenatural nestes agrupam os motivos, a que ele chamou de funções
contos (o que não ocorre com os animais dos contos ou ações dos personagens; estas ações se repetem,
maravilhosos, na maioria das vezes dotados de sendo portanto invariantes. Assim, sugere distinguir
poderes mágicos). Nesse caso, como decidir sua os tipos de contos a partir das funções. Ele detectou
classificação? Poderia ser este conto classificado
como de encantamento ou como conto de animal, 31 funções, não sendo todas obrigatórias, porém,
como fez Cascudo? Ou quem sabe como conto obedecendo a uma ordem fixa.
acumulativo, já que o próprio Cascudo define estes O presente trabalho representa uma tentativa de
contos como aqueles que apresentam episódios aplicação das funções de Propp a um outro tipo de
sucessivamente articulados? Observemos por conto popular, o conto acumulativo, buscando
exemplo: observar a estrutura interna deste, para assim melhor
(...) Deu-lhe uma bofetada, ficando com a mão poder acompanhar e compreender a tensão entre
presa na cera. invariante e variante, seu caminho e transformação
Negrinha, solta minha mão, senão eu te dou ao longo dos anos e seu contar de geração em
outra bofetada. geração.
A Negrinha calada. Ele aí deu-lhe outra
bofetada, ficando com a outra mão presa. Os contos acumulativos,
Negrinha, solta minha mão, senão eu te dou delimitação do corpus
um pontapé.
Deu um pontapé.. .(Cascudo, s.d.) Por ser o NEO ainda muito jovem e não dispondo
Sendo assim, o que levou Cascudo a determiná- seu acervo de muitas versões de contos acumulativos
lo como conto de animal? De que critérios parte (apenas sete), vem contando com a colaboração do
este autor? Percebe-se que as classificações são Programa de Estudo e Pesquisa da literatura Popular
precárias e confusas, uma vez que misturam da UFBa, que gentilmente cedeu 28 versões de
critérios. No caso de Cascudo misturam-se o critério contos acumulativos; a este número foram
temático e o estrutural. acrescentados mais três contos publicados em
É diante deste quadro que Vladimir Propp vai Contos Populares do Brasil de Sílvio Romero (duas
chamar a atenção para a necessidade de um estudo versões de Sergipe e uma de Pernambuco).
mais sistemático e universal, que não dê margem Observando este corpus de 38 versões de contos
para tantas imprecisões como por exemplo, as que acumulativos, partiu-se das funções de Propp, não
observamos nas classificações genéticas e por da maneira específica ao conto maravilhoso, mas
assuntos, relativas aos contos populares (popular, estendendo-as, ampliando seu campo semântico
quer dizer de característica específica de persistência para o sentido mais geral e objetivo. Tentou-se
pela oralidade). No seu livro A Morfologia do Conto detectar nestes contos, se ali presentes as funções,
(1928), obra que só será conhecida no Ocidente a de que maneira estas se organizavam e se
partir dos anos sessenta, Propp considera que antes distribuíam no corpo do texto; se há uma ordem
mesmo do estudo genético e semântico do conto é fixa ou não; se os diversos tipos de contos
preciso seu estudo morfológico. Para isso, analisou acumulativos têm o mesmo número de funções, etc.
cem versões de contos maravilhosos russos E assim, identificar quais elementos variavam e os
tradicionais, não segundo seu assunto, mas, segundo que não variavam no texto produzido pela oralidade,
sua estrutura. Demonstrou, a partir daí, que a buscando chegar às unidades estruturadoras destes.

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Dentro do corpus observado, foi feito um recorte, não ser perguntadeira!
para estudo mais detalhado com versões do conto Nesse exemplo temos simultaneamente, a
“A Formiga e a Neve”. transfiguração e a punição.
Algumas versões apresentam seqüências em que
“A Formiga e a Neve” uma dada função é omitida no ato da narração, pois
o informante esquece, se perde ou passa
precipitadamente para a próxima função. Isso não
Comecemos pelo resumo da história: a formiga quer dizer que ela não exista, mas que está omitida.
prende seu pé na neve. A partir dessa situação Podemos identificar o espaço vazio deixado,
problema ela busca ajuda. Através do diálogo, tenta confirmando a fala de Propp, na obra já citada, de
descobrir quem é forte, quem pode tirá-la dessa
que há contos que apresentam uma forma
situação, para assim ter livre acesso, voltar a ter
liberdade. Nessa busca, cria-se uma cadeia de incompleta do esquema de base. A falta destas em
comunicação que a remete sempre a uma nova nada modifica a estrutura do conto. As outras
informação e consequentemente a uma nova funções permanecem no seu lugar. Esta falta, na
descoberta. Através desses contatos, ela vai verdade, representa uma omissão. Dificuldades
aprendendo a desvendar o mundo: como funcionam dessa ordem são enfrentadas pelo pesquisador e
suas leis, a função que cada elemento ocupa e estudioso das narrações orais, pela própria
desempenha... É apresentada à cadeia hierárquica característica de virtualidade destes textos.
de poder deste mundo. Cadeia esta que vai
Como vimos, os contos acumulativos são contos
progressivamente dos elementos inanimados (neve,
sol, nuvem, etc.) aqui personificados, para o que apresentam uma seqüência encadeada de
animado (homem), até chegar ao sobrenatural – elementos e acontecimentos que se acumulam e se
Deus (desdobrado metonimicamente, em algumas articulam, numa série ininterrupta ao longo da
versões, como a morte), que a tirará desta situação narrativa. Nas palavras de Câmara Cascudo, em
ora salvando-a, ora punindo-a. Contos Tradicionais do Brasil, são contos nos quais
Foram analisadas 12 versões. Em todas foram os episódios são sucessivamente articulados. Em
encontradas 7 das 31 funções de Propp. Funções momento posterior, o mesmo autor acrescenta: “(...)
fixas que se repetem, não na mesma ordem dos são pequenos contos de palavras ou períodos
contos maravilhosos, mas dispostas em uma nova encadeados, ações ou gestos que se articulam,
ordem, também fixa (variando o número de
repetições destas seqüências, de uma versão para numa série ininterrupta”. Regina Zilberman
outra), são elas: 1) o afastamento, 2) a interdição, completa ainda que, nos contos acumulativos, tudo
3) o dano, 4) o interrogatório, 5) a carência/falta e se concentra num único espaço, num tempo contínuo
5.a) a divulgação da falta, 6) a informação e 7) o e sem cortes; onde a proposição do problema à sua
desfecho. O que não se altera é o número de funções solução processa-se por acumulação.
do conto, que é fixo. Há, no entanto, uma Os elementos presentes nas cadeias de cada
particularidade: a função encarregada do desfecho versão (neve, sol, nuvem, vento, etc.) são em número
é a única que varia de uma versão para outra, de oito a dez. Sendo que, em algumas poucas
ficando sempre entre estas três: salvamento, versões, este número pode chegar a treze. Estes
transfiguração e castigo/punição. Em algumas novos elementos inseridos na cadeia podem ser
versões, aparecem duas dessas ao mesmo tempo,
motivos de outros contos. A essa situação Propp
como por exemplo: vai chamar de “lei da permutabilidade”, ou seja,
Deus disse a ela: nos contos populares há um traço particular e
– Eu sou tão forte que vou lhe quebrar pelo específico: suas partes constitutivas podem ser
meio e lhe jogar lá embaixo pra você deixar de transportadas sem nenhuma mudança para outro
ser perguntadeira!1 conto. No entanto, estes novos elementos inseridos
Aí quebrou ela pelo meio, jogou do céu cá não vão alterar o número fixo de funções,
embaixo. Ela se juntou os pedacinhos e aí ficou responsáveis pela composição da estrutura interna
com aquela cinturinha bem fina até hoje, pra do conto em questão. Essa cadeia de elementos segue

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também uma ordem. Em algumas versões, elementos No texto oral tanto a variante depende da
estão ausentes, mas isso não altera a hierarquia da invariante como vice-versa, ambas dialogam entre
cadeia – um vem sempre depois do outro, cada um si intensa e constantemente. A variante sozinha,
com seu lugar definido, marcando sua posição. perde o referencial, também não tem força de
Observando as outras histórias acumulativas permanência. Como diz Bráulio do Nascimento em
como “O Macaco de Angola”, conhecida também sua comunicação Literatura Oral: Limites da
como “O Macaco e o Rabo”, “A Cuca”, “A Galinha Variação, apresentada no IX Encontro da
e o Fim do Mundo” e “A Árvore e a Montanha”, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
comparadas com “A Formiga e a Neve”, conclui- em Letras e Lingüística - ANPOLL: “a liberdade
se que cada história acumulativa tem sua forma de ação das variantes, está sempre limitada pelas
peculiar de acumular acontecimentos e elementos, fronteiras do campo fabular.” (1994:2).
a depender do enredo e da temática abordada. Não É interessante citar a variação que aparece numa
existe uma fórmula única para todos os contos versão de uma senhora de 56 anos, natural de
acumulativos. As funções se arrumam segundo Boipeba-Ba. Na sua história da Formiga, vão
certas particularidades, e seu número não é fixo para aparecer o pote e o cipó, (elementos que fazem parte
todas as histórias. da cultura local). A formiga vai pegar água na fonte
e embaraça seu pé num cipó “que tinha uma neve”.
A neve é um elemento que não faz parte da realidade
Variação e invariação:
nordestina. A presença do cipó (misturado à neve)
tensão necessária
vem para endossar, para justificar o contexto. Numa
versão de Alagoinhas, contada por uma criança, a
O texto oral mantém relações de tensão entre a história ganha inclusive outro título: “A formiguinha
invariante (estrutura interna unidades estruturadoras e o pé de neve”; pé aí significa planta. O pé de neve
– função dos personagens) e a variante (as traz embutida a concepção de vida de um povo que
atribuições dos personagens, a expressão pessoal vivencia e acredita que para que as coisas existam,
do narrador, as articulações e adaptações dos aconteçam, deve-se imitar a natureza; tem de passar
recursos da linguagem no seu tempo e no seu espaço, pelo processo: nascer, crescer/desenvolver e morrer,
etc.). É essa tensão constante entre uma e outra que deve-se plantar, daí a popularidade da frase da Carta
mantém a oralidade viva, circulando e se de Caminha: “Nessa terra, em se plantando, tudo
perpetuando. É o que permite que este fio que a dá”. A neve aqui não cai do céu, nem tampouco de
conduz ao longo dos tempos não se rompa e se perca pára-quedas (neve em pleno sertão!), mas “brota”
no caminho. do solo. Solo este que é espaço de realização do
Fazendo uma analogia: o texto oral pode ser nordestino: de sua esperança, de seu sonho, do seu
visto como um corpo vivo e a estrutura interna desse destino. Por detrás deste pé de neve está o trabalho,
texto como o sistema ósseo. É o esqueleto que dá a sobrevivência, a realização, a concepção de mundo
sustentação à parte viva deste corpo (sistemas do nordestino, marcados pelo plantar, semear e
circulatório, nervoso, muscular), parte que varia, colher. É através desse exercício silencioso e árduo
que se renova no dia-a-dia. O sistema ósseo (a que tudo mais pode se materializar, se concretizar
invariante), por si só, não dá conta do corpo vivo (a – brotar na sua vida. O ato de plantar está associado
variante), não consegue nem sequer mover-se, está ao ato da criação, da existência. Em uma outra
fadado à paralisação, à estagnação. O texto oral versão de uma senhora de 67 anos, de Alagoinhas,
depende da adaptação ao meio. Este texto oral reflete não chega sequer a aparecer a neve: “uma
as interferências externas (variantes), provenientes formiguinha fez um buraquinho, fez os filhinhos,
do contexto do qual emerge. Destarte, está sempre veio o sol e matou. Aí ela foi ao sol....” O sol é tido
submetido ao contexto e à função dessa variação como referencial maior. É a partir dele que começa
dentro deste mesmo contexto; assim se atualiza, todo o encadeamento da história, é a partir dele que
assim se mantêm vivo e continua comunicando. a história se encaminha, da mesma forma que o

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destino do nordestino. valores éticos ou concepções de mundo. É
No entanto, é interessante notar que estas fortalecido na memória de sucessivas gerações a
variações não abalarão a estrutura maior (a cada novo contar. É através da forma lúdica que o
invariante). Assim, a variante revitaliza o texto, dá
homem cria artifícios para ensinar e passar
a ele uma cor mais local. O contexto influencia e
provoca a variante, mas esta variante, como diz conhecimentos colhidos e acumulados ao longo de
Bráulio do Nascimento, “vivifica um organismo suas experiências e vivências.
preexistente, a cuja estrutura semântica ela tem Os fatos folclóricos não respeitam delimitações
forçosamente de submeter-se como epifenômeno.” políticas e geográficas, eles se projetam além dessas
(1994:1). Diz ainda que “não se pode romper o fio fronteiras, como nos diz Paulo de Carvalho Neto
que prende a nova variante ao significado em Folclore e Educação. Antti Aarne em seu
tradicional do modelo em processo de reprodução” prefácio do Índice de tipos e motivos de 1910,
(1994:2). A variação não vai abalar a estrutura
falando do conto popular especificamente, confirma
interna do texto, as funções são as mesmas, estas
unidades estruturadoras podem até se arrumar esta situação de transposição de fronteiras
ligeiramente diferentes, mas a variação não vai geográficas:
promover a desfiguração do texto; naturalmente “O conto popular é mais internacional do que
reconheceremos a estrutura tradicional. O próprio qualquer outro ramo do folclore. Os contos
público corrigirá o narrador, caso este se afaste transitam com facilidade de um país para outro,
muito da estrutura tradicional, e não aceitará a sua de um povo para outro. (...) Conseqüentemente
descaracterização, nos remetendo à “lei da
acontece em geral, os mesmos contos são
correção”, formalizada por Walter Anderson (1923,
apud Thompson, 1972:553). Nascimento (1994:5) conhecidos por vários povos, alguns deles na
diz que é preciso observar não apenas o que muda verdade, pelo que se pode avaliar do estado
através da variante, mas o que permanece. atual das coleções, são conhecidos
É esta tensão constante entre força centrífuga e praticamente em toda parte”.2
centrípeta (variante e invariante) que torna o texto “A Formiga e a Neve” é um conto do tipo
oral tão circulatório, tão expressivo – é isso que o acumulativo muito popular em Portugal.
faz permanecer. Sem o “esqueleto”, o corpo não se Corresponde ao motivo 2031, The Frost bitten Foot
sustenta. A invariante é quem assegura a coesão do
(o pé preso congelado) do Índice de tipos e motivos
texto. Se a invariante não se mantivesse, tudo seria
uma variação, uma outra coisa, uma outra história, elaborado por Aarne eThompson3. Sua fórmula
um outro texto – o original se desintegraria. resumidamente dita: “Deus que envia morte, morte
Essa tensão entre ambas as partes que compõe o que mata ferreiro, ferreiro que faz faca, faca que
texto dá a este sua riqueza enquanto espaço de mata boi, boi que bebe água, água que apaga fogo,
possibilidades de diálogos entre passado, presente e fogo que queima cacete, cacete que mata gato, gato
futuro. Desse conjunto de forças antagônicas nasce que come rato, rato que perfura parede, parede que
o texto como um todo. É essa tensão contínua de
resiste ao vento, vento que dissolve nuvem, nuvem
forças que garante o texto oral vivo.
que cobre o sol, sol que derrete neve, neve que
quebra meu pé.”
O Texto Oral como
O texto não deve nem pode ser estudado como
Forma de Ler o Mundo
um ente estanque, isolado do seu contexto. O texto
Não podemos esquecer que é da experiência da tece inúmeras redes de relações que se imbricam e
vida e da “leitura de mundo”, de acordo com o tempo dialogam na sua simultaneidade e multiplicidade,
e o espaço, que nasce a Literatura Oral. como nos diz Ítalo Calvino em Seis Propostas Para
O conto popular, na tradição oral dos povos, é o Próximo Milênio (1990).
veículo de transmissão de ensinamentos morais, É sabido que só os estudos estruturais não dão

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conta suficientemente dos textos literários, sejam submetido. E quando este homem se esbarra em
eles provenientes de fontes orais ou não. Mas, não dificuldade, qual seria seu próximo procedimento?
podemos deixar de reconhecer a importância desses Buscar ajuda, meios de solucionar sua dificuldade.
estudos estruturais para o auxílio da análise e do Aí nasce a necessidade da palavra, do verbo, verbo
estudo das narrativas folclóricas tradicionais. que viabiliza ver o outro, reconhecer o diferente,
Na concepção de E. M. Meletinski (1979), a entrar em contato com este outro, partilhar dúvidas,
análise estrutural talvez seja a metodologia indagações, socializar informações, experiências,
científica mais apropriada e pertinente para se etc.
trabalhar com as formas tradicionais e folclóricas O homem não vive sem o outro e nem sem o
da arte vocabular, “devido à estabilidade de suas verbo. No momento que nos reconhecemos como
estruturas e por serem englobadas por sistemas um, esse um, por si só, é insuficiente, é incompleto,
de signos relativamente simples e homogêneos.” já implica na necessidade do outro (não importa
A grande dificuldade, como ele mesmo aponta, é a quem ou o que é esse outro); o outro é sinônimo de
correlação entre os métodos estruturais e a relação. Assim surge o verbo e tudo mais... Só com
abordagem histórica. o verbo o homem pode confirmar, materializar,
Em “A Formiga e a Neve” podemos perceber a tornar concreta a sua existência, desvelar o mundo.
hierarquia natural que perpassa por todo o conto. O verbo é o mediador, aquele que permite que esse
Ele aponta para uma visão determinista da natureza, ser “fechado” e finito, se comunique com o universo
apresenta sua ordem natural e orgânica: suas leis à sua volta. Parece paradoxal, é o verbo (meio
implícitas, a função e o papel específico de cada imaterial e abstrato) que vai resgatar o homem à
elemento que compõe esta cadeia, indicando ao vida, à liberdade; que vai levá-lo a reconhecer seu
homem seu lugar no universo, sua pequenez, sua espaço existencial.
condição de subalterno frente a este universo. Não Sem diálogo, sem verbo, a formiguinha morre
é por acaso que é de uma comunidade rural que ali, na neve, na sua frieza. Sem verbo o homem
este texto emerge – o homem do campo à espera de também morre. O verbo é condição sine qua non
respostas da natureza, para poder agir, sempre para se resolver impasses, para ultrapassar
submisso às suas determinações. barreiras, para se superar limitações, para se
Esta hierarquia colabora para a estruturação e alcançar a libertação. Diálogo é processo e processo
coesão do texto em forma de cadeia e em seqüências é movimento, é encadeamento de pensamentos,
fixas que se repetem ao longo da narrativa. Mostra impressões, visões. Sem verbo, sem diálogo, sem
a intrínseca dependência entre estrutura e conteúdo. troca de informação e conhecimento, o homem é
Tal conteúdo cabe dentro de uma determinada precário, limitado e dependente – é pequeno! Sem
forma; e determinada forma se presta a um dado “leitura de mundo” está fadado a perecer, assim
conteúdo. Não podemos dissociar um do outro. A como a formiguinha na neve, se não buscar a
forma já é por si uma expressão do conteúdo. Daí informação, se não intercambiar a sua dúvida, a
a razão de uma forma mais fixa para se transmitir sua necessidade, a sua impressão de mundo. A
um conteúdo mais universal – o homem frente ao formiguinha tenta se comunicar, pede ajuda e assim
universo com suas leis. vai aprendendo, descobrindo e desvelando seu
É necessário no texto (seja este oral ou não) mundo, o outro, o diferente, as leis que regem este
considerar todas vertentes, todos os campos que o amplo universo que a cerca; assim também o
texto abarca, levando em conta os diversos saberes homem. Não é à toa que é a formiguinha o animal
que coloca em diálogo: sócio-culturais, históricos, escolhido. Como diz Júlio Cortázar em Alguns
psicológicos etc. Aspectos do Conto, nada num conto é por acaso.
Como foi dito, “A Formiga e a Neve” traz à Formiga para evidenciar a pequenez em relação ao
tona a questão do homem diante de sua pequenez. mundo. Pequenez que simultaneamente expõe a
A neve está aí no lugar da interdição, da barreira, amplidão do ambiente em volta - não há teto, não
da limitação a que este homem, “vira e mexe”, está há nada, só o universo em volta dialogando com

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ela. A cada momento um elemento dialoga com ela, informação é uma “faca de dois gumes”, tanto pode
situando-a nesse universo à medida que vai libertar, como levar ao conflito ou morte.
desnudando suas leis, sua hierarquia, seu processo Deus disse a ela:
de organização natural, além da interdependência – Eu sou tão forte que vou lhe quebrar pelo
das coisas no mundo. Apresenta assim a necessidade meio e lhe jogar lá embaixo, pra você deixar
de o homem se relacionar com esse universo a partir de ser perguntadeira.1
de suas leis. Pode-se tomar esta história, num outro nível de
“A Formiga e a Neve” permite uma leitura do leitura, como uma apologia à criação do verbo, à
universo humano: suas contradições, sua pequenez necessidade vital da fala, à sua fatalidade como
e solidão. Há algo mais solitário do que uma resultado da travessia humana pelo universo. Pode-
se ainda tomá-la como metáfora da cadeia
formiguinha sozinha na neve? A neve, como também
sintagmática da linguagem, onde a cadeia da fala
o deserto, dá idéia de ausência, de vazio, de falta, tem seqüência linear e hierárquica - cada elemento
de se estar perdido, de total abandono. Além de a desta cadeia tem seu papel determinado, tem seu
neve remeter à frieza, falta de calor (também lugar definido. Caso se interfira nesta ordem, nesta
humano), paralisação. A formiga, pela sua própria seqüência encadeada, todo o sentido se abalará; se
natureza, é animal coletivo, que compartilha tarefas, desmontará a cadeia. Para efetivar-se o ato da
que considera a comunicação imprescindível (visto comunicação, deve-se seguir certos passos, certos
que é impossível uma formiga passar por outra sem procedimentos, obedecer às leis que regem a função
dar aquela paradinha, típica). Quando solitária a e ordem de cada elemento dentro deste sistema e só
assim este ato se realizará.
formiga, seu fim é o esmagamento, sua morte é
Penso que são de grande importância os estudos
enfatizada e determinada pela imensidão do mundo estruturais correlacionados com a abordagem
que a cerca. A formiga, longe de seus semelhantes, histórica para o processo de adaptação dos textos
do seu grupo, fica totalmente desprotegida, exposta orais, como também a sistematização de uma teoria
às vicissitudes do meio, assim como o homem geral da literatura oral. Através destes estudos
também; reforçando a idéia de que o homem é um poderemos fazer, provavelmente, adaptações mais
ser eminentemente social. Ser que precisa do outro criteriosas, levando em conta a característica
para assim se afirmar como ser livre e inteiro, circulatória e expressiva do texto oral e as suas
mesmo que transformado, no decorrer do processo, possibilidades de diálogos entre espaço/tempo
como é o caso em algumas versões, em que Deus (passado, presente e futuro), na sua tensão
permanente entre variante e invariante. Estudos
transfigura a formiga, lhe faz uma cinturinha. Em
morfológicos estes que pretendo continuar e utilizar
alguns casos, ela é castigada com a perda do seu como ferramenta no meu próximo trabalho:
pescoço – é degolada. Isso nos remete para uma adaptação de textos orais para a literatura infantil.
outra questão: quando nós tentamos conquistar a Há necessidade de a literatura oral ser estudada na
informação, o conhecimento, o verbo – sinônimo sua especificidade, já que esta trabalha com textos
de poder – nós também podemos ser punidos que têm características bem definidas. Sendo assim,
severamente, pagando inclusive com a própria vida! se faz necessária uma teoria geral para a literatura
Ter o domínio e poder do verbo, ter conhecimento e oral que respeite estas particularidades.

NOTAS
NOTAS

1
Versão narrada por Maria do Perpétuo Socorro, 56 Programa de Estudo e Pesquisa de Literatura Popular
anos, natural da Ilha da Velha Boipeba, Cairú-Ba; da Universidade Federal da Bahia (PEPLP).
Alagoinhas-Ba, 1995; recolhida por Nayara Dantas. 3
Ver bibliografia anexa.
2
Tradução do original, cedida pelo grupo do 4
Versão já citada na nota 1.

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RESENHAS
JECUPÉ, Kaka Werá.
A terra dos mil povos: história indígena brasileira contada por um índio.
São Paulo: Peirópolis, 1998, 115 páginas. (Série educação para a paz)

Maria Nadja Nunes Bittencourt


Professora da Universidade do Estado da Bahia

Na cultura guarani, Kaka é um escudo, Werá o resgate e a difusão da sabedoria ancestral indígena
Jecupé é o tom, ele é neto do Trovão e bisneto de brasileira.
Tupã. Esta maneira de ser nomeado é para que não Ser índio, para o índio, não tem a mesma
se perca a qualidade da Natureza de que descende. conotação que deram os “descobridores” desta terra.
Isto está fundamentado em uma tradição traduzida Para o primeiro, é um ser humano que teceu e
na Sabedoria dos Ciclos do Céu. Descendente de desenvolveu sua cultura e civilização intimamente
tapuias ou txucarramães (guerreiros sem armas), o ligado à natureza; para o segundo, é um termo de
autor nasceu em 1964 e concluiu os estudos básicos designação dos habitantes das Américas.
em escola pública. Tornou-se Carlos Alberto dos O autor destaca quatro temas em sua obra. O
Santos através do batismo cristão. Na busca de sua primeiro, entitulado A Terra dos Mil Povos, resgata
identidade, peregrinou, na década de 80, pelas a história indígena do Brasil a partir de três
aldeias guaranis seguindo a mesma trajetória do qualidades de povos: os da Tradição do Sol, os da
episódio A Busca da Terra sem Males, ocorrido nos Tradição da Lua, cujos ensinamentos eram os
séculos XVI e XVII, que consistiu na fragmentação Fundamentos do Ser e os Fundamentos da Palavra
da sabedoria ancestral dos Tupy-Guarani pelas Habitada, e os da Tradição do Sonho. Este é o
aldeias localizadas entre o Paraguai e o Espírito momento em que retoma a memória cultural de seu
Santo. No período compreendido entre 1989 a 1992, povo e explica a origem das culturas, o surgimento
atuou como cacique e pajé na Aldeia Morro da da tribo humana e a formação da Terra a partir da
Saudade, em São Paulo, apoiando os Guarani na filosofia indígena ou dos ancestrais. Esses povos
construção do Centro de Cultura Indígena. Ele criou, foram marcados pela sensibilidade na interação com
em 1992, a Comissão Intertribal objetivando lutar as energias da terra, atribuindo-a um respeito de
pela cidadania cultural indígena; em 1994 a Nova divindade. Além disto, eles desenvolveram uma
Tribo – instituto destinado a difundir a sabedoria compreensão das polaridades que regem a vida
indígena e espaço de desenvolvimento da medicina presente em todas as vidas denominadas como: sol
nativa. Neste período, publicou o livro Todas as e lua, o movimento e o repouso, o feminino e o
Vezes que Dissemos Adeus. Atualmente, coordena masculino, etc. O destaque da vida indígena centra-
uma ação de educação em valores humanos da se na arte, na agricultura, na arte da cerâmica entre
sabedoria indígena para os povos urbanos no outras.
Instituto Nova Tribo com o apoio da Fundação O segundo tema tratado é o da Invenção do
Peirópolis. Tempo 1500, marco da trajetória dos povos
A terra dos mil povos: história indígena visitantes e a expansão tupinambá, na qual se deu
brasileira contada por um índio é uma leitura da a diversificação dos clãs e, conforme a opção
história indígena do Brasil feita por um índio sob o territorial feita, as denominações iam se
olhar dos fundamentos da tradição da cultura modificando: Potiguar se estivesse no nordeste
guarani. Esta obra tem como objetivo contribuir para brasileiro, Tupinambá a Tupinikim, se estivesse na
a consolidação do Instituto Nova Tribo, voltado para Bahia, Tamoio se estivesse entre Espírito Santo e

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 207-208, jan./junho, 2000 207


Paraná. Dessa forma, o autor vai construindo uma que fora contada de modo como aconteceu para
teia de sentidos entre- os povos visitantes e a alguns e não o modo como aconteceu para todos.
extensão tupinambá; o que não foi descoberto; Ele resume os principais fatos desse tempo e
Tapuia Tupinambá e as canoas dos ventos; da classifica-os, na sua maioria, de ações humanas
extensão à escravidão; a grande noite da terra; cruéis.
guerras, guerreiros e escravos; a aldeia tupinambá; No quarto tema ele apresenta A contribuição
o sonho da pacificação do branco; os avanços do dos filhos da terra à humanidade no que se refere
sonho; somos parte da terra e ela é parte de nós; o à cultura brasileira, no cultivo da terra, na
começo do mundo; origem do mundo e da classificação de plantas, na saúde, na ética e na
humanidade; um mito tupy-guarani; a origem do filosofia, na educação, na língua. Por fim, ele traça
mundo segundo os xavantes; a criação do mundo um perfil da situação dos povos indígenas do Brasil
segundo os yanomami − para explicar não só a contemporâneo, classificando-os por nome, grafias,
invenção desses povos, mas também as influências tronco/língua, UF/países limítrofes, população
do Tupy na língua, nos costumes e na visão de censo/estimativa e ano. Dessa forma, o autor
mundo antes e após a chegada dos colonizadores. apresenta explicitamente o quadro de dizimação dos
Jecupé sinaliza para um importante dado histórico povos indígenas nas regiões assinaladas.
protagonizado pelos colonizadores que, ao chegarem Jecupé, ao significar e (re)significar as palavras,
aqui, mudaram as estratégias de conquista e vai convidando o leitor a interagir com a obra. É
exploração da terra incitando guerras intertribais, uma marca comum a elucidação das concepções
objetivando capturar guerreiros para serem vendidos terminológicas. O autor usa a referência histórico-
como escravos. Daí surgiram os primeiros índios- comparativa como metodologia de seu estudo e para
escravos do Brasil. isso vai buscar a fundamentação para os fatos por
O momento histórico posterior vai conduzir ao ele levantados na arqueologia.
movimento que se denominou do Sonho da É significativa a contribuição desse estudo para
Pacificação do Branco ou o Amansamento do a compreensão de nossa história, não só enquanto
Homem Branco. Na tradição indígena, o sonho é o humanos, mas, sobretudo para o reconhecimento
momento sagrado e “nenhum sonho para um índio da importância desses povos na formação da cultura
fica em vão”. Para os povos indígenas, não foi tarefa brasileira. O autor tem um estilo muito próprio de
simples pacificar o branco, pois além dos avanços sua cultura, é simples na sua linguagem e procura
sinalizados pela ciência e tecnologia, avançava a desmistificar os conceitos e mitos que já estão
capacidade de violentar a Terra na busca do ouro, cristalizados no imaginário social do povo brasileiro
do seringal, da criação de novas cidades e da acerca da sua própria história.
catequização. Se por um lado, nos tempos atuais, o Este estudo se firma como fonte de informação
branco mantém uma mentalidade usurpadora da histórico-científica sobre a Cultura, a História do
terra, por outro lado os povos indígenas batalham Brasil, a História Indígena Brasileira e sobre os
com o intuito de sensibilizar o humano, “que se Índios da América do Sul.
esqueceu do chão de seu nascimento e ficou sem
raiz, alma e coração”. Esta forma de pensar tem
origem no começo do mundo e da humanidade, diz
Jecupé, explicando como o pensamento indígena se
espalhou e como expressa a sua memória cultural.
Ele escolhe quatro mitos de povos distintos e revela NOTA
o jeito de cada um contar a sua origem e a origem
de seu mundo. O índio classifica a realidade como Maria Nadja Nunes Bittencourt, editora administrativa
pedra de cristal lapidado que tem muitas faces. da Revista Educação e Contemporaneidade, é professora
O terceiro tema é dedicado a uma Pequena do Departamento de Educação do Campus I/UNEB e
síntese cronológica da história indígena brasileira fez a revisão desta resenha.

208 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 207-208, jan./junho, 2000


KOHLRAUSCH, Marlin.
Semeando felicidade nas empresas do século XXI.
São Paulo: Ed. Gente, 1999.

Jomária Alessandra Queiroz de Cerqueira e Silva


Aluna do curso de Pedagogia Organizacional
e Recursos Humanos - CEPOM

Este trabalho é resultado do percurso esta vê na necessidade do cliente a necessidade de


profissional de Marlin Kohlrausch, presidente da mudança da empresa. Segundo Kohlrausch, são as
Calçados Bibi, que, pela segunda vez, expressa por necessidades do cliente e os avanços tecnológicos
meio de uma obra literária os pontos-chave que do mercado que vão determinar os rumos das
levaram a empresa a alcançar o reconhecimento mudanças corporativas. Ademais destes fatores
frente à comunidade com a qual trabalha, ganhando determinantes, são mencionados no texto, alguns
o prêmio Empresa Amiga em 1997. pré-requisitos para o sucesso empresarial entre os
Na obra, o autor apresenta as novas regras do quais figuram a criatividade, a organização e a
mercado globalizado como força motriz das capacidade de desenvolver a gestão de informação.
mudanças corporativas das empresas brasileiras. O Para explicar e exemplificar tais requisitos, Marlin
livro é apresentado como “(...) um guia prático de recorreu à descrição da biografia de Tomas Alva
preparação das empresas para o desafio do novo Edson, exímio empreendedor que conhecia a arte
século” (p.11), no qual a humanização da empresa de tecer relacionamentos, sociabilizar
se configura como “(...) a condição indispensável conhecimentos e construir objetivos e resultados
para a sobrevivência dos negócios” (p.11). Nesse comuns. Outro requisito fundamental mencionado
aspecto, o autor deixa claro que o maior patrimônio é a perspicácia. Para o autor, é necessário enxergar
das empresas são os seres humanos que nelas atuam, como águias que voam acima das tempestades e
porque são eles que pensam e agem para que a trabalhar como formigas, prudentemente.
empresa obtenha sucesso. Parafraseando um versículo bíblico e comparando-
O bojo da obra aborda questões que permeiam a o às idéias da autora pode-se dizer que “(...) é
competência gerencial, a responsabilidade social e necessário ser prudente como a pomba e sagaz
a gestão participativa em quinze curtos capítulos como a serpente” (Livro de Mateus 10:16 - Bíblia
que suscitam discussões e transformações no interior Sagrada).
das empresas. Os princípios motivadores da Segundo Marlin, a empresa moderna tem no seu
participação e da construção de organizações empregado um ser colaborador, mas também,
sociais, as estratégias empreendedoras para participante dos lucros oriundos do aumento da
promover o sucesso das empresas no século vinte e produtividade. Isto prova, segundo ele, que a
um, e os efeitos da evolução tecnológica são alguns política de pessoal mais produtiva não está centrada
dos temas abordados pelo autor. em salário, mas em participação nos resultados.
No livro, Marlin define e traça analogias entre Esta política defendia pelo autor é denominada
alguns conceitos fundamentais para o endomarketing – sistema que consiste na promoção
desenvolvimento de uma empresa – visão, missão, do empregado ao título de colaborador e participante
e valores − contextualizando-os de acordo com as do lucro financeiro e do capital social. Assim, o
relações existentes entre a empresa, a sociedade e o profissional passou a ser uma forma de
mercado. Em sua explanação, o autor propõe o uso investimento, e, quanto mais a empresa investe no
da visão empresarial, ao invés da gerencial, pois seu profissional e os próprios profissionais investem

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 209-210, jan./junho, 2000 209


em si e na empresa, maiores são as possibilidades de convívio social.” (p.55), isto é, de forma ética.
de lucro e sucesso mútuo. Kohlrausch conclui fornecendo, como em sua
O livro enfatiza ainda que é básico e primeira proposta/guia, dicas para direcionar
indispensável que cada colaborador compreenda que pessoas ao sucesso em todos os níveis, pois “(...) o
a razão essencial do investimento é a geração de que se constrói, no final de tudo, vai além da vida
resultados para o investidor. Sendo assim, é empresarial, e contribui para a felicidade de cada
essencial “(...) incluir o lucro entre os valores da um dos colaboradores e de toda sociedade.”
empresa, pois além de ser um direito de quem (p.142).
investe, é um elemento motivador e um indica- Certamente que a referida obra se mostra profícua
tivo fundamental da correção dos caminhos não apenas aos profissionais da área de DRH e
que estão sendo seguidos” (p.53). Ressal- administração, mas revela-se como um esquema
tam-se também os valores morais e sociais que prático e eficaz de vida para todos que buscam o
devem permear o conceito de lucro, admi- aprimoramento pessoal, profissional e social, pois
tindo-se que “(...) a verdadeira competitivi- alerta as empresas e os profissionais acerca da
dade só pode ser mantida dentro das normas responsabilidade social que lhes é devida.

210 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 209-210, jan./junho, 2000


INSTRUÇÕES
CARTA DE RECOMENDAÇÕES DOS EDITORES
DE PERIÓDICOS CIENTÍFICOS DE EDUCAÇÃO
SÃO PAULO, 2000

Levando em consideração a importância da sistematização das publicações na área de humanidades


e as peculiaridades da produção científica na área educacional, realizou-se nos dias 22 e 23 de agosto de
2000, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, o seminário “POLÍTICA DE PUBLI-
CAÇÃO CIENTÍFICA EM EDUCAÇÃO NO BRASIL HOJE”.
O seminário se desenvolveu por meio de exposições organizadas em torno de três mesas-redondas,
conforme o temário abaixo transcrito. Contou com a presença de mais de cem participantes, a maior parte
dos quais editores de periódicos científicos da área de educação, que, na última sessão, apresentaram as
recomendações que constam deste documento, para que sejam encaminhadas às associações de pesquisa,
às agências de fomento e instâncias avaliadoras, e à comunidade científica em geral.

TEMÁRIO
“A produção científica na área educacional e o papel dos periódicos especializados”
Balanço do papel que vem sendo cumprido pelos periódicos na divulgação e no fomento à qualidade da
pesquisa; diferentes linhas editoriais; formas de financiamento e inserção institucional dos periódicos.
Expositores:
Maria Malta Campos (Editora da Revista Brasileira de Educação)
Osmar Fávero (Membro da Diretoria da ANPed)
Águeda Bittencourt (Editora de Pro-Posições)

“Qualidade editorial e sistema classificatório dos periódicos”


Análise dos critérios externos de avaliação do conjunto dos periódicos da área; a questão da periodici-
dade, indexação, exogenia, abrangência e distribuição das revistas.
Expositores:
Rosaly Fávero Krzyzanowski (FAPESP)
Rosa Maria Bueno Fischer (Editora de Educação e Realidade)

“Arbitragem da produção científica: a editoração”


Exame dos problemas práticos do processo de editoração; o papel dos editores, do conselho editorial e
dos pareceristas ad hoc; critérios e procedimentos de avaliação dos artigos; aspectos científicos e
éticos.
Expositores:
Luciano Mendes de Faria Filho (Editor de Educação em Revista)
Ivany Pino (Editora de Educação e Sociedade)
Elba Siqueira de Sá Barreto (Editora de Cadernos de Pesquisa)

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 213-221, jan./junho, 2000 213


RECOMENDAÇÕES

1. Que as informações sobre indexação de revistas sejam divulgadas o mais amplamente possível, espe-
cialmente entre os editores;
2. Que as questões de ordem ética envolvidas em cada etapa do processo de editoração sejam objeto de
uma ampla e contínua discussão;
3. Que os critérios adotados na avaliação e classificação das revistas sejam definidos com maior clareza,
especialmente por parte da CAPES, levando em conta as peculiaridades da área de educação e as
especificidades de cada região, de cada instituição e dos próprios periódicos;
4. Que em tais avaliações as revistas de periodicidade mais larga não sejam desfavorecidas, de modo que
por meio de uma política de publicações se estimule a produção e a qualidade da pesquisa na área da
educação em todas as regiões do país;
5. Que seja estabelecido um diálogo entre os editores e a ANPed para se discutir os critérios de classifi-
cação dos periódicos e os critérios definidores de “cientificidade” e “fator de impacto”;
6. Que seja examinada uma forma (uma associação?) de os periódicos terem participação no COMPED
(Comitê dos Produtores de Informações Educacionais).

PROPOSTAS DE ENCAMINHAMENTOS

1. Que as recomendações apresentadas neste Seminário sejam encaminhadas à ANPed; ao Fórum de


Coordenadores de Pós-Graduação em Educação; aos Programas de Pós-Graduação em Educação; ao
COMPED; às agências de fomento (CNPq, FINEP e Fundações de Amparo à Pesquisa); à ABEC; e
à CAPES, incluindo-se aqui a sua Presidência, a Diretoria de Avaliação e o Comitê da área de Educa-
ção;
2. Que seja solicitado às diretoria da ANPed um espaço durante a próxima reunião anual (a se realizar
em Caxambu de 24 a 28 de setembro) para um encontro entre os editores de periódicos científicos e a
comissão por ela designada para proceder à avaliação das revistas científicas da área de educação;
3. Que seja constituído um Fórum de Periódicos Educacionais com site na Internet e uma rede de
editores, através de uma lista de discussão on-line, para dar continuidade aos debates e criar um
espaço permanente de articulação entre os editores de revistas científicas com vistas a favorecer estra-
tégias e ações políticas de fortalecimento das revistas e de categorização das mesmas;
4. Que estas recomendações sejam publicadas em todas as revistas representadas neste Seminário e por
aquelas que, embora não presentes, venham a endossar o seu conteúdo.

Para agilizar a implementação destas propostas foi formada, ainda na última sessão do Seminário, uma
comissão composta por quatro membros, tal como se segue:
- Belmira Oliveira Bueno, Editora de Educação Pesquisa, Universidade de São Paulo;
- Ivany Rodrigues Pino, Editora de Educação e Sociedade, CEDES, Universidade de Campinas;
- José Gerardo Vasconcelos, Editor de Educação em Debate, Universidade Federal do Ceará;
- Rosa Maria Bueno Fischer, Editora de Educação & Realidade, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul

214 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 213-221, jan./junho, 2000


SUBSCREVEM ESTA CARTA AS SEGUINTES REVISTAS:

1. Cadernos CEDES, do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES)


2. Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas
3. Cadernos de Pesquisa, da UNIVERSO, São Gonçalo, Rio de Janeiro
4. Ciência & Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, da
UNESP - Bauru
5. Contexto & Educação, da UNIJUÍ
6. Educação - Revista da FE/Programa de PG - PUCRS
7. Educação & Realidade, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
8. Educação e Pesquisa, revista da Faculdade de Educação da USP
9. Educação e Sociedade, do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES)
10. Educação em Revista, da FaE da Universidade Federal de Minas Gerais
11. Educar em Revista, da Universidade Federal do Paraná
12. Ensaio - Revista em Educação em Ciências - CECIMIG - FE/UFMG
13. Estudos Leopoldenses, série Educação, da UNISINOS
14. Paradoxa - Projetivas Múltiplas em Educação, da UNIVERSO, São Gonçalo, Rio de
Janeiro
15. Pro-Posições, da Faculdade de Educação da UNICAMP
16. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos – INEP
17. Revista da FAEEBA, Departamento de Educação I, UNEB – Universidade do Estado da
Bahia
18. Revista de Educação - Puc Campinas, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas
19. Revista de Educação CEAP, do Centro de Estudos e Assessoria Pedagógica, Salvador,
Bahia
20. Revista Educação & Linguagem (Faculdade de Educação e Letras) – Programa de Pós-Gradua-
ção em Educação – Mestrado Universidade Metodista de São Paulo (UMESP)
21. Revista Temas em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação - Centro de
Educação/UFPB
22. Teoria e Prática da Educação, do Departamento de Teoria e Prática da Educação da
Universidade Estadual de Maringá

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 213-221, jan./junho, 2000 215


REDUC - FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS
MANUAL PARA ELABORAÇÃO DE RESUMOS

1. Introdução

O Centro de Investigacion y Desarrolo de la Educacion – CIDE iniciou, em 1972, a edição dos Resumenes
Analíticos em Educacion – REDUC. Os resumos tem por finalidade tornar acessível aos usuários do
sistema REDUC os documentos que se referem a educação latino-americana. Para atingir esta finalidade,
os RAEs são cuidadosamente preparados de acordo com regras e técnicas que permitem apresentar ao
usuário um nível de leitura do documento que em alguns casos, cobre suas necessidades de informação,
sem ter recorrido ao documento com um todo.

2. Objetivos

Este Manual tem como objetivo servir de guia para preenchimento da planilha de resumos REDUC/FCC
que resultará na publicação Resumos Analíticos em Educação ou outra de acordo com a política de
publicação adotada.
É importante que os autores dos documentos sejam os próprios resumidores. Com isto os leitores terão as
informações do documento origem pela mesma linha de raciocínio de quem o escreveu.
Assim, cada resumo torna-se responsabilidade de seu relator, cabendo à Unidade zelar pela qualidade dos
resumos e pela adequação das informações nos campos da Indexação.

3. Planilha

A planilha REDUC/FCC é dividida em 2 (duas) partes:


- Indexação: são campos de identificação, localização e pesquisas do documento.
- Resumo: apresentação resumida e exata das informações de um documento, sem agregar interpretações
ou críticas.

3.1 Campos de Indexação

Campo 1 – Unidade – Sigla da unidade onde está sendo elaborado resumo. Ex. FCC/BAMP; FE/USP;
FE/UFMG etc.
Campo 2 – RAE – Número seqüencial da Unidade. Será preenchido pelo Revisor da Unidade.
Campo 3 – Nº – Deixar em branco.
Campo 4 – Autor – Preencher de acordo com as normas internacionais, iniciando-se pelo sobrenome.
Quando não puder identificar o Autor, deixar este campo em branco.
Campo 5 – Título – Preencher com título da publicação resumida (artigo de periódico, livro, relatório
etc.). O título deve ser completo.
Campo 6 – Publicação

216 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 213-221, jan./junho, 2000


- Para livros, relatórios, teses, enfim obras no todo: colocar a Edição, local, Editora e Ano de Publicação.
- Para artigos de periódicos: colocar o Título do periódico, Local, volume, número, mês e ano de publi-
cação.
- Para capítulo de Livro: colocar todos os dados da obra no todo.
Campo 7 – Descritores – Os descritores usados serão de uma Listagem fornecida pela BAMP e quando
ela não atender às necessidades usar o Thesaurus de Educação da UNESCO. Identificar o máximo de
descritores que traduzam o conteúdo do documento, separados por / (barra). Citar pelo menos 3 (três)
descritores.
Campo 8 – Titulação do Autor – colocar a Titulação do responsável pelo documento.
Campo 9 – Localização – Localização física da obra. Será preenchido pelo Revisor da Unidade.
Atenção: Em caso de dúvida no preenchimento dos campos acima entrar em contato com o Revisor de sua
Unidade.

3.2 Campos do Resumo

Campo 10 – Descrição – Descreva o tipo de documento (monografia, dissertação, tese, livro, capítulo de
livro, artigos de periódicos) que está analisando. Consta de 2 partes: a 1a frase indicando o tipo de docu-
mento e as restantes definindo os objetivos e as principais características do documento (resumo informa-
tivo ou abstract).
Campo 11 – Metodologia – Indica as fontes de dados, descreve a abordagem teórica e/ou metodológica
empregada no trabalho, colocando todas as informações possíveis.
Campo 12 – Conteúdo – Descreva os resultados e/ou principais idéias do trabalho. Deverá conter no
máximo 400 (quatrocentas) palavras.
Campo 13 – Conclusão – Deverá aparecer quando constar no documento ou se for possível selecionar
dados ou resultados no texto. Incluir aqui as recomendações se estas aparecem.
Campo 14 – Ref. Bibliografias – Indique a existência de bibliografia, informando, se possível, quantidade
de referências nacionais e internacionais.
Campo 15 – Vários – Assine à frente de sua responsabilidade/competência.

4. Observações

a) É obrigatório o depósito do documento que deu origem ao resumo na biblioteca da Unidade


b) O preenchimento deverá ser à máquina ou qualquer tipo de letra de imprensa
c) Para trabalhos extensos com muitas informações que se torne necessário estender-se muito no resumo,
pode-se fazer 2 ou mais resumos. Deverá ser feita uma observação no campo Descrição: Continuação
do Resumo no...
d) Para obra compilada ou editada em que cada capítulo seja de um autor diferente, recomenda-se fazer
um resumo geral e um parcial para cada capítulo.

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 213-221, jan./junho, 2000 217


MODELO DE RESUMO - REDUC-FCC/BAMP

INDEXAÇÃO

1. Unidade 2. RAE 3. nº: (deixar em branco)


4. Autor(es)
5. Título
6. Publicação
7. Descritores

8. Titulação do autor

9. Localização (deixar em branco)

RESUMO

10. Descrição

11. Metodologia

12. Conteúdo

13.Conclusão

14. Referências bibliografias

Resumido por: Indexado por:


Revisado por: Digitado por:
Publicado por:

218 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 213-221, jan./junho, 2000


REVISTA DA FAEEBA - FORMULÁRIO DE AQUISIÇÃO
Nome da Pessoa Física (+ profissão e lugar de trabalho) ou da Instituição:
.............................................................................................................................................................
.............................................................................................................................................................
Endereço: .......................................................................................................... Bairro.......................
CEP ........................ Cidade ............................... Estado .... Tel. ........................... Fax ......................
E-mail .................................................

MODALIDADE DE AQUISIÇÃO

1 – ASSINATURA
- Assinatura: R$ 15,00 (2 números)
- Assinatura estudante da UNEB: R$ 12,00 (2 números)

2 - NÚMEROS AVULSOS
- Compra de números avulsos: R$ 10,00 (vide verso)
Número(s) da revista (e/ou temas) e quantidade de exemplares solicitados (por número):
.......................................................................................................................................................
.......................................................................................................................................................
.......................................................................................................................................................

3 – PERMUTA
- Troca por publicação congênere – especificar em carta anexa.

OBSERVAÇÕES

Para assinatura ou compra, enviar o formulário preenchido, acompanhado de CHEQUE NOMINAL ou


de um comprovante de depósito bancário (para o BANEB, agência 067/Centro, conta corrente 130.358/
5), em nome da: UNEB/Revista da FAEEBA (citando no verso a finalidade do pagamento), para o
seguinte endereço:

REVISTA DA FAEEBA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - Departamento de Educação I – NUPE
Estrada das Barreiras, s/n, Narandiba - 41150.350 – SALVADOR - BA
Informaçõescomplementares:
Tel. 0**71.387.5916 - Fax: 0**71.387.5938
E-mails:yaraataide@zaz.com.br / jacqson@svn.com.br / manadja@svn.com.br / nupedep1@uneb.br

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 213-221, jan./junho, 2000 219


REVISTA DA FAEEBA

NÚMEROS E TEMAS

Desde o final do ano de 1992, quando foi lançado o primeiro número, já foram publicados os seguintes
números:

Nº 1 - EDUCAÇÃO E UNIVERSIDADE (esgotado)

Nº 2 - EDUCAÇÃO E CIDADANIA (esgotado)

Nº 3 - EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO (esgotado)

Número especial sobre CANUDOS – CENTENÁRIO DE BELLO MONTE (Segunda


edição corrigida e melhorada)

Nº 4 - EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

Nº 5 - EDUCAÇÃO E EDUCADORES

Nº 6 - EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Nº 7 - EDUCAÇÃO E ÉTICA SOCIAL (com homenagem especial a Paulo Freire)

Nº 8 - EDUCAÇÃO E TERCEIRO MILÊNIO

Nº 9 - EDUCAÇÃO E LITERATURA

Nº 10 - EDUCAÇÃO E POLÍTICA

Nº 11 - EDUCAÇÃO E FAMÍLIA

Nº 12 - EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

Nº 13 - BRASIL 500 ANOS

Vide homepage: www.uneb.br/Campus_I/Educacao/revista.htm

220 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 213-221, jan./junho, 2000


INSTRUÇÕES AOS COLABORADORES

A REVISTA DA FAEEBA considera para publicação trabalhos originais que sejam classificados
em uma das seguintes modalidades:
- resultados de pesquisas sob a forma de artigos, ensaios e resumos de teses ou monografias;
- entrevistas, depoimentos e resenhas sobre publicações recentes.
Os trabalhos devem ser apresentados em disquete (Winword), ou via Internet (E-mail:
<jacqson@svn.com.br>), segundo as normas definidas a seguir:

1. Na primeira página deve constar: a) título do artigo; b) nome(s) do(s) autor(es), endereço, telefone, e-
mail para contato; c) instituição a que pertence(m) e cargo que ocupa(m).

2. Resumo e Palavras-chave (português); Abstract e Key-words (língua estrangeira): apenas 1 parágrafo


por resumo/abstract.

3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias, quando apresentados em folhas separadas, precisam indicar
os locais onde devem ser incluídos, devem ser titulados e apresentar indicações sobre a sua autoria.

4. As notas numeradas devem vir numa lista ao final do artigo, antes da lista das referências bibliográfi-
cas; também os agradecimentos, apêndices e informes complementares.

5. Havendo necessidade de citação bibliográfica inserida no próprio texto, a mesma deve vir entre aspas,
remetendo o leitor à referência bibliográfica, entre parênteses. Exemplo: (Freire, 1982:35), o que corresponde
ao último sobrenome do autor, ano da publicação e número da página citada. Igual procedimento deve ser
adotado para qualquer referência a um autor. Deste modo, no fim do texto devem constar apenas as notas
explicativas estritamente necessárias.

6. Sob o título Referências Bibliográficas devem vir no fim do artigo, após as notas, em ordem alfabética,
as conforme a norma NBR-6023, da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).

7. Os artigos devem ter, no máximo, 30 páginas, e as resenhas até 4 páginas. Os resumos de teses/
dissertações devem ter apenas 1 lauda, incluindo título, autor, orientador, instituição, e data da defesa
pública.
Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no Winword 97:
• letra: Times New Roman 12;
• tamanho da folha: A4;
• margens: 2,5 cm;
• espaçamento entre as linhas: 1,5 linha;
• parágrafo justificado.

8. Depois da aprovação de seu texto pelo conselho editorial, os autores são obrigados a encaminhar à
Editora Administrativa, Maria Nadja Nunes Bittencourt (e-mail: manadja@svn.com.br), a planilha de
resumos REDUC/FCC, preenchida de acordo com as instruções descritas no manual, a fim de ser encami-
nhada para efeito de indexação.
A Comissão de Editoração

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 13, p. 213-221, jan./junho, 2000 221

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