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EDITORA AUTOGRAFIA
Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.
Rua Buenos Aires, 168, 4º Andar – Centro
Cep: 20070-022
Rio de Janeiro
Capa: Leticia Quintilhano
Editoração eletrônica: Fabricio Vale
História, Sociedade, Pensamento Educacional: experiências e perspectivas
Maynard, Dilton Cândido Santos
Souza, Josefa Eliana
1ª Edição
Setembro de 2016
ISBN: 978-85-5526-754-3
Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Autografia.
PREFÁCIO
Introdução
E
studar a (o currículo da) disciplina (curricular da) Educação Física no ambito de uma
perspectiva da História nos remete aos pressupostos teórico-metodológicos responsáveis por
construírem as regras de análise e de síntese que sustentam o entendimento dos elementos que
constituem o olhar historiográfico e suas inclinações para este campo de pesquisa. Isso significa, de um
ponto de vista epistemológico contemporâneo, que a natureza de todo objeto de pesquisa científica é
formada tanto pelo pensamento quanto pela coisa pensada. Por conseguinte, compreender minimamente a
proposição de um objeto de estudo implica conhecer o sistema de pensamento que permitiu sua visada.
Metaforicamente, toda a visão do olho fisiológico acerca de um objeto depende de uma compreensão; de
modo que, se não há pensamento pode não haver visão, tampouco objeto visto.
Nesse sentido, falar em história significa entender que os fatos, os objetos, os conceitos tomados
como fenômenos externos ao pensamento dependem desse pensamento. Assim, o objeto visto não sofre
alterações por conta própria, mas suas mutações também se devem ao devir do pensamento. São,
portanto, objetos e pensamento, constituídos através de processos históricos, sociais, políticos,
econômicos, culturais e epistemológicos responsáveis pelas formas e conteúdos dos pensamentos e de
seus meios de recepçaõ e de expressão, tais como: a escrita, a pintura, a oralidade, a música, o cinema, o
jogo etc.. Pensar no campo da História diz respeito ao cumprimento de regras de raciocínio para “[...]
problematizar um objeto bem demarcado, criar hipóteses, testá-las. Depois, procurar articular um
discurso sobre este objeto em linguagem clara e comunicável”(REIS, 2010, p.12). Portanto, estar-se-ia
contribuindo para a materialização não apenas do objeto de estudo, mas da História enquanto campo
científico do pensamento teórico e metodológico.
Contudo, embora exista, de maneira mais clara e imediatamente apreensível (até mesmo pelo leigo)
as regras teóricas e metodológicas de pensamento que diferenciam a visão histórica (ou historiográfica)
de outra visão científica (sociológica ou biológica, por exemplo) acerca da construção de um objeto e
suas faces e propriedades; existem alguns diversos e conflituosos conjuntos de regras de pensamento
internas ao próprio campo disciplinar da historia, de modo que pensar historicamente um objeto implica
uma tarefa problemática, complexa, difícil e plural. Refletindo sobre a história do desenvolvimento do
campo disciplinar e científico da histórica se nota uma pluralidade crescente das perspectivas teóricas e
metodológicas responsáveis pela construção das condições subjetivas e objetivas dos processos de
tornar um objeto de estudo visível ou apreensível cientificamente pelo pensamento coletivo formado por
comunidades de pesquisadores.. Por esse motivo, a presente dissertação faz questão de evidenciar
detalhada e claramente suas regras de pensamento histórico (ou historiográfico), a nosso ver, os
fundamentos teórico-metodológicos da visão que compõem o objeto visto e expresso por nós.
Diante do exposto, demarcamos assertivamente que nosso ponto de vista histórico responsável por
projetar o objeto aqui proposto é o da chamada História Cultural; de modo que explicitaremos a seguir as
regras epistemológicas que regem seu pensamento ou o pensamento do pesquisador (historiador) lançado
a ver o mundo por suas “lentes” teórico-metodológicas. Concebida enquanto um paradigma, a História
Cultural tem suas raízes (históricas e filosóficas) no movimento intelectual, intitulado Escola dos
Annales, constituído no início do século XX com base nas reflexões epistemológicas e políticas de
importantes filósofos e historiadores.
A Escola dos Annales foi uma tendência historiográfica francesa que ganhou força entre as décadas
de 1920 e 1930, quando buscou ampliar o olhar da pesquisa histórica em direção a campos além da
esfera política, tais como atividades econômicas, organização social e psicologia coletiva. Trouxe novos
métodos e aportes teóricos para o campo do conhecimento humano. Enquanto escola, deve ser entendida
como “categoria que se relaciona a uma espécie de corrente de pensamento ou de práticas relativas a
determinado campo de saber ou de ação humana” (BARROS, 2012, p. 14). Caracterizado por um
programa de ação, uma identidade que se forma, um campo de escolhas (teóricas, metodológicas,
temáticas, éticas) que permite ao seu praticante se sintonizar com os outros que a ele se assemelham nas
mesmas escolhas.
Os historiadores dos Annales compartilhavam um programa em comum. Dentre os quais se tem a
interdisciplinaridade, entendida como “interação entre disciplinas” (BARROS, 2012, p. 104). A
ampliação de campos interdisciplinares, o que possibilitou à História apropriar-se gradualmente de
diversos tipos de fontes (ultrapassando os horizontes da documentação oficialmente escrita) e aos
historiadores abrir seus horizontes interdisciplinares, ampliar seus objetos de estudo e poder trabalhar
com novos tipos de fontes e de problemas. (Fato que nos dá a possibilidade de estudar o currículo para
além do que está descrito na documentação oficial).
Outro ponto comum ao programa era o entendimento da história apartir da ideia da História-
Problema. Buscava-se um olhar que não se limitava à narrar fatos e/ou expor informações de maneira
descritiva; queria-se “reconstruir o vivido a partir de problemas e motivações da época do próprio
historiador” (BARROS, 2012, p. 133). A partir daí, o documento por si só não servia para descrever o
fato histórico, “é o problema proposto pelo historiador, o recorte histórico por ele construído”
(BARROS, 2012, p. 136) que fará com que os documentos possam dizer algo à História.
Assim, não interessaria aos historiadores apenas as fontes oficiais, fontes políticas e tradicionais.
Com os Annales houve uma ampliação do campo do documento histórico e das fontes históricas. E todo
vestígio dos objetos da cultura material poderia ser usado pelos historiadores. Problematizar a história
foi uma forma de “expandí-la e tematicamente, diversificá-la, ampliar sua complexidade e multiplicar as
perspectivas historiográficas” (BARROS, 2012, p. 140). De acordo com Burke (2010, p. 08), naquele
momento histórico, havia também “a necessidade de ir buscar junto a outras ciências do homem os
conceitos e os instrumentos que permitiriam ao historiador ampliar sua visão de homem”.
Numa Escola, e na dos Annales, não se deu de forma diferenciada; seus componentes se orientam por
princípios em comum ou até compartilham um mesmo programa, mas não precisam ser iguais ou utilizar
teoria e metodologias iguais. O que se propõe é um determinado “modo de agir” (BARROS, 2010, p.
19). O que fez com que seus historiadores não constituíssem um paradigma teórico e metodológico único.
Percebe-se que a Escola dos Annales transcende os paradigmas e possui, em seus quadros, historiadores
ligados a paradigmas ou combinações paradigmáticas distintas. A palavra Escola refere-se “à adoção de
um “programa” em comum, à criação de certos meios de intercomunicação e de difusão externa das
idéias e trabalhos dos seus membros, ao esforço de reconhecimento recíproco entre os participantes da
escola, à formação de um grupo e de uma identidade própria” (BARROS, 2012, p. 33)
Os historiadores dos Annales apresentaram um programa de ação, constituíram um meio de
divulgação para suas idéias e reconheceram-se como grupo. Para divulgar seus novos olhares, seus
idealizadores criaram a Revista dos Annales, com o objetivo de “promover uma nova espécie de historia
e continua, ainda hoje a encorajar inovações” (BURKE, 2010, p. 12). Buscou-se substituir a narrativa de
acontecimentos, já consolidados, pela história problema, a história política pela história das atividades
humanas. E assim, dar “identidade a esta escola em relação a um grupo de historiadores” (BARROS,
2012, p. 30)
O movimento dos Annales foi organizado por homens que deram novos olhares à historiografia,
estes, em diferentes períodos, orientaram a forma de ver a História, deram vida e contribuíram com suas
obras e ações. A primeira fase (1920-1945) teve inicialmente dois líderes: Lucien Febvre e Marc Bloch.
Suas idéias tinham o objetivo de renovar a historiografia, através de uma mudança de olhar para o que
era produzido na História. Queria-se uma História diferente da história tradicional, da história política e
da história dos eventos. Foi um período de oposição ao paradigma positivista que já não encontrava
realizações no âmbito da historiografia (BARROS, 2012).
O período vivido por eles, pós-guerra, deu espaço para o desenvolvimento de novas idéias e novos
olhares. Era um momento de “disputa de territórios dentro e fora das instituições historiográficas”
(BARROS, 2012, p. 89). Febvre e Bloch tinham idéias com um mesmo direcionamento, mas em alguns
momentos buscavam organizar-se de forma diferenciada. Febvre buscou embasamento na sociologia,
Bloch utilizou elementos da geografia e da historia comparativa, com intuito de constatar as diferenças
existentes entre os fatos sociais.
Marc Bloch traz um novo olhar para a definição de história, antes entendido como o estudo do
passado humano. Com ele, a história passou a ser vista como a ciência dos homens no tempo. Assim, o
historiador deveria estudar o homem “imerso na temporalidade, vivendo o tempo, percebendo o tempo,
produzindo o tempo” (BARROS, 2012, p. 183). Um ponto importante desde período foi a criação da
Revista Annales em 1929, a chave para caracterização do movimento dos Annales, bem como primordial
para apresentar os novos olhares para a historiografia. Tinha o objetivo de difundir uma nova abordagem
(interdisciplinar) de história, na qual o campo social e econômico era também observado (Burke, 2010).
Tanto Febvre como Bloch defendiam a interdisciplinaridade e a história problema como base desta
nova forma de produzir história. Com a história problema poder-se-ia “reconstruir o vivido a partir de
problemas e motivações da época do próprio historiador” (BARROS, 2012, p. 133), indo contra à
factualidade, à narrativa linear e à restrição temática vivenciada na história política tradicional. No
período entre 1930 e 1940 Febvre escreveu acerca do novo tipo de história, baseado na “pesquisa
interdisciplinar, por uma história voltada para problemas, por uma história da sensibilidade” (BURKE,
2010, p. 42).
Tanto Febvre como Bloch tiveram influência das idéias de Marx e Michelet (sec. XIX). De Marx
eles observaram “a possibilidade de enxergar a História como um grande dever de estruturas de longo
termo” (BARROS, 2012, p. 224) e de Michelet, a “possibilidade de investir na multiplicação temática,
na ultrapassagem do estreito universal de temas que eram oferecidos pela História Política Tradicional,
no desprezo pela parcelarização positivista do saber que logo obrigaria ao contramovimento da
interdisciplinaridade” (BARROS, 2012, p. 224).
A partir da primeira geração dos Annales a história de vida passou a servir como caminho para
examinar um problema histórico, houve uma valorização do quadro geográfico, a história problema
passou a ser utilizada em contraposição ao modelo historiográfico factual; a interdisciplinaridade passou
a ser a base para se produzir a “História Total” difundida por eles. Essa nova forma de fazer história
tinha um olhar longo, capaz de alcançar grandes extensões de tempos e espaços. Buscou produzir uma
história que a todo momento está em construção, que não pretendia encontrar verdades definitivas, mas
sim “constituir uma verdade histórica relativa aos pontos de vista que a revelam” (BARROS, 2012, p.
241).
Desejou-se criar uma Nova História, diferenciada da vista nos padrões historiográficos do período.
Uma história com conhecimento cientificamente produzido (Frebvre), uma ciência dos homens no tempo
(Bloch), que está sempre em construção. No aspecto metodológico, abrem espaço para utilização de
novas fontes históricas, tais como testemunhos, documentos, discursos, relatos, depoimentos orais.
Chamam a atenção para o que a Cultura Material informa, os modos de pensar e de sentir, que atravessam
as informações voluntárias trazidas no documento.
Assim, chamam a atenção para compreender que “os documentos não falam, senão quando sabemos
interrogá-los” (BLOCH, 2001, p. 79) (BARROS, 2012, p. 255). Para eles, a história não seria apenas “o
registro de uma sequência de acontecimentos a partir apenas dos documentos escritos” (BOURDE &
MARTIN, 2010, p. 121), para fazer Nova História teria-se que usar os documentos não escritos, as
ciências vizinhas, para assim criar uma história total capaz de abordar todos os aspectos da atividade
humana.
A Segunda Fase (1946-1969) teve como idealizador Braudel. Este buscou fazer uma história do
homem e do ambiente, do homem em relação ao seu meio. Nesse período tivemos uma ampliação e
expansão da influência dos Annales no mundo ocidental. Sua maior contribuição foi transformar as
noções de tempo e de espaço dos historiadores (Burke, 2010). O tempo histórico era visto por ele
subdividido em tempo geográfico, social e individual. E os fatos poderiam ser historicizados através da
interação do tempo, do meio, da economia, da sociedade, da política, da cultura e dos acontecimentos.
Braudel utiliza o modelo estrutural e incorpora o conceito de longa duração ao fazer histórico. Para
Braudel, a História seria uma “complexa ciência do geral, orientada por uma abordagem globalizante,
que seria capaz de organizar as demais ciências sociais a partir de sua própria centralidade” (BARROS,
2012, p. 268). Fato que reforça o caráter de interdisciplinaridade defendido pelos Annales. A idéia de
História Total proposta pelos Annales, em Braudel é vista como a história do todo ou a história de tudo,
de tudo o que se deseja compreender historicamente. É uma “História Total a partir de uma história do
todo” (BARROS, 2012, p. 277), onde passamos a ter a articulação do social (economia, cultural,
política, mentalidades, crenças, manifestações) e uma ampliação do campo de possibilidades de estudos
históricos.
Braudel situa a história em relação ao tempo em três escalões: “a superficial, de acontecimentos que
se inscreve no tempo curto. A meia encosta, uma história conjuntural que segue um ritmo mais lento. E em
profundidade, uma história estrutural, de longa duração” (BOURDÉ & MARTIN, 2010, p. 131). A
terceira fase dos Annales tem um diferencial; nela não tivemos um organizador do grupo, mas diversos
nomes organizando-se a partir das idéias dos Annales e construindo a Nova História.
Nesta fase viu-se um contexto histórico mais amplo e uma mudança na historiografia. Mulheres
passaram a fazer parte do grupo, idéias de diferentes partes do mundo foram aceitas. Ocorreram novas
aberturas, retornos e possibilidades de estudos que levaram também a pensar nas incertezas referentes à
natureza do conhecimento e ao papel desempenhado pelo conhecimento histórico na sociedade. A terceira
geração dos Annales utilizou o termo Nouvalle Histoire para sua forma de fazer história (BARROS,
2012). Eles traziam heranças das fases anteriores dos Annales, mas queriam dar novas contribuições à
História.
Passou-se a pensar a micro-história, atenta aos detalhes, as microrrealidades e a valorizar o âmbito
cultural. Orientação reflexiva que levou ao surgimento da História Cultural que passou a se “ocupar uma
posição central no grande cenário das modalidades historiográficas” (BARROS, 2012, p. 306). Houve
novamente uma ampliação dos objetos e das dimensões dos estudos, do conhecimento historiográfico,
dos campos históricos, das temáticas estudadas. E a “História Total”, defendida pelos Annales, passa a
ser vista como a história de tudo (BARROS, 2010). A interdisciplinaridade continuou a ser o traço de
unidade entre as gerações dos Annales, só que nesta terceira geração observou-se um destaque dado à
Antropologia.
Outro ponto a que foi dado continuidade foi a ampliação de temáticas e problemas históricos. “A
liberdade temática, e a escolha de problemas, era explorada pelos historiadores dos terceiros Annales
com liberdade inigualável” (BARROS, 2010, p. 327). Evidenciou-se também uma projeção dos
historiadores da História das Mentalidades, que “buscavam estudar as formas coletivas de pensar e
sentir” (BARROS, 2012, p. 329). A história das mentalidades ganha força a partir da década de 1960,
passou a ser um novo espaço de ação relacionado ao mundo mental e aos modos de sentir.
Para identificar os modos coletivos de pensar e de agir, estes historiadores usaram três aspectos
metodológicos: “(1) a abordagem serial, (2) a eleição de um recorte privilegiado que funcione como
lugar de projeção das atitudes coletivas (uma aldeia, uma prática cultural, uma vida), ou finalmente (3)
uma abordagem extensiva de fontes de naturezas diversas” (BARROS, 2012, p. 337). Buscava-se uma
abordagem sistemática, preocupada com a homogeneidade das fontes e seu lugar preciso dentro da série,
o que proporcionou uma abertura aos novos modos de fazer história, com os historiadores franceses da
Nouvelle Historie.
Diversos temas poderiam ser trabalhados a partir de enfoques relacionados às dimensões sociais (a
política, a economia, a cultura, as mentalidade, o imaginário e assim por diante). Percebemos que, nesse
período, a maioria dos historiadores não seguia uma única e linear influência, geralmente combinavam
influencias da História e entrelaçava suas sub-especialidades. Não obstante, em face das mudanças de
uma geração para outra, o que perpassou e uniu as três gerações dos Annales foi a interdisciplinaridade.
Todos “os estudiosos da Escola dos Annales são unânimes em apontar a interdisciplinaridade como o
grande traço de identidade que de alguma maneira unifica todo o movimento dos Annales” (BARROS,
2012, p. 355). E é justamente ela que possibilita a união de aspectos como história problema, o caráter
construtivo da História, a ampliação de fontes, a expansão dos campos históricos e dos objetos de
estudos disponíveis ao historiador.
De modo mais sumário, de acordo com Barros (2012, p. 210), o que continuou nos diferentes autores
das fases dos Annales foi a “interdisciplinaridade, a história problema e a recusa ao tratamento
tradicional do político”. E o que pode ser visto como ponto de discordância é a História Total defendida
pelas primeiras gerações dos Annales em relação ao entendimento que esse termo ganhou na terceira
geração.
Outra inovação promovida pelos Annales implica uma ainda crescente ampliação da noção de
fontes: documentos, e objetos, signos, fotografias etc., qualquer vestigio deixado pelo homem passou a
servir como fonte e dados para pesquisas. O documento passou a ser visto não como algo que fala por si
mesmo, mas sendo um aporte ao qual é necessário se fazer “perguntas adequadas” (VIERIA; PEIXOTO
& KHOURY, 1991, p. 15). Exigindo assim um olhar refinado pelo estudo do pesquisador, para indagar as
fontes, observar o lugar onde elas foram produzidas e as relações que elas estabeleceram e ainda
estabelecem. Para os campos e temáticas que não eram abordados pela história das mentalidade tivemos
uma nova História Cultural, que desde os anos de 1990 abarcou estas temáticas.
A História Cultural teria como principal objetivo “identificar o modo como em diferentes lugares e
momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada” (CHARTIER, 1988, p. 16-17).
Chama a atenção para que gestos, comportamentos, representações sejam observados no entendimento de
um objeto de estudo, e não apenas os discursos e documentos. Isso se deve à algumas inovações
interdisciplinares nas décadas de 1970 a 1980, inspiradas pelo encontro entre historiadores e
antropólogos e no final da década de 1980 a expressão Nova História Cultural passou a ser utilizada. A
partir daí, os historiadores “tornaram-se cada vez mais conscientes de que pessoas diferentes podem ver
o “mesmo” evento ou estrutura a partir de perspectivas muito diversas” (BURKE, 2008, p. 101).
VEYNE (1988) corrobora com este entendimento quando coloca que a história que é produzida é
subjetiva, e é resultado da projeção de valores de quem organiza o que é pesquisado. O que é produzido
é uma resposta dada às indagações que o pesquisador fez às fontes analisadas. Assim, não existe uma
história total, mas sempre uma história de algo. “Toda história, [...] econômica ou social, demográfica ou
política, é cultural, na medida em que todos os gestos, todas as condutas, todos os fenômenos
objetivamente mensuráveis [...] são o resultado das significações que os indivíduos atribuem às coisas,
às palavras e às ações” (CHARTIER, 2009, p. 133).
O desafio da história cultural seria pensar, portanto, a articulação entre os discursos e as práticas, os
meios de produção e a recepção, pois além do discurso, é necessário observar as condições e as
possibilidades de cada contexto. Assim, observar toda cultura envolvida no processo escolar. A cultura
como práticas comuns que os indivíduos vivem e refletem sua relação com o mundo, com o outro e com
ele mesmo. Segundo a visão de uma Nova História, a figura do historiador passou a ser constituída de
modo especial e determinante quanto à forma e ao conteúdo das narrativas; na medida em que uma certa
particularidade é não apenas aceita, mas incentivada como possibilidade de descoberta, desde o
momento em que escolhe seu objeto de estudo, o processo metodológico como vai trabalhá-lo em termos
analíticos e organizacionais, quanto na exposição de suas sínteses e conclusões.
Desse modo, a história não mais pode ser vista como de uma dada supra-autoria anônima, pois neutra
e universal. Não obstante, um fato histórico pode mudar a partir da leitura e pela escrita particular de
algum autor que, apenas pelo fato de ser um sujeito particular, encontra indícios que outros não
encontraram. A narrativa deixa de ser um fato passado coletado e passa a proporcionar “[...] um olhar
dirigido ao passado: a partir do que esse objeto ficou representado” (BORGES, 2005, p. 45). Estudar a
historia a partir daí levou ao entendimento de que “[...] as fontes ou documentos não são um espelho fiel
da realidade, mas são sempre a representação de parte ou momentos particulares do objeto em
questão”(BORGES, 2005, p. 61). Novos olhares foram atribuídos aos objetos de estudo da história,
novos problemas e novos instrumentos foram incorporados ao olhar do historiador a partir de sua
particularidade incluída enquanto sujeito ou autor da escrita da história.
O texto historiográfico passou a ser evidenciado como “[...] o resultado de uma explícita e total
construção teórica e não mais o resultado de uma narração objetivista de um processo exterior,
organizado em si” (REIS, 2010, p. 93). Assim, o passado não é reconstruído de forma definitiva, mas é a
todo momento construído e reconstruído sob ótica e olhares diferenciados, tendo como base objetos de
estudo e questões a serem investigadas. Nesse sentido, o historiador deve definir seu objeto de estudo e
as fontes a serem consultadasde modo explícito, segundo uma localização epistemológica consciente de
sua proposta. Ou seja, como dissemos anteriormente, compreendendo que parte do objeto de pesquisa
observado está localizada no próprio campo de pensamento do historiador, constituído por regras
paradigmáticas específicas em suas teorias e metodologias.
A escola, enquanto instituição de ensino e de aprendizagem, passou a ser vista como tendo uma
cultura própria, a cultura escolar; não mais restrita à chamada “Alta Cultura” sustentada pelas produções
artísticas, literárias, filosóficas e científicas da elite financiada pelo Estado, Igreja e Burguesia. Esta
deve ser entendida como tudo o que acontece na escola, através das relações estabelecidas entre todos os
agentes que vivenciam o espaço escolar; inclusive no que se refere à negação dos aspectos da “Alta
Cultura”. Chervel (1998) coloca que a escola tem a capacidade de produzir uma cultura própria,
específica, singular e original, e esta produção traz efeitos à sociedade e à cultura até então submitida ao
olhar universalizante da filosofia eurocêntria.
A cultura escolar seria “o conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a
inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação
desses comportamentos” (JULIA, 2001, p. 10). Estudar a cultura escolar é observar, portanto, as
transferências estruturais e culturais que acontecem na escola, mas também observar os elementos
existentes neste processo e os problemas vistos nestas trocas, bem como os modos de pensar e agir. É
ampliar o olhar para além das normas e observar as práticas desenvolvidas e vividas. Não nos
esquencendo que esse tipo de dinâmica do pensamento apenas foi possível devido à contribuição dos
Annales através da difusão de suas idéias, quando houve uma ampliação dos objetos de estudo, dos
olhares dado a estes e das fontes utilizáveis pra compreensão deste objeto de estudo.
Para estudar a cultura escolar o historiador deve interessar-se pelas normas e finalidades que regem
a escola, avaliar o papel desempenhado pela profissionalização do trabalho do educador e observar e
analisar os conteúdos ensinados e as práticas escolares desenvolvidas (JULIA, 2001, p. 19). Assim, cabe
aos historiadores observarem as práticas cotidianas e o funcionamento interno da escola através da
ampliação do olhar para as fontes estudadas. Para poder “estabelecer a mediação entre a cultura pensada
e a cultura vivida” (FELGUEIRA, 2001, p. 31).
Estudar a cultura escolar é buscar compreender as práticas desenvolvidas na escola e os processos
educativos que foram organizados, buscando distribuir conhecimento através da articulação entre
políticas e práticas curriculares. É entender que o que é visível, é a tradução do que foi esperado pelos
programas oficiais com a interação do vivido no sistema escolar e seus efeitos imprevisíveis que também
formam currículos, ou seja, caminhos ou percursos de ensino e de aprendizagem. O que é encontrado na
escola (e o que pode servir como fonte histórica) mostra o fazer, a organização, as regras, os rituais
materializados. Estudar a cultura escolar é observar o que é apresentado, o cotidiano da educação, com
suas teorias, princípios, critérios, normas e práticas.
Neste sentido, estudar a cultura escolar nos remete ao entendimento da escola enquanto uma
instituição que tem objetivos e finalidades específicas, e com uma configuração própria que expressa
uma cultura vivida e desenvolvida em seu espaço. Nela, conhecimentos são ensinados e produzidos a
partir da interação entre os agentes que fazem esta instituição. A escola deve ser entendida “como uma
instituição que, embora obedeça a uma lógica particular e específica da qual participam vários agentes,
tanto internos como externos, deve ser considerado como um lugar de produção de um saber próprio”
(BITTENCOURT, 2014, p. 38-39).
Para VIÑAO (2008, p. 206), a escola é composta por agentes que organizam o currículo e as
disciplinas que estarão no seu fazer pedagógico. Nesse processo existem códigos disciplinares, regras
que consolidam e dão estabilidade às disciplinas na escola, que são transmitidos de uma geração a outra.
Assim, conteúdos, discursos com valor informativo e utilidade acadêmica e práticas (modo de ensinar os
conteúdos) são organizados de forma específica para que haja o aprendizado. A escola seria o local onde
normas e práticas definem o conhecimento a ser ensinado, os valores e comportamentos a serem
apreendidos, e é este caminhar, ou seja, esse currículo – caminho – que gera a cultura escolar. Mas, que
por ser um percurso sempre em processo de aberturas, de trilhas, de horizontes nunca totalmente
definidos programaticamente, implica-se aí uma noção dinâmica de cultura.
É importante ressaltar que a escola, enquanto espaço onde se estabelecem formas especificas de
relações sociais e ao mesmo tempo transmite saberes e conhecimentos, está ligada a formas de exercícios
de poder e é estruturada por sistemas de ensino com princípios específicos e hierarquias administrativas.
Com a História Cultural busca-se escrever uma historia da instituição escolar enquanto “uma tentativa de
enunciar, de elaborar um discurso, uma interpretação à qual se daria um estatuto privilegiado, vinculado,
o mais possível, a diferentes momentos ou fases da instituição e o seu contexto” (WERLE, 2004, p. 14).
O que abrange aspectos normativos, formas de gerenciamento, decisões políticas, tempos e espaços,
articulações entre profissionais e usuários da escola, modalidades oferecidas, relações externas à escola
que buscam levar ao entendimento da organização institucional, das relações administrativas e do
contexto vivido.
Para isto, busca-se estudar objetos, documentos, artefatos e tudo que pertence à cultura escolar e que
serve para mostrar o que foi vivenciado e desenvolvido no ambiente escolar. Ressaltando que não temos
a historia da instituição escolar, mas uma versão das muitas histórias possíveis, em decorrência do olhar
de quem as narra, das temáticas colocadas em foco e das perguntas feitas às fontes históricas disponíveis
e acessíveis no momento presente (WERLE, 2004). Toda instituição escolar é organizada a partir de
regras, objetivos, finalidades, políticas educacionais, orientações pedagógicas apresentadas através do
currículo com intuito de mostrar a cultura escolar de determinado local.
Estudar o currículo é estudar versões e documentos buscando estabelecer sentidos e reconstruir uma
rede de significados que se materializam no campo escolar na forma de cultura. De acordo Goodson
(1995) o termo currículo advém da palavra latina Scurrerre, e refere-se a um curso a ser seguido, a ser
apresentado. Por isso, em alguns momentos históricos, o currículo escolar esteve associado a um
caminho a seguir, a listagem de conteúdos. As primeiras discussões sobre currículo até a década de 1970
apontavam que a educação brasileira foi construída pelas tendências curriculares do escolanovismo e do
tecnicismo, ambas com intuito de controle social, através de uma coesão e eficiência social para manter a
conformação da sociedade para fins economicamente liberais, industriais e urbanos. Nesse período, o
currículo tinha como base padrões de tradição e estabilidade. E era entendido como a seleção e
organização dos conteúdos a serem ensinados, de forma técnica e administrativa de um ponto de vista
programático.
Nas décadas de 1980 observou-se uma reinvenção e reconstrução do currículo, viu-se uma tendência
mais crítica e com um novo olhar para as questões de conhecimento e poder, passou-se a ver a
possibilidade de transformação e emancipação do homem a partir do processo de apropriação do
conhecimento. A teoria curricular com embasamento crítico passou a analisar relações entre
“conhecimento e poder vinculando currículo e estrutura social, currículo e cultura, currículo e poder,
currículo e ideologia, assim como currículo e controle social” (JAEHN, 2012, p. 117). A partir de
meados da década de 1990 movimentos teóricos como pós-estruturalismo, o pós-marxismo e os estudos
da cultura passaram a dar significados ao currículo. Assim, novas abordagens de pesquisa curricular
foram incorporadas e o que acontece fora da escola passou a ser observado também.
Os primeiros estudos sobre currículo desenvolvidos por Goodson buscavam observar os objetivos
do ensino e as práticas curriculares que aconteciam na sala de aula, o dia a dia da interação entre
professor e aluno, a história interna da escola e do currículo. Vislumbrava-se “uma história do currículo
que, a seu juízo, havia de se construir com um triplo objetivo: lançar luz sobre a realidade
contemporânea; examinar, por prova ou contribuir para a teoria pedagógica; ocupar-se [...] do processo
interno da definição, ação e mudança do currículo” (GOODSON, 1995, p. 27). Assim, o currículo é
entendido por alguns autores como o conjunto de disciplinas ofertadas pela escola, ou como plano e
proposta para o ensino, ou enquanto uma construção social e cultural.
Neste estudo o currículo será entendido como o “conjunto daquilo que se ensina e daquilo que se
aprende” (FORQUIN, 1996). O que dá a possibilidade de observar além do que está escrito
oficialmente. Estudar o currículo é estudar os conteúdos escolares, os métodos de ensino, os percursos de
estudos, os processos internos da escola, buscando pistas para entender a relação existente entre escola e
sociedade. O currículo deve ser compreendido como uma seleção de conhecimentos no interior de uma
cultura que constituem um corpo de saber legitimado que deve ser preservado dentro de uma cultura.
Assim, o currículo de um determinado período histórico “representa formas de conhecimento, valores e
crenças que alcançaram especial status nesse dado período” (LOPES, 1998, p. 61).
Para Goodson (1997) existe um currículo escrito e um currículo em ação. O currículo escrito é “o
testemunho público e visível das racionalidades escolhidas e da retórica legitimadora das práticas
escolares” (GOODSON, 1997, p. 20). Nele está planejado ou programado e expresso as interações de
escolarização previstas ou desejáveis segundo alguns interesses e fins. É uma fonte documental, um
roteiro para estruturar a institucionalização da vida educacional das pessoas; direciona objetivos para a
sala de aula, define conteúdos e orientações a serem desenvolvidas no ambiente escolar.
O currículo em ação é o que é materializado e vivenciado em sala de aula ou no ambiente escolar
mais amplo e que teve como base o currículo escrito, mas que muitas vezes desse se desvia, vai além ou
aquém dos conteúdos e dos métodos programáticos. Em outras palavras, conta tanto com algumas
realizações previstas no plano de curso escolar, quanto em suas irrealizações; que consistem em aspectos
– conteúdos, objetivos e/ou métodos – que, embora previstos, não aconteceram, não atingiram suas
finalidades.
Por exemplo, suponhamos que o currículo escolar prescreva que ao final do primeiro ciclo do ensino
fundamental o estudante deverá apresentar como conteúdo aprendido a prática de um esporte. Contudo,
de acordo com uma avaliação – mediante instrumento e técnica –, verifica-se que a aprendizagem
ocorreu, porém em um estágio de desenvolvimento inferior ao esperado. observa-se, nesse caso fictício,
que a prescrição curricular não se realizou por completo apesar de sua ação ter sido executada.
De outro modo, vamos refletir que esse estudante – hipotético – não atingiu um dado modelo de
desenvolvimento para a prática do futebol, então previsto no programa da disciplina de Educação Física
e da escola. Entretanto, esse mesmo educando demonstra ter aprendido e desenvolvido a prática da
capoeira de maneira mais próxima a um modelo estabelecido. Diante disso, consideramos ainda que a
prática corporal – a capoeira – então aprendida e desenvolvida não estava prevista nos programas
escolares. Tal conteúdo, portanto, embora assimilado, agiu no interior da escola a despeito ou às margens
do currículo prescrito. Certamente essa ação – estrangeira – se fez presente por meio de um grupo de
outros estudantes que por ventura, fora da escola, em outro ambiente institucional ou familiar, aprenderam
e desenvolvem a prática da capoeira.
Em suma, o currículo em ação consistem nas práticas curriculares efetivamente realizadas. Para
estudar o currículo escolar é necessário observar ambos os currículos definidos por Goodson (1997),
pois o que está prescrito poderá ou não estar no cotidiano escolar. Sua presença cotidiana pode ocorrer
tanto com quanto sem resistências locais. Assim, a instituição escola pode oscilar entre se utilizar de
estratégias de poder e violência para efetivar a prescrição curricular e estratégias de diálogo e
flexibilização. Por essa via, o currículo programático anuncia uma espécie de cultura escolar
institucional. Todavia, a escola não pode ser confundida com seu planejamento.
A escola, habitada e constituída por pessoas de origens comuns ou diferentes, apresenta uma certa
cultura própria. Isto é, uma realidade tecida por símbolos objetivos e subjetivos; materiais e mentais, que
certamente não será encontrada em outra escola; tampouco em qualquer outro lugar social. Por isso, não
significa que tal cultura própria seja a reprodução da cultura de um bairro, comunidade, aldeia, tribo ou
cidade que a envolve; de onde seus estudantes são oriundos. A escola implica, portanto, um ambiente
institucional e social de encontro, de modo que enquanto permanece em ação, um fenômeno cultural pode
ser observado.
As práticas didáticas e pedagógicas desenvolvidas na escola têm nelas valores, normas de condutas
que a relacionam com a sociedade e desse encontro organizam o fazer da escola. Não obstante, o termo
sociedade não designa um ente abstrato, universal, estático, unitário e sem contradições e pluralidades.
Dizer que as práticas escolares se relacionam com a sociedade significa comunicar que as mesmas
interagem com grupos sociais diversos, conflituosos, contraditórios, problemáticos, inimigos; bem como
com corporações confluentes, similares e aliadas. Por essa via de raciocínio, quando a cultura escolar,
expressa por suas práticas, apresenta-se no contato com a sociedade, efeitos diversos serão provocados
no seio de cada grupo, comunidade, família, cidade, país.
É nesse sentido que o currículo, fruto do encontro e da produção entre programático e imprevistos,
vai se materializar no contexto das aulas, no qual alunos e professores interagem e trocam experiências
sociais e culturais desde os guetos dos quais fazem ou fizeram parte. E neste ambiente social vivenciado
na escola, significados e comportamentos são desenvolvidos de maneira distinta tanto dos programas de
governo quanto das culturas locais das quais os estudantes são oriundos. Observa-se uma cultura escolar,
com características singulares, por meio do qual o currículo se apresenta na escola e organiza o
funcionamento interno, as relações dos professores com a legislação e normas, os conhecimentos
ensinados e as práticas escolares desenvolvidas.
É relevante colocar que o currículo escolar é formado a partir da relação entre escola e sociedade,
num processo onde fatores intelectuais, sociais, formais se comunicam com aspectos culturais,
simbólicos para se legitimar no âmbito escolar. Ele busca organizar o que será trabalhado e
instrumentaliza a prática educativa. Neste processo, a escola, é uma parte integrante de um sistema que
tem uma legislação de base, mas ao mesmo tempo é um universo composto de especificidades e com
cultura própria. Sendo que, ao falarmos em cultura própria, corremos o risco de também dizermos em
leis, normas e regras próprias; que muitas podem infringir os aspectos gerais da estrutura.
Por isso, o currículo é compreendido como algo que passa por mudanças que são organizacionais
(escola, sala de aula); também institucionais, bem como culturais (GOODSON, 1997). Goodson buscou
observar as prescrições escritas e originárias de órgãos políticos e administrativos, mas também os
livros, as guias e programas, o planejamento que o professor utilizava. Para assim entender o currículo
tendo como base uma “teoria que é também, em sua elaboração, uma prática – e ação” (GOODSON,
2003, p. 231).
O currículo compreende a seleção, a sequencia, a dosagem de conteúdos da cultura a serem
desenvolvidos na escola. Ele compreende conhecimentos, hábitos, valores, teorias, técnicas, recursos,
artefatos, procedimentos, símbolos, competências, habilidades disposto num conjunto de disciplinas
escolares que se constituem por programas específicos que visam consolidar sua especificidade no
campo escolar. É no currículo prescrito que está definido o tipo de ensino que deverá ser enfatizado, mas
é no currículo em ação que podemos a real formação que está sendo privilegiada, as necessidades
(familiares, individuais, de mercado, do Estado, de uma classe social) a serem atendidas.
A história do currículo deve possibilitar o entendimento dos processos internos de definição, ação e
modificação do currículo. Ela consiste dos estudos históricos que têm como objeto “o currículo enquanto
conjunto de conhecimentos selecionados e enquanto conjunto de práticas e rituais associados ao processo
de transmissão e construção destes conhecimentos”(LOPES, 1998, p. 60). Assim, a escola é considerada
como “algo a mais do que um simples instrumento da classe dominante” (GOODSON, 1995, p. 120), não
é vista como o espaço que serve apenas para a reprodução das estruturas e da “Alta Cultura”; tampouco
se reproduzem as culturais locais na forma de guetos. É o encontro de tudo isso que faz gerar uma cultura
escolar.
Com isso, é possível notar que nos encontramos em um ponto do desenvolvimento teórico desta
dissertação já bem distante das perspectivas tradicional e positivista da história, contra as quais a Escola
dos Annales lutou durante suas três gerações, assim como transferiu essa luta para os demais movimentos
intelectuais por ela motivados. Em outros termos, a noção de História Geral, Universal e/ou Oficial já
fora densamente criticada e desconstruída pelas reflexões precedentes. Não obstante, importa destacar,
para prosseguirmos com o texto, que, em síntese, a Escola dos Annales, considerando seu projeto para a
construção de uma Nova História, impingiu um movimento que se desloca do pensamento sintético em
direção à reflexões cada vez mais analíticas.
Podemos dizer que se a Velha História produziu narrativas capazes de formar um imaginário social
linear e contínuo de uma História sem fissuras, lacunas, sombras, dúvidas, marginais, anonimatos etc.; os
Annales iniciou e fomentou trabalhos ao estilo da antropologia e da arqueologia. Nada de objetos e
narrativas prontas e totais. Toda narrativa histórica esconde em seu interior inúmeras histórias; mais
breves, mais longas, coletivas, individuais etc.. A historiografia não mais está a serviço dos grandes
ideais ou as chamadas Meta Narrativas ou Grandes Narrativas, cuja direção sempre apontou para a
conclusão ontológica acerca do Homem; ou seja, uma definição – única, sólida, perene – acerca do que é
o Homem.
Da síntese à análise, do total iluminado ao fragmento opaco, a Nova História caminha do geral para
o específico; do Homem para os homens em sua pluralidade cultural, social, política, econômica,
religiosa etc.. Como já dissemos anteriormente, agora nas palavras de Funari e Silva (2008, p. 71):
“Epistemologicamente, a terceira geração [dos Annales] pode ser definida pela ampliação de temas de
pesquisa e pelo aporte interdisciplinar à história. Temas como morte, doença, alimentação, sexualidade,
família, loucura, bruxaria [...]” nos levam facilmente à conceber uma história do currículo escolar. Mais
do que isso, abre-se a possibilidade analítica de estudar as histórias dos currículos no interior das
histórias dos currículos escolares.
Ao estudar o currículo escolar é necessário entender que cada disciplina tem uma história de seu
currículo; uma história específica. Mas, quais as diferenças entre uma história da disciplina de uma
história do currículo? A história de uma disciplina escolar é um campo de estudo e pesquisa que busca
investigar as transformações ocorridas numa disciplina ao longo do tempo, observando conteúdos e
métodos de ensino destas. Neste sentido, o que faz uma disciplina escolar estar ou não num currículo?
Goodson (1997) coloca que esta presença é determinada pela tradição acadêmica, utilitária e
pedagógica. Que a nosso ver essa presença determinada se resume ao seu currículo programático ou em
ação.
Isso quer dizer que os estudantes e os professores percorrem o interior de uma disciplina
diferentemente do percurso que realizam em outros. Grosso modo, para vermos isso, ainda que de
maneira elementar, basta considerarmos as afinidades e gostos variados dos estudantes em relação às
disciplinas: alguns, preferem matemática; outros, geografia. Alguns educandos conflitam com o professor
de literatura, mas tem relação pacífica com o de história. Viñao (2008) coloca que o currículo é
composto por saberes elementares, por disciplinas, por exercícios e por atividades feitas na escola. O
que nos leva a estar atento ao fato de que “existem disciplinas ou matérias que não podem receber a
aplicação da expressão disciplina escolar” (VIÑAO, 2008, p. 200), mas que estão na escola.
Juliá (2005, p. 52) corrobora com este entendimento quando coloca que devemos atentar nosso olhar
e não cometer o equivoco de pensar que “uma disciplina não é ensinada porque não aparece nos textos de
programação ou porque não existem cátedras oficialmente criadas sob esse nome”. É o que, por exemplo,
observamos ao longo da história da disciplina Educação Física no Colégio de Aplicação da
Universidade Federal de Sergipe, que nos momentos iniciais, apesar de não ser apresentada no currículo
oficial prescrito da escola, seus conteúdos já possibilitavam um certo percurso opaco no interior das
práticas escolares e, portanto, do currículo escolar.
Viñao (2008) coloca que as disciplinas escolares podem ser campos de poder social e acadêmico,
apropriações de professores e espaços sociais, fonte de exclusão social e acadêmico, instrumento de
reconhecimento de saber profissional. O que vai determinar isso ou aquilo é o campo de poder social e
acadêmico que cada disciplina tem, algo construído pelos atores e interesses que perpassam o espaço
escolar. Reforça que o processo educativo não é neutro e não está alheio às modificações políticas e da
sociedade.
Nesse sentido, Goodson (1995) coloca que uma disciplina surge no currículo inicialmente para
responder a uma necessidade social imediata, mas para ela se manter precisa de uma tradição e uma
utilidade acadêmica. Logo, “a manutenção de uma disciplina escolar no currículo deve-se a sua
articulação com os grandes objetivos da sociedade” (BITTENCOURT, 1998, p. 18).
Ate o fim do século XIX o termo disciplina e disciplina escolar não designavam a mesma coisa.
Disciplina era um termo ligado à vigilância e repressão de condutas que eram tidas como prejudiciais à
ordem e à educação. Só nas primeiras décadas do século XX é que este termo ganha sentido relacionado
ao currículo, isto é, ao que é ensinado e para designar conteúdo de ensino. E partir da Primeira Guerra
Mundial ela passou a servir para classificar as matérias de ensino (SOUZA JUNIOR & GALVÃO, 2005):
“matéria de ensino suscetível de servir de exercício intelectual” (CHERVEL, 1990, p. 179), de modo que
o sentido de disciplina não foi totalmente excluído, pois o conteúdo, ou seja, sua seleção, é uma das
estratégias de disciplinar o espírito, dar ao educando métodos, regras e ensinamentos dos diferentes
domínios do pensamento.
Por isso, o termo disciplina escolar esteve ligado ao termo conteúdo de ensino, e na escola
observou-se que estes estiveram influenciados pela sociedade na qual se está inserida e pela cultura na
qual se banha. Inicialmente, o termo disciplina era usado para elencar uma combinação de saberes a
serem aplicados pedagogicamente sobre o aluno. Com o passar dos anos, passou-se a observar sua
gênese, função e organização no espaço escolar, a fim de identificar como se materializa cada disciplina
e como se dá o processo de aculturação de massa que ela vem a determinar.
Assim, estudar a história da disciplina passou a levar ao entendimento da finalidade da escola e da
história do ensino nas instituições escolares. E estudar uma disciplina seria pensar e refletir acerca de
objetivos, origens e influencias, bem como se deu o processo de seu ensino e sua evolução didática.
Neste sentido, disciplina é “aquilo que se ensina e ponto final” (CHERVEL, 1990, p. 177). Assim, tudo o
que é ensinado na escola faz parte da disciplina que compõe a escola.
Estudar uma disciplina é levar em conta “os conteúdos ensinados, os exercícios, as práticas de
motivações e de estimulação dos alunos, que fazem parte dessas “inovações” que não são vistas, as
provas de natureza quantitativa que asseguram o controle das aquisições (JULIA, 2001, p. 34). Em suma,
seu currículo; mas não só. O que nos leva à compreensão da instituição de ensino e suas relações com a
sociedade. As forças que determinam a presença ou ausência de uma disciplina na escola ou mesmo de
seus conteúdos particulares. Investigar uma disciplina dentre de um ambiente educacional possibilita a
compreensão da cultura escolar. Assim, disciplinas escolares são vistas como “modos de transmissão
cultural que se dirigem aos alunos” (CHERVEL, 1990, p. 186).
Passou a ser importante identificar, classificar e organizar os objetivos de instrução e educação aos
quais a disciplina escolar está envolvida no sistema escolar. Assim, as disciplinas escolares passaram a
estar no centro da organização escolar, e estas tiveram como função “colocar um conteúdo de instrução a
serviço de uma finalidade educativa” (CHERVEL, 1990, p. 188). Em outras palavras, a serem
constituídas por currículos prescritos especializados. Para entender o caminhar histórico de uma
disciplina escolar, deve-se buscar os textos oficiais, discursos ministeriais, leis, decretos, acordos,
planos de estudo, métodos de ensino, exercícios propostos, a evolução didática, a apresentação dos
conteúdos, enfim, o ato pedagógico desenvolvido pelos que fazem a disciplina na tentativa de torná-la
assimilável.
O campo escolar e a organização das disciplinas não é algo neutro, indissociável de questões
políticas e sociais. As políticas educacionais, os programas de ensino e os planos de estudos estão
voltados para fins de manter o que a sociedade determina, assim as disciplinas geralmente buscam
atender a esta finalidade. Mas atrelada a esta função, cada disciplina tem sua gênese e organização
interna, e muitas vezes o que é pré-determinado, é modificado no cotidiano escolar. Por isso, não só o
que é escrito é que deve ser observado, mas todo o processo no qual as disciplinas se organizam para
atender aos objetivos educacionais.
A história das disciplinas escolares passou a ser um campo de estudo após a década de 1970, com a
história cultural que ampliou o olhar para a cultura escolar. Cultura escolar entendida como “um conjunto
de normas que definem os saberes a ensinar e os comportamentos a inculcar, e um conjunto de práticas
que permitem a transmissão e assimilação de tais saberes e a incorporação dos conhecimentos” (JULIA,
1996, p. 129). A partir daí, a escola, passou a ser observada não só como espaço de reprodução e
transposição de conhecimentos externos, mas como “um espaço de produção de saber” (VIÑAO, 2008, p.
188). Isso apesar de toda disciplina imposta no sentido de determinar o percurso dos estudantes no
interior da escola.
A escola a ser vista como um local que traz o que vem de fora da escola, o adapta, o transforma e
cria um saber e uma cultura própria questiona a noção de currículo ligada à ideia de disciplina enquanto
rigidez no cumprimento da prescrição curricular. O local onde saberes e condutas nascem e apresentam
marcar características de uma cultura própria, cada disciplina escolar tem sua autonomia e gera um
conhecimento pedagógico próprio; não programático, para além do disciplinamento.
Ao buscar estudar uma disciplina escolar no currículo, deve-se observar a origem do ensino de cada
disciplina e a história das forças sociais que levaram ou não a uma disciplina estar num determinado
currículo, bem como que levaram a apresentar um dado currículo próprio e não outro. Fazer a história do
currículo de uma disciplina é tentar desvendar a caixa preta que busca revelar e compreender o que
ocorre neste espaço particular (JULIA, 2001). Os caminhos já demarcados ou os ainda fechados, por
onde certa e incertamente estudantes e professores passarão.
É necessário observar que uma disciplina escolar “é construída social e politicamente e os actores
envolvidos empregam uma gama de recursos ideológicos e materiais para levarem a cabo as suas
missões individuais e coletivas” (GOODSON, 1997, p. 27). Estudar a história da disciplina escolar leva
à compreensão dos saberes que são levados à escola. E estudar a cultura escolar é estudar e analisar os
processos e produtos das práticas escolares e os valores deste espaço. É a cultura escolar que dá a
possibilidade da análise das tradições e continuidades, “dos momentos, causas e modos de mudanças nos
conteúdos ou exercícios de uma disciplina, assim como dos processos de “disciplinarização” ou
transformação de um saber em objeto de ensino” (VIÑAO, 2008, p. 190).
A educação teria uma finalidade real e uma finalidade de objetivo. As finalidades reais perpassam
os interesses da comunidade escolar e concretizam as finalidades de objetivo. As finalidades de objetivo
teriam origem no que é proposto pelo oficial, através de decretos, leis, pareceres. Neste sentido, Juliá
(2001) coloca que a finalidade de uma disciplina esta indicada nos textos normativos dela, mas o olhar
para o ensino real é necessário para que se compreenda sua materialização no cotidiano escolar.
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Sobre os autores
Mariza Alves Guimarães é mestranda pelo PPGED-UFS. Professora de Educação Física do
CODAP-UFS. Especialista (2005) em Educação Física Escolar UNIT. Tem experiência em Educação
Física Escolar, atuando principalmente na pratica pedagógica, metodologias de ensino, educação física
escolar, conteúdos e organização do trabalho pedagógico no âmbito do currículo.
Renato Izidoro da Silva é docente colaborador do PPGED-UFS e professor do DEF-UFS. Doutor e
mestre em Educação pelo PPGED-UFBA. Líder do grupo de pesquisa: Corpo e governabilidade
(CORPOGOV). Tem como foco de estudo as bases epistemológicas acerca dos conhecimentos científicos
e pedagógicos sobre o corpo humano na intersecção entre Ciências Humanas e Ciências Naturais.
Hamilcar Silveira Dantas Jr. é docente do DEF-UFS. Doutor (2007) em educação pelo PPGED-
UFBA. Mestre (2003) em educação pelo PPGED-UFS. membro-pesquisador do Grupo de Estudos e
Pesquisas “História, Sociedade e Educação no estado de Sergipe” (NPSE/UFS), Grupo de Pesquisa
“História Popular do Nordeste”/UFS e do Centro de Memória da Educação Física, Esporte e Lazer de
Sergipe (CEMEFEL/UFS).
CAPÍTULO 2
G
ostaria de tecer algumas observações sumárias sobre a micro-história e sobre o seu mais
ilustre representante, o historiador Carlo Ginzburg. Para isto, dividirei a minha exposição da
seguinte maneira: primeiro, farei considerações sobre Carlo Ginzburg e sobre o impacto das
suas obras. Nesta parte, destacarei os principais trabalhos deste historiador (serão consideradas aqui
apenas as obras traduzidas para o português); fornecerei algumas informações biográficas sobre ele e
ressaltarei a sua influência junto à micro-história. Em seguida, apresentarei algumas características da
micro-história, a saber: o paradigma indiciário (referência para a micro-história praticada na América);
a sua relação com a antropologia; a redução das escalas de observação; a opção por objetos de estudo
inusitados; a forma “romanesca” de exposição por ela adotada. Por fim, retomarei, como traço
fundamental da macro-história, as alternativas criadas por sua ótica analítica diferenciada.
De início, aviso que não se trata de uma tarefa simples. Apesar de bastante citada, a micro-história é
pouco debatida. As discussões sobre ela ainda estão muito circunscritas a, como lembra Jacques Revel,
“um número relativamente restrito de grupos, de instituições e de programas de pesquisa”1. Não bastasse
isto, o próprio Ginzburg, que tomo como referencial a esta exposição, repele os rótulos de micro-
historiador ou micro-investigação. Todavia, a influência de Carlo Ginzburg à micro-história é inegável.
A sua forma de conduzir investigações neste campo se tornou referência para pesquisadores voltados aos
temas mais diversos. Desta forma, inicio com algumas palavras sobre este pesquisador.
Textos Referenciais
A micro-história não apresenta textos fundadores, manifestos ou compêndios teóricos. Aliás, para
Jacques Revel, esta é uma das suas características4. Porém, creio que em meio aos escritos de Ginzburg,
é possível pinçar, aqui e ali, referências sobre a sua concepção epistemológica da micro-história. Nisto,
dois textos são fundamentais. São eles: O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico e
Sinais: raízes de um paradigma indiciário.
O nome e o como consta no capítulo V da coletânea A micro-história e outros ensaios, lançada em
1991(edição esgotada). Neste artigo – publicado inicialmente em 1979, no Quaderni storici número 40,
com o título original de Il nome e il come: scambi ineguale e mercato storiografico –, Ginzburg observa
a situação de isolamento da historiografia italiana, a sua pouca penetração frente à historiografia
francesa, apontando as implicâncias da pesquisa histórica num país com arquivos como a Itália.
Avançando sobre esta questão, o italiano apresenta as motivações e as referências da micro-história
enquanto método de pesquisa.
Por sua vez, Sinais compõe a coletânea Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história lançada em
1986, publicada em 1989 no Brasil. Originalmente chamado Spie. Radici di um paradigma scientifico e
aparecendo inicialmente na Rivista Di Storia Contemporânea, em 1978, o texto é, para Ginzburg, um
“ensaio que pode ser lido como uma tentativa de justificar em termos históricos e gerais um modo de
fazer pesquisas”5. A partir deste dois escritos, é possível delinear uma definição.
A exposição “romanesca”
A opção dos micro-historiadores é por um novo formato de exposição. A escrita micro-histórica,
influenciada principalmente por romances policiais, utilizando-se de “procedimentos retóricos
destinados a produzir efeitos de realidade” 26, convida o seu leitor a participar da construção do objeto
de pesquisa e da sua interpretação. Neste processo, Ginzburg apresenta ao leitor as suas fontes da mesma
forma que, num típico romance policial, são apresentadas as pistas. O uso deste expediente é um dos
aspectos centrais para explicar o sucesso editorial da micro-história e, particularmente, dos trabalhos de
Carlo Ginzburg. Eis amostras desta forma de exposição, retiradas de dois clássicos escritos pelo
italiano. A primeira se encontra no há pouco mencionado O queijo e os vermes:
Os testemunhos se acumulavam; Menocchio pressentia que alguma coisa estava sendo preparada
contra ele. Foi então falar com o vigário de Polcenigo, Giovani Daniele Melchiori, seu amigo
desde a infância. Este o incentivou a se apresentar espontaneamente ao Santo Ofício, ou ao menos
a obedecer de imediato a uma eventual convocação. Avisou a Menocchio: ‘Diga o que eles estão
querendo saber, não fale demais e muito menos se meta a contar coisas; responda só o que for
perguntado27.
A segunda abre um capítulo de História noturna:
Bruxas e feiticeiros reuniam-se à noite, geralmente em lugar solitárias, no campo ou na montanha.
Às vezes, chegavam voando, depois de ter untado o corpo com unguentos, montando bastões ou
cabos de vassouras; em outras ocasiões, apareciam em garupas de animais ou transformados eles
próprios em bichos. Os que vinham pela primeira vez deviam renunciar à fé cristã, profanar os
sacramentos e render homenagem ao diabo, presente sob a forma humana (ou mais
frequentemente) como animal ou semi-animal.Seguiam-se banquetes, danças, orgias sexuais. Antes
de voltar para casa, bruxas e feiticeiros recebiam unguentos maléficos, produzidos com gordura
de criança e outros ingredientes28.
Porém, cabe um aviso. O sucesso das obras de Ginzburg e de outros estudos da micro-história não
decorre somente desta opção expositiva (e diria, também estética, característica esta digna de uma maior
investigação – algo que, evidentemente, foge ao escopo deste capítulo). Acontece que, aliado a este
cuidado na forma expositiva, há um lastro de erudição considerável, além de uma séria preocupação
analítica. A adoção de uma forma de escrita preocupada em apresentar-se palatável ao leitor não deve,
portanto, conduzir à falsa suposição de que a ocupação última da micro-história é a construção de uma
narrativa divorciada do rigor historiográfico. Pelo contrário, a prova, transformada para muitos em uma
espécie de “ilusão positivista”, é uma das inquietações de Ginzburg: “também eu sustento que encontrar a
verdade ainda é o objetivo fundamental de quem quer que se dedique à pesquisa, inclusive os
historiadores”. O italiano responde aos adeptos da redução historiográfica à retórica com aquela que,
segundo ele, seria a tese central de Aristóteles: “as provas, longe de serem incompatíveis com a retórica,
constituem o seu núcleo fundamental” 29.
Ao contrário do que afirma Joseph Fontana30, Ginzburg não parece se ocupar com produções
irrelevantes. Há, é verdade, momentos em que o próprio pesquisador italiano reconhece os limites do seu
método. É o que ocorre quando ele se lança na última parte de História noturna. Temos ali um imenso
esforço, no qual o autor se vale da longa duração (partindo do pressuposto de que a data em que o
fenômeno foi inicialmente registrado não é, necessariamente, a data do seu início)31 para, em meio às
“conjecturas euroasiáticas”, explicar as origens do sabá32. O cuidado em estabelecer investigações
rigorosas é um dos traços do trabalho de Carlo Ginzburg. E este é um dos seus conselhos aos demais
pesquisadores. A verdade, como observa Ginzburg, pode apresentar diversos níveis33. Contudo, muitas
críticas ainda se erguem devido à falta de atenção naquilo que poderia ser classificado como o traço
fundamental da micro-história.
Considerações Finais
Creio que, de forma geral, são estas as características da micro-história praticada por Carlo
Ginzburg. Emergindo num contexto de encruzilhada vivenciado pelas ciências humanas, esta forma de
conceber a história serviu como abrigo a muitos pesquisadores. Evidentemente, esta proposta, ao buscar
oxigenar a História, abriu portas para modismos e trabalhos que seriam duramente criticados mesmo que
não requisitassem para si o prefixo “micro”. A desconfiança em torno da micro-história aparece em
observações como a de Keith Thomas: “o que sou é contra essa moda, que não acho nada atraente. Em
primeiro lugar, para fazê-la bem [a micro-história] há necessidade de um toque de gênio! À primeira
vista, pode parecer fácil, mas de fato não é”38.
Hoje em dia, a micro-história não aparece mais como grande novidade. A explicação talvez resida
na mudança de contexto. No Brasil, os livros de Ginzburg ainda são relativamente recentes (se
considerarmos que O queijo e os vermes teve a sua tradução apenas em 1987, uma década após a sua
publicação na Europa). Daí a sensação de euforia que ainda é transmitida quando se fala da micro-
história. Daí, também, as críticas descabidas baseadas tão somente no seu suposto “ethos micro”39.
Experimentando estas reações do público há décadas, Ginzburg se irrita e mostra ter a defesa na ponta da
língua: ‘’não estou interessado em etiquetas e rótulos. O que faço não pode ser considerado redutivo
porque não trato de uma história menor. O prefixo micro refere-se a uma dimensão analítica, não à
pequenez do objeto estudado. Com um microscópio se pode ver e examinar até um elefante”40.
Referências Bibliográficas
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Sobre o autor
Dilton Cândido Santos Maynard é graduado em História e Mestre em Sociologia pela Universidade
Federal de Sergipe. Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-Doutor em
História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Departamento de História,
do Programa de Pós-Graduação em Educação(PPGED/UFS) e do Mestrado Profissional em História
(ProfHistória/UFS). É professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em História
Comparada/UFRJ. Tutor do Programa de Educação Tutorial do curso de História (PET História UFS).
Coordena o Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq). Pesquisador FAPITEC/SE.
Notas
1. Cf. J. Revel (Org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Trad. Dora Rocha. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.
2. GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII.
2ed.Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia das Letras, 2001 (publicado pela primeira vez em 1966,
com o título I benadanti: stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento); GINZBURG, Carlo. O
queijo e os vermes. 3 ed. Trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo:Cia da Letras, 2003 (publicado pela
primeira vez em 1976, com o título Il formaggio e i vermi: Il cosmo di um mugnaio del ´500);
GINZBURG, Carlo. Indagações sobre Piero: o Batismo – o ciclo de Arezzo – A flagelação. Trad. Luiz
Carlos Capellano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. il. (Oficina das Arte; v.4. Publicado pela primeira
vez em 1981, com o título Indagini su Piero); GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o Sabá.
2ed. São Paulo:Cia da Letras, 2001(publicado pela primeira vez em 1989, com o título Storia Noturna:
Una decifrazione del sabba).
3. GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de
janeiro: Bertrand Brasil, 1991 (Memória e Sociedade. Publicado pela primeira vez em 1989);
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Trad. Eduardo Brandão. São
Paulo: Cia das Letras, 2001(publicado pela primeira vez em 1998, com o título Occhiacci di legno –
Nove riflessioni sulla distanza); GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história.
2ed.Trad. Frederico Carotti. São Paulo: Cia das Letras, 2002 (publicado pela primeira vez em 1986, com
o título Mitti emblemi spie: morfologia e storia); GINZBURG, Carlo. Relações de força: história,
retórica, prova. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia das Letras, 2002 (publicado pela primeira vez
em 2000, com o título Rapporti di forza – storia, retórica, prova). GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é
uma ilha. Trad. Samuel Tintan Jr. São Paulo: Cia das Letras, 2004 (publicado pela primeira vez em 2000,
com o título Nessuna isola è un´ isola – Quattro sguardi sulla letteratura inglese).
4. J. Revel (Org.). Microanálise e construção social. Jogos de escalas: a experiência da microanálise.
Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.p.15-38
5. GINZBURG, Carlo. Prefácio. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. Trad. Frederico
Carotti. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p.7-14.p.cit. 7.
6. BURKE, Peter. O que é história cultural? . Trad. Sergio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
editor, 2005.
7. GINZBURG, C. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. A micro-história e
outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.169-
178.p.178.
8. Em entrevista a Maria Lúcia G. Pallares-Burke Ginzburg declarou: “quando dedidi estudar feitiçaria,
não estava fundamentalmente interessado na perseguição às bruxas, mas o que me seduzia era abordar as
perguntas dos inquisidores de modo a poder escapar de seu controle, o que evidentemente envolvia um
problema metodológico. Tinha a ideia de ler os processos nas entrelinhas e também a contrapelo,
desvirtuando, por assim dizer, as intenções das evidências; indo contra ou além das razões pelas quais
elas foram construídas. É o que Marc Bloch sugeriu quando falou sobre a estratégia de leitura tortuosa,
lendo, por exemplo, a hagiografia medieval não para conhecer a vida dos santos, mas como evidência da
história da agricultura medieval”. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. Carlo Ginzburg. As muitas
faces da Nova História: nove entrevistas. São Paulo: Editora UNESP,2000.p.269-306.p.285
9. GINZBURG, C. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. A micro-história e
outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.172
10. BURKE, Peter. O que é história cultural? . Trad. Sergio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
editor, 2005.
11. Vale notar que Ginzburg aponta a necessidade de delimitar a ideia de paradigma como dona de um
valor mais fraco e metafórico do que aquele ligado a Thomas Khun.Segundo ele, “a historiografia
continua a ser uma ciência pré-paradigmática”. GINZBURG, C. O nome e o como: troca desigual e
mercado historiográfico. A micro-história e outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de
janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.169-178.p.171. Cf. SANTOS, Irineu R. dos. A teoria do
desenvolvimento científico de Thomas S. Khun. Os fundamentos sociais da ciência. São Paulo: Polis,
1979. p.43-70GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. Mitos, emblemas e sinais:
morfologia e história. Trad. Frederico Carotti. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p.143-180. p.149
12. GINZBURG, C. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. A micro-história e
outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.169-178.
p. 176
13. O Moisés em questão é a estatua “Moisés”, localizada em San Pietro in Vicoli, Roma.Terminada em
1515, a peça em mármore foi originalmente concebida como um elemento para a tumba do Papa Júlio II.
As reflexões de Freud são motivadas, conforme o próprio autor, pelo fato de que: “nunca uma peça
estatutária me causou impressão mais forte do que ela”. FREUD, Sigmund. .O Moisés de Michelangelo.
Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XII: Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de
janeiro Edição Standard brasileira, Imago, s/d. p.251-280. Avanços interessantes sobre as observações
de Freud feitas à estátua de Michelangelo podem ser conferidas no seguinte artigo: MEDEIROS, Paulo
Roberto. Do Totem à lei: o Moisés de Michelangelo de Freud. Texto apresentado ao Ciclo de Palestras
Arte e Literatura promovido por Fundação Iberê Camargo. [on line]. Disponível na INTERNET via
http://www.recort.com.br/moises.html arquivo capturado em 16/04/2004.
14. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. Mitos, emblemas e sinais:
morfologia e história. Trad. Frederico Carotti. São Paulo: cia das Letras, 2002. p.143-180. p.150.
Ginzburg escreve: “o caçador teria sido o primeiro a narrar uma história porque era o único capaz de ler,
nas pistas mudas (se não imperceptíveis) deixadas pela presa, uma série coerente de eventos”.
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e
história. Trad. Frederico Carotti. São Paulo: cia das Letras, 2002. p.143-180.p. 152.
15. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. Mitos, emblemas e sinais: morfologia
e história. Trad. Frederico Carotti. São Paulo: cia das Letras, 2002. p. 166,167 e 177.
16. Cf. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. Keith Thomas. As muitas faces da Nova História: nove
entrevistas. São Paulo: Editora UNESP,2000.p.119-152.p.285
17. GINZBURG, C. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. A micro-história e
outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.169-178.p.
172 e 173.
18. LEVI, G.Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo: Editora
UNESP, 1992.p 136
19. Sobre descrição densa consultar: GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
LTC, 1989.LEVI, G.Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. Trad. Magda
Lopes.
20. GINZBURG, C. O Inquisidor como antropólogo: uma analogia s e suas implicações. A micro-história
e outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.203-
214.p.211
21. LEVI, G.Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo: Editora
UNESP, 1992.p.149
22. LEVI, G.Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo: Editora
UNESP, 1992.p. 133-162
23. Geertz afirmou que “o lócus de estudo não é o objeto de estudo. Os antropólogos não estudam as
aldeias (tribos, cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias. Você pode estudar diferentes coisas em
diferentes locais, e algumas coisas – por exemplo, o que a dominação colonial faz às estruturas
estabelecidas de expectativa moral – podem ser melhor estudadas em localidades isoladas. Isso não faz
do lugar o que você está estudando”. GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria
interpretativa da cultura. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.p.3-24.
24. GINZBURG, C. História noturna: decifrando o Sabá. 2ed. São Paulo:Cia da Letras, 2001. p.29
25. GINZBURG, C. História noturna: decifrando o Sabá. 2ed. São Paulo:Cia da Letras, 2001. p.29
26. Esta influência - que não se restringe ao gênero policial – é facilmente perceptível mesmo em títulos
como Indagações sobre Piero. Na tradução inglesa, o livro foi batizado de “The Enigma of Piero”. Há na
escrita Ginzburgiana, como lembra Revel, um pouco de “lances teatrais”. Cf. J. Revel (Org.).
Microanálise e construção social. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Trad. Dora Rocha.
Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.p.15-38.p.34
27. GINZBURG, C. O queijo e os vermes. 3 ed. São Paulo:Cia da Letras, 2003. p. 42
28. GINZBURG, C. O queijo e os vermes. 3 ed. São Paulo:Cia da Letras, 2003. p. 42
29. GINZBURG, C. Sobre Aristóteles e a História, mais uma vez Relações de força: história, retórica,
prova. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia das Letras, 2002. il. p.47-63. p. 68, 61 e 63.
30. Joseph Fontana reduz a micro-história a uma nota de rodapé. Afirmando que os envolvidos com a
micro-história “fazem do singular o objetivo final”, o historiador espanhol escreveu: “alguns artigos do
Quaderni storici não passam de notas de erudição irrelevante, revestidas de uma falsa legitimação
teórica”. Embora respeite a legitimidade da micro-história, Fontana ataca Ginzburg: “Ginzburg se lançou,
ademais, em especulações com escasso fundamento nos seus escritos sobre bruxaria”. FONTANA, Josep.
História depois do fim da História. Trad. Antonio P. Rocha. Bauru, SP: EDUSC, 1998.p.14
31. A terceira parte de História noturna, denominada Conjecturas Euroasiáticas/Ossos e Peles, gerou
polêmicas. Alguns resenhistas se recusaram a analisar esta parte do livro. Outros resenharam-na somente
como sendo o foco central do que Ginzburg quis dizer. Cf. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. Carlo
Ginzburg. As muitas faces da Nova História: nove entrevistas. São Paulo: Editora UNESP,2000.p.269-
306.p.285
32. Cf. GINZBURG, C. História noturna: decifrando o Sabá. 2ed. São Paulo: Cia da Letras, 2001.
33. É o que diz Ginzburg num artigo presente em Olhos de madeira: “a palavra ‘verdadeiro’ tem muitos
significados. Pode-se distinguir entre ‘verdadeiro’ segundo a fé e ‘verdadeiro’ segundo a história.
Podem-se distinguir diversos níveis de verdade histórica”. Cf. GINZBURG, Carlo. ECCE: sobre as
raízes culturais da imagem de culto cristã. GINZBURG, C. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a
distância. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Cia das Letras, 2001. p.113
34. LEVI, G.Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo: Editora
UNESP, 1992.p.139
35. Piero della Francesca (1420-1492). Pintor italiano do Renascimento. Cf. GINZBURG,
Carlo.Indagações sobre Piero. Nesta obra, o autor ocupa-se com a clientela e com a iconografia ligadas a
Piero della Francesca. Ginzburg busca estabelecer relações microscópicas entre os diferentes produtos
artísticos. GINZBURG, Carlo. Indagações sobre Piero: o batismo – o ciclo de Arezzo – a flagelação.
Trad. Luiz Carlos Capellano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. il. (Oficina das Arte; v.4).p.45,64.
36. FEBVRE, Lucien. Viver a história. Combates pela história. 2ed. Lisboa: Presença, 1985. p.28-41.
p.citada 40. Cf. GINZBURG, Carlo. Indagações sobre Piero: o batismo – o ciclo de Arezzo – a
flagelação. Trad. Luiz Carlos Capellano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. il. (Oficina das Artes; v.4)p.
25
37. Bíblia Sagrada. Trad. Pe. Antonio Pereira de Figueiredo. Com notas e completo Dicionário da Bíblia
por Dom José Alberto l. de Castro Pinto. Rio de Janeiro: Catholic Press, 1967. Na versão apresentada na
tradução portuguesa de Olhos de madeira, a expressão é a seguinte: “o mais velho será servo do mais
moço”. Cf. Ginzburg, Carlo. Um lapso do Papa Wotjla. GINZBURG, C. Olhos de madeira: nove
reflexões sobre a distância. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Cia das Letras, 2001.p.219-228.
38. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. Keith Thomas. As muitas faces da Nova História: nove
entrevistas. São Paulo: Editora UNESP,2000.p.119-152.p.120.
39. Aqui, novamente, vale recorrer ao próprio Clifford Geertz: “a noção de que se pode encontrar a
essência de sociedades nacionais, civilizações, grandes religiões ou o quer que seja, resumida e
simplificada nas assim chamadas pequenas sociedades e aldeias ‘típicas’ é um absurdo visível”.
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. A interpretação das
culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.p.3-24.p.15
40. Cf. Entrevista para o Jornal do Brasil. ARAUJO NETTO. A história sob microscópio. [on line].
Disponível na INTERNET via
http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernos/ideias/2001/08/17/joride20010817001.html arquivo
capturado em 29/09/2003
CAPÍTULO 3
aos poucos o indivíduo vai acumulando papéis e passando a existir através deles, indicando à
posteridade caminhos para a narração da memória da sua própria vida (MACHADO, 2010, p.
31).
E
ntre livros e folhetos encadernados, folhas amareladas pela ação do tempo. Impressos que
veiculam indícios de leituras, de um lugar de escrita, de um sujeito que eternizou facetas da sua
imagem. Em meio a centenas de títulos colecionados por Vicente Themudo Lessa, percorremos
indícios de caminhos trilhados, leituras feitas e ações desenvolvidas. Discorremos aqui sobre o leitor, o
colecionador, o escritor, o pastor, o professor, o sujeito que se fez protestante por meio dos impressos
lidos e salvaguardados.
A construção deste texto é fruto de indagações perseguidas ao longo da pesquisa que deu origem à
dissertação “Livros e Leitores: saberes e práticas educacionais e religiosas na Coleção Folhetos
Evangélicos (1860-1938)”, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade
Tiradentes (PPED/UNIT). Na ocasião, o caminho foi percorrido com o objetivo de “compreender, a
partir da Coleção Folhetos Evangélicos, que pertenceu ao Reverendo Vicente Themudo Lessa, a difusão
de saberes e práticas educacionais e religiosas no Brasil, entre 1860 e 1938” (ALMEIDA, 2013, p. 15).
Neste texto, a problematização segue a trilha biográfica, através de notas sobre a vida e atuação do
leitor e colecionador de impressos, aqui elencado como objeto de estudo. Destarte, cabe-nos questionar
quem foi Vicente Themudo Lessa. Por que salvaguardou a Coleção Folhetos Evangélicos? A leitura
daqueles títulos favoreceu sua atuação no grupo protestante ao qual pertenceu?
A possibilidade de reconstruir trajetórias de personagens, homens e mulheres, “[...] por intermédio
das ‘vozes’ que nos chegam do passado, dos fragmentos de sua existência que ficaram registrados”
(BORGES, 2006, p. 212), ocupa maior espaço entre os estudiosos e pesquisadores História da
Educação, ancorados nos pressupostos da História Cultural. A realização dos estudos biográficos
possibilita compreender a atuação do “[...] sujeito pesquisado na explicação histórica, rastreando os seus
caminhos e descaminhos, articulando suas experiências e aspirações, para descortinar um passado de
atuação numa dada sociedade” (MACHADO, 2010, p. 24). Segundo Darnton (2010, p. 147), “a leitura
tem uma história” e, para recuperá-la, ele sugere buscar leitores em documentos ou arquivos. Sendo
assim, o que Vicente Themudo Lessa comentou de suas leituras? Pensamos que a coleção de impressos
salvaguardada “revela uma faceta importante do trabalho intelectual [...] permitindo que se identifiquem
aspectos singulares de uma trajetória de leitura e escrita” (VENANCIO, 2006, p. 91).
Figura 1. Documento de Identificação de Vicente Themudo Lessa (1917) Fonte: Acervo da família Themudo Lessa. Disponível em:
<www.sitiodosthemudolessa.blogspot.com>. Acesso em: agosto de 2012.
Além das ‘notas chromaticas’ informando a cor da pele, cor dos cabelos, dos olhos, o documento
informa o seu nome completo, detalhe inquietante. Ora, por que suprimir parte do sobrenome, nesse caso,
‘do Rego’? Nas páginas assinadas da Coleção Folhetos Evangélicos e nas obras que ele escreveu,
consta apenas Vicente Themudo Lessa. O sobrenome eliminado corresponde à herança materna. Seria
uma tentativa de postergar apenas o ‘Themudo Lessa’, herança paterna, tendo em vista que o filho que
leva seu nome, nascido em 1905, chama-se Vicente Themudo Lessa Júnior?
Na figura abaixo, montagem encontrada em um álbum de fotografias da família, é possível identificar
acima os dois avôs de Vicente Themudo Lessa, à esquerda Ignácio Themudo e à direita A. C. Rego
Monteiro. No meio está seu pai, Antônio Prisciano Themudo Lessa. À esquerda e à direita estão as fotos
do próprio Vicente Themudo Lessa. Pela anotação acerca da data, é possível inferir que ele estivesse
com 21 anos na fotografia da esquerda, já na foto da direita, pressupõe-se que estivesse com 60 anos.
Tais anotações causam estranheza pelo fato de as duas fotos serem praticamente iguais. Abaixo, está
Vicente Themudo Lessa Júnior, filho do Reverendo Vicente Themudo Lessa, por último está Alba
Christina, nascida em São Paulo, em 23 de dezembro de 1930, neta de Vicente Themudo Lessa.
Figura 2. Fotografias de cinco gerações da família de Vicente Themudo Lessa (1805-1934) Fonte: Acervo da família Themudo Lessa.
Disponível em: <www.sitiodosthemudolessa.blogspot.com>. Acesso em: agosto de 2012.
Como a própria figura sugere, são apresentadas cinco gerações da família Themudo Lessa na
montagem. A tentativa de postergar a história familiar através da preservação de fotografias antigas é
partilhada entre as novas gerações. Os integrantes da família criaram um espaço virtual na internet no
qual compartilham, entre eles, além de fotos, documentações históricas, como certidões de casamento e
nascimento, documentos de identificação, cartas pessoais.
A referência familiar foi determinante na formação do leitor e colecionador de impressos Vicente
Themudo Lessa. Corroborando com tal reflexão, Giselle Martins Venancio (2006), ao investigar a
trajetória de leitura de Francisco José de Oliveira Vianna, afirmou que “o fato de ter nascido numa
família letrada – sua mãe o havia ensinado as primeira letras – contribuiu seguramente para que Vianna
viesse a ampliar a sua condição de ‘grande leitor’” (VENANCIO, 2006, p. 91). História similar a de
Vicente Themudo Lessa que, aos cinco anos de idade, na companhia e auxílio maternal, aprendeu a ler:
Aos sete, já devorava os livros que caíam ao alcance de minhas mãos. Os primeiros que li foram
o Roldão amoroso, o Gil Braz de Santilhana, o Moço louro de Macedo, o Simão de Mântua, as
Flores silvestres de Bittencourt Sampaio, as Horas marianas (PEIXOTO, 1976, p. 275).
No tradicional engenho pernambucano, viveu até os oito anos de idade. Em virtude de uma mudança
de endereço, Vicente Themudo Lessa foi matriculado na escola primária de Água Preta. Numa entrevista
concedida a Silveira Peixoto (1976, p. 275), relembrou Vilela Araújo, seu primeiro professor, que
deixou recordações pelo uso frequente da palmatória – a Santa Luzia. “Era homem enérgico, que não
poupava a palmatória. [...] Possuía caligrafia magnífica e ainda conservo um livrinho de poesias de João
Duarte Filho, que ele me ofertou, com primoroso autógrafo”. O curso primário foi concluído aos 10 anos
de idade e, naquele momento, Vicente Themudo Lessa aprendeu rudimentos de francês com seu primeiro
professor, um ano depois foi para Recife e ingressou no Ginásio Pernambucano. Naquela instituição teve
como “professor de francês, o futuro Cardeal Arcoverde” e como “professor de latim, o admirável
latinista [...] Pereira Guimarães, autor de uma apreciada gramática latina” (PEIXOTO, 1976, p. 276).
Naquele momento, configurou-se a preferência pela História, decorrente das leituras de obras
históricas, bem como pela Geografia. O ingresso na escola de primeiras letras aguçou o gosto pela leitura
e o interesse pelo aprendizado de outro idioma, como o francês. Em seus textos, Midlin (1999) destaca
os primeiros contatos com a leitura e a importância dedicada à língua francesa na sua trajetória, segundo
ele, “a leitura foi algo que começou na infância e prolongou-se pelo resto da vida”, assim como Vicente
Themudo Lessa, fez “parte da geração de influência francesa”, leu “francês quase antes de ler coisas
brasileiras” (MIDLIN, 1999, p. 104).
A convivência com um tio, durante a infância, que dispunha de uma biblioteca particular composta
por obras seletas, dentre as quais a Bíblia, facilitou o contato de Vicente Themudo Lessa com a leitura.
Sobre o acervo da referida biblioteca ele afirmou:
Não tardei a entrar em contato com esses volumes, entre os quais figuravam a Bíblia e obras
históricas de valor, como a sinopse de Abreu e Lima, as Memórias históricas de Fernandes Gama,
Os mártires pernambucanos do padre Dias Martins, a Revolução de 1817 de Muniz Tavares, a
Crônica da rebelião praieira de 48 de Figueira de Melo, a Dicionário Bibliográfico de
Pernambucanos Célebres de Pereira da Costa (PEIXOTO, 1976, p. 276).
Segundo Venâncio (2006, p. 90), no contexto social do século XIX, onde “as letras representavam
importantes bens simbólicos”, o acesso à cultura letrada era para poucos. Destarte, saliento o fato de
dispor de uma biblioteca particular e dos estímulos à prática da leitura no ambiente familiar, embasada
no que afirmou Chartier (1996, p. 36): “de acordo com a sociologia das práticas culturais, a leitura é uma
arte de fazer que se herda mais do que se aprende”.
As dificuldades financeiras foram o empecilho suficiente para afastar Vicente Themudo Lessa do
espaço formal de educação, a escola. Todavia, não foi suficiente para apartá-lo da leitura. Numa
entrevista concedida a Silveira Peixoto, ele narrou detalhes do seu primeiro emprego, conquistado aos 13
anos, como caixeiro comerciante e, naquela época, da sua relação com a leitura:
O trabalho ia das seis da manhã às nove da noite. Nada disso, porém, conseguiu dominar minha
inclinação para os livros. No sótão em que dormia, ficava até cerca de onze horas da noite, lendo
e estudando, à luz de uma vela. Aos quinze anos, era sócio subscritor do Gabinete Português de
Leitura, que mantinha imensa biblioteca [...] Júlio Verne empolgava-me. A Geografia e a História
atraíam-me. Naquele sótão, à luz de uma vela, quanto sonho eu sonhei! (PEIXOTO, 1979, p. 276-
277).
No emaranhado de sonhos e aventuras vivenciados através da leitura que tinha acesso no Gabinete
Português de Leitura, Vicente Themudo Lessa não percebia em si uma vocação para o comércio.
Fiz-me sócio da Associação dos Empregados no Comércio e matriculei-me nas aulas de
Português, Francês e Aritmética, mantidas por essa entidade. Estudei uns dois anos. As aulas
começavam pouco depois das nove da noite, hora em que as lojas fechavam suas portas. Depois
das aulas, ia para minha água-furtada, preparar as lições. (PEIXOTO, 1979, p. 278).
O desejo de abandonar o comércio foi concretizado depois de assistir a um culto protestante, aos 16
anos de idade, quando teve a oportunidade de ouvir a pregação do evangelho na Igreja Presbiteriana, no
dia 3 de agosto de 1890, na ocasião ministrada pelo Rev. William Calvin Porter, ordenado poucos meses
antes. Não tardou a abraçar a religião evangélica, passados três anos, no dia 12 de novembro de 1893,
optou por exercer a profissão de fé perante o Rev. Dr. George W. Butler. Para seguir a carreira no
ministério sagrado, iniciou os estudos preparatórios e teve como professores “Eduardo Carlos Pereira,
F.J.C. Scheider, Remígio de Cerqueira Leite, Augusto Baillot, Canuto Thormann, Oscar Nobiling e
Ernesto de Oliveira” (PEIXOTO, 1979, p. 277). Naquele contexto, os missionários presbiterianos
erguiam igrejas, hospitais e escolas, com o objetivo de evangelizar e educar cidadãos brasileiros, grande
parte analfabetos, nos moldes protestantes.
Após a conversão, Vicente Themudo Lessa dedicou-se ao ministério pastoral no Seminário
Presbiteriano, localizado em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, e estudou, com afinco, Inglês, História,
Geografia, Aritmética e rudimentos de Grego e Hebraico. Em 25 de janeiro de 1895, foi transferido para
o seminário localizado em São Paulo. Em junho do mesmo ano, o jovem estudante pernambucano realizou
sua primeira viagem, na qual pregou seu primeiro sermão, baseado em João 3.16, na cidade de Bragança.
Visitou Jundiaí, Itatiba, Rio Claro, Brotas, Ventania, Dois Córregos e Jaú.
Aos 26 anos, Vicente Themudo Lessa concluiu os estudos teológicos. Teve como mestres John
Rockwell Smith, Eduardo Carlos Pereira, Francis J. C. Schneider, Remígio de Cerqueira Leite, Baillot,
Oscar Nobiling e outros. Durante o período de formação, estudou com Francisco Lotufo, Erasmo Braga,
Baldomero Garcia, Manoel Alfredo de Guimarães, entre outros, além de trabalhar no campo de Jaú como
auxiliar do Reverendo Herculano de Gouvêa.
Vicente Themudo Lessa foi o primeiro ministro presbiteriano brasileiro ordenado no século XX. Sua
ordenação, pelo Presbitério de São Paulo, ocorreu em Jaú e teve como membros da comissão
examinadora Herculano de Gouvêa, João Vieira Bizarro, Laudelino de Oliveira Lima e o presbítero
Arlindo Ferraz. Doravante, procurou seguir sua profissão de fé disseminando a Palavra Sagrada. Visitou
os estados de Sergipe, Bahia, Alagoas, Ceará e Maranhão, em 1904, disseminando o conhecimento
religioso a serviço do Presbitério.
No início de seu ministério, casou-se pela primeira vez com Henriqueta Pinheiro, com quem teve
seis filhos. Em 1913, casou pela segunda vez com a professora Francisca Leme, haja vista que sua
primeira esposa veio a falecer ao dar a luz ao sexto filho. Vicente Themudo Lessa faleceu no dia 19 de
novembro de 1939, depois de suportar cólicas hepáticas e crises de asma, e foi sepultado no Cemitério
dos Protestantes, em São Paulo. De acordo com Pinheiro (1941, p. 6), “[...] prevendo sua morte no Sul,
trouxe consigo do seu querido Pernambuco o travesseiro de terra em que repousou a cabeça no seu último
sono”.
No dia 19 de dezembro, completado um mês da sua morte, foi realizada na 1ª Igreja Presbiteriana
Independente, em São Paulo, uma sessão memorial, na qual Albertino Pinheiro, seu cunhado e velho
amigo de mais de 40 anos, leu um texto em sua homenagem, que foi consultado no decorrer da
investigação. Em 7 de julho de 1940, Francisca Leme (1874-1952), membro da 1ª Igreja Presbiteriana
Independente de São Paulo, viúva do Reverendo Vicente Themudo Lessa, doou à biblioteca da Faculdade
de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente os títulos colecionados pelo marido. Em sua
homenagem, a instituição que recebeu a doação deu seu nome ao Centro de Documentação e História
Rev. Vicente Themudo Lessa, localizado na 1ª Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo.
As marcas de um sujeito que tomou para si a missão de difundir saberes e práticas educacionais e
religiosas são refletidas nas páginas envelhecidas dos títulos que compõem a Coleção Folhetos
Evangélicos. Através das assinaturas de Vicente Themudo Lessa, é possível inferir que muitas
publicações foram compradas, ganhadas ou tomadas de empréstimo ao longo de suas viagens. Nos
impressos, figuram também dedicatórias dos próprios autores destinadas a Vicente Themudo Lessa.
Assumindo a missão de professar a fé protestante, galgou espaços para além dos muros da igreja,
visitando lares e proferindo a Palavra Sagrada em diversos espaços, Estados brasileiros e públicos
diferenciados, convivendo com pessoas desconhecidas e em lugares diferentes. Das experiências vividas
até aquele momento, teve início a carreira de escritor, estreada com a publicação do seu primeiro artigo
no jornal O Estandarte. Dedicou-se em especial a escrever necrológios, uma maneira de homenagear
aqueles que considerava personagens importantes e que deveriam ser lembrados. Ao passo que Vicente
Themudo Lessa consagrou sujeitos como intelectuais, criando uma representação social, ele também se
elegeu um intelectual.
O contato com a leitura se fez presente em vários momentos na vida de Vicente Themudo Lessa.
Entre grifos e poucas anotações, ele fez comentários breves, descrições sintéticas do que leu. Na
Coleção Folhetos Evangélicos, é possível identificar uma vasta quantidade de títulos sobre o
Protestantismo e sobre outras correntes religiosas que, provavelmente, contribuíram para a construção de
si como protestante. Afinal, o protestante se faz protestante por meio da leitura. Os ensinamentos
apreendidos nas leituras eram aplicados no cotidiano da vida de um difusor protestante, seja nas
pregações como pastor, seja nas aulas que ministrou, seja nas obras que escreveu. O folheto Visão de um
domingo de manhã, publicado em 1922, em São Paulo, traduzido do inglês por Vicente Themudo Lessa,
é um indício de que ele era poliglota. A compreensão de outros idiomas também é evidenciada pela
presença, na Coleção Folhetos Evangélicos, de títulos em espanhol. Entre outros títulos figuram: Las
cartas de Pablo, El Sandero Perdido, Il Camino Perduto, Che credono i protestante, La oracion de um
chino y su respuesta, La paz de Dios. Vicente Themudo Lessa dedicava-se à leitura de obras em
português, inglês, francês, italiano, espanhol, latim, grego e esperanto.
Da formação sólida dos líderes protestantes, dependia a consolidação do Protestantismo no território
brasileiro, por meio da difusão de saberes e práticas religiosas desenvolvidas em diversos espaços
sociais e atuações de professores, pastores, escritores, historiadores. Inúmeras foram as maneiras e os
espaços galgados por personalidades visando firmar a religião protestante no Brasil. Em 1907,
transferido para São Luís do Maranhão a serviço do Presbitério, Vicente Themudo Lessa desempenhou
atividades evangelísticas desde Manaus até a Bahia. Sua volta para São Paulo foi marcada por novas
atribuições no Colégio Evangélico da Igreja Presbiteriana Independente, onde foi diretor até meados de
1919, vice-reitor do seminário da referida instituição e docente de algumas disciplinas. Tais atividades
datam dos anos de 1912 a 1919. Foi considerado, no meio protestante, um dos pilares da história da
Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, haja vista sua participação junto a outros intelectuais
protestantes, na criação de um novo segmento da denominação presbiteriana brasileira.
Fundada na noite de 31 de julho de 1903, na cidade de São Paulo, a Igreja Presbiteriana
Independente do Brasil surgiu do confronto que envolvia questões de ordem religiosa mescladas entre
ideais maçônicos e presbiterianos. O descontentamento oriundo dessas tendências religiosas encorajou
um grupo de sete pastores, dentre eles Vicente Themudo Lessa, a fundar uma igreja livre do segmento
maçônico. Conforme Venancio (2006, p. 90), colecionar livros era uma etapa importante para a formação
intelectual e possuir uma biblioteca particular, coleções, “estantes cobertas de livros, uma quantidade de
raridades ou de livros [...] simbolizavam para os seus pares sua importância intelectual”. De acordo com
Freitas (2006, p. 150), ao estabelecer contato com os grupos nos quais o sujeito pesquisado esteve
inserido, pode-se apreender suas individualidades, pois, “[...] diferentes interações que estabeleceram
para a ação no espaço público [...] produziram conquistas pessoais”.
Na missão de propagar a fé protestante, o Reverendo Vicente Themudo Lessa percorreu todos os
Estados brasileiros, visitando 754 localidades. Seu ministério durou quase 40 anos e, nesse período de
atuação, esteve no Estado de São Paulo em 293 lugares, pregou a Palavra Sagrada 5.319 vezes, organizou
20 igrejas, batizou 1.490 crianças. No ano de 1925, foi presidente do Sínodo, órgão maior da Igreja
Presbiteriana Independente, após ter ocupado o cargo de presidente do presbitério 12 vezes. Vicente
Themudo Lessa foi membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, bem como dos Institutos
Históricos de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Alagoas, Sergipe, Espírito Santo e Santa Catarina. A
produção de livros e textos estava atrelada ao objetivo maior: consolidar e perpetuar o Protestantismo no
Brasil.
O contato com a Palavra Sagrada e impressa tornou-se frequente e necessário no exercício do
ministério sagrado. Ao exercer as funções de pastor, professor, escritor e historiador do Protestantismo
brasileiro, Vicente Themudo Lessa buscava, por meio da salvaguarda e leitura daqueles impressos
religiosos, veículo de aquisição de conhecimento, seu crescimento pessoal, profissional e intelectual. O
hábito da leitura “não é somente uma operação abstrata; ela é engajamento do corpo, inscrição num
espaço, relação consigo e com os outros” (CHARTIER, 1998, p. 16). Nesse sentido, o líder religioso
encontrou na leitura a possibilidade de se fazer protestante, compreendendo os ideais religiosos, para
então poder atuar e contribuir para a consolidação do Protestantismo no Brasil.
As marcas e anotações de leituras ainda se fazem presentes nas páginas da Coleção Folhetos
Evangélicos, e, nesta pesquisa, dão luz a indícios da leitura de Vicente Themudo. Nas anotações mais
tímidas, figuram palavras recorrentes, a exemplo de paz, salvação, Deus, fé e amor. Entre comentários e
reflexões que resistiram à ação do tempo é pertinente mencionar as folhas amareladas do folheto A
Origem do Protestantismo. Trata-se de uma publicação em defesa dos princípios da religião protestante
e daqueles que se converteram, na qual Vicente Themudo Lessa deixou marcas de sua interpretação
afirmando que “ainda hoje os padres dizem que o amor de Deus é dado pelo sofrimento, pela dor e pela
morte. É o pecado e não a religião que nos causa sofrimento. A religião é bálsamo de nosso sofrimento”.
Esses vestígios são peças de uma formação leitora e protestante. Os argumentos apresentados refletem a
discordância da religião católica em favor do Protestantismo, somados aos títulos que versam sobre o
embate entre católicos e protestantes ou que proferem críticas ao Protestantismo, são indícios de que
Vicente Themudo Lessa tomou para si a missão de propagar os ideais religiosos, para tanto, dedicou-se a
conhecer o Catolicismo.
As múltiplas facetas adotadas por Vicente Themudo Lessa em prol da difusão dos ideais religiosos
protestantes foram alimentadas pela missão de professar a fé. A leitura contribuiu para enriquecer os seus
conhecimentos e nortear a sua prática enquanto líder do grupo ao qual pertenceu e esteve engajado. O
folheto Porque ignoramos a eternidade? foi escrito pelo ex-padre José Manoel da Conceição e conserva
as marcas de uma reflexão: “serei fiel até a morte e eu te deixarei a coroa da vida”. O referido título não
informa o ano de publicação, mas permanece com uma anotação datada de março de 1899, período no
qual Vicente Themudo Lessa estava concluindo seus estudos, com vistas a seguir o ministério pastoral.
O prestígio social, no grupo protestante, se fez presente durante a atuação de Vicente Themudo Lessa
no Protestantismo brasileiro, seja como professor, pastor, escritor, leitor ou colecionador de impressos.
A salvaguarda e a leitura de impressos revelam o investimento na aquisição do conhecimento da Palavra
Sagrada. A Coleção Folhetos Evangélicos é composta de títulos que foram oferecidos ao Vicente
Themudo Lessa, alguns títulos têm dedicatórias de autores ou de amigos, outros com a assinatura de
outras pessoas, indícios de que ele tomava livros emprestados.
Figura 4: Capa da Coleção Folhetos Evangélicos (lateral e frente) Fonte: Coleção Folhetos Evangélicos. São Paulo: Centro de
Documentação e História Reverendo Vicente Themudo Lessa, 2010.
A figura apresentada corresponde à lateral e à frente da capa do volume 9, assim como todos os
outros volumes, contem informações em letras douradas, iniciando pelo nome da coleção, o número do
volume e as iniciais V. R. T. L, que correspondem ao nome completo do seu dono: Vicente do Rego
Themudo Lessa. A opção de colocar as informações apenas na lateral da capa, provavelmente, se
justifica pela praticidade e organização da coleção na estante, favorecendo o acesso e a ordem
sequencial. A maioria dos títulos é do mesmo tamanho, o que possibilitou compor os volumes; entretanto,
uma pequena quantidade foi cortada em uma de suas extremidades para ajustar-se à encadernação. Após
o sumário, cada volume apresenta um selo de identificação da biblioteca.
Figura 5: Selo da Coleção Folhetos Evangélicos Fonte: Coleção Folhetos Evangélicos. São Paulo: Centro de Documentação e História
Reverendo Vicente Themudo Lessa, 2010.
Fonte: Coleção Folhetos Evangélicos. São Paulo: Centro de Documentação e História Reverendo Vicente Themudo Lessa, 2010.
Conforme Souza (2009, p. 103), os aparelhos críticos, como os que estão listados no quadro acima,
“procuraram conduzir as leituras, fazer o leitor aceitar as representações elaboradas pelos produtores,
mas nem sempre essas estratégias lograram o êxito desejado”.
Os impressos, aqui analisados, são considerados objetos culturais, fruto de um contexto social que,
ao tempo que o legitima, também é instruído por ele. Pensar o livro como objeto cultural é assumir e
refletir a sua potencialidade de agir diretamente na mentalidade dos leitores que interagem com ele. A
Coleção Folhetos Evangélicos conserva particularidades da construção de um sujeito protestante, visto
que cada título foi previamente selecionado, encadernado e organizado em 47 volumes.
Fonte: Coleção Folhetos Evangélicos. São Paulo: Centro de Documentação e História Reverendo Vicente Themudo Lessa, 2010.
Diante das categorias expostas no quadro apresentado, ainda assim, surgem indagações: quais temas
figuram no que se intitulou Protestantismo? O que se priorizou dentro da categoria Educação? O que se
pode inferir acerca da presença de títulos de outras correntes religiosas num conjunto de impressos que
recebeu o nome de Coleção Folhetos Evangélicos? Teria sido projetada para a construção de outros
sujeitos, possivelmente, transformados em difusores da palavra protestante? Os 389 títulos reunidos na
categoria Protestantismo versam sobre diversas temáticas da religião, como a Bíblia, Cristo, Fé,
Salvação, Domingo, Oração, Reforma, Oração, Batismo, culto, além de relatórios de despesas, estatutos
e regimentos de instituições educacionais, livros de cânticos e sermões, biografias de personagens de
prestígio no meio evangélico.
Segundo Watanabe (2011, p. 46), os primeiros escritos acerca das obras iniciais dos protestantes no
Brasil foram os relatórios dos missionários norte-americanos, para informar sobre “as possibilidades de
implantação de uma obra protestante no Brasil, alguns missionários foram enviados para coletar dados
geográficos, sociais, históricos e religiosos dos brasileiros”. Alguns historiadores têm dedicado suas
elucubrações analisando correspondências trocadas por sujeitos que atuaram na missão de difundir a
Palavra Sagrada via circulação de impressos. Nesse prisma, a documentação e a bibliografia sobre a
ação de 47 homens e uma mulher que trabalharam pela Sociedade Biblica Britânica e Estrangeira
(BFBS) no Brasil durante o século XIX foram colhidas em Cambridge University Library (UK) para
análise. “O corpus documental coletado é formado por 120 cartas e relatórios expedidos pelos 47
homens denominados de agentes da BFBS”, todos digitalizados pela pesquisadora Ester Nascimento, em
2010 (NASCIMENTO et all, 2012, p. 481).
Fruto de uma investigação inicial, “até o momento, foi possível verificar que, no período de 1818 a
1839, a BFBS enviou 17 agentes e, de 1840 a 1895, outros 28 homens” (NASCIMENTO et all, 2012, p.
481). A partir das 21 cartas traduzidas e analisadas, os autores apontam, dentre outros aspectos, o
empenho e compromisso na exequibilidade da “missão evangelizadora e alfabetizadora”, da mesma
forma que “a constante preocupação com o tratamento respeitoso e fraterno entre os membros da BFBS e
seus superiores, ao usar termos como ‘Verdadeiramente seu’, ‘Respeitosamente seu’, ‘Fielmente seu’ e
‘Caro Senhor’”, indícios da “devoção e o comprometimento com o trabalho que realizavam”
(NASCIMENTO, E. et all, 2012, p. 498).
Dentre os títulos que versam acerca da relação fé e ciência, vale ressaltar alguns: A Biblia e as
theorias Scientificas (S/D), A ressurreição de Christo perante a Sciencia, Auctoridade do Texto do
Novo Testamento (S/D), exemplares pertencentes a Collecção “Sciencia e Religião” e produzidos pela
Editora de José Pereira de Castro, localizada em São Paulo. Nascimento (2007, p. 203) destacou que a
formação do cidadão exigia uma soma de conhecimentos, “ancorados nos princípios da fé, da ciência e
nas exigências da preparação para o trabalho”. A tentativa de deixar à posteridade subsídios para
perpetuar a história do Protestantismo, das igrejas e dos sujeitos que pertenciam ao grupo é encontrada
em alguns títulos, a exemplo de Balanço Historico da Egreja Presbyteriana Independente Brasileira,
escrito pelo reverendo Eduardo Carlos Pereira e publicado em São Paulo; o impresso intitulado Traços
Históricos e Pontos Principais de Divergência das Igrejas Evangelica protestante e catholica Romana
(1874), de autoria Erch Stiller, e o impresso A Origem e História dos Baptistas (1860), de autoria de
S.H. Ford, publicado pela editora Sociedade Baptista Americana de Publicação, localizada nos Estados
Unidos.
No tocante à ‘Educação’, encontram-se os títulos que versam sobre Escola Dominical, Educação no
lar, Catecismos, Hinários e Instrução Pastoral. Os títulos reunidos conservam pistas do perfil de um
difusor de saberes e práticas protestantes, visto que os impressos destinados ao uso nas escolas
dominicais foram elaborados para o professor e para o aluno. Já os catecismos, por sua vez, também
projetados para as escolas dominicais, foram elaborados para instruir leigos, iniciantes quer na igreja,
quer na escola, quer no lar. Ressaltamos que os hinários foram incluídos no grupo que intitulamos
Educação pelo seu potencial pedagógico; à primeira vista podem não inferir uma relação com o ensino,
todavia, os títulos analisados na Coleção Folhetos Evangélicos apresentam conteúdo e objetivos
pedagógicos.
Ainda na categoria ‘Educação’ figuram títulos como O ensino religioso nas escolas públicas (1933),
produzido em São Paulo e de autoria de Aureliano Fonseca, o qual versa sobre a importância da religião
no ambiente escolar. Já o impresso intitulado Padrões para as escolas dominicais do Brasil, publicado
no Rio de Janeiro, traz informações acerca do papel do professor, da literatura apropriada, da
organização da sala de aula das escolas dominicais. Os catecismos também figuram neste grupo,
ferramenta pedagógica para o ensino da fé, elaborados em forma de pergunta e resposta, e alguns
ilustrados com o alfabeto ou com textos curtos que narram histórias de personagens bíblicas,
provavelmente, para atrair a atenção e facilitar a assimilação.
A imprensa também foi palco de batalhas no cenário religioso brasileiro. A disputa entre católicos e
protestantes fica evidente na identificação e respectiva análise dos títulos. São impressos de autoria de
pastores e ex-padres narrando a sua conversão ou refutando crenças católicas quanto ao culto a imagens e
santos; outros, de autoria de padres católicos, acusando os protestantes de hereges. Entre outros títulos,
destacamos o folheto Religião do Estado – Propaganda pela igualdade de cultos, perante a lei (1900)
que, como o próprio título sugere, trata-se de um combate à proteção oficial ao culto católico. O
impresso intitulado Era duro o coração do padre, mas com Deus não se brinca, escrito por um ex-padre,
conta como se deu a sua conversão; já o folheto A minha conversão: revelações de uma senhora à sua
amiga cathólica (1885), publicado no Rio de Janeiro pela Typographia Universal de Laemmert & Cia-
Imprensa Evangelica, reflete a tentativa de sensibilizar e atingir a todos os públicos e futuros
convertidos.
Princípios de liberdade, consciência social, embates entre católicos e protestantes são temáticas que
figuram na Coleção Folhetos Evangélicos. Entre os achados, destacamos uma carta escrita por Robert
Reid Kalley, intitulada Observações à Instrucção Pastoral do Excellentíssimo Bispo do porto, D.
Americo (1879), no qual o autor teceu comentários acerca dos princípios religiosos católicos e
protestantes. As críticas às crenças católicas são frequentes na carta:
[...] o que podemos dizer sobre os motivos de confiar na bemdita mãe do Salvador? – Ella é <<
bemdita entre as mulheres >>, e, conforme as palavras do Anjo << cheia de graça >>, mas não
está presente por todos os lugares, não sabe todas as cousas, não é toda poderosa, não possue
todos os recursos do universo – pois não é Deus. (...) O bispo nos diz que o nome de Maria lhe
communica mais confiança nas suas orações do que o nome de Jesus, e manifesta sua approvação
de que todos em todos os perigos e aflição invoquem Maria. (...) A confiança em Jesus, conforme
o Evangelho de S. Paulo, prohibe o peccador de seguir o Evangelho do Bispo (KALLEY, 1879, p.
1).
Através da análise dos títulos, pode-se observar uma gama de temas distintos do Protestantismo
apresentando argumentos que, ora refutam ora defendem o Catolicismo, o Espiritismo e a Maçonaria,
instituições fortes no Brasil. Teria sido uma maneira adotada por Vicente Themudo Lessa para conhecer o
contexto de outras visões religiosas e saber como portar-se diante da “batalha” religiosa na consolidação
do Protestantismo?
Em contrapartida, os católicos publicavam folhetos como Contra que cousa protestam os
protestantes? criticando o Protestantismo, as injúrias que, segundo o autor do título, são feitas a Deus, a
Bíblia e ao senso comum. Títulos que justificam o acesso limitado à Bíblia católica e dão vários motivos
para não se converter ao Protestantismo e ler as ‘Bíblias Falsificadas’ figuram entre a Coleção Folhetos
Evangélicos. Colheita de breves conselhos para santificação e felicidade da vida (1880), publicado em
Lisboa pela Livraria Cathólica, é outro exemplo dos títulos católicos colecionados pelo reverendo
Vicente Themudo Lessa para, provavelmente, conhecer os artifícios e argumentos dos adversários
religiosos. É possível localizar, entre os impressos analisados, títulos de autoria de padres católicos
contendo narrativas de viagens como Peregrinação aos Santos Lugares da Palestina, escrito pelo padre
Anselmo Goud e publicado em 1884 pela Tipografia do Thabor. O folheto intitulado Dae-nos Padres
versa sobre a vocação de ser padre, um dom dado por Deus e aceito pelo homem, este considerado uma
alma piedosa que faria triunfar nas igrejas, escolas católicas, imprensa e na sociedade em geral a palavra
de Deus, produzido pela Tipografia da Ave Maria em 1933, São Paulo, e escrito pelo Arcebispo
Metropolitano Duarte.
Entre outras temáticas, a Maçonaria foi pauta das publicações e reflexões entre protestantes. Segundo
Vieira (1980), entre outros grupos que colaboraram para a consolidação de projeto evangélico no Brasil,
a maçonaria fortaleceu a religião protestante no país. Alguns títulos identificados corroboram com a
afirmativa do autor, a exemplo de A Maçonaria e a Egreja Evangélica, escrita pelo pastor da igreja
metodista reverendo João Borges da Rocha. Publicado em Pernambuco, no referido folheto, a maçonaria
é defendida como uma sociedade humana compatível com qualquer religião e não seria diferente com o
Protestantismo. Essa defesa deu-se em função, segundo relatos do escritor no folheto citado, de uma
publicação de autoria do reverendo Eduardo Carlos Pereira, líder do movimento anti-maçônico que
culminou na criação da Igreja Presbiteriana Independente, em 1903, acerca de uma provável
incompatibilidade entre a Maçonaria e a igreja.
O Protestantismo, sob a ótica da ciência e da história, é refletido nos títulos que versam sobre a
relação fé e ciência, entre os quais estão: A Biblia e as theorias Scientificas, A ressurreição de Christo
perante a Sciencia, Auctoridade do Texto do Novo Testamento, exemplares pertencentes à Collecção
“Sciencia e Religião” e produzidos pela Editora de José Pereira de Castro, localizada em São Paulo.
Segundo Nascimento (2007, p. 203), a formação do cidadão exigia uma soma de conhecimentos,
“ancorados nos princípios da fé, da ciência e nas exigências da preparação para o trabalho”.
A tentativa de deixar à posteridade pistas da história do Protestantismo, das igrejas e dos sujeitos
que pertenciam ao grupo é encontrada em alguns títulos, a exemplo de Balanço Historico da Egreja
Presbyteriana Independente Brasileira, escrito pelo reverendo Eduardo Carlos Pereira e publicado em
São Paulo, o impresso intitulado Traços Históricos e Pontos Principais de Divergência das Igrejas
Evangelica protestante e catholica Romana (1874), de autoria Erch Stiller, e A Origem e História dos
Baptistas (1860), de autoria de S.H. Ford, publicado pela editora Sociedade Baptista Americana de
Publicação, localizada nos Estados Unidos.
Considerações
As anotações e grifos deixados na Coleção Folhetos Evangélicos refletem escolhas,
intencionalidades e permitem inferir que, após a conversão ao Protestantismo, Vicente Themudo Lessa
tomou para si a missão de conquistar novos adeptos à religião, formar e solidificar os grupos
protestantes. Essa atuação teve um efeito público, no sentido da intervenção social, e propiciou a
disseminação dos saberes e práticas religiosas e educacionais protestantes, postos em circulação no
Brasil dos Oitocentos e em meados dos Novecentos.
Diante da impossibilidade de conhecer o leitor, Vicente Themudo Lessa, de carne e osso, seguimos
uma das perspectivas da História da Leitura e investigamos o conteúdo dos impressos, sua materialidade,
na intenção de apreender marcas do leitor. Essas marcas que sobrevivem à ação do tempo, como fios e
rastros, testemunham uma vida guardada em papéis, eternizam a imagem de um sujeito que se fez
protestante, que guardou os impressos para se eternizar, guardou para se guardar e para nos guardar do
esquecimento.
A contribuição de Vicente Themudo Lessa para a consolidação do Protestantismo em terras
brasileiras é refletido nas suas ações como pastor, professor, escritor de diversas obras sobre a religião
e sobre personagens protestantes, mas também como leitor e colecionador de impressos preocupado com
a salvaguarda desse material. Os grifos e anotações deixam uma representação de um intelectual que
atuou na mediação e na propagação de saberes e práticas religiosas protestantes. Dentre os 644 títulos,
identificamos temáticas que abrangem o Protestantismo, o Catolicismo, a Maçonaria e o Espiritismo,
reflexos do interesse de Vicente Themudo Lessa por outras instituições religiosas, fortes no Brasil,
possíveis adversários numa disputa pelo espaço religioso.
A conservação dos títulos revela a preocupação com a salvaguarda e a circulação deste material
para difundir saberes e práticas educacionais protestantes. Para Chartier (1990, p. 22), o entendimento de
práticas perpassa os modos como, em uma dada sociedade, “os homens falam e se calam, comem e
bebem, sentam-se e andam, conversam ou discutem, solidarizam-se ou hostilizam-se, morrem ou adoecem
[...]”.
Nesse sentido, a Coleção Folhetos Evangélicos foi compreendida como objeto cultural, projetado
para difundir saberes e práticas educacionais e religiosas, fundamentados na Bíblia, que deveriam
nortear o comportamento dentro e fora da igreja, abrangendo as relações sociais. Comprometidos com a
causa religiosa, os convertidos deveriam dedicar atenção à leitura da Bíblia, para solidificar os saberes
que eram refletidos nas ações cotidianas. Ir à igreja, guardar o domingo para o Senhor, ler a Bíblia e orar
para manter-se no caminho Dele são exemplos de práticas veiculadas nos títulos investigados, estas
deveriam fazer parte do cotidiano dos cristãos protestantes.
Fonte e referências/Fonte
Coleção Folhetos Evangélicos. São Paulo: Centro de Documentação e História Reverendo Vicente
Themudo Lessa, 2010.
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História).
Sobre as autoras
Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento é Doutora em Educação (PU/SP). Coordenadora
do Grupo de Pesquisa História das Práticas Educacionais (GPHPE/CNPq/UNIT). Bolsista de
Produtividade do CNPq.
Ilka Miglio de Mesquita é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Tiradentes/UNIT. Possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, mestrado em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia, doutorado em Educação
pela Universidade Estadual de Campinas (2008), pós-doutorado em História da Educação pela UFMG
(2010-2011). Membro do Grupo de Pesquisa Historiar - Pesquisa, Ensino e Extensão em História da
Educação.
Simone Silveira Amorim é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Tiradentes/UNIT. Possui graduação em Ciências Contábeis pela Universidade Federal de
Sergipe, mestrado em Educação pela Universidade Federal de Sergipe e doutorado em Educação pela
Universidade Federal de Sergipe. Integrante do Grupo de Pesquisa História da Educação no Nordeste
Oitocentista (GHENO GT/SE), Grupo de Pesquisa História das Práticas Educacionais/UNIT/CNPq e do
Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos de Cultura da UFS/NECUFS.
Mirianne Santos de Almeida é doutoranda em Educação pela Universidade Tiradentes. Mestre em
Educação e Graduada em Pedagogia pela mesma universidade. Membro do grupo de pesquisa História
das Práticas Educacionais/UNIT/CNPq.
Tâmara Regina Reis Sales é Mestre em Educação (UNIT). Doutoranda do Programa de Pós-
Graduação da Universidade Tiradentes. Membro do Grupo de Pesquisa História das Práticas
Educacionais (GPHPE/CNPq/UNIT).
Notas
1. O referido texto faz parte do Projeto de Pesquisa coordenado pela Profa. Dra. Ester Fraga Vilas-Boas
Carvalho do Nascimento, intitulado Imprensa Protestante nos Oitocentos (2006) e, apoiado pelo CNPq
(Edital MCT/CNPq 02/2009; Edital Universal CNPq 14/2011 Faixa B; Bolsa de Pesquisador de
Produtividade, 2012).
CAPÍTULO 4
F
elte Bezerra (1908-1990)2 constitui-se como um intelectual brasileiro nascido em Sergipe, estado
que concentrou a maior parte da sua vida, como também da sua vasta produção intelectual.
Residiu em Salvador/BA para cursar a graduação em Odontologia na Faculdade de Medicina da
Bahia (1930-1933), retornou a Aracaju/SE onde seguiu os caminhos do magistério e participou de
diferentes “estruturas de sociabilidade” (SIRINELLI, 1988) por mais de três décadas. Depois de 1959
migrou para o Rio de Janeiro, ali permaneceu até o final da sua vida.
Entre as décadas de 1930 e 1950 Felte Bezerra publicou livros, participou de congressos em
diferentes lugares do mundo, escreveu para a imprensa local acerca de diversas temáticas, envolveu-se
em polêmicas com seus opositores, realizou pesquisas científicas, só para citar algumas das ocupações
que permearam os “itinerários” desse intelectual. Além disso, cabe destacar que ele ocupou a
presidência do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, manteve correspondência ativa com os
renomados pesquisadores da área de Antropologia no Brasil, como bem mostrou Dantas e Nunes (2009),
fez parte da Academia Sergipana de Letras, entre outras confrarias e, sobretudo, buscou inserir-se nas
“redes” e “microclimas” que estruturavam a “sociabilidade” da intelectualidade sergipana de outrora
(SIRINELLI, 1986, 1988, 2003).
No âmbito do magistério fez parte da Congregação do Atheneu Sergipense3, primeiro como professor
interino de Inglês, depois catedrático de Geografia, chegando até a direção da renomada escola de ensino
secundário. Como também, foi um dos pioneiros professores na fundação do ensino superior em Sergipe
na função de catedrático de Antropologia na Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe, instituição
criada em 1951.
Diante da vastidão que envolve a vida de Felte Bezerra, o presente trabalho busca investigar seus
“itinerários” antes da sua consolidação como intelectual, assim lançamos o olhar para analisar sua
constituição como aluno do Colégio Tobias Barreto entre os anos de 1915 e 1924, os primeiros passos no
universo das letras e os personagens que fizeram parte da sua infância na cidade de Aracaju,
principalmente a figura de Abdias Bezerra. O estudo dos “itinerários” ocorreu através da análise das
origens do seu despertar intelectual nas instituições educacionais que frequentou e os mestres que foram
registrados nos escritos de Felte Bezerra. De acordo com o que escreveu Jean-François Sirinelli (2003):
[...] em todo caso, é possível e necessário fazer sua arqueologia [das estruturas de sociabilidade],
inventariando as solidariedades de origem, por exemplo de idade ou de estudos, que constituem
muitas vezes a base de ‘redes’ de intelectuais adultos. É lógico, sobretudo no caso dos
acadêmicos, remontar a seus jovens anos escolares e universitários, numa idade em que as
influências se exercem sobre um terreno móvel e em que uma abordagem retrospectiva permite
reencontrar as origens do despertar intelectual e político (SIRINELLI, 2003, p. 249−250, grifos
nossos).
A proposta não consiste em fazer uma genealogia como adverte Sirinelli, mas uma arqueologia, na
qual investigamos como a vivência estudantil e os seus professores, colegas e escolas, contribuíram para
conformar sua condição de intelectual. Jean-François Sirinelli (1998, 2003, 2006) ensina que a história
dos intelectuais não é uma história autônoma, nem fechada sobre si, pelo contrário, é aberta e localizada
no cruzamento das histórias política, social e cultural. Para o referido autor, o intelectual precisa ser
estudado a partir da sua atuação tanto no âmbito político como cultural ou da produção do conhecimento.
O teórico francês acentua que o meio intelectual constitui “um pequeno mundo estreito”, no qual, “os
laços se atam” em torno da redação de uma revista ou de um conselho editorial (SIRINELLI, 2003, p.
248).
Entendemos que as instituições educacionais também se configuram como um lugar no qual “os laços
se atam” a depender da “sensibilidade ideológica ou cultural comum e de afinidades mais difusas”.
Diante desse prisma, a análise dos itinerários permite visualizar como tais laços se conformaram ao
longo do tempo e os espaços frequentados por esse jovem estudante nas primeiras décadas do século XX.
Desse modo, faz-se necessário problematizar os itinerários da vida desse sujeito, não como agente
inerte situado em um tempo e um espaço e movido pelas circunstâncias de sua época, mas um ser com
vontades, medos e expectativas que, diante de escolhas efetuadas ao longo de diferentes momentos de sua
vida, construiu paulatinamente uma história, dentro de uma série de outras opções, ou não, que se
apresentavam naquele momento.
As disciplinas e os professores com os quais estudou Felte Bezerra fornecem elementos para
entender seu itinerário formativo, aspectos da sua vida de estudante, introduzido em um Colégio cujo
sobrenome já ecoava de forma diferenciada, tendo em vista o vínculo do pai com a instituição, além da
influência paterna nos direcionamento da educação sergipana. Felte estava inserido em um sistema de
ensino que contribuiu para a sua formação pessoal e profissional, marcas de um percurso que se fizeram
sentir mesmo tempos depois, como ensina André Chervel:
[...] o sistema escolar é detentor de um poder criativo insuficiente valorizado até aqui é que ele
desempenha na sociedade um papel o qual não percebeu que era duplo: de fato ele forma, não
somente os indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar
a cultura da sociedade global (CHERVEL, 1990, p. 184).
Dentro do sistema escolar as cadeiras estudadas também servem como guias para o conhecimento e
problematização de determinadas facetas do passado. No caso em foco, com relação ao estudo das
Línguas, Souza (1999) informa que, no período de 1912 a 1925, há uma presença amplamente
hegemônica que vinha sendo constituída desde o século XIX. No caso dos estudos de Felte Bezerra,
embora sem informações mais detalhadas, notam-se as disciplinas de Latim, Francês, Inglês, Alemão e
Português. Já elementos da exposição de vários conteúdos da disciplina História de Artur Fortes em suas
aulas, no Colégio Tobias Barreto, são apontados por Felte Bezerra:
Nas aulas de História, o mestre deixava-se tomar de arrebatamento, empolgado pelo que
descrevia ... O jovem tenente Bonaparte atravessando a ponte de Arcole. O soldado ofegante até a
morte que vinha anunciar a vitória de Maratona. Alexandre mandando colocar Bucefálo à sombra,
pois só assim se deixava cavalgar, sem espantar-se. As discutidas figuras de Fouché, Richelieu,
Calabar, Feijó. O imprevisível e arroubado Pedro I. A epopeia dos bandeirantes. A sagacidade de
Henrique IV, refugiando-se no Louvre para livrar-se da Noite de São Bartolomeu, que o tinha
como alvo. A insensatez com que a convenção decaptou Lavoisier com o “a França não precisa de
sábios” A imolação de Jenae D’Arc. O comportamento demoníaco dos Médici. O requinte
cavalheiresco dos franceses na batalha inicial da 1ª Grande Guerra. “Tirez les premier,
messieurs les Anglais”18 (BEZERRA, 1981b, grifos do autor).
Os escritos de Felte indicam fragmentos de aulas ocorridas há mais de meio século. Refere-se à
dinâmica de ensino de Fortes e a alguns dos conteúdos ali possivelmente ensinados. Os conteúdos
abarcam desde a Antiguidade com “Alexandre” até a primeira grande guerra mundial, que aparece
justamente no final da descrição do filho de Abdias Bezerra. Vale ressaltar, com base em Freitas (2008),
que a citada Guerra não aparece no programa da cadeira de História de 1916 e somente é listada nos
programas de 1926.
Elementos da História do Brasil como D. Pedro I, Feijó e Calabar também denotam o que foi
ensinado a Felte naquelas aulas de História com Arthur Fortes. Além do mais, cabe destacar o trato com
os conteúdos relacionados à história da França, constantemente remorado por ex-alunos de Fortes. A
aproximação com aquele país e as teorias estritamente ligadas à Europa podem ser resultados da
formação do sergipano na Escola da Praia Vermelha no Rio de Janeiro.
Com as aulas de Arthur Fortes e outros intelectuais sergipanos, transcorreu a formação do estudante
Felte Bezerra no Colégio Tobias Barreto. Seus primeiros anos de educação foram calcados em uma
“escola militarizada”, com leituras, aula durante todo o dia e foi aluno dos mestres que, anos depois,
seriam seus colegas de profissão na Congregação do Atheneu Sergipense.
Felte Bezerra registrou que contou com “mestres de tudo” ao fazer referência a Arthur Fortes e
Abdias Bezerra, pensamos que esses docentes fizeram o papel do que Sirinelli (2003, p. 246) considera
como “despertadores”, por “[...] representaram um fermento para as gerações intelectuais seguintes,
exercendo uma influência cultural e mesmo às vezes política”. Indubitavelmente, os “mestres de tudo”
foram “despertadores” do jovem estudante aqui investigado que frequentou os bancos escolares do
Colégio Tobias Barreto nas primeiras décadas do século XX.
E assim, terminado o secundário em 1924, sem condições financeiras de seguir para outro Estado a
fim de cursar o ensino superior, Felte Bezerra resolveu cursar Escrituração Mercantil à noite para ser
escriturário. Entre os anos de 1925 e 1926, trabalhou no Banco de Sergipe e, logo depois, assumiu a
gerência do escritório comercial de Heráclito Rocha em uma firma exportadora de sal e outros produtos.
Ali, permaneceu até 1929, quando pediu demissão para prestar exame na Faculdade de Medicina da
Bahia.
Sobre esse período da sua vida, entre o término do ensino secundário e o ingresso no ensino superior
na Bahia, o contemporâneo Garcia Moreno (1952, p. 3) assim descreve: “Quem o visse, mais tarde, num
dos melhores escritórios comerciais da província, chefe da contabilidade, reto idôneo eficiente, cercado
de louvores e consideração dos meios mercurianos, acredita-lo-ia feito para tais mistérios, abrindo uma
exceção na linha tradicional da família de professores”. A tal ressalva à “linha tradicional da família de
professores” não se cumpriu, pois os diferentes itinerários de Felte Bezerra também perpassaram o
magistério.
Antes disso, procurou registrar que sua vida estudantil foi marcada por distinções. “Conclui meus
estudos secundários, no mês que fazia 16 anos, tive um curso secundário bem feito, não melhor devido a
minha pouca idade” (BEZERRA, 1988). Após alguns anos da conclusão do ensino secundário Felte
Bezerra seguiu para a Bahia para cursar o ensino superior. Era 1929, momento de mudança para Felte,
novos caminhos foram trilhados pelo sergipano, outras histórias que os itinerários formativos do
intelectual Felte Bezerra podem desvelar acerca da História da Educação sergipana e brasileira na
primeira metade do século XX.
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Sobre os autores
João Paulo Gama Oliveira: Doutor em Educação; Professor do Departamento de Educação (DEDI)
da Universidade Federal de Sergipe, vice líder do Grupo de Pesquisa Disciplinas Escolares: história,
ensino, aprendizagem (DEHEA/CNPq/UFS) e integrante do Grupo de Pesquisa Relicário (DEDI/CNPq).
Atua em pesquisas sobre História da Educação, sobretudo no tocante à história dos intelectuais, história
das disciplinas e história do ensino secundário e superior em Sergipe. E-mail:
profjoaopaulogama@gmail.com
Eva Maria Siqueira Alves: Doutora em Educação; Professora Associada do Departamento de
Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe; líder do
Grupo de Pesquisa Disciplinas Escolares: história, ensino, aprendizagem (DEHEA/CNPq/UFS); Diretora
do Centro de Educação e Memória do Atheneu Sergipense e Presidente do Conselho Municipal de
Educação de Aracaju. E-mail: evasa@uol.com.br
Notas
1. O presente artigo constitui-se como um desdobramento da tese: “Caminhos cruzados: itinerários de
pioneiros professores do ensino superior em Sergipe (1915-1954)” defendida no Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe sob a orientação da Profª. Drª. Eva Maria
Siqueira Alves. Para outras informações ler Oliveira (2015).
2. Sobre Felte Bezerra há uma série de trabalhos com distintos focos que podem ser separados em dois
grupos, o primeiro com cunho acadêmico e o segundo com tom memorialístico. Dentro do primeiro
grupo, cabe destacar os estudos de Beatriz Gois Dantas (1998 e 2009) com foco no antropólogo Felte
Bezerra e a mesma autora em parceria com Verônica Nunes (2009) publicou a obra “Felte Bezerra: cartas
a um antropólogo sergipano 1947-59 e 1973-85” no qual a análise recai sobre as cartas recebidas por
Felte, na primeira metade do século XX. Ibarê Dantas (2012) trata de Felte Bezerra o situando junto ao
IHGSE, inclusive perscrutando minuciosamente sua atuação como presidente da “Casa de Sergipe”, na
década de 1950. O referido pesquisador pontua ainda seu trabalho como fundador do Centro Cultural de
Sergipe no final da década de 1930, vice-presidente da Associação Comercial de Sergipe e diretor da
Sociedade de Cultura Artística (SCAS), como também tesoureiro da Sociedade Mantenedora da
Faculdade de Medicina de Sergipe em meados do século XX; Fernando Sá (2009) analisa o livro
“Investigações Histórico-Geográficas de Sergipe” publicado em 1952 situando Felte dentro da
historiografia sergipana e apontando as correlações do pensamento de Bezerra com a tradição do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro; o historiador José Calasans Brandão da Silva no clássico livro da
historiografia sergipana, “Aracaju e Outros Temas Sergipanos” (2013, p. 29), trata Felte Bezerra como
“[...] um dos melhores pesquisadores sergipanos dos dias presentes, misto de geógrafo e historiador”, tal
frase faz referência ao trabalho de Felte dentro da discussão dos limites de Sergipe e Bahia; João Paulo
Oliveira (2011) analisou a atuação de Felte nas disciplinas do curso de Geografia e História da FCFS;
Lucineide Freire etall (2009) escreveram monografia acerca dos artigos jornalísticos do sergipano; outro
trabalho monográfico consiste no estudo de Nascimento (2015) que busca analisar a obra “Etnias
Sergipanas” de autoria de Felte Bezerra, publicada em 1950, para atingir o objetivo geral do trabalho,
qual seja: “[...] entender quais os motivos que levaram alguns intelectuais do século XX a negarem os
preconceitos raciais sofridos pelos negros. Preconceitos expostos tão claramente na época e também nos
dias atuais que deixaram marcas negativas para a vida social das pessoas negras”, (NASCIMENTO,
2015, p. 8) e chega a conclusão que “Na obra o autor tenta desviar à atenção dos leitores, transferindo as
responsabilidades das desigualdades sociais para as vítimas, assim, isentando da culpa a elite branca
dominadora, que fez a colonização premeditadamente para enriquecimento do branco colonizador,
mascarando o preconceito racial, culpando sempre as vítimas dessas ações malignas” (NASCIMENTO,
2015, p. 38). Como último trabalho desse primeiro grupo, localizei a dissertação de Silva (2014), cujo
objeto de estudo consiste na trajetória do professor Felte Bezerra e suas contribuições para o ensino
superior em Sergipe, para atingir seus objetivos de pesquisa a autora escreve uma dissertação com dois
capítulos na qual o primeiro trata de forma superficial de “Felte Bezerra: entre o espelho do autorretrato
e a pintura das suas memórias”, já no capítulo intitulado: “As contribuições de Felte Bezerra para o
ensino superior em Sergipe” se dedica ao trabalho de Felte como professor do curso de Geografia e
História da FCFS. Tal capítulo se assemelha ao estudo de Oliveira (2011) que trata da mesma temática
ao investigar as disciplinas, docentes e conteúdos do mesmo curso na FCFS, embora com várias
semelhanças, o autor não aparece nas referências da dissertação de Silva (2014). De forma geral, a obra
apresenta poucas inovações diante dos estudos já realizados, até então, acerca do pioneiro antropólogo
sergipano, com parcas problematizações das fontes e conclusões incipientes. Em um segundo bloco situa-
se o texto de Garcia Moreno (1952) diante da posse de Felte Bezerra na ASL; Jackson da Silva Lima
(1984) o situa como pioneiro nos estudos antropológicos em Sergipe; Gustavo Aragão Cardoso (2005)
em sucinto artigo trata da vida e atuação de Felte; Eduardo Conde Garcia (1991) faz breve síntese
biográfica de Felte, diante da sua posse na ASL na cadeira de nº 2 que pertenceu ao antropólogo e por
fim, Thetis Nunes (1992) trata do seu ex-professor Felte Bezerra logo depois do seu falecimento.
3.Segundo Alves (2005), ao longo dos anos, o Atheneu Sergipense recebeu variadas denominações:
Atheneu Sergipense (1870), Lyceu Secundário de Sergipe (1881), Escola Normal de Dois Graus (1882),
Atheneu Sergipense (1890), Atheneu Pedro II (1925), Atheneu Sergipense (1938), Colégio de Sergipe
(1942), Colégio Estadual de Sergipe (1943), Colégio Estadual Atheneu Sergipense (1970), e atualmente
Centro de Excelência Colégio Atheneu Sergipense (desde 2003). Ao longo da tese, utilizarei a
denominação Atheneu Sergipense, com exceção de quando se tratar de transcrição de fontes, na qual
utilizarei o termo presente no documento. O Atheneu Sergipense foi criado em 1870, sendo a primeira
escola de ensino secundário de Aracaju, ainda em funcionamento na aurora do século XXI, essa “Casa de
Educação Literária” constituiu-se como a principal instituição de ensino secundário de Sergipe ao longo
do final dos oitocentos e a primeira metade do século XX. A respeito dos diferentes traços da história do
Atheneu Sergipense ver Alves (2005).
4. O historiador José Murilo de Carvalho (2004), na sua obra “Os bestializados” dedica o quarto
capítulo intitulado “Cidadãos ativos: a Revolta da Vacina” para tratar do movimento ocorrido na cidade
do Rio de Janeiro na administração de Rodrigues Alves como prefeito da capital do Brasil, à época. As
mudanças estruturais promovidas com o intuito de transformá-la em uma nova Paris, acabaram por
interferir no cotidiano das pessoas. O autor apresenta uma série de fatores que culminaram na Revolta,
entre eles a obrigatoriedade da vacina. A Revolta da Vacina foi um levante político que buscou a
derrubada do governo via rebeliões das Escolas Militares da Praia Vermelha e do Realengo. A Revolta
foi sufocada e as escolas militares foram extintas.
5. Sobre a Revolta Fausto Cardoso em Sergipe, consultar, entre outros, a obra “Impasses do Federalismo
Brasileiro (Sergipe e a Revolta de Fausto Cardoso)” de autoria de Terezinha Oliva de Souza (1985).
6. Os três militares que governaram Sergipe nesse período foram Siqueira de Menezes, Oliveira Valadão
e Pereira Lobo. O engenheiro José Siqueira de Menezes que presidiu Sergipe entre 1911 e 1914, sua
atuação envolveu questões de saneamento, serviços de água, iluminação elétrica e diferentes construções
de prédios públicos, pontes, açudes e represas. Contudo, não se envolveu com os diferentes grupos
políticos locais, tratando a oposição com intolerância. Já Oliveira Valadão, que atuava fortemente na
política sergipana desde o final do século XIX, voltou a presidir o estado entre 1914 e 1918, apoiado por
Pinheiro Machado. Seu governo continuou com obras de aterro, construiu grupos escolares, introduziu
cursos noturnos dedicados aos operários e investiu na Usina de Eletricidade. Por fim, Pereira Lobo
(1918-1922), tenente coronel casado com uma enteada de Valadão, combateu o surto de gripe espanhola
que se espalhou pelo estado ao tempo que trabalhou para melhorar a cidade de Aracaju com saneamento,
água, luz, calçamento e, além disso, construiu novos grupos escolares e a sede da Biblioteca do Estado.
Lobo foi o último militar que presidiu o estado de Sergipe, durante a Primeira República (DANTAS,
2004).
7. Souza (1985) escreve sobre a importância de Fausto Cardoso, bem como outros intelectuais
sergipanos, formados na Escola de Direito de Recife na passagem do século XIX para o século XX e o
significado desse grupo nos rumos da política sergipana desse período com destaque para “A Revolta de
Fausto Cardoso” ocorrida em 1906, tendo entre outros objetivos a finalidade de retirar a oligarquia
liderada pelo monsenhor Olímpio Campos do poder. Em uma das suas conclusões acerca da “Revolta de
Fausto Cardoso”, afirma: “Há que considerar o movimento em sua complexidade, pelas dimensões que
tomou, pelos elementos que o fizeram, como o levante policial, a participação popular das camadas
médias urbanas, o caráter urbano da revolta. Todos esses elementos não foram, todavia, suficientes para
que os revoltosos pensassem em alterar a ordem oligárquica. Aliás, manter a ordem foi ponto de honra na
direção imprimida por Fausto Cardoso ao movimento. Se as conquistas da revolta fossem sancionadas,
elas o haveriam de ser por seu caráter legal, legítimo, uma legitimidade baseada não apenas no que se
considera serem as reais aspirações do ‘povo’ mas também, e acima de tudo, baseada na obediência às
leis. O que se queria, pois, empreender era antes uma correção que uma transformação” (SOUZA, 1985,
p. 243). Consultar a citada autora para saber mais acerca dos “Impasses do Federalismo Brasileiro” com
foco em Sergipe.
8. Vale ressaltar que Graccho Cardoso era filho do professor Brício Cardoso e primo de José de Alencar
Cardoso, colega de Abdias na Escola da Praia Vermelha e de trabalho no Colégio Tobias Barreto durante
alguns anos.
9. Das várias facetas que perpassam a atuação de Abdias Bezerra na direção da Instrução Pública de
Sergipe saliento sua viagem para São Paulo. Segundo Nascimento (2003), Abdias foi para aquele estado
a fim de estudar as reformas de ensino ali implementadas, no seu retorno a Sergipe, promoveu uma
Reforma no ensino no estado. Tal Reforma foi sintetizada no Regulamento da Instrução Pública editado
em 11 de março de 1924 por Maurício Graccho Cardoso. Conforme o aludido autor, Abdias Bezerra,
soma-se a outros sergipanos, como Helvécio de Andrade, José Augusto da Rocha Lima, Franco Freire e
Penélope de Magalhães, que fizeram viagens com a finalidade de reformar o ensino em Sergipe. Barroso
(2011) estuda tais reformas, bem como a participação desses intelectuais na educação sergipana das
primeiras décadas do século XX.
10. Segundo Guaraná (1925), Arthur Fortes, nasceu em 23 de julho de 1881 em Aracaju, filho de Antonio
Augusto Gentil Fortes e Antonia Junqueira Fortes. Fez o curso de humanidades com o professor Alfredo
Montes e no Atheneu Sergipense. Além do próprio Atheneu, foi professor do Colégio Tobias Barreto de
História e Francês e no Instituto América lecionou Francês e Geografia. Foi deputado estadual entre 1910
e 1911 e de 1923-1925, publicou em vários jornais e fez parte de várias associações, entre elas, o
“Centro Socialista Sergipano”, “Tobias Barreto”, “Clube Esperanto” e o IHGSE. A respeito de Arthur
Fortes, ver entre outros, Bezerra (1981a) e Soutelo (1990).
11. No tocante a trajetória do professor José Augusto da Rocha Lima, consultar sua biografia escrita por
Sobral (2010).
12. Acerca da Escola Nova, faço o uso do termo concordando com as ideias de Vieira (2001, p. 54):
“Utilizarei, ao longo do texto, a expressão Movimento pela Escola Nova para me referir, em sentido
amplo, ao movimento cultural que, na década de trinta do século passado no Brasil, mobilizou um
conjunto significativo de intelectuais brasileiros em torno de um projeto que, nas palavras de Lourenço
Filho, visava a organização nacional através da organização da cultura. Parto da premissa de que a
atuação dos intelectuais envolvidos com o movimento foi decisiva na configuração do campo
educacional brasileiro, a partir de suas iniciativas na definição de políticas públicas para educação, na
organização do sistema nacional de ensino, na reformulação dos métodos pedagógicos, bem como na
orientação da formação de professores”.
13. Acerca do período em que dirigiu a instrução pública, no governo de Manuel Correia Dantas (1927-
1930), Thetis Nunes escreveu: “A Diretoria de Instrução foi entregue a um jovem professor, autodidata,
espírito inovador, aberto à ideias progressistas, Manuel Franco Freire, que, logo, procurou reformar o
ensino normal, ‘de acordo com os preceitos da pedagogia moderna’. Preocupou-se, sobretudo, dar a esse
ramos de ensino um caráter essencialmente prático. ‘Em primeiro lugar, as noções práticas e depois a
teoria’, recomendava ele, e para por em execução tais idéias equipou a Escola normal de modernos
laboratórios de física, química e história natural com aparelhos importados da Alemanha” (NUNES,
2008, p. 272).
14. Sobre Severiano Cardoso, Armindo Guaraná (1925) afirma que nasceu em 1840 na cidade de
Estância e faleceu em outubro de 1907, em Aracaju. Foi professor da Escola Normal, do Atheneu
Sergipense, bem como do Parthenon Mineiro em Minas Gerais e do Parthenon Sergipano de Ascendino
dos Reis. Foi dono do colégio Minerva criado na sua cidade de origem e exerceu vários cargos públicos.
Ver também Freitas (2007, p. 153-158).
15. Vale ressaltar as relações de proximidade familiar entre o discente Felte e o diretor do Colégio
Tobias Barreto, além de amigo de seu pai, também concunhado, pois devido à morte de Esmeralda
Araújo, dez meses depois Abdias Bezerra casou-se novamente. Felte Bezerra buscou justificar as
“segundas núpcias do pai”: “Teve de fazê-lo, pois meu pai, perdeu a esposa, minha mãe, aos 35 anos de
idade. Vivendo em cidade pequena, dado seu comportamento irrepreensível, teria que casar logo para
conservar sua proverbial austeridade como cidadão” (FELTE, 1981b, p. 3).Talvez a justificativa não
servisse para os filhos, a quem Felte dedicou seus escritos, ou mesmo para futuros leitores, para quem
acreditamos que os seus registros foram efetivamente deixados, mas para si, pois com menos de um ano
da perda da mãe, Felte já viu na sua casa, outra mulher, sua madrasta com quem conviveu até sua ida para
a cidade de Salvador cursar o ensino superior.
16. Uma análise profícua acerca dos internatos no Brasil e mais especificamente em Sergipe, inclusive
do Colégio Tobias Barreto, pode ser consultada na tese de Conceição (2012).
17.Com relação a tal reforma Nunes (1999) comenta que essa caracterizou-se “[...] por ter retirado das
reformas anteriores contribuições positivas entrosando-as para aplicar ao Brasil. De Benjamin, ficou a
equiparação dos colégios estaduais; do Código Epitácio Pessoa, o currículo seriado de Pedro II e a
equiparação estendida aos colégios particulares; de Rivadávia, o exame vestibular; da tradição que vinha
do império os exames preparatórios parcelados. Feitos esses nos colégios oficiais perante bancas
nomeadas pelo Conselho Nacional de Educação, os alunos dos colégios particulares que se submetessem
poderiam candidatar-se ao ingresso nas escolas superiores” (NUNES, 1999, p. 90−91).
18. Tradução livre: “Atirem primeiro, cavalheiros Ingleses”.
CAPÍTULO 5
Introdução
O objetivo neste artigo é o de analisar o percurso que possibilitou o ingresso de Carmelita Pinto Fontes
e Núbia Marques na Academia Sergipana de Letras (ASL), além da elegibilidade de Raquel de Queiróz
na Academia Brasileira de Letras (ABL). O sodalício sergipano restringia o ingresso de mulheres e a
primeira acadêmica eleita foi a poetisa Núbia Nascimento Marques que conseguiu a imortalidade, em
1978, um ano após a posse de Rachel de Queiróz (1977) na Academia Brasileira de Letras. Esta, assim
como a Academia Francesa de Letras, trazia a marca da não elegibilidade feminina. Este estudo terá
como pressupostos teórico-metodológicos inspirados pela Sociologia da Educação e, para a sua
realização foram mobilizadas as categorias: dominação masculina, capital cultural e capital social de
Pierre Bourdieu (2012; 2007).
A dominação masculina foi apresentada pelo estudioso como violência simbólica em que o poder
impõe significações e pode fixar-se como legítimo, de modo a reconhecer e camuflar a própria força – a
dominação masculina. Esse esquema de pensamento nos chega de forma aparentemente invisível e torna-
se aceito pela sociedade que entende está usando com liberdade o seu pensamento.
A força da ordem masculina não exige explicação porque a visão androcêntrica impõe-se de forma
neutra e não precisa se justificar por meio de discurso que a torne legítima. Assim, a visão androcêntrica
é ratificada pela estrutura de pensamento da imensa máquina simbólica que é alicerçada pela ordem
social (BOURDIEU, 2012). Como fazer para quebrar este paradigma? Como essa representação foi
compreendida pela Academia Sergipana de Letras? Como a professora Núbia Marques lidou com os
limites impostos pela sociedade androcêntrica? Quando Carmelita Pinto Fontes candidatou-se enfrentou
as marcas da representação androcêntrica na ASL, mesmo sendo a quarta2 representante feminina a
assumir uma cadeira naquela confraria?
Para responder a estas perguntas faz-se necessário dialogar levando em consideração a categoria
capital. Os questionamentos devem ser compreendidos a partir do acumulo de capital especifico. Eles
podem ser de natureza econômica ou cultural e tornam-se suficientes para que o indivíduo possa ocupar
posições dominantes no interior do campo que interage.
A noção de capital cultural surgiu diante da necessidade de buscar explicação para compreender as
desigualdades de desempenho escolar de alunos de categorias sociais diferentes. Conforme Bourdieu
(2013), para se apropriar dos bens culturais é preciso dominar os instrumentos e códigos para poder
dominar e incorporar os referidos bens, ou seja, é preciso possuir capital cultural. Assim, o processo de
escolarização é um investimento que pode gerar outros bens: o capital econômico (bens materiais) e
capital social representados por uma rede de recursos ou potenciais que compõem uma rede durável de
relações e interconhecimentos ou inter-reconhecimentos que são dotados de propriedades comuns e que
são percebidas pelo observador, por outros ou por seus pares, unidos por ligações permanentes e úteis.
Essas ligações não são reduzidas pelo espaço geográfico, econômico ou social porque tem como base as
trocas tanto materiais quanto simbólicas, cuja criação e manutenção supõem o reconhecimento dessa
proximidade (BOURDIEU, 2013). Para realizar este estudo foi necessário consultar fontes documentais,
entrevistas, discursos, jornais e bibliografia sobre o tema.
Considerações finais
Raquel de Queiroz não era uma aliada do feminismo, como chegou a revelar. Por exemplo, o
discurso de posse da primeira mulher imortal, no Brasil, não revelou afinação e nem destacou esse fato,
tampouco o acadêmico que a recepcionou buscou destaque na figura de Raquel como pioneira entre as
mulheres de seu país, na ABL. Os destaques femininos feitos por Adonias Filho falavam sobre as
mulheres que a escritora havia criado em alguns de seus romances. Teria sido esta a forma encontrada
por Adonias para lançar luzes sobre o pioneirismo da elegibilidade da escritora?
De qualquer modo, após o ingresso da primeira mulher na ABL, outras puderam ingressar porque o
Regimento da instituição passou a permitir, a norma legal foi alterada. A Academia assistiu aos ingressos
de Dinah Silveira de Queiroz (1980); Lygia Fagundes Telles (1985); Nélida Piñon (1989); Zélia Gattai
(2001); Ana Maria Machado (2003); Cleonice Seroa da Mota Berardinelli (2009) e Rosiska Darcy de
Oliveira (2013). Cabe destacar que a escritóra Nélida Piñon já presidiu o sodalício.
A elegibilidade conseguida por Raquel de Queiroz possibilitou o ingresso de outras mulheres em
outros silogeus, a exemplo do que foi possível verificar sobre o ingresso de Núbia Marques que também
possibilitou a elegibilidade de mulheres sergipanas, como as citadas na sequência: Núbia Marques
(1978), Ofenísia Soares Freire (1980), Maria Thétis Nunes (1983), Carmelita Pinto Fontes (1984),
Gizelda Santana Morais (1992), Maria Ligia Madureira Pina (1998), Aglaé Santana de Moraes (2002),
Marlene Alves Calumby (2004), Ana Maria do Nascimento F. Medina (2007), Luzia Maria da Costa
Nascimento(2007) e Patrícia Verônica Carvalho Sobral de Souza (2013).
O fato de possuir capital cultural e capital social constitui-se em critérios importantes para que
algumas mulheres pudessem adquirir elegibilidade e ascender a imortalidade. Contudo, é importante
pensar na mão masculina que aponta, articula e conduz candidaturas tanto na Academia Brasileira de
Letras, quanto na Academia Sergipana de Letras. A mulher passou a ter liberdade para candidatar-se a
uma cadeira nas Academias. Contudo, será que a porta para o ingresso da mulher está aberta ou (apenas)
entreaberta? Ou será que as mulheres excluídas dos jogos do poder são preparadas para deles participar,
por intermédio dos homens?
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<http://www.academia.org.br/academicos/getulio-vargas/discurso-de-posse>. Acesso em 03 dez. 2015.
Sobre as autoras
Ane Rose de Jesus Santos Maciel
Doutoranda em Educação/UFS. Mestrado em Educação pela Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Sergipe PPGED/UFS. Graduada em História pela Universidade
Tiradentes/UNIT (2011). Pós-Graduação Lato Sensu em Arte Educação pela Faculdade São Luís de
França (2011). Produzindo pesquisas relacionadas a Trajetórias de Intelectuais da Educação e História
da Educação. Pertencente ao GREPHES - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre História do Ensino
Superior, que tem por objetivo investigar as transformações históricas verificadas no âmbito do ensino
superior no Brasil (Instituições Públicas ou Particulares), tendo como foco principal a Universidade
Federal de Sergipe/UFS.
Josefa Eliana Souza
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006), Mestrado em
Educação - UFS (1998), Bacharela em História- UFS (1984) e Graduada em História -UFS(1979).
Professora adjunta do Departamento de Educação e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da
UFS. Atua no campo da História da Educação com discussões sobre ensino superior no Brasil
(instituições, intelectuais, representações e materiais impressos), tendo como foco principal - a
Universidade Federal de Sergipe. Lidera o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre História do Ensino
Superior GREPHES. Publicou “História e Memória: Universidade Federal de Sergipe (1968-2012)”.
Notas
1. Este capitulo está relacionado aos estudos pxroduzidos pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
História do Ensino Superior(GREPHES).
2. A posse das mulheres na Academia Sergipana de Letras foi a seguinte: Nubia Marques (1978),
Ofenísia Soares Freire (1980), Maria Thétis Nunes (1983), Carmelita Pinto Fontes (1984), Gizelda
Santana Morais (1992), Maria Ligia Madureira Pina (1998), Aglaé Santana de Moraes (2002), Marlene
Alves Calumby (2004), Ana Maria do Nascimento F. Medina (2007), Luzia Maria da Costa
Nascimento(2007) e Patrícia Verônica Carvalho Sobral de Souza (2013) (MELNIKOFF, 2014, p. 60).
3. Manuel Cabral Machado era Bacharel em Direito. Elegeu-se por três legislaturas a Deputado Estadual
pelo Partido Social Democrático. Foi professor e cofundador das quatro primeiras faculdades criadas no
Estado e da Universidade Federal de Sergipe. Ocupou a cadeira nº25 (Antônio Dias de Barros) na
Academia Sergipana de Letras. Cf. OLIVA (2013).
4. Eufrozina Amélia Guimarães mais conhecida como Zizinha Guimarães, foi uma mulher que ganhou
notoriedade na cidade de Laranjeiras/SE em virtude de seus feitos no cenário educacional e social, entre
os fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX. SANTANA, Lívia Borges. Em Busca de
Zizinha: Vestígios para a musealização da memória sobre Eufrozina Amália Guimarães (1872-1964.
Monografia de Museologia da Universidade Federal de Sergipe. Laranjeiras/SE 2011.
5. Refere-se aos professores que defendem uma tese diante de uma banca, a partir disso, sendo aprovado
passa a compor o quadro de professores daquele determinado estabelecimento de ensino.
6. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
7. O poeta José Sampaio nasceu em 02 de maio de 1913, na cidade de Neopólis eescreveu, entre outras
obras, “Esparsos e Inéditos” publicada pela primeira vez em 1967, sob a organização de Jackson da
Silva Lima.
8. O poeta, dramaturgo e teórico russo Vladimir Mayakovsky.
9. Luiz Fernando Ribeiro Soutelo ingressou, posteriormente, na Academia Sergipana de Letras, na
Cadeira nº 30 que tem José Jorge Siqueira Filho (Patrono); Enoch Matusalém Santiago (Fundador) e José
Olino Oliveira Lima como acadêmico antecessor.
10. Luiz Antônio Barreto nasceu na cidade Lagarto em 1944 e faleceu em 2012. Era jornalista,
pesquisador e memorialista.Trabalhou em diversos jornais sergipanos. Tem diversos livros publicados e
foi membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, do Conselho Estadual de Cultura e da
Academia Sergipana de Letras,
11. Gineceu era parte da casa, na Grécia antiga, reservada as mulheres, além de ser órgão feminino das
flores, formado por um ou mais pistilos, que se constituem de ovário, estilete e estigma. Androceu
consiste os órgãos masculinos da flor, conforme o Dicionário de Houaiss.
12. João Alves Filho exerceu três mandatos como governador de Sergipe: 1983-1987; 1991-1994 e
2003-2006.
13. LEAL, Rita de Cássia Dias. O Primeiro Jardim de Infância de Sergipe: contribuições ao estudo
sobre Educação Infantil (1932-1942). Dissertação de Mestrado em Educação da Universidade Federal
de Sergipe, 2004.
14. NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro. Ed. Paz e Terra, 1984.
15. Criado no governo de Eronides Ferreira de Carvalho, em 1923.
16. Antes da Lei do Divórcio (1977), o Código Civil de 1916, com vigência a partir de 1917,
estabeleceu o desquite, que separava corpos e bens, mas não extinguia o vínculo matrimonial. O desquite
equivaleria à separação judicial, trazida pela Lei do Divórcio. Com essa nova modalidade, o casal, que
ainda estivesse junto, se separava judicialmente e, dois anos depois, podia homologar o divórcio. Ou, se
o casal já estivesse separado de fato há mais de 3 anos, já podia dar entrada diretamente no divórcio.
Logo, Núbia desquitou-se em 1968. Com a Lei do Divórcio, ela já poderia converter o Desquite em
Divórcio, dado o lapso temporal da separação (Desquite).
17. Cf. SOUZA, Eliana. História e Memória Universidade Federal de Sergipe:1968-2012.São
Cristóvão: Editora UFS, 2015.
18. Luciano José Cabral Duarte nasceu em 21 de janeiro de 1925, em Aracaju/SE. Fez os estudos
secundários em Aracaju e os superiores em Olinda/PE e São Leopoldo/RS. Foi ordenado sacerdote em
1948. Em 1951, foi nomeado Diretor da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe, onde também
ensinava Filosofia. De 1954 a 1957, estudou no “Institut Catholique de Paris” e na “Sorbonne”,
recebendo, nesta, o título de Doutor em Filosofia. Em 1963, foi nomeado Bispo Auxiliar em Aracaju e,
em 1971, Arcebispo. De 1963 a 1967, liderou os trabalhos para a Fundação Universidade Federal de
Sergipe (UFS). Foi membro do Conselho Federal de Educação, Presidente Nacional do Movimento de
Educação de Base (MEB). Colaborou nos principais jornais e revistas do país, a exemplo dos jornais
“Folha de São Paulo” e Jornal do Brasil, bem como na revista Veja. Publicou diversos livros, entre eles
O Banquete de Platão (UFS, 1961), Estradas de Emaus (Vozes, 1971), Concílio Vaticano II – os novos
caminhos da Cristandade (J. Andrade, 1999). Cf.DUARTE, Luciano José Cabral. A natureza da
Inteligência no Tomismo e na Filosofia de Hume. Tradução: Antonio Carlos Mangueira Viana. Aracaju:
J. Andrade, 2003.
19 Cf. SOUZA, Eliana. História e Memória Universidade Federal de Sergipe:1968-2012.São
Cristóvão: Editora UFS, 2015
20. Getúlio Vargas ingressou na ABL, em (1943), na cadeira 37 cujo patrono foi Tomás Antônio Gonzaga
e Silva Ramos, o fundador.
CAPÍTULO 6
D
ebruçar-se sobre trajetórias de educadores requer uma imersão na compreensão de memória,
pois ela é um elemento essencial na construção de determinada identidade, como salientou Le
Goff (2003a). Para tanto, exige cuidados para que a narrativa histórica se aproxime da trama
vivida pela personagem, de modo que se possa interpretar sentidos e ações que a põem em movimento.
Trama essa que faz da história um campo fértil de produção de narrativas.
Neste capítulo, debrucei-me sobre o itinerário de viagem de Mercedes Dantas Itapicuru Coelho,
durante cinco meses, pelos estados do Norte2 do país, compreendendo os estados do Amazonas, Pará,
Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Sergipe, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia e Espirito Santo,
com a missão de difundir a reforma empreendida por Fernando de Azevedo, no Distrito Federal, e
promover a criação de entidades estaduais filiadas à Fundação das Sociedades Nacionais da Educação
(FNSE). Essa entidade foi criada em 1929, por Vicente Licínio Cardoso3 e José Augusto Bezerra de
Menezes4, após dissenção com Associação Brasileira de Educação, criada em 1924, quando esta passou
a ser controlada por católicos (BERTO, 2013).
Essa viagem foi comissionada pelo governo do municipal do Rio de Janeiro. Incialmente, procurei
traçar um perfil da biografada, situando-a no cenário da intelectualidade brasileira na primeira metade do
século XX, para, em seguida, acompanhar e analisar os seus esforços como vulgarizadora de um modelo
educativo implementado no Rio de Janeiro, deslocando-o de São Paulo, que desde o final do século XX
tinha preponderância no empréstimo de técnicos para outros estados, além de ser o itinerário de muitos
intelectuais em visitas de estudos à rede pública de ensino.
Aproximações finais
Este estudo teve, entre outros objetivos, trazer ao presente uma personagem que viveu e atuou em
diferentes contextos sociais, políticos e culturais, evidenciando seu contributo para determinada
sociedade carioca. Muitos dos chamados pioneiros da educação e responsáveis pelas reformas
educacionais de estados brasileiros, nas três primeiras décadas do século XX, têm sido objetos de
estudos, tais como Anísio Teixeira, Pascoal Lemme, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo. Alguns
textos procuraram dar visibilidade a outros personagens que viveram neste mesmo período, assumindo
diferentes postos na instrução pública de seus estados, que estão sendo “lembrados” com singular papel
nesse processo de renovação da Escola, embora sem os “louros” heroicos de outros protagonistas que
ocuparam a literatura pedagógica no decorrer do século XX.
As viagens pedagógicas desses intelectuais demonstraram, entre outras coisas, a circulação de
modelos educativos. Mercedes Dantas, objeto deste estudo, além de sua atuação nos movimentos
feministas, associativos e políticos de seu tempo, realizou um processo de difusão da Escola Nova em
dez estados brasileiros, dando seu contributo à política de unificação do sistema educativo nacional que,
a princípio, seria costurado com o ideário escolanovista, em uma vertente mais próxima ao pensamento
de Adolph Ferrière.
Nessa direção, o itinerário de Mercedes Dantas aos estados do Norte, como propagandista de uma
política educacional, pautada na reforma de Fernando de Azevedo no Distrito Federal, tornou-se
propagandista de uma perspectiva educativa alicerçada no conjunto de ideais difundidas pela FNSE.
Esses passos da educadora, no âmbito de uma organização nacional dos educadores, não sofreram
descontinuidade com a Revolução de 1930, embora tenham perdido a força no que concerne aos aspectos
políticos de luta e se assentado nas dimensões técnica e pedagógica das mudanças ansiadas pelos
simpatizantes de Getúlio Vargas.
Esse alinhamento a essa nova política e a fé que tinha no nacionalismo possivelmente fizeram com
que historiadores da educação não tenham dado visibilidade necessária a essa personagem que viveu
integrada no cenário social e cultural do Rio de Janeiro, uma das pioneiras na imprensa, como diretora
de jornal, como defensora de pautas feministas e, sobretudo, como engajada que foi nas lutas
educacionais de seu tempo, como professora e na condição de diretora e membro de associações e
partidos políticos.
Sua viagem pedagógica, circulando, durante cinco meses, os estados da Bahia, Alagoas, Sergipe,
Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Pará, Maranhão, Espírito Santo e Amazonas,
acompanhada de sua genitora, demarcou o esforço de se costurar, em nível nacional, um modelo
pedagógico a ser adotado. Suas impressões de viagens, apesar de nem todas terem sido localizadas,
possibilitaram a construção de um exercício comparativo sobre a Escola Nova no Brasil, dando uma
amostra do quanto intelectuais se empenharam na implantação desse ideário pedagógico, assumindo-o
como um apostolado em defesa da escola e do Brasil.
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204, 24/08/1930.
______. O ensino público nos estados brasileiros: o que observou em sua viagem de estudo a escriptora
Mercedes Dantas. Rio de Janeiro, N. 221, 14/09/1930, p. 7.
O IMPARCIAL. Visita de Mercedes Dantas ao Maranhão. Maranhão, N. 2331, 14/06/1930.
______. A escriptora Mercedes Dantas visita o Maranhão. Maranhão, n. 2329, 12/06/1930, p. 1
PACOTILHA. A embaixatriz da mentalidade baiana. Maranhão. N. 131, 12/06/1930.
______. Carta Aberta: “À ilustre escriptora D. Mercedes Dantas”. Maranhão, n. 132, 13/06/1930.
Sobre autora
Maria Neide Sobral é professora Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Sergipe. Doutora em Educação, pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte e Pós-Doutora em Educação e Comunicação pela Universidade Aberta de Portugal.
Pesquisadora em História da Educação, Educação e Tecnologias da Informação e Comunicação e
Educação a Distância.
Notas
1.
2. Até a década de 1930, o Brasil era dividido nas seguintes regiões: Setentrional (Amazonas, Acre e
Pará); Norte-Oriental (Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Pará, Pernambuco e Alagoas);
Oriental (Sergipe, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro); Meridional (Minas Gerais, São Paulo, Paraná,
Santa Catarina, Rio Grande do Sul) e Central (Goiás e Mato Grosso). Embora com essa divisão, os
estados do Norte eram considerados aqueles que somavam a Setentrional, Norte-Oriental e Oriental.
3. Nasceu no Rio de Janeiro, em 1889, e morreu em 1931. Foi engenheiro civil e escritor, ligado ao
positivismo de Comte. Foi presidente da ABE e também professor da Escola Politécnica do Rio de
Janeiro. Foi, por pouco tempo, subdiretor técnico da Instrução Pública do Distrito Federal, a convite de
Fernando de Azevedo. Envolveu-se nos chamados “raids educacionais”, viagens em defesa da causa da
educação através da realização de debates, palestras e visitas aos estados do país. Fonte:
Biografia: Cardoso, Vicente Licínio. Disponível em:
<http://www.brasiliana.com.br/pop/pop_bio/24/7fcbaff05c53f0665a5753177163048c>. Acesso em: 20
jan. 2016.
4. No Rio Grande do Norte, ele foi um dos responsáveis pela reforma da Escola Nova, entre 1927-1928.
5. Relatou a autora que, ao chegar ao Brasil, o referido intelectual não pôde desembarcar em razão da
Revolução de 1930. Construiu, por isso, suas impressões de viagem a partir da leitura de revistas
brasileiras colocadas à sua disposição o Brasil: “Boletim da Instrução Pública” e a “Revista Brasileira
de Educação” (CARVALHO, 2007).
6. Esse partido foi criado na onda de redemocratização em 1945. Ligado à política getulista e, portanto,
de apoio ao seu governo.
7. Partido que surgiu no final da República, em 1889, permaneceu durante o Estado Novo proibido e
retornou a suas atividades em 1945.
8. Às vésperas dessa nova eleição, houve uma campanha de difamação que a prejudicou, conforme
noticiou a Revista A Semana, p. 51.
9. Disponível em: <http://www2.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/382MarluciaPaiva.pdf>. Acesso
em: 2 jan. 2016.
10. Após a Revolução de 1930, eles foram exonerados dos cargos que ocupavam na Instrução Pública de
Pernambuco.
11. Durante sua visita a Sergipe, tomou conhecimento de uma declaração atribuída à sua pessoa sobre o
assassinato de João Pessoa, o que gerou desmentidos na imprensa por parte dela e de outros envolvidos.
Aludira um dos jornais cariocas que Mercedes Dantas ouvira do governador do Rio Grande do Norte,
Juvenal Lamartine, que este recebera uma carta do autor do assassinato do presidente da Paraíba,
informando sobre a realização do crime. Tanto Lamartine quanto Mercedes desmentiram esse ocorrido.
CAPÍTULO 7
Introdução
N
os anos de 1910, as crianças de Sergipe ainda aprendiam a ler com o abc, soletrando, em
descompasso com as propostas pedagógicas para o ensino da leitura e da escrita em voga. Isso
acontecia na Escola Normal, uma referência em matéria de educação no Estado, envergonhando
Adolpho Ávila Lima e Ítala Silva de Oliveira, duas expressivas lideranças intelectuais, críticos do poder
público e da pessoa que o representava na Diretoria de Instrução Pública - Helvécio de Andrade. No ir e
vir de muitas controvérsias, eles encontraram uma saída para o problema da educação estadual - o
método analítico da leitura, lógico ou positivo, coerente com os estudos científicos europeus e norte-
americanos, difundidos no Brasil no início do Século XX.
Aclarar a dimensão intelectual das polêmicas daqueles três educadores é proposta deste texto, de
forma articulada com os objetivos da minha pesquisa de Doutorado, em andamento no Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. O estudo que realizo é sobre as ligas
nordestinas de combate ao analfabetismo e sobre o associativismo educacional que representam na
história da educação brasileira. Tal estudo apresenta relações com o pensamento pedagógico moderno e,
nesse sentido, ocorre-me perguntar, principalmente: quais as referências teóricas – autores, obras e
ideias - dos intelectuais que lideraram o debate sobre o ensino da leitura e da escrita, nas primeiras
décadas do Século XX?
No estado atual da pesquisa, desconheço trabalhos acadêmicos que tratem dos fundamentos teóricos
da campanha levada a efeito pelas ligas nordestinas de combate ao analfabetismo, apesar de
determinados autores abordarem de modo significativo as ligas nacionalistas da Primeira República
(SOUZA, 2004; NOFUENTES, 2005; SANTOS, 2005; NOFUENTES, 2008; SILVA, 2009; SOUZA,
2009; DAMASCENO, 2009; CARVALHO, 2012).
É considerada fonte para o estudo a produção escrita dos intelectuais sergipanos selecionados,
precisamente vinte e cinco textos da lavra deles que interessam ao presente estudo, a saber: seis textos de
Adolpho Ávila Lima, dois publicados em março de 1915 e dois publicados em maio de 1917, no jornal
Diário da Manhã; quatro artigos de Helvécio de Andrade, dois publicados em maio de 1917, no Diário
da Manhã, e dois publicados no Correio de Aracaju, em outubro de 1912; quinze artigos de Ítala Silva de
Oliveira, sendo treze deles publicados no Diário da Manhã, entre os meses de setembro de dezembro de
1916, mais dois publicados no mesmo jornal, no mês de maio de 1917.
Uma vez eleita como fonte, a imprensa precisa ser compreendida na Primeira República como um
órgão que influenciou positivamente os demais setores sociais, no momento em que o país vivia uma
conjuntura política e econômica favorável, marcada pelo apogeu do café e pela diversificação das
atividades produtivas; a imprensa se destacou diante da nova ordem política republicana, dos novos
meios de comunicação e dos avanços nas técnicas tipográficas e de ilustração, dos programas de
urbanismo e de alfabetização (MARTINS & DE LUCA, 2006). A impressa periódica foi uma estratégia
de construção de consensos, propaganda política e religiosa, de produção de novas sensibilidades,
maneiras e costumes, assim como uma importante estratégia educativa (FARIA FILHO, 2002).
Mas, o jornal tornou-se também um monumento por gravar determinada imagem de uma sociedade
(LE GOFF, 1984, p. 95-106); passou a exigir a sua desconstrução por meio de um referencial teórico-
metodológico capaz de descortinar o mundo social estudado e as várias delimitações e classificações que
o organizam, sempre representativas de um dado grupo e do nível de seu poder. Lidar com as
representações, e também com as apropriações, é conveniente, pois esta é a “pedra angular de uma
abordagem ao nível da história cultural” e envolve três modalidades de relação com o mundo social:
[...] em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações
intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos
diferentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social,
exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma
posição; por fim as formas institucionalizadas e objectivadas graças as quais uns ‘representantes’
(instâncias colectivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência
do grupo, da classe ou da comunidade (CHARTIER, 1990, p. 23).
Tão importante quanto a representação, a noção de apropriação diz respeito aos sentidos atribuídos
aos textos (escritos ou não) e também aos seus possíveis usos, quer dizer, às múltiplas interpretações e
práticas dos elementos culturais, realizadas nos diversos contextos sociais e históricos, de acordo com as
diferentes épocas e com os diferentes lugares. De tais explicações extraio o caminho metodológico para
compreensão da produção intelectual da época, procurando estudar os sentidos atribuídos aos processos
de ensino da leitura. Este é o objetivo da história cultural, justamente: compreender as práticas,
complexas, múltiplas, diferenciadas, as quais constroem o mundo como representação (CHARTIER,
1990).
Neste texto, o pensamento de Adolpho Ávila Lima, Ítala Silva de Oliveira e Helvécio de Andrade,
sobre a leitura e os seus métodos, aparece atrelado à ideia de um associativismo educacional
conjecturado, exatamente, no âmbito das representações sobre a realidade social do Nordeste do Brasil,
na primeira década do Século XX, caracterizada por um altíssimo índice de analfabetismo, refletido e
dado a ler pelos intelectuais partícipes daquele movimento nacional mais amplo, conhecido por
“entusiasmo educacional” (NAGLE, 2000).
A respeito da noção de entusiasmo pela educação, considero a revisão já verificada em outros
recortes de pesquisa (PAIVA, 1987; CARVALHO, 1998; BRANDÃO, 1999), mas tento não reduzir a sua
importância para compreensão das campanhas sociais em prol do ensino primário obrigatório, no
contexto da Primeira República. De acordo com Mirian Warde (2000), não obstante a crítica dirigida à
obra “Educação e Sociedade na Primeira República”, de Jorge Nagle (2001), esse livro é um clássico na
História da Educação Brasileira e representa um “marco-de-passagem” na pesquisa educacional, pois
sinaliza mudanças nos padrões adotados pelos pesquisadores. O autor tratou da relação do “texto” com o
seu “contexto” e fez avançar a discussão teórica para além das formulações restritamente educacionais ou
pedagógicas, ao aproximar a educação das ciências sociais.
Na década de 1910, os intelectuais brasileiros estavam entusiasmados com a possibilidade de
solucionar o enorme problema do analfabetismo. De acordo com o censo de 1920, as taxas de
analfabetismo ainda eram elevadíssimas, na ordem de 71,2%, em relação à população acima de cinco
anos, sendo da ordem de 64,9% para maiores de 15 anos, considerando-se o total de 30.635.605 de
pessoas presentes no país (BRASIL, 1920). As elites políticas e intelectuais associaram-se, sim, com o
intuito de combater aquilo que concebiam como uma patologia, o mal da nação. Sobre a escola recaíram,
então, vários olhares e o sistema público de ensino passou a ser estudado para que as práticas
civilizatórias brasileiras pudessem se concretizar. Onde estava a solução para as mazelas da educação?
Análises que ultrapassem quaisquer “localismos” poderão trazer possíveis respostas, uma delas é esta:
nas apropriações efetuadas de modelos teóricos e científicos estrangeiros. Sistematicamente, as
similaridades e diferenças dos fenômenos são revelados quando comparados adequadamente (BLOCH,
1992).
Por ora, limito-me a comparar as ideias de Adolpho Ávila Lima, Ítala Silva de Oliveira e Helvécio
de Andrade entre si, procurando encontrar indícios do pensamento pedagógico europeu e norte-
americano no conjunto de proposições elaboradas pelos três intelectuais que pensaram a leitura e os seus
métodos. Este é o principal mote deste texto, organizado em duas partes além desta introdução. Uma
delas denomina-se “Um método analítico para a leitura e uma pedagogia moderna para Sergipe: Spencer,
Calkins e outras fontes de inspiração intelectual”; a outra parte traz apenas algumas “Considerações
finais”.
Considerações Finais
Este texto foi escrito com o propósito de aprofundar o estudo sobre as ligas nordestinas de combate
ao analfabetismo, meu objeto de estudo no Doutorado em Educação, buscando correlacionar as ideias
formuladas por três intelectuais sergipanos sobre o ensino da leitura com as principais teses da
pedagogia moderna clássica. A questão central proposta aqui foi esta: em quais autores e obras estavam
fundamentados os intelectuais que pensaram o ensino da leitura e da escrita, nas primeiras décadas do
Século XX? As fontes principais das informações foram os artigos encontrados nos jornais Correio de
Aracaju e Diário da Manhã, dos anos de 1912 a 1917, produzidos por Adolpho Ávila Lima, Ítala Silva
de Oliveira e Helvécio de Andrade.
Os intelectuais sergipanos adotaram o principio do desenvolvimento natural da criança como
fundamento para organização do ensino da leitura, fazendo crer que a escola deveria adaptar-se às
necessidades infantis mediante aplicação do método intuitivo. Estes princípios foram buscados,
principalmente, nas obras do filósofo inglês Herbert Spencer e do educador norte-americano Norman
Alisson Calkins. O método intuitivo para o ensino da leitura caracteriza-se pela ênfase nos processos
analíticos, os quais partem da palavra concreta, real ou positiva para decomposição dos seus elementos
constitutivos, ou seja, para sílabas e letras. Não obstante o consenso em torno daqueles princípios e da
aprovação do método intuitivo para o ensino da leitura, há diferenças nas interpretações observadas dos
intelectuais sergipanos quanto ao assunto, pois com Adolpho Ávila Lima, por exemplo, um ensino da
leitura restrito à demonstração do objeto completo ou da palavra inteira e das suas partes não é analítico,
uma vez que não basta a inteligência ver para compreender. Ele defende um processo de leitura que, após
a decomposição, permita ainda uma nova síntese, conforme já soubera ser aplicado nos Estados Unidos.
Importante frisar no debate sobre os processos de ensino da leitura que as disputas travadas pelos
intelectuais revelam a apropriação de elementos da cultura científica em um jogo de distinções que os
levou a criar determinadas representações de si próprios e da educação em Sergipe. Tal jogo se realiza
na complexa teia de interdependências em que caminharam pari passu forças representativas da
sociedade civil e do Estado, associadas a um ideário científico e pedagógico capaz de determinar os
rumos da política nacional de educação e orientar os Estados, ainda separados pela grande extensão
territorial do país, bem como pela dificuldade de comunicação, desproporção e má distribuição dos
recursos financeiros. Daquele jogo de tensões surgiu um equilíbrio que permitiu o estabelecimento de
uma configuração fundada nas teses científicas, da qual faziam parte os intelectuais sergipanos mais
fundamentados teoricamente e tecnicamente experientes, portanto, autorizados a propagar os
procedimentos analíticos para o ensino da leitura nos meios educacionais do Nordeste do Brasil, nas
primeiras décadas republicanas. Eles representam uma associação voluntária em prol da
profissionalização e especialização pedagógica e precisam ser ainda mais bem reconhecidos como tal
mediante o desenvolvimento de mais estudos sobre as fontes que embasaram as representações sobre o
ensino da leitura e os seus métodos, no contexto de formação das ligas nordestinas contra o
analfabetismo.
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Acesso em 08 de fev. 2016.
Sobre autora
Clotildes Farias de Sousa é licenciada em Pedagogia, Mestre em Educação e Doutoranda do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe (PPGED/UFS). É
membro do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq).
CAPÍTULO 8
Diálogo de apresentação
A
o longo da formação das sociedades modernas, registraram-se vestígios de ações coletivas que
conjecturaram interesses comuns e despertaram nos indivíduos a necessidade ou vontade de
promover o desenvolvimento do seu meio social através de práticas associativas. Estabeleceu-
se, nesse momento, o associativismo, como forma de atender à necessidade para se aprimorar as relações
sociais e as condições de vida. A prática associativa serviu como instrumento democrático capaz de
desenvolver o espírito de cooperação nos diferentes espaços sociais. Alguns teóricos são fundamentais
para a compreensão do associativismo como instrumento de desenvolvimento e de estruturação das
sociedades modernas, dentre os quais se destacam: Alexis de Tocqueville e Max Weber.
A prática associativa não é fruto apenas dos espaços políticos, ou delegada por homens ou mulheres
adultos à frente de uma causa coletiva. Ao direcionarmos nossas lentes para o campo da educação,
conseguiremos registrar a presença de inúmeras associações criadas por e para alunos no cotidiano das
instituições de ensino ao longo dos séculos XIX e XX nos mais diferentes lugares. Dentro das inúmeras
experiências associativas ocorridas ao longo desses dois séculos, as associações estudantis compuseram
o conjunto de atividades de socialização, peculiares à ação educativa da escola, que contribuíram na
formação da juventude que “aprendia fazendo”, por meio das vivências de experiências benévolas
fundamentadas no desenvolvimento de senso de responsabilidade, respeito, dignidade e cooperação para
o bem em sociedade.
Nesse sentido, o presente texto tem como objetivo apresentar e analisar as interpretações sobre o
associativismo como prática social e educativa, defendidas pelos intelectuais Alexis de Tocqueville,
Max Weber, John Dewey e Adolfo Lima. A produção deste texto está fundamentada em uma pesquisa
bibliográfica, na qual os textos sobre a temática do associativismo produzidos por esses intelectuais
foram tomados como fontes principais e compuseram diálogos que buscaram contribuir na ampliação de
um debate, necessário e urgente, sobre a prática do associativismo estudantil como mecanismo de
socialização, sociabilidade, cooperação e colaboração comum nos espaços sociais da juventude de
outrora.
Diálogos finais
A vida associativa corrobora para que o indivíduo associado, em meio ao seu convívio social,
desenvolva o hábito de expressar suas opiniões, ouvir e respeitar as opiniões alheias, civilizar-se, e a
ratifica como uma única via de organização e desenvolvimento social e promoção do bem comum.
Compreender o fenômeno do associativismo como uma organização social, como bem esclareceram
Tocquevilee e Weber, revela-o como um mecanismo presente nas sociedades modernas e democráticas
que visa combater ao individualismo. O modelo de associações ou sociedades livres em que os
indivíduos se reúnem de forma voluntária, motivados por se identificarem com os objetivos presentes, fez
parte de um conjunto de características das sociedades democráticas ao longo dos séculos XIX e XX. As
associações confiavam ao indivíduo o direito de se reunir e de se unir em torno de um interesse comum, a
partir do entendimento de que, por meio delas, estabelecem-se a socialização e a sociabilidade em prol
de um projeto coletivo.
Ao enveredar pelo cotidiano escolar, a presença desse tipo de associativismo marca a história da
educação das mais diversas sociedades modernas. Presentes nas instituições de ensino, as associações
criadas por alunos e para alunos configuraram-se como uma peça na engrenagem das práticas educativas
e promoveram as ações e as relações estabelecidas.
Dewey e Adolfo Lima defendem que as práticas associativas no interior da escola garantem o
desenvolvimento do espirito da cidadania, da responsabilidade e da participação social. As associações
estimulam o desenvolvimento da autonomia dos educandos e contribuem para um melhor aperfeiçoamento
e espontaneidade dos escolares, bem como do desenvolvimento cognitivo. A autonomia dos educandos
idealizada pelos dois intelectuais tinha nas associações um ambiente profícuo de formação social,
cultural e político que aprova a construção do espírito de colaboração, de cooperação, além do exercício
da cidadania.
Em comum, as interpretações aqui apresentadas sobre o associativismo na sociedade e na educação,
ancoram-se em princípios democráticos, nos quais a liberdade e a participação social são colunas
basilares no convívio social. O associativismo configura-se como uma ação coletiva motivada por um
sentimento de defesa ao bem comum e de combate ao individualismo. As associações estruturam-se como
uma rede de sociabilidades nas quais laços de convívio e interesses são solidificados a partir de uma
base democrática, sendo a igualdade na promoção dos direitos e deveres um elo forte na garantia do
estabelecimento de uma sociedade onde o bem comum se torna interesse de todos.
Finalizando o diálogo, fica o convite para adentrar no universo das associações, sejam políticas,
religiosas, culturais, escolares e estudantis, cujas finalidades são generosamente diversas e contribuem
para o convívio social em meio à prática de sociabilidade e de socialização, à garantia da promoção do
bem comum e ao desenvolvimento do espírito de responsabilidade, cooperação, colaboração e
solidariedade.
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Sobre as autoras
Eva Maria Siqueira Alves é Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP), Mestre em Educação e Licenciada em Matemática, Mestrado em Educação pela
Universidade Federal de Sergipe (UFS). É professora do Departamento de Educação. Coordena o Centro
de Educação e Memória do Atheneu Sergipense (CEMAS) por meio do termo de cooperação técnica
firmado entre a Secretaria de Estado da Educação e a Universidade Federal de Sergipe. É Presidente do
Conselho Municipal de Educação de Aracaju - CONMEA. Coordena convênio firmado entre a
Universidade Federal de Sergipe e a Universidade do Porto.
Margarida Louro Felgueiras é professora Associada da Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação da Universidade do Porto. Coordenadora do Domínio Educação e Herança Cultural, ao nível
do mestrado em Ciências da Educação. Coordenadora do GT História da Educação, Herança Cultural e
Museologia do Centro de Investigação e Intervenção Educativas-CIIE. Professora visitante na USP e em
várias universidades públicas brasileiras. Autora de vários livros e artigos em História da Educação e
de vários projetos financiados a nível nacional e coordenadora de equipas portuguesas em projetos
europeus. Avaliadora de projetos na Fundação para a Ciência e Tecnologia–FCT.
Simone Paixão Rodrigues é licenciada em História e doutora em Educação por esta mesma
universidade pela Universidade Federal de Sergipe. Realizou estágio doutorado sanduíche na
Universidade do Porto/Portugal (2013/2014) como bolsista CAPES. Exerceu a função de coordenadora
de disciplina e de tutora da Universidade Aberta do Brasil/UFS. Atualmente é professora da rede pública
de ensino do Estado de Sergipe e da Faculdade São Luís de França, membro do grupo de pesquisa:
Disciplinas Escolares: história, ensino e aprendizagem (DEHEA/UFS) e conselheira do Conselho
Estadual de Educação. Realiza pesquisas em História e História da Educação, principalmente nos temas:
Associações Estudantis, jornais estudantis, História das Disciplinas e Instituições Escolares.
Notas
1. Parte deste texto faz parte da Tese de Doutorado em Educação: “Com a palavra os alunos:
associativismo discente no Grêmio Literário Clodomir Silva (1934-1956)”, defendida no Programa de
Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe, em março de 2015, de Simone Paixão
Rodrigues, sob a orientação da Profa. Dra. Eva Maria Siqueira Alves e coorientação da Profa. Dra.
Margarida Louro Felgueiras.
2. Este tipo de associativismo teve sua origem no século XVII na Inglaterra, mas se constituiu com maior
intensificação na América do Norte. Cf: TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e
costumes. Livro I. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
3. Cf: GERTH, H. H; MILLS, C. Wright. O homem e sua obra. In: WEBER, Max. Ensaios de Sociologia.
5ª ed. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: LTC Editora, 2002, p. 30-31.
4. “Como bem se sabe, não poucos (bem poderíamos dizer a maioria da geração mais velha) dos
“promotores” capitães da indústria americanos, dos multimilionários, dos magnatas, dos trustes
pertenciam formalmente às seitas, especialmente a dos batistas. Mas, segundo o caso, essas pessoas
frequentemente eram filiadas por motivos convencionais, como na Alemanha, e não apenas a fim de se
legitimarem na vida pessoal e social – não para se legitimarem como homens de negócios; na era dos
puritanos, esses “super-homens econômicos” não precisavam de tal muleta, e sua religiosidade era
certamente com frequência de uma sinceridade do que dúbia. As classes médias, acima de tudo as
camadas em ascensão com as classes médias e as que delas estão se afastando, foram os portadores desta
orientação religiosa específica que devemos, na realidade acautelar-nos para não considerarmos apenas
como oportunistas” (WEBER, 2002, p. 354).
5. Segundo Putman (2002), é importante a participação em associações, “não só por causa de seus efeitos
“internos” sobre o indivíduo, mas também por causa de seus membros hábitos de cooperação,
solidariedade e espírito de cooperação e o senso de responsabilidade comum para com os
empreendimentos coletivos. Além disso, quando os indivíduos pertencem a grupos heterogêneos com
diferentes tipos de objetivos e membros, suas atitudes se tornam mais moderadas em virtude de interação
grupal e das múltiplas pressões. Tais efeitos, é bom que se diga, não pressupõem que o objetivo
manifesto da associação seja político. Fazer parte de uma sociedade orfeônica ou de um clube de
ornitófilos pode desenvolver a autodisciplina e o espírito de colaboração” (PUTMAN, 2002, p.103).
6. Dentre os quais estão: Alexis de Tocqueville e Max Weber.
7. Adolfo Ernesto Godfroy de Abreu e Lima, escolanovista português conhecido como um dos maiores
difusores, além de praticante, das ideias libertárias no campo da educação e do ensino em Portugal,
nasceu em Lisboa, capital portuguesa, em 28 de maio de 1874, e faleceu, também nesta capital, em 27 de
novembro de 1943. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, teve a educação como seu
principal campo de trabalho. Entre os anos de 1906 a 1914, foi professor de Sociologia e diretor
pedagógico da Escola Oficina Nº 1 de Lisboa, instituição escolar pertencente à Sociedade Promotora de
Asilos, Creches e Escolas, uma organização de caráter maçônico e republicano, que, em 1913, passou a
chamar Sociedade Promotora de Escolas. Cf: CANDEIAS (1994) e BARREIRAS (2006).
8. Segundo Lima (1925), “É preciso não confundir funções sociais numa sociedade escolar, como
derivadas, organicamente, da solidariedade de todos os seus membros, e a exploração económica” dos
alunos, que suprem os empregados e são obrigados, despoticamente, a prestar serviços, sem a menos
consciência coletiva (LIMA, 1925c, p. 15).
9. “A expressão ‘self governmet’ tem dois sentidos em inglês: um psicológico, outro político. Significa,
sobretudo, o império sobre si próprio, o domínio de si próprio. A virtude dos que são capazes de resistir
as suas paixões, de conduzir-se, segundo os princípios racionais, de decidir contra o seu interêsse
pessoal, quando êsse se opõe ao interesse público; de reconhecer os seus êrros, quando os comete. Por
outro lado, o ‘self governmet’ designa um regime político: é a autonomia, o regime democrático, em que
os cidadãos são livres e só obedecem às leis que fizeram directa ou indirectamente” (BALDWIN, 1925,
apud LIMA, 1925c, p. 14).
10. Cf: Lima, Adolfo. Autonomia dos Educandos e as associações escolares: as Solidárias. In: Educação
Social - Revista de Pedagogia e Sociologia. Lisboa, ano 2, n, 4, p. 10-24, abr, 1925c.
11. De acordo com Lima (1925): “A associação dos alunos na Escola Oficina nº 1 – A Solidária, como
se depreende dos relatórios da gerência, foi fundada por eles numa assemblea geral, em 13 de Fevereiro
de 1910. Numa sessão solene, realizada em 1 de Maio dêsse ano, o seu secretário geral afirmava: “A
nossa associação, como o seu nome indica, é um agrupamento em que todos os sócios se encontram
unidos num grande abraço fraternal; é um todo homogêneo nos seus fins e intuitos. Procura realizar um
ideal, em que um mal de um sócio seja um mal para todos; o bem de um sócio seja um bem para todos”.
Pensai nisto: o esforço individual vale muito, é a base da vida; mas êsse esfôrço tem de ser combinado,
conjugado com os demais esfôrços dos outros indivíduos, que isolados, para nada servem” (LIMA,
1925d, p.19).
12. Cf: LIMA, 1925c.
CAPÍTULO 9
N
o longo século XVIII português, a governação pombalina foi um divisor de águas, uma vez que,
mesmo não alcançando todos os seus objetivos imediatos, alterou irreversivelmente a estrutura
jurídica e social do reino português. A preocupação do ministro com a colônia brasileira, que
já ultrapassava o reino em população e riqueza, sempre foi uma constante, mesmo porque, durante a
União Ibérica, foram os “brasileiros” que tinham defendido o rico domínio português da investida dos
holandeses. Desse modo, se, por um lado, o modo radical com que reprimiu as revoltas e motins
coloniais em Pernambuco e Minas Gerais plantou as sementes de um sentimento nativista e autonomista,
por outro, sua habilidade política ajudou-o a cooptar os principais homens de letras do Arcadismo
brasileiro, como Basílio da Gama (1741-1795), que compôs uma epopeia, O Uraguay (1769), em sua
homenagem. Sua fama internacional alcançada em vida e sua importância histórica, sacramentada em
Portugal em 1934, quando foi erguida uma estátua em sua homenagem no centro de Lisboa, até hoje são
objeto de polêmica e controvérsias, nas universidades e mesas dos bares, onde disputam primazia, no
decorrer da história, duas correntes, uma antipombalina, pela crueldade de suas punições, que não
pouparam nem os nobres nem o clero, e outra filopombaina, pelas suas medidas econômicas e
educacionais inovadoras.
Desde seus primeiros escritos econômicos, produzidos na época em que era diplomata em Londres,
Sebastião de Carvalho e Melo, baseado nas interpretações então correntes sobre os tratados firmados
com a Inglaterra em 1703, desenvolveu toda uma mitologia negativa da Inglaterra, atribuindo à má índole
dos ingleses grande parte dos males da economia portuguesa. Durante seu governo, a anglofobia torna-se,
por assim dizer, uma razão de Estado, uma vez que quase todas as suas medidas políticas, econômicas e,
sobretudo, educacionais buscavam prejudicar os interesses da Inglaterra, numa época em que os ingleses,
por conta dos tratados, gozavam de privilégios e imunidades incomuns. Maxwell (1996) afirma que sua
anglofobia era exagerada, pois a imputação que fazia aos ingleses de que eles tinham um complot com os
jesuítas superestimava a sutileza inglesa. Em 1766, Martinho de Melo e Castro, à época enviado
português em Londres, declarou que a obsessão de Pombal quanto às intenções britânicas era
despropositada, pois os franceses e os espanhóis eram os verdadeiros inimigos de Portugal. Contudo, a
ameaça espanhola na fronteira Sul do Brasil obrigou-o a manter e a se valer da aliança inglesa.
A par desse cenário, este trabalho investiga o modo como se desenvolveu, como política de Estado,
embora velada, a anglofobia pombalina, que, tornando-se razão de Estado no seu governo, repercutiu na
legislação que regulamentava as Aulas e as Companhias de Comércio então criadas, bem como os
intentados incrementos à defesa, à industria e à Instrução Pública, mesmo que para tanto o país fosse
obrigado a contar com o auxílio inglês.
Da anglofobia
O reinado de D. João V (1689-1750) foi marcado, dentre outras coisas, pelos efeitos do Tratado de
Methuen, tendo Portugal adquirido, na memória histórica portuguesa, a imagem de um reino afastado tanto
de seus vizinhos ibéricos – mesmo depois dos casamentos reais entre as duas Casas peninsulares –
quanto da Europa ilustrada, sob a liderança de um rei tido por lúbrico e beato. Todavia, do ponto de vista
cultural, o período joanino caracteriza-se pela importação de artistas e intelectuais estrangeiros,
especialmente de músicos italianos, bem como pela encomenda sistemática de pinturas e obras
arquitetônicas, graças ao incremento financeiro advindo do ouro do Brasil. São deste período a
construção do palácio e convento de Mafra, de 1713 a 1730, a fundação da Real Academia da História
Portuguesa, que funcionou de 1720 a 1776, a tradução e impressão de obras portuguesas e estrangeiras,
inclusive de periódicos, e a constituição da figura do homem de letras estrangeirado, representado por
escritores que tiveram experiências diplomáticas ou formativas internacionais, tais como o já referido D.
Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão (1695-1753), Martinho de Mendonça de Pina Proença (1693-
1743), António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), Luís António Verney (1713-1792) e Sebastião José
de Carvalho e Melo (1699-1782), mais tarde Marquês de Pombal.
Assim, nos discursos político-econômicos pré-pombalinos, isto é, nos estudos produzidos pelos
intelectuais estrangeirados do reinado de D. João V, como Alexandre de Gusmão (1695-1753), D. Luís da
Cunha (1662-1749) e Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), podemos perceber o caráter
destrutivo que é atribuído à aliança inglesa, que havia sujeitado a nação portuguesa à humilhação de ter
que depender da Inglaterra até mesmo para os cereais necessários à sua subsistência. Segundo K.
Maxwell (2005, p. 25), na primeira metade do século XVIII, apenas a Holanda e a Alemanha
sobrepujavam Portugal como consumidores das exportações inglesas, e apenas nos momentos mais
críticos da Guerra dos Sete Anos (1756-1763), os navios britânicos no porto de Lisboa ficaram aquém de
50% do total. O embaixador francês Étienne-François, conde de Stainville e duque de Choiseul (1719-
1785), escreveu, cinco anos depois do terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755, que Portugal tinha de ser
considerado como uma colônia inglesa. João Lúcio de Azevedo (2004, p. 220), por sua vez, afirma que,
depois do Tratado de Methuen, Portugal, como principal consumidor das manufaturas inglesas, era “a
mais excelente colônia da Grã-Bretanha”. Seu comércio era praticamente monopolizado pelos súditos
britânicos, que vinham fazer fortuna no Porto ou em Lisboa, mas também trabalhar como tanoeiros,
sapateiros, alfaiates e cabeleireiros, de modo que a imigração abarcava todo tipo de gente, desde o
“inglês falido” ao irlandês fugido da forca de Londres. Ademais, com a intensa produção das minas do
Brasil, escasseava o numerário, o que fazia com que as moedas com a efígie de D. João V fossem mais
comuns na Inglaterra do que as do rei Jorge I (1660-1717).
Falcon (1993, p. 280-285) classifica os textos escritos – ou pelo menos assinados ou a ele atribuídos
– pelo Marquês de Pombal em sete grupos temáticos, os quais incluem as peças legislativas expedidas
durante a sua governação. Conforme o autor, o primeiro grupo, que compreende o período que vai de
1738, ano de sua chegada a Londres como diplomata, ainda durante o reinado de D. João V, até 1778,
quando o Marquês, depois da morte de D. José I e de sua queda do ministério, se defendia dos seus
adversários políticos, é composto dos escritos sobre as relações econômicas anglo-lusitanas. O segundo
grupo compõe-se das Instruções produzidas durante os primeiros anos de sua governação e destinadas a
diversas autoridades, como as Instrucções regias publicas e secretas encaminhadas ao seu irmão
Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1779), em 31 de maio de 1751, mesmo ano de sua
nomeação como Capitão-General e Governador do Pará; o terceiro refere-se às suas obras polêmicas,
tais como o Compêndio histórico da Universidade de Coimbra, publicado em 1771; o quarto à
legislação; o quinto é composto pela sua correspondência diplomática em geral; o sexto pelas suas
Observações secretíssimas e o sétimo, finalmente, pelo material produzido após a sua queda, em 1777,
no qual se encontram inclusive seus discursos de louvação do próprio governo. O primeiro grupo
temático, que aqui mais interessa, se apresenta sob várias formas e abrange diversos tipos de
documentos, que vão desde relatórios, instruções, correspondências e pareceres diplomáticos até
algumas peças legislativas, constituindo-se como uma espécie de súmula de todos os argumentos que
compunham o discurso luso-britânico do século XVIII, que era ao mesmo tempo político e econômico.
Os primeiros textos desse primeiro grupo foram produzidos durante o tempo que Sebastião José de
Carvalho e Melo passou em Londres como diplomata, de 1738 a 1742. Em 8 de outubro de 1738, ele
partiu para a Inglaterra, a bordo do navio britânico King of Portugal, como novo enviado extraordinário
de Portugal à corte de Jorge II (1683-1760), por indicação de D. Nuno, o cardeal da Cunha (1664-1750),
para substituir seu primo Marco Antônio de Azevedo Coutinho, que, estando em Londres desde 1735,
voltou ao reino português, a pedido de D. João V, para exercer o cargo de Secretário de Estado. Sua
primeira missão era pedir auxílio militar ao governo inglês para defender as possessões portuguesas na
Índia, ameaçadas pelos maratas, que haviam tomado a ilha de Salsete, e pelos bonsulós, que assediavam
Goa. O gabinete britânico, chefiado à época por Robert Walpole (1676-1745), assim como na ocasião
dos ataques espanhóis na fronteira da colônia de Sacramento, mesmo sem se negar ao cumprimento do
Tratado da Liga Defensiva de 1703, usava de vários subterfúgios para se eximir de tal responsabilidade,
alegando que não poderia fazer nada sem ouvir a Companhia das Índias Orientais – fundada em 1698 por
Guilherme III (1650-1702) –, que por sua vez tinha muito interesse na derrota dos portugueses, como veio
provar a sua posteiror anexação da ilha de Salsete ao seu império, bem como de outras praças
portuguesas vizinhas a Bombaim. O problema foi resolvido com o envio de uma esquadra portuguesa, em
1740, na qual estava D. Luís Carlos Xavier de Meneses (1689-1742), quinto conde de Ericeira, que
assumiu, pela segunda vez, o cargo de vice-rei da Índia. No entanto, o conflito deixou vários soldados
portugueses mortos, entre eles José Joaquim de Carvalho (c. 1712-1740), irmão mais novo de Pombal
(BARRETO, in MELO, 1986, p. vii; xii-xiii).
Seus escritos dessa época buscam explicar as causas profundas do estado de decadência do
comércio e da economia portuguesa, que é sempre contraposto ao desenvolvimento da Inglaterra e de
outras “nações polidas da Europa”, através de uma comparação em negativo na qual o Outro, como um
espelho invertido, aparece como modelo a ser imitado. Embora sua função não permitisse fazer análises
ou dar sugestões aos governantes em matéria tão delicada, como lhe aconselhava o Cardeal da Mota,
receoso de desagradar D. João V, que considerava o diplomata “novato” e capaz de cometer
imprudências, Sebastião de Carvalho teve oportunidade de expor suas ideias sobre as relações político-
diplomáticas luso-britânicas quando recebeu de Lisboa, em 15 de outubro de 1740, um ofício com a
contraproposta portuguesa ao projeto de convenção inglês contra a Espanha. No ofício, exigia-se a
reparação das negligências ou contravenções do Artigo XV do Tratado de Aliança Defensiva de 16 de
maio de 1703 e do Artigo Secreto do Tratado de Paz de 10 de julho de 1654, que garantiam aos
portugueses na Inglaterra a reciprocidade de privilégios e liberdades do comércio que os ingleses tinham
em Portugal. Ao representante do governo português em Londres cabia instruir-se a respeito da questão,
antes de emitir seu parecer, o que fez no mesmo ano, ao interromper as negociações e começar a redigir
uma Relação dos gravames que ao Comércio e Vassalos de Portugal se tem inferido e estão atualmente
inferindo por Inglaterra com as infrações que dos pactos recíprocos se tem feito por este Segundo
Reino; assim nos Atos do Parlamento que publicou, como nos costumes que estabeleceu; e nos outros
diversos meios de que se serviu para fraudar os Tratados do Comércio entre as Duas Nações.
Antes de escrever a Relação dos gravames, que só foi enviada a Lisboa no dia 2 de março de 1741,
o diplomata havia redigido uma longa Carta de Ofício, datada de 2 de janeiro de 1741 e dirigida a Marco
Antônio de Azevedo Coutinho, sobre a questão. Ao contrário de Alexandre de Gusmão, que chegou a
propor a anulação dos tratados com a Inglaterra em proveito de uma aliança com a França, o enviado
português defendia a manutenção da aliança, pois, em seu entender, não era o Tratado de Methuen a
principal causa da ruína da economia portuguesa, mas a sua infração pela ambição, cobiça e soberba dos
ingleses, que invejavam o “nosso Brasil” e eram considerados como os “tiranos do comércio”. Assim,
antes se devia tolerar “um mal grande, que nos tem com sossego, do que, expormo-nos a muitos maiores,
que nos trariam fatais perturbações”. Nesse sentido, Sebastião José de Carvalho e Melo inaugura o
discurso oficial da anglofobia, que mitifica a Inglaterra como uma encarnação do mal, uma vez que, nos
escritos dos outros intelectuais do período, o caráter malévolo da aliança inglesa é atribuído à conjuntura
político-econômica da Europa, e não à má índole ou à ganância do seu “gênio” (MELO, 1986, p. 7).
Apesar de inacabada, a Relação dos gravames é um texto bem estruturado e apresenta suas teses
econômicas de forma sistematizada, como o resultado de inquéritos e averiguações. Após expor os
“Motivos da obra”, que se justificam pela importância da regulamentação do comércio para qualquer
nação, o autor faz um “Juizo geral do comercio de ambos os reynos”, no qual, com base na análise dos
tratados firmados entre os dois países, busca mostrar como Portugal sustenta todo o peso das convenções,
que se tornaram muito onerosas, enquanto a Inglaterra, tendo pouco ou nenhum encargo, recolhe delas
todo o proveito. Sobressai na obra a imagem negativa com que são representados os ingleses, pela sua
cobiça e prepotência. Assim, buscando descrever os “humores que formão o carácter dos que habitam e
os costumes que nelle se observão como regras, que são inalteraveis”, o enviado português afirma que,
apesar de os britânicos não serem sanguinários, eram saqueadores das fazendas alheias, o que se
justificava pela sua pretensão de assenhorear-se do mundo. O trecho a seguir é bastante significativo, por
consolidar um mito negativo da Inglaterra, na medida em que considera os ingleses de todos os grupos
sociais como membros de um complot, ou conspiração para arruinar e destruir todos os estrangeiros que
se opusessem aos seus interesses. Apesar do seu tom ao mesmo tempo caricatural e rancoroso, que em
alguns aspectos chega a ser exagerado, o texto não deixa de documentar a experiência de um diplomata
que representa um país frágil e dependente na capital do reino que vivia um momento de cristalização das
ideias e mitologias expansionistas e imperiais (MELO, 1986, p. 34; 52).
Apesar de mitificar Inglaterra como encarnação de um mal à economia e à prosperidade portuguesas,
Sebastião José de Carvalho e Melo, em seus escritos produzidos durante o tempo em que esteve
diplomata em Londres, manifesta um certo fascínio pelo desenvolvimento comercial e marítimo dos
ingleses, assim como pela simplicidade, flexibilidade e eficácia do seu sistema de manufaturas. Tal
fascínio, no entanto, não impedia que o diplomata português criticasse asperamente o sistema político
inglês, dado o conflito de prerrogativas entre a coroa e o parlamento, bem como a preponderância dos
interesses pessoais sobre os da nação. Com a morte de D. João V e a ascensão de D. José I ao trono
português, Sebastião de Carvalho vai se tornar Secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, o que
vai lhe possibilitar pôr em prática muitas das convicções adquiridas em sua experiência diplomática,
expedindo uma série de medidas tendentes à proteção do comércio e da economia portuguesas, em
oposição ao que considerava “usurpações” dos tratados firmados com a Inglaterra. No entanto, tais
medidas, em muitos casos, eram subreptícias e até mesmo veladas, dada a importância, por ele
reconhecida, da manutenção da aliança, perante as constantes ameaças espanholas aos domínios
portugueses na América, o que não o impedia de sugerir aos aliados, sempre que podia, a possibilidade
de uma aliança com a França, como um meio de barganha em suas negociações políticas e diplomáticas.
A governação pombalina
A primeira fase da governação pombalina foi marcada por acontecimentos decisivos para o
desdobramento das relações político-diplomáticas entre Portugal e Inglaterra: a implementação do
Tratado de Madri (1750), o terremoto de Lisboa, em 1755, e a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), que
opôs a França, a Rússia e a Áustria à Prússia e à Inglaterra. A Espanha, inicialmente neutra no conflito,
aliou-se à França em 1759, quando da subida ao trono de Carlos III (1716-1788), após a morte de
Fernando VI (1713-1759), especialmente quando os ingleses começaram a atacar, no final de 1760, as
colônias espanholas das Antilhas. A diplomacia portuguesa tentou, sem sucesso, casar o rei viúvo da
Espanha e seu primogênito com infantas portuguesas, mas em 1761, com a formação do terceiro Pacto de
Família entre os monarcas da Casa de Bourbon da França, da Espanha, de Nápoles e Parma, a França
exigiu que Portugal fechasse os portos aos ingleses. Mantida a já histórica aliança, sacramentada que
estava pelo Tratado de Methuen, os exércitos franceses e espanhóis atacaram Portugal em abril de 1762,
declarando guerra posteriormente. Foi nesse período também que começou a manifestar-se de modo mais
ostensivo o descontentamento dos sectores mercantis ingleses com relação às medidas protecionistas de
Pombal, bem como as manobras de açambarcamento de trigo realizadas por comerciantes ingleses,
burlando assim o Regimento do Terreiro do Trigo.
A partir de 1762, as relações anglo-portuguesas passaram por uma série de atritos, os quais já
vinham se manifestando através da reação dos comerciantes ingleses estabelecidos em Portugal contra a
política econômica pombalina. Assim, quando ocorreu a invasão espanhola na província de Trás-os-
Montes, o então conde de Oeiras se viu obrigado, a contragosto, a solicitar auxílio militar inglês, o que
mais uma vez fazia ver a sua situação de dependência política e econômica com a antiga aliada. Na
Inglaterra, contudo, a aliança era objeto de várias críticas. Em 11 de maio de 1762, por exemplo, quando
foi apresentada na Câmara dos Comuns a mensagem do rei recomendando apoio a Portugal, o
representante dos comerciantes de Londres, Mr. Clover, colocou-se contra a proposta, sendo sua
oposição repercutida numa carta aberta dirigida ao monarca português e publicada no mesmo ano e na
mesma cidade com o título de Punch’s pollitiks. Conforme o panfleto, o primeiro passo a ser dado pelo
rei de Portugal seria “uma retirada imediata a bordo da frota britânica, com seus tesouros, toda a sua
família e vassalos fiéis [...] para os Brasis”. Assim, os conquistadores seriam deixados com a “concha”
enquanto o “núcleo” seria levado embora. Tal plano, descrito como o “sonho de fadas”, de Mr. Punch,
tinha o objetivo de alertar Pombal: “Se o comércio da Grã-Bretanha não for capaz de encorajar o da
França e da Espanha, adieu à liberdade do vosso país”. Três anos depois, o ministro britânico em Lisboa,
Mr. Hay, afirmava, num relatório enviado a Londres, que Pombal, ao mesmo tempo em que estabelecia o
princípio de que era de interesse da Inglaterra ajudar Portugal em todas as suas emergências, tomava uma
série de medidas comerciais que faziam com que tal interesse diminuísse (apud MAXWELL, 1996, p.
120).
Com efeito, para competir com os ingleses no comércio colonial, Pombal concedeu privilégios
especiais de proteção aos grandes empresários portugueses da Companhia do Grão Pará e Maranhão,
criada em 1755, assegurando-lhes o direito exclusivo do comércio e navegação das capitanias, o que fez
com que fossem expulsos do Brasil todos os comissários volantes, principal elo de ligação entre os
comerciantes estrangeiros e os produtores brasileiros, e banidos os pequenos comerciantes itinerantes. O
mesmo havia acontecido com a criação, em 1756, da Companhia Geral da Agricultura dos Vinhas do Alto
Douro, que teve o objetivo inicial de proteger os principais proprietários de vinhedos, incluindo ele
próprio, em prejuízo dos pequenos produtores, que vendiam mais do que o dobro de vinho aos
comerciantes ingleses. Estes não reagiram de imediato porque as companhias, além de não representarem
ameaças abertas à hegemonia comercial inglesa em Portugal, não violavam nenhum dos tratados. Tudo
leva a crer que se tratava de um plano camuflado de atacar os interesses ingleses, o que havia sido
possibilitado pela sua habilidade política, adquirida depois de muitos anos vivendo no exterior como
diplomata. Segundo K. Maxwell (1996, p. 67), a política econômica pombalina não pode ser confundida
com o Mercantilismo em sentido restrito, em que o comércio é regulamentado, taxado e subsidiado pelo
Estado, pois o seu intuito era fazer uso de técnicas mercantilistas para facilitar a acumulação de capital
pelos comerciantes portugueses, individualmente.
Apesar de ter permanecido em Londres como representante do governo português durante um bom
tempo – de 1739 a 1743 –, e de ter frequentado a Royal Society, uma espécie de academia científica e
literária criada em 1666 por Carlos II, da qual faziam parte nomes ilustres do período, Pombal não
dominava o inglês (AZEVEDO, 2004, p. 20), algo que se justifica tanto pelo estatuto do francês como
língua diplomática quanto pelo uso que ele fazia de intérpretes, como era costume nas embaixadas. No
entanto, sua estada em Londres o pôs definitivamente em contato com as correntes contemporâneas do
pensamento político-econômico inglês, como sugerem os livros existentes em seu gabinete londrino,
traduzidos para o francês e o espanhol, como Le marchand anglaise (1721), de Charles King, e Tratado
del uso de la aritmética política em El comercio y em La hacienda real (1698), de Charles Davenant
(1656–1714). Ademais, não há dúvidas de que sua experiência londrina proporcionou-lhe o
conhecimento necessário para incomodar os comerciantes ingleses estabelecidos em Portugal,
embargando parte dos lucros obtidos pelo rei da Inglaterra, a ponto de provocar, em 1766, um documento
formal elaborado pela feitoria britânica contra a política pombalina, Memorials of British consul and
factory at Lisbon, que reproduzia protestos escritos de comerciantes ingleses de 1759, 1760 e 1764,
contra o confisco de dinheiro de súditos ingleses e os monopólios estabelecidos pelas companhias
recém-criadas (FALCON, 1993, p. 295).
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Portugueza, e Portugueza e Ingleza; dividida em duas partes. A primeira para a instruição dos Inglezes
que desejarem alcançar o conhecimento da Lingua Portugueza. A segunda, para o uso dos Portuguezes que
tiverem a mesma inclinação a Lingua Ingleza. Das quaes a Primeira está corrigida e emendada, a segunda
executada por Methodo claro, familiar, e facil. 3. ed. London: W. Meadows, 1759.
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da Universidade Nova de Lisboa, n. 5, 1996, pp. 33-47.
Sobre o autor
Luiz Eduardo Oliveira é professor Titular do Departamento de Letras Estrangeiras (DLES) da UFS.
Fez Mestrado em Teoria e História Literária na Universidade Estadual de Campinas (1999), Doutorado
em História da Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006) e Pós-Doutorado em
Literatura Comparada pela Universidade de Lisboa (2012). É autor de A Historiografia Brasileira da
Literatura Inglesa: uma história do ensino de inglês no Brasil (1809-1951), publicado em 2015 pela
Editora Pontes, O Mito de Inglaterra: anglofilia e anglofobia em Portugal (1386-1986), publicado em
2014 pela Editora Gradiva, de Portugal, e Gramatização e Escolarização: para uma história do ensino
das línguas no Brasil (1757-1827), publicado pela Editora UFS /Fundação Oviêdo Teixeira em 2010.
CAPÍTULO 10
Introdução
A
s experiências ditatoriais argentina, chilena e uruguaia iniciadas na década de 1970
principiaram a aplicação das ideias políticas e econômicas neoliberais na América Latina.
Entre os anos 1980 e 1990, período de maturação e apogeu dessas diretrizes, assistimos na
região modestos índices de crescimento econômico, ampliação da marginalização social e o desgaste dos
sistemas democráticos representativos. Decorrente desse cenário, observamos, ao final da década de
1990, a ascensão política de novos atores sociais. Com isso, foi iniciado um momento de profunda
reestruturação da política, do seu agir e da sua práxis, em virtude do protagonismo de grupos sociais de
esquerda.
A partir da eleição de Hugo Chávez à presidência venezuelana, em dezembro de 1998, vivemos uma
década de efervescência social e política que levou distintas lideranças de esquerda ao poder na região.
O desgaste social derivado das medidas neoliberais esteve entre as causas centrais para o momento
político que as nações latino-americanos viveram naquele período.
Acreditamos que a esquerda latino-americana pode ser dividida em dois grupos. O primeiro foi de
centro-esquerda. Esse possuiu um programa político análogo ao da socialdemocracia europeia. As
políticas sociais foram coadunadas aos paradigmas econômicos do neoliberalismo. Nesse caso
enquadramos os governos de Nestor e Cristina Kirchner na Argentina entre 2003-2015; de Lula da Silva
e Dilma Rousseff no Brasil a partir de 2003 e de Tabaré Vázquez e Pepe Mujica no Uruguai após 2005.
O segundo grupo foi composto por uma esquerda radical e nacionalista. Evo Morales (Bolívia),
Rafael Corrêa (Equador), Hugo Chávez e Nicolas Maduro (Venezuela) representaram um setor que se
posicionou de forma mais veemente contra os paradigmas neoliberais e que advogou pela construção do
socialismo do século XXI como uma alternativa para os povos latino-americanos.
Independente das definições que utilizemos para a analisar as esquerdas, destacamos que os dois
grupos se comprometeram com a ampliação do acesso da juventude à educação superior. Ao longo da
década de 1990, o predomínio das diretrizes econômicas neoliberais fez com que a expansão do ensino
superior ocorresse a partir da ação do setor privado. Tal aspecto fez com que 60% das universidades
latino-americanas ao final daquela década fossem privadas (VIZCAÍNO, 2007).
O fortalecimento dos paradigmas contrários ao neoliberalismo fez com que a inclusão dos setores
menos favorecidos na educação superior pública fosse uma prioridade. No Brasil, por exemplo, entre
2003 e 2011 o número de vagas ofertadas anualmente nas instituições públicas saltou de
aproximadamente 109 mil para 230 mil vagas, segundo dados do Ministério da Educação. Na Venezuela,
o número de matriculados nas faculdades públicas foi ampliado em quase cinco vezes, saindo de 337 mil
para 1.680 milhões entre 1998 e 2009. (MEC, 2012 E MPPES, 2009)
Abordaremos neste artigo os resultados iniciais de nossa investigação de pós-doutoramento iniciada
ao final de 2015 junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Federal
de Sergipe (UFS). Nossa pesquisa almeja a análise das políticas públicas para o ensino superior
desenvolvidas pela esquerda sul-americana entre 1999-2014. Realizaremos uma análise comparativa
entre Brasil e Venezuela, países que apresentaram ao longo desse período uma significativa expansão do
ensino superior público.
Esse artigo está dividido em três partes. Na primeira, analisaremos o ideário neoliberal e suas
consequências para a América Latina ao final da década de 1990. Na segunda parte, realizaremos uma
breve análise histórica da educação superior na América Latina buscando compreender os seus ciclos de
reformas e de expansão da oferta de vagas ao longo do século XX. Por fim, avaliaremos as
características centrais do ensino superior brasileiro e venezuelano com o intuito de compreender as
mudanças vividas no início do século XXI.
Nos casos brasileiro e venezuelano, destacamos que a expansão do ingresso no ensino superior
ocorreu de forma análoga a dos vizinhos latino-americanos. Assistimos ao predomínio de instituições
privadas, pois estas se aproveitaram da incapacidade do poder público em ampliar sua participação no
ensino superior entre nas décadas de 1980 e 1990.
No início do século XXI, a crise dos paradigmas neoliberais e o bom momento econômico dos dois
países, para o qual contribuiu a elevação do preço internacional das commodities, possibilitaram a
eclosão de políticas educacionais direcionadas a uma maior participação estatal no ensino superior, com
o alargamento da presença das suas instituições. A seguir, analisaremos características do ensino
superior no Brasil e na Venezuela. Buscaremos compreender as características do alargamento do acesso
à educação pública e suas conexões com as mudanças políticas vividas na região no início do novo
milênio.
A extensão do ensino superior venezuelano nos últimos quinze merece algumas críticas. Houve uma
falta de planejamento nesse processo. A infraestrutura das aldeias universitárias e das novas instituições
é débil, algo que dificulta o processo de ensino-aprendizagem. O ingresso no terceiro grau não ocorreu
concomitantemente ao aprimoramento da formação docente. Como isso, foi afetada a qualidade das novas
instituições. As condições de permanência dos graduandos na universidade não foram fomentadas, pois
não foi desenvolvido um plano nacional de assistência estudantil proporcional ao aumento das vagas.
Com isso, dificultou-se a permanência dos estudantes oriundos de famílias pobres nos cursos de
graduação.
O chavismo, igualmente, priorizou os investimentos na UBV e na Missão Sucre, espaços de
doutrinação ideológica e de ativismo político, pois essas instituições estavam alinhadas com o
bolivarianismo revolucionário. Com isso, as instituições autônomas ficaram em um segundo plano, pois
não se beneficiaram da elevação do investimento público na educação superior.
Outra crítica reside na negação da autonomia e da diversidade tão necessárias ao desenvolvimento
do ensino superior. Ao priorizar instituições fomentadoras do “bolivarianismo revolucionário” e do
“socialismo do século XXI” o governo feriu a histórica busca pela independência em relação aos
governos, partidos políticos ou órgãos públicos na produção do conhecimento pelos docentes e discentes
universitários.
O atrelamento dos investimentos públicos ao alinhamento político-ideológico das universidades ao
projeto de poder do chavismo também contribuiu para que a ocorrência de práticas clientelistas. Atuar na
docência universitária ou em sua burocracia não significou afinidade com o chavismo, mas, muitas vezes,
no mero aproveitamento para fins profissionais das políticas públicas chavistas.
Há outro debate importante ao avaliarmos o ensino superior venezuelano. A universalização e a
democratização do acesso não levaram automaticamente a desejada inclusão social. Acreditamos que
esta somente é alcançada com a maior qualidade do ensino e este aspecto ocorreu de forma insatisfatória
na Venezuela. A inclusão social perpassa pela melhoria da qualidade do ensino e não apenas pela
democratização do acesso às instituições superiores.
No Brasil, também visualizamos a tendência de expansão das instituições privadas após a década de
1980. As dificuldades econômicas e a difusão do ideário neoliberal fizeram com que a presença dos
estabelecimentos de ensino privado se alargasse. Como nos outros países da região, essa tendência não
foi seguida do controle da qualidade do ensino pelos órgãos públicos.
Os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), entre 1995 e 2002, expressaram a
vinculação brasileira com o ideário neoliberal. Seu governo, afetado pelos distúrbios econômicos
derivados das crises financeiras ocorridas na Ásia (1997), na Rússia (1998) e na Argentina (2001),
exerceu um forte controle dos gastos públicos. Por opção política, os cortes dos gastos incidiram sobre
as áreas sociais, como a educacional. Foram diminuídos os investimentos nas universidades públicas,
aspecto que fortaleceu a presença de instituições de educação superior privadas.
Em relação à expansão das instituições privadas, José Dias Sobrinho e Márcia Brito destacaram que
esta tendência foi iniciada na última ditadura brasileira, entre 1964-1985. Contudo, a ampliação da sua
relevância ocorreu, principalmente, durante as gestões de FHC. Além do apoio do Banco Mundial à
mercantilização do ensino superior e das tentativas de desqualificação do serviço público, os
pesquisadores apontaram que os aspectos a seguir contribuíram para esse cenário: (i) a flexibilização
dos meios de controle dos resultados pelo predomínio de uma simples avaliação para os egressos e
análise das condições básicas de infraestrutura; (ii) a concessão de autonomia universitária para as
instituições privadas que tiveram desempenhos satisfatórios nos instrumentos avaliativos; (iii) escassez
dos investimentos públicos e de ampliação da oferta nas universidades públicas e (iv) maior demanda
pelo acesso à educação superior, algo que pressionou as instituições superiores pela elevação do número
de vagas (DIAS E BRITO, 2008).
Como isso, assistimos a uma forte presença de instituições privadas ao final dos anos 1990. A
lucratividade dessa atividade e a incapacidade do poder público em atender às demandas por vagas,
decorrentes do aumento dos concluintes do ensino básico, que se elevou de aproximadamente 541 mil em
1980 para 1.855 milhão em 2002, fizeram com que o setor privado alargasse a oferta de vagas.
Em 1998, 78% das instituições de educação superior eram privadas. Em 2014, esse percentual
alcançou os 87,4% (INEP, 2015). A tabela a seguir apresenta outros dados do número de matrículas no
ensino superior que nos ajudam a compreender essa tendência.
Fontes: VENESCOPIO, 2015; INEP, 2015 e BANCO MUNDIAL, 2015 (Elaboração do autor)
Considerações finais
Como asseveramos inicialmente, objetivamos com este artigo analisar o ensino superior no Brasil e
na Venezuela entre 1999 e 2014. Tivemos por intenção compreender as políticas públicas para esse setor
realizadas pelas gestões de Lula da Silva/Dilma Rousseff e Hugo Chávez/Nicolas Maduro.
Avaliamos que os governos do PSUV e do PT contribuíram para a democratização do acesso ao
ensino superior. Nos dois países, a ascensão de líderes de esquerda desencadeou a elevação dos
investimentos estatais em educação, a extensão do número de instituições públicas (que se interiorizaram)
e das vagas por elas ofertadas. Tais medidas beneficiaram, principalmente, os grupos sociais subalternos,
que historicamente estiveram excluídos das universidades.
Esse processo, porém, se desenvolveu de forma diferenciada nos dois países. No Brasil, a
democratização do acesso às universidades ocorreu por meio do fortalecimento do setor privado. Apesar
da elevação do número de universidades federais e das suas unidades, o número de instituições privadas
elevou-se, consolidando a sua importância. A capacidade de atendimento das demandas por vagas dos
egressos do ensino básico que não conseguiram aprovação nas universidades públicas, associada à
ampliação dos programas governamentais, como PROUNI e Fies, beneficiaram diretamente as
instituições privadas, consistindo em fatores fundamentais para o aumento da sua presença no ensino
superior brasileiro.
Na Venezuela, por outro lado, o alargamento do ensino superior ocorreu com a intensa elevação do
número de instituições públicas. O pretenso caráter revolucionário do chavismo fez com que o ensino
superior fosse visto enquanto um instrumento propiciador da ampliação da sua base social. Em razão
disso, o governo criou a sua “universidade revolucionária”, a UBV. Ao invés de se aproveitar das
instituições já existentes, como ocorreu no caso brasileiro, o chavismo formou uma nova universidade
que foi claramente identificada com os seus princípios políticos e ideológicos. Destacamos, ainda, que a
educação superior também foi universalizada pela Missão Sucre. Esta, por meio das aldeias
universitárias, criou cursos superiores em municípios, o que contribuiu para o aumento do número de
matriculados no ensino superior.
Asseveramos, ainda, que há problemas análogos na educação superior desses dois países. A
ampliação do número de vagas no terceiro grau não foi seguida da melhoria do ensino. Se na Venezuela a
rápida expansão do número de instituições públicas não foi proporcional à formação de mão de obra
docente, no Brasil o exíguo controle governamental possibilitou a disseminação de cursos de graduação
com deficiente qualidade. Ademais, nos dois países as instituições, principalmente as públicas, carecem
de infraestrutura para o exercício das atividades de ensino, o que interferiu diretamente na sua qualidade.
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Sobre o autor
Rafael Araújo é Pós-Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutor em História pelo PPGHC/UFRJ. Pesquisador associado
ao Núcleo de Estudos de História Política da América Latina (NEHPAL) da UFRRJ, ao Grupo de
Estudos do Tempo Presente (GET) da UFS e ao GEHSCAL - Grupo de Estudos em História sociocultural
da América Latina da UPE. Membro da Rede de Estudos do Tempo Presente.
Notas
1. O Cordobazo na Argentina, em 1916, consistiu no principal movimento reivindicatório da reforma
universitária na América Latina no início do século XX. Segundo José Luis Romero, os estudantes da
Universidade de Córdoba realizaram reivindicações que tinham um caráter revolucionário. Eles exigiram
a saída de professores reacionários e negligentes com o exercício docente; defenderam novos métodos de
estudos; a renovação das ideias e pesquisas; o fim da elitização das universidades; a autonomia
universitária e gestão participativa e a missão social das universidades, no sentido de sua conexão com
demandas da sociedade argentina (ROMERO, 2009
2. Entre 1989 e 1998 a Venezuela vivenciou um momento de instabilidade política e econômica. O
Caracazo em fevereiro de 1989, o impeachment do presidente Carlos Andrés Pérez em 1992, as
tentativas de golpes de Estado fevereiro e novembro de 1992 e os distúrbios econômicos do período
contribuíram para a ruptura do pacto democrático de Punto Fijo, estabelecido em 1958 e que norteou o
sistema democrático-representativo venezuelano até a eleição de Hugo Chávez ao fim dos anos 1990.
Para mais informações sobre esses temas, ver: MAYA, Margarita López. Del viernes negro al referendo
revocatorio. Caracas, Alfadil Ediciones, 2006.
CAPÍTULO 11
Introdução
E
ste trabalho é resultante da pesquisa que investiga a atuação da comunicadora Nazaré Carvalho
nos programas televisivos, dedicados ao público infantojuvenil, exibidos nas primeiras
emissoras de televisão sergipana na década de 1970. Apresentando os programas Clube Júnior
(TV Sergipe - 1971 a 1974) e Nosso Mundo Infantil (TV Atalaia - a partir de 1975), Nazaré foi detentora
de significativos índices de audiência nas televisões locais, encantando, divertindo e fazendo uso de
práticas educativas. A pesquisa é norteada pelas seguintes questões iniciais: O que teria levado as TVs
sergipanas, logo na fase de suas respectivas implantações, a investirem nos programas infantis? Como
esses programas eram produzidos e realizados? Além do fator entretenimento, eram pensadas questões
educativas? Teria Nazaré Carvalho, a “tia Nazaré”, como era conhecida, a intenção de educar? E quais
foram as práticas educativas utilizadas pela comunicadora?
O interesse pelo objeto ganhou mais força com a constatação da carência de estudos sobre educação
não formal na televisão local. Nazaré Carvalho é parte da história da TV sergipana e, como tal, é citada
em registros escritos, vídeos e sites. Entretanto, na historiografia educacional sergipana, não foi
identificada nenhuma pesquisa interessada na circulação e historicidade de práticas educativas nos meios
televisivos sergipanos e, sobretudo, na atuação de Nazaré Carvalho na condução de programas
televisivos dedicados ao público infantojuvenil. Corroborando com esta afirmativa, Nascimento (2003),
em seu livro Historiografia Educacional Sergipana: uma crítica aos estudos de História da Educação,
apresenta um levantamento das pesquisas de História da Educação realizadas em Sergipe, no período de
1916 a 2002. As temáticas abordadas são diversificadas, mas nenhum trabalho inclui a investigação ou
historicidade de práticas educativas veiculadas por meio da TV sergipanaI. No Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe, foram identificadas três dissertações que
incluem a televisão em suas abordagens. Todas lançam o olhar sobre a inclusão da TV, mais precisamente
do vídeo, como ferramenta educativa nas escolas1. Em nível nacional, a historiografia da educação
também não privilegiou o estudo da atuação de educadores na TV e nem da circulação de práticas
educativas nesse meio de comunicação. Assim, a título de exemplo, das 146 dissertações e teses geradas
nos programas de Pós-graduação em Educação no período de 1972 a 1988, analisadas por Bontempi
(1995), nenhuma se ocupou da educação na televisão.
Este estudo utiliza fontes diversas, a saber, livros, jornais, documentos oficiais, fotografias, vídeos e
relatos orais. As memórias, com suas singularidades, semelhanças e contradições, assumem papel
importante na reconstrução da trajetória e atuação profissional de Nazaré, principalmente diante da
precariedade dos arquivos das televisões locais relativos à fase de implantação das emissoras e dos
programas por elas veiculados. Os entrevistados foram amigos, familiares, ex-colegas de profissão de
Nazaré Carvalho e os ex-participantes e ex-telespectadores dos programas infantis.
Os relatos orais foram coletados através da técnica da entrevista com a utilização de um questionário
ou roteiro, confeccionado a partir das evidências históricas preliminarmente encontradas em outros tipos
de fontes. Levou-se em consideração que o grupo é suporte da memória, pois ela é coletiva, mas é o
indivíduo que recorda. Assim, por muito que se “[...] deva à memória coletiva, é o indivíduo que
recorda. Ele é o memorizador e das camadas do passado a que tem acesso pode reter objetos que são,
para ele, e só para ele, significativos dentro de um tesouro comum” (BOSI, 2001, p.411). Mesmo com um
roteiro pré-estabelecido, permitiu-se que os depoentes discorressem à vontade sobre suas memórias
relacionadas ao assunto. Assim, foi possível conhecer aspectos não apenas da história da TV, mas da
cidade, das pessoas, seus usos e costumes.
Somam-se a essas entrevistas material audiovisual, documentários e programas de televisão. Um dos
documentários utilizados trata dos 35 anos da TV Sergipe (TV SERGIPE, 2006), no qual constam 44
entrevistas com participantes da fase de implantação da televisão no estado, outro documentário, sobre a
vida do radialista e cantor Erílio Alves, no qual Nazaré aparece em registro fotográfico (TV SERGIPE,
2014), e uma entrevista em vídeo fornecida pela comunicadora à TV Assembleia Legislativa de Sergipe
(TV ALESE, 2006).
As fotografias também foram fontes importantes para a escrita da história dos programas televisivos,
dedicados ao público infantojuvenil, exibidos nas primeiras emissoras de televisão sergipana na década
de 1970. As fotografias utilizadas fazem parte do acervo da apresentadora Nazaré Carvalho, outras foram
coletadas em documentação escolar, arquivos pessoais de ex-colegas de trabalho e fãs da “tia Nazaré”,
jornais da época, redes socais e sites. As fontes imagéticas utilizadas assumem forma de evidência
histórica (BURKE, 2004), sem, entretanto, desconsiderar a importância, segundo Kossoy (2009), de
levar em conta o processo de construção da representação e da ficção documental. Assim, foi necessário
também interpretar as fotografias fazendo uma desmontagem do signo fotográfico.
Os jornais da época apresentam registros importantes a respeito da capital Aracaju nos anos 1970.
Através deles, também foi possível acompanhar a inclusão e atuação de Nazaré Carvalho no mundo da
comunicação. Foram pesquisados quatro jornais que circulavam em Sergipe na década de 1970: Gazeta
de Sergipe, A Cruzada, Diário de Aracaju e Jornal da Cidade.
No levantamento sobre a formação intelectual de Nazaré Carvalho, recorreu-se à própria
comunicadora e a fontes oficiais, examinando documentos escolares nos colégios onde ela estudou e no
Departamento de Inspeção Escolar da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe.
Operou-se separando, reunindo e transformando em documentos históricos as informações ou os
objetos coletados (CERTEAU, 2002). A opção foi por uma “história descontínua”, buscando
compreender as informações que os agentes quiseram registrar nas fontes analisadas. Levou-se em conta
que os “documentos” são repletos de significados e interesses, devendo ser analisados como um
monumento no sentido de que todo documento é uma “montagem” que deve ser esquadrinhada pelo
historiador para entender a “imagem” que os agentes históricos quiseram nele representar (LE GOFF,
2003).
Este trabalho tem como recorte temporal os anos de 1971 a 1979, período em que foram veiculados
programas televisivos dedicados ao público infantojuvenil na TV Sergipe (1971-1974) e na TV Atalaia
(1975-1979). A escrita histórica é feita numa perspectiva da História Cultural e leva em conta as
apropriações e representações postas em circulação nos programas apresentados pela radialista e
jornalista Nazaré Carvalho. A pesquisa considera e aborda dois aspectos: o primeiro trata da trajetória
de vida de Nazaré Carvalho e a sua inserção no campo da comunicação, contextualizando com aspectos
importantes da fase de implantação das duas primeiras emissoras de TV locais; o segundo é uma
abordagem preliminar dos conteúdos veiculados pela apresentadora nos programas infantis, elucidando
práticas educativas difundidas por meio das emissoras de televisão sergipanas.
Enquanto se forjava professora primária, Nazaré permanecia nas ondas do rádio e marcava presença
também na fase experimental de implantação da primeira emissora de televisão: a TV Sergipe.
Mas não bastava ter um aparelho e ver o mundo através dele, era preciso ter uma emissora de TV
local. Em 1966, incentivados pelo radialista Nairson Menezes, que já havia trabalhado na TV Excelsior
de São Paulo, nove empresários decidiram implantar a primeira emissora de TV do estado. O capital
necessário foi dividido em 10 cotas. Nove foram compradas pelos empresários fundadores6 e a décima
foi dividida em ações ordinárias e vendidas a quem se interessasse. Nascia a primeira emissora de TV
do Brasil com participação popular. Para despertar o interesse das pessoas pelas ações, foi montado um
estande de vendas na praça central da cidade. Um sucesso! Afinal, quem não queria ser dono de uma
emissora de TV? Aracaju ainda não conhecia realmente o progresso. Era a “cidade-menina vestida de
Sol”, título singelo dado pelo ex-governador Luiz Garcia para a capital ainda com “ares provincianos”.
Conta o jornalista Raymundo Luiz:
Os recursos arrecadados pela prefeitura de Aracaju eram muito limitados, o que impedia,
certamente, gestões que desenvolvessem nossa capital. Simultaneamente, a evolução
socioeconômica de Aracaju processava-se em ritmo lento, quase parando. Diversão: cinemas. Um
de primeira linha, o Palace, mais uns quatro de menos categoria: Rex, Vitória, Guarany, Rio
Branco [...] Era no Cine-teatro Rio Branco que aconteciam as melhores apresentações teatrais
[...]. As retretas da Praça Fausto Cardoso começavam a perder fôlego, enquanto clubes sociais
como a Atlética, o Iate Clube de Aracaju, Cotinguiba, Vasco realizavam festas que atraiam as
atenções e preferências da sociedade (SILVA, 2015).
Antes de ser inaugurada oficialmente, a TV Sergipe fez alguns experimentos. As primeiras
transmissões, por breves períodos, foram realizadas em 1967 e 1968. Uma nova autorização, concedida
em 1969, permitiu que os sergipanos pudessem acompanhar pela emissora local grandes acontecimentos,
como a chegada do primeiro homem à Lua e a Copa do Mundo de 1970.
Com a chegada da Petrobras a Sergipe, Aracaju começa a passar por grandes transformações. “E aí
começaram a vir as grandes empresas que trabalhavam para Petrobras. [...] Sergipe já era, naquela
época, o segundo maior produtor de petróleo em terra. E já se havia descoberto petróleo no mar. [...]
(COSTA, 2015). Além da presença da Petrobras, outros fatores ajudaram no desenvolvimento do estado.
Segundo Dantas (2004), algumas orientações das políticas nacionais favoreceram também a expansão da
economia capitalista interna, que ganhou mais dinamismo e funcionalidade. Cresceu a importância dos
empresários urbanos, especialmente da construção civil, que passaram a gozar de mais poder de pressão
sob os pleitos eleitorais e junto aos projetos governamentais (DANTAS, 2004). Foi nesse cenário
promissor que, no dia 12 de maio de 1971, a Rádio e Televisão de Sergipe entrou de fato em fase
experimental e, em 15 de novembro, foi inaugurada oficialmente. A imprensa registrou a chegada do
“caminhar civilizatório”:
Televisão – Finalmente na próxima segunda-feira encerra-se a novela do vai-não-vai da nossa TV
Sergipe, Canal 4. Definitivamente no ar no dia 15 de novembro de 1972 [sic]7, data de muito
significar para os sergipanos. Iniciamos de fato a era da comunicação, do entretenimento pelas
imagens como antes era feito somente com os sons. É um dia que ficará lembrado [...] como o
início do nosso caminhar civilizatório em busca da sintonia que deverá ser nacional e universal,
tal o valor da nossa assistência regional (GAZETA DE SERGIPE, p.3, 1971).
A emissora começou como afiliada da Rede Tupi e sua programação tinha cerca de seis horas de
duração “[...] Acival Gomes apresenta o primeiro telejornal da emissora. [...] A professora Nazaré
Carvalho apresenta o “Clube Júnior”. As crianças são levadas para o estúdio e, ao lado da tia Nazaré,
brincam e se divertem com desenhos animados” (TV SERGIPE, 2006).
Considerações finais
A pesquisa deste objeto tão rico ainda tem um longo caminho a percorrer. Neste trabalho, deu-se
conta de investigações e resultados preliminares. É possível concluir que, nos programas comandados
pela “tia Nazaré”, aprendia-se a contar, estimulavam-se o desenho, a pintura, o canto, a boa caligrafia, o
respeito aos pais, a valorização da família, entre outros ensinamentos.
De outro modo, o Brasil vivia uma ditadura militar e, oportunamente, como se fazia nas escolas, os
programas televisivos infantis pregavam o amor à pátria e o civismo exacerbado. Era preciso ensinar as
crianças a serem “bons” filhos, alunos e cidadãos obedientes.
O conteúdo dos programas apresentados por Nazaré Carvalho, em parte, seguia esse ideário moral e
cívico transmitido pelos órgãos oficiais. Assim, as televisões sergipanas, logo nos seus primeiros
programas infantis, de forma intencional ou não, ao passo que procuravam entreter e garantir a audiência
com suas produções, acabaram por inculcar diversos conteúdos educativos.
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TV SERGIPE – 35 ANOS - Nossa história (DVD). Direção, Roteiro e Edição- Dida Araújo.
Coordenação de produção: Fernando Petrônio. Direção de imagem- Humberto Alves. 88min, Núcleo de
Produções Especiais da TV Sergipe, Aracaju/SE: 2006.
TV SERGIPE. Programa TERRAS SERIGY (DVD) - Goiabinha TV Sergipe. 15min. 8 de março de
2014. Aracaju/SE: 2014.
Sobre os autores
Rísia Rodrigues Silva Monteiro é mestranda em Educação (PPGED-UFS), graduada em
Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela Universidade Tiradentes (1994). Membro do
Grupo de pesquisa História da Educação: intelectuais, instituições e práticas escolares (UFS). Atuou
como professora colaboradora voluntária na Humana People to People nos EUA e em Moçambique
(2011/2012), colaborando na formação de professores primários (Educomunicação) no Development
Instructor Program. Atualmente trabalha como jornalista na empresa Destaque Assessoria de
Comunicação e Marketing Ltda.
Joaquim Tavares da Conceição é Doutor em História (2012) pelo Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal da Bahia, Mestre em Educação (2007) e Graduado em História pela
Universidade Federal de Sergipe (1993). Professor efetivo da Universidade Federal de Sergipe da
Carreira do Magistério do Ensino Básico Técnico e Tecnológico, lotado no Colégio de Aplicação
(CODAP-UFS) e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFS. Líder do
Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação: Memórias, sujeitos, saberes e práticas
educativas (GEPHED).
Notas
1. São elas: A experiência do Vídeo Escola em Aracaju (1997), de Ronaldo Linhares Nunes; Curso de
TV na Escola e os desafios de hoje – sua materialização em Sergipe (2003), de Andrea Karla Ferreira
Nunes, e Educação Ambiental: uma análise dos vídeos do Programa TV Escola (2004), de Fábio Costa
Figueirôa.
2. Nas escolas brasileiras, o Canto orfeônico tornou-se obrigatório no currículo a partir de 30 de abril de
1931. Em Sergipe, a prática teve início na Escola Normal em 1934 e só foi retirada do currículo em
1971, através da Lei nº 5.692/71. A partir daí passou a fazer parte da disciplina Educação Artística.
Conforme SANTOS, Elias Souza dos. Educação Musical Escolar em Sergipe: uma análise das práticas
da disciplina Canto orfeônico na Escola Normal de Aracaju (1934-1971). Dissertação de mestrado,
USP/SP 2012).
3. O colunista se engana quanto à data do aniversário de Nazaré Carvalho. O correto é 25 de agosto.
4. Nazaré contou em entrevista que também foi aluna do Colégio Atheneu Sergipense, onde teria feito
parte do Ginásio e do Científico como aluna ouvinte. Teria contado com essa facilidade porque a mãe
lecionava no colégio. No entanto, nos registros do Atheneu, até o momento, não foi localizado nada que
comprove a passagem de Nazaré Carvalho por aquele colégio.
5. 1971, ano de melhor desempenho escolar de Nazaré, coincide com o ano de implantação da TV
Sergipe e estreia do programa infantil comandado por ela.
6. Os empresários fundadores da TV Sergipe foram Francisco Pimentel Franco, Josias Passos, Getúlio
Passos, José Alves, Hélio Leão, Augusto Santana, Paulo Vasconcelos, Lauro Menezes e Luciano
Nascimento. TV Sergipe, 2006.
7. A data correta é 15 de novembro de 1971, ano de veiculação da notícia no jornal.
8. Programas como Teatrinho Trol (1956), Capitão Aza (1966), Capitão Furacão (1965), entre outros,
tinham conteúdos parecidos: desenho, música e participação das crianças. Disponível em:
<ao/programas-infanis.phpT> Acessado em 10 abr. de 2015.
9. Os pais das crianças eram, na maioria das vezes, os anunciantes da TV Sergipe.
10. Cynira Arruda é jornalista e fotógrafa. Na década de 1970, fez muito sucesso como modelo e jurada
de programas de televisão. Íris Lettiere é locutora, ex-modelo, ex-apresentadora de telejornal e cantora.
É dona de uma voz grave e aveludada. Desde 1970 é a “locutora oficial” dos aeroportos do Rio de
Janeiro, de São Paulo, entre outros.
11. Idalina Campos é viúva de Luiz Carlos Campos e amiga de Nazaré desde a inauguração da TV
Sergipe.
12. O Decreto- Lei Nº 869, de 12 de setembro de 1969, dispunha ainda sobre o ensino da Educação
Moral e Cívica no Ensino Superior, a formação dos professores da disciplina, criação da Cruz do Mérito
da Educação Moral e Cívica, que seria concedida a personalidades que se destacassem em dedicação à
causa da Educação Moral e Cívica.
13. Disponível em: <http://www.vagalume.com.br/francisco-alves/cancao-da-crianca.html>. Acesso em
15 jan. 2015.
CAPÍTULO 12
A
s mídias digitais têm sido responsáveis por uma mudança sem precedentes na percepção e na
compreensão dos fenômenos comunicacionais. A humanidade experimenta as novidades e os
desafios inerentes à transição da cultura puramente alfabética para a cultura digital. Diante do
novo, e embalados na velocidade que a chamada “virada digital” (digital turn) imprime às recentes
transformações tecnológicas, estudiosos de diversas áreas das Ciências Humanas têm refletido sobre as
possibilidades inovadoras, mas também sobre os riscos e cuidados que o avanço tecnológico traz para
seus variados saberes e fazeres.
O presente capítulo, fruto da conversa entre duas historiadoras em formação, propõe uma reflexão
sobre continuidades e possíveis rupturas metodológicas que os profissionais da história podem vivenciar
na Era Digital. Indelevelmente marcado pelo contexto do primeiro encontro e troca de experiência das
autoras – originalmente, um espaço de formação de professores –, os questionamentos e proposições
feitos aqui se voltam para as peculiaridades da história enquanto disciplina, mas com especial atenção à
dimensão do ensino, pensando na formação dos futuros professores de história e no ensino dessa matéria
no âmbito escolar.
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Sobre as autoras
Anita Lucchesi - Doutoranda em História Digital e História Pública pela Universidade de
Luxemburgo, junto à Faculté des Lettres, des Sciences Humaines, des Arts et des Sciences de l Éducation,
na unidade de pesquisa Identités, Politiques, Sociétés, Espaces (FLSHASE / IPSE / Institute of History),
onde integra o Laboratório de História Digital. É Mestre em História Comparada pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Possui bacharelado e licenciatura plena em História pela mesma universidade
(2012), tendo participado de programa de intercâmbio na Università degli Studi di Firenze (Itália, 2008).
É membro e pesquisadora do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET-UFS). É membro da Rede
Brasileira de História Pública e também associada à Federação Internacional de História Pública (IFPH)
e ao Conselho Nacional de História Pública (EUA/NCPH). Participou como parecerista do MEC no
processo de avaliação dos livros didáticos de História do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)
2014 e 2015.
Marcella Albaine da Costa é doutoranda em História pela Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especialista em
Tecnologia Educacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora da educação básica e
professora substituta da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Notas
1. Tradução livre do inglês: “If we assume that the internet will be the main archive of the future, what
kind of critical competences must historians acquire or possess to be able to ascertain the authenticity of
an online source? If future generations of historians want to keep this key competence within the realm of
their discipline and habitus, they will need to develop skills in computer science, digital image analysis
and network technology.”
2. Tomemos como referência as fases destacadas por Paul Ricoeur, apoiado na compreensão operacional
da história de Michel de Certeau: 1ª. Fase documental – aquela que “vai da declaração das testemunhas
oculares à constituição dos arquivos” e diz respeito ao estabelecimento da “prova documental”; 2ª. Fase
explicativa/compreensiva – aquela etapa em que os historiador responde aos “porquês” motivadores de
sua pesquisa; e 3ª. Fase representativa – que diz respeito à colocação em forma literária, isto é, à escrita
propriamente dita, que levará o conhecimento produzido ao público leitor. Cabe ressaltar que tal divisão
“não se trata de momentos cronologicamente distintos, mas de momentos metodológicos imbricados uns
nos outros” (RICOUER, 2007, p.146-147)
3. Original: “Technology is neither good nor bad; nor is it neutral. By that I mean that technology’s
interaction with the social ecology is such that technical developments frequently have environmental,
social, and human consequences that go far beyond the immediate purposes of the technical devices and
practices themselves, and the same technology can have quite different results when introduced into
different contexts or under different circumstances.”
4. “Projeto Xanadu é uma das mais mal compreendidas iniciativas para criar um diferente tipo de mundo
de computadores, baseado em um diferente tipo de documento eletrônico. (Documentos eletrônicos
convencionais - PDF, Word, HTML - simulam papel e são construídos em cima de conceitos de
impressão. Documentos do projeto Xanadu fazem o que nenhuma impressão pode fazer.) Conceito:
Páginas voadoras! Profunda interconexão! Intercomparação paralela! Todo o conteúdo conectado com
suas fontes originais! E muito mais.” Ver: http://www.xanadu.com/ Acessado em: 20.01.2016.
5. Original: “When you hold a centuries old document in your hands, feel its weight, hear the paper
crinkle, notice a stain or perhaps just react to the dust, you sense a connection to the past that is
simultaneously humbling, enriching and potentially misleading. (...) Can a virtual encounter be as
meaningful? Indeed how useful is to think of these virtual representations as being from the past?”
6. Uma proposta, por exemplo, é o chamado Technological Pedagogical Content Knowledge (TPACK),
abordagem que se baseia na ideia da construção do Conhecimento Pedagógico do Conteúdo (no inglês,
abreviado como PCK), desenvolvida pelo psicólogo da educação Lee Shulman nos anos 1980, porém
adicionando o Conhecimento da Tecnologia. Nos quadros dessa proposta de estudo, a integração da
tecnologia no ensino se dá pela sistemática interseção teórica e prática entre conteúdo, pedagogia e
tecnologia. Entretanto, os próprios teóricos que se apoiam no TPACK avisam: “There is no “one best
way” to integrate technology into curriculum. Rather, integration efforts should be creatively designed or
structured for particular subject matter ideas in specific classroom contexts.” (KOEHLER & MISHRA,
2009). Ver também: http://www.tpack.org/ Acessado em: 15.02.2016.
7. Compartilhamos online um apanhado de referências contendo, entre outras, algumas das ferramentas
que discutimos durante o curso, bem como leituras para o aprofundamento das discussões. Esta lista é
constantemente atualizada pelas autoras. Ver blog Historiografia na Rede:
https://historiografianarede.wordpress.com/referencias-curso-de-extensao-historia-digital/ Acesso:
17.03.2016.
8. Nomenclatura também utilizada pelo Ministério da Educação em documentos oficiais do Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD) para fazer referência aos jogos educacionais digitais, simuladores,
infográficos animados, audiovisuais e hipermídias que podem acompanhar os livros didáticos desde o
PNLD 2014 (Ensino Fundamental, Anos Finais), primeira edição do Programa em que o conteúdo
multimídia é previsto, podendo acompanhar os livros didáticos impressos.
9. Note-se que onde o texto está sublinhado, originalmente, a pessoa inseriu o hiperlink para o endereço
eletrônico que, na versão impressa, optamos por colocar entre parênteses.
10. Vale notar que não incluímos citações aqui, mas propostas de atividades para história local, as
mulheres na revolução e diversidade étnica também apareceram. Registra-se, ainda, que se deve levar em
consideração a precária infraestrutura disponível em muitas escolas pelo Brasil, que não oferecem
condições mínimas para o desenvolvimento de atividades como essas, mas é preciso dizer que, ainda
assim, os professores e licenciandos podem, em alguns casos, preparar e sugerir atividades para serem
feitas mesmo de casa ou de bibliotecas públicas que ofereçam acesso a computadores conectados à
Internet.
11. Termo proposto por Costa, em notas particulares (ainda privadas ao momento que escrevemos este
texto), tendo por referência experimentações que realizou com alunos de seu Estágio de Doutoramento na
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Tais notas deram origem a um trabalho de conclusão
de curso para a disciplina “O tempo como problema historiográfico”, o qual Costa compartilhou com
Lucchesi. O presente texto foi concebido a partir da leitura e crítica de Lucchesi ao trabalho de curso
escrito por Costa. Da discussão entre as autoras, surgiu a proposta do retorno à experiência realizada na
UFRN, como sempre, em conversas virtuais, o que tem se tornado cada vez mais comum nas
colaborações acadêmicas recentes.
CAPÍTULO 13
N
o início de 2016, uma polêmica tomou conta do meio educacional brasileiro. A nova Base
Nacional do Comum Curricular (BNCC) do Ensino Brasileiro, anunciada pelo Ministério da
Educação, desagradou, em muito, professores de história, sobretudo pelas alterações
significativas em torno do novo currículo da disciplina. Em xeque, o futuro do ensino de história no
Brasil.
Diante da reação dos professores, organizados em entidades, como a ANPUH, o Ministério da
Educação recuou e chegou mesmo a admitir falhas, as quais deverão ser sanadas depois de ouvidas as
partes interessadas, em um amplo debate.
A historiadora Circe Maria Fernandes Bittencourt, uma das maiores autoridades intelectuais no
assunto, em declaração para o portal globo.com, assim se pronunciou a respeito: “A gente entende que
ela (proposta para história) está mal estruturada. Não estamos combatendo os princípios. (...) É um
momento oportuno, queremos que o ensino de história tenha uma mudança” (G1, São Paulo, 05/01/2016
19h34 - Atualizado em 05/01/2016 21h35).
Destarte, não é a primeira vez que a história fica à mercê das conjecturas políticas e das políticas
públicas. Nunca é demais lembrar o que se lhe ocorreu em tempos de ditadura militar, quando a
disciplina foi abolida dos currículos e substituída por Moral e Cívica e OSPB.
Em que pese esta discussão inicial, que envolve diretamente a prática de ensino de história no Brasil
e sem entrar em maiores detalhes sobre o documento oficial produzido, entende-se como oportuno o
momento histórico vivido por pesquisadores e docentes nesta área. A história da educação brasileira, nos
últimos anos, reservou alguns capítulos importantes sobre o assunto e relegou o conhecimento histórico,
em sala de aula, a patamares significativos, sobretudo em nível de currículos, se levarmos em conta os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e os avanços em torno da escolha do livro didático de
história, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
Sobre os PCNS, notadamente, no Ensino Médio, no que diz respeito às competências específicas da
História, considera-se como objetivo de seu ensino a “(...) superação da passividade dos alunos frente à
realidade social e ao próprio conhecimento (p. 74)”. Por isso, a ênfase na criticidade, na análise e na
interpretação, não só de fontes, mas da própria realidade e do cotidiano. No que se refere ao ensino de
história, o documento exige do aluno em formação docente estar munido dessas habilidades para ser
capaz de lidar com seus alunos.
Entretanto, no que diz respeito à docência e à formação do professor de história, os últimos vinte
anos expõem alguns problemas que não permitem a existência efetiva de cursos de licenciaturas voltados
exclusivamente para esta área, abrindo espaços para lacunas que também devem passar pelas discussões
atuais em torno da nova Base Nacional do Comum Curricular (BNCC) do Ensino Brasileiro.
Resolver o problema curricular e não investir na formação é cobrir um santo e descobrir outro, há
muito necessitado de um cobertor que dê alento aos alunos que, em sua maioria, ou desistem de serem
professores ou, mesmo formados, retornavam à universidade para investirem em outros cursos,
notadamente, Direito e Relações Internacionais.
Em 2001, o Ministério da Educação estabeleceu novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os
cursos de História implantados e a serem implantados no país a partir daquele momento. Na pauta, entre
tantas coisas, a normatização do Estágio Supervisionado em História a partir do Parecer CNE/CP 9/2001
e do Parecer 27/2001.
Tendo como referência o Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Sergipe, em
suas modalidades, Presencial e à Distância, através das atividades e relatórios de estágio do curso a
partir de 2005 (reforma curricular que substituiu a disciplina Prática do Ensino de História pelo Estágio
Supervisionado), pretendemos, neste texto, discutir as inúmeras dificuldades entre o que os normativos
pretendem e a experiência apresenta, apontando caminhos para a superação das dificuldades observadas
entre a teoria e a prática, no campo do estágio em docência na formação do professor de História.
Vejamos, inicialmente, o que preconiza a legislação a respeito do Perfil do Egresso das
Licenciaturas em História, no Brasil. Segundo o Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE)
0492/2001, faz-se necessário formar cidadãos com vistas a: 1) As ampliações teórico-metodológicas da
pesquisa em História; 2) A ampliação dos campos de atuação do profissional formado em História. Neste
segundo aspecto, destaque para: atividades de ensino; institutos de pesquisa; pesquisas vinculadas ao
patrimônio artístico e cultural e à cultura material; serviços dos meios de comunicação de massa;
assessorias culturais e politicas; elaboração de bancos de dados, organização de arquivos, reunião e
preservação da informação.
Por sua vez, a Resolução CNE/CES 13, de 13 de março de 2002, estabelece as Diretrizes
Curriculares para os Cursos de História. Chama a atenção, de modo particular, o seu artigo 2º, em suas
letras a, c e f, onde estão preconizados normativos que atendem à formação do professor de história.
Em que pese tais considerações, a experiência no campo da formação do professor de História da
Universidade Federal de Sergipe mostra que são mantidas as peculiaridades típicas desse tipo de saber:
ênfase nas temporalidades e com a exigência de uma formação específica que habilite o profissional de
História a um trabalho, com variadas fontes documentais, tendo como parâmetros sociais e culturais de
seu contexto de formação.
Entretanto, em linhas gerais, pode-se dizer que o tipo de sujeito que a Universidade Federal de
Sergipe vem graduando nos últimos dez anos tem sido capacitado ao exercício do trabalho de
Historiador, em todas as suas dimensões, o que supõe pleno domínio da natureza do conhecimento
histórico e das práticas essenciais de sua produção e difusão. E isto ocorre, mesmo com a extinção de
seu Curso de Bacharelado há alguns anos, o que contribui para um dos dilemas de alunos e professores:
forma-se o que, efetivamente?
Ainda à luz da legislação educacional vigente, no que diz respeito às competências e às habilidades
de nossos alunos, destaque para a necessidade de estes: dominarem as diferentes concepções
metodológicas que referenciam a construção de categorias para a investigação e a análise das relações
sócio-históricas; problematizarem, nas múltiplas dimensões das experiências dos sujeitos históricos, a
constituição de diferentes relações de tempo e espaço; conhecerem as informações básicas referentes às
diferentes épocas históricas nas várias tradições civilizatórias assim como sua inter-relação; transitarem
pelas fronteiras entre a História e outras áreas do conhecimento; desenvolverem a pesquisa, a produção
do conhecimento e sua difusão não só no âmbito acadêmico, mas também em instituições de ensino,
museus, em órgãos de preservação de documentos e no desenvolvimento de políticas e projetos de gestão
do patrimônio cultural; terem competência na utilização da informática. Isto no âmbito mais geral de sua
formação.
No âmbito das chamadas competências e habilidades específicas, destaque para duas assertivas:
domínio dos conteúdos básicos que são objeto de ensino – aprendizagem no ensino fundamental e médio;
e domínio dos métodos e técnicas pedagógicos que permitem a transmissão do conhecimento para os
diferentes níveis de ensino.
Com relação aos conteúdos curriculares e práticas de ensino, estes últimos objetos de nossas
preocupações enquanto professor, formador e pesquisador, é possível, ainda ao nível da legislação
educacional em vigor, observar: deverão ser incluídos os conteúdos definidos para a educação básica, as
didáticas próprias de cada conteúdo e as pesquisas que as embasam.
E ainda: as atividades de prática de ensino deverão ser desenvolvidas no interior dos cursos de
História, e sob sua responsabilidade, tendo em vista a necessidade de associar prática pedagógica e
conteúdo de forma sistemática e permanente.
A sensação que temos e, porque não dizer, a constatação é a de que muito se é pedido, pouco se
oferta e quase nada se tem como resultado efetivo depois de concluída a jornada de estudos de nossos
estudantes no Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Sergipe. Em geral, notamos
um hiato enorme entre as três instâncias. É comum, desse modo, nossos alunos chegarem desestimulados
ao final, sem ao menos terem a certeza de que serão docentes na área para a qual se licenciaram.
Seus depoimentos quando encerram a disciplina Estágio Supervisionado em História II atestam isto
que estamos ressaltando como um problema de formação. Seus relatórios finais também corroboram uma
realidade que carece de uma reflexão mais profunda interdepartamental e extra-departamental, inclusive
no que tange aos estágios na instituição locus de nossa investigação.
Vejamos o que diz um aluno concludente, em experiência de estágio supervisionado, a respeito: “Em
minha experiência, creio que algumas aulas [da universidade] poderiam ser melhores se eu tivesse o
domínio de alguns conteúdos que me pudesse trazer mais curiosidades e/ou debates com os alunos”
(D. L. S. S. – DHI / 2013.2).
É comum os nossos egressos retornarem ao nível superior, não necessariamente para se aperfeiçoar
em sua especificidade, a história, em programas de pós-graduação, por exemplo, mas para fazerem outros
cursos, nem sempre de licenciatura. A experiência mostra isto. Questionados, ao final do curso do por
que, é comum ouvir deles que o contato com a prática de ensino, via estágio, os fizeram tomar esta
decisão.
Ainda no início do curso, quando são “calouros”, quando são questionados sobre o porquê de terem
escolhido história no nível superior, a grande maioria, sobretudo em tempos de ENEM, fala que foi a
menor nota de corte, que pensa em migrar para Direito, por exemplo. O restante diz ter se inspirado em
algum professor de história do Ensino Médio. E poucos, muitos poucos, convictos da escolha.
Nesse sentido, vale destacar o que afirma Maurice Tardif:
Os cursos de formação para o magistério são globalmente idealizados segundo um modelo
aplicacionista do conhecimento: os alunos passam um certo número de anos a assistir a aulas
baseadas em disciplinas e constituídas de conhecimentos proposicionais. Em seguida, ou durante
essas aulas, eles vão estagiar para aplicarem esses conhecimentos. Enfim, quando a formação
termina, eles começam a trabalhar sozinhos, aprendendo seu ofício na prática e constatando, na
maioria das vezes, que esses conhecimentos proposicionais não se aplicam bem na ação
cotidiana. (TARDIF, 2002, p.270)
Atentemos agora para a Resolução CONEPE nº 65/2011, que estrutura e organiza o referido curso, o
qual está de acordo com as normas até então elencadas e comentadas.
Em termos de carga horária, está organizado em 2.865 horas, com previsão de término entre 3 anos e
meio a seis anos.
Sua estrutura curricular está organizada em quatro núcleos, a saber: comum, educação básica,
estágios e atividades complementares.
As disciplinas que compreendem o primeiro núcleo são:
A – História Geral
Consiste no conteúdo de História do Ensino Médio e Fundamental, revisto em maior profundidade,
com conceitos e instrumentos históricos adequados, além de uma apresentação teórica dos tópicos
fundamentais.
B – História do Brasil
Consiste no conteúdo de História do Brasil, tais como História do Brasil Colônia, História do Brasil
Império, História do Brasil República, História de Sergipe.
C – Metodologia da História
É o conjunto mínimo de conceitos necessários ao tratamento adequado dos fatos históricos, composto
por Introdução à História, Teorias da História I, Teorias da História II, Metodologia da Pesquisa
Histórica, Historiografia Brasileira.
D- História da África
Consiste no conteúdo de História da África para o Ensino Médio e Fundamental, revisto em maior
profundidade, com conceitos e instrumentos históricos adequados, além de História da Cultura Afro-
Brasileira.
As disciplinas que compreendem o segundo núcleo são:
E - LIBRAS
Consiste em conhecimento introdutório de Libras. Aspectos diferenciais entre Libras e a Língua
Portuguesa.
No que diz respeito aos estágios supervisionados, assim são estabelecidas por resolução própria:
são desenvolvidos considerando as diferentes dimensões da atuação profissional, sendo centradas nos
fundamentos teóricos em Estágio, na regência de classe na escola selecionada e na participação em
atividades extraclasses aí desenvolvidas. Ocorrerá sistematicamente a avaliação do trabalho realizado
em regência de classe e deverá ser realizado relatório final do estágio.
O estágio supervisionado é uma exigência da LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional
nº 9394/96 nos cursos de formação de professores. Em 2008, o Ministério do Trabalho lançou uma
cartilha que procurava esclarecer a Lei de Estágio, no. 11.788/2008. Em sua página deste, no que diz
respeito a quem pode fazer estágio, assim se refere:
Estudantes que estiverem frequentando o ensino regular, em instituições de educação superior, de
educação profissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino
fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos. (art. 1º da Lei nº
11.788/2008)
Dentro dos normativos da Universidade Federal de Sergipe, o Estágio Curricular Obrigatório é
previsto pela Lei 11.788/2008 e constante no projeto político pedagógico de cada curso. Na
Universidade Federal de Sergipe, tanto o Estágio Curricular Obrigatório como o Estágio Curricular não
Obrigatório, realizado voluntariamente pelo estudante para enriquecer a sua formação acadêmica e
profissional, podendo ou não gerar créditos para a integralização do currículo pleno, são regulamentados
pela Resolução Nº 65/2011/CONEPE, aprovada em 22 de julho de 2011, que orienta a elaboração das
Normas Específicas para o Estagio, de cada Curso.
O chamado núcleo das atividades complementares corresponde a 390 horas do Curso, assim
divididas: disciplinas optativas (180) e atividades complementares (210). Neste último particular,
notamos uma grande dificuldade para os alunos que frequentam o turno noturno e a modalidade à
distância. Em geral, são sujeitos trabalhadores que encontram empecilhos para participarem de eventos e
projetos de extensão que o nível superior oferece ao longo de sua formação. Há, nesse sentido, um
esforço hercúleo, o que implica uma formação açodada pela indisponibilidade e impossibilidade de
administrar o tempo.
Ainda sobre as atividades extensionistas, vejamos o que pudemos detectar nos últimos dez anos.
Em linhas gerais, a ideia é aproximar a extensão universitária da prática de estágio supervisionado,
por exemplo. Para tanto, cabe-nos refletir sobre os sentidos atribuídos à extensão universitária,
especialmente no que diz respeito à formação do professor de história; e, por fim, entender como a
prática extensionista pode se relacionar com a pesquisa e com o estágio, visando à promoção da
melhoria da qualidade de ensino de história.
Façamos, antes, uma breve reflexão conceitual para situarmos a questão aqui exposta.
Por extensão entende-se o processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que
promove a interação transformadora entre a universidade e outros setores da sociedade orientada pelo
princípio constitucional da indissociabilidade com o Ensino e com a Pesquisa.
Por Projeto de Extensão entende-se o conjunto de ações processuais contínuas, de caráter
educativo, social, cultural ou tecnológico, com objetivo específico e prazo determinado.
Por Programa de Extensão entende-se ser um conjunto articulado de projetos e outras ações de
extensão, preferencialmente de caráter multidisciplinar e integrado a atividades de pesquisa e de ensino.
Tem caráter orgânico-institucional, integração no território e/ou grupos populacionais, clareza de
diretrizes e orientação para um objetivo comum, sendo executado a médio e longo prazo.
Em termos de legislação, vejamos, também, o que se diz a respeito. Nesse particular, chama-nos a
atenção o Artigo 207 da Constituição Federal, o qual dispõe que as universidades obedecerão ao
princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (BRASIL, 1988), tendo a educação
superior por finalidade, conforme prescreve o Artigo 43 da Lei da Educação Nacional – 9.394/96,
incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica (inciso III), comunicar o saber através do
ensino (inciso IV) e promover a extensão aberta à participação da população (inciso VII) (BRASIL,
1996).
O Plano Nacional de Extensão assim se refere ao estágio curricular:
O estágio curricular é alçado como um dos instrumentos que viabilizam a extensão enquanto
momento da prática profissional, da consciência social e do compromisso político, devendo ser
obrigatório para todos os cursos, desde o primeiro semestre, se possível, e estar integrado a
projetos decorrentes dos departamentos e à temática curricular, sendo computado para a
integralização do currículo de docentes e discentes. (BRASIL, 1998, p. 06)
A prática, mais uma vez, nos mostra um realidade limitada e incongruente entre o que se preconiza, o
que se deseja e o que se faz. Em geral, no escopo da extensão, estão circunscritos eventos e alguns
projetos, geralmente, resultados de editais e de atividades de grupos de pesquisa, com pouca ou quase
nenhuma ênfase ao aspecto coletivo.
Sobre os estágios, não fossem os fundamentos de estágio e a prática efetiva no campo da docência,
nosso aluno não teria a menor condição de lecionar, ao menos, em bases legais e reais mais sólidas e
bem sucedidas. Ainda assim, nesse patamar, destaque, mais uma vez, para ações isoladas, pouco e nem
sempre articuladas entre as disciplinas e mesmo como parte das preocupações administrativas e
pedagógicas do curso como um todo, mais afeito à teorização e à prática da pesquisa em história.
Sobre as práticas de ensino desenvolvidas nas disciplinas Fundamentos de Estágio I e II, pode-se
dizer que o cenário é mais animador, incluindo experiências de simulação de aulas de história no interior
das salas de aulas e mesmo fora delas, fazendo valer a ideia e a necessidade de um momento laboratorial
para nossos alunos no nível da docência.
A prática mostra que nossos alunos, em sua maioria, se encontram com o curso no que ele pode e
deveria proporcionar no que tange à formação do professor de história, propriamente dito. Vencendo as
ansiedades, limitações, medos e vícios universitários, até, vão além do que se apresenta na letra fria de
uma resolução ou parecer. Isto deveria ser mais bem disseminado e amadurecido num todo, sobretudo,
numa primeira oportunidade de reforma curricular.
Atentemo-nos, em nível de reflexão, para alguns outros depoimentos de egressos, em plena
experiência de estágio supervisionado:
A prática de estágio serviu para, além de conhecer melhor a profissão assumindo agora o papel de
professor, foi a de conhecer a realidade da escola pública brasileira. (...) Esta atividade serviu
para enxergar a atuação do professor com outros olhos, algo que só ocorreria na prática e ver o
esforço que é para preparar uma aula e, por isso, valorizar ainda mais o que eu assisto (G. B. S. –
DHI/2012.2).
Ainda continuo muito decepcionada com o tratamento que certos professores dão aos alunos e
também a disciplina, como se fosse um mal necessário. Muito do fracasso escolar existente hoje
se devem a eles e não só ao sistema. (...) Também percebo as dificuldades desta profissão e os
empecilhos que provavelmente irei enfrentar (C. D. S. – DHI/2013.1).
Entrar em uma sala de aula foi uma experiência muito boa, conheci alunos interessantes, alunos de
vários jeitos, tranquilos, levados, brincalhões, o sem paciência, o que entende, o que tem
dificuldade de entender... e é nessa hora, que decidimos por ser ou não professor... (R. C. S. C. –
DHI/2012.1).
Nesse sentido, pesa também, em contrário, a falta de comprometimento coletivo com a prática da
docência em história. Isto, geralmente, é relegado para a responsabilidade de alguns poucos professores
credenciados para tanto, quando deveria ser uma responsabilidade de um todo colegiado, o que contribui
para, paradoxalmente, ser a prática de ensino uma entidade alienígena no conjunto do curso e nas pautas
departamentais.
Em tese, o desenvolvimento de práticas extensionistas integradas aos estágios da licenciatura, em
história, da Universidade Federal de Sergipe, deveria representar uma oportunidade de contribuição
efetiva de formação para a escola e para os campos de estágios. Não é o que tem demonstrado ser nos
últimos dez anos. Salvas raríssimas e promissoras exceções.
O mesmo pode se afirmar para a extensão universitária, que, no campo do ideal, poderia ser um
canal de comunicação entre a teoria e a prática profissional de história: uma importante opção para o
desenvolvimento de práticas pedagógicas e para a construção de saberes docentes diversificados nesse
nível de formação e ensino específico.
Ainda sobre o estágio supervisionado, vejamos a seguir o que podemos externar para aprofundar a
discussão, com vistas, evidentemente, a fomentar um cenário mais promissor de mudanças
consubstanciais e significativas mudanças.
Na melhor acepção da palavra, estágio seria: Um rito de iniciação profissional? Uma estratégia de
profissionalização? Conhecimento da realidade? Um momento de colocar em prática a teoria recebida?
Um treinamento?
Afora todas essas questões pertinentes, o estágio é, a nosso ver, o elemento central e integrante no
processo de formação profissional, aqui, de modo particular, na formação profissional do professor de
história. Ou, ao menos, deveria sê-lo.
Entretanto, nos adverte Pimenta: “(...) não se pode colocar o estágio como polo prático do curso, mas
como uma aproximação à prática, na medida em que será consequente à teoria que será estudada no
curso, que, por sua vez, deverá se constituir numa reflexão sobre e a partir da realidade da escola.”
(2006, p.14)
Mas, e essa questão da prática? Como a podemos conceber melhor para aventarmos seu uso no
campo da formação do professor de história? Se a concebermos enquanto experiência e vivência
laboratorial da docência, já teremos começado com o pé direito. E nesse nível, preocuparmo-nos como
será feita a transposição de forma acessível aos alunos do ensino fundamental e do ensino médio, melhor
ainda.
Ou seja:
A formação de professores e a sua prática não podem mais ser consideradas executoras de
modelos, de decisões alheias, e sim capazes de analisar, decidir, confrontar práticas e teorias,
produzir novos conhecimentos referenciados ao contexto histórico, escolar e educacional.”
(BARREIRO e GEBRAN, 2006, p. 27)
Nesse ínterim, precisamos ter bem claro em nossa mente que a prática docente está intimamente
ligada aos saberes e fazeres que ultrapassem as fronteiras dos conhecimentos específicos em história. A
teoria deve estar à disposição da formação docente, munindo-o de elementos e pontos de vista para
efetivar e executar uma ação contextualizada, dar vazão a uma capacidade de fazer análises e de
compreensão dos contextos históricos, sociais e culturais, sejam eles em nível local e macro.
Aliás, a regionalidade ou tendência a isto é rechaçada pela maioria dos docentes que compõem o
quadro do curso. Em tese, ou por lhe propugnarem uma concepção mais holística ou por encontrarem
dificuldade de atuar na particularidade de forma universal.
Em linhas gerais, o estágio em história deveria se pautar pelo tripé: interatividade, cotidiano e
competência profissional. Não há como dissociar teoria e prática. Na prática formativa, efetivamente,
teorizamos mais e praticamos menos. Nesse sentido, nosso exercício profissional como professor de
história estará mil anos-luz de uma práxis transformadora pretendida. E nessa toada, ele jamais será
capaz de atender às demandas de uma realidade que se faz nova e diferente a cada dia, de forma intensa e
instantânea.
No campo da competência profissional, permita-nos ilustrar com a seguinte assertiva:
(...) O trabalho docente competente é um trabalho que faz bem. É aquele que o docente mobiliza
todas as dimensões de sua ação com o objetivo de proporcionar algo para si mesmo, para os
alunos e para a sociedade (RIOS, 2001, p. 107).
Se entendermos que a identidade do professor de história é construída no decorrer do exercício da
sua profissão, efetivamente, ressaltamos que é durante a sua formação que ele deverá encontrar os
elementos necessários à sua construção identitária enquanto docente. Um curso de formação,
necessariamente, comprometido com isto será mais fadado ao sucesso do que a limites e incongruências.
Frente ao exposto até o momento, permita-nos levar a discussão da prática de ensino de história,
mais de perto, para a formação do professor de história sob as lentes que escolhemos para apreendê-la:
ainda que não seja uma pauta polêmica, ao menos pretenda ser inquietante e provocativa.
Vejamos.
Em 1993, tivemos acesso a uma obra que marcou o cenário das discussões sobre a formação e o
ensino no Brasil. Se você finge que ensina, eu finjo que aprendo, de autoria de Hamilton Werneck, a
qual alcançou um sucesso editorial impressionante, sendo referência até a presente data para se discutir,
com esgarçadura, as mazelas de nossa educação brasileira.
Vejamos o que diz o autor a respeito da pedagogia do fingimento:
(...) Trata-se de um método simples de representação, na realidade há pouco trabalho e nenhum
comprometimento, há, no entanto, a total burla do necessário e de qualquer espécie de trabalho
duro na direção de um aprendizado capaz de garantir o domínio do assunto em pauta (1993, p.
13).
Para, enfim, refletirmos sobre os limites e as incongruências da formação do professor de História
no Brasil e, de modo particular, no Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de
Sergipe, pautar-nos-emos por três postulados defendidos por Hamilton Werneck, a saber:
Postulado 01:
A educação convive com um problema antigo, que parece resistir a todos os avanços tecnológicos
disponíveis para a prática pedagógica. De um lado, ainda há professores que fingem ensinar,
cobrando pouco de seus alunos ou ensinando sem se preocupar com o aprendizado efetivo. De
outro, persistem alguns alunos que parecem não se importar em não aprender. Como resolver esse
impasse? (2011).
Postulado 02:
Um professor despreparado pedagogicamente que ensine um conteúdo acima da capacidade
psicológica da criança, mesmo trabalhando bem as suas aulas que podem representar um alto
padrão de eficiência, ou seja, fazer bem feito, pode estar fingindo ensinar, porque as crianças não
conseguirão aprender. Faltou a esse profissional a eficácia que significa fazer o que deve ser
feito. Portanto, sem eficácia sempre haverá fingimento (2011).
Postulado 03:
O salário é baixo e a motivação do professor também, consequentemente a educação; e os alunos,
diante de seu tumulto interior são obrigados a aprender em um ambiente onde varia em
extremismos o contexto da aula devido ao humor do professor. Sem se estabelecer metas e rumos
a educação tende a tornar-se um processo falho tanto para os alunos quanto para os professores,
que dentro deste contexto estão negando sua capacidade de ensinar (2011).
Dentro de um horizonte de expectativa positiva, o cenário de nossa formação será melhor quando
nada for mais importante, em termos profissionais do que conhecer o que se faz e fazê-lo bem, com
domínio de causa e dedicação a esta. Até porque, construímos nossa visão de mundo e nosso
entendimento sobre as coisas, inseridos numa conjuntura histórica, as quais norteiam não só nossas
atitudes, bem como nossas concepções e entendimentos.
Nesse sentido, vale pensar sobre o que se pede, o que se espera e o que se tem no que tange à
formação de professor de História não só em Sergipe, mas no Brasil. Do professor hoje se espera que ele
preze por três aspectos fundamentais: domínio de conteúdo, conhecimento e utilidade de práticas
pedagógicas e habilidade didática.
Atrelado a isso, também se torna imprescindível, nos dias de hoje, com a renovação do ensino e por
força da nova realidade de alunos e condições de todas as ordens, dominar não somente a teoria, mas
também as habilidades de pesquisa.
O professor do tempo presente deve proceder como a um relações públicas, levando seu aluno a
nutrir um sentimento de pertencimento ao conteúdo ministrado, intimamente envolvido por este, ao
tempo em que ele aprende a ler as coisas em sua volta com mais desenvoltura e discernimento.
Um professor mal preparado e desmotivado não consegue dar boas aulas nem com o melhor dos
livros, ao passo que um bom professor pode até aproveitar-se de um livro com falhas para
corrigi-las e desenvolver o velho e bom espírito crítico entre os seus alunos (PINSKY, 2005, p.
22).
Somos partidários da chamada pedagogia da sensibilidade (2012), proposta por Marcus de Mario.
O autor se utiliza dos preceitos morais, a fim de proporcionar elementos que estruturem a construção do
caráter dos indivíduos. Trata-se de processo construtivo, em que pais e educadores devem respeitar a
sensibilidade de cada sujeito.
Na educação, a sensibilidade deve estar acima de quaisquer preceitos morais. Trata-se de um fio, de
um elo, que nos religa ao sujeito aprendiz por meio do treino da percepção do outro. Para educar não
existe nada que não seja ou possa ser ferramenta de educação. A sensibilidade permite ao educador
perceber que tudo pode estar a serviço da educação e da necessidade de educar. Para isso, é preciso
estar com as janelas de sua mente e de seu coração bem abertas.
Como uma última assertiva reflexiva, o que dizer dos sobreviventes, daqueles cujas experiências de
formação, com deficiências ou não, seguem firmes na profissão?
Para tanto, parece-nos muito salutares as ponderações e experiências compartilhadas pelo
historiador Leandro Karnal, em seu livro “Conversas com um jovem professor”. A pergunta é muito
sugestiva e pode lançar luzes sobre as questões que vimos expondo até então: “por que continuo sendo
professor?” (KARNAL, 2015, p. 121).
Para o autor, em princípio, é a persistência da dúvida que impede a resolução de largar qualquer
coisa. Como historiadores, temos consciência de que o quadro de formação, no escopo dos estágios
supervisionados, é limitado e falho, que a realidade não é animadora em seu todo, mas as experiências
apontam que um futuro pode ser promissor, se os esforços se concentrarem no sentido da coletividade, do
comprometimento e da sistematização eficiente.
Alguns dos depoimentos dos alunos egressos e que seguiram na profissão atestam que a superação
das dificuldades esteve entre as atitudes mais promissoras e que tornaram, também, promissores seus
caminhos na docência de ensino de história. Não se trata de um apostolado ou uma vocação, mas de algo
mais.
Vejamos o que diz Karnal a respeito:
(...) nós, professores, reclamamos muito da nossa profissão. Reconheço: há certo narcisismo em toda
reclamação. Nossa vaidade exige que até os nossos problemas sejam os maiores do mundo. Ninguém
sofre tanto como o professor, pelo menos na nossa versão de professores. É preciso um pouco de
perspectiva” (KARNAL, 2015, p. 124).
Em que pese às considerações aqui expostas, entendemos que nossas universidades devem,
urgentemente, reinventar a formação de seus professores. Embora se saiba que mais da metade dos
egressos em cursos de licenciatura não tenham a mínima ideia da escolha, escolhe-no por inumeráveis
motivos, menos pela aptidão à docência.
Referências
Legislação
Cartilha esclarecedora sobre a lei do estágio: lei nº 11.788/2008 – Brasília: MTE, SPPE, DPJ, CGPI,
2008.
Constituição Federal 1988.
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - 9.394/96 (LDBEN-1996).
Parecer CNE/CP 9/2001 e do Parecer 27/2001.
Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) 0492/2001.
PARECER N.º: CNE/CES 492/2001.
RESOLUÇÃO CNE/CES 13, DE 13 DE MARÇO DE 2002.
Resolução CONEPE/UFS nº 65/2011.
Bibliografia
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articulador da formação do professor. IN: BARREIRO, Iraíde Marques de Freitas; GEBRAN, Raimunda
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2006.
BITTENCOURT, Circe Maria F. Ensino de história: Fundamentos e Métodos. São Paulo, Cortez: 2005.
IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. 8
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KARNAL, Leandro. Conversas com um jovem professor. São Paulo: Melhoramentos, 2015.
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PIMENTA, Selma Garrido. O estágio na formação docente: unidade teoria e prática? 7 ed. São Paulo:
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PINSKY, Jaime.; PINSKY, Carla B. O que e como ensinar: por uma história prazerosa e consequentes.
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RIOS, Terezinha de Azeredo. Compreender e ensinar: por uma docência de melhor qualidade. São
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TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002.
WERNECK, Hamilton. Se você finge que ensina, eu finjo que aprendo. 24 ed. Petrópolis/RJ: Vozes,
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______. Ensinamos demais e aprendemos de menos. 22ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2011.
Eletrônica
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Base Curricular Nacional. In: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/documentos/BNCC-
APRESENTACAO.pdf. Acessado em 25 de janeiro de 2016.
Sobre o autor
Claudefranklin Monteiro Santos é doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco.
Professor do Departamento de História, do Programa de Pós-Graduação em História e do Profhistória da
Universidade Federal de Sergipe. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Culturas, Identidades e
Religiosidades (CNPq/UFS).
CAPÍTULO 14
Introdução:
A
o longo da história, a humanidade vem procurando caminhos que levem os homens a uma
melhor condição de vida. Nessa trajetória, a educação ocupou lugar de destaque. Dentre as
muitas concepções e finalidades, destaca-se a educação como fenômeno de inclusão. De
acordo com Mendes (2006), o princípio da inclusão passa a ser defendido como uma proposta de
aplicação prática na educação, que implica na construção de um processo bilateral, no qual as pessoas
excluídas e a sociedade buscam, em parceria, efetivar a equiparação de oportunidades para todos,
construindo uma sociedade democrática. Nela, todos conquistariam a cidadania, a diversidade seria
respeitada e haveria aceitação e reconhecimento político e social das diferenças.
A luta pelos diretos humanos é contígua à própria história da humanidade. Resguardadas as
contradições inerentes ao iluminismo e, por conseguinte, à revolução francesa, há que se reconhecer que
é a partir daí que se dará a consagração dos ideais de igualdade e liberdade para todos os homens e
mulheres. Com a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que enfatiza o
reconhecimento da dignidade de todo ser humano e dos seus direitos iguais e inalienáveis, confirma-se
que o respeito a todo ser humano é uma reivindicação que perpassa a história da humanidade.
Nesse contexto, a luta pela educação escolar como um direito inerente ao desenvolvimento humano
não é recente, e vem ganhando mais força no ambiente das políticas públicas com a publicação da
Declaração de Salamanca (1994). Este documento aponta, com clareza, os contornos de um modelo de
escola inclusiva, o qual vem conquistando relevância na agenda dos debates e das práticas educacionais
por oportunizar, conforme Ferreira (2007), a participação das minorias sociais em ambientes antes
reservados apenas àqueles que se enquadravam nos ideários preestabelecidos e perversos de força,
beleza, riqueza, juventude, produtividade e normalidade. Essa assertiva expõe o conflito entre distintos
modelos de sociedade: um produtor da exclusão e outro baseado na equidade. A travessia para uma
sociedade mais humanizada está associada à consolidação de uma escola inclusiva, entendida como o
lócus adequado para “constituir consciências críticas, efetivamente autônomas e criativas, capazes de
construir sociedades mais justas – voltadas para a solidariedade e o respeito pelo outro” (FERREIRA,
2007, p. 553). Nessa perspectiva, e somado ao disposto na Declaração de Salamanca, este escopo de
educação escolar é um direito inalienável de todos, que deve oportunizar aprendizagens significativas,
independentemente de diferenças individuais, respeitados os interesses, as necessidades e os talentos
próprios de cada um.
Os esforços pela superação da exclusão social e os debates acerca de um modelo de educação
vocacionado com a inclusão de todos no ambiente escolar datam de séculos. Ao revisitar a clássica
literatura da educação, vê-se que Comenius (1592-1670), na Didática Magna, apresenta um paradigma de
escola para todos, sem excluir ninguém; Condorcet (1743-1794), na obra Cinco memórias sobre a
instrução pública, destacadamente na primeira carta, defende a instrução pública como um dever do
estado e sempre orientada para a superação da desigualdade; e Pestalozzi (1746-1827), nas Cartas sobre
educación infantil, apresenta forte preocupação com a educação das classes populares.
Ao se fazer o entrecruzamento entre os olhares de Comenius, Condorcet e Pestalozzi, dá para notar
que são convergentes, ao tecerem uma forte crítica aos princípios e finalidades da escola dos séculos
XVI ao XVIII. Esta escola se configurava como predominantemente privada, ainda reservada aos
integrantes das classes abastadas, aos homens e aos ditos normais. Dela, estiveram excluídos os pobres,
as mulheres e as pessoas com deficiências. Para além das críticas, nos escritos desses pensadores,
encontram-se elementos que apontam para a formulação de um modelo de escola. Este modelo tem como
princípios: a universalização – educação para todos; a integralidade - educação comum; e a diversidade
– centrada nas diferenças. O conjunto desses princípios, mobilizados articuladamente, constitui o eixo
estruturante de um paradigma educacional menos excludente. E desses pensadores pode-se extrair os
fundamentos para a formulação do conceito de escola inclusiva, entendida como
uma escola de qualidade para todos, uma escola que não segregue, não rotule e não “expulse”
alunos com “problemas”; uma escola que enfrente, sem adiamentos, a grave questão do fracasso
escolar e que atenda à diversidade de características do seu alunado (CARVALHO, 2012, p. 96).
Dito de outro modo, e nesta perspectiva, na escola inclusiva, não existe a figura do aluno de ninguém.
Nela, cultiva-se o esforço permanente de reafirmação da identidade de cada pessoa que ali se encontra.
Sendo um tempo/lugar marcado pelo coletivo, a individualidade não ocupa atenção secundária. O esforço
é pela promoção de uma educação que não deixe ninguém para trás, a despeito das diferenças individuais
que, em síntese, caracterizam a espécie humana. Em outras palavras, deve-se ter em mente que, “subindo
por degraus devidamente dispostos, nivelados, sólidos e seguros, quem quer pode ser conduzido a
qualquer altura” (COMENIUS, 2002, p. 49).
Cabe salientar que os pressupostos de uma escola inclusiva, identificados nos postulados teóricos de
Comenius, Condorcet e Pestalozzi, convergem com a atual noção de escola inclusiva. Em suas
formulações teóricas, constam proposituras de construção de um modelo orgânico de educação. Nelas
não se vê a indicação de dois paradigmas de educação escolar distintos. Nestes escritos, resguardado o
contexto de sua elaboração, constam que a escola se constitui num bem social e deve ser acessível a
todos, em todas as formas e níveis. Todas as manifestações escolares, todos os usuários dos bens e
serviços promovidos pela escola, todos os objetivos e finalidades devem convergir para que “[...]se
construa uma escola para a educação comum[...]” (COMENIUS, 2002, p.36).
Os postulados teóricos herdados desses pensadores exerceram muitas e profundas influências na
educação ao longo dos últimos cinco séculos. Resguardadas as tensões entre o proselitismo e o laicismo,
a fé e a razão, o público e o privado, as suas contribuições serviram ora para denunciar, ora para
anunciar caminhos e descaminhos da/para a escola. Suas inquietações acerca da educação resultaram em
formulações sobre a concepção de educação, de escola, de função social, de finalidade, princípios e
procedimentos didáticos que favoreceram um movimento de profundas e significativas transformações
neste espaço chamado escola. E é sobre algumas dessas contribuições que passaremos a discutir de modo
mais detido.
Últimas considerações
Ainda hoje persiste uma variação de concepções e projetos educacionais em disputa. A luta por um
modelo de escola que parta da desigualdade, comprometido com o pleno desenvolvimento das múltiplas
capacidades individuais e orientado para a formação de mentalidades independentes, continua sendo um
desafio contemporâneo. Conforme atestam as obras dos clássicos, um mundo melhor para todos está
diretamente remetido a uma educação humanizadora, emancipatória e solidária.
Ademais, resta esclarecer que a complexidade que circunda a escola inclusiva transcende os
pressupostos de universalização, de integralidade e de diversidade, abordados neste capítulo. A escolha
em refletir somente sobre estes três aspectos orientou-se, predominantemente, pelo fato de eles serem
explícitos e convergentes nas formulações dos clássicos em epígrafe. Além deles, os estudos de Beyer
(2005), Mendes (2006), Ferreira (2007) e Edler (2009) constituem uma sólida base teórica para o campo
da educação inclusiva e acrescentam, dentre outros princípios, a interdisciplinaridade, a ênfase na
eficiência em detrimento da deficiência e os métodos pedagógicos centrados na aprendizagem. Dessa
tessitura forja-se o modelo de escola inclusiva, pretexto deste capítulo.
Referências
BEISIEGEL, Celso de Rui. Educação e sociedade no Brasil após 1930. In: Fausto, B. (Org.). História
geral da civilização brasileira. São Paulo: DIFEL, 1986.
BEYER, Hugo Otto. Inclusão e avaliação na escola: de alunos com necessidades educacionais
especiais. Porto Alegre: Mediação, 2005.
CARVALHO, RositaEdler. Escola inclusiva: a reorganização do trabalho pedagógico. Porto Alegre:
Mediação, 2012.
COMENIUS, John. Didática Magna. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
CONDORCET, Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, Marques de. Cinco memórias sobre a instrução
pública. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
DECLARAÇÃO DE SALAMANCA: Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades
Educativas Especiais, 1994, Salamanca-Espanha.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível
http:www.ohchr.org/EN/UDHR/Documentos/UDHR. Acesso em 22 de janeiro de 2016.
CARVALHO, RositaEdler. Educação inclusiva: com os pingos nos “is”. Porto Alegre, Mediação, 2009.
ESCUDERO, Juan M. GONZÁLEZ, María T. Profesores e escuela: hacia una reconversiónde los
centros y la docente? Madrid: Ediciones Pedagógicas, 1994.
FERREIRA, M. E. C. O enigma da inclusão: das intenções às práticas pedagógicas. Educação e
Pesquisa, São Paulo, v. 33, p. 543 -560, set./dez. 2007
GONZÁLEZ, José Antonio Torres. Educação e diversidade: bases didáticas e organizativas. Porto
Alegre: ArtMed, 2002.
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2002
LIBÂNEO, José Carlos (Org.). Educação escolar: políticas, estrutura e organização. São Paulo: Cortez,
2003.
MELLO, Guiomar Namo de. Cidadania e competitividade: desafios do 3º milênio. SãoPaulo: Cortez,
2002.
MENDES, Enicéia Gonçalves. A radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil. Revista
Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33, 2006.
PESTALOZZI, Johann Heinrich. Cartas sobre educación infantil. Madrid: Editorial Tecnos, 2006.
VYGOSTKI, Los problemas fundamentales de la defectologia contemporânea. In: VYGOSTKI. L. S.
Obras escogidas, volume V, Madrid, 1997.
Sobre os autores
Verônica dos Reis Mariano Souza é Doutora em Educação e Professora do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe.
José Adelmo Menezes de Oliveira é Mestre em Educação Tecnológica. Professor do Instituto
Federal de Sergipe e doutorando em Educação na Universidade Federal de Sergipe.
CAPÍTULO 15
Fragmento da carta de despedida escrita por Eva Modvál a sua boneca Gertá. Yad Vashem/Israel
Uma das ferramentas muito utilizada pela International School for Holocaust Studies para o ensino
do Shoah é a imagem. É o caso do material didático para crianças de seis a nove anos de idade que
tenham conhecimento prévio sobre o Shoah: “Uma infância presa na dor: uso criativo das imagens na
sala de aula”7, de autoria de Liz Elsby.
Na primeira parte da aula, os alunos irão entrar em contato através da arte com a história de Hava
Wolf, uma criança judia durante o holocausto, artista e sobrevivente, analisarão algumas de suas pinturas
e observarão o uso original da cor, simbolismo e composição. Na segunda etapa da aula, eles podem
expressar seus símbolos, cores, formas e composição pessoal através de seus próprios desenhos.
Nesse sentido, aqui está expresso mais uma característica da filosofia do Yad Vashem no tocante ao
ensino da História do Shoah. Neste nível de ensino, é de imprescindível importância o envolvimento da
arte, da literatura, do cinema e da música como mecanismo didático.
A imagem acima, de título “A festa de aniversário que nunca tive”, é um dos quadros utilizados nesse
material didático para o ensino do Shoah. Retrata o mundo da fome, da pobreza e da doença em que o
artista viveu. A autora da pintura explicita a necessidade que sente de comemorar cada um dos seus
aniversários com os entes queridos após o Holocausto. Como proposta de atividades estão perguntas que
estabelecem comparações entre o durante e depois do Shoah.
Em última instância do ciclo educativo proposto pelo YadVashem está o secundário. Nesse sentido,
as atividades de propostas são de maior complexidade e envolvem temas mais duros à comunidade judia.
Neste trabalho, analisaremos o material “Sete poemas, sete pinturas: guia didático para a análise de
uma seleção de poemas sobre o Holocausto. ”8 Para o YadVashem, a proposta de utilizar poesia no
ensino/estudo do Shoah é por acreditar que é mais eficaz para despertar o interesse histórico. “A
dimensão humana, que é muitas vezes o foco da poesia, é mais atraente que o relato histórico impessoal.”
Entre os objetivos de se trabalhar com poemas estão a necessidade de examinar o problema da
identificação judaica pós Holocausto e de incentivar o estudo do tema através da poesia e da arte em
geral.
Neste material foram elencados sete poemas, e a cada um vinculada uma imagem que busque retratar
o sentimento do artista ao lê-lo: Si esto es un hombre (Primo Levi), Herencia (Hayim Gouri), Salmo
(Paul Celan), La mariposa (Pavel Friedman), Si acaso (Wislawa Szymborska), Escrito con lápiz en el
vagón sellado (Dan Pagis) e Primero vinieron por los judíos (Martin Niemöller). Através dos poemas
são tratados os diversos temas, tais como a importância de transmitir o que aconteceu às gerações futuras,
como o caso do poema de Primo Levi; a identidade judia, no poema de Hayim Gouri; e os observadores
passivos, como encontrado no poema de Martin Niemöller.
A literatura acerca do Shoah é crescente, os materiais didáticos produzidos pelo YadVashem buscam,
em alguma medida, uma nova concepção de ensino, em que o aluno esteja diretamente envolvido com o
conteúdo que está sendo trabalhado, fazendo-os participar do processo de ensino e do estabelecimento de
comparações entre diferentes tempos históricos. Responsabilizar o aluno pela História e memória do
Shoah, além de fazê-lo participante, representa um rompimento com modelos há muito esgotados, a citar
a conceitualização vazia dos termos que servem apenas para transformar a História em uma disciplina
decorativa e incapaz de gerar o interesse no aluno.
A utilização de imagens e poemas abre um novo campo de ensino, demonstrando que não é
necessário usar as imagens tradicionais de pilhas de corpos empilhados, as quais servem apenas para
mostrar e perpetuar a dor, sem fazê-los sensíveis ao fato de que a negação da alteridade ainda se encontra
presente, em níveis diferentes, na nossa sociedade. A emergência de estudos que visem uma sociedade
livre de discriminação sempre será necessária enquanto continuarmos a assistir formas extremas de
negação da alteridade.
Referências bibliográficas:
ADORNO, Theodor. W. Educação e Emancipação. IN: Educação após Auschwitz. Trad. Wolgang Leo
Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terro, 1995.
BAUER, Yehuda. Reflexiones sobre el holocausto. Jerusalén: E. D. Z. Nativ Ediciones, 2013.
FERRO, Marc. A manipulação do ensino de história nos meios de comunicação de massa. São Paulo:
IBRASA, 1983.
GAY, Peter. O cultivo do ódio. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
GITZ, Ilton; PEREIRA, Nilton Mullet. Ensinando sobre o holocausto na escola. Porto Alegre: Penso,
2014.
GUTMAN, Israel. Holocausto y Memoria. Jerusalén: Centro Zalman Shazar de História Judia, 2003.
I Jornada interdisciplinar sobre o ensino da História do Holocausto de Curitiba. V Jornada
interdisciplinar sobre o ensino da História do Holocausto da B’nai B’rith do Brasil. Histórias de muitas
Vidas... metodologia e novas abordagens. Curitiba: 2008.
PAXTON, Robert. O. A anatomia do fascismo. Trad. Patrícia Zimbres & Paula Zimbres. São Paulo: Paz
e Terra, 2007.
Programa de Estudos Judaicos da universidade do Estado do Rio de Janeiro. Associação cultural B’nai
B’rith e a secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Jornada interdisciplinar sobre o ensino
do holocausto: educando para a cidadania e a democracia. 2009.
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Trad. Vera Ribeiro e Lucy
Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
SHAW, Martin. Qué es el genocidio? Buenos Aires: Prometeo, 2014.
Fontes:
“Você matou meu filho: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro /
Anistia Internacional”. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015.
Anistia Internacional: O jovem negro vivo. Relatório Anual da Anistia Internacional Brasil. In:
https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/, consultado em 18/01/2016.
http://www.yadvashem.org/yv/es/index.asp.
https://homofobiamata.wordpress.com/
Plan de lección que acompaña a la exposición itinerante de Yad Vashem: “No es juego de niños”. La
escuela internacional para el estudio del holocausto. Disponível em:
http://www.yadvashem.org/yv/es/education/lesson_plans/no_childs_play.as.
Plan de lección que acompanha el libro: ELSBY, Liz. “Uma infância presa na dor: uso criativo das
imagens na sala de aula.” Disponível em:
http://www.yadvashem.org/yv/es/education/lesson_plans/chava_wolf.asp .
Sete poemas, sete pinturas: guia didático para a análise de uma seleção de poemas sobre o Holocausto.
Disponível em: http://www.yadvashem.org/yv/es/education/lesson_plans/poems_paintings.asp .
Waiselfisz, J. J. Mapa da violência 2015: mortes matadas por armas de fogo. Brasília:
FLACSO/UNESCO, 2015.
Sobre os autores
Karl Schurster é Pós-Doutor em História. Doutor em História Comparada pela UFRJ. Professor do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Pernambuco. Atualmente é professor
visitante da Universidad Tres de Febrero no Centro de Estudios sobre Genocidio e realiza o segundo
estágio de Pós-Doutorado na Universidade Livre de Berlim. Esse texto é fruto da pesquisa Ensino de
História de Regimes Autoritários e Traumas Coletivos financiada pelo CNPq e pela FACEPE.
Alana de Moraes é mestranda no Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade de
Pernambuco. Graduada em História pela Universidade de Pernambuco. Pesquisadora no Laboratório de
Estudos do Tempo Presente – Núcleo UPE.
Notas
1. https://homofobiamata.wordpress.com/ “Quem a homotransfobia matou hoje? ” – Site que lista
diariamente os assassinatos cometidos contra a comunidade LGBT.
2. http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/31/politica/1464713923_178190.html . Acesso em:
07/06/2016.
3. No ano de 2015 foram publicados dois documentos que corroboram essa realidade, o documento
“Você matou meu filho”, da Anistia Internacional, e o Mapa da Violência de 2015, ambos denunciam o
uso da força e da violência, de natureza variada, como forma de ação da Polícia Militar nas comunidades
do Rio de Janeiro. “Você matou meu filho: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio
de Janeiro / Anistia Internacional”. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015. Waiselfisz, J. J. Mapa da
violência 2015: mortes matadas por armas de fogo. Brasília: FLACSO/UNESCO, 2015.
4. http://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/08/politica/1460132767_979858.html . Acesso em: maio de
2016.
5. Aqui temos uma reflexão que necessita ser feita e que foi primeiramente levantada pelo britânico
Martin Shaw: qual a importância de estudar os genocídios? Eles seriam capazes de resolver o problema
de desorientação sobre processos tão traumáticos para diversas sociedades de uma forma geral? Há,
aqui, uma advertência antes mesmo das respostas que necessitam ser dadas. Os estudos do genocídio e
mesmo o nosso caso em questão, o ensino desses traumas coletivos, pode tanto superar as questões de
desorientação sobre esses temas como pode também agravar esses traumas. Quando se estuda os
genocídos não é possível manter uma imparcialidade clara e objetiva dentro do processo histórico. Em
verdade, configura-se uma obrigação do pesquisador se colocar ao lado da vítima, mesmo procurando o
lugar de fala e as condições de produção dos perpetradores. De fato, as razões do ponto de vista ético
sempre se sobrepõem às outras quando se estuda o genocídio. Talvez seja a hora de atualizar novamente
a teoria criada pelo jurist Raphael Lemkin de que genocídio foi um processo exaustivo no qual um poder
atacou e destruiu os modos de vida e as instituições dos povos. Essa pode ser considerada uma definição
um pouco limitada tendo em vista as diversas realidades afetadas por esses duros processos históricos.
Muitas outras interpretações, como a do teórico Stevens Katz, apontam para o fato de que apenas a
intenção de extermínio total de um povo pode ser considerado genocídio, mesmo que essa intenção não
tenha sido plenamente levada a cabo. Para mais informações ver: SHAW, Martin. Qué es el genocidio?
Buenos Aires: Prometeo, 2014.
6. http://www.yadvashem.org/yv/es/education/lesson_plans/no_childs_play.asp. Acesso em: 10/07/2016.
7. http://www.yadvashem.org/yv/es/education/lesson_plans/chava_wolf.asp. Acesso em: 10/07/2016.
8. http://www.yadvashem.org/yv/es/education/lesson_plans/poems_paintings.asp. Acesso em:
10/07/2016.