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Organizadores:

Dilton Cândido Santos Maynard


&
Josefa Eliana Souza

História, Sociedade, Pensamento Educacional:


experiências e perspectivas

APOIO:
CNPq
FAPITEC
PPGED/UFS
EDITORA AUTOGRAFIA
Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.
Rua Buenos Aires, 168, 4º Andar ​– Centro
Cep: 20070-022
Rio de Janeiro

Capa: Leticia Quintilhano
Editoração eletrônica: Fabricio Vale

História, Sociedade, Pensamento Educacional: experiências e perspectivas
Maynard, Dilton Cândido Santos
Souza, Josefa Eliana
1ª Edição
Setembro de 2016
ISBN: 978-85-5526-754-3

Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Autografia.
PREFÁCIO

O livro História, Sociedade, Pensamento Educacional: experiências e perspectivas apresenta um


conjunto de textos que sinalizam avanços nos estudos sobre Educação e, ao mesmo tempo, apontam os
desafios a serem enfrentados. A obra é parte da coleção “Tessituras da Educação”, concebida pelo corpo
docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe
(PPGED/UFS), apoiada pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (POSGRAP) e pela Fundação
de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe (FAPITEC) através do edital
PRONEM 10/2011.
Nesta coletânea, reunimos pesquisadores que se diferem quanto às instituições de origem. Como
resultado desta diversidade, o leitor poderá encontrar uma riqueza de narrativas. Na obra, intelectuais,
instituições escolares, meios de comunicação e debates conceituais são as principais preocupações.
Porém, provavelmente, a maior característica do livro é a conexão de todos os textos com o cotidiano da
pesquisa na pós-graduação. Ao mesmo tempo, num movimento preocupado em evitar a endogenia,
pesquisadores de outras instituições colaboram com os docentes do PPGED/UFS. Assim, outras vozes,
outros espaços, outros olhares agregam valor e incrementam o diálogo ao conjunto de trabalhos aqui
organizados.
O terreno da História Cultural é comum à parte significativa dos historiadores da Educação. Neste
sentido, o texto de Renato Izidoro da Silva, Mariza Guimarães e Hamilcar Dantas Jr representa uma
contribuição proveitosa aos interessados em um mapeamento das reflexões em torno do conceito. O
mesmo pode ser dito sobre o texto de Dilton Maynard, no qual os principais traços da abordagem micro-
histórica do historiador italiano Carlo Ginzburg, frequentemente acionado pelos pesquisadores da
História da Educação, são apresentados.
No mesmo terreno, um exemplo de trabalho pautado pelas referências da História Cultural pode ser
observado no estudo sobre Vicente Themudo Lessa e sua contribuição para a consolidação do
protestantismo, tema do texto de Mirianne de Almeida, Ester do Nascimento, Ilka Miglio, Simone
Amorim e Tâmara Sales. Nele, as autoras buscam os indícios de caminhos trilhados, leituras feitas e
ações desenvolvidas pelo “leitor, o colecionador, o escritor, o pastor, o professor” e dono de um acervo
de centenas de impressos. O capítulo nos convida a refletir sobre as ressonâncias no campo religioso da
ação engajada de Lessa para difundir a sua fé e constitui um exemplo de como a abordagem biográfica
pode colaborar com os estudos em História da Educação.
Também em forte diálogo com a História Cultural e com a abordagem biográfica, a parceria entre os
pesquisadores João Paulo Gama e Eva Maria Siqueira Alves resulta no texto que investiga os
professores que supostamente deixaram “marcas na memória” do intelectual sergipano Felte Bezerra. A
abordagem da dupla permite uma instigante visita à História da Educação e leva o leitor às salas e aos
corredores do conceituado Colégio Tobias Barreto, instituição basilar na educação sergipana.
Compartilhando aspectos teóricos com o capítulo acima, bem como algumas das suas preocupações
com a biografia, Maria Neide Sobral aborda o itinerário de Mercedes Dantas em sua viagem de
divulgação dos ideais da Escola Nova. Poetisa, escritora, política, a professora Mercedes Dantas, em
1930, era comissionada pelo governo do Distrito Federal, viajou pelos estados do norte do Brasil para
divulgar os feitos em torno da Escola Nova e, também, para contribuir na instalação das chamadas
sociedades estaduais de Educação.
Itinerários biográficos e instituições também emergem no texto de Josefa Eliana Souza e Ane Rose de
Jesus Santos Maciel, que refletem sobre os percursos de três mulheres, três letradas, três intelectuais, até
o reconhecimento obtido através do acesso a instituições como a Academia Sergipana de Letras e a
Academia Brasileira de Letras. A partir dos casos de Carmelita Pinto Fontes, Núbia Marques e Raquel
de Queiróz as Maciel e Souza refletem sobre a força da dominação masculina no mundo letrado.
Também refletindo sobre o mundo das letras, mas com o olhar voltado a um estágio básico na
formação do cidadão capaz de ler, interpretar e escrever, Clotildes Farias de Sousa nos leva até os anos
de 1910, tempo em que as crianças de Sergipe ainda aprendiam a ler com o ABC, soletrando, em
constrangedor descompasso com as propostas pedagógicas para o ensino da leitura e da escrita mais
atuais para aqueles dias. A autora nos mostra como Adolpho Ávila Lima e Ítala Silva de Oliveira, duas
lideranças intelectuais apontaram uma saída possível ao problema da educação estadual com a adoção do
método analítico da leitura. O texto, assim, nos leva a acompanhar os rumos de um processo de
apropriação envolvendo conhecimento produzido com os estudos científicos europeus e norte-americanos
difundidos no Brasil no início do Século XX.
Assumindo abordagem distinta, mas com o mesmo olhar para os intercâmbios culturais, o rico debate
entre pesquisadores brasileiros e lusitanos aparece no texto de Eva Maria Siqueira Alves, Simone Paixão
Rodrigues e Margarida Louro Felgueiras, esta última docente da Universidade do Porto, que discute o
associativismo através do confronto das ideias de quatro intelectuais, a saber: Alexis de Tocqueville,
Max Weber, John Dewey e Adolfo Lima. As autoras ressaltam que os fundamentos do associativismo na
sociedade e na educação estão ancorados em princípios democráticos, nos quais a liberdade e a
participação social são colunas basilares no convívio social.
Semelhantemente transitando entre Brasil e Portugal, Luiz Eduardo de Oliveira investiga o
desenvolvimento, como espécie de discreta política de Estado, da anglofobia instigada por Sebastião de
Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. Baseado nas interpretações então correntes sobre os tratados
assinados com a Inglaterra em 1703, Pombal desenvolveu uma mitologia negativa da Inglaterra,
atribuindo à “má índole dos ingleses” grande parte dos males da economia lusitana. A anglofobia
pombalina, explica o autor, tornou-se, por assim dizer, uma razão de Estado.
Os capítulos restantes são experiências, mas que se preocupam em deixar abertas perspectivas de
pesquisa, horizontes que devem ser desbravados. No primeiro deles, Rafael Araújo apresenta
procedimentos de História Comparada para analisar a América Latina e sua relação com a política
universitária. O autor observa os casos de dois países que nos primeiros anos do século XXI
experimentaram transformações importantes em suas universidades. Assim, Brasil e Venezuela são postos
em destaque e comparações são realizadas de modo a entender os desdobramentos dos rumos assumidos
nas duas nações no trato com o Ensino Superior.
Em seguida, Joaquim Tavares e Rísia Monteiro analisam práticas educativas em um programa de
televisão. Os autores analisam como os conteúdos dos programas apresentados pela comunicadora
sergipana Nazaré Carvalho seguiam, em parte, o ideário moral e cívico exigido pelos órgãos oficiais nos
tempos da ditadura civil-militar.
Da TV para a internet e os novos meios e comunicação, Anita Lucchesi, que colabora a partir das
suas investigações na Universidade de Luxemburgo, e Marcella Albaine, refletindo a partir da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, teceram considerações sobre a chamada historiografia escolar
digital. As suas reflexões, nascidas nestes diálogos transoceânicos, nos colocam a pensar sobre: quais os
caminhos a serem trilhados pelos historiadores nos tempos digitais? Quais as limitações enfrentadas
pelos professores de História em meio aos suportes digitais? Como a narrativa histórica será afetada
pela emergência da internet? Estas e outras preocupações são levantadas no texto que, ao final, nos
relembra o caráter essencialmente humano da História e da Educação.
Já o relato de Claudefranklin Monteiro Santos, erguido da experiência do docente como professor da
disciplina Estágio Supervisionado, revela muito daquilo que chamamos “chão da escola”. O autor discute
as inúmeras dificuldades entre o que os dispositivos legais voltados para a formação do professor
pretendem e a experiência vivida em classe, apontando caminhos para a superação das dificuldades
observadas entre a teoria e a prática no campo do estágio em docência na formação do professor de
história. O aviso não poderia ser mais preocupante: as universidades devem reinventar a formação de
seus professores.
Outro problema situado entre a norma e a prática, a lei e a experiência, diz respeito ao debate sobre
inclusão. É neste âmbito que se situa o texto de Verônica Mariano Souza e José Adelmo de Oliveira. Os
autores nos lembram que a temática educação inclusiva não é nova e vem ganhando força através de
políticas públicas graças à publicação da Declaração de Salamanca (1994). O texto reforça a ideia da
luta por um modelo de escola que parta da desigualdade, comprometido com o pleno desenvolvimento
das múltiplas capacidades individuais e orientado para a formação de mentalidades independentes como
uma espécie de desafio contemporâneo.
Também abordando a delicada relação em lidar com temas complexos, delicados e traumáticos, os
professores Karl Schurster e Alana de Moraes advertem que o debate no Brasil acerca do ensino de
História dos chamados “traumas coletivos” é crescente, mas ainda é necessário estabelecer lugar de fala,
onde se possa historicizar o quanto desse passado ainda se torna presente ou mesmo o quanto desse
passado-recente teima em não passar. Os diferentes massacres como aqueles assistidos na Bósnia (1995),
Kossovo (1998) ou Ruanda (1994), entre tantos outros casos, se contrapõem à ideia de que o
conhecimento do Holocausto (ou Shoá) seria suficiente para cessá-los. Longe desta perspectiva,
Schurster e Moraes nos ensinam que é preciso estudar o que permitiu o assassinato sistemático de
milhões de indivíduos, pelo simples fato de serem o que eram, procurando reconhecer o que aprendemos
e o que fomos e somos capazes de ensinar. Diante do problema, os autores discutem o Holocausto, suas
justificativas e motivações, enfocando o papel da escola, dos textos e instrumentos didáticos, e como eles
têm sido utilizados na formação educacional das crianças e jovens.
Como se vê, o conjunto de textos aqui reunidos oferece um repertório diversificado de narrativas e
análise. Todavia, ao mesmo tempo, concebemos um trabalho cujo fio condutor é o debate entre
experiências que já se mostram consolidadas entre os estudiosos da História da Educação, do Ensino da
História, e os muitos desafios que ainda se desenham à nossa frente. As distintas tessituras sociais que a
Educação revela exigem olhares atentos, leituras múltiplas e vontade de romper fronteiras. Na obra aqui
apresentada, reunimos estudiosos que se propõem a encarar este admirável desafio.
Dilton Cândido Santos Maynard
Coordenador do Mestrado Profissional em História – ProfHistória – UFS
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação
Josefa Eliana Souza
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação
São Cristóvão, julho de 2016.
CAPÍTULO 1

NOVA HISTÓRIA CULTURAL E CURRÍCULO ESCOLAR: UMA


REVISÃO TEÓRICO-CONCEITUAL
Mariza Alves Guimarães
Renato Izidoro da Silva
Hamilcar Silveira Dantas Jr.

Introdução

E
studar a (o currículo da) disciplina (curricular da) Educação Física no ambito de uma
perspectiva da História nos remete aos pressupostos teórico-metodológicos responsáveis por
construírem as regras de análise e de síntese que sustentam o entendimento dos elementos que
constituem o olhar historiográfico e suas inclinações para este campo de pesquisa. Isso significa, de um
ponto de vista epistemológico contemporâneo, que a natureza de todo objeto de pesquisa científica é
formada tanto pelo pensamento quanto pela coisa pensada. Por conseguinte, compreender minimamente a
proposição de um objeto de estudo implica conhecer o sistema de pensamento que permitiu sua visada.
Metaforicamente, toda a visão do olho fisiológico acerca de um objeto depende de uma compreensão; de
modo que, se não há pensamento pode não haver visão, tampouco objeto visto.
Nesse sentido, falar em história significa entender que os fatos, os objetos, os conceitos tomados
como fenômenos externos ao pensamento dependem desse pensamento. Assim, o objeto visto não sofre
alterações por conta própria, mas suas mutações também se devem ao devir do pensamento. São,
portanto, objetos e pensamento, constituídos através de processos históricos, sociais, políticos,
econômicos, culturais e epistemológicos responsáveis pelas formas e conteúdos dos pensamentos e de
seus meios de recepçaõ e de expressão, tais como: a escrita, a pintura, a oralidade, a música, o cinema, o
jogo etc.. Pensar no campo da História diz respeito ao cumprimento de regras de raciocínio para “[...]
problematizar um objeto bem demarcado, criar hipóteses, testá-las. Depois, procurar articular um
discurso sobre este objeto em linguagem clara e comunicável”(REIS, 2010, p.12). Portanto, estar-se-ia
contribuindo para a materialização não apenas do objeto de estudo, mas da História enquanto campo
científico do pensamento teórico e metodológico.
Contudo, embora exista, de maneira mais clara e imediatamente apreensível (até mesmo pelo leigo)
as regras teóricas e metodológicas de pensamento que diferenciam a visão histórica (ou historiográfica)
de outra visão científica (sociológica ou biológica, por exemplo) acerca da construção de um objeto e
suas faces e propriedades; existem alguns diversos e conflituosos conjuntos de regras de pensamento
internas ao próprio campo disciplinar da historia, de modo que pensar historicamente um objeto implica
uma tarefa problemática, complexa, difícil e plural. Refletindo sobre a história do desenvolvimento do
campo disciplinar e científico da histórica se nota uma pluralidade crescente das perspectivas teóricas e
metodológicas responsáveis pela construção das condições subjetivas e objetivas dos processos de
tornar um objeto de estudo visível ou apreensível cientificamente pelo pensamento coletivo formado por
comunidades de pesquisadores.. Por esse motivo, a presente dissertação faz questão de evidenciar
detalhada e claramente suas regras de pensamento histórico (ou historiográfico), a nosso ver, os
fundamentos teórico-metodológicos da visão que compõem o objeto visto e expresso por nós.
Diante do exposto, demarcamos assertivamente que nosso ponto de vista histórico responsável por
projetar o objeto aqui proposto é o da chamada História Cultural; de modo que explicitaremos a seguir as
regras epistemológicas que regem seu pensamento ou o pensamento do pesquisador (historiador) lançado
a ver o mundo por suas “lentes” teórico-metodológicas. Concebida enquanto um paradigma, a História
Cultural tem suas raízes (históricas e filosóficas) no movimento intelectual, intitulado Escola dos
Annales, constituído no início do século XX com base nas reflexões epistemológicas e políticas de
importantes filósofos e historiadores.
A Escola dos Annales foi uma tendência historiográfica francesa que ganhou força entre as décadas
de 1920 e 1930, quando buscou ampliar o olhar da pesquisa histórica em direção a campos além da
esfera política, tais como atividades econômicas, organização social e psicologia coletiva. Trouxe novos
métodos e aportes teóricos para o campo do conhecimento humano. Enquanto escola, deve ser entendida
como “categoria que se relaciona a uma espécie de corrente de pensamento ou de práticas relativas a
determinado campo de saber ou de ação humana” (BARROS, 2012, p. 14). Caracterizado por um
programa de ação, uma identidade que se forma, um campo de escolhas (teóricas, metodológicas,
temáticas, éticas) que permite ao seu praticante se sintonizar com os outros que a ele se assemelham nas
mesmas escolhas.
Os historiadores dos Annales compartilhavam um programa em comum. Dentre os quais se tem a
interdisciplinaridade, entendida como “interação entre disciplinas” (BARROS, 2012, p. 104). A
ampliação de campos interdisciplinares, o que possibilitou à História apropriar-se gradualmente de
diversos tipos de fontes (ultrapassando os horizontes da documentação oficialmente escrita) e aos
historiadores abrir seus horizontes interdisciplinares, ampliar seus objetos de estudo e poder trabalhar
com novos tipos de fontes e de problemas. (Fato que nos dá a possibilidade de estudar o currículo para
além do que está descrito na documentação oficial).
Outro ponto comum ao programa era o entendimento da história apartir da ideia da História-
Problema. Buscava-se um olhar que não se limitava à narrar fatos e/ou expor informações de maneira
descritiva; queria-se “reconstruir o vivido a partir de problemas e motivações da época do próprio
historiador” (BARROS, 2012, p. 133). A partir daí, o documento por si só não servia para descrever o
fato histórico, “é o problema proposto pelo historiador, o recorte histórico por ele construído”
(BARROS, 2012, p. 136) que fará com que os documentos possam dizer algo à História.
Assim, não interessaria aos historiadores apenas as fontes oficiais, fontes políticas e tradicionais.
Com os Annales houve uma ampliação do campo do documento histórico e das fontes históricas. E todo
vestígio dos objetos da cultura material poderia ser usado pelos historiadores. Problematizar a história
foi uma forma de “expandí-la e tematicamente, diversificá-la, ampliar sua complexidade e multiplicar as
perspectivas historiográficas” (BARROS, 2012, p. 140). De acordo com Burke (2010, p. 08), naquele
momento histórico, havia também “a necessidade de ir buscar junto a outras ciências do homem os
conceitos e os instrumentos que permitiriam ao historiador ampliar sua visão de homem”.
Numa Escola, e na dos Annales, não se deu de forma diferenciada; seus componentes se orientam por
princípios em comum ou até compartilham um mesmo programa, mas não precisam ser iguais ou utilizar
teoria e metodologias iguais. O que se propõe é um determinado “modo de agir” (BARROS, 2010, p.
19). O que fez com que seus historiadores não constituíssem um paradigma teórico e metodológico único.
Percebe-se que a Escola dos Annales transcende os paradigmas e possui, em seus quadros, historiadores
ligados a paradigmas ou combinações paradigmáticas distintas. A palavra Escola refere-se “à adoção de
um “programa” em comum, à criação de certos meios de intercomunicação e de difusão externa das
idéias e trabalhos dos seus membros, ao esforço de reconhecimento recíproco entre os participantes da
escola, à formação de um grupo e de uma identidade própria” (BARROS, 2012, p. 33)
Os historiadores dos Annales apresentaram um programa de ação, constituíram um meio de
divulgação para suas idéias e reconheceram-se como grupo. Para divulgar seus novos olhares, seus
idealizadores criaram a Revista dos Annales, com o objetivo de “promover uma nova espécie de historia
e continua, ainda hoje a encorajar inovações” (BURKE, 2010, p. 12). Buscou-se substituir a narrativa de
acontecimentos, já consolidados, pela história problema, a história política pela história das atividades
humanas. E assim, dar “identidade a esta escola em relação a um grupo de historiadores” (BARROS,
2012, p. 30)
O movimento dos Annales foi organizado por homens que deram novos olhares à historiografia,
estes, em diferentes períodos, orientaram a forma de ver a História, deram vida e contribuíram com suas
obras e ações. A primeira fase (1920-1945) teve inicialmente dois líderes: Lucien Febvre e Marc Bloch.
Suas idéias tinham o objetivo de renovar a historiografia, através de uma mudança de olhar para o que
era produzido na História. Queria-se uma História diferente da história tradicional, da história política e
da história dos eventos. Foi um período de oposição ao paradigma positivista que já não encontrava
realizações no âmbito da historiografia (BARROS, 2012).
O período vivido por eles, pós-guerra, deu espaço para o desenvolvimento de novas idéias e novos
olhares. Era um momento de “disputa de territórios dentro e fora das instituições historiográficas”
(BARROS, 2012, p. 89). Febvre e Bloch tinham idéias com um mesmo direcionamento, mas em alguns
momentos buscavam organizar-se de forma diferenciada. Febvre buscou embasamento na sociologia,
Bloch utilizou elementos da geografia e da historia comparativa, com intuito de constatar as diferenças
existentes entre os fatos sociais.
Marc Bloch traz um novo olhar para a definição de história, antes entendido como o estudo do
passado humano. Com ele, a história passou a ser vista como a ciência dos homens no tempo. Assim, o
historiador deveria estudar o homem “imerso na temporalidade, vivendo o tempo, percebendo o tempo,
produzindo o tempo” (BARROS, 2012, p. 183). Um ponto importante desde período foi a criação da
Revista Annales em 1929, a chave para caracterização do movimento dos Annales, bem como primordial
para apresentar os novos olhares para a historiografia. Tinha o objetivo de difundir uma nova abordagem
(interdisciplinar) de história, na qual o campo social e econômico era também observado (Burke, 2010).
Tanto Febvre como Bloch defendiam a interdisciplinaridade e a história problema como base desta
nova forma de produzir história. Com a história problema poder-se-ia “reconstruir o vivido a partir de
problemas e motivações da época do próprio historiador” (BARROS, 2012, p. 133), indo contra à
factualidade, à narrativa linear e à restrição temática vivenciada na história política tradicional. No
período entre 1930 e 1940 Febvre escreveu acerca do novo tipo de história, baseado na “pesquisa
interdisciplinar, por uma história voltada para problemas, por uma história da sensibilidade” (BURKE,
2010, p. 42).
Tanto Febvre como Bloch tiveram influência das idéias de Marx e Michelet (sec. XIX). De Marx
eles observaram “a possibilidade de enxergar a História como um grande dever de estruturas de longo
termo” (BARROS, 2012, p. 224) e de Michelet, a “possibilidade de investir na multiplicação temática,
na ultrapassagem do estreito universal de temas que eram oferecidos pela História Política Tradicional,
no desprezo pela parcelarização positivista do saber que logo obrigaria ao contramovimento da
interdisciplinaridade” (BARROS, 2012, p. 224).
A partir da primeira geração dos Annales a história de vida passou a servir como caminho para
examinar um problema histórico, houve uma valorização do quadro geográfico, a história problema
passou a ser utilizada em contraposição ao modelo historiográfico factual; a interdisciplinaridade passou
a ser a base para se produzir a “História Total” difundida por eles. Essa nova forma de fazer história
tinha um olhar longo, capaz de alcançar grandes extensões de tempos e espaços. Buscou produzir uma
história que a todo momento está em construção, que não pretendia encontrar verdades definitivas, mas
sim “constituir uma verdade histórica relativa aos pontos de vista que a revelam” (BARROS, 2012, p.
241).
Desejou-se criar uma Nova História, diferenciada da vista nos padrões historiográficos do período.
Uma história com conhecimento cientificamente produzido (Frebvre), uma ciência dos homens no tempo
(Bloch), que está sempre em construção. No aspecto metodológico, abrem espaço para utilização de
novas fontes históricas, tais como testemunhos, documentos, discursos, relatos, depoimentos orais.
Chamam a atenção para o que a Cultura Material informa, os modos de pensar e de sentir, que atravessam
as informações voluntárias trazidas no documento.
Assim, chamam a atenção para compreender que “os documentos não falam, senão quando sabemos
interrogá-los” (BLOCH, 2001, p. 79) (BARROS, 2012, p. 255). Para eles, a história não seria apenas “o
registro de uma sequência de acontecimentos a partir apenas dos documentos escritos” (BOURDE &
MARTIN, 2010, p. 121), para fazer Nova História teria-se que usar os documentos não escritos, as
ciências vizinhas, para assim criar uma história total capaz de abordar todos os aspectos da atividade
humana.
A Segunda Fase (1946-1969) teve como idealizador Braudel. Este buscou fazer uma história do
homem e do ambiente, do homem em relação ao seu meio. Nesse período tivemos uma ampliação e
expansão da influência dos Annales no mundo ocidental. Sua maior contribuição foi transformar as
noções de tempo e de espaço dos historiadores (Burke, 2010). O tempo histórico era visto por ele
subdividido em tempo geográfico, social e individual. E os fatos poderiam ser historicizados através da
interação do tempo, do meio, da economia, da sociedade, da política, da cultura e dos acontecimentos.
Braudel utiliza o modelo estrutural e incorpora o conceito de longa duração ao fazer histórico. Para
Braudel, a História seria uma “complexa ciência do geral, orientada por uma abordagem globalizante,
que seria capaz de organizar as demais ciências sociais a partir de sua própria centralidade” (BARROS,
2012, p. 268). Fato que reforça o caráter de interdisciplinaridade defendido pelos Annales. A idéia de
História Total proposta pelos Annales, em Braudel é vista como a história do todo ou a história de tudo,
de tudo o que se deseja compreender historicamente. É uma “História Total a partir de uma história do
todo” (BARROS, 2012, p. 277), onde passamos a ter a articulação do social (economia, cultural,
política, mentalidades, crenças, manifestações) e uma ampliação do campo de possibilidades de estudos
históricos.
Braudel situa a história em relação ao tempo em três escalões: “a superficial, de acontecimentos que
se inscreve no tempo curto. A meia encosta, uma história conjuntural que segue um ritmo mais lento. E em
profundidade, uma história estrutural, de longa duração” (BOURDÉ & MARTIN, 2010, p. 131). A
terceira fase dos Annales tem um diferencial; nela não tivemos um organizador do grupo, mas diversos
nomes organizando-se a partir das idéias dos Annales e construindo a Nova História.
Nesta fase viu-se um contexto histórico mais amplo e uma mudança na historiografia. Mulheres
passaram a fazer parte do grupo, idéias de diferentes partes do mundo foram aceitas. Ocorreram novas
aberturas, retornos e possibilidades de estudos que levaram também a pensar nas incertezas referentes à
natureza do conhecimento e ao papel desempenhado pelo conhecimento histórico na sociedade. A terceira
geração dos Annales utilizou o termo Nouvalle Histoire para sua forma de fazer história (BARROS,
2012). Eles traziam heranças das fases anteriores dos Annales, mas queriam dar novas contribuições à
História.
Passou-se a pensar a micro-história, atenta aos detalhes, as microrrealidades e a valorizar o âmbito
cultural. Orientação reflexiva que levou ao surgimento da História Cultural que passou a se “ocupar uma
posição central no grande cenário das modalidades historiográficas” (BARROS, 2012, p. 306). Houve
novamente uma ampliação dos objetos e das dimensões dos estudos, do conhecimento historiográfico,
dos campos históricos, das temáticas estudadas. E a “História Total”, defendida pelos Annales, passa a
ser vista como a história de tudo (BARROS, 2010). A interdisciplinaridade continuou a ser o traço de
unidade entre as gerações dos Annales, só que nesta terceira geração observou-se um destaque dado à
Antropologia.
Outro ponto a que foi dado continuidade foi a ampliação de temáticas e problemas históricos. “A
liberdade temática, e a escolha de problemas, era explorada pelos historiadores dos terceiros Annales
com liberdade inigualável” (BARROS, 2010, p. 327). Evidenciou-se também uma projeção dos
historiadores da História das Mentalidades, que “buscavam estudar as formas coletivas de pensar e
sentir” (BARROS, 2012, p. 329). A história das mentalidades ganha força a partir da década de 1960,
passou a ser um novo espaço de ação relacionado ao mundo mental e aos modos de sentir.
Para identificar os modos coletivos de pensar e de agir, estes historiadores usaram três aspectos
metodológicos: “(1) a abordagem serial, (2) a eleição de um recorte privilegiado que funcione como
lugar de projeção das atitudes coletivas (uma aldeia, uma prática cultural, uma vida), ou finalmente (3)
uma abordagem extensiva de fontes de naturezas diversas” (BARROS, 2012, p. 337). Buscava-se uma
abordagem sistemática, preocupada com a homogeneidade das fontes e seu lugar preciso dentro da série,
o que proporcionou uma abertura aos novos modos de fazer história, com os historiadores franceses da
Nouvelle Historie.
Diversos temas poderiam ser trabalhados a partir de enfoques relacionados às dimensões sociais (a
política, a economia, a cultura, as mentalidade, o imaginário e assim por diante). Percebemos que, nesse
período, a maioria dos historiadores não seguia uma única e linear influência, geralmente combinavam
influencias da História e entrelaçava suas sub-especialidades. Não obstante, em face das mudanças de
uma geração para outra, o que perpassou e uniu as três gerações dos Annales foi a interdisciplinaridade.
Todos “os estudiosos da Escola dos Annales são unânimes em apontar a interdisciplinaridade como o
grande traço de identidade que de alguma maneira unifica todo o movimento dos Annales” (BARROS,
2012, p. 355). E é justamente ela que possibilita a união de aspectos como história problema, o caráter
construtivo da História, a ampliação de fontes, a expansão dos campos históricos e dos objetos de
estudos disponíveis ao historiador.
De modo mais sumário, de acordo com Barros (2012, p. 210), o que continuou nos diferentes autores
das fases dos Annales foi a “interdisciplinaridade, a história problema e a recusa ao tratamento
tradicional do político”. E o que pode ser visto como ponto de discordância é a História Total defendida
pelas primeiras gerações dos Annales em relação ao entendimento que esse termo ganhou na terceira
geração.
Outra inovação promovida pelos Annales implica uma ainda crescente ampliação da noção de
fontes: documentos, e objetos, signos, fotografias etc., qualquer vestigio deixado pelo homem passou a
servir como fonte e dados para pesquisas. O documento passou a ser visto não como algo que fala por si
mesmo, mas sendo um aporte ao qual é necessário se fazer “perguntas adequadas” (VIERIA; PEIXOTO
& KHOURY, 1991, p. 15). Exigindo assim um olhar refinado pelo estudo do pesquisador, para indagar as
fontes, observar o lugar onde elas foram produzidas e as relações que elas estabeleceram e ainda
estabelecem. Para os campos e temáticas que não eram abordados pela história das mentalidade tivemos
uma nova História Cultural, que desde os anos de 1990 abarcou estas temáticas.
A História Cultural teria como principal objetivo “identificar o modo como em diferentes lugares e
momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada” (CHARTIER, 1988, p. 16-17).
Chama a atenção para que gestos, comportamentos, representações sejam observados no entendimento de
um objeto de estudo, e não apenas os discursos e documentos. Isso se deve à algumas inovações
interdisciplinares nas décadas de 1970 a 1980, inspiradas pelo encontro entre historiadores e
antropólogos e no final da década de 1980 a expressão Nova História Cultural passou a ser utilizada. A
partir daí, os historiadores “tornaram-se cada vez mais conscientes de que pessoas diferentes podem ver
o “mesmo” evento ou estrutura a partir de perspectivas muito diversas” (BURKE, 2008, p. 101).
VEYNE (1988) corrobora com este entendimento quando coloca que a história que é produzida é
subjetiva, e é resultado da projeção de valores de quem organiza o que é pesquisado. O que é produzido
é uma resposta dada às indagações que o pesquisador fez às fontes analisadas. Assim, não existe uma
história total, mas sempre uma história de algo. “Toda história, [...] econômica ou social, demográfica ou
política, é cultural, na medida em que todos os gestos, todas as condutas, todos os fenômenos
objetivamente mensuráveis [...] são o resultado das significações que os indivíduos atribuem às coisas,
às palavras e às ações” (CHARTIER, 2009, p. 133).
O desafio da história cultural seria pensar, portanto, a articulação entre os discursos e as práticas, os
meios de produção e a recepção, pois além do discurso, é necessário observar as condições e as
possibilidades de cada contexto. Assim, observar toda cultura envolvida no processo escolar. A cultura
como práticas comuns que os indivíduos vivem e refletem sua relação com o mundo, com o outro e com
ele mesmo. Segundo a visão de uma Nova História, a figura do historiador passou a ser constituída de
modo especial e determinante quanto à forma e ao conteúdo das narrativas; na medida em que uma certa
particularidade é não apenas aceita, mas incentivada como possibilidade de descoberta, desde o
momento em que escolhe seu objeto de estudo, o processo metodológico como vai trabalhá-lo em termos
analíticos e organizacionais, quanto na exposição de suas sínteses e conclusões.
Desse modo, a história não mais pode ser vista como de uma dada supra-autoria anônima, pois neutra
e universal. Não obstante, um fato histórico pode mudar a partir da leitura e pela escrita particular de
algum autor que, apenas pelo fato de ser um sujeito particular, encontra indícios que outros não
encontraram. A narrativa deixa de ser um fato passado coletado e passa a proporcionar “[...] um olhar
dirigido ao passado: a partir do que esse objeto ficou representado” (BORGES, 2005, p. 45). Estudar a
historia a partir daí levou ao entendimento de que “[...] as fontes ou documentos não são um espelho fiel
da realidade, mas são sempre a representação de parte ou momentos particulares do objeto em
questão”(BORGES, 2005, p. 61). Novos olhares foram atribuídos aos objetos de estudo da história,
novos problemas e novos instrumentos foram incorporados ao olhar do historiador a partir de sua
particularidade incluída enquanto sujeito ou autor da escrita da história.
O texto historiográfico passou a ser evidenciado como “[...] o resultado de uma explícita e total
construção teórica e não mais o resultado de uma narração objetivista de um processo exterior,
organizado em si” (REIS, 2010, p. 93). Assim, o passado não é reconstruído de forma definitiva, mas é a
todo momento construído e reconstruído sob ótica e olhares diferenciados, tendo como base objetos de
estudo e questões a serem investigadas. Nesse sentido, o historiador deve definir seu objeto de estudo e
as fontes a serem consultadasde modo explícito, segundo uma localização epistemológica consciente de
sua proposta. Ou seja, como dissemos anteriormente, compreendendo que parte do objeto de pesquisa
observado está localizada no próprio campo de pensamento do historiador, constituído por regras
paradigmáticas específicas em suas teorias e metodologias.
A escola, enquanto instituição de ensino e de aprendizagem, passou a ser vista como tendo uma
cultura própria, a cultura escolar; não mais restrita à chamada “Alta Cultura” sustentada pelas produções
artísticas, literárias, filosóficas e científicas da elite financiada pelo Estado, Igreja e Burguesia. Esta
deve ser entendida como tudo o que acontece na escola, através das relações estabelecidas entre todos os
agentes que vivenciam o espaço escolar; inclusive no que se refere à negação dos aspectos da “Alta
Cultura”. Chervel (1998) coloca que a escola tem a capacidade de produzir uma cultura própria,
específica, singular e original, e esta produção traz efeitos à sociedade e à cultura até então submitida ao
olhar universalizante da filosofia eurocêntria.
A cultura escolar seria “o conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a
inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação
desses comportamentos” (JULIA, 2001, p. 10). Estudar a cultura escolar é observar, portanto, as
transferências estruturais e culturais que acontecem na escola, mas também observar os elementos
existentes neste processo e os problemas vistos nestas trocas, bem como os modos de pensar e agir. É
ampliar o olhar para além das normas e observar as práticas desenvolvidas e vividas. Não nos
esquencendo que esse tipo de dinâmica do pensamento apenas foi possível devido à contribuição dos
Annales através da difusão de suas idéias, quando houve uma ampliação dos objetos de estudo, dos
olhares dado a estes e das fontes utilizáveis pra compreensão deste objeto de estudo.
Para estudar a cultura escolar o historiador deve interessar-se pelas normas e finalidades que regem
a escola, avaliar o papel desempenhado pela profissionalização do trabalho do educador e observar e
analisar os conteúdos ensinados e as práticas escolares desenvolvidas (JULIA, 2001, p. 19). Assim, cabe
aos historiadores observarem as práticas cotidianas e o funcionamento interno da escola através da
ampliação do olhar para as fontes estudadas. Para poder “estabelecer a mediação entre a cultura pensada
e a cultura vivida” (FELGUEIRA, 2001, p. 31).
Estudar a cultura escolar é buscar compreender as práticas desenvolvidas na escola e os processos
educativos que foram organizados, buscando distribuir conhecimento através da articulação entre
políticas e práticas curriculares. É entender que o que é visível, é a tradução do que foi esperado pelos
programas oficiais com a interação do vivido no sistema escolar e seus efeitos imprevisíveis que também
formam currículos, ou seja, caminhos ou percursos de ensino e de aprendizagem. O que é encontrado na
escola (e o que pode servir como fonte histórica) mostra o fazer, a organização, as regras, os rituais
materializados. Estudar a cultura escolar é observar o que é apresentado, o cotidiano da educação, com
suas teorias, princípios, critérios, normas e práticas.
Neste sentido, estudar a cultura escolar nos remete ao entendimento da escola enquanto uma
instituição que tem objetivos e finalidades específicas, e com uma configuração própria que expressa
uma cultura vivida e desenvolvida em seu espaço. Nela, conhecimentos são ensinados e produzidos a
partir da interação entre os agentes que fazem esta instituição. A escola deve ser entendida “como uma
instituição que, embora obedeça a uma lógica particular e específica da qual participam vários agentes,
tanto internos como externos, deve ser considerado como um lugar de produção de um saber próprio”
(BITTENCOURT, 2014, p. 38-39).
Para VIÑAO (2008, p. 206), a escola é composta por agentes que organizam o currículo e as
disciplinas que estarão no seu fazer pedagógico. Nesse processo existem códigos disciplinares, regras
que consolidam e dão estabilidade às disciplinas na escola, que são transmitidos de uma geração a outra.
Assim, conteúdos, discursos com valor informativo e utilidade acadêmica e práticas (modo de ensinar os
conteúdos) são organizados de forma específica para que haja o aprendizado. A escola seria o local onde
normas e práticas definem o conhecimento a ser ensinado, os valores e comportamentos a serem
apreendidos, e é este caminhar, ou seja, esse currículo – caminho – que gera a cultura escolar. Mas, que
por ser um percurso sempre em processo de aberturas, de trilhas, de horizontes nunca totalmente
definidos programaticamente, implica-se aí uma noção dinâmica de cultura.
É importante ressaltar que a escola, enquanto espaço onde se estabelecem formas especificas de
relações sociais e ao mesmo tempo transmite saberes e conhecimentos, está ligada a formas de exercícios
de poder e é estruturada por sistemas de ensino com princípios específicos e hierarquias administrativas.
Com a História Cultural busca-se escrever uma historia da instituição escolar enquanto “uma tentativa de
enunciar, de elaborar um discurso, uma interpretação à qual se daria um estatuto privilegiado, vinculado,
o mais possível, a diferentes momentos ou fases da instituição e o seu contexto” (WERLE, 2004, p. 14).
O que abrange aspectos normativos, formas de gerenciamento, decisões políticas, tempos e espaços,
articulações entre profissionais e usuários da escola, modalidades oferecidas, relações externas à escola
que buscam levar ao entendimento da organização institucional, das relações administrativas e do
contexto vivido.
Para isto, busca-se estudar objetos, documentos, artefatos e tudo que pertence à cultura escolar e que
serve para mostrar o que foi vivenciado e desenvolvido no ambiente escolar. Ressaltando que não temos
a historia da instituição escolar, mas uma versão das muitas histórias possíveis, em decorrência do olhar
de quem as narra, das temáticas colocadas em foco e das perguntas feitas às fontes históricas disponíveis
e acessíveis no momento presente (WERLE, 2004). Toda instituição escolar é organizada a partir de
regras, objetivos, finalidades, políticas educacionais, orientações pedagógicas apresentadas através do
currículo com intuito de mostrar a cultura escolar de determinado local.
Estudar o currículo é estudar versões e documentos buscando estabelecer sentidos e reconstruir uma
rede de significados que se materializam no campo escolar na forma de cultura. De acordo Goodson
(1995) o termo currículo advém da palavra latina Scurrerre, e refere-se a um curso a ser seguido, a ser
apresentado. Por isso, em alguns momentos históricos, o currículo escolar esteve associado a um
caminho a seguir, a listagem de conteúdos. As primeiras discussões sobre currículo até a década de 1970
apontavam que a educação brasileira foi construída pelas tendências curriculares do escolanovismo e do
tecnicismo, ambas com intuito de controle social, através de uma coesão e eficiência social para manter a
conformação da sociedade para fins economicamente liberais, industriais e urbanos. Nesse período, o
currículo tinha como base padrões de tradição e estabilidade. E era entendido como a seleção e
organização dos conteúdos a serem ensinados, de forma técnica e administrativa de um ponto de vista
programático.
Nas décadas de 1980 observou-se uma reinvenção e reconstrução do currículo, viu-se uma tendência
mais crítica e com um novo olhar para as questões de conhecimento e poder, passou-se a ver a
possibilidade de transformação e emancipação do homem a partir do processo de apropriação do
conhecimento. A teoria curricular com embasamento crítico passou a analisar relações entre
“conhecimento e poder vinculando currículo e estrutura social, currículo e cultura, currículo e poder,
currículo e ideologia, assim como currículo e controle social” (JAEHN, 2012, p. 117). A partir de
meados da década de 1990 movimentos teóricos como pós-estruturalismo, o pós-marxismo e os estudos
da cultura passaram a dar significados ao currículo. Assim, novas abordagens de pesquisa curricular
foram incorporadas e o que acontece fora da escola passou a ser observado também.
Os primeiros estudos sobre currículo desenvolvidos por Goodson buscavam observar os objetivos
do ensino e as práticas curriculares que aconteciam na sala de aula, o dia a dia da interação entre
professor e aluno, a história interna da escola e do currículo. Vislumbrava-se “uma história do currículo
que, a seu juízo, havia de se construir com um triplo objetivo: lançar luz sobre a realidade
contemporânea; examinar, por prova ou contribuir para a teoria pedagógica; ocupar-se [...] do processo
interno da definição, ação e mudança do currículo” (GOODSON, 1995, p. 27). Assim, o currículo é
entendido por alguns autores como o conjunto de disciplinas ofertadas pela escola, ou como plano e
proposta para o ensino, ou enquanto uma construção social e cultural.
Neste estudo o currículo será entendido como o “conjunto daquilo que se ensina e daquilo que se
aprende” (FORQUIN, 1996). O que dá a possibilidade de observar além do que está escrito
oficialmente. Estudar o currículo é estudar os conteúdos escolares, os métodos de ensino, os percursos de
estudos, os processos internos da escola, buscando pistas para entender a relação existente entre escola e
sociedade. O currículo deve ser compreendido como uma seleção de conhecimentos no interior de uma
cultura que constituem um corpo de saber legitimado que deve ser preservado dentro de uma cultura.
Assim, o currículo de um determinado período histórico “representa formas de conhecimento, valores e
crenças que alcançaram especial status nesse dado período” (LOPES, 1998, p. 61).
Para Goodson (1997) existe um currículo escrito e um currículo em ação. O currículo escrito é “o
testemunho público e visível das racionalidades escolhidas e da retórica legitimadora das práticas
escolares” (GOODSON, 1997, p. 20). Nele está planejado ou programado e expresso as interações de
escolarização previstas ou desejáveis segundo alguns interesses e fins. É uma fonte documental, um
roteiro para estruturar a institucionalização da vida educacional das pessoas; direciona objetivos para a
sala de aula, define conteúdos e orientações a serem desenvolvidas no ambiente escolar.
O currículo em ação é o que é materializado e vivenciado em sala de aula ou no ambiente escolar
mais amplo e que teve como base o currículo escrito, mas que muitas vezes desse se desvia, vai além ou
aquém dos conteúdos e dos métodos programáticos. Em outras palavras, conta tanto com algumas
realizações previstas no plano de curso escolar, quanto em suas irrealizações; que consistem em aspectos
– conteúdos, objetivos e/ou métodos – que, embora previstos, não aconteceram, não atingiram suas
finalidades.
Por exemplo, suponhamos que o currículo escolar prescreva que ao final do primeiro ciclo do ensino
fundamental o estudante deverá apresentar como conteúdo aprendido a prática de um esporte. Contudo,
de acordo com uma avaliação – mediante instrumento e técnica –, verifica-se que a aprendizagem
ocorreu, porém em um estágio de desenvolvimento inferior ao esperado. observa-se, nesse caso fictício,
que a prescrição curricular não se realizou por completo apesar de sua ação ter sido executada.
De outro modo, vamos refletir que esse estudante – hipotético – não atingiu um dado modelo de
desenvolvimento para a prática do futebol, então previsto no programa da disciplina de Educação Física
e da escola. Entretanto, esse mesmo educando demonstra ter aprendido e desenvolvido a prática da
capoeira de maneira mais próxima a um modelo estabelecido. Diante disso, consideramos ainda que a
prática corporal – a capoeira – então aprendida e desenvolvida não estava prevista nos programas
escolares. Tal conteúdo, portanto, embora assimilado, agiu no interior da escola a despeito ou às margens
do currículo prescrito. Certamente essa ação – estrangeira – se fez presente por meio de um grupo de
outros estudantes que por ventura, fora da escola, em outro ambiente institucional ou familiar, aprenderam
e desenvolvem a prática da capoeira.
Em suma, o currículo em ação consistem nas práticas curriculares efetivamente realizadas. Para
estudar o currículo escolar é necessário observar ambos os currículos definidos por Goodson (1997),
pois o que está prescrito poderá ou não estar no cotidiano escolar. Sua presença cotidiana pode ocorrer
tanto com quanto sem resistências locais. Assim, a instituição escola pode oscilar entre se utilizar de
estratégias de poder e violência para efetivar a prescrição curricular e estratégias de diálogo e
flexibilização. Por essa via, o currículo programático anuncia uma espécie de cultura escolar
institucional. Todavia, a escola não pode ser confundida com seu planejamento.
A escola, habitada e constituída por pessoas de origens comuns ou diferentes, apresenta uma certa
cultura própria. Isto é, uma realidade tecida por símbolos objetivos e subjetivos; materiais e mentais, que
certamente não será encontrada em outra escola; tampouco em qualquer outro lugar social. Por isso, não
significa que tal cultura própria seja a reprodução da cultura de um bairro, comunidade, aldeia, tribo ou
cidade que a envolve; de onde seus estudantes são oriundos. A escola implica, portanto, um ambiente
institucional e social de encontro, de modo que enquanto permanece em ação, um fenômeno cultural pode
ser observado.
As práticas didáticas e pedagógicas desenvolvidas na escola têm nelas valores, normas de condutas
que a relacionam com a sociedade e desse encontro organizam o fazer da escola. Não obstante, o termo
sociedade não designa um ente abstrato, universal, estático, unitário e sem contradições e pluralidades.
Dizer que as práticas escolares se relacionam com a sociedade significa comunicar que as mesmas
interagem com grupos sociais diversos, conflituosos, contraditórios, problemáticos, inimigos; bem como
com corporações confluentes, similares e aliadas. Por essa via de raciocínio, quando a cultura escolar,
expressa por suas práticas, apresenta-se no contato com a sociedade, efeitos diversos serão provocados
no seio de cada grupo, comunidade, família, cidade, país.
É nesse sentido que o currículo, fruto do encontro e da produção entre programático e imprevistos,
vai se materializar no contexto das aulas, no qual alunos e professores interagem e trocam experiências
sociais e culturais desde os guetos dos quais fazem ou fizeram parte. E neste ambiente social vivenciado
na escola, significados e comportamentos são desenvolvidos de maneira distinta tanto dos programas de
governo quanto das culturas locais das quais os estudantes são oriundos. Observa-se uma cultura escolar,
com características singulares, por meio do qual o currículo se apresenta na escola e organiza o
funcionamento interno, as relações dos professores com a legislação e normas, os conhecimentos
ensinados e as práticas escolares desenvolvidas.
É relevante colocar que o currículo escolar é formado a partir da relação entre escola e sociedade,
num processo onde fatores intelectuais, sociais, formais se comunicam com aspectos culturais,
simbólicos para se legitimar no âmbito escolar. Ele busca organizar o que será trabalhado e
instrumentaliza a prática educativa. Neste processo, a escola, é uma parte integrante de um sistema que
tem uma legislação de base, mas ao mesmo tempo é um universo composto de especificidades e com
cultura própria. Sendo que, ao falarmos em cultura própria, corremos o risco de também dizermos em
leis, normas e regras próprias; que muitas podem infringir os aspectos gerais da estrutura.
Por isso, o currículo é compreendido como algo que passa por mudanças que são organizacionais
(escola, sala de aula); também institucionais, bem como culturais (GOODSON, 1997). Goodson buscou
observar as prescrições escritas e originárias de órgãos políticos e administrativos, mas também os
livros, as guias e programas, o planejamento que o professor utilizava. Para assim entender o currículo
tendo como base uma “teoria que é também, em sua elaboração, uma prática – e ação” (GOODSON,
2003, p. 231).
O currículo compreende a seleção, a sequencia, a dosagem de conteúdos da cultura a serem
desenvolvidos na escola. Ele compreende conhecimentos, hábitos, valores, teorias, técnicas, recursos,
artefatos, procedimentos, símbolos, competências, habilidades disposto num conjunto de disciplinas
escolares que se constituem por programas específicos que visam consolidar sua especificidade no
campo escolar. É no currículo prescrito que está definido o tipo de ensino que deverá ser enfatizado, mas
é no currículo em ação que podemos a real formação que está sendo privilegiada, as necessidades
(familiares, individuais, de mercado, do Estado, de uma classe social) a serem atendidas.
A história do currículo deve possibilitar o entendimento dos processos internos de definição, ação e
modificação do currículo. Ela consiste dos estudos históricos que têm como objeto “o currículo enquanto
conjunto de conhecimentos selecionados e enquanto conjunto de práticas e rituais associados ao processo
de transmissão e construção destes conhecimentos”(LOPES, 1998, p. 60). Assim, a escola é considerada
como “algo a mais do que um simples instrumento da classe dominante” (GOODSON, 1995, p. 120), não
é vista como o espaço que serve apenas para a reprodução das estruturas e da “Alta Cultura”; tampouco
se reproduzem as culturais locais na forma de guetos. É o encontro de tudo isso que faz gerar uma cultura
escolar.
Com isso, é possível notar que nos encontramos em um ponto do desenvolvimento teórico desta
dissertação já bem distante das perspectivas tradicional e positivista da história, contra as quais a Escola
dos Annales lutou durante suas três gerações, assim como transferiu essa luta para os demais movimentos
intelectuais por ela motivados. Em outros termos, a noção de História Geral, Universal e/ou Oficial já
fora densamente criticada e desconstruída pelas reflexões precedentes. Não obstante, importa destacar,
para prosseguirmos com o texto, que, em síntese, a Escola dos Annales, considerando seu projeto para a
construção de uma Nova História, impingiu um movimento que se desloca do pensamento sintético em
direção à reflexões cada vez mais analíticas.
Podemos dizer que se a Velha História produziu narrativas capazes de formar um imaginário social
linear e contínuo de uma História sem fissuras, lacunas, sombras, dúvidas, marginais, anonimatos etc.; os
Annales iniciou e fomentou trabalhos ao estilo da antropologia e da arqueologia. Nada de objetos e
narrativas prontas e totais. Toda narrativa histórica esconde em seu interior inúmeras histórias; mais
breves, mais longas, coletivas, individuais etc.. A historiografia não mais está a serviço dos grandes
ideais ou as chamadas Meta Narrativas ou Grandes Narrativas, cuja direção sempre apontou para a
conclusão ontológica acerca do Homem; ou seja, uma definição – única, sólida, perene – acerca do que é
o Homem.
Da síntese à análise, do total iluminado ao fragmento opaco, a Nova História caminha do geral para
o específico; do Homem para os homens em sua pluralidade cultural, social, política, econômica,
religiosa etc.. Como já dissemos anteriormente, agora nas palavras de Funari e Silva (2008, p. 71):
“Epistemologicamente, a terceira geração [dos Annales] pode ser definida pela ampliação de temas de
pesquisa e pelo aporte interdisciplinar à história. Temas como morte, doença, alimentação, sexualidade,
família, loucura, bruxaria [...]” nos levam facilmente à conceber uma história do currículo escolar. Mais
do que isso, abre-se a possibilidade analítica de estudar as histórias dos currículos no interior das
histórias dos currículos escolares.
Ao estudar o currículo escolar é necessário entender que cada disciplina tem uma história de seu
currículo; uma história específica. Mas, quais as diferenças entre uma história da disciplina de uma
história do currículo? A história de uma disciplina escolar é um campo de estudo e pesquisa que busca
investigar as transformações ocorridas numa disciplina ao longo do tempo, observando conteúdos e
métodos de ensino destas. Neste sentido, o que faz uma disciplina escolar estar ou não num currículo?
Goodson (1997) coloca que esta presença é determinada pela tradição acadêmica, utilitária e
pedagógica. Que a nosso ver essa presença determinada se resume ao seu currículo programático ou em
ação.
Isso quer dizer que os estudantes e os professores percorrem o interior de uma disciplina
diferentemente do percurso que realizam em outros. Grosso modo, para vermos isso, ainda que de
maneira elementar, basta considerarmos as afinidades e gostos variados dos estudantes em relação às
disciplinas: alguns, preferem matemática; outros, geografia. Alguns educandos conflitam com o professor
de literatura, mas tem relação pacífica com o de história. Viñao (2008) coloca que o currículo é
composto por saberes elementares, por disciplinas, por exercícios e por atividades feitas na escola. O
que nos leva a estar atento ao fato de que “existem disciplinas ou matérias que não podem receber a
aplicação da expressão disciplina escolar” (VIÑAO, 2008, p. 200), mas que estão na escola.
Juliá (2005, p. 52) corrobora com este entendimento quando coloca que devemos atentar nosso olhar
e não cometer o equivoco de pensar que “uma disciplina não é ensinada porque não aparece nos textos de
programação ou porque não existem cátedras oficialmente criadas sob esse nome”. É o que, por exemplo,
observamos ao longo da história da disciplina Educação Física no Colégio de Aplicação da
Universidade Federal de Sergipe, que nos momentos iniciais, apesar de não ser apresentada no currículo
oficial prescrito da escola, seus conteúdos já possibilitavam um certo percurso opaco no interior das
práticas escolares e, portanto, do currículo escolar.
Viñao (2008) coloca que as disciplinas escolares podem ser campos de poder social e acadêmico,
apropriações de professores e espaços sociais, fonte de exclusão social e acadêmico, instrumento de
reconhecimento de saber profissional. O que vai determinar isso ou aquilo é o campo de poder social e
acadêmico que cada disciplina tem, algo construído pelos atores e interesses que perpassam o espaço
escolar. Reforça que o processo educativo não é neutro e não está alheio às modificações políticas e da
sociedade.
Nesse sentido, Goodson (1995) coloca que uma disciplina surge no currículo inicialmente para
responder a uma necessidade social imediata, mas para ela se manter precisa de uma tradição e uma
utilidade acadêmica. Logo, “a manutenção de uma disciplina escolar no currículo deve-se a sua
articulação com os grandes objetivos da sociedade” (BITTENCOURT, 1998, p. 18).
Ate o fim do século XIX o termo disciplina e disciplina escolar não designavam a mesma coisa.
Disciplina era um termo ligado à vigilância e repressão de condutas que eram tidas como prejudiciais à
ordem e à educação. Só nas primeiras décadas do século XX é que este termo ganha sentido relacionado
ao currículo, isto é, ao que é ensinado e para designar conteúdo de ensino. E partir da Primeira Guerra
Mundial ela passou a servir para classificar as matérias de ensino (SOUZA JUNIOR & GALVÃO, 2005):
“matéria de ensino suscetível de servir de exercício intelectual” (CHERVEL, 1990, p. 179), de modo que
o sentido de disciplina não foi totalmente excluído, pois o conteúdo, ou seja, sua seleção, é uma das
estratégias de disciplinar o espírito, dar ao educando métodos, regras e ensinamentos dos diferentes
domínios do pensamento.
Por isso, o termo disciplina escolar esteve ligado ao termo conteúdo de ensino, e na escola
observou-se que estes estiveram influenciados pela sociedade na qual se está inserida e pela cultura na
qual se banha. Inicialmente, o termo disciplina era usado para elencar uma combinação de saberes a
serem aplicados pedagogicamente sobre o aluno. Com o passar dos anos, passou-se a observar sua
gênese, função e organização no espaço escolar, a fim de identificar como se materializa cada disciplina
e como se dá o processo de aculturação de massa que ela vem a determinar.
Assim, estudar a história da disciplina passou a levar ao entendimento da finalidade da escola e da
história do ensino nas instituições escolares. E estudar uma disciplina seria pensar e refletir acerca de
objetivos, origens e influencias, bem como se deu o processo de seu ensino e sua evolução didática.
Neste sentido, disciplina é “aquilo que se ensina e ponto final” (CHERVEL, 1990, p. 177). Assim, tudo o
que é ensinado na escola faz parte da disciplina que compõe a escola.
Estudar uma disciplina é levar em conta “os conteúdos ensinados, os exercícios, as práticas de
motivações e de estimulação dos alunos, que fazem parte dessas “inovações” que não são vistas, as
provas de natureza quantitativa que asseguram o controle das aquisições (JULIA, 2001, p. 34). Em suma,
seu currículo; mas não só. O que nos leva à compreensão da instituição de ensino e suas relações com a
sociedade. As forças que determinam a presença ou ausência de uma disciplina na escola ou mesmo de
seus conteúdos particulares. Investigar uma disciplina dentre de um ambiente educacional possibilita a
compreensão da cultura escolar. Assim, disciplinas escolares são vistas como “modos de transmissão
cultural que se dirigem aos alunos” (CHERVEL, 1990, p. 186).
Passou a ser importante identificar, classificar e organizar os objetivos de instrução e educação aos
quais a disciplina escolar está envolvida no sistema escolar. Assim, as disciplinas escolares passaram a
estar no centro da organização escolar, e estas tiveram como função “colocar um conteúdo de instrução a
serviço de uma finalidade educativa” (CHERVEL, 1990, p. 188). Em outras palavras, a serem
constituídas por currículos prescritos especializados. Para entender o caminhar histórico de uma
disciplina escolar, deve-se buscar os textos oficiais, discursos ministeriais, leis, decretos, acordos,
planos de estudo, métodos de ensino, exercícios propostos, a evolução didática, a apresentação dos
conteúdos, enfim, o ato pedagógico desenvolvido pelos que fazem a disciplina na tentativa de torná-la
assimilável.
O campo escolar e a organização das disciplinas não é algo neutro, indissociável de questões
políticas e sociais. As políticas educacionais, os programas de ensino e os planos de estudos estão
voltados para fins de manter o que a sociedade determina, assim as disciplinas geralmente buscam
atender a esta finalidade. Mas atrelada a esta função, cada disciplina tem sua gênese e organização
interna, e muitas vezes o que é pré-determinado, é modificado no cotidiano escolar. Por isso, não só o
que é escrito é que deve ser observado, mas todo o processo no qual as disciplinas se organizam para
atender aos objetivos educacionais.
A história das disciplinas escolares passou a ser um campo de estudo após a década de 1970, com a
história cultural que ampliou o olhar para a cultura escolar. Cultura escolar entendida como “um conjunto
de normas que definem os saberes a ensinar e os comportamentos a inculcar, e um conjunto de práticas
que permitem a transmissão e assimilação de tais saberes e a incorporação dos conhecimentos” (JULIA,
1996, p. 129). A partir daí, a escola, passou a ser observada não só como espaço de reprodução e
transposição de conhecimentos externos, mas como “um espaço de produção de saber” (VIÑAO, 2008, p.
188). Isso apesar de toda disciplina imposta no sentido de determinar o percurso dos estudantes no
interior da escola.
A escola a ser vista como um local que traz o que vem de fora da escola, o adapta, o transforma e
cria um saber e uma cultura própria questiona a noção de currículo ligada à ideia de disciplina enquanto
rigidez no cumprimento da prescrição curricular. O local onde saberes e condutas nascem e apresentam
marcar características de uma cultura própria, cada disciplina escolar tem sua autonomia e gera um
conhecimento pedagógico próprio; não programático, para além do disciplinamento.
Ao buscar estudar uma disciplina escolar no currículo, deve-se observar a origem do ensino de cada
disciplina e a história das forças sociais que levaram ou não a uma disciplina estar num determinado
currículo, bem como que levaram a apresentar um dado currículo próprio e não outro. Fazer a história do
currículo de uma disciplina é tentar desvendar a caixa preta que busca revelar e compreender o que
ocorre neste espaço particular (JULIA, 2001). Os caminhos já demarcados ou os ainda fechados, por
onde certa e incertamente estudantes e professores passarão.
É necessário observar que uma disciplina escolar “é construída social e politicamente e os actores
envolvidos empregam uma gama de recursos ideológicos e materiais para levarem a cabo as suas
missões individuais e coletivas” (GOODSON, 1997, p. 27). Estudar a história da disciplina escolar leva
à compreensão dos saberes que são levados à escola. E estudar a cultura escolar é estudar e analisar os
processos e produtos das práticas escolares e os valores deste espaço. É a cultura escolar que dá a
possibilidade da análise das tradições e continuidades, “dos momentos, causas e modos de mudanças nos
conteúdos ou exercícios de uma disciplina, assim como dos processos de “disciplinarização” ou
transformação de um saber em objeto de ensino” (VIÑAO, 2008, p. 190).
A educação teria uma finalidade real e uma finalidade de objetivo. As finalidades reais perpassam
os interesses da comunidade escolar e concretizam as finalidades de objetivo. As finalidades de objetivo
teriam origem no que é proposto pelo oficial, através de decretos, leis, pareceres. Neste sentido, Juliá
(2001) coloca que a finalidade de uma disciplina esta indicada nos textos normativos dela, mas o olhar
para o ensino real é necessário para que se compreenda sua materialização no cotidiano escolar.

Referências
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Sobre os autores
Mariza Alves Guimarães é mestranda pelo PPGED-UFS. Professora de Educação Física do
CODAP-UFS. Especialista (2005) em Educação Física Escolar UNIT. Tem experiência em Educação
Física Escolar, atuando principalmente na pratica pedagógica, metodologias de ensino, educação física
escolar, conteúdos e organização do trabalho pedagógico no âmbito do currículo.
Renato Izidoro da Silva é docente colaborador do PPGED-UFS e professor do DEF-UFS. Doutor e
mestre em Educação pelo PPGED-UFBA. Líder do grupo de pesquisa: Corpo e governabilidade
(CORPOGOV). Tem como foco de estudo as bases epistemológicas acerca dos conhecimentos científicos
e pedagógicos sobre o corpo humano na intersecção entre Ciências Humanas e Ciências Naturais.
Hamilcar Silveira Dantas Jr. é docente do DEF-UFS. Doutor (2007) em educação pelo PPGED-
UFBA. Mestre (2003) em educação pelo PPGED-UFS. membro-pesquisador do Grupo de Estudos e
Pesquisas “História, Sociedade e Educação no estado de Sergipe” (NPSE/UFS), Grupo de Pesquisa
“História Popular do Nordeste”/UFS e do Centro de Memória da Educação Física, Esporte e Lazer de
Sergipe (CEMEFEL/UFS).
CAPÍTULO 2

INTRODUÇÃO À MICRO-HISTÓRIA: APONTAMENTOS SOBRE


A OBRA DE CARLO GINZBURG
Dilton Cândido Santos Maynard

G
ostaria de tecer algumas observações sumárias sobre a micro-história e sobre o seu mais
ilustre representante, o historiador Carlo Ginzburg. Para isto, dividirei a minha exposição da
seguinte maneira: primeiro, farei considerações sobre Carlo Ginzburg e sobre o impacto das
suas obras. Nesta parte, destacarei os principais trabalhos deste historiador (serão consideradas aqui
apenas as obras traduzidas para o português); fornecerei algumas informações biográficas sobre ele e
ressaltarei a sua influência junto à micro-história. Em seguida, apresentarei algumas características da
micro-história, a saber: o paradigma indiciário (referência para a micro-história praticada na América);
a sua relação com a antropologia; a redução das escalas de observação; a opção por objetos de estudo
inusitados; a forma “romanesca” de exposição por ela adotada. Por fim, retomarei, como traço
fundamental da macro-história, as alternativas criadas por sua ótica analítica diferenciada.
De início, aviso que não se trata de uma tarefa simples. Apesar de bastante citada, a micro-história é
pouco debatida. As discussões sobre ela ainda estão muito circunscritas a, como lembra Jacques Revel,
“um número relativamente restrito de grupos, de instituições e de programas de pesquisa”1. Não bastasse
isto, o próprio Ginzburg, que tomo como referencial a esta exposição, repele os rótulos de micro-
historiador ou micro-investigação. Todavia, a influência de Carlo Ginzburg à micro-história é inegável.
A sua forma de conduzir investigações neste campo se tornou referência para pesquisadores voltados aos
temas mais diversos. Desta forma, inicio com algumas palavras sobre este pesquisador.

Quem é Carlo Ginzburg?


Nascido em Turim, em 1939, Ginzburg é filho de intelectuais. O pai, Leone Ginzburg, exilado russo,
professor de literatura russa, tradutor de autores como Tolstoi e Gogol, foi um dos fundadores da Editora
Einaudi (juntamente com Giulio Einaudi), uma das mais renomadas da Europa. Morreu em 1944, aos 35
anos, fuzilado por soldados nazistas. A mãe, Natália Ginzburg (1916-1991), filha do famoso biólogo
Giuseppe Levi, foi escritora influente, traduziu Proust e atuou como parlamentar (deputada pelo PCI,
Partido Comunista Italiano, eleita em 1983).
Ginzburg estudou na Escola Superior de Pisa e obteve o doutorado em Letras, em 1961, pela
Universidade de Pisa. Atualmente, ministra aulas de História Moderna na Universidade da Califórnia
(UCLA), nos EUA, país no qual passa 6 meses do ano. Os meses restantes o italiano e sua esposa, Luisa
Ciammitti, dividem entre viagens pelo mundo e Bolonha, cidade na qual vive há 30 anos.
Especialista em Inquisição, membro da Academia das Artes do Desenho de Florença, elogiado pela
erudição que demonstra em suas obras, Carlo Ginzburg é autor de best-sellers. Elegantemente escritos,
seus livros já foram traduzidos e publicados em 20 países (em 15 idiomas diferentes). Influenciado pelos
trabalhos de Marc Bloch (1886-1944), Sigmund Freud (1856-1939), Claude Lévi-Strauss, Ítalo Calvino e
Délio Cantimori (1904-1966), Ginzburg ainda se revela tributário de nomes como Keith Thomas, Ernest
Gombrich (1909-2001), Arnaldo Momigliano (1908-1987) e Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) Mas, quais
as principais obras de Ginzburg?
Entre os diversos livros, inúmeros artigos e participações em coletâneas, é possível dividir o
trabalho de Carlo Ginzburg em obras com uma perspectiva quase monográfica, erguidas após visitas a
arquivos, repletas de fontes primárias, sendo a produção ensaística formada por escritos originalmente
confeccionados para seminários, periódicos ou palestras proferidas pelo mundo. No primeiro grupo,
estão os seguintes trabalhos: Os andarilhos do bem (1966); O queijo e os vermes (1976); Indagações
sobre Piero (1981) e História noturna (1991)2. O segundo bloco é formado pelas obras: Mitos,
emblemas e sinais (1986); A micro-história e outros ensaios (1989); Olhos de madeira (1998) e
Relações de força (2000) e Nenhuma ilha é uma ilha (2004) 3. Como se vê, ultimamente Ginzburg tem
produzido basicamente obras ensaísticas.
Considerando que Carlo Ginzburg é o mais conhecido nome da micro-história, exemplo de sucesso
tanto dentro quanto fora da Academia, deve-se considerar que a sua obra representa um locus
fundamental quando são procuradas as bases para compreender esta tendência historiográfica que se
afasta do modelo típico da história social, rejeitando como esta a ideia de uma grande narrativa para o
progresso e avançando ao valorizar as relações entre o local e o global.

Textos Referenciais
A micro-história não apresenta textos fundadores, manifestos ou compêndios teóricos. Aliás, para
Jacques Revel, esta é uma das suas características4. Porém, creio que em meio aos escritos de Ginzburg,
é possível pinçar, aqui e ali, referências sobre a sua concepção epistemológica da micro-história. Nisto,
dois textos são fundamentais. São eles: O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico e
Sinais: raízes de um paradigma indiciário.
O nome e o como consta no capítulo V da coletânea A micro-história e outros ensaios, lançada em
1991(edição esgotada). Neste artigo – publicado inicialmente em 1979, no Quaderni storici número 40,
com o título original de Il nome e il come: scambi ineguale e mercato storiografico –, Ginzburg observa
a situação de isolamento da historiografia italiana, a sua pouca penetração frente à historiografia
francesa, apontando as implicâncias da pesquisa histórica num país com arquivos como a Itália.
Avançando sobre esta questão, o italiano apresenta as motivações e as referências da micro-história
enquanto método de pesquisa.
Por sua vez, Sinais compõe a coletânea Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história lançada em
1986, publicada em 1989 no Brasil. Originalmente chamado Spie. Radici di um paradigma scientifico e
aparecendo inicialmente na Rivista Di Storia Contemporânea, em 1978, o texto é, para Ginzburg, um
“ensaio que pode ser lido como uma tentativa de justificar em termos históricos e gerais um modo de
fazer pesquisas”5. A partir deste dois escritos, é possível delinear uma definição.

Que é, então, a micro-história?


Para Carlo Ginzburg, a micro-história é uma forma de investigação histórica pautada nos indícios.
Trata-se de um modelo que busca o excepcional no normal. Desta maneira, a micro-história ilumina
aspectos deixados à sombra por outras tendências historiográficas. É um gênero da história que procura
ultrapassar certa tendência da história social fartamente carregado de economia, impregnado de métodos
quantitativos e promovendo tendências gerais, descuidando das especificidades culturais locais6.
A micro-história apresenta-se bifronte. Ao mesmo tempo em que se ocupa com o particular,
atarefando-se em reconstituir fragmentos da realidade e do vivido menosprezados por outros tipos de
historiografia, ambiciona investigar as “estruturas invisíveis” nas quais este vivido se movimenta. Por
isto, o próprio Ginzburg, em tom provocativo, define-a como “ciência do vivido”7. E, ao contrário de
alguns dos seus seguidores, o autor de O queijo e os vermes não abre mão de estabelecer relações entre
o “interno” e o “externo” em seus trabalhos. Mas o que, preferencialmente, busca-se com este tipo de
análise?
Dentro da micro-história, devem-se privilegiar as observações que revelem as contradições nos
sistemas normativos. Neste tipo de interpretação, os contextos sociais não devem ser trabalhados como
previamente definidos. Conforme G. Levi: “a abordagem micro-histórica dedica-se ao problema de como
obtemos acesso ao conhecimento do passado, através de vários indícios, sinais e sintomas”. Isto pode ser
complementado com a imagem que Ginzburg nos apresenta das fontes como “espelhos deformantes”.
Aqui, a influência da obra de Marc Bloch parece ser decisiva8.
Entretanto, o que explica o avanço obtido pela micro-história? Conforme Ginzburg, “não é arriscado
supor que a voga crescente das reconstituições micro-históricas esteja ligada às dúvidas crescentes sobre
determinados processos macro-históricos. Precisamente porque não se está muito seguro de que o jogo
compensa é-se levado a reanalisar as regras do jogo”9. É interessante observar que este novo modelo
investigativo ascende após anos de sucesso da história quantitativa e da história serial. Ou seja, como
escreveu Peter Burke, “o microscópio era uma alternativa atraente para o telescópio, permitindo que as
experiências concretas, individuais ou locais, reingressassem na história”10.
A configuração da micro-história como um ramo historiográfico requer a reunião de uma série de
recursos característicos. A observação deles, de tais traços gerais, é fundamental para uma melhor
compreensão do trabalho realizado por Ginzburg e outros voltados a este modo de investigar o passado.

Traços gerais da Micro-História em Ginzburg


O uso do paradigma indiciário
O paradigma indiciário seria o método norteador da micro-história. Ele se baseia em indícios, em
aspectos vilipendiados por outros olhares. Como um caçador ou um detetive, o historiador deve buscar
pistas, deve rastrear sinais que auxiliarão na construção do seu problema. Nas palavras do próprio
Ginzburg, é “um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais,
considerados reveladores”11.
Partindo de uma perspectiva kuhniana, Ginzburg afirma um descontentamento com o modelo
historiográfico dos anos 1960 e 1970, justificando a ascensão da micro-história com um novo
paradigma12. Mas, Como Ginzburg estabeleceu este paradigma?
O paradigma indiciário é concebido numa tríade heterodoxa. A partir de artigos escritos entre 1874 e
1876 para a Zeitschrift für Bildende Kunst por G. Morelli – médico italiano que propôs um método
diferenciado de análise das obras de arte –, Freud13 e suas constatações sobre o Moisés de Michelangelo
(feitas com o auxílio das ideias de Morelli) e do detetive inglês Sherlock Holmes – criado por outro
médico, Conan Doyle –, o historiador italiano afirma que, entre 1870-1890, ganhou terreno um modelo
epistemológico baseado na semiótica médica. Ginzburg declara a importância que a busca por pistas
adquire neste paradigma: “Pistas. Talvez infinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, de
outra forma inatingível. Pistas: mais precisamente, sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de
Sherlock), signos pictóricos (no caso de Morelli)”. Mas, embora o ensaio parta de uma concepção
‘moderna”, Ginzburg estende o seu olhar na longa duração. Em Spie, ele recua até as primeiras
sociedades de caçadores14. Ocupa-se em apontar a importância de observar a construção de um saber
baseado em pistas.
Como nos romances policiais, o método apresentado por Carlo Ginzburg é uma investigação
“detetivesca”. O “paradigma indiciário” é um método de conhecimento cuja força está na observação do
pormenor revelador, mais do que na dedução. Este saber “venatório” pode ser observado na “capacidade
de conhecer o cavalo defeituoso pelos jarretes ou “a vinda de um temporal pela repentina mudança do
vento”. Por isto, o historiador italiano sentencia: “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas –
sinais, indícios – que permitem decifrá-la” 15.
Pesquisador de um país com arquivos excepcionais, Ginzburg atenta para a necessidade de saber
explorar, em meio à massa documental, um quadro conceitual que possibilite ao investigador buscar os
traços singulares, sintomáticos, residuais que tornam uma fonte particular e possibilitem lançar nova luz
sobre um evento. Justamente através desta busca pelo particular no aparentemente normal, Ginzburg se
aproxima do passado de modo semelhante à maneira como um antropólogo se aproxima de uma aldeia16.

A relação entre micro-história e a antropologia


O quadro conceitual da micro-história é construído com grande colaboração da antropologia. Ao
reclamar uma intensa aproximação entre a antropologia e a história, Ginzburg ressalta o papel que a
primeira tem em oferecer instrumentos para a (re)análise dos eventos macro-históricos e das concepções
revolucionárias correntes nos anos 1950 e 1960. Por conta disto, ele afirma:
Aos historiadores ofereceu a antropologia não só uma série de temas largamente descurados no
passado – desde relações de parentesco até à cultura material, desde rituais simbólicos até à
magia – mas qualquer coisa de muito mais importante: um quadro conceitual de referência, do
qual se começam a escrever os contornos17.
A micro-história propõe, portanto, uma prática que busque uma descrição mais apurada do
comportamento humano imerso em sistemas normativos. Nesta cuidadosa descrição, “toda ação social é
vista como o resultado de uma constante negociação, manipulação, escolhas e decisões do indivíduo,
diante de uma realidade normativa que, embora difusa, não obstante oferece muitas possibilidades de
interpretações e liberdades pessoais”18.
Desta forma, a micro-história apresenta uma forte ligação com o geertzismo e sua descrição densa
(estabelecimento de um conjunto de sinais significativos, tentando ajustá-los a uma estrutura inteligível).
Levi explica que “a descrição densa serve, portanto, para registrar por escrito uma série de
acontecimentos ou fatos significativos que de outra forma seriam imperceptíveis, mas que podem ser
interpretados por sua inserção no contexto (...) no fluxo do discurso social”. Daí a afirmação de
Ginzburg: “Só uma antropologia impregnada de história ou, o que é o mesmo, uma história impregnada de
antropologia poderá repensar a aventura plurimilenária do homo sapiens”19.
A influência de Geertz é notada na preocupação do historiador italiano com os textos, afirmando a
neutralidade textual como uma falácia, avisa: “até mesmo um inventário notarial implica um código, que
tem de ser decifrado”. Lembra ainda Ginzburg: “temos, por assim dizer, de aprender a desembaraçar o
emaranhado de fios que formam a malha textual destes diálogos”. Ao fazer tal investigação, o
pesquisador deve superar a “epistemologia positivista” que, ingenuamente, muitos historiadores ainda
praticam. Desta forma, Ginzburg tenciona mostrar que a realidade cultural contraditória pode ser
apreendida mesmo em um texto controlado como aqueles produzidos pela Inquisição: “o que temos num
texto são vozes contraditórias e não realidades contraditórias”20.
Todavia, esta parceria com Geertz tem limites. O anti-relativismo da micro-história entra em atrito
com a concepção geerztiana. É o que conclui Levi: “parece-me que uma das principais diferenças de
perspectiva entre a micro-história e a antropologia interpretativa é que a última enxerga um significado
homogêneo nos sinais e símbolos públicos, enquanto a micro-história busca defini-los e medi-los com
referência à multiplicidade das representações sociais que eles produzem” 21. Para apreender múltiplas
representações sociais, a micro-história vê-se obrigada a jogar com as diferentes escalas de observação.
Esta é outra das suas marcas.

Redução da escala de observação


Uma das questões centrais no estudo da micro-história é a mudança nas escalas de observação. Numa
clara inspiração antropológica, a micro-história desloca seu foco para o nível microscópico, isto é, para
a investigação das representações dos indivíduos dentro de uma estrutura, considerando as suas opções
de lance dentro do jogo social. Todavia, não deve ser visto como uma construção mecânica. Ou seja, não
se trata de uma observação de um pedaço de um universo maior, ou de um estudo de um ambiente
“micro” para explicar o “macro”. A mudança de escala permite observar os problemas sobre uma ótica
diferente. Sobre este expediente vale ainda esclarecer que, para a micro-história, “a redução da escala é
um procedimento analítico, que pode ser aplicado em qualquer lugar, independentemente das dimensões
do objeto analisado”22.
Porém, embora seja conceito central, a ideia de escala tem sofrido algumas interpretações
equivocadas. A redução da escala de análise no método da pesquisa micro-histórica joga com a
dimensão detalhada do enfoque e a perspectiva ampliada do contexto social que lhe atribui sentido
(enriquecido pelas novidades provenientes da microanálise). Todavia, aqui, vale a pena o lembrete de
Geertz, ao dizer que os antropólogos não estudam aldeias, mas em aldeias23.
Esta redução na escala é acompanhada do uso de artifícios apreendidos em campos como a
morfologia. Ginzburg, porém, apresenta-se ciente das limitações deste tipo de recurso e advoga as
especificidades da história. Assim, comentando o uso feito da morfologia em um de seus trabalhos, ele
escreveu: “eu não tinha dúvidas da natureza histórica das conexões que reconstruíra. Servira-me da
pesquisa morfológica como de uma sonda, para examinar um estrato profundo, inatingível por outros
meios”24. Todavia, lembra o mesmo historiador, este procedimento não substitui a investigação
historiográfica. A sonda morfológica que Ginzburg pilota ruma em direção a camadas subalternas, a
objetos de estudos singulares.

A opção por objetos de estudo inusitados


A micro-história revela, ainda, predileção por objetos pouco convencionais: bruxas, bandidos,
rebeldes etc. povoam os escritos de Ginzburg e outros adeptos desta forma de investigação. Todavia, se
autores como Michel Foucault (1926-1984) incentivaram estudos sobre processos de exclusão, sobre
hospitais, prisões, fábricas, na introdução d` O queijo e os vermes, Ginzburg afirma que a micro-história
interessa-se mais pelos excluídos, menos pela exclusão. Portanto, não se trata de um estudo do desvio
per si. Ginzburg afirma: “que os inquéritos micro-históricos tenham, em muitos casos, como objeto de
análise os temas do privado, do pessoal e do vivido, propostas com tanta veemência pelo movimento
feminista não é uma mera coincidência”25.
A opção da micro-história por estratos subalternos da sociedade relaciona-se ainda com a
necessidade de “testar” os paradigmas explicativos para determinadas realidades. No entanto, a micro-
história, afirma Ginzburg, não faz das temáticas camisas-de-força. A sua especificidade está antes ligada
à preocupação analítica, à abordagem de temas que não são centrais ou ainda a uma observação
inovadora sobre um tema clássico da historiografia. A forma escolhida para expor os frutos destes
trabalhos é a exposição romanesca.

A exposição “romanesca”
A opção dos micro-historiadores é por um novo formato de exposição. A escrita micro-histórica,
influenciada principalmente por romances policiais, utilizando-se de “procedimentos retóricos
destinados a produzir efeitos de realidade” 26, convida o seu leitor a participar da construção do objeto
de pesquisa e da sua interpretação. Neste processo, Ginzburg apresenta ao leitor as suas fontes da mesma
forma que, num típico romance policial, são apresentadas as pistas. O uso deste expediente é um dos
aspectos centrais para explicar o sucesso editorial da micro-história e, particularmente, dos trabalhos de
Carlo Ginzburg. Eis amostras desta forma de exposição, retiradas de dois clássicos escritos pelo
italiano. A primeira se encontra no há pouco mencionado O queijo e os vermes:
Os testemunhos se acumulavam; Menocchio pressentia que alguma coisa estava sendo preparada
contra ele. Foi então falar com o vigário de Polcenigo, Giovani Daniele Melchiori, seu amigo
desde a infância. Este o incentivou a se apresentar espontaneamente ao Santo Ofício, ou ao menos
a obedecer de imediato a uma eventual convocação. Avisou a Menocchio: ‘Diga o que eles estão
querendo saber, não fale demais e muito menos se meta a contar coisas; responda só o que for
perguntado27.
A segunda abre um capítulo de História noturna:
Bruxas e feiticeiros reuniam-se à noite, geralmente em lugar solitárias, no campo ou na montanha.
Às vezes, chegavam voando, depois de ter untado o corpo com unguentos, montando bastões ou
cabos de vassouras; em outras ocasiões, apareciam em garupas de animais ou transformados eles
próprios em bichos. Os que vinham pela primeira vez deviam renunciar à fé cristã, profanar os
sacramentos e render homenagem ao diabo, presente sob a forma humana (ou mais
frequentemente) como animal ou semi-animal.Seguiam-se banquetes, danças, orgias sexuais. Antes
de voltar para casa, bruxas e feiticeiros recebiam unguentos maléficos, produzidos com gordura
de criança e outros ingredientes28.
Porém, cabe um aviso. O sucesso das obras de Ginzburg e de outros estudos da micro-história não
decorre somente desta opção expositiva (e diria, também estética, característica esta digna de uma maior
investigação – algo que, evidentemente, foge ao escopo deste capítulo). Acontece que, aliado a este
cuidado na forma expositiva, há um lastro de erudição considerável, além de uma séria preocupação
analítica. A adoção de uma forma de escrita preocupada em apresentar-se palatável ao leitor não deve,
portanto, conduzir à falsa suposição de que a ocupação última da micro-história é a construção de uma
narrativa divorciada do rigor historiográfico. Pelo contrário, a prova, transformada para muitos em uma
espécie de “ilusão positivista”, é uma das inquietações de Ginzburg: “também eu sustento que encontrar a
verdade ainda é o objetivo fundamental de quem quer que se dedique à pesquisa, inclusive os
historiadores”. O italiano responde aos adeptos da redução historiográfica à retórica com aquela que,
segundo ele, seria a tese central de Aristóteles: “as provas, longe de serem incompatíveis com a retórica,
constituem o seu núcleo fundamental” 29.
Ao contrário do que afirma Joseph Fontana30, Ginzburg não parece se ocupar com produções
irrelevantes. Há, é verdade, momentos em que o próprio pesquisador italiano reconhece os limites do seu
método. É o que ocorre quando ele se lança na última parte de História noturna. Temos ali um imenso
esforço, no qual o autor se vale da longa duração (partindo do pressuposto de que a data em que o
fenômeno foi inicialmente registrado não é, necessariamente, a data do seu início)31 para, em meio às
“conjecturas euroasiáticas”, explicar as origens do sabá32. O cuidado em estabelecer investigações
rigorosas é um dos traços do trabalho de Carlo Ginzburg. E este é um dos seus conselhos aos demais
pesquisadores. A verdade, como observa Ginzburg, pode apresentar diversos níveis33. Contudo, muitas
críticas ainda se erguem devido à falta de atenção naquilo que poderia ser classificado como o traço
fundamental da micro-história.

Traço fundamental da micro-história


Para Giovanni Levi, o princípio unificador da pesquisa micro-histórica “é a crença em que a
observação microscópica revelará fatores previamente não observados”34. É o que Ginzburg faz.
Observe-se, por exemplo, a análise que ele estabelece a partir de Piero della Francesca35. Tomando a
obra de Piero como um meio de investigação do mundo cultural renascentista, Ginzburg se volta para a
clientela daquele pintor e para a iconografia que ele produziu. Desta forma, Ginzburg atende a um apelo
de Lucien Febvre36 (1878-1956) e faz das obras de Piero fontes para a história política e religiosa. Ou
ainda quando analisa um discurso do Papa João Paulo II (1920-2005). Neste último caso, por exemplo,
pode-se encontrar uma bela amostra do uso do seu “paradigma indiciário”.
No último ensaio da coletânea Olhos de madeira, intitulado Um lapso do papa Wojtyla, Ginzburg
comenta a nota publicada no Osservatore Romano sobre a visita de João Paulo II a uma sinagoga romana,
em 1986. Na ocasião, o Papa teria dito aos judeus presentes: “vocês são nossos irmãos prediletos e, de
certo modo, poderíamos dizer, nossos irmãos mais velhos”. Na aparentemente bem escolhida fala do
Pontífice, Ginzburg encontra um escorrego, um lapso. Um eco da vida do de João Paulo quando ele ainda
se chamava Karol Józef Wojtyła, da cultura dos seus dias de Cracóvia. Para explicitar do que se trata, o
historiador recorre à Epístola de S. Paulo aos Romanos (9:12-13). Ali se lê: “não por respeito às suas
obras, mas por causa da vocação de Deus, lhe foi dito a ela: o mais velho, pois, servirá ao mais moço,
segundo o que está escrito. Eu amei a Jacó, e odiei a Esaú”. “Amei Jacó”, isto é, os convertidos ao
cristianismo, e “odiei Esaú”, o “mais velho”, ou seja, os judeus. Ginzburg retoma, ainda, uma outra
passagem bíblica, presente em Gênesis 25:23: “duas nações estão no teu ventre, e dois povos sairão de
ti. Um destes povos vencerá o outro, e o mais velho vencerá o mais moço”37.

Considerações Finais
Creio que, de forma geral, são estas as características da micro-história praticada por Carlo
Ginzburg. Emergindo num contexto de encruzilhada vivenciado pelas ciências humanas, esta forma de
conceber a história serviu como abrigo a muitos pesquisadores. Evidentemente, esta proposta, ao buscar
oxigenar a História, abriu portas para modismos e trabalhos que seriam duramente criticados mesmo que
não requisitassem para si o prefixo “micro”. A desconfiança em torno da micro-história aparece em
observações como a de Keith Thomas: “o que sou é contra essa moda, que não acho nada atraente. Em
primeiro lugar, para fazê-la bem [a micro-história] há necessidade de um toque de gênio! À primeira
vista, pode parecer fácil, mas de fato não é”38.
Hoje em dia, a micro-história não aparece mais como grande novidade. A explicação talvez resida
na mudança de contexto. No Brasil, os livros de Ginzburg ainda são relativamente recentes (se
considerarmos que O queijo e os vermes teve a sua tradução apenas em 1987, uma década após a sua
publicação na Europa). Daí a sensação de euforia que ainda é transmitida quando se fala da micro-
história. Daí, também, as críticas descabidas baseadas tão somente no seu suposto “ethos micro”39.
Experimentando estas reações do público há décadas, Ginzburg se irrita e mostra ter a defesa na ponta da
língua: ‘’não estou interessado em etiquetas e rótulos. O que faço não pode ser considerado redutivo
porque não trato de uma história menor. O prefixo micro refere-se a uma dimensão analítica, não à
pequenez do objeto estudado. Com um microscópio se pode ver e examinar até um elefante”40.

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Sobre o autor
Dilton Cândido Santos Maynard é graduado em História e Mestre em Sociologia pela Universidade
Federal de Sergipe. Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-Doutor em
História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Departamento de História,
do Programa de Pós-Graduação em Educação(PPGED/UFS) e do Mestrado Profissional em História
(ProfHistória/UFS). É professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em História
Comparada/UFRJ. Tutor do Programa de Educação Tutorial do curso de História (PET História UFS).
Coordena o Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq). Pesquisador FAPITEC/SE.

Notas
1. Cf. J. Revel (Org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Trad. Dora Rocha. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.
2. GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII.
2ed.Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia das Letras, 2001 (publicado pela primeira vez em 1966,
com o título I benadanti: stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento); GINZBURG, Carlo. O
queijo e os vermes. 3 ed. Trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo:Cia da Letras, 2003 (publicado pela
primeira vez em 1976, com o título Il formaggio e i vermi: Il cosmo di um mugnaio del ´500);
GINZBURG, Carlo. Indagações sobre Piero: o Batismo – o ciclo de Arezzo – A flagelação. Trad. Luiz
Carlos Capellano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. il. (Oficina das Arte; v.4. Publicado pela primeira
vez em 1981, com o título Indagini su Piero); GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o Sabá.
2ed. São Paulo:Cia da Letras, 2001(publicado pela primeira vez em 1989, com o título Storia Noturna:
Una decifrazione del sabba).
3. GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de
janeiro: Bertrand Brasil, 1991 (Memória e Sociedade. Publicado pela primeira vez em 1989);
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Trad. Eduardo Brandão. São
Paulo: Cia das Letras, 2001(publicado pela primeira vez em 1998, com o título Occhiacci di legno –
Nove riflessioni sulla distanza); GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história.
2ed.Trad. Frederico Carotti. São Paulo: Cia das Letras, 2002 (publicado pela primeira vez em 1986, com
o título Mitti emblemi spie: morfologia e storia); GINZBURG, Carlo. Relações de força: história,
retórica, prova. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia das Letras, 2002 (publicado pela primeira vez
em 2000, com o título Rapporti di forza – storia, retórica, prova). GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é
uma ilha. Trad. Samuel Tintan Jr. São Paulo: Cia das Letras, 2004 (publicado pela primeira vez em 2000,
com o título Nessuna isola è un´ isola – Quattro sguardi sulla letteratura inglese).
4. J. Revel (Org.). Microanálise e construção social. Jogos de escalas: a experiência da microanálise.
Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.p.15-38
5. GINZBURG, Carlo. Prefácio. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. Trad. Frederico
Carotti. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p.7-14.p.cit. 7.
6. BURKE, Peter. O que é história cultural? . Trad. Sergio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
editor, 2005.
7. GINZBURG, C. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. A micro-história e
outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.169-
178.p.178.
8. Em entrevista a Maria Lúcia G. Pallares-Burke Ginzburg declarou: “quando dedidi estudar feitiçaria,
não estava fundamentalmente interessado na perseguição às bruxas, mas o que me seduzia era abordar as
perguntas dos inquisidores de modo a poder escapar de seu controle, o que evidentemente envolvia um
problema metodológico. Tinha a ideia de ler os processos nas entrelinhas e também a contrapelo,
desvirtuando, por assim dizer, as intenções das evidências; indo contra ou além das razões pelas quais
elas foram construídas. É o que Marc Bloch sugeriu quando falou sobre a estratégia de leitura tortuosa,
lendo, por exemplo, a hagiografia medieval não para conhecer a vida dos santos, mas como evidência da
história da agricultura medieval”. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. Carlo Ginzburg. As muitas
faces da Nova História: nove entrevistas. São Paulo: Editora UNESP,2000.p.269-306.p.285
9. GINZBURG, C. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. A micro-história e
outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.172
10. BURKE, Peter. O que é história cultural? . Trad. Sergio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
editor, 2005.
11. Vale notar que Ginzburg aponta a necessidade de delimitar a ideia de paradigma como dona de um
valor mais fraco e metafórico do que aquele ligado a Thomas Khun.Segundo ele, “a historiografia
continua a ser uma ciência pré-paradigmática”. GINZBURG, C. O nome e o como: troca desigual e
mercado historiográfico. A micro-história e outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de
janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.169-178.p.171. Cf. SANTOS, Irineu R. dos. A teoria do
desenvolvimento científico de Thomas S. Khun. Os fundamentos sociais da ciência. São Paulo: Polis,
1979. p.43-70GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. Mitos, emblemas e sinais:
morfologia e história. Trad. Frederico Carotti. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p.143-180. p.149
12. GINZBURG, C. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. A micro-história e
outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.169-178.
p. 176
13. O Moisés em questão é a estatua “Moisés”, localizada em San Pietro in Vicoli, Roma.Terminada em
1515, a peça em mármore foi originalmente concebida como um elemento para a tumba do Papa Júlio II.
As reflexões de Freud são motivadas, conforme o próprio autor, pelo fato de que: “nunca uma peça
estatutária me causou impressão mais forte do que ela”. FREUD, Sigmund. .O Moisés de Michelangelo.
Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XII: Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de
janeiro Edição Standard brasileira, Imago, s/d. p.251-280. Avanços interessantes sobre as observações
de Freud feitas à estátua de Michelangelo podem ser conferidas no seguinte artigo: MEDEIROS, Paulo
Roberto. Do Totem à lei: o Moisés de Michelangelo de Freud. Texto apresentado ao Ciclo de Palestras
Arte e Literatura promovido por Fundação Iberê Camargo. [on line]. Disponível na INTERNET via
http://www.recort.com.br/moises.html arquivo capturado em 16/04/2004.
14. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. Mitos, emblemas e sinais:
morfologia e história. Trad. Frederico Carotti. São Paulo: cia das Letras, 2002. p.143-180. p.150.
Ginzburg escreve: “o caçador teria sido o primeiro a narrar uma história porque era o único capaz de ler,
nas pistas mudas (se não imperceptíveis) deixadas pela presa, uma série coerente de eventos”.
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e
história. Trad. Frederico Carotti. São Paulo: cia das Letras, 2002. p.143-180.p. 152.
15. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. Mitos, emblemas e sinais: morfologia
e história. Trad. Frederico Carotti. São Paulo: cia das Letras, 2002. p. 166,167 e 177.
16. Cf. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. Keith Thomas. As muitas faces da Nova História: nove
entrevistas. São Paulo: Editora UNESP,2000.p.119-152.p.285
17. GINZBURG, C. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. A micro-história e
outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.169-178.p.
172 e 173.
18. LEVI, G.Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo: Editora
UNESP, 1992.p 136
19. Sobre descrição densa consultar: GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
LTC, 1989.LEVI, G.Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. Trad. Magda
Lopes.
20. GINZBURG, C. O Inquisidor como antropólogo: uma analogia s e suas implicações. A micro-história
e outros ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: Difel/ Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.203-
214.p.211
21. LEVI, G.Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo: Editora
UNESP, 1992.p.149
22. LEVI, G.Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo: Editora
UNESP, 1992.p. 133-162
23. Geertz afirmou que “o lócus de estudo não é o objeto de estudo. Os antropólogos não estudam as
aldeias (tribos, cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias. Você pode estudar diferentes coisas em
diferentes locais, e algumas coisas – por exemplo, o que a dominação colonial faz às estruturas
estabelecidas de expectativa moral – podem ser melhor estudadas em localidades isoladas. Isso não faz
do lugar o que você está estudando”. GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria
interpretativa da cultura. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.p.3-24.
24. GINZBURG, C. História noturna: decifrando o Sabá. 2ed. São Paulo:Cia da Letras, 2001. p.29
25. GINZBURG, C. História noturna: decifrando o Sabá. 2ed. São Paulo:Cia da Letras, 2001. p.29
26. Esta influência - que não se restringe ao gênero policial – é facilmente perceptível mesmo em títulos
como Indagações sobre Piero. Na tradução inglesa, o livro foi batizado de “The Enigma of Piero”. Há na
escrita Ginzburgiana, como lembra Revel, um pouco de “lances teatrais”. Cf. J. Revel (Org.).
Microanálise e construção social. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Trad. Dora Rocha.
Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.p.15-38.p.34
27. GINZBURG, C. O queijo e os vermes. 3 ed. São Paulo:Cia da Letras, 2003. p. 42
28. GINZBURG, C. O queijo e os vermes. 3 ed. São Paulo:Cia da Letras, 2003. p. 42
29. GINZBURG, C. Sobre Aristóteles e a História, mais uma vez Relações de força: história, retórica,
prova. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia das Letras, 2002. il. p.47-63. p. 68, 61 e 63.
30. Joseph Fontana reduz a micro-história a uma nota de rodapé. Afirmando que os envolvidos com a
micro-história “fazem do singular o objetivo final”, o historiador espanhol escreveu: “alguns artigos do
Quaderni storici não passam de notas de erudição irrelevante, revestidas de uma falsa legitimação
teórica”. Embora respeite a legitimidade da micro-história, Fontana ataca Ginzburg: “Ginzburg se lançou,
ademais, em especulações com escasso fundamento nos seus escritos sobre bruxaria”. FONTANA, Josep.
História depois do fim da História. Trad. Antonio P. Rocha. Bauru, SP: EDUSC, 1998.p.14
31. A terceira parte de História noturna, denominada Conjecturas Euroasiáticas/Ossos e Peles, gerou
polêmicas. Alguns resenhistas se recusaram a analisar esta parte do livro. Outros resenharam-na somente
como sendo o foco central do que Ginzburg quis dizer. Cf. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. Carlo
Ginzburg. As muitas faces da Nova História: nove entrevistas. São Paulo: Editora UNESP,2000.p.269-
306.p.285
32. Cf. GINZBURG, C. História noturna: decifrando o Sabá. 2ed. São Paulo: Cia da Letras, 2001.
33. É o que diz Ginzburg num artigo presente em Olhos de madeira: “a palavra ‘verdadeiro’ tem muitos
significados. Pode-se distinguir entre ‘verdadeiro’ segundo a fé e ‘verdadeiro’ segundo a história.
Podem-se distinguir diversos níveis de verdade histórica”. Cf. GINZBURG, Carlo. ECCE: sobre as
raízes culturais da imagem de culto cristã. GINZBURG, C. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a
distância. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Cia das Letras, 2001. p.113
34. LEVI, G.Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo: Editora
UNESP, 1992.p.139
35. Piero della Francesca (1420-1492). Pintor italiano do Renascimento. Cf. GINZBURG,
Carlo.Indagações sobre Piero. Nesta obra, o autor ocupa-se com a clientela e com a iconografia ligadas a
Piero della Francesca. Ginzburg busca estabelecer relações microscópicas entre os diferentes produtos
artísticos. GINZBURG, Carlo. Indagações sobre Piero: o batismo – o ciclo de Arezzo – a flagelação.
Trad. Luiz Carlos Capellano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. il. (Oficina das Arte; v.4).p.45,64.
36. FEBVRE, Lucien. Viver a história. Combates pela história. 2ed. Lisboa: Presença, 1985. p.28-41.
p.citada 40. Cf. GINZBURG, Carlo. Indagações sobre Piero: o batismo – o ciclo de Arezzo – a
flagelação. Trad. Luiz Carlos Capellano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. il. (Oficina das Artes; v.4)p.
25
37. Bíblia Sagrada. Trad. Pe. Antonio Pereira de Figueiredo. Com notas e completo Dicionário da Bíblia
por Dom José Alberto l. de Castro Pinto. Rio de Janeiro: Catholic Press, 1967. Na versão apresentada na
tradução portuguesa de Olhos de madeira, a expressão é a seguinte: “o mais velho será servo do mais
moço”. Cf. Ginzburg, Carlo. Um lapso do Papa Wotjla. GINZBURG, C. Olhos de madeira: nove
reflexões sobre a distância. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Cia das Letras, 2001.p.219-228.
38. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. Keith Thomas. As muitas faces da Nova História: nove
entrevistas. São Paulo: Editora UNESP,2000.p.119-152.p.120.
39. Aqui, novamente, vale recorrer ao próprio Clifford Geertz: “a noção de que se pode encontrar a
essência de sociedades nacionais, civilizações, grandes religiões ou o quer que seja, resumida e
simplificada nas assim chamadas pequenas sociedades e aldeias ‘típicas’ é um absurdo visível”.
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. A interpretação das
culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.p.3-24.p.15
40. Cf. Entrevista para o Jornal do Brasil. ARAUJO NETTO. A história sob microscópio. [on line].
Disponível na INTERNET via
http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernos/ideias/2001/08/17/joride20010817001.html arquivo
capturado em 29/09/2003
CAPÍTULO 3

UMA HISTÓRIA CONTADA A PARTIR DOS IMPRESSOS: NOTAS


BIOGRÁFICAS SOBRE UM LEITO E COLECIONADOR DE
IMPRESSOS1
Mirianne Santos de Almeida
Tâmara Regina Reis Sales
Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento
Ilka Miglio de Mesquita
Simone Silveira Amorim

aos poucos o indivíduo vai acumulando papéis e passando a existir através deles, indicando à
posteridade caminhos para a narração da memória da sua própria vida (MACHADO, 2010, p.
31).

E
ntre livros e folhetos encadernados, folhas amareladas pela ação do tempo. Impressos que
veiculam indícios de leituras, de um lugar de escrita, de um sujeito que eternizou facetas da sua
imagem. Em meio a centenas de títulos colecionados por Vicente Themudo Lessa, percorremos
indícios de caminhos trilhados, leituras feitas e ações desenvolvidas. Discorremos aqui sobre o leitor, o
colecionador, o escritor, o pastor, o professor, o sujeito que se fez protestante por meio dos impressos
lidos e salvaguardados.
A construção deste texto é fruto de indagações perseguidas ao longo da pesquisa que deu origem à
dissertação “Livros e Leitores: saberes e práticas educacionais e religiosas na Coleção Folhetos
Evangélicos (1860-1938)”, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade
Tiradentes (PPED/UNIT). Na ocasião, o caminho foi percorrido com o objetivo de “compreender, a
partir da Coleção Folhetos Evangélicos, que pertenceu ao Reverendo Vicente Themudo Lessa, a difusão
de saberes e práticas educacionais e religiosas no Brasil, entre 1860 e 1938” (ALMEIDA, 2013, p. 15).
Neste texto, a problematização segue a trilha biográfica, através de notas sobre a vida e atuação do
leitor e colecionador de impressos, aqui elencado como objeto de estudo. Destarte, cabe-nos questionar
quem foi Vicente Themudo Lessa. Por que salvaguardou a Coleção Folhetos Evangélicos? A leitura
daqueles títulos favoreceu sua atuação no grupo protestante ao qual pertenceu?
A possibilidade de reconstruir trajetórias de personagens, homens e mulheres, “[...] por intermédio
das ‘vozes’ que nos chegam do passado, dos fragmentos de sua existência que ficaram registrados”
(BORGES, 2006, p. 212), ocupa maior espaço entre os estudiosos e pesquisadores História da
Educação, ancorados nos pressupostos da História Cultural. A realização dos estudos biográficos
possibilita compreender a atuação do “[...] sujeito pesquisado na explicação histórica, rastreando os seus
caminhos e descaminhos, articulando suas experiências e aspirações, para descortinar um passado de
atuação numa dada sociedade” (MACHADO, 2010, p. 24). Segundo Darnton (2010, p. 147), “a leitura
tem uma história” e, para recuperá-la, ele sugere buscar leitores em documentos ou arquivos. Sendo
assim, o que Vicente Themudo Lessa comentou de suas leituras? Pensamos que a coleção de impressos
salvaguardada “revela uma faceta importante do trabalho intelectual [...] permitindo que se identifiquem
aspectos singulares de uma trajetória de leitura e escrita” (VENANCIO, 2006, p. 91).

A trajetória de Vicente Themudo Lessa


Pernambuco, o ano era 1874. Dia 22 de janeiro, num dos tradicionais engenhos, chamado Estrela do
Norte, localizado no município de Palmares, nasceu Vicente Themudo Lessa, filho de Antônio Prisciano
Themudo Lessa e Hermínia Eduarda do Rego Monteiro Themudo Lessa. Na figura abaixo a fotografia do
documento de identificação de Vicente Themudo Lessa, emitido em 17 de dezembro de 1917.

Figura 1. Documento de Identificação de Vicente Themudo Lessa (1917) Fonte: Acervo da família Themudo Lessa. Disponível em:
<www.sitiodosthemudolessa.blogspot.com>. Acesso em: agosto de 2012.

Além das ‘notas chromaticas’ informando a cor da pele, cor dos cabelos, dos olhos, o documento
informa o seu nome completo, detalhe inquietante. Ora, por que suprimir parte do sobrenome, nesse caso,
‘do Rego’? Nas páginas assinadas da Coleção Folhetos Evangélicos e nas obras que ele escreveu,
consta apenas Vicente Themudo Lessa. O sobrenome eliminado corresponde à herança materna. Seria
uma tentativa de postergar apenas o ‘Themudo Lessa’, herança paterna, tendo em vista que o filho que
leva seu nome, nascido em 1905, chama-se Vicente Themudo Lessa Júnior?
Na figura abaixo, montagem encontrada em um álbum de fotografias da família, é possível identificar
acima os dois avôs de Vicente Themudo Lessa, à esquerda Ignácio Themudo e à direita A. C. Rego
Monteiro. No meio está seu pai, Antônio Prisciano Themudo Lessa. À esquerda e à direita estão as fotos
do próprio Vicente Themudo Lessa. Pela anotação acerca da data, é possível inferir que ele estivesse
com 21 anos na fotografia da esquerda, já na foto da direita, pressupõe-se que estivesse com 60 anos.
Tais anotações causam estranheza pelo fato de as duas fotos serem praticamente iguais. Abaixo, está
Vicente Themudo Lessa Júnior, filho do Reverendo Vicente Themudo Lessa, por último está Alba
Christina, nascida em São Paulo, em 23 de dezembro de 1930, neta de Vicente Themudo Lessa.

Figura 2. Fotografias de cinco gerações da família de Vicente Themudo Lessa (1805-1934) Fonte: Acervo da família Themudo Lessa.
Disponível em: <www.sitiodosthemudolessa.blogspot.com>. Acesso em: agosto de 2012.

Como a própria figura sugere, são apresentadas cinco gerações da família Themudo Lessa na
montagem. A tentativa de postergar a história familiar através da preservação de fotografias antigas é
partilhada entre as novas gerações. Os integrantes da família criaram um espaço virtual na internet no
qual compartilham, entre eles, além de fotos, documentações históricas, como certidões de casamento e
nascimento, documentos de identificação, cartas pessoais.
A referência familiar foi determinante na formação do leitor e colecionador de impressos Vicente
Themudo Lessa. Corroborando com tal reflexão, Giselle Martins Venancio (2006), ao investigar a
trajetória de leitura de Francisco José de Oliveira Vianna, afirmou que “o fato de ter nascido numa
família letrada – sua mãe o havia ensinado as primeira letras – contribuiu seguramente para que Vianna
viesse a ampliar a sua condição de ‘grande leitor’” (VENANCIO, 2006, p. 91). História similar a de
Vicente Themudo Lessa que, aos cinco anos de idade, na companhia e auxílio maternal, aprendeu a ler:
Aos sete, já devorava os livros que caíam ao alcance de minhas mãos. Os primeiros que li foram
o Roldão amoroso, o Gil Braz de Santilhana, o Moço louro de Macedo, o Simão de Mântua, as
Flores silvestres de Bittencourt Sampaio, as Horas marianas (PEIXOTO, 1976, p. 275).
No tradicional engenho pernambucano, viveu até os oito anos de idade. Em virtude de uma mudança
de endereço, Vicente Themudo Lessa foi matriculado na escola primária de Água Preta. Numa entrevista
concedida a Silveira Peixoto (1976, p. 275), relembrou Vilela Araújo, seu primeiro professor, que
deixou recordações pelo uso frequente da palmatória – a Santa Luzia. “Era homem enérgico, que não
poupava a palmatória. [...] Possuía caligrafia magnífica e ainda conservo um livrinho de poesias de João
Duarte Filho, que ele me ofertou, com primoroso autógrafo”. O curso primário foi concluído aos 10 anos
de idade e, naquele momento, Vicente Themudo Lessa aprendeu rudimentos de francês com seu primeiro
professor, um ano depois foi para Recife e ingressou no Ginásio Pernambucano. Naquela instituição teve
como “professor de francês, o futuro Cardeal Arcoverde” e como “professor de latim, o admirável
latinista [...] Pereira Guimarães, autor de uma apreciada gramática latina” (PEIXOTO, 1976, p. 276).
Naquele momento, configurou-se a preferência pela História, decorrente das leituras de obras
históricas, bem como pela Geografia. O ingresso na escola de primeiras letras aguçou o gosto pela leitura
e o interesse pelo aprendizado de outro idioma, como o francês. Em seus textos, Midlin (1999) destaca
os primeiros contatos com a leitura e a importância dedicada à língua francesa na sua trajetória, segundo
ele, “a leitura foi algo que começou na infância e prolongou-se pelo resto da vida”, assim como Vicente
Themudo Lessa, fez “parte da geração de influência francesa”, leu “francês quase antes de ler coisas
brasileiras” (MIDLIN, 1999, p. 104).
A convivência com um tio, durante a infância, que dispunha de uma biblioteca particular composta
por obras seletas, dentre as quais a Bíblia, facilitou o contato de Vicente Themudo Lessa com a leitura.
Sobre o acervo da referida biblioteca ele afirmou:
Não tardei a entrar em contato com esses volumes, entre os quais figuravam a Bíblia e obras
históricas de valor, como a sinopse de Abreu e Lima, as Memórias históricas de Fernandes Gama,
Os mártires pernambucanos do padre Dias Martins, a Revolução de 1817 de Muniz Tavares, a
Crônica da rebelião praieira de 48 de Figueira de Melo, a Dicionário Bibliográfico de
Pernambucanos Célebres de Pereira da Costa (PEIXOTO, 1976, p. 276).
Segundo Venâncio (2006, p. 90), no contexto social do século XIX, onde “as letras representavam
importantes bens simbólicos”, o acesso à cultura letrada era para poucos. Destarte, saliento o fato de
dispor de uma biblioteca particular e dos estímulos à prática da leitura no ambiente familiar, embasada
no que afirmou Chartier (1996, p. 36): “de acordo com a sociologia das práticas culturais, a leitura é uma
arte de fazer que se herda mais do que se aprende”.
As dificuldades financeiras foram o empecilho suficiente para afastar Vicente Themudo Lessa do
espaço formal de educação, a escola. Todavia, não foi suficiente para apartá-lo da leitura. Numa
entrevista concedida a Silveira Peixoto, ele narrou detalhes do seu primeiro emprego, conquistado aos 13
anos, como caixeiro comerciante e, naquela época, da sua relação com a leitura:
O trabalho ia das seis da manhã às nove da noite. Nada disso, porém, conseguiu dominar minha
inclinação para os livros. No sótão em que dormia, ficava até cerca de onze horas da noite, lendo
e estudando, à luz de uma vela. Aos quinze anos, era sócio subscritor do Gabinete Português de
Leitura, que mantinha imensa biblioteca [...] Júlio Verne empolgava-me. A Geografia e a História
atraíam-me. Naquele sótão, à luz de uma vela, quanto sonho eu sonhei! (PEIXOTO, 1979, p. 276-
277).
No emaranhado de sonhos e aventuras vivenciados através da leitura que tinha acesso no Gabinete
Português de Leitura, Vicente Themudo Lessa não percebia em si uma vocação para o comércio.
Fiz-me sócio da Associação dos Empregados no Comércio e matriculei-me nas aulas de
Português, Francês e Aritmética, mantidas por essa entidade. Estudei uns dois anos. As aulas
começavam pouco depois das nove da noite, hora em que as lojas fechavam suas portas. Depois
das aulas, ia para minha água-furtada, preparar as lições. (PEIXOTO, 1979, p. 278).
O desejo de abandonar o comércio foi concretizado depois de assistir a um culto protestante, aos 16
anos de idade, quando teve a oportunidade de ouvir a pregação do evangelho na Igreja Presbiteriana, no
dia 3 de agosto de 1890, na ocasião ministrada pelo Rev. William Calvin Porter, ordenado poucos meses
antes. Não tardou a abraçar a religião evangélica, passados três anos, no dia 12 de novembro de 1893,
optou por exercer a profissão de fé perante o Rev. Dr. George W. Butler. Para seguir a carreira no
ministério sagrado, iniciou os estudos preparatórios e teve como professores “Eduardo Carlos Pereira,
F.J.C. Scheider, Remígio de Cerqueira Leite, Augusto Baillot, Canuto Thormann, Oscar Nobiling e
Ernesto de Oliveira” (PEIXOTO, 1979, p. 277). Naquele contexto, os missionários presbiterianos
erguiam igrejas, hospitais e escolas, com o objetivo de evangelizar e educar cidadãos brasileiros, grande
parte analfabetos, nos moldes protestantes.
Após a conversão, Vicente Themudo Lessa dedicou-se ao ministério pastoral no Seminário
Presbiteriano, localizado em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, e estudou, com afinco, Inglês, História,
Geografia, Aritmética e rudimentos de Grego e Hebraico. Em 25 de janeiro de 1895, foi transferido para
o seminário localizado em São Paulo. Em junho do mesmo ano, o jovem estudante pernambucano realizou
sua primeira viagem, na qual pregou seu primeiro sermão, baseado em João 3.16, na cidade de Bragança.
Visitou Jundiaí, Itatiba, Rio Claro, Brotas, Ventania, Dois Córregos e Jaú.
Aos 26 anos, Vicente Themudo Lessa concluiu os estudos teológicos. Teve como mestres John
Rockwell Smith, Eduardo Carlos Pereira, Francis J. C. Schneider, Remígio de Cerqueira Leite, Baillot,
Oscar Nobiling e outros. Durante o período de formação, estudou com Francisco Lotufo, Erasmo Braga,
Baldomero Garcia, Manoel Alfredo de Guimarães, entre outros, além de trabalhar no campo de Jaú como
auxiliar do Reverendo Herculano de Gouvêa.
Vicente Themudo Lessa foi o primeiro ministro presbiteriano brasileiro ordenado no século XX. Sua
ordenação, pelo Presbitério de São Paulo, ocorreu em Jaú e teve como membros da comissão
examinadora Herculano de Gouvêa, João Vieira Bizarro, Laudelino de Oliveira Lima e o presbítero
Arlindo Ferraz. Doravante, procurou seguir sua profissão de fé disseminando a Palavra Sagrada. Visitou
os estados de Sergipe, Bahia, Alagoas, Ceará e Maranhão, em 1904, disseminando o conhecimento
religioso a serviço do Presbitério.
No início de seu ministério, casou-se pela primeira vez com Henriqueta Pinheiro, com quem teve
seis filhos. Em 1913, casou pela segunda vez com a professora Francisca Leme, haja vista que sua
primeira esposa veio a falecer ao dar a luz ao sexto filho. Vicente Themudo Lessa faleceu no dia 19 de
novembro de 1939, depois de suportar cólicas hepáticas e crises de asma, e foi sepultado no Cemitério
dos Protestantes, em São Paulo. De acordo com Pinheiro (1941, p. 6), “[...] prevendo sua morte no Sul,
trouxe consigo do seu querido Pernambuco o travesseiro de terra em que repousou a cabeça no seu último
sono”.
No dia 19 de dezembro, completado um mês da sua morte, foi realizada na 1ª Igreja Presbiteriana
Independente, em São Paulo, uma sessão memorial, na qual Albertino Pinheiro, seu cunhado e velho
amigo de mais de 40 anos, leu um texto em sua homenagem, que foi consultado no decorrer da
investigação. Em 7 de julho de 1940, Francisca Leme (1874-1952), membro da 1ª Igreja Presbiteriana
Independente de São Paulo, viúva do Reverendo Vicente Themudo Lessa, doou à biblioteca da Faculdade
de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente os títulos colecionados pelo marido. Em sua
homenagem, a instituição que recebeu a doação deu seu nome ao Centro de Documentação e História
Rev. Vicente Themudo Lessa, localizado na 1ª Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo.
As marcas de um sujeito que tomou para si a missão de difundir saberes e práticas educacionais e
religiosas são refletidas nas páginas envelhecidas dos títulos que compõem a Coleção Folhetos
Evangélicos. Através das assinaturas de Vicente Themudo Lessa, é possível inferir que muitas
publicações foram compradas, ganhadas ou tomadas de empréstimo ao longo de suas viagens. Nos
impressos, figuram também dedicatórias dos próprios autores destinadas a Vicente Themudo Lessa.
Assumindo a missão de professar a fé protestante, galgou espaços para além dos muros da igreja,
visitando lares e proferindo a Palavra Sagrada em diversos espaços, Estados brasileiros e públicos
diferenciados, convivendo com pessoas desconhecidas e em lugares diferentes. Das experiências vividas
até aquele momento, teve início a carreira de escritor, estreada com a publicação do seu primeiro artigo
no jornal O Estandarte. Dedicou-se em especial a escrever necrológios, uma maneira de homenagear
aqueles que considerava personagens importantes e que deveriam ser lembrados. Ao passo que Vicente
Themudo Lessa consagrou sujeitos como intelectuais, criando uma representação social, ele também se
elegeu um intelectual.
O contato com a leitura se fez presente em vários momentos na vida de Vicente Themudo Lessa.
Entre grifos e poucas anotações, ele fez comentários breves, descrições sintéticas do que leu. Na
Coleção Folhetos Evangélicos, é possível identificar uma vasta quantidade de títulos sobre o
Protestantismo e sobre outras correntes religiosas que, provavelmente, contribuíram para a construção de
si como protestante. Afinal, o protestante se faz protestante por meio da leitura. Os ensinamentos
apreendidos nas leituras eram aplicados no cotidiano da vida de um difusor protestante, seja nas
pregações como pastor, seja nas aulas que ministrou, seja nas obras que escreveu. O folheto Visão de um
domingo de manhã, publicado em 1922, em São Paulo, traduzido do inglês por Vicente Themudo Lessa,
é um indício de que ele era poliglota. A compreensão de outros idiomas também é evidenciada pela
presença, na Coleção Folhetos Evangélicos, de títulos em espanhol. Entre outros títulos figuram: Las
cartas de Pablo, El Sandero Perdido, Il Camino Perduto, Che credono i protestante, La oracion de um
chino y su respuesta, La paz de Dios. Vicente Themudo Lessa dedicava-se à leitura de obras em
português, inglês, francês, italiano, espanhol, latim, grego e esperanto.
Da formação sólida dos líderes protestantes, dependia a consolidação do Protestantismo no território
brasileiro, por meio da difusão de saberes e práticas religiosas desenvolvidas em diversos espaços
sociais e atuações de professores, pastores, escritores, historiadores. Inúmeras foram as maneiras e os
espaços galgados por personalidades visando firmar a religião protestante no Brasil. Em 1907,
transferido para São Luís do Maranhão a serviço do Presbitério, Vicente Themudo Lessa desempenhou
atividades evangelísticas desde Manaus até a Bahia. Sua volta para São Paulo foi marcada por novas
atribuições no Colégio Evangélico da Igreja Presbiteriana Independente, onde foi diretor até meados de
1919, vice-reitor do seminário da referida instituição e docente de algumas disciplinas. Tais atividades
datam dos anos de 1912 a 1919. Foi considerado, no meio protestante, um dos pilares da história da
Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, haja vista sua participação junto a outros intelectuais
protestantes, na criação de um novo segmento da denominação presbiteriana brasileira.
Fundada na noite de 31 de julho de 1903, na cidade de São Paulo, a Igreja Presbiteriana
Independente do Brasil surgiu do confronto que envolvia questões de ordem religiosa mescladas entre
ideais maçônicos e presbiterianos. O descontentamento oriundo dessas tendências religiosas encorajou
um grupo de sete pastores, dentre eles Vicente Themudo Lessa, a fundar uma igreja livre do segmento
maçônico. Conforme Venancio (2006, p. 90), colecionar livros era uma etapa importante para a formação
intelectual e possuir uma biblioteca particular, coleções, “estantes cobertas de livros, uma quantidade de
raridades ou de livros [...] simbolizavam para os seus pares sua importância intelectual”. De acordo com
Freitas (2006, p. 150), ao estabelecer contato com os grupos nos quais o sujeito pesquisado esteve
inserido, pode-se apreender suas individualidades, pois, “[...] diferentes interações que estabeleceram
para a ação no espaço público [...] produziram conquistas pessoais”.
Na missão de propagar a fé protestante, o Reverendo Vicente Themudo Lessa percorreu todos os
Estados brasileiros, visitando 754 localidades. Seu ministério durou quase 40 anos e, nesse período de
atuação, esteve no Estado de São Paulo em 293 lugares, pregou a Palavra Sagrada 5.319 vezes, organizou
20 igrejas, batizou 1.490 crianças. No ano de 1925, foi presidente do Sínodo, órgão maior da Igreja
Presbiteriana Independente, após ter ocupado o cargo de presidente do presbitério 12 vezes. Vicente
Themudo Lessa foi membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, bem como dos Institutos
Históricos de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Alagoas, Sergipe, Espírito Santo e Santa Catarina. A
produção de livros e textos estava atrelada ao objetivo maior: consolidar e perpetuar o Protestantismo no
Brasil.
O contato com a Palavra Sagrada e impressa tornou-se frequente e necessário no exercício do
ministério sagrado. Ao exercer as funções de pastor, professor, escritor e historiador do Protestantismo
brasileiro, Vicente Themudo Lessa buscava, por meio da salvaguarda e leitura daqueles impressos
religiosos, veículo de aquisição de conhecimento, seu crescimento pessoal, profissional e intelectual. O
hábito da leitura “não é somente uma operação abstrata; ela é engajamento do corpo, inscrição num
espaço, relação consigo e com os outros” (CHARTIER, 1998, p. 16). Nesse sentido, o líder religioso
encontrou na leitura a possibilidade de se fazer protestante, compreendendo os ideais religiosos, para
então poder atuar e contribuir para a consolidação do Protestantismo no Brasil.
As marcas e anotações de leituras ainda se fazem presentes nas páginas da Coleção Folhetos
Evangélicos, e, nesta pesquisa, dão luz a indícios da leitura de Vicente Themudo. Nas anotações mais
tímidas, figuram palavras recorrentes, a exemplo de paz, salvação, Deus, fé e amor. Entre comentários e
reflexões que resistiram à ação do tempo é pertinente mencionar as folhas amareladas do folheto A
Origem do Protestantismo. Trata-se de uma publicação em defesa dos princípios da religião protestante
e daqueles que se converteram, na qual Vicente Themudo Lessa deixou marcas de sua interpretação
afirmando que “ainda hoje os padres dizem que o amor de Deus é dado pelo sofrimento, pela dor e pela
morte. É o pecado e não a religião que nos causa sofrimento. A religião é bálsamo de nosso sofrimento”.
Esses vestígios são peças de uma formação leitora e protestante. Os argumentos apresentados refletem a
discordância da religião católica em favor do Protestantismo, somados aos títulos que versam sobre o
embate entre católicos e protestantes ou que proferem críticas ao Protestantismo, são indícios de que
Vicente Themudo Lessa tomou para si a missão de propagar os ideais religiosos, para tanto, dedicou-se a
conhecer o Catolicismo.
As múltiplas facetas adotadas por Vicente Themudo Lessa em prol da difusão dos ideais religiosos
protestantes foram alimentadas pela missão de professar a fé. A leitura contribuiu para enriquecer os seus
conhecimentos e nortear a sua prática enquanto líder do grupo ao qual pertenceu e esteve engajado. O
folheto Porque ignoramos a eternidade? foi escrito pelo ex-padre José Manoel da Conceição e conserva
as marcas de uma reflexão: “serei fiel até a morte e eu te deixarei a coroa da vida”. O referido título não
informa o ano de publicação, mas permanece com uma anotação datada de março de 1899, período no
qual Vicente Themudo Lessa estava concluindo seus estudos, com vistas a seguir o ministério pastoral.
O prestígio social, no grupo protestante, se fez presente durante a atuação de Vicente Themudo Lessa
no Protestantismo brasileiro, seja como professor, pastor, escritor, leitor ou colecionador de impressos.
A salvaguarda e a leitura de impressos revelam o investimento na aquisição do conhecimento da Palavra
Sagrada. A Coleção Folhetos Evangélicos é composta de títulos que foram oferecidos ao Vicente
Themudo Lessa, alguns títulos têm dedicatórias de autores ou de amigos, outros com a assinatura de
outras pessoas, indícios de que ele tomava livros emprestados.

A Coleção Folhetos Evangélicos


Compreendemos a salvaguarda de impressos como reflexo e possibilidade de uma formação
intelectual, no caso de Vicente Themudo Lessa, a construção de si como protestante. Todavia, ao
investigar a trajetória de um sujeito que vivenciou o contexto do social do Brasil oitocentista e,
principalmente, do século XX, há que se considerar o valor simbólico que foi dedicado à posse do livro,
momento em que “o tamanho das bibliotecas era frequentemente associado ao refinamento intelectual de
seus proprietários”, assim, o fato de possuir “um grande acervo de livros significava ser visto e
respeitado como um intelectual erudito, além de ser, evidentemente, um registro de suas atividades
intelectuais” (VENANCIO, 2006, p. 90).
Segundo Roger Chartier (2002), para compor uma história dos impressos, é necessário traçar um
perfil dos títulos analisados e, principalmente, da materialidade dos textos. Para o autor, o texto não
existe em si mesmo, pois cada suporte, cada forma, cada estrutura da transmissão da escrita interfere na
construção do sentido.
Ao longo da história, os textos tiveram vários suportes: o rolo, o códice, o livro impresso e a tela.
Chartier (2002) defende que, ao mudar o suporte do texto, o entendimento também é modificado. Por essa
razão, ao estudar o impresso, é preciso estar atento às particularidades do seu suporte. Na sua
construção, os produtores lançam mão de diversos dispositivos formais para definir o público que irá
consumi-lo e garantir uma determinada leitura. Desse modo, consideramos pertinente analisar a
materialidade dos títulos que compõem a Coleção Folhetos Evangélicos, compreender as
especificidades do suporte e os dispositivos de conformação da leitura.
A Coleção Folhetos Evangélicos é composta por 644 títulos, encadernados em 47 volumes. É
pertinente ressaltar o bom estado de conservação do referido conjunto de impressos, visto que muitos
títulos foram produzidos na segunda metade do século XIX. Cada volume da coleção possui mais de 14
títulos, mas há alguns com menos, encadernados com material resistente. A uniformidade e a sistemática
da sua composição são refletidas desde a identificação na capa, seguida pelo sumário manuscrito
informando a ordem dos títulos, com identificação da autoria. Segundo Martins (1998), as capas
representam a identidade da coleção e possuem, também, a função de auxiliar o leitor na escolha do
conteúdo.

Figura 4: Capa da Coleção Folhetos Evangélicos (lateral e frente) Fonte: Coleção Folhetos Evangélicos. São Paulo: Centro de
Documentação e História Reverendo Vicente Themudo Lessa, 2010.

A figura apresentada corresponde à lateral e à frente da capa do volume 9, assim como todos os
outros volumes, contem informações em letras douradas, iniciando pelo nome da coleção, o número do
volume e as iniciais V. R. T. L, que correspondem ao nome completo do seu dono: Vicente do Rego
Themudo Lessa. A opção de colocar as informações apenas na lateral da capa, provavelmente, se
justifica pela praticidade e organização da coleção na estante, favorecendo o acesso e a ordem
sequencial. A maioria dos títulos é do mesmo tamanho, o que possibilitou compor os volumes; entretanto,
uma pequena quantidade foi cortada em uma de suas extremidades para ajustar-se à encadernação. Após
o sumário, cada volume apresenta um selo de identificação da biblioteca.

Figura 5: Selo da Coleção Folhetos Evangélicos Fonte: Coleção Folhetos Evangélicos. São Paulo: Centro de Documentação e História
Reverendo Vicente Themudo Lessa, 2010.

O selo apresentado corresponde ao primeiro volume e, provavelmente, foi adotado antes da


composição da coleção investigada, uma vez que outros títulos possuem o mesmo selo, com variação das
cores azul e verde, além do rosa. A informação apresentada acerca do ano de publicação e número,
representado pela letra ‘N’, possivelmente, sugere o controle dos títulos da biblioteca.
Segundo Souza (2009, p. 101), na produção de impressos, foram utilizadas algumas estratégias para
atrair os leitores, uma delas era o embelezamento da obra, feito pelos ilustradores, “era comum o uso de
vinhetas, ornatos tipográficos”. Na Coleção Folhetos Evangélicos, constam 213 títulos com vinhetas,
contudo, deve-se considerar que nem todos os impressos possuem capa, por problemas de conservação
ou por terem sido produzidos sem elas. As capas, quando existem, são coloridas em tons de rosa, azul ou
verde. Outro adereço utilizado para decorar o texto é a primeira letra do capítulo que, no conjunto de
impressos analisado, figuram 357 títulos com a letra do capítulo estilizada. Particularidades como essas
eram consideradas relevantes na confecção do texto de modo que garantisse a sua legibilidade. Na
maioria dos volumes da Coleção Folhetos Evangélicos, foram utilizados caracteres simples como o
romano
[...] que pertence à família de tipo redondo, se distingue pela variação na espessura dos traços, no
desenho da letra e pela existência de remates ou serifas. Os editores sabiam que caracteres mais
elaborados forçam a atenção dos leitores, distraindo-os e irritando-os, fazendo-os abandonar a
leitura (SOUZA, 2006, p. 102).
Outro foco de atenção considerado para produção de impressos é a margem, parte do papel em
branco entre a parte impressa e as extremidades da folha, esta permite o descanso da visão bem como
serve de espaço para pequenas anotações. As margens dos títulos que compõem a Coleção Folhetos
Evangélicos são irregulares e, em virtude do processo de encadernação, muitas foram cortadas. A análise
das especificidades materiais da Coleção Folhetos Evangélicos permite inferir uma estratégia utilizada
não para vender os títulos, mas para conduzir as leituras. Dispositivos críticos como notas explicativas,
prefácios e resumos, destinados a controlar as apropriações do leitor figuram nos títulos investigados.

QUADRO 1. DISPOSITIVOS DE CONDUÇÃO DA LEITURA


TIPO QUANTIDADE
Prefácio 437
Notas de Referência 389
Notas Explicativas 282
Apêndice 61
Resumo 35
Índice remissivo 19
Anexo 16
Notas do Tradutor 11

Fonte: Coleção Folhetos Evangélicos. São Paulo: Centro de Documentação e História Reverendo Vicente Themudo Lessa, 2010.

Conforme Souza (2009, p. 103), os aparelhos críticos, como os que estão listados no quadro acima,
“procuraram conduzir as leituras, fazer o leitor aceitar as representações elaboradas pelos produtores,
mas nem sempre essas estratégias lograram o êxito desejado”.
Os impressos, aqui analisados, são considerados objetos culturais, fruto de um contexto social que,
ao tempo que o legitima, também é instruído por ele. Pensar o livro como objeto cultural é assumir e
refletir a sua potencialidade de agir diretamente na mentalidade dos leitores que interagem com ele. A
Coleção Folhetos Evangélicos conserva particularidades da construção de um sujeito protestante, visto
que cada título foi previamente selecionado, encadernado e organizado em 47 volumes.

QUADRO 2. TEMAS DA COLEÇÃO FOLHETOS EVANGÉLICOS


TEMA QUANTIDADE
Protestantismo 389
Educação 106
Catolicismo X Protestantismo 55
Catolicismo 41
Espiritismo 31
Maçonaria 22

Fonte: Coleção Folhetos Evangélicos. São Paulo: Centro de Documentação e História Reverendo Vicente Themudo Lessa, 2010.

Diante das categorias expostas no quadro apresentado, ainda assim, surgem indagações: quais temas
figuram no que se intitulou Protestantismo? O que se priorizou dentro da categoria Educação? O que se
pode inferir acerca da presença de títulos de outras correntes religiosas num conjunto de impressos que
recebeu o nome de Coleção Folhetos Evangélicos? Teria sido projetada para a construção de outros
sujeitos, possivelmente, transformados em difusores da palavra protestante? Os 389 títulos reunidos na
categoria Protestantismo versam sobre diversas temáticas da religião, como a Bíblia, Cristo, Fé,
Salvação, Domingo, Oração, Reforma, Oração, Batismo, culto, além de relatórios de despesas, estatutos
e regimentos de instituições educacionais, livros de cânticos e sermões, biografias de personagens de
prestígio no meio evangélico.
Segundo Watanabe (2011, p. 46), os primeiros escritos acerca das obras iniciais dos protestantes no
Brasil foram os relatórios dos missionários norte-americanos, para informar sobre “as possibilidades de
implantação de uma obra protestante no Brasil, alguns missionários foram enviados para coletar dados
geográficos, sociais, históricos e religiosos dos brasileiros”. Alguns historiadores têm dedicado suas
elucubrações analisando correspondências trocadas por sujeitos que atuaram na missão de difundir a
Palavra Sagrada via circulação de impressos. Nesse prisma, a documentação e a bibliografia sobre a
ação de 47 homens e uma mulher que trabalharam pela Sociedade Biblica Britânica e Estrangeira
(BFBS) no Brasil durante o século XIX foram colhidas em Cambridge University Library (UK) para
análise. “O corpus documental coletado é formado por 120 cartas e relatórios expedidos pelos 47
homens denominados de agentes da BFBS”, todos digitalizados pela pesquisadora Ester Nascimento, em
2010 (NASCIMENTO et all, 2012, p. 481).
Fruto de uma investigação inicial, “até o momento, foi possível verificar que, no período de 1818 a
1839, a BFBS enviou 17 agentes e, de 1840 a 1895, outros 28 homens” (NASCIMENTO et all, 2012, p.
481). A partir das 21 cartas traduzidas e analisadas, os autores apontam, dentre outros aspectos, o
empenho e compromisso na exequibilidade da “missão evangelizadora e alfabetizadora”, da mesma
forma que “a constante preocupação com o tratamento respeitoso e fraterno entre os membros da BFBS e
seus superiores, ao usar termos como ‘Verdadeiramente seu’, ‘Respeitosamente seu’, ‘Fielmente seu’ e
‘Caro Senhor’”, indícios da “devoção e o comprometimento com o trabalho que realizavam”
(NASCIMENTO, E. et all, 2012, p. 498).
Dentre os títulos que versam acerca da relação fé e ciência, vale ressaltar alguns: A Biblia e as
theorias Scientificas (S/D), A ressurreição de Christo perante a Sciencia, Auctoridade do Texto do
Novo Testamento (S/D), exemplares pertencentes a Collecção “Sciencia e Religião” e produzidos pela
Editora de José Pereira de Castro, localizada em São Paulo. Nascimento (2007, p. 203) destacou que a
formação do cidadão exigia uma soma de conhecimentos, “ancorados nos princípios da fé, da ciência e
nas exigências da preparação para o trabalho”. A tentativa de deixar à posteridade subsídios para
perpetuar a história do Protestantismo, das igrejas e dos sujeitos que pertenciam ao grupo é encontrada
em alguns títulos, a exemplo de Balanço Historico da Egreja Presbyteriana Independente Brasileira,
escrito pelo reverendo Eduardo Carlos Pereira e publicado em São Paulo; o impresso intitulado Traços
Históricos e Pontos Principais de Divergência das Igrejas Evangelica protestante e catholica Romana
(1874), de autoria Erch Stiller, e o impresso A Origem e História dos Baptistas (1860), de autoria de
S.H. Ford, publicado pela editora Sociedade Baptista Americana de Publicação, localizada nos Estados
Unidos.
No tocante à ‘Educação’, encontram-se os títulos que versam sobre Escola Dominical, Educação no
lar, Catecismos, Hinários e Instrução Pastoral. Os títulos reunidos conservam pistas do perfil de um
difusor de saberes e práticas protestantes, visto que os impressos destinados ao uso nas escolas
dominicais foram elaborados para o professor e para o aluno. Já os catecismos, por sua vez, também
projetados para as escolas dominicais, foram elaborados para instruir leigos, iniciantes quer na igreja,
quer na escola, quer no lar. Ressaltamos que os hinários foram incluídos no grupo que intitulamos
Educação pelo seu potencial pedagógico; à primeira vista podem não inferir uma relação com o ensino,
todavia, os títulos analisados na Coleção Folhetos Evangélicos apresentam conteúdo e objetivos
pedagógicos.
Ainda na categoria ‘Educação’ figuram títulos como O ensino religioso nas escolas públicas (1933),
produzido em São Paulo e de autoria de Aureliano Fonseca, o qual versa sobre a importância da religião
no ambiente escolar. Já o impresso intitulado Padrões para as escolas dominicais do Brasil, publicado
no Rio de Janeiro, traz informações acerca do papel do professor, da literatura apropriada, da
organização da sala de aula das escolas dominicais. Os catecismos também figuram neste grupo,
ferramenta pedagógica para o ensino da fé, elaborados em forma de pergunta e resposta, e alguns
ilustrados com o alfabeto ou com textos curtos que narram histórias de personagens bíblicas,
provavelmente, para atrair a atenção e facilitar a assimilação.
A imprensa também foi palco de batalhas no cenário religioso brasileiro. A disputa entre católicos e
protestantes fica evidente na identificação e respectiva análise dos títulos. São impressos de autoria de
pastores e ex-padres narrando a sua conversão ou refutando crenças católicas quanto ao culto a imagens e
santos; outros, de autoria de padres católicos, acusando os protestantes de hereges. Entre outros títulos,
destacamos o folheto Religião do Estado – Propaganda pela igualdade de cultos, perante a lei (1900)
que, como o próprio título sugere, trata-se de um combate à proteção oficial ao culto católico. O
impresso intitulado Era duro o coração do padre, mas com Deus não se brinca, escrito por um ex-padre,
conta como se deu a sua conversão; já o folheto A minha conversão: revelações de uma senhora à sua
amiga cathólica (1885), publicado no Rio de Janeiro pela Typographia Universal de Laemmert & Cia-
Imprensa Evangelica, reflete a tentativa de sensibilizar e atingir a todos os públicos e futuros
convertidos.
Princípios de liberdade, consciência social, embates entre católicos e protestantes são temáticas que
figuram na Coleção Folhetos Evangélicos. Entre os achados, destacamos uma carta escrita por Robert
Reid Kalley, intitulada Observações à Instrucção Pastoral do Excellentíssimo Bispo do porto, D.
Americo (1879), no qual o autor teceu comentários acerca dos princípios religiosos católicos e
protestantes. As críticas às crenças católicas são frequentes na carta:
[...] o que podemos dizer sobre os motivos de confiar na bemdita mãe do Salvador? – Ella é <<
bemdita entre as mulheres >>, e, conforme as palavras do Anjo << cheia de graça >>, mas não
está presente por todos os lugares, não sabe todas as cousas, não é toda poderosa, não possue
todos os recursos do universo – pois não é Deus. (...) O bispo nos diz que o nome de Maria lhe
communica mais confiança nas suas orações do que o nome de Jesus, e manifesta sua approvação
de que todos em todos os perigos e aflição invoquem Maria. (...) A confiança em Jesus, conforme
o Evangelho de S. Paulo, prohibe o peccador de seguir o Evangelho do Bispo (KALLEY, 1879, p.
1).
Através da análise dos títulos, pode-se observar uma gama de temas distintos do Protestantismo
apresentando argumentos que, ora refutam ora defendem o Catolicismo, o Espiritismo e a Maçonaria,
instituições fortes no Brasil. Teria sido uma maneira adotada por Vicente Themudo Lessa para conhecer o
contexto de outras visões religiosas e saber como portar-se diante da “batalha” religiosa na consolidação
do Protestantismo?
Em contrapartida, os católicos publicavam folhetos como Contra que cousa protestam os
protestantes? criticando o Protestantismo, as injúrias que, segundo o autor do título, são feitas a Deus, a
Bíblia e ao senso comum. Títulos que justificam o acesso limitado à Bíblia católica e dão vários motivos
para não se converter ao Protestantismo e ler as ‘Bíblias Falsificadas’ figuram entre a Coleção Folhetos
Evangélicos. Colheita de breves conselhos para santificação e felicidade da vida (1880), publicado em
Lisboa pela Livraria Cathólica, é outro exemplo dos títulos católicos colecionados pelo reverendo
Vicente Themudo Lessa para, provavelmente, conhecer os artifícios e argumentos dos adversários
religiosos. É possível localizar, entre os impressos analisados, títulos de autoria de padres católicos
contendo narrativas de viagens como Peregrinação aos Santos Lugares da Palestina, escrito pelo padre
Anselmo Goud e publicado em 1884 pela Tipografia do Thabor. O folheto intitulado Dae-nos Padres
versa sobre a vocação de ser padre, um dom dado por Deus e aceito pelo homem, este considerado uma
alma piedosa que faria triunfar nas igrejas, escolas católicas, imprensa e na sociedade em geral a palavra
de Deus, produzido pela Tipografia da Ave Maria em 1933, São Paulo, e escrito pelo Arcebispo
Metropolitano Duarte.
Entre outras temáticas, a Maçonaria foi pauta das publicações e reflexões entre protestantes. Segundo
Vieira (1980), entre outros grupos que colaboraram para a consolidação de projeto evangélico no Brasil,
a maçonaria fortaleceu a religião protestante no país. Alguns títulos identificados corroboram com a
afirmativa do autor, a exemplo de A Maçonaria e a Egreja Evangélica, escrita pelo pastor da igreja
metodista reverendo João Borges da Rocha. Publicado em Pernambuco, no referido folheto, a maçonaria
é defendida como uma sociedade humana compatível com qualquer religião e não seria diferente com o
Protestantismo. Essa defesa deu-se em função, segundo relatos do escritor no folheto citado, de uma
publicação de autoria do reverendo Eduardo Carlos Pereira, líder do movimento anti-maçônico que
culminou na criação da Igreja Presbiteriana Independente, em 1903, acerca de uma provável
incompatibilidade entre a Maçonaria e a igreja.
O Protestantismo, sob a ótica da ciência e da história, é refletido nos títulos que versam sobre a
relação fé e ciência, entre os quais estão: A Biblia e as theorias Scientificas, A ressurreição de Christo
perante a Sciencia, Auctoridade do Texto do Novo Testamento, exemplares pertencentes à Collecção
“Sciencia e Religião” e produzidos pela Editora de José Pereira de Castro, localizada em São Paulo.
Segundo Nascimento (2007, p. 203), a formação do cidadão exigia uma soma de conhecimentos,
“ancorados nos princípios da fé, da ciência e nas exigências da preparação para o trabalho”.
A tentativa de deixar à posteridade pistas da história do Protestantismo, das igrejas e dos sujeitos
que pertenciam ao grupo é encontrada em alguns títulos, a exemplo de Balanço Historico da Egreja
Presbyteriana Independente Brasileira, escrito pelo reverendo Eduardo Carlos Pereira e publicado em
São Paulo, o impresso intitulado Traços Históricos e Pontos Principais de Divergência das Igrejas
Evangelica protestante e catholica Romana (1874), de autoria Erch Stiller, e A Origem e História dos
Baptistas (1860), de autoria de S.H. Ford, publicado pela editora Sociedade Baptista Americana de
Publicação, localizada nos Estados Unidos.

Considerações
As anotações e grifos deixados na Coleção Folhetos Evangélicos refletem escolhas,
intencionalidades e permitem inferir que, após a conversão ao Protestantismo, Vicente Themudo Lessa
tomou para si a missão de conquistar novos adeptos à religião, formar e solidificar os grupos
protestantes. Essa atuação teve um efeito público, no sentido da intervenção social, e propiciou a
disseminação dos saberes e práticas religiosas e educacionais protestantes, postos em circulação no
Brasil dos Oitocentos e em meados dos Novecentos.
Diante da impossibilidade de conhecer o leitor, Vicente Themudo Lessa, de carne e osso, seguimos
uma das perspectivas da História da Leitura e investigamos o conteúdo dos impressos, sua materialidade,
na intenção de apreender marcas do leitor. Essas marcas que sobrevivem à ação do tempo, como fios e
rastros, testemunham uma vida guardada em papéis, eternizam a imagem de um sujeito que se fez
protestante, que guardou os impressos para se eternizar, guardou para se guardar e para nos guardar do
esquecimento.
A contribuição de Vicente Themudo Lessa para a consolidação do Protestantismo em terras
brasileiras é refletido nas suas ações como pastor, professor, escritor de diversas obras sobre a religião
e sobre personagens protestantes, mas também como leitor e colecionador de impressos preocupado com
a salvaguarda desse material. Os grifos e anotações deixam uma representação de um intelectual que
atuou na mediação e na propagação de saberes e práticas religiosas protestantes. Dentre os 644 títulos,
identificamos temáticas que abrangem o Protestantismo, o Catolicismo, a Maçonaria e o Espiritismo,
reflexos do interesse de Vicente Themudo Lessa por outras instituições religiosas, fortes no Brasil,
possíveis adversários numa disputa pelo espaço religioso.
A conservação dos títulos revela a preocupação com a salvaguarda e a circulação deste material
para difundir saberes e práticas educacionais protestantes. Para Chartier (1990, p. 22), o entendimento de
práticas perpassa os modos como, em uma dada sociedade, “os homens falam e se calam, comem e
bebem, sentam-se e andam, conversam ou discutem, solidarizam-se ou hostilizam-se, morrem ou adoecem
[...]”.
Nesse sentido, a Coleção Folhetos Evangélicos foi compreendida como objeto cultural, projetado
para difundir saberes e práticas educacionais e religiosas, fundamentados na Bíblia, que deveriam
nortear o comportamento dentro e fora da igreja, abrangendo as relações sociais. Comprometidos com a
causa religiosa, os convertidos deveriam dedicar atenção à leitura da Bíblia, para solidificar os saberes
que eram refletidos nas ações cotidianas. Ir à igreja, guardar o domingo para o Senhor, ler a Bíblia e orar
para manter-se no caminho Dele são exemplos de práticas veiculadas nos títulos investigados, estas
deveriam fazer parte do cotidiano dos cristãos protestantes.

Fonte e referências/Fonte
Coleção Folhetos Evangélicos. São Paulo: Centro de Documentação e História Reverendo Vicente
Themudo Lessa, 2010.

Referências
ALMEIDA, Mirianne Santos. Livros e leitores: saberes e práticas educacionais e religiosas na Coleção
Folhetos Evangélicos (1860-1938). Aracaju: Universidade Tiradentes, 2013. (Dissertação – Mestrado
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WATANABE, Tiago Hideo Barbosa. Escritos nas fronteiras: os livros de história do Protestantismo
brasileiro (1928-1982). Assis: UNESP/Faculdade de Ciências e Letras, 2011. (Tese - Doutorado em
História).

Sobre as autoras
Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento é Doutora em Educação (PU/SP). Coordenadora
do Grupo de Pesquisa História das Práticas Educacionais (GPHPE/CNPq/UNIT). Bolsista de
Produtividade do CNPq.
Ilka Miglio de Mesquita é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Tiradentes/UNIT. Possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, mestrado em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia, doutorado em Educação
pela Universidade Estadual de Campinas (2008), pós-doutorado em História da Educação pela UFMG
(2010-2011). Membro do Grupo de Pesquisa Historiar - Pesquisa, Ensino e Extensão em História da
Educação.
Simone Silveira Amorim é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Tiradentes/UNIT. Possui graduação em Ciências Contábeis pela Universidade Federal de
Sergipe, mestrado em Educação pela Universidade Federal de Sergipe e doutorado em Educação pela
Universidade Federal de Sergipe. Integrante do Grupo de Pesquisa História da Educação no Nordeste
Oitocentista (GHENO GT/SE), Grupo de Pesquisa História das Práticas Educacionais/UNIT/CNPq e do
Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos de Cultura da UFS/NECUFS.
Mirianne Santos de Almeida é doutoranda em Educação pela Universidade Tiradentes. Mestre em
Educação e Graduada em Pedagogia pela mesma universidade. Membro do grupo de pesquisa História
das Práticas Educacionais/UNIT/CNPq.
Tâmara Regina Reis Sales é Mestre em Educação (UNIT). Doutoranda do Programa de Pós-
Graduação da Universidade Tiradentes. Membro do Grupo de Pesquisa História das Práticas
Educacionais (GPHPE/CNPq/UNIT).

Notas
1. O referido texto faz parte do Projeto de Pesquisa coordenado pela Profa. Dra. Ester Fraga Vilas-Boas
Carvalho do Nascimento, intitulado Imprensa Protestante nos Oitocentos (2006) e, apoiado pelo CNPq
(Edital MCT/CNPq 02/2009; Edital Universal CNPq 14/2011 Faixa B; Bolsa de Pesquisador de
Produtividade, 2012).
CAPÍTULO 4

ITINERÁRIOS DE FELTE BEZERRA: ENTRE “O AROMA DAS


RÔXAS FLORES DE CAJUEIROS” E OS PROFESSORES QUE
MARCARAM SUAS MEMÓRIAS1
João Paulo Gama Oliveira
Eva Maria Siqueira Alves

F
elte Bezerra (1908-1990)2 constitui-se como um intelectual brasileiro nascido em Sergipe, estado
que concentrou a maior parte da sua vida, como também da sua vasta produção intelectual.
Residiu em Salvador/BA para cursar a graduação em Odontologia na Faculdade de Medicina da
Bahia (1930-1933), retornou a Aracaju/SE onde seguiu os caminhos do magistério e participou de
diferentes “estruturas de sociabilidade” (SIRINELLI, 1988) por mais de três décadas. Depois de 1959
migrou para o Rio de Janeiro, ali permaneceu até o final da sua vida.
Entre as décadas de 1930 e 1950 Felte Bezerra publicou livros, participou de congressos em
diferentes lugares do mundo, escreveu para a imprensa local acerca de diversas temáticas, envolveu-se
em polêmicas com seus opositores, realizou pesquisas científicas, só para citar algumas das ocupações
que permearam os “itinerários” desse intelectual. Além disso, cabe destacar que ele ocupou a
presidência do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, manteve correspondência ativa com os
renomados pesquisadores da área de Antropologia no Brasil, como bem mostrou Dantas e Nunes (2009),
fez parte da Academia Sergipana de Letras, entre outras confrarias e, sobretudo, buscou inserir-se nas
“redes” e “microclimas” que estruturavam a “sociabilidade” da intelectualidade sergipana de outrora
(SIRINELLI, 1986, 1988, 2003).
No âmbito do magistério fez parte da Congregação do Atheneu Sergipense3, primeiro como professor
interino de Inglês, depois catedrático de Geografia, chegando até a direção da renomada escola de ensino
secundário. Como também, foi um dos pioneiros professores na fundação do ensino superior em Sergipe
na função de catedrático de Antropologia na Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe, instituição
criada em 1951.
Diante da vastidão que envolve a vida de Felte Bezerra, o presente trabalho busca investigar seus
“itinerários” antes da sua consolidação como intelectual, assim lançamos o olhar para analisar sua
constituição como aluno do Colégio Tobias Barreto entre os anos de 1915 e 1924, os primeiros passos no
universo das letras e os personagens que fizeram parte da sua infância na cidade de Aracaju,
principalmente a figura de Abdias Bezerra. O estudo dos “itinerários” ocorreu através da análise das
origens do seu despertar intelectual nas instituições educacionais que frequentou e os mestres que foram
registrados nos escritos de Felte Bezerra. De acordo com o que escreveu Jean-François Sirinelli (2003):
[...] em todo caso, é possível e necessário fazer sua arqueologia [das estruturas de sociabilidade],
inventariando as solidariedades de origem, por exemplo de idade ou de estudos, que constituem
muitas vezes a base de ‘redes’ de intelectuais adultos. É lógico, sobretudo no caso dos
acadêmicos, remontar a seus jovens anos escolares e universitários, numa idade em que as
influências se exercem sobre um terreno móvel e em que uma abordagem retrospectiva permite
reencontrar as origens do despertar intelectual e político (SIRINELLI, 2003, p. 249−250, grifos
nossos).
A proposta não consiste em fazer uma genealogia como adverte Sirinelli, mas uma arqueologia, na
qual investigamos como a vivência estudantil e os seus professores, colegas e escolas, contribuíram para
conformar sua condição de intelectual. Jean-François Sirinelli (1998, 2003, 2006) ensina que a história
dos intelectuais não é uma história autônoma, nem fechada sobre si, pelo contrário, é aberta e localizada
no cruzamento das histórias política, social e cultural. Para o referido autor, o intelectual precisa ser
estudado a partir da sua atuação tanto no âmbito político como cultural ou da produção do conhecimento.
O teórico francês acentua que o meio intelectual constitui “um pequeno mundo estreito”, no qual, “os
laços se atam” em torno da redação de uma revista ou de um conselho editorial (SIRINELLI, 2003, p.
248).
Entendemos que as instituições educacionais também se configuram como um lugar no qual “os laços
se atam” a depender da “sensibilidade ideológica ou cultural comum e de afinidades mais difusas”.
Diante desse prisma, a análise dos itinerários permite visualizar como tais laços se conformaram ao
longo do tempo e os espaços frequentados por esse jovem estudante nas primeiras décadas do século XX.
Desse modo, faz-se necessário problematizar os itinerários da vida desse sujeito, não como agente
inerte situado em um tempo e um espaço e movido pelas circunstâncias de sua época, mas um ser com
vontades, medos e expectativas que, diante de escolhas efetuadas ao longo de diferentes momentos de sua
vida, construiu paulatinamente uma história, dentro de uma série de outras opções, ou não, que se
apresentavam naquele momento.

FELTE BEZERRA E SUA INFÂNCIA ENTRE “O AROMA DAS


RÔXAS FLORES DE CAJUEIROS”
Felte Bezerra nasceu em Aracaju, no ano de 1908 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 1990.
Filho de Abdias Bezerra e Esmeralda Araújo. Seu pai, o professor Abdias Bezerra, nasceu na cidade de
Siriri, no interior do Estado de Sergipe, no ano de 1880, filho do professor João Amâncio Bezerra e D.
Herminia Rosa Bezerra.
Segundo informações do próprio Felte Bezerra (1947), acerca do seu pai, Abdias frequentou as
escolas de Siriri, Japaratuba e iniciou seus estudos secundários no Atheneu Sergipense aos 17 anos,
quando passou a morar em Aracaju na casa do tio e farmacêutico Guilhermino Amâncio Bezerra. Não
concluindo os estudos por causa da doença de sua mãe, retornou a Siriri e, após o falecimento da mesma
em 1898, deixou Sergipe em 1900, para estudar no Curso Preparatório de Cadetes na Escola Militar de
Realengo, no Rio de Janeiro, local em que completou seus estudos secundários. Em 1902, na Academia
Militar da Praia Vermelha no Rio de Janeiro continuou a vida escolar, mas foi expulso de lá em 1904,
sob o pretexto de ter participado da “Revolta da Vacina”.4
De acordo com José Murilo de Carvalho (1978), após a Guerra do Paraguai em 1872 e o ingresso de
Benjamin Constant como um dos professores e um dos reformadores daquela escola militar, houve a
consolidação da influência positivista naquela instituição ao ponto de ser considerada pelo autor mais um
centro de estudo de matemática, filosofia e letras do que de disciplinas militares. A citada reforma
também transformou a Escola da Praia Vermelha em Escola Militar do Brasil, foi lá que estudou Abdias
até a sua expulsão juntamente com os colegas sergipanos Arthur Fortes e Alencar Cardoso. Ainda, acerca
da citada escola, o autor afirma:
Escola Militar da Praia Vermelha, sediada em prédio imponente, fora reaberta em 1874. Desde
então, e até seu fechamento em 1904, motivado pela participação dos alunos na Revolta da
Vacina, representou papel importante na vida da cidade e na política nacional. Separada da
Escola Central, que, sob o nome de Politécnica, se encarregou do ensino da engenharia civil, a
Escola Militar continuou a dar ênfase ao ensino das ciências e da engenharia. A quem completasse
os cinco anos do curso, [...], era concedido o diploma de bacharel em Matemática e Ciências
Físicas e Naturais, um título nada militar. [...]. Pelo lado cultural, paralelamente às matérias do
curso, fortemente centradas nas matemáticas, engenharias e ciências da natureza, os alunos
desenvolviam intensa atividade extracurricular em sociedades, clubes e revistas literárias
(CARVALHO, 2010, p. 139−141).
O caráter de formação cultural apresentado naquela Escola Militar pode ter contribuído na formação
do pai de Felte Bezerra que, naquela época ainda jovem e diante da participação na Revolta da Vacina,
Abdias Bezerra, em companhia dos sergipanos Arthur Fortes e Alencar Cardoso, além dos demais alunos
e oficiais envolvidos, foram presos, enviados ao Rio Grande do Sul e expulsos do exército. Somente um
ano depois, foram anistiados.
O trio de sergipanos expulsos da Praia Vermelha voltou a Sergipe. Assim que o grupo retornou, no
ano de 1906, Sergipe foi palco da Revolta Fausto Cardoso5, estando Abdias Bezerra e Arthur Fortes
diretamente envolvidos com os “Bacharéis do Recife”. Este último, inclusive, estava com Fausto
Cardoso, no momento da invasão do palácio do governo de Sergipe, que resultou na morte do deputado
opositor à oligarquia olimpista (SILVA, 2013). Ao tratar da “Revolução de 1906”, José Calasans
Brandão da Silva (2013) descreve seus líderes:
Em torno de Fausto – astro rei – moveu-se então quase todo o sistema sergipano. Intelectuais e
homens de negócios. Velhos políticos e moços idealistas. Um poeta singular, misto de cavaleiro
medieval e cidadão da revolução francesa: Artur Fortes; um senhor de engenho desabusado e
altivo: Manuel Dantas das Vassouras; um notável orador sacro e homem agitado: padre Leonardo
Dantas; um velho político experimentado e franco: Leandro Ribeiro de Siqueira Maciel, um moço
austero e professor de matemáticas: Abdias Bezerra;[...] Não era bem uma revolução, “era quase
uma festa” (SILVA, 2013, p. 186, grifos nossos).
Abdias Bezerra e Artur Fortes seriam esses “jovens e sonhadores intelectuais” – um era “poeta”; o
outro, “austero”; – que buscavam seus espaços nos embates das oligarquias dominantes do cenário
político sergipano. Seus nomes constituíram uma Assembleia apontada como ilegal pelos seus
adversários, levando em consideração que só alguns dos deputados tinham votos para serem
considerados eleitos. Os resultados da “Revolta de Fausto Cardoso” culminaram com uma breve atuação
do grupo ligado ao Partido Progressista no poder naquele ano.
No final da primeira década do século XX, algumas mudanças no quadro político local, fizeram com
que os membros daquele grupo, ora banidos do poder, fossem beneficiados de forma direta ou indireta
nas administrações “faustistas”. Os referidos exilados, esses que “[...] desde 1906 se sentiam
desprestigiados e/ou perseguidos, animaram-se, e o quadro político situacionista local adaptou-se ao
esquema dominante, um tanto impregnado de ranço militarista” (DANTAS, 2004, p. 35)6.
Entre os que colheram frutos anteriormente plantados, estavam os ex-deputados da assembleia
revolucionária, Arthur Fortes e Abdias Bezerra – ambos fizeram parte do grupo de deputados que
compunham o governo de Fausto Cardoso, após o golpe que retirou Guilherme Campos da presidência do
Estado em 1906, na chamada “Revolta de Fausto Cardoso”7. Os professores possivelmente se
enquadravam na união de diferentes interesses e perfis que resultaram no levante que contou com “[...]
velhos chefes políticos competindo pela liderança, e jovens e sonhadores intelectuais, a acreditar na
vitória do Direito e da Justiça, no advento de melhores oportunidades, sem jamais questionar a
organização da sociedade” (SOUZA, 1985, p. 174).
O escritor Mário Cabral (1948) também situa os professores Fortes e Bezerra, em conjunto com
Manuel Dantas, Leonardo Dantas, Costa Filho, João Mota, Olegário Dantas, Leandro Maciel, Antonio
Mota, Gumercindo Bessa e muitos outros. Abdias Bezerra exerceu cargos na administração pública
quando Maurício Graccho Cardoso8 (1922-1926) presidiu o estado de Sergipe. Nesse período, Abdias
atuou como diretor do Atheneu Sergipense, diretor da Escola de Comércio Conselheiro Orlando e
Diretor da Instrução Pública9. Além desses elementos da vida profissional, Abdias lecionou em vários
colégios da cidade de Aracaju e foi aprovado em concurso para a cadeira de Francês do Atheneu
Sergipense em 1908 (GUARANÁ, 1925). Todavia, não permaneceu naquela cátedra durante muito tempo,
passou por outras áreas do conhecimento, sendo a sua atuação na cadeira de Matemática, a mais marcante
da sua carreira no magistério (SOUZA, 2011).
Dentro dessa perspectiva, Abdias Bezerra é considerado como um liberal democrata que, em
conjunto com Arthur Fortes, Clodomir Silva, Péricles Azevedo, General Calazans, Amintas Jorge, entre
outros, participou da Campanha da Aliança Liberal contra o candidato paulista Júlio Prestes, mas logo se
desiludiu. Abdias Bezerra ficou viúvo muito cedo, tendo a educação dos seus filhos Felte e Floro
Bezerra sob a sua responsabilidade, casou-se pela segunda vez, sendo pai de mais três filhos. Foi nesse
cenário de um pai professor e ativo em diferentes instituições ligadas à política e à educação que cresceu
Felte Bezerra. Além da figura do pai, Felte conviveu com perdas, como a da mãe, no ano de 1915.
Conforme sua filha, Suzana Bezerra, Felte:
Foi criado por uma tia paterna, irmã de Abdias Bezerra de nome Euridices Bezerra, que morava
juntamente com seu pai, na mesma casa, na Rua de Arauá, se não me engano nº 330 ou 333, pois
perdera a mãe de parto quando tinha, apenas, 6 anos de idade e o irmão Floro com 4 anos. A mãe
de quem não guardava lembranças por tê-la perdido muito cedo chamava-se Esmeralda Bezerra.
O pai casara após 6 meses de viúvo, daí a tia ter feito o papel de sua mãe em razão de sua
madrasta Lola Bastos Bezerra ter tido 3 filhas mulheres. Ela se sentiu na obrigação em defesa dos
sobrinhos órfãos e fez o papel de mãe (BEZERRA, 2015, s/p).
Nas suas próprias palavras, em um texto que trata das memórias de sua vida ou dos “escritos de si”,
Felte Bezerra (1988) relata: “Perdi minha mãe, aos seis anos de idade. Contudo, não fiquei desamparado
e só, como um joguete em mãos trêfegas. Tive um pai a quem devo a formação de meu caráter, auxiliado
pela mão feminina de minha tia paterna Euridice”. Em outro trecho, trata da pobreza do seu pai e da sua
segunda família:
Meu pai sempre foi muito pobre, probo, altamente respeitado, mas sem recursos para manter-me
fora para estudar. Foi um simples professor de Província e vivia de seus minguados ganhos,
atingindo a paternidade de cinco filhos: meu irmão Floro, do primeiro matrimônio, e minhas irmãs
Maria, Dulce e Hermínia, filhas de minha madrasta (BEZERRA, 1988, p. 2).
Assim, Felte viveu seu período de infância, nas primeiras décadas do século XX, ao lado de seus
irmãos, do pai, da madrasta pouco citada em seus depoimentos e da sua tia, a quem atribui a sua
educação juntamente com o pai. Nas lembranças de Felte, ele demarca a posição de seu pai e sua
presença na sua escolarização, bem como os investimentos realizados para sua formação.
Acontecimentos marcados na sua memória e que se fizeram presentes nos seus escritos já nos seus
últimos anos de vida. Ali Felte Bezerra também registrou aspectos dos seus primeiros passos.
Sobre a infância de Felte na cidade de Aracaju, no início de 1900, as recordações de Mário Cabral
(1951) ajudam a vislumbrar aspectos de uma capital na fase anterior, ao bonde, ao cinema e ao asfalto.
Ao descrever suas memórias, o autor relembra que as crianças nas ruas arenosas brincavam de
calçadinha do rei, de cipozinho queimado ou, em noite de plenilúnio, de roda, de berlinda ou cabra-cega.
Segundo Cabral, era nítida a separação entre as brincadeiras de meninas e meninos – enquanto elas
brincavam de roda ou de pinta galo, tendo por limite a calçada ou a rua, eles iam mais longe,
desbravando não só as ruas, mas os terrenos baldios próprios para as brincadeiras como da manja. Entre
as formas de escolhas diretas e seleção nas brincadeiras de Aracaju de outrora, relembra algumas, entre
elas a seguinte:
Uma pulga na balança
deu um pulo
foi à França
os cavalos a correr
os meninos a brincar
vamos ver
quem vai
pegar (CABRAL, 1951, p. 185).
E assim transcorria a infância daqueles meninos e meninas que povoavam a capital de Sergipe; entre
eles, também estava Felte Bezerra. Conforme Dantas (2004), nos primeiros decênios de 1900, Sergipe
viveu um período de modernização, a economia diversificou-se, as indústrias têxteis se propagaram,
inclusive, aumentando o número de empregos. Houve a instalação de água encanada e da luz elétrica, os
bondes à tração animal e os carros elétricos, a primeira estrada de rodagem, telefone, mercado, entre
outras tantas inovações.
Loureiro (1983) explana sobre as mudanças na capital sergipana, como: a inauguração da rede de
esgoto e destaca a ocupação dos espaços centrais e uma estratificação sócio espacial entre o norte e o sul
da cidade. Ao norte, a cidade atingia o bairro Chica Chaves, atual bairro Industrial, onde residiam as
pessoas de menor poder aquisitivo; e ao sul, chegava-se a Fundição no extremo da Rua da Aurora. Na
região central da capital, morou Felte Bezerra. Epifânio Dórea forneceu outra visão sobre o início do
século XX na capital de Sergipe:
Quando nos fixamos nesta Capital, em maio de 1907, já não era possível saborear-se com a
facilidade de outrora, os cambuís, cambucás e gragerus dos arredores aracajuano, já sacrificados
pelo simplismo e imprevidência do povo.
Todavia, ainda encontramos, embora em escala mínima, o aroma das rôxas flores de cajueiros,
essa dádiva do céu que é a ganância humana procura fruir o mais que pôde, não zelando-a porém.
Havia donos de sítios, que propiciavam aos seus visitantes, nas épocas próprias, prazeirosamente,
a gustação de saborosos cajús.
E que lindos que eles eram! (DÓREA, 1954, p. 109/110, grifos nossos).
Foi nesse cenário de mudanças e transformações, com “o aroma das rôxas flores de cajueiros” dos
“saborosos cajús” da capital de Sergipe que cresceu Felte Bezerra, ao lado de sua família e já na fase da
adolescência, é descrito por Garcia Moreno da seguinte forma: “[...] daquele meúdo adolescente de
1924, ainda sem buço, de olhos vivos e rosto avermelhado de espinha, talvez com as suas primeiras
calças compridas, sentindo que era o último preparatório prestado, aos 15 anos de idade [...]”
(MORENO, 1952, p. 3).
Pelas descrições arroladas, Felte era filho de uma família de professores, seu avô paterno João
Amâncio Bezerra lecionava em Siriri, cidade do interior do Estado, e o pai Abdias Bezerra passou uma
infância difícil trabalhando em diversos ofícios, mas depois do retorno do Rio de Janeiro, sua vida foi
dedicada ao magistério e a outras funções relacionadas à educação. A figura do seu pai, o professor
Abdias Bezerra, é marcada pela cátedra no Atheneu Sergipense e pelos cargos públicos assumidos ao
longo da vida, aspectos que provavelmente contribuíram para a ida de Felte Bezerra à Bahia, a fim de
cursar o ensino superior, bem como para o seu retorno a Aracaju, acompanhado pelo automático ingresso
como professor interino no Atheneu Sergipense, em 1935. Antes disso todo o seu processo de
escolarização aconteceu no Colégio Tobias Barreto na capital de Sergipe.

ITINERÁRIOS DO ALUNO FELTE BEZERRA NO COLÉGIO


TOBIAS BARRETO: PROFESSORES QUE MARCARAM SUAS
MEMÓRIAS
Além de meu pai, cujas pegadas sempre em meu caráter e que foi meu professor secundário. Devo
muito a outro professor, Alcebíades Correia Paes, cujo lar frequentei em minha adolescência [...].
Abdias meu pai, e Alcebíades, [...], foram mestres de tudo, mas, sobretudo de caráter. Ambos
eram capazes de lecionar qualquer disciplina. Complementarmente, devo mencionar um terceiro
professor, Arthur Fortes, que também influiu com seus exemplos em minha formação. Abdias
ensinou-me um ano de francês, matemática, desenho geométrico, física e química. Alcebíades
ensinou-me um ano de francês, inglês, português, geografia e biologia. Fortes um ano de francês,
história geral e história do brasil. Devo assinalar que ainda estudei inglês (um ano) com Manuel
Franco Freire e Latim com José Augusto da Rocha Lima (BEZERRA, 1988, p. 2).
A partir dos escritos de Felte Bezerra, investigamos quem são esses professores que deixaram
marcas nas suas memórias e concomitantemente abordamos elementos da História da Educação em
Sergipe a partir dos itinerários do aluno Felte Bezerra no Colégio Tobias Barreto em Aracaju. No texto
escrito, quase meio século depois do vivido, Felte lembra o fato de frequentar a casa de Alcebíades
Paes, dos pais serem amigos e da influência na formação do seu caráter para além dos conhecimentos
escolares ensinados. Felte Bezerra refere-se a Alcebíades de maneira igualitária ao seu pai como
“mestres de tudo”, possivelmente tal denominação não está vinculada somente ao conhecimento que
permitia aos dois docentes lecionar várias áreas do saber, mas, sobretudo as contribuições fornecidas à
formação pessoal do jovem Felte.
Na capital de Sergipe, os antigos colegas da Escola Militar da Praia Vermelha, Abdias Bezerra
juntamente com Arthur Fortes, foram os primeiros a lecionarem no Colégio Tobias Barreto, assim como
fizeram parte da congregação do Atheneu Sergipense. Segundo o Dicionário de Armindo Guaraná (1926),
o professor Arthur Fortes10 foi nomeado professor vitalício da cadeira de História do Brasil e Geral do
Atheneu Sergipense por decreto de Oliveira Valadão, em 1916; já Abdias Bezerra ingressou por meio de
concurso nessa mesma instituição, em 1909.
Ao lado de Fortes e Bezerra, o professor Alcebíades Paes é citado por Felte Bezerra como um dos
professores que mais contribui no seu processo formativo. Alcebíades também foi professor do Atheneu
Sergipense, tendo ali ingressado em 1909 como professor de Inglês sendo graduado em Medicina
(ALVES, 2005). Já o professor José Augusto da Rocha Lima11 foi um dos sergipanos que viajaram para
outros estados do país para conhecer os métodos da Escola Nova12.
Rocha Lima era docente da Escola Normal Rui Barbosa, do Atheneu Sergipense e do Colégio Tobias
Barreto, além de inspetor da instrução pública, atuando de forma dinâmica nos diferentes espaços
educativos de Sergipe na primeira metade do século XX. Barroso (2011) considera que a viagem de
Rocha Lima a São Paulo a fim de conhecer as inovações pedagógicas ocorridas lá, sendo recepcionado
por Lourenço Filho, além da sua possível aplicação em Sergipe e a publicação do relatório acerca da
mesma, aumentaram o nível de influência do professor no campo educacional sergipano. Para a autora,
Rocha Lima criou laços com outros intelectuais da educação que defendiam a modernização pedagógica e
metodológica para o ensino primário e normal nas primeiras décadas do século XX.
Barroso (2011) também situa o professor Manoel Franco Freire, exposto nas memórias de Felte
Bezerra, ao lado de Augusto da Rocha Lima, Helvécio de Andrade, Rodrigues Dórea, Carlos Silveira e
Graccho Cardoso como sujeitos interligados nas tentativas de impor suas concepções de modernização
pedagógica em Sergipe. Franco Freire foi diretor da Escola Normal Rui Barbosa e da instrução pública
no final da década de 1920, além de exercer a docência de Geometria no Atheneu Sergipense, de Inglês
na Escola de Comércio Conselheiro Orlando e no Colégio Tobias Barreto13, configurando-se também
como um entusiasta pelos princípios da Pedagogia Moderna.
Ainda segundo a referida pesquisadora, Franco Freire, assim como Abdias Bezerra, Rocha Lima,
entre outros, não só atuaram como professores, diretores e inspetores da instrução pública, como também
compuseram o conjunto de técnicos que viajaram para outros estados a fim de observar o sistema
educativo “renovado” com o intuito de implantar em Sergipe.
As aulas que Felte Bezerra recebeu com esses professores ocorreram no Colégio Tobias Barreto, no
centro de Aracaju. Segundo Mangueira (2003), o Colégio Tobias Barreto foi criado em 9 de maio de
1909, na cidade de Estância/SE, por José de Alencar Cardoso, com o estímulo do seu pai, o professor
Severiano Cardoso14, como também do professor e seu tio Brício Cardoso. O colégio foi transferido,
quatro anos depois, para a cidade de Aracaju. Consoante o autor: “[...] a criação do Colégio Tobias
Barreto apresenta-se com o objetivo político de formar novos quadros para o grupo dos militares, bem
como viabilizar através da educação um caminho de compreensão do novo mundo: urbano-industrial, que
aparecia para Sergipe” (MANGUEIRA, 2003, p. 31).
Ainda sobre o período de estudos nessa instituição, Felte escreveu acerca do seu diretor e professor
primário: “Meu estudo secundário, o fiz, [...], no então famoso colégio Tobias Barreto, no curso primário
tive único decurião, pedagogo. O diretor deste, [...] colégio, José Alencar Cardoso, o professor Zezinho,
como era chamado. Excelente pedagogo que mais tarde foi concunhado de meu pai [...]” (BEZERRA,
1981a, p. 3). As memórias de Felte apontam para o nome daquele que foi seu primeiro docente, professor
Zezinho, o mesmo que atuou junto com seu pai na Revolta do Rio de Janeiro15.
Vale citar as assertivas de Bontempi Júnior (2010, p. 176) acerca da evocação das memórias no
tocante aos docentes em um estudo específico dos memoriais dos candidatos da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo, mas que dialogam com a presente pesquisa: “[...] na carreira de professor,
carregada de sentido missionário e ascético, parece ser preferível dar a entender que a escolha tenha-se
dado em um passado do qual teria emergido essa vocação a dizer que haja, a vislumbrar no futuro,
benefícios a obter posse do cargo”. Nos escritos de Felte Bezerra datados de 1988, o professor
aposentado busca “dar a entender que a escolha tenha-se dado em um passado do qual teria emergido
essa vocação”.
Na perspectiva de conhecer mais acerca do diretor daquele estabelecimento de ensino, localizamos
nas memórias do ex-estudante Joel Silveira, a severidade e o regime disciplinar do diretor, quando
Silveira descreve o que lhe aconteceu ao ter descumprido as regras daquele colégio: “E fui logo
correndo para a porta da saída, antes que o professor Benedito, subdiretor do colégio, surgisse com a sua
ameaçadora e impiedosa vara de bambu, da qual usava e abusava com grande maestria” (SILVEIRA,
1998, p. 22).
O caráter disciplinador permeava a instituição que também funcionava como internato16. Contudo, as
memórias de Felte Bezerra não fazem menção às regras, disciplina e mesmo aos castigos existentes na
busca pela manutenção da disciplina naquela escola. Felte Bezerra optou por registrar os nomes dos
docentes, as marcas deixadas no seu processo formativo e, dessa maneira, sua memória seleciona os
acontecimentos e os sujeitos que deveriam ficar marcados na sua história. Entre os sujeitos, estava Arthur
Fortes. Acerca dos ensinamentos desse professor, Felte escreveu um artigo, em virtude do centenário de
nascimento do “Poeta das Rosas Vermelhas” e de suas aulas no Colégio Tobias Barreto, destacando:
Com Artur Fortes iniciamos o conhecimento da língua francesa, mas muito especialmente a
História do Brasil e do Mundo, em magistrais preleções, encantadoras pelo conteúdo, a segurança
e a beleza de estilo com que eram proferidas. Ao termino de cada uma delas sempre sentíamos
uma ponta de desapontamento, porque a aula acabara ... Restava-nos aguardar a próxima com o
mesmo anseio e o mesmo entusiasmo com que nos contagiava o mestre. É grande o débito dos da
nossa geração para com o nomeado historiador.
Era bom vê-lo expressar-se em linguagem poética, mansa ou exacerbada, motejadora ou
economiástica, ao sabor das circunstâncias transmitindo-nos as cenas e os episódios que nos
descrevia, ao conseguir o milagre de nos tornar virtuais partícipes do que era relatado, tal a
nitidez com que vivia o que expunha.
Palavra fácil, clara, vibrátil repassada às vezes de VERVE e de um tom especial daquela
FINESSE do espírito francês, traindo a ascendência do notável CAUSEUR (BEZERRA, 1981a, p.
3).
O texto escrito aproximadamente sessenta anos depois daquelas aulas e em razão do centenário do
antigo mestre coaduna com o que ensina Pesavento:
Aquele que lembra não é mais o que viveu. No seu relato, há reflexão, julgamento, ressignificação
do fato rememorado. Ele incorpora não só o relembrado no plano da memória pessoal, mas
também o que foi preservado ao nível de uma memória social partilhada, ressiginificada, fruto de
uma sanção e de um trabalho coletivo. Ou seja, a memória individual se mescla com a presença da
memória social, pois aquele que lembra rememora em um contexto dado, já marcado por um jogo
de lembrar e esquecer (PESAVENTO, 2005, p. 94).
Nesse “jogo de lembrar e esquecer”, Felte Bezerra registrou nas suas memórias alguns dos seus
docentes como “mestres de tudo”. Dos professores citados, dois tiveram sua formação na Escola da Praia
Vermelha – Arthur Fortes e Abdias Bezerra. Conforme José Murilo de Carvalho (2010), naquela escola
tinha-se uma formação ampla no âmbito cultural, intelectual, político e social. A primeira desenvolvida
em atividades extracurriculares como sociedades, clubes e revistas literárias, além das matérias
centradas nas matemáticas, engenharias e ciências da natureza. No plano intelectual, contava-se com as
correntes de pensamento europeias, principalmente, o positivismo de Auguste Comte e o evolucionismo
de Charles Darwin e Herbert Spencer. No viés político, o autor cita o fato de a Escola estar envolvida
diretamente com a Abolição e a Proclamação da República no Brasil. Por fim, a dimensão social na qual
“[...] a Escola Militar da Praia Vermelha, não formava soldados, formava bacharéis fardados”
(CARVALHO, 2010, p. 145).
Foi com elementos dessa formação que Abdias Bezerra, pai de Felte, e Arthur Fortes deixaram a
capital do país e voltaram para Sergipe, ingressando na política e no universo da educação como
catedráticos no Atheneu Sergipense e professor de significativos colégios particulares como o Colégio
Tobias Barreto, instituição na qual lecionaram a Felte Bezerra. Do ensino no Tobias Barreto, ficaram as
marcas dos “mestres de tudo”.
Com esses e outros professores como Brício Cardoso e o próprio Alencar Cardoso, também diretor
do estabelecimento de ensino, Felte Bezerra estudou de 1915 até 1924. Mangueira (2003) afirma que
entre 1913 e 1924, o horário de funcionamento da instituição estava dividido em duas seções – a
primeira das 9h às 13h; e a segunda das 15h às 17h – o que o caracterizava como um colégio em tempo
integral. Conforme a Reforma Carlos Maximiliano (1915)17:
Art. 167. A distribuição das materias, no curso official de qualquer das secções do Collegio
Pedro II, será a seguinte:
1º anno - Portuguez, Francez, Latim e Geopraphia Geral.
2º anno - Portuguez, Francez, Latim, Arithmetica, Chorographia do Brazil e noções de
Cosmographia.
3º anno - Portuguez, Francez, Inglez ou Allemão, Latim, Algebra e Geometria plana.
4º anno - Inglez ou Allemão, Historia Universal, Geometria no espaço, Trigonometria rectilinea,
Physica e Chimica.
5º anno - Inglez ou Allemão, Physica e Chimica, Historia do Brazil e Historia Natural.
Paragraphounico. Haverá licções de Gymnastica e Desenho nos quatro primeiros annos (BRASIl,
1915).
Contrapondo o texto da Reforma de 1915, com o trabalho de Mangueira (2003), o autor identifica as
disciplinas ali lecionadas no citado período, sendo: História Universal, História do Brasil, História
Natural, Geometria, Álgebra, Física, Química, Geografia, Português, Alemão, Francês e Latim. Além dos
livros utilizados como os de Aritmética de Antônio Trajano, Geografia de Lacerda, Gramática de
Eduardo Carlos Pereira, História do Brasil de João Ribeiro e a Antologia de Fausto Barreto. Com esses
compêndios e muitos outros, possivelmente, Felte Bezerra estudou naquela “escola militarizada”,
conforme Mangueira (2003). Por meio dos escritos de Felte, da legislação e da relação de disciplinas
elaborada por Mangueira, foi possível construir o seguinte quadro:

Quadro 1 - Itinerários da formação educacional de Felte Bezerra no Colégio Tobias


Barreto
CADEIRAS PROFESSORES
História Universal Artur Fortes
História do Brasil Artur Fortes
História Natural Alcebíades Paes
Geometria Abdias Bezerra
Álgebra Abdias Bezerra
Física Abdias Bezerra
Química Abdias Bezerra
Geografia Alcebíades Paes
Português Alcebíades Paes
Alemão
Latim José Augusto da Rocha Lima
Francês Abdias Bezerra
Alcebíades Paes
Artur Fortes
Inglês Alcebíades Paes
Manoel Franco Freire

Fonte: Quadro extraído de Oliveira (2015).

As disciplinas e os professores com os quais estudou Felte Bezerra fornecem elementos para
entender seu itinerário formativo, aspectos da sua vida de estudante, introduzido em um Colégio cujo
sobrenome já ecoava de forma diferenciada, tendo em vista o vínculo do pai com a instituição, além da
influência paterna nos direcionamento da educação sergipana. Felte estava inserido em um sistema de
ensino que contribuiu para a sua formação pessoal e profissional, marcas de um percurso que se fizeram
sentir mesmo tempos depois, como ensina André Chervel:
[...] o sistema escolar é detentor de um poder criativo insuficiente valorizado até aqui é que ele
desempenha na sociedade um papel o qual não percebeu que era duplo: de fato ele forma, não
somente os indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar
a cultura da sociedade global (CHERVEL, 1990, p. 184).
Dentro do sistema escolar as cadeiras estudadas também servem como guias para o conhecimento e
problematização de determinadas facetas do passado. No caso em foco, com relação ao estudo das
Línguas, Souza (1999) informa que, no período de 1912 a 1925, há uma presença amplamente
hegemônica que vinha sendo constituída desde o século XIX. No caso dos estudos de Felte Bezerra,
embora sem informações mais detalhadas, notam-se as disciplinas de Latim, Francês, Inglês, Alemão e
Português. Já elementos da exposição de vários conteúdos da disciplina História de Artur Fortes em suas
aulas, no Colégio Tobias Barreto, são apontados por Felte Bezerra:
Nas aulas de História, o mestre deixava-se tomar de arrebatamento, empolgado pelo que
descrevia ... O jovem tenente Bonaparte atravessando a ponte de Arcole. O soldado ofegante até a
morte que vinha anunciar a vitória de Maratona. Alexandre mandando colocar Bucefálo à sombra,
pois só assim se deixava cavalgar, sem espantar-se. As discutidas figuras de Fouché, Richelieu,
Calabar, Feijó. O imprevisível e arroubado Pedro I. A epopeia dos bandeirantes. A sagacidade de
Henrique IV, refugiando-se no Louvre para livrar-se da Noite de São Bartolomeu, que o tinha
como alvo. A insensatez com que a convenção decaptou Lavoisier com o “a França não precisa de
sábios” A imolação de Jenae D’Arc. O comportamento demoníaco dos Médici. O requinte
cavalheiresco dos franceses na batalha inicial da 1ª Grande Guerra. “Tirez les premier,
messieurs les Anglais”18 (BEZERRA, 1981b, grifos do autor).
Os escritos de Felte indicam fragmentos de aulas ocorridas há mais de meio século. Refere-se à
dinâmica de ensino de Fortes e a alguns dos conteúdos ali possivelmente ensinados. Os conteúdos
abarcam desde a Antiguidade com “Alexandre” até a primeira grande guerra mundial, que aparece
justamente no final da descrição do filho de Abdias Bezerra. Vale ressaltar, com base em Freitas (2008),
que a citada Guerra não aparece no programa da cadeira de História de 1916 e somente é listada nos
programas de 1926.
Elementos da História do Brasil como D. Pedro I, Feijó e Calabar também denotam o que foi
ensinado a Felte naquelas aulas de História com Arthur Fortes. Além do mais, cabe destacar o trato com
os conteúdos relacionados à história da França, constantemente remorado por ex-alunos de Fortes. A
aproximação com aquele país e as teorias estritamente ligadas à Europa podem ser resultados da
formação do sergipano na Escola da Praia Vermelha no Rio de Janeiro.
Com as aulas de Arthur Fortes e outros intelectuais sergipanos, transcorreu a formação do estudante
Felte Bezerra no Colégio Tobias Barreto. Seus primeiros anos de educação foram calcados em uma
“escola militarizada”, com leituras, aula durante todo o dia e foi aluno dos mestres que, anos depois,
seriam seus colegas de profissão na Congregação do Atheneu Sergipense.
Felte Bezerra registrou que contou com “mestres de tudo” ao fazer referência a Arthur Fortes e
Abdias Bezerra, pensamos que esses docentes fizeram o papel do que Sirinelli (2003, p. 246) considera
como “despertadores”, por “[...] representaram um fermento para as gerações intelectuais seguintes,
exercendo uma influência cultural e mesmo às vezes política”. Indubitavelmente, os “mestres de tudo”
foram “despertadores” do jovem estudante aqui investigado que frequentou os bancos escolares do
Colégio Tobias Barreto nas primeiras décadas do século XX.
E assim, terminado o secundário em 1924, sem condições financeiras de seguir para outro Estado a
fim de cursar o ensino superior, Felte Bezerra resolveu cursar Escrituração Mercantil à noite para ser
escriturário. Entre os anos de 1925 e 1926, trabalhou no Banco de Sergipe e, logo depois, assumiu a
gerência do escritório comercial de Heráclito Rocha em uma firma exportadora de sal e outros produtos.
Ali, permaneceu até 1929, quando pediu demissão para prestar exame na Faculdade de Medicina da
Bahia.
Sobre esse período da sua vida, entre o término do ensino secundário e o ingresso no ensino superior
na Bahia, o contemporâneo Garcia Moreno (1952, p. 3) assim descreve: “Quem o visse, mais tarde, num
dos melhores escritórios comerciais da província, chefe da contabilidade, reto idôneo eficiente, cercado
de louvores e consideração dos meios mercurianos, acredita-lo-ia feito para tais mistérios, abrindo uma
exceção na linha tradicional da família de professores”. A tal ressalva à “linha tradicional da família de
professores” não se cumpriu, pois os diferentes itinerários de Felte Bezerra também perpassaram o
magistério.
Antes disso, procurou registrar que sua vida estudantil foi marcada por distinções. “Conclui meus
estudos secundários, no mês que fazia 16 anos, tive um curso secundário bem feito, não melhor devido a
minha pouca idade” (BEZERRA, 1988). Após alguns anos da conclusão do ensino secundário Felte
Bezerra seguiu para a Bahia para cursar o ensino superior. Era 1929, momento de mudança para Felte,
novos caminhos foram trilhados pelo sergipano, outras histórias que os itinerários formativos do
intelectual Felte Bezerra podem desvelar acerca da História da Educação sergipana e brasileira na
primeira metade do século XX.

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Sobre os autores
João Paulo Gama Oliveira: Doutor em Educação; Professor do Departamento de Educação (DEDI)
da Universidade Federal de Sergipe, vice líder do Grupo de Pesquisa Disciplinas Escolares: história,
ensino, aprendizagem (DEHEA/CNPq/UFS) e integrante do Grupo de Pesquisa Relicário (DEDI/CNPq).
Atua em pesquisas sobre História da Educação, sobretudo no tocante à história dos intelectuais, história
das disciplinas e história do ensino secundário e superior em Sergipe. E-mail:
profjoaopaulogama@gmail.com
Eva Maria Siqueira Alves: Doutora em Educação; Professora Associada do Departamento de
Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe; líder do
Grupo de Pesquisa Disciplinas Escolares: história, ensino, aprendizagem (DEHEA/CNPq/UFS); Diretora
do Centro de Educação e Memória do Atheneu Sergipense e Presidente do Conselho Municipal de
Educação de Aracaju. E-mail: evasa@uol.com.br

Notas
1. O presente artigo constitui-se como um desdobramento da tese: “Caminhos cruzados: itinerários de
pioneiros professores do ensino superior em Sergipe (1915-1954)” defendida no Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe sob a orientação da Profª. Drª. Eva Maria
Siqueira Alves. Para outras informações ler Oliveira (2015).
2. Sobre Felte Bezerra há uma série de trabalhos com distintos focos que podem ser separados em dois
grupos, o primeiro com cunho acadêmico e o segundo com tom memorialístico. Dentro do primeiro
grupo, cabe destacar os estudos de Beatriz Gois Dantas (1998 e 2009) com foco no antropólogo Felte
Bezerra e a mesma autora em parceria com Verônica Nunes (2009) publicou a obra “Felte Bezerra: cartas
a um antropólogo sergipano 1947-59 e 1973-85” no qual a análise recai sobre as cartas recebidas por
Felte, na primeira metade do século XX. Ibarê Dantas (2012) trata de Felte Bezerra o situando junto ao
IHGSE, inclusive perscrutando minuciosamente sua atuação como presidente da “Casa de Sergipe”, na
década de 1950. O referido pesquisador pontua ainda seu trabalho como fundador do Centro Cultural de
Sergipe no final da década de 1930, vice-presidente da Associação Comercial de Sergipe e diretor da
Sociedade de Cultura Artística (SCAS), como também tesoureiro da Sociedade Mantenedora da
Faculdade de Medicina de Sergipe em meados do século XX; Fernando Sá (2009) analisa o livro
“Investigações Histórico-Geográficas de Sergipe” publicado em 1952 situando Felte dentro da
historiografia sergipana e apontando as correlações do pensamento de Bezerra com a tradição do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro; o historiador José Calasans Brandão da Silva no clássico livro da
historiografia sergipana, “Aracaju e Outros Temas Sergipanos” (2013, p. 29), trata Felte Bezerra como
“[...] um dos melhores pesquisadores sergipanos dos dias presentes, misto de geógrafo e historiador”, tal
frase faz referência ao trabalho de Felte dentro da discussão dos limites de Sergipe e Bahia; João Paulo
Oliveira (2011) analisou a atuação de Felte nas disciplinas do curso de Geografia e História da FCFS;
Lucineide Freire etall (2009) escreveram monografia acerca dos artigos jornalísticos do sergipano; outro
trabalho monográfico consiste no estudo de Nascimento (2015) que busca analisar a obra “Etnias
Sergipanas” de autoria de Felte Bezerra, publicada em 1950, para atingir o objetivo geral do trabalho,
qual seja: “[...] entender quais os motivos que levaram alguns intelectuais do século XX a negarem os
preconceitos raciais sofridos pelos negros. Preconceitos expostos tão claramente na época e também nos
dias atuais que deixaram marcas negativas para a vida social das pessoas negras”, (NASCIMENTO,
2015, p. 8) e chega a conclusão que “Na obra o autor tenta desviar à atenção dos leitores, transferindo as
responsabilidades das desigualdades sociais para as vítimas, assim, isentando da culpa a elite branca
dominadora, que fez a colonização premeditadamente para enriquecimento do branco colonizador,
mascarando o preconceito racial, culpando sempre as vítimas dessas ações malignas” (NASCIMENTO,
2015, p. 38). Como último trabalho desse primeiro grupo, localizei a dissertação de Silva (2014), cujo
objeto de estudo consiste na trajetória do professor Felte Bezerra e suas contribuições para o ensino
superior em Sergipe, para atingir seus objetivos de pesquisa a autora escreve uma dissertação com dois
capítulos na qual o primeiro trata de forma superficial de “Felte Bezerra: entre o espelho do autorretrato
e a pintura das suas memórias”, já no capítulo intitulado: “As contribuições de Felte Bezerra para o
ensino superior em Sergipe” se dedica ao trabalho de Felte como professor do curso de Geografia e
História da FCFS. Tal capítulo se assemelha ao estudo de Oliveira (2011) que trata da mesma temática
ao investigar as disciplinas, docentes e conteúdos do mesmo curso na FCFS, embora com várias
semelhanças, o autor não aparece nas referências da dissertação de Silva (2014). De forma geral, a obra
apresenta poucas inovações diante dos estudos já realizados, até então, acerca do pioneiro antropólogo
sergipano, com parcas problematizações das fontes e conclusões incipientes. Em um segundo bloco situa-
se o texto de Garcia Moreno (1952) diante da posse de Felte Bezerra na ASL; Jackson da Silva Lima
(1984) o situa como pioneiro nos estudos antropológicos em Sergipe; Gustavo Aragão Cardoso (2005)
em sucinto artigo trata da vida e atuação de Felte; Eduardo Conde Garcia (1991) faz breve síntese
biográfica de Felte, diante da sua posse na ASL na cadeira de nº 2 que pertenceu ao antropólogo e por
fim, Thetis Nunes (1992) trata do seu ex-professor Felte Bezerra logo depois do seu falecimento.
3.Segundo Alves (2005), ao longo dos anos, o Atheneu Sergipense recebeu variadas denominações:
Atheneu Sergipense (1870), Lyceu Secundário de Sergipe (1881), Escola Normal de Dois Graus (1882),
Atheneu Sergipense (1890), Atheneu Pedro II (1925), Atheneu Sergipense (1938), Colégio de Sergipe
(1942), Colégio Estadual de Sergipe (1943), Colégio Estadual Atheneu Sergipense (1970), e atualmente
Centro de Excelência Colégio Atheneu Sergipense (desde 2003). Ao longo da tese, utilizarei a
denominação Atheneu Sergipense, com exceção de quando se tratar de transcrição de fontes, na qual
utilizarei o termo presente no documento. O Atheneu Sergipense foi criado em 1870, sendo a primeira
escola de ensino secundário de Aracaju, ainda em funcionamento na aurora do século XXI, essa “Casa de
Educação Literária” constituiu-se como a principal instituição de ensino secundário de Sergipe ao longo
do final dos oitocentos e a primeira metade do século XX. A respeito dos diferentes traços da história do
Atheneu Sergipense ver Alves (2005).
4. O historiador José Murilo de Carvalho (2004), na sua obra “Os bestializados” dedica o quarto
capítulo intitulado “Cidadãos ativos: a Revolta da Vacina” para tratar do movimento ocorrido na cidade
do Rio de Janeiro na administração de Rodrigues Alves como prefeito da capital do Brasil, à época. As
mudanças estruturais promovidas com o intuito de transformá-la em uma nova Paris, acabaram por
interferir no cotidiano das pessoas. O autor apresenta uma série de fatores que culminaram na Revolta,
entre eles a obrigatoriedade da vacina. A Revolta da Vacina foi um levante político que buscou a
derrubada do governo via rebeliões das Escolas Militares da Praia Vermelha e do Realengo. A Revolta
foi sufocada e as escolas militares foram extintas.
5. Sobre a Revolta Fausto Cardoso em Sergipe, consultar, entre outros, a obra “Impasses do Federalismo
Brasileiro (Sergipe e a Revolta de Fausto Cardoso)” de autoria de Terezinha Oliva de Souza (1985).
6. Os três militares que governaram Sergipe nesse período foram Siqueira de Menezes, Oliveira Valadão
e Pereira Lobo. O engenheiro José Siqueira de Menezes que presidiu Sergipe entre 1911 e 1914, sua
atuação envolveu questões de saneamento, serviços de água, iluminação elétrica e diferentes construções
de prédios públicos, pontes, açudes e represas. Contudo, não se envolveu com os diferentes grupos
políticos locais, tratando a oposição com intolerância. Já Oliveira Valadão, que atuava fortemente na
política sergipana desde o final do século XIX, voltou a presidir o estado entre 1914 e 1918, apoiado por
Pinheiro Machado. Seu governo continuou com obras de aterro, construiu grupos escolares, introduziu
cursos noturnos dedicados aos operários e investiu na Usina de Eletricidade. Por fim, Pereira Lobo
(1918-1922), tenente coronel casado com uma enteada de Valadão, combateu o surto de gripe espanhola
que se espalhou pelo estado ao tempo que trabalhou para melhorar a cidade de Aracaju com saneamento,
água, luz, calçamento e, além disso, construiu novos grupos escolares e a sede da Biblioteca do Estado.
Lobo foi o último militar que presidiu o estado de Sergipe, durante a Primeira República (DANTAS,
2004).
7. Souza (1985) escreve sobre a importância de Fausto Cardoso, bem como outros intelectuais
sergipanos, formados na Escola de Direito de Recife na passagem do século XIX para o século XX e o
significado desse grupo nos rumos da política sergipana desse período com destaque para “A Revolta de
Fausto Cardoso” ocorrida em 1906, tendo entre outros objetivos a finalidade de retirar a oligarquia
liderada pelo monsenhor Olímpio Campos do poder. Em uma das suas conclusões acerca da “Revolta de
Fausto Cardoso”, afirma: “Há que considerar o movimento em sua complexidade, pelas dimensões que
tomou, pelos elementos que o fizeram, como o levante policial, a participação popular das camadas
médias urbanas, o caráter urbano da revolta. Todos esses elementos não foram, todavia, suficientes para
que os revoltosos pensassem em alterar a ordem oligárquica. Aliás, manter a ordem foi ponto de honra na
direção imprimida por Fausto Cardoso ao movimento. Se as conquistas da revolta fossem sancionadas,
elas o haveriam de ser por seu caráter legal, legítimo, uma legitimidade baseada não apenas no que se
considera serem as reais aspirações do ‘povo’ mas também, e acima de tudo, baseada na obediência às
leis. O que se queria, pois, empreender era antes uma correção que uma transformação” (SOUZA, 1985,
p. 243). Consultar a citada autora para saber mais acerca dos “Impasses do Federalismo Brasileiro” com
foco em Sergipe.
8. Vale ressaltar que Graccho Cardoso era filho do professor Brício Cardoso e primo de José de Alencar
Cardoso, colega de Abdias na Escola da Praia Vermelha e de trabalho no Colégio Tobias Barreto durante
alguns anos.
9. Das várias facetas que perpassam a atuação de Abdias Bezerra na direção da Instrução Pública de
Sergipe saliento sua viagem para São Paulo. Segundo Nascimento (2003), Abdias foi para aquele estado
a fim de estudar as reformas de ensino ali implementadas, no seu retorno a Sergipe, promoveu uma
Reforma no ensino no estado. Tal Reforma foi sintetizada no Regulamento da Instrução Pública editado
em 11 de março de 1924 por Maurício Graccho Cardoso. Conforme o aludido autor, Abdias Bezerra,
soma-se a outros sergipanos, como Helvécio de Andrade, José Augusto da Rocha Lima, Franco Freire e
Penélope de Magalhães, que fizeram viagens com a finalidade de reformar o ensino em Sergipe. Barroso
(2011) estuda tais reformas, bem como a participação desses intelectuais na educação sergipana das
primeiras décadas do século XX.
10. Segundo Guaraná (1925), Arthur Fortes, nasceu em 23 de julho de 1881 em Aracaju, filho de Antonio
Augusto Gentil Fortes e Antonia Junqueira Fortes. Fez o curso de humanidades com o professor Alfredo
Montes e no Atheneu Sergipense. Além do próprio Atheneu, foi professor do Colégio Tobias Barreto de
História e Francês e no Instituto América lecionou Francês e Geografia. Foi deputado estadual entre 1910
e 1911 e de 1923-1925, publicou em vários jornais e fez parte de várias associações, entre elas, o
“Centro Socialista Sergipano”, “Tobias Barreto”, “Clube Esperanto” e o IHGSE. A respeito de Arthur
Fortes, ver entre outros, Bezerra (1981a) e Soutelo (1990).
11. No tocante a trajetória do professor José Augusto da Rocha Lima, consultar sua biografia escrita por
Sobral (2010).
12. Acerca da Escola Nova, faço o uso do termo concordando com as ideias de Vieira (2001, p. 54):
“Utilizarei, ao longo do texto, a expressão Movimento pela Escola Nova para me referir, em sentido
amplo, ao movimento cultural que, na década de trinta do século passado no Brasil, mobilizou um
conjunto significativo de intelectuais brasileiros em torno de um projeto que, nas palavras de Lourenço
Filho, visava a organização nacional através da organização da cultura. Parto da premissa de que a
atuação dos intelectuais envolvidos com o movimento foi decisiva na configuração do campo
educacional brasileiro, a partir de suas iniciativas na definição de políticas públicas para educação, na
organização do sistema nacional de ensino, na reformulação dos métodos pedagógicos, bem como na
orientação da formação de professores”.
13. Acerca do período em que dirigiu a instrução pública, no governo de Manuel Correia Dantas (1927-
1930), Thetis Nunes escreveu: “A Diretoria de Instrução foi entregue a um jovem professor, autodidata,
espírito inovador, aberto à ideias progressistas, Manuel Franco Freire, que, logo, procurou reformar o
ensino normal, ‘de acordo com os preceitos da pedagogia moderna’. Preocupou-se, sobretudo, dar a esse
ramos de ensino um caráter essencialmente prático. ‘Em primeiro lugar, as noções práticas e depois a
teoria’, recomendava ele, e para por em execução tais idéias equipou a Escola normal de modernos
laboratórios de física, química e história natural com aparelhos importados da Alemanha” (NUNES,
2008, p. 272).
14. Sobre Severiano Cardoso, Armindo Guaraná (1925) afirma que nasceu em 1840 na cidade de
Estância e faleceu em outubro de 1907, em Aracaju. Foi professor da Escola Normal, do Atheneu
Sergipense, bem como do Parthenon Mineiro em Minas Gerais e do Parthenon Sergipano de Ascendino
dos Reis. Foi dono do colégio Minerva criado na sua cidade de origem e exerceu vários cargos públicos.
Ver também Freitas (2007, p. 153-158).
15. Vale ressaltar as relações de proximidade familiar entre o discente Felte e o diretor do Colégio
Tobias Barreto, além de amigo de seu pai, também concunhado, pois devido à morte de Esmeralda
Araújo, dez meses depois Abdias Bezerra casou-se novamente. Felte Bezerra buscou justificar as
“segundas núpcias do pai”: “Teve de fazê-lo, pois meu pai, perdeu a esposa, minha mãe, aos 35 anos de
idade. Vivendo em cidade pequena, dado seu comportamento irrepreensível, teria que casar logo para
conservar sua proverbial austeridade como cidadão” (FELTE, 1981b, p. 3).Talvez a justificativa não
servisse para os filhos, a quem Felte dedicou seus escritos, ou mesmo para futuros leitores, para quem
acreditamos que os seus registros foram efetivamente deixados, mas para si, pois com menos de um ano
da perda da mãe, Felte já viu na sua casa, outra mulher, sua madrasta com quem conviveu até sua ida para
a cidade de Salvador cursar o ensino superior.
16. Uma análise profícua acerca dos internatos no Brasil e mais especificamente em Sergipe, inclusive
do Colégio Tobias Barreto, pode ser consultada na tese de Conceição (2012).
17.Com relação a tal reforma Nunes (1999) comenta que essa caracterizou-se “[...] por ter retirado das
reformas anteriores contribuições positivas entrosando-as para aplicar ao Brasil. De Benjamin, ficou a
equiparação dos colégios estaduais; do Código Epitácio Pessoa, o currículo seriado de Pedro II e a
equiparação estendida aos colégios particulares; de Rivadávia, o exame vestibular; da tradição que vinha
do império os exames preparatórios parcelados. Feitos esses nos colégios oficiais perante bancas
nomeadas pelo Conselho Nacional de Educação, os alunos dos colégios particulares que se submetessem
poderiam candidatar-se ao ingresso nas escolas superiores” (NUNES, 1999, p. 90−91).
18. Tradução livre: “Atirem primeiro, cavalheiros Ingleses”.
CAPÍTULO 5

ACADEMIA DE LETRAS E (IN)ELEGIBILIDADE FEMININA:


CARMELITA PINTO FONTES1, NÚBIA MARQUES E RAQUEL
DE QUEIROZ
Ane Rose de Jesus Santos Maciel
Josefa Eliana Souza

Introdução
O objetivo neste artigo é o de analisar o percurso que possibilitou o ingresso de Carmelita Pinto Fontes
e Núbia Marques na Academia Sergipana de Letras (ASL), além da elegibilidade de Raquel de Queiróz
na Academia Brasileira de Letras (ABL). O sodalício sergipano restringia o ingresso de mulheres e a
primeira acadêmica eleita foi a poetisa Núbia Nascimento Marques que conseguiu a imortalidade, em
1978, um ano após a posse de Rachel de Queiróz (1977) na Academia Brasileira de Letras. Esta, assim
como a Academia Francesa de Letras, trazia a marca da não elegibilidade feminina. Este estudo terá
como pressupostos teórico-metodológicos inspirados pela Sociologia da Educação e, para a sua
realização foram mobilizadas as categorias: dominação masculina, capital cultural e capital social de
Pierre Bourdieu (2012; 2007).
A dominação masculina foi apresentada pelo estudioso como violência simbólica em que o poder
impõe significações e pode fixar-se como legítimo, de modo a reconhecer e camuflar a própria força – a
dominação masculina. Esse esquema de pensamento nos chega de forma aparentemente invisível e torna-
se aceito pela sociedade que entende está usando com liberdade o seu pensamento.
A força da ordem masculina não exige explicação porque a visão androcêntrica impõe-se de forma
neutra e não precisa se justificar por meio de discurso que a torne legítima. Assim, a visão androcêntrica
é ratificada pela estrutura de pensamento da imensa máquina simbólica que é alicerçada pela ordem
social (BOURDIEU, 2012). Como fazer para quebrar este paradigma? Como essa representação foi
compreendida pela Academia Sergipana de Letras? Como a professora Núbia Marques lidou com os
limites impostos pela sociedade androcêntrica? Quando Carmelita Pinto Fontes candidatou-se enfrentou
as marcas da representação androcêntrica na ASL, mesmo sendo a quarta2 representante feminina a
assumir uma cadeira naquela confraria?
Para responder a estas perguntas faz-se necessário dialogar levando em consideração a categoria
capital. Os questionamentos devem ser compreendidos a partir do acumulo de capital especifico. Eles
podem ser de natureza econômica ou cultural e tornam-se suficientes para que o indivíduo possa ocupar
posições dominantes no interior do campo que interage.
A noção de capital cultural surgiu diante da necessidade de buscar explicação para compreender as
desigualdades de desempenho escolar de alunos de categorias sociais diferentes. Conforme Bourdieu
(2013), para se apropriar dos bens culturais é preciso dominar os instrumentos e códigos para poder
dominar e incorporar os referidos bens, ou seja, é preciso possuir capital cultural. Assim, o processo de
escolarização é um investimento que pode gerar outros bens: o capital econômico (bens materiais) e
capital social representados por uma rede de recursos ou potenciais que compõem uma rede durável de
relações e interconhecimentos ou inter-reconhecimentos que são dotados de propriedades comuns e que
são percebidas pelo observador, por outros ou por seus pares, unidos por ligações permanentes e úteis.
Essas ligações não são reduzidas pelo espaço geográfico, econômico ou social porque tem como base as
trocas tanto materiais quanto simbólicas, cuja criação e manutenção supõem o reconhecimento dessa
proximidade (BOURDIEU, 2013). Para realizar este estudo foi necessário consultar fontes documentais,
entrevistas, discursos, jornais e bibliografia sobre o tema.

Por que mais uma poeta?


Por que mais uma poeta?[...] Eis que chega à Academia Sergipana de Letras, por seus talentos e
com seus méritos, longamente conquistados, por mais de vinte anos de serviço à arte literária.
Não fez, porém, atividade bissexta, mas práxis artística continuada e permanente, criando para
outros, e não ensimesmada em encantamentos solitários. (...) Chega uma mulher radiosa,
abundante em produtividade e, sobretudo, com larga atuação no meio cultural sergipano. E, ao
invés de, nós, acadêmicos, irmos ás mulheres, elas nos chegam. Ontem vieram Núbia e Ofénísia e
depois Thetis. Agora vem Carmelita, por mais que Emanuel Franco tema o gineceu cresceu
(MACHADO & FONTES,1984, p.8 e15).
Manuel Cabral Machado3 ao escrever a “Oração Acadêmica” proferida no Palácio da Justiça, em
Aracaju/SE, em razão da posse da poetisa Carmelita Pinto Fontes, como membro da Academia Sergipana
de Letras (ASL), em 13 de novembro de 1984, registrou com certa sutileza, o fato de que as mulheres
estavam chegando! Carmelita Pinto Fontes foi a quarta mulher a ingressar no sodalício. Por que o
crescimento do gineceu produzia temor?
Iniciando o discurso de recepção a Carmelita Fontes, com essa pergunta, Cabral Machado
apresentou-a aos convidados e esmerou-se em justificar a escolha. Cuidadosamente, delineou a trajetória
a professora/poetisa, ao descrever que ela nascera em 01 de fevereiro de 1933, na cidade de
Laranjeiras/SE e as primeiras letras foram aprendidas na escola de Zizinha Guimarães4. Esta, segundo a
ex-aluna era uma professora brilhante, de caráter excelente, e detentora de uma personalidade forte. De
acordo com Carmelita (2015), a sua ex-professora conhecia muito bem o português, latim, espanhol, e
tocava e ensinava piano. Ela detinha uma formação primorosa. O conhecimento e o rigor que a mestra
imprimia em suas aulas fazia com que todo mundo a respeitasse. De modo que Fontes revelou: “ela
ensinou-me muitas coisas, não só didaticamente, mas coisas para a vida. Ela era muito especial, quando
foi minha professora já tinha 72 anos” (FONTES, 2015). Certamente, conforme explicita Huberman In:
Nóvoa (2007, p.46)
A literatura clássica no domínio do ciclo da vida humana evoca um fenómeno de recuo e de
interiorização no final da carreira profissional. A postura geral é, até certo ponto, positiva; as
pessoas libertam-se, progressivamente, sem o lamentar, do investimento no trabalho, para
consagrar mais tempo a si próprias, aos interesses exteriores à escola e a uma vida social de
maior reflexão, digamos mesmo de maior carga filosófica.
Conforme o estudioso português ao tratar das “tendências gerais do ciclo de vida dos professores”
explicita que estas seriam as reações e ações comuns ao profissional em fim de carreira. Huberman usa a
expressão “desinvestimento” para tratar dessa fase pessoal. Seria uma fase de recuo. Fase de desilusão,
na qual o profissional se põe à margem das transformações maiores que ocorrem na escola. Essa fase
pode ser amarga ou serena. Contudo, em que pese a idade já avançada e a carreira indo para ocaso não
impediu que a professora Zizinha Guimarães se esmerasse em suas atividades e se tornasse uma
referência na educação sergipana.
O discurso de recepção foi bastante elucidativo para evidenciar que a formação recebida em
Laranjeiras foi de muita qualidade e que a professora tinha apreço pela cultura sergipana e registrou o
fato de buscar imprimir esse gosto em suas pupilas. “A Profª Zizinha educava para a vida. Em sua escola
aberta e participante, ela mesma ministrava lições de tudo. Assim, a criançada aprendia, nos livros, nas
preleções e nos exemplos, como também nos folguedos, nas representações teatrais, nas danças e
bailes”(MACHADO & FONTES,1984, p. 13).
Portanto, percebe-se a inspiração incutida pela professora na carreira profissional e as lições de
vida recebidas da velha mestra serviram como guias na formação de Carmelita. Prosseguindo os seus
estudos, fez o curso ginasial na Escola Normal “Rui Barbosa”. Quando terminou, submeteu-se ao exame
vestibular, em São Paulo, pois acreditava que lá haveria mais oportunidades. Enquanto aguardava o
resultado, inscreveu-se na seleção para o vestibular da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe.
Cursou Letras Neolatinas, mas se especializou em Literatura.
O ingresso na Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe teve um significado muito importante na
transformação do percurso acadêmico de Carmelita Fontes. “Daí para frente fui estudando. A
Universidade me abriu portas, o ensino universitário é muito bom, pois possibilita coisas
extraordinárias”. Ao formar-se em 1957, passou a experimentar sua primeira experiência como
professora no Colégio Arquidiocesano. Em 1958, passou a integrar o corpo docente do Colégio Atheneu
Sergipense, outra experiência bastante significativa como profissional. “Eu era professora efetiva,
haviam os professores catedráticos5 e os efetivos. Eu era efetiva” (FONTES, 2015). Em 1959, Carmelita
foi para o Rio de Janeiro fazer um curso de Língua e Literatura Francesa na “Maison de France”. Com
uma bolsa de estudos patrocinada pela CAPES6. O curso tinha duração de dois anos, um ano de estudos e
o outro de aplicação do que se aprendeu.
Mas, foi Laranjeiras que lhe proporcionou o gosto pelas letras. Ele nasceu quando ainda, era uma
menina. Para Machado (1984,p.10), “Carmelita é poeta, na sua realidade mais íntima. Desde menina
sentia-se necessidade de exprimir-se”. Tentou as formulas convencionais: quadrinhas, acrósticos,
poemetos. Ainda no curso ginasial escreveu poemetos e, em 1963, já demostrava que a poesia de José
Sampaio7, ou mais remotamente Mayakovsky8 exerciam muito fascínio na novel poetisa.
O processo para o ingresso de Carmelita na Academia Sergipana de Letras foi divulgado na
imprensa sergipana, conforme é possível ler neste comentário: “Nesta segunda-feira deverá ser
conhecido o novo imortal da Academia Sergipana de Letras. Perseguem a longevidade literária perpétua.
Luiz Soutelo9 e Carmelita P. Fontes”(Jornal da Cidade, 11 e 12/03/1984). A escolha foi disputada e
acabou rendendo a renúncia do presidente da ASL, Luiz Antônio Barreto10. A posse foi realizada sob a
presidência de Antônio Garcia Filho, no Palácio da Justiça, no dia 13 de novembro de 1984.
Com o recente falecimento do acadêmico Marcos Ferreira de Jesus, que era médico e foi prefeito da
cidade de Aracaju(1947-1951), a mais nova imortal sergipana assumiu a cadeira nº 38, cujo patrono era
o Doutor Guilherme Pereira Rabello. Este era aracajuano e optou pelo ensino médico na Faculdade de
Medicina da Bahia, além de ser interessado por línguas, falava fluentemente: francês, inglês e conhecia
latim, espanhol e italiano. Mas, o professor Rabello consagrou-se como profissional de grande
competência, na cátedra por concurso, como patologista. Também, exerceu outras funções: foi inspetor de
ensino, deputado estadual, escritor com matérias publicadas em revistas e jornais, sobretudo, nos da
Bahia e pertenceu a Academia Baiana de Letras (GUARANÁ, 1925, p. 110).
Cabral Machado revelou que a nova confreira havia sido sua aluna, nos velhos tempos da Faculdade
Católica de Filosofia e, depois, na Liga Universitária Católica(LUC), onde contou com a liderança do
professor Dom Luciano Cabral Duarte. A recepção demonstra respeito e alegria com a posse da confreira
e ressalta a presença e qualidades das mulheres que ingressaram no sodalício, ao afirmar: “Thétis é um
talento lógico. Núbia e Ofenísia oscilam entre o lógico e lúdico. Carmelita é, sobretudo, lúdica com todo
seu ‘espirit de finesse’”(MACHADO, 1984, p.15). Este avalizou com o seu discurso a opção dos
acadêmicos que no jogo do poder optaram por empoderar a acadêmica, em que pese os limites
encontrados.
A resistência a presença da mulher não havia sido totalmente quebrada, era necessário continuar
resistindo a uma cultura marcada por atitudes misóginas, que impediam o crescimento do gineceu11, ou
seja; o crescimento da presença feminina dentro da Academia Sergipana de Letras, quando três outras
confreiras já estavam compartilhando o pertencimento ao sodalício. As mulheres estavam chegando por
sua rede de amizades, reconhecimento como profissionais competentes e pelos escritos que
demonstravam sagacidade de espírito, perspicácia, ligeireza e profundidade no raciocínio, como havia
destacado o imortal Cabral Machado(1984).
Conforme a professora Carmelita Fontes, o processo eletivo na Academia revelou as disputas.
Evidenciadas nesse relato:
Foi uma briga! Foi tanta briga! Vinha repórter às seis horas da manhã na minha porta, atrás de
conversa. Perguntava – professora o que senhora acha? O Soutello disse isso! Soutello era o meu
concorrente. Vinham fazer fofoca! Diziam que eu não ia ganhar, pois na Academia as escolhas
eram políticas. Depois, começaram a falar que eu era protegida de Dom Luciano, que era a
candidata dele. Eu telefonei para Dom Luciano e disse: “Olha estão dizendo que eu sou sua
protegida! Ele disse! Deixem dizer! O povo da Academia achava que era indicação de Dom
Luciano. Isso era besteira! Houve uma seqüência de mulher empossada. Eles diziam:”essa
Academia vai encher de mulher!” Vai virar uma Academia de saia! Era cada briga ali dentro!
Disputa de poder (FONTES, 2015).
Cabe compreender que na sociedade marcada pela dominação masculina, e na qual os traços dessa
hegemonia ainda perduram foi interpretada por Bourdieu (2012, p. 7-8) como violência simbólica, como
“violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias
puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento,
do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento”. O capital social representado pela adesão a
candidatura de Carmelita, também, detentora de capital cultural como foi destacado pela própria
professora na cerimônia de posse, certamente, contribuíram para que Carmelita Fontes alçasse a
elegibilidade e o patamar da imortalidade.
A inscrição de Luiz Fernando Ribeiro Soutelo recebeu o apoio de Luiz Antônio Barreto e do médico
Antônio Garcia Filho. Cabe observar que no processo de fundação da Universidade Federal de Sergipe,
Garcia Filho e Luciano Cabral Duarte estiveram em lados opostos, mas estiveram aliados no processo de
candidatura da professora Carmelita. Conforme Soutelo (2015), apesar da sugestão de apoio do
Governador João Alves Filho12, preferiu enfrentar a concorrência sem envolver a oferta recebida. Mas,
assevera que Cabral Duarte foi muito importante no processo que elegeu Pinto Fontes. Por outro lado,
lembra que Dom Luciano Duarte lhe deu apoio quando surgiu outra vaga.
Na época, as candidaturas foram tradas em jornais de Sergipe e o Jornal da Cidade realizou
entrevista com a professora e ao tratar do tema Carmelita Fontes deu relevo a sua candidatura, de modo a
evidenciar que aspirava vencer o pleito porque considerava um sonho justo e porque o que movia a
Academia era reunir aqueles que tinham uma história literária, por meio da publicação de livros, da
grande atividade jornalística e na participação efetiva para a elaboração e realização de espetáculos
teatrais (JORNAL DA CIDADE, 17/02/1984). Quando inquirida sobre a participação feminina destacou
que a Academia Brasileira de Letras, seguindo o exemplo da Academia de Letras da França havia
permitido a presença da mulher.
É importante destacar o fato de que a candidata buscou dar relevância ao capital intelectual que
possuía e era representado por suas produções em jornais, nos livros que publicava e também por suas
ações pedagógicas. Vale lembrar que ela foi criadora da Academia Sergipana de Letras de Jovens
Escritores, cuja fundação ocorreu em 17 de setembro de 1962,com sessão solene realizada no Instituto
Histórico e Geográfico de Sergipe, composta por alunos do Ginásio de Aplicação e do Colégio Estadual
de Sergipe.
No discurso de posse na Academia Sergipana de Letras, intitulado “Clara Imortalidade”, a
professora esclareceu sobre os tipos de escritos que produziu:
escrevi versos, crônicas, conto, teatro, autos e jograis. Sempre atuante, publicou diversos livros,
alguns em parceria com Núbia Marques e Gizelda Morais, como, “Balada do Inútil Silêncio” (em
parceria com Núbia Marques e Gizelda Morais); “Tempo de Dezembro”; “Verdeoutono” (também
em parceria com Núbia e Gizelda Morais), entre outros. A escritora registrou sua necessidade de
escrever numa frase que elucida a sua carência: “Escrevi, escrevi. Escrevo porque tenho de
escrever. Eu não acabo em mim”(FONTES, 1984, p.25 a 27).
Contudo, o caminho para atingir a elegibilidade acadêmica teve a contribuição da persistência de
outras confreiras, a exemplo da professora da Universidade Federal de Sergipe: Núbia Nascimento
Marques.

A mulher na Academia Sergipana de Letras


Nascida em 21 de dezembro de 1927, em Aracaju/SE. Filha de Atílio Marques e Bernardina Rosa do
Nascimento Marques, a mais velha de uma família de seis irmãos. Estudou as primeiras letras no Jardim
de Infância Augusto Maynard13. Ao contrário da maioria das moças à época, não estudou na Escola
Normal “Rui Barbosa”, ela seguiu seus estudos no Colégio Atheneu Sergipense14, sendo aluna assídua e
estudiosa, com destaque nas disciplinas de humanidades. Adepta da literatura modernista, buscou
inspiração em Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Núbia cursou Contabilidade na “Escola de Comércio
Conselheiro Orlando15”, instituição voltada ao ensino profissionalizante. Também, sentia-se desejosa de
liberdade econômica, daí a escolha do curso em função da empregabilidade. Algo diferenciado à época,
para uma mulher, principalmente em uma função que não era a de “professora”. Pois, o magistério era
reconhecidamente a profissão liberada para as mulheres, nessa época (MELNIKOFF, 2014).
Em sua trajetória sempre buscou na instrução uma forma de representação social. O conhecimento
como meio de destaque, como veículo de liberdade econômica e social, na disputa no campo. Dentro
dessa discussão, Bourdieu (2004,p.29) afirma que: “Qualquer que seja o campo, ele é objeto de luta tanto
em sua representação quanto em sua realidade. A diferença maior entre um campo e um jogo, é que o
campo é um jogo no qual as regras do jogo estão elas próprias postas em jogo”. Na procura de cumprir o
jogo posto à mesa, Núbia vivenciou o fato de ter feito um curso estritamente masculino como era o de
Contabilidade, na busca de sua liberdade econômica. A partir da formação em Contabilidade, fez o
concurso para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, sendo seu primeiro emprego, aos
20 anos de idade. Também, envolvida com as artes, foi morar no Rio de Janeiro onde cursou pintura, na
Academia Brasileira de Belas Artes.
Após o curso, retornou a Aracaju/SE e, casou-se com José Lima Azevedo, em 28 de junho de 1952.
Ele era formado em Química e Estatística. Constituíram família e tiveram cinco filhos. Mas, em 1968,
desquitou-se, conforme a legislação da época. Ação vista com reserva, pois, o divórcio só passou a ser
permitido em 1977, (sancionado em 26/12/197716). Núbia Marques foi aluna da turma primeira da Escola
de Serviço Social, fundada em 195417. A primeira seleção foi realizada em 13 de março de 1954,
presidida pelo Padre Luciano José Cabral Duarte18 (MELNIKOFF, 2014).
Após divórcio, Núbia Marques precisou trabalhar. Foi então, que teve sua primeira experiência na
área educacional, tornando-se professora substituta no ensino médio no “Instituto de Educação Ruy
Barbosa” (antiga Escola Normal), assumindo a cadeira de Psicologia. Com a consolidação do ensino
superior, em 1967, após a instituição da Fundação da Universidade Federal de Sergipe(FUFS) sob o
Decreto nº 269/67, nesse processo os cursos superiores do Estado foram incorporados a Universidade.
Assim, em 1968, a Escola de Serviço foi integrada a uma universidade federal com a implantação da
UFS19. Em 1969, Núbia Marques foi então contratada como professora do Departamento de Serviço
Social (Melnikoff, 2014).
Sempre atenta a cultura de sua gente, a professora Núbia Marques chegou a ser diretora do
Departamento de Cultura e Patrimônio Histórico de Sergipe (DCPH-SE). Em sua gestão desenvolveu
vários trabalhos voltados para a educação. Seu primeiro estudo foi “A Lúdica Folclórica em Sergipe
(1971-1974)”. Sua produção cultural sempre voltada para o conhecimento sobre Sergipe e destacando
sua área de atuação, lhe garantiu o reconhecimento de seus pares. Em 1977, a Academia Sergipana de
Letras imortalizou Núbia Nascimento Marques, sendo ela a primeira mulher sergipana a conseguir esse
mérito. Dentre os livros publicados podemos destacar “Um Ponto e Duas Divergentes” (1959);
“Dimensões Poéticas” (1961); “Baladas do Inútil Silêncio” (1964) – livro escrito em parceria com
Gizelda Morais e Carmelita Pinto Fontes; “Máquinas e Lírios” (1971); “Geometria do Abandono”
(1975); entre outros.
O ingresso da poetisa Núbia Marques na Academia Sergipana de Letras foi marcado por percalços e
disputas. É importante esclarecer que de acordo com a decisão do poeta Antônio Garcia Rosa, José de
Magalhães Carneiro, José Augusto da Rocha Lima, Rubens Figueiredo, Monsenhor Carlos Costa,
Clodomir Silva e Manuelito Campos para pertencer a ASL o candidato deveria ter livros publicados, ser
reconhecido e indicado para o processo eletivo, além de obter a maioria dos votos dos futuros confrade,
conforme Melnikoff (2014, p. 59). Mas, é necessário esclarecer que a proposta de ingresso no sodalício
sergipano foi inspirada por aquele intelectuais sergipanos, conforme o modelo da Academia Brasileira
de Letras. De acordo com o Jornal de Sergipe (apud Melnikoff, 2014, p.131) desde julho de 1976, Núbia
Marques aspirava por uma cadeira na ASL e, chegou a pleitear o seu ingresso, mas teve o seu nome
recusado porque naquele momento, mesmo na Academia Brasileira de Letras, as mulheres não tinham o
seu ingresso permitido. Como foi ressaltado por Jorge Carvalho do Nascimento, em sua posse na
Academia Sergipana de Letras, na cadeira, anteriormente, ocupada por Núbia Marques:
Núbia, a quem sucedo, foi como Tobias Barreto uma defensora da igualdade entre homens e
mulheres. Foi também a primeira mulher a ocupar, a partir de 1978, uma cadeira desta academia,
invertendo um processo que ela mesma anunciara em sua poesia:” minha lira é tão pouco lírica
que está no lado inverso do universo” (MELNIKOFF, 2014, p.66).
A elegibilidade de Núbia Marques não pode ser compreendida somente a partir do capital cultural e
social que ela detinha por se relacionar com parte significativa da intelectualidade Sergipe e, amizades
influentes que se faziam presentes em seus lançamentos de livros. Portanto, o capital cultural e social e
da professora e poetisa Núbia Marques são insuficientes para explicar as resistências ao seu ingresso na
ASL. Neste sentido, é importante destacar que o ingresso de Raquel de Queiróz na Academia Brasileira
de Letras foi de grande contribuição na alteração do modelo androcêntrico, tanto na Academia Brasileira
de Letras quanto na Academia Sergipana de Letras.

A mulher e a Academia Brasileira de Letras


A proposta por meio da qual foi erigida a Academia Brasileira de Letras lhe atribuiu estrutura
marcadamente androcêntrica e durou oitenta anos seguidos. Com isso era impossível realizar-se a
elegibilidade feminina por ter ficado fora de cogitação, durante quase um século, em decorrência tanto de
acordo entre os fundadores e, inclusive, do Regimento Interno, de 1927, que regulava o ingresso dos
acadêmicos. Conforme o Art. 2º do Estatuto, as condições de elegibilidade para a ABL, recomendavam
que “só [podiam] ser membros efetivos da Academia os brasileiros que [tivessem], em qualquer dos
gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor
literário” (Cf. FANINI, 2010).
Este artigo passou a ser discutido quando, em 1930, a ABL recebeu a proposta de candidatura de
uma mulher – Amélia Carolina de Freitas Beviláqua (1860-1946). Esta era uma escritora piauiense que
surpreendeu a Academia com proposta de ingresso. A candidatura de Amélia pôs a nú a posição misógina
de vários membros da ABL e, a discussão extrapolou os muros da instituição quando os documentos
foram tornados públicos levando a sociedade a conhecer a interpretação do Art.30, do Regimento
Interno, de 1927, teve a expressão “brasileiros” interpretada como referente, apenas, ao sexo masculino.
O fato fez com que o marido da postulante, Clóvis Beviláqua, se indispusesse contra a agremiação e,
defendesse a esposa por meio de artigos e, inclusive, deixou de frequentar a Academia Brasileira de
Letras(cf. FANINI, 2010).
Conforme Silva (2014) em artigo cuja a finalidade foi apresentar os três estigmas de Clóvis
Beviláqua a partir de quatro biografias, o autor evidencia que um dos estigmas de Clóvis Beviláqua, era
que a sua mulher adotava
modos excêntricos frente à sociedade da época, [e] rendeu à Amélia uma memória construída a
partir de diferentes imagens: escritora arrivista que ambicionou entrar para a Academia Brasileira
de Letras; dona de casa relapsa, que permitia que animais domésticos habitassem no interior da
residência; mulher pouco vaidosa e desalinhada no vestir; esposa leviana ou adúltera, entre outras
adjetivações negativas (SILVA, 2014, p. 138-139).
Amélia Beviláquia não ingressou na ABL e a inelegibilidade feminina voltou a ser discutida quando
a romancista, contista e cronista, nascida na cidade de São Paulo - Dinah Silveira de Queiroz (1911-
1982), a primeira escritora a ser laureada com o Prêmio Machado de Assis, concedido pela ABL, em
1954, pleiteou o seu ingresso no sodalício.
A carta que Dinah Silveira de Queiroz enviou a ABL foi negada e, ela, só conseguiu ingressar após a
entrada de outra escritora – Raquel de Queiróz. Uma emenda, pouco conhecida, exigia que as cadeiras da
ABL fossem preenchidas pelo sexo masculino. A escritora Dinah Silveira havia enviado a carta porque
supôs que o Regimento do sodalício era o mesmo da época da sua fundação, quando lá estiveram:
Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Olavo Bilac, Aluísio de Azevedo e outros.
De acordo com Fanini (2010), Dinah Silveira dispunha de recursos sociais para investir na
solicitação de seu ingresso na ABL porque descendia de família tradicional de São Paulo, da qual fazia
parte escritores e intelectuais renomados. O pai de Dinah era Alarico Silveira, advogado e homem
público que atuou em altos cargos, a exemplo de Ministro do Tribunal de Contas (COELHO, 2002,
p.159). Dinah casou-se duas vezes e sempre com homens de destaque social e político. O primeiro foi
Narcélio de Queiroz que, inicialmente, foi secretário do presidente Washington Luiz e, posteriormente,
assumiu o cargo de Desembargador. Quando candidatou-se a ABL, Dinah Silveira estava casada com o
segundo marido, o diplomata Dário Moreira de Castro Alves. Mas, conforme Fanini (2010) as
influencias que poderiam ter o Itamarati exercido foram tímidas na luta que Dinah estava travando com a
ABL e, insuficientes para desarticular ou positivar a decisão do silogeu, no que diz respeito a sua
intenção de disputar uma vaga.
Havia também um cabedal de capital simbólico e intelectual por conta dos lauréis que a escritora
Dinah Silveira havia sido agraciada pelo fato de ser uma escritora consolidada no âmbito das letras, no
Brasil. A literata detinha o premio concedido pela Academia Paulista de Letras - Antônio de Alcântara
Machado(1940); assim como o Prêmio Afonso Arinos (1950) e o já citado prêmio Machado de Assis
(1954), pelo conjunto da obra. O capital social e simbólico que detinha a literata paulista Dinah Silveira
de Queiroz foram insuficientes para superar os óbices apresentados pelos membros da ABL, naquele
momento. Ainda era preciso transpor dificuldades, era preciso esperar que outra mulher se candidatasse
e superasse inelegibilidade. A autora não cessou a luta apesar das respostas negativas.
Ao contrário do que fez Amélia Beviláqua que se dispôs a publicizar as divergências no seio da
ABL, entre seus pares, evidenciando os votos dos membros do contubérnio, Dinah não procurou repartir
amargura. A ação de Dinah para que a mulher tivesse o aceite de seu ingresso foi tão constante que Fanini
(2010) registrou que após a eleição de Raquel de Queiroz, esta dividia as páginas das notícias com
Dinah. Desse modo ficava evidente o empenho nos sete anos que separaram a solicitação e negativa a
carta enviada por Dinah Silveira de Queiroz e o ingresso de Raquel de Queiroz, após oitenta anos de
existência de uma Academia marcada pelo androcentrismo.
Mas, por que Raquel de Queiroz conseguiu ingressar? ABL teria abandonado o androcentrismo?
Como Raquel de Queiroz superou a norma da inelegibilidade?
Se pareceu o fim de uma forma de discriminação o ingresso de Raquel de Queiroz na ABL, talvez
tenha sido uma espécie de casuísmo. O que estava em jogo não era a elegibilidade feminina, no caso da
opção por Raquel de Queiroz, mas do ingresso de uma mulher que contou com condições favoráveis para
a viabilização de seu ingresso. Os acadêmicos que não aceitaram Dinah Silveira foram favoráveis a
Queiroz! Ela granjeou a simpatia num ambiente onde contava com amigos muito queridos. De modo que
Vianna Moog fez pronunciamento favorável ao seu ingresso na ABL por ocasião do aniversário de
lançamento de sua obra de maior sucesso “O quinze”. Moog argumentou que já havia uma exceção ao
eleger Getúlio Vargas20 porque foi vista como uma concessão. Em seu discurso de posse revelou que
A atividade intelectual é para mim uma imposição da vida política, que exige de quem a ela se
consagra a obrigação de comunicar-se com o público com precisão e clareza, explicando idéias e
problemas de governo, esforçando-se por fazer-se ouvir e compreender. Não sou e nunca pretendi
ser um escritor de ofício, um cultor das belas-artes, embora tenha me habituado, desde moço, à
amável convivência de poetas e romancistas, como leitor e admirador comovido das suas obras
(DISCURSO DE POSSE).
Se esta exceção estava encerrada, outra se justificava, pois a companhia da escritora propiciava
ambiente de alegria e de festa (MOOG apud FANINI, 2010, p. 8).
A escritora paraibana que demonstrava indiferença pela imortalidade, foi aos poucos adquirindo
corpo. Ela viu o ingresso na ABL de vários amigos: Adonias Filho, Otávio de Faria, Afonso Arinos e
Aurélio Buarque. Ela havia se envolvido na candidatura de Adonias Filho e Otávio de Faria. A escritora,
depois, declarou que seu ingresso fora resultante do fato de ter sido convencida por Adonias Filho. Os
amigos fizeram campanha para que ela ingressasse e Raquel afirmou não ter colaborado com a iniciativa
por ser muito tímida e não ter tradição de lutar por títulos premiações ou lauréis (Queiroz, 1998, p. 210-
211).
O falecimento de Cândido Motta Filho intensificou a discussão em torno da alteração do Regimento
Interno. Em 1976, apesar do presidente da confraria, Austragésilo de Athayde, ser contrário a presença
feminina na ABL e a despeito da versão que Athayde havia “virado a casaca”, por conta da conversão
trabalhada por Adonias Filho, o documento foi alterado.
Dez meses após o envio da carta ao presidente da ABL, Raquel de Queiroz tomou posse na
Academia Brasileira de Letras, no dia 4 de agosto de 1977, na cadeira 5 que pertencera a Candido Motta
Filho e tinha como patrono Bernardo Guimarães. A vitória havia sido por conta de uma margem de oito
votos de vantagem em relação ao seu competidor, Pontes de Miranda. A posse da nova imortal foi
noticiada por inúmeros jornais em nosso país. O pleito que a sagrou imortal resultou em 23 votos para
Rachel de Queiroz e 15, para Pontes de Miranda, e 1 voto nulo. Rachel de Queiroz obteve uma vitória
relativamente “folgada”, tornando-se notícia de primeira página em todos os jornais da época, com uma
margem de 8 votos de vantagem em relação ao seu opositor.
Cabe acrescentar que como de costume, os candidatos a eleição na ABL cumprem o ritual de visitar
os imortais em busca de votos. A visita é marcada pela oferta de livros e presentes, iguarias e doces.
Mas, a escritora não fez este trajeto. Após a sua candidatura ser oficializada, viajou para a fazenda no
Ceará e retornou uma semana antes da eleição.
As relações de parentesco que a Raquel de Queiroz cultivava com pessoas importantes, além da
amizade com presidentes que governaram o Brasil durante o período da ditadura militar são citadas por
Guerellus (2011). Conforme Fanini (2010, p. 13), o adversário vencido por Raquel de Queiroz, na ABL,
afirmou que não tinha sido vencido pela mulher/ escritora paraibana, mas por uma instituição
governamental. A escritora era prima de Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967) e a
residência da escritora, no Rio de Janeiro teria sido um dos lugares que se realizavam reuniões que
trataram do futuro golpe.

Considerações finais
Raquel de Queiroz não era uma aliada do feminismo, como chegou a revelar. Por exemplo, o
discurso de posse da primeira mulher imortal, no Brasil, não revelou afinação e nem destacou esse fato,
tampouco o acadêmico que a recepcionou buscou destaque na figura de Raquel como pioneira entre as
mulheres de seu país, na ABL. Os destaques femininos feitos por Adonias Filho falavam sobre as
mulheres que a escritora havia criado em alguns de seus romances. Teria sido esta a forma encontrada
por Adonias para lançar luzes sobre o pioneirismo da elegibilidade da escritora?
De qualquer modo, após o ingresso da primeira mulher na ABL, outras puderam ingressar porque o
Regimento da instituição passou a permitir, a norma legal foi alterada. A Academia assistiu aos ingressos
de Dinah Silveira de Queiroz (1980); Lygia Fagundes Telles (1985); Nélida Piñon (1989); Zélia Gattai
(2001); Ana Maria Machado (2003); Cleonice Seroa da Mota Berardinelli (2009) e Rosiska Darcy de
Oliveira (2013). Cabe destacar que a escritóra Nélida Piñon já presidiu o sodalício.
A elegibilidade conseguida por Raquel de Queiroz possibilitou o ingresso de outras mulheres em
outros silogeus, a exemplo do que foi possível verificar sobre o ingresso de Núbia Marques que também
possibilitou a elegibilidade de mulheres sergipanas, como as citadas na sequência: Núbia Marques
(1978), Ofenísia Soares Freire (1980), Maria Thétis Nunes (1983), Carmelita Pinto Fontes (1984),
Gizelda Santana Morais (1992), Maria Ligia Madureira Pina (1998), Aglaé Santana de Moraes (2002),
Marlene Alves Calumby (2004), Ana Maria do Nascimento F. Medina (2007), Luzia Maria da Costa
Nascimento(2007) e Patrícia Verônica Carvalho Sobral de Souza (2013).
O fato de possuir capital cultural e capital social constitui-se em critérios importantes para que
algumas mulheres pudessem adquirir elegibilidade e ascender a imortalidade. Contudo, é importante
pensar na mão masculina que aponta, articula e conduz candidaturas tanto na Academia Brasileira de
Letras, quanto na Academia Sergipana de Letras. A mulher passou a ter liberdade para candidatar-se a
uma cadeira nas Academias. Contudo, será que a porta para o ingresso da mulher está aberta ou (apenas)
entreaberta? Ou será que as mulheres excluídas dos jogos do poder são preparadas para deles participar,
por intermédio dos homens?

Referências
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BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa, 8ª ed. Campinas/SP:
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BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução,organização e seleção Sérgio
Miceli. Çol. Estudos20, São Paulo: Perspectiva, 2013.
COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras (1711-2001). São Paulo:
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DUARTE, Luciano José Cabral. A natureza da Inteligência no Tomismo e na Filosofia de Hume.
Tradução: Antonio Carlos Mangueira Viana. Aracaju: J. Andrade, 2003.
FONTES, Carmelita Pinto. Ex-professora do Ginásio de Aplicação da UFS e membro da Academia
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HUBERMAN, Michael. O ciclo de vida profissional dos professores In: NÓVOA, Antônio(Org.) Vidas
de Professores. 2ªed. Porto/Portugal: Porto Editora, 2007.
GUARANÁ, Armindo. Diccionario bio-bibliographico sergipano. Rio de Janeiro: Pongetti, 1925.
FANINI, Michele Asmar. As mulheres e a Academia Brasileira de Letras In: História. v.29, n.,
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FANINI, Michele Asmar. A (in)elegibilidade feminina. In: Tempo Social, Revista de Sociologia da
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MACHADO, e FONTES. Oração acadêmica /Clara imortalidade (discursos). s/ed. : Aracaju/SE,1984.
SILVA, Wilton Carlos Lima da. Amélia Beviláqua que era mulher de verdade: a memória construída da
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MACHADO, Manuel Cabral & FONTES, Carmelita Pinto. Oração Acadêmica/Clara Imortalidade
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MELNIKOFF, Elaine Almeida Aires. Trajetória de Núbia Nascimento Marques: contribuições para a
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Educação da Universidade Federal de Sergipe.
VARGAS, Getúlio. Discurso de Posse. Disponível em:
<http://www.academia.org.br/academicos/getulio-vargas/discurso-de-posse>. Acesso em 03 dez. 2015.

Sobre as autoras
Ane Rose de Jesus Santos Maciel
Doutoranda em Educação/UFS. Mestrado em Educação pela Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Sergipe PPGED/UFS. Graduada em História pela Universidade
Tiradentes/UNIT (2011). Pós-Graduação Lato Sensu em Arte Educação pela Faculdade São Luís de
França (2011). Produzindo pesquisas relacionadas a Trajetórias de Intelectuais da Educação e História
da Educação. Pertencente ao GREPHES - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre História do Ensino
Superior, que tem por objetivo investigar as transformações históricas verificadas no âmbito do ensino
superior no Brasil (Instituições Públicas ou Particulares), tendo como foco principal a Universidade
Federal de Sergipe/UFS.
Josefa Eliana Souza
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006), Mestrado em
Educação - UFS (1998), Bacharela em História- UFS (1984) e Graduada em História -UFS(1979).
Professora adjunta do Departamento de Educação e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da
UFS. Atua no campo da História da Educação com discussões sobre ensino superior no Brasil
(instituições, intelectuais, representações e materiais impressos), tendo como foco principal - a
Universidade Federal de Sergipe. Lidera o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre História do Ensino
Superior GREPHES. Publicou “História e Memória: Universidade Federal de Sergipe (1968-2012)”.

Notas
1. Este capitulo está relacionado aos estudos pxroduzidos pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
História do Ensino Superior(GREPHES).
2. A posse das mulheres na Academia Sergipana de Letras foi a seguinte: Nubia Marques (1978),
Ofenísia Soares Freire (1980), Maria Thétis Nunes (1983), Carmelita Pinto Fontes (1984), Gizelda
Santana Morais (1992), Maria Ligia Madureira Pina (1998), Aglaé Santana de Moraes (2002), Marlene
Alves Calumby (2004), Ana Maria do Nascimento F. Medina (2007), Luzia Maria da Costa
Nascimento(2007) e Patrícia Verônica Carvalho Sobral de Souza (2013) (MELNIKOFF, 2014, p. 60).
3. Manuel Cabral Machado era Bacharel em Direito. Elegeu-se por três legislaturas a Deputado Estadual
pelo Partido Social Democrático. Foi professor e cofundador das quatro primeiras faculdades criadas no
Estado e da Universidade Federal de Sergipe. Ocupou a cadeira nº25 (Antônio Dias de Barros) na
Academia Sergipana de Letras. Cf. OLIVA (2013).
4. Eufrozina Amélia Guimarães mais conhecida como Zizinha Guimarães, foi uma mulher que ganhou
notoriedade na cidade de Laranjeiras/SE em virtude de seus feitos no cenário educacional e social, entre
os fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX. SANTANA, Lívia Borges. Em Busca de
Zizinha: Vestígios para a musealização da memória sobre Eufrozina Amália Guimarães (1872-1964.
Monografia de Museologia da Universidade Federal de Sergipe. Laranjeiras/SE 2011.
5. Refere-se aos professores que defendem uma tese diante de uma banca, a partir disso, sendo aprovado
passa a compor o quadro de professores daquele determinado estabelecimento de ensino.
6. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
7. O poeta José Sampaio nasceu em 02 de maio de 1913, na cidade de Neopólis eescreveu, entre outras
obras, “Esparsos e Inéditos” publicada pela primeira vez em 1967, sob a organização de Jackson da
Silva Lima.
8. O poeta, dramaturgo e teórico russo Vladimir Mayakovsky.
9. Luiz Fernando Ribeiro Soutelo ingressou, posteriormente, na Academia Sergipana de Letras, na
Cadeira nº 30 que tem José Jorge Siqueira Filho (Patrono); Enoch Matusalém Santiago (Fundador) e José
Olino Oliveira Lima como acadêmico antecessor.
10. Luiz Antônio Barreto nasceu na cidade Lagarto em 1944 e faleceu em 2012. Era jornalista,
pesquisador e memorialista.Trabalhou em diversos jornais sergipanos. Tem diversos livros publicados e
foi membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, do Conselho Estadual de Cultura e da
Academia Sergipana de Letras,
11. Gineceu era parte da casa, na Grécia antiga, reservada as mulheres, além de ser órgão feminino das
flores, formado por um ou mais pistilos, que se constituem de ovário, estilete e estigma. Androceu
consiste os órgãos masculinos da flor, conforme o Dicionário de Houaiss.
12. João Alves Filho exerceu três mandatos como governador de Sergipe: 1983-1987; 1991-1994 e
2003-2006.
13. LEAL, Rita de Cássia Dias. O Primeiro Jardim de Infância de Sergipe: contribuições ao estudo
sobre Educação Infantil (1932-1942). Dissertação de Mestrado em Educação da Universidade Federal
de Sergipe, 2004.
14. NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro. Ed. Paz e Terra, 1984.
15. Criado no governo de Eronides Ferreira de Carvalho, em 1923.
16. Antes da Lei do Divórcio (1977), o Código Civil de 1916, com vigência a partir de 1917,
estabeleceu o desquite, que separava corpos e bens, mas não extinguia o vínculo matrimonial. O desquite
equivaleria à separação judicial, trazida pela Lei do Divórcio. Com essa nova modalidade, o casal, que
ainda estivesse junto, se separava judicialmente e, dois anos depois, podia homologar o divórcio. Ou, se
o casal já estivesse separado de fato há mais de 3 anos, já podia dar entrada diretamente no divórcio.
Logo, Núbia desquitou-se em 1968. Com a Lei do Divórcio, ela já poderia converter o Desquite em
Divórcio, dado o lapso temporal da separação (Desquite).
17. Cf. SOUZA, Eliana. História e Memória Universidade Federal de Sergipe:1968-2012.São
Cristóvão: Editora UFS, 2015.
18. Luciano José Cabral Duarte nasceu em 21 de janeiro de 1925, em Aracaju/SE. Fez os estudos
secundários em Aracaju e os superiores em Olinda/PE e São Leopoldo/RS. Foi ordenado sacerdote em
1948. Em 1951, foi nomeado Diretor da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe, onde também
ensinava Filosofia. De 1954 a 1957, estudou no “Institut Catholique de Paris” e na “Sorbonne”,
recebendo, nesta, o título de Doutor em Filosofia. Em 1963, foi nomeado Bispo Auxiliar em Aracaju e,
em 1971, Arcebispo. De 1963 a 1967, liderou os trabalhos para a Fundação Universidade Federal de
Sergipe (UFS). Foi membro do Conselho Federal de Educação, Presidente Nacional do Movimento de
Educação de Base (MEB). Colaborou nos principais jornais e revistas do país, a exemplo dos jornais
“Folha de São Paulo” e Jornal do Brasil, bem como na revista Veja. Publicou diversos livros, entre eles
O Banquete de Platão (UFS, 1961), Estradas de Emaus (Vozes, 1971), Concílio Vaticano II – os novos
caminhos da Cristandade (J. Andrade, 1999). Cf.DUARTE, Luciano José Cabral. A natureza da
Inteligência no Tomismo e na Filosofia de Hume. Tradução: Antonio Carlos Mangueira Viana. Aracaju:
J. Andrade, 2003.
19 Cf. SOUZA, Eliana. História e Memória Universidade Federal de Sergipe:1968-2012.São
Cristóvão: Editora UFS, 2015
20. Getúlio Vargas ingressou na ABL, em (1943), na cadeira 37 cujo patrono foi Tomás Antônio Gonzaga
e Silva Ramos, o fundador.
CAPÍTULO 6

MERCEDES DANTAS E SUA VIAGEM AOS ESTADOS DO


NORTE: DIFUSÃO DO IDEÁRIO ESCOLANOVISTA (1930)
Maria Neide Sobral1

D
ebruçar-se sobre trajetórias de educadores requer uma imersão na compreensão de memória,
pois ela é um elemento essencial na construção de determinada identidade, como salientou Le
Goff (2003a). Para tanto, exige cuidados para que a narrativa histórica se aproxime da trama
vivida pela personagem, de modo que se possa interpretar sentidos e ações que a põem em movimento.
Trama essa que faz da história um campo fértil de produção de narrativas.
Neste capítulo, debrucei-me sobre o itinerário de viagem de Mercedes Dantas Itapicuru Coelho,
durante cinco meses, pelos estados do Norte2 do país, compreendendo os estados do Amazonas, Pará,
Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Sergipe, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia e Espirito Santo,
com a missão de difundir a reforma empreendida por Fernando de Azevedo, no Distrito Federal, e
promover a criação de entidades estaduais filiadas à Fundação das Sociedades Nacionais da Educação
(FNSE). Essa entidade foi criada em 1929, por Vicente Licínio Cardoso3 e José Augusto Bezerra de
Menezes4, após dissenção com Associação Brasileira de Educação, criada em 1924, quando esta passou
a ser controlada por católicos (BERTO, 2013).
Essa viagem foi comissionada pelo governo do municipal do Rio de Janeiro. Incialmente, procurei
traçar um perfil da biografada, situando-a no cenário da intelectualidade brasileira na primeira metade do
século XX, para, em seguida, acompanhar e analisar os seus esforços como vulgarizadora de um modelo
educativo implementado no Rio de Janeiro, deslocando-o de São Paulo, que desde o final do século XX
tinha preponderância no empréstimo de técnicos para outros estados, além de ser o itinerário de muitos
intelectuais em visitas de estudos à rede pública de ensino.

Aproximações a Mercedes Dantas


A busca de fontes me permitiu uma aproximação com a biografada, levando-me ao encontro de pistas
que possibilitaram construir o cenário político, social, cultural, educacional no qual ela viveu. Implicou,
também, em buscar “lugares de memórias” (NORA, 1993) que mantêm viva a lembrança e fogem ao
esquecimento. Nesses lugares, encontrei algumas marcas do vivido e os indícios para novas buscas, dada
a complexidade de se escrever sobre uma vida.
Uma primeira reflexão foi a de verificar, depois de várias garimpagens nos arquivos
disponibilizados digitalmente, que a professora e escritora Mercedes Dantas e sua “peregrinação
pedagógica” pelos estados do Norte não tinha merecido a condição de objeto de estudo em trabalhos
acadêmicos. Tratava-se de uma intelectual cujo nome emergia em meio a notas e observações pontuais,
no campo literário, jornalístico, educacional e político como uma figura que tinha marcado presença em
seu tempo. Citada como uma das percursoras do feminismo brasileiro, incentivadora da criação das
sociedades de professores (BERTO, 2013), isso promovia meu interesse em estudá-la, particularmente,
em seu itinerário de viagem em defesa da Escola Nova e da construção de uma política nacional de
educação que veio a ocorrer após a Revolução de 1930.
Estudos sobre memórias de educadores têm ocupado lugar privilegiado nas livrarias, nos arquivos e
nas bibliotecas. A título exemplos, destaco o texto de Garcia (2002) e o de Brandão (1999). Escritas
biográficas, sejam sob o viés de louvação aos modos dos relatos dos grandes homens e de grandes feitos,
sejam produzidas como formas de abraçar determinados contexto, em suas singularidades, devem
produzir ”efeitos do real” (LE GOFF, 1999). Isto tem exigido do pesquisador a atenção sobre as
diferentes formas de narrar sobre a vida de seu personagem. No dizer de Borges (2001), é necessário
buscar as conexões entre origens, personalidade e contexto em que viveu para poder dar conta da riqueza
da personagem, sem cair no risco de torná-la a “essência da humanidade” e, principalmente,
compreender as possíveis implicações que o biógrafo estabelece com a sua personagem. Embora esses
cuidados tenham sido levados em consideração, demarquei, aqui, Mercedes Dantas em uma trajetória
singular no universo carioca e brasileiro, no campo da literatura, da educação e da política em cenário no
qual a predominância era a da figura masculina.
Ao tratar de um estudo de natureza biográfica de uma intelectual que assumiu a acunha de educadora,
atuante no cenário brasileiro no século XX, foi possível acompanhar o seu envolvimento e
comprometimento com a República e com o ideário posto sobre educação e, em segundo, observar a sua
participação no processo de renovação e inovação da escola, graças ao movimento da Escola Nova em
difusão no país. Assim, a preocupação de intelectuais desse período esteve em busca de construir uma
identidade coletiva para o país, base para a formação de uma nova nação; isto se tornou doutrinário como
ideal mais elevado da revolução republicana, como afirma Bonfim (1988). Termos como “missão”,
“peregrinação”, “apostolado” tornaram-se frequentes para dar conta da grande movimentação de
intelectuais que se deslocavam do Brasil para o estrangeiro e de estado para outro, para assumir a tarefa
de estudar as mudanças e realizar reformas nos sistemas de ensino público.
Esse apostolado, normalmente, advogava temas no contexto das ideias republicanas, como a
liberdade de ensino, a laicidade e a inclusão de disciplinas científicas nas escolas. Com a instalação da
República, iniciativas foram sendo tomadas no seio das diretorias de instrução pública dos estados
brasileiros que mantinham o eixo descentralizador, especialmente em relação ao chamado ensino
primário e às reformas necessárias para modernizar os sistemas de ensino. Ganhava corpus o modelo
costurado e implementado em São Paulo, promovido sob a égide da chamada pedagogia moderna, cuja
herança se deveu a Comênio, Pestalozzi, Herbart, Spencer, dentre outros. Reestruturar a escola nesses
moldes implicava introduzir o método intuitivo, especialmente pela difusão de Rui Barbosa, em São
Paulo, e de José de Menezes Viera, no Rio de Janeiro (BASTOS, 2002), em uma escola particular.
Carvalho (2000) referenciou o modelo paulista de instrução pública que foi disseminado entre o final
do século XIX e as primeiras décadas do século XX para outros estados brasileiros. Tal modelo tinha
visibilidade fora do país, como constatou Sobral (2012), em Portugal. A escola paulista era “erigida
como signo do progresso que a República instaurava; signo do moderno que funcionava como dispositivo
de luta e de legitimação na consolidação da hegemonia desse estado na Federação” (CARVALHO, 2000,
p. 225).
Empréstimos de técnicos do governo paulista para outros estados, bem como a ida de educadores
para lá, em razão de estudar, tornaram-se comuns. Os chamados “missionários pedagógicos”
(CARVALHO, 2000, p. 1), em suas viagens de deslocamentos, iam de São Paulo para assumirem funções
e cargos na instrução pública dos estados ou visitavam a capital paulista para estudar e aprender sobre o
seu modelo pedagógico e implementar nos seus estados. Essa movimentação – intercâmbios, empréstimos
e visitas – deu maior visibilidade ao modelo paulista de educação. Os jornais da época eram, de fato,
uma “vitrine das letras” para expor, divulgar e fazer circular as chamadas ideias da pedagogia moderna
(SOBRAL, 2012).
Propagandear os feitos paulistas nos jornais era uma missão de seus protagonistas, missão necessária
para a construção de uma nova escola, para um novo país que, a despeito de ter proclamado a República,
mantinha-se preso aos velhos preceitos da chamada escola antiga. Expor, divulgar, socializar e imitar
eram premissas básicas para se gerar a renovação da escola e os intelectuais ativistas do período
ocupavam os espaços sociais e comunicacionais possíveis para que o modelo ganhasse “mundo afora”,
como uma cruzada fundamental de construção de novas sociabilidades escolares.
Movimentos e associações foram sendo construídos nas primeiras décadas da República para esse
fim, um deles foi a criação da Associação Brasileira de Educação (ABE) no Rio de Janeiro, em defesa
da “causa nacional”, fato que promove um cenário diferenciado do paulista, hegemônico até então
daquilo que era considerado novo em educação no país. Evidentemente, a “exportação” de intelectuais
para atuar em diferentes estados entre o final da última década do século XIX e as três primeiras do
século XX deram notoriedade ao modelo paulista e, em maior ou menor similitude, foi implementada em
diferentes realidades do país, embora com resultados que precisam ser analisados comparativamente.
No início do século XX, os Estados Unidos e alguns países europeus já estavam antenados com
novas ideias pedagógicas, provocadas pela chamada Escola Nova (Escola Renovada) que, em certa
medida, rompia com alguns dos pressupostos da então dominante pedagogia moderna de Comênio,
Pestalozzi, Froebel, Herbart, para aquele preconizado por Dewey, Montessori, Decroly, Kilpatrick e
outros que, embora estivessem dentro do espírito da chamada “escola ativa”, tinham a renovação como
ponto fundamental, especialmente no campo da didática, como salienta Lourenço Filho (1961). Essa
imersão nos aspectos americanos da educação se deu, posteriormente, através da viagem de Anísio
Teixeira, voltando-se para a chamada escola do trabalho e para a adoção de uma perspectiva de
educação popular que atenda às exigências da realidade brasileira, cujo teórico referenciado com mais
apreço foi Adolphe Ferrière. Carvalho (2007) destacou o cenário da difusão da escola nova em nível
mundial, trazendo algumas reflexões a respeito de Ferrière em sua viagem pela América Latina,
patrocinada pela Liga Internacional da Escola Nova, com objetivo de difundir e fortalecer esse ideário
pedagógico5.
As figuras de proa de renovação da escola eram convocadas para assumirem suas missões e, assim,
viajavam para outros estados com essa finalidade. Pode-se acompanhar, ao largo da Primeira República,
o itinerário de vários intelectuais em deslocamentos para empreenderem a “redenção” da escola
brasileira, corroída pelos chamados processos e métodos da escola antiga,“esquecida” por seus
governantes. São Paulo assumiu, dessa forma, esse campo formativo e irradiador de um modelo
pedagógico que atendia aos anseios modernizadores para a construção de um país capaz de se aproximar
das grandes nações da época. Rio de Janeiro, abrigando o Distrito Federal, despontava como um espaço
de poder e de renovação, nas brechas do poder e da política do “café com leite”. Nesse período, para
fazer jus à força mobilizadora necessária de renovação da instrução pública, condicionante para o
desenvolvimento do país, dá-se a chegada de Fernando Azevedo em terras fluminenses.
A chegada de Fernando Azevedo de São Paulo para assumir a instrução pública do Rio de Janeiro,
em 1927, procurava demarcar o campo educacional, que tivera em seus antecessores, a exemplo de
Carneiro Leão, o início da implantação da escola ativa, agora com a sua insígnia. Nesse cenário, dá-se o
encontro entre Mercedes Dantas e Fernando de Azevedo, e a indicação dela para assumir o compromisso
de propagandear pelos estados do Norte a reforma aclamada no Rio de Janeiro ainda está para ser
claramente explicitada. Nos meados do ano de 1930, houve uma movimentação do professorado carioca,
especialmente na Federação Nacional das Sociedades de Educação (FNSE), constituída como foco
dissidente da ABE, a qual ganhou força no cenário pré-revolução de 1930, com a viagem empreendida
por Licínio Cardoso para os estados do Sul e com a viagem de Mercedes Dantas aos estados do Norte.
Licínio Cardoso, então presidente dessa entidade, havia viajado para a Europa, em janeiro de 1930, e lá
teve contato com a Liga Internacional da Escola Nova. Os “raids” cívicos promovidos por essa entidade,
a FNSE, procuravam assegurar o lugar do Distrito Federal como centro pedagógico, assumindo a
condição de alternativa institucional a ABE.

Fonte: Jornal Pequeno, n. 127, 08/07/1928.


Assim, fez poetisa, escritora, política, professora Mercedes Dantas, em 1930. Comissionada pelo
governo do Distrito Federal, viajou pelos estados do Norte do Brasil, dentro da cartografia da época,
para difundir os feitos em torno da Escola Nova nos estados e, também, para contribuir para a instalação
das chamadas sociedades estaduais de Educação: “A brilhante escriptora Mercedes Dantas disse ao
‘Jornal do Brasil’ que vai ao Norte do paiz fazer o balanço do que existe nas diferentes unidades da
Federação Brasileira, em matéria de instrucção” (JORNAL DO BRASIL, n. 89, 03/04/1939, p. 6). E,
como parte de seu apostolado, defender o modelo de reforma implantado por Fernando de Azevedo,
coordenando as ações dispersas nos estados para congregá-las a FNSE, unindo o país em um mesmo
ideário pedagógico, foi seu propósito. Ela também era parte da Associação dos Escoteiros que se uniu a
essa entidade para a realização dessa cruzada, tendo como ponto de culminância a realização de um
congresso no Rio de Janeiro no mês de outubro do mesmo ano.
Em um primeiro momento de pesquisa exploratória, pudemos acompanhar reportagens, informes e
notas de viagem em jornais cariocas e em jornais dos estados por onde passou, consubstanciando, em um
exercício de História da Educação comparada. A professora Mercedes procurou demarcar semelhanças e
diferenças na instrução pública dos estados visitados, salientando sempre o processo de (re) novação em
que eles se encontravam. Além disso, evidenciou-se no impresso o “Jornal do Brasil” sua trajetória na
Diretoria da Instrução Pública do Distrito Federal: licenças, promoções, eventos de toda ordem,
conferências que ministrava, cursos realizados, especialmente de aperfeiçoamento de professores e de
prática de ensino.
Descendente do baronato de Rio Real, de Itapicuru, na Bahia, Mercedes Dantas era filha de José
Dantas Itapicuru Coelho e Maria Dantas Itapicuru Coelho. Tinha 04 irmãos e 01 irmã, tendo esta falecido
em 1937, de parto; todos eles, de modo geral, eram engajados na vida social, política e cultural do Rio
de Janeiro. Desde cedo, mostrou-se talentosa na pintura, no piano e na escrita, publicando seu primeiro
texto aos dez anos de idade. Recordou seu pai que, apesar de demonstrar gosto pelo desenho, a opção
dela foi a de ser professora e frequentar a Escola Normal, em entrevista dada ao impresso “Jornal
Pequeno” (n. 126, 03/6/1927), ocasião em que publicou seu primeiro livro “Nú” (1926). Depois
publicou Adão e Eva (1927), com boa recepção pela imprensa carioca, mais tarde Castro Alves e o
Nacionalismo (1941), A força nacionalizadora do Estado Novo (1942), este último fruto de monografia
concursa pelo Departamento de Imprensa do governo Getúlio Vargas.
Sua ação se fez no Instituto de Educação, na organização de colônias de férias para professores,
como colunista na Revista Brasil-Feminino, na diretoria do jornal “Correio de Botafogo”, na direção da
Cruzada Nacional de Educação, nos congressos feministas, na Rádio Sociedade, no Atlântico Club, nas
páginas sociais como organizadora de eventos recreativos e culturais, a exemplo da “Hora Literária”, na
criação de um diretório político de professores primários e, também, nos livros que publicou e que
viraram notícias (BIBLIOTECA DIGITAL DO BRASIL).
Da mesma forma, outros momentos foram igualmente importantes, como nas décadas de 40 e 50 do
século passado, quando entrou na política partidária e se elegeu vereadora em 1942, pelo Partido
Republicano (PR)6 7 porém, não sendo reeleita no pleito seguinte8, foi acompanhada pela imprensa. Em
dissidência com aquele partido, migrou para o Partido Social Democrático (PSD). Mercedes Dantas
Itapicurú Coelho, baiana e vivendo no Rio de Janeiro, emergiu como uma dessas figuras femininas que
teve uma grande atuação na antiga capital do país, configurando-se como jornalista, dirigindo a
Associação Brasileira de Imprensa, demonstrando sua presença no cenário social do Rio de Janeiro e na
construção de imagem ativa na produção de elementos culturais e sociais.
Além disso, teve participação ativa em muitas organizações de professores do Rio de Janeiro, como
membro e como diretora, como a Associação dos Professores Primários, Federação da Sociedade
Nacional de Educação, Ordem dos Professores, União dos Educadores do Rio de Janeiro. Fez parte de
vários movimentos femininos, a exemplo da iniciativa de uma Associação de Letras Feminina, de um
Partido Feminino de Professores. No serviço público, do então Distrito Federal, atuou como professora
primária, professora do Instituto de Educação, Diretora do Instituto Profissional Viana de Assis, Técnica
da Instrução Pública, Coordenadora das práticas de ensino da Escola Normal, dentre outras. Na política,
atuou como vereadora pelo PR e no PSD.
Presença constante na imprensa local e nas revistas sociais por conta de sua atuação no Atlântico
Club, Mercedes Dantas assumiu uma missão especial em 1930, viajar para os estados do Norte do Brasil
com dois objetivos: I) propagandear os preceitos da Escola Nova, tomando como exemplo a reforma
empreendida no Rio de Janeiro por Lourenço Filho; e II) agilizar a mobilização dos professores para a
criação (quando ainda não tinha) das sociedades estaduais de educação, articulando-as à Federação
Nacional. Acompanhada de sua genitora, Mercedes Dantas embarca no paquete Bajé, no Rio de Janeiro,
em 15 de abril de 1930, para fazer sua “peregrinação pedagógica” em prol da Escola Nova, tomando
como modelo pedagógico aquele construído pela batuta de Fernando de Azevedo, no Rio de Janeiro.
Acompanhar essa viagem de Mercedes Dantas tornou possível fazer um bom exercício de
comparação sobre as diferentes condições educacionais dos estados visitados, especialmente as
inovações advindas da chamada Escola Ativa. Um desses estados visitados por Mercedes Dantas foi
Sergipe, cuja presença foi identificada por Santos (2011) em jornais locais. O esforço da professora
Mercedes Dantas era o de compor, sobretudo, uma articulação para a construção de uma política nacional
de escolarização.

Cenários de viagens pedagógicas e seus viajantes


As viagens pedagógicas ganharam relevo pela “raridade” de sua existência na época, fato que atraía
aos portos parentes, amigos, políticos, simpatizantes do viajante, o qual, no momento de sua chegada, era
recepcionado por comitivas devidamente preparadas para saudá-lo. Como nos lembra Ianni (2003, p.
13): “A história dos povos está atravessada pela viagem, como realidade ou metáfora. [...]. É como se a
viagem, o viajante e a sua narrativa revelassem todo o tempo o que sabe e o que não se sabe, o conhecido
e o desconhecido, o próximo e o remoto, o real e o virtual”.
As viagens eram acontecimentos sociais importantes que atraíam a impressa local e as notícias sobre
os viajantes eram devidamente replicadas em jornais de diferentes estados. Eram realizadas por razões
diferentes: peregrinação, mercantil, conquistadora, turística, missionária ou aventureira e possibilitavam
vários significados e sentidos (IANNI, 2003, p. 13). As viagens permitiram ultrapassar fronteiras,
levando os viajantes ao encontro do (des)conhecido. Provocavam sentimentos de estranhamento,
encantamento, pertencimento e repúdio. Por isso, afirmou o autor, estas se tornam um “recurso
comparativo excepcional”.
Nos locais aonde chegavam, os viajantes, especialmente aqueles considerados ilustres, mobilizavam
a intelectualidade em jantares, conferências, atos públicos, recepções e outras atividades culturais,
acionando, assim, todo o sentido de sociabilidade e comunicabilidade necessárias ao conforto de suas
missões. Esse compromisso, na maioria das vezes, selados entre governos de estados, mobilizava a
sociedade da época para aquele fato com o mesmo poder sedutor de outros viajantes, tais como políticos,
artistas, diplomatas etc.
A origem das viagens remonta a séculos anteriores, especialmente durante as grandes navegações e
os processos colonizadores empreendidos pelos europeus, que implicavam, também, a imposição de
sistemas de ensino, embora de natureza religiosa, mas estas passaram a ser realizadas com outros
objetivos, especialmente a partir do século XIX. Lourenço Filho (1960) salienta que, no início do século
XIX, algumas viagens de natureza educativa foram realizadas, como a do americano John Griscom, que
registrou o que pôde observar nos sistemas de ensino da Inglaterra, França, Suíça, Itália e Holanda; já
Victor Cousin, ordenado pelo governo francês, em 1831, viajou para Prússia com o intuito de observar o
sistema de ensino daquele país; Herace Mann, em 1943, dos Estados Unidos, viajou para o Velho Mundo
com a mesma finalidade.
No movimento de constituição do Estado Nacional, como assinalam Mignot e Gondra (2007, p. 7),
é possível evidenciar empréstimos e diálogos com modelos internacionais nos mais diversos
domínios No campo da instrução, este fenômeno também é observável na produção das
instituições educativas, na legislação educacional, nos livros estrangeiros, nas traduções, no
modelo de imprensa, materiais pedagógicos, métodos de ensino e até no vocabulário empregado.
Eram, de fato, exercícios de comparação que, como salientou Gondra (2007), funcionavam em busca
de similitudes e diferenças entre as lições extraídas dos diversos sistemas de ensino. O despertar dessas
viagens pedagógicas para o estudo da História da Educação foi evidenciado em publicações, a exemplo
da coletânea realizada Mignot e Gondra (2007), em cujos livros exploraram, além de alguns viajantes
europeus que se deslocavam de um continente para outro, a trajetória de brasileiros para outros países, a
exemplo de Maria Guilhermina, a mineira que fora aos Estados Unidos e, no retorno, participou das
reformas da instrução pública de São Paulo, em 1890, e em Minas Gerais, em 1906 (CHAMON; FARIA
FILHO, 2007).
Podemos demarcar que houve uma intensificação de viagens de educadores na década de 20 do
século passado, cujos deslocamentos tinham um objetivo claro de renovar a escola, seja assumindo
cargos, seja visitando e estudando que se tinha feito para implantar e/ou adaptar aos seus estados de
origem. O próprio cenário de difusão dos ideários escolanovistas, nesta década, imbuía os educadores de
sua função missionária para acompanhar, estudar e intervir na realidade educacional como processo
necessário para o desenvolvimento da nação e civilização da sociedade e o progresso do país.
Nagle (1976, p. 99-100), reportando-se à Primeira República e às transformações nos setores
políticos e econômicos que tendem a provocar alterações no setor social, constrói um cenário para o
campo cultural, especificamente, o “entusiasmo” e o “otimismo” tornaram-se categorias explicativas do
período:
de um lado, existe a crença de que, pela multiplicação da educação escolar, será possível
incorporar grandes camadas da população na senda do progresso nacional, e colocar o Brasil no
caminho das grandes nações do mundo; de outro lado, existe a crença de que determinadas
formulações doutrinárias sobre a escolarização indicam o caminho para a verdadeira formação do
novo homem brasileiro (escolanovismo) .
Os anos vinte, segundo o autor, são caracterizados por estas duas categorias, atribuindo cada vez
mais importância à educação, especialmente ao processo de escolarização. Foi nessa década que
movimentos, associações, ligas importantes dos educadores começaram a emergir de forma mais
organizada, a exemplo da Associação Brasileira de Educação, em 1924, pela iniciativa de Heitor Lira,
considerada por Nagle (1976, p. 123) como sendo “a primeira e mais ampla forma de institucionalizar a
discussão dos problemas de escolarização, em âmbito nacional [...]”. Para tanto, realizou conferências
educacionais. Um dos componentes importantes neste período foi a nacionalização do ensino.
Assim o fez o alagoano Sampaio Dórea em São Paulo, de 1920-1921. Depois, passou a atuar da
Sociedade Nacional de Educação, em sua primeira fase (1922-1924), publicou várias obras sobre
Educação, depois, formou-se em Direito e passou a atuar nessa área (MATHIESON, 2012).
Lourenço Filho, no Ceará, de 1922-1923, foi solicitado pelo governo estadual; Justiniano Serpa, ao
de São Paulo Washington Luiz, para a reforma necessária naquele estado. Saindo, assim, Lourenço Filho,
da Escola Normal de Piracicaba de São Paulo, assumiu a reforma do Ceará, onde trabalhava como
professor e pesquisador (CAVALCANTE, 2000).
Anísio Teixeira, em 1924, assumiu a instrução pública na Bahia. Fez viagens à América (1927-1929)
e, em contato com as ideias de John Dewey, na primeira viagem pela Assembleia Legislativa da Bahia,
com o intuito de observar os métodos americanos e as instituições, em 1927-1928, realizou uma excursão
pedagógica que alterou significativamente o seu percurso de sua ação na instrução pública brasileira
(NUNES, 2007).
O mineiro Fernando de Azevedo fez a reforma no Rio de Janeiro, em 1927. Havia sido convidado
pelo presidente da República Washington Luiz para diretoria da Instrução Pública do Distrito Federal.
Naquele momento, era jornalista em São Paulo, havia publicado um diagnóstico da educação daquele
estado, fazendo proposições de reforma. Deslocou-se, então, para o Rio de Janeiro, depois da passagem
de Carneiro Leão no cargo, entre 1922-1926, considerado, por ele, como o preparo do terreno para
efetivar a reforma que desejava implementar (MATE, 2002).
Carneiro Leão, 1928, embora pernambucano, residia no Rio de Janeiro quando foi convidado pelo
governo de Arthur Bernardes para fazer a reforma em Pernambuco, e passou a ocupar, então, o cargo de
secretário de Estado da Justiça e Negócios Interiores. Trazia em sua bagagem a experiência de diretor
geral da instrução pública do Distrito Federal e já era um militante na causa e na difusão da educação
popular (ARAÚJO, 2002). José Escobar, do interior paulista, o substituiu nesse cargo, embora tenha
ficado pouco tempo.
Sergipe recebeu, em 1910, Carlos Silveira, de São Paulo, na Instrução Pública, o qual introduziu o
método intuitivo, e foi neste período que se iniciaram os primeiros prédios escolares. Depois, Abdias
Bezerra fez uma viagem para São Paulo, em 1922; era diretor da Instrução Pública e teve significadas
incorporações no regulamento de 1924. Da mesma forma, Helvécio de Andrade estivera em São Paulo e
no Rio de Janeiro participando ativamente de conferências; assumiu por três períodos a diretoria da
Instrução Pública em Sergipe, cujas ações estão marcadas por esta inovação e renovação do sistema de
ensino.
Dessas viagens de intelectuais sergipanos para outro estado, a de José Augusto da Rocha Lima teve
maior impacto na instrução pública de Sergipe, com a introdução de muitas mudanças de ordem estrutural
e, sobretudo, pedagógica, como atesta Sobral (1910). Penélope Magalhães, em 1935, foi comissionada
pelo governo do estado para estudar os jardins de infância em São Paulo e no Rio de Janeiro. Quando de
seu retorno, foi a primeira diretora do primeiro jardim de infância do estado.
Essa movimentação de intelectuais voltados para as questões educacionais aliou-se ao desejo de
renovação nesta área e à crença arraigada do poder transformador da escola. Nesse cenário, já
apareceram as personagens femininas ganhando espaço no contexto profissional brasileiro e,
particularmente na educação, embora em pequeno número e, muitas vezes, acompanhadas por outras
figuras de autoridades, como esposo, mãe, pai, irmão. Aos poucos, elas conquistam e abrem novos
espaços na imprensa, nas artes, de um modo geral, nas políticas, na educação e em outros espaços
culturais.

Mercedes Dantas e sua viagem aos estados do Norte


Se na Idade Média, os intelectuais eram considerados os sacerdotes das Letras (LE GOFF, 2003) por
assumirem o monopólio e difusão da escritura, Foucault (1979), em referência aos intelectuais,
distinguiu-os em universais e peritos (específicos). Os intelectuais não tinham um campo de atuação
demarcado, depois, passaram a se situar em determinados locais: escolas, asilos, prisões, hospitais,
tomando consciência de seu papel nas lutas imediatas. A princípio, eram sujeitos mais livres e, por
excelência, escritores; depois, passaram a assumir serviços do Estado ou do Capital: médicos,
engenheiros, professores, magistrados, entre outros, produzindo assim ligações universais entre saber e
poder.
Com suas especializações, muitos desses intelectuais procuraram assumir responsabilidades práticas
em seu campo de formação e em outros espaços culturais e educacionais. Dessa forma, seus discursos
funcionavam como verdades, verdades estas umbilicalmente ligadas à dita verdade científica. Foucault
(1979) afirma que os poderes se exercem em níveis diferentes da vida social e, neste complexo de micro
poderes integrados ou não ao Estado, foi possível acompanhar a presença de Mercedes no cenário da
Educação Nacional.
Suas ações estavam ligadas a dispositivos mais gerais da sociedade, com uma verdade apoiada no
discurso científico e nas próprias instituições que o produziam. Os enunciados expressam estes
elementos: saber, poder e verdade. Foucault me permitiu identificar Mercedes Dantas no processo de
assimilação e formação dos intelectuais no Brasil, em especialistas, mas que se deslocou do seu campo
de atuação, assumindo postos em serviços públicos, assegurando-se também do espaço na impressa para
engatar-se no universo cultural local.
Quando Miceli (2000) tratou as relações entre os intelectuais e as classes dirigentes, especialmente
na Primeira República, salientou bem o papel do Estado na assunção da tutela dos intelectuais, tornando-
se seu principal investidor e difusor, possibilitando a consagração de muitos deles.
Em direção similar, Mannheim (2004) afirma que, na fase áurea dos intelectuais universais, eles se
resguardaram do direito sagrado de serem os únicos a interpretarem o mundo, supervalorizando-se e
colocando-se acima dos outros mortais. Muitos deles, inclusive, foram se colocando nos encaixes do
Estado como funcionários. Predominam entre eles o sentimento de “autoimportância”. Esse sentimento de
autoimportância, de visionário, de missionário, de moral inquebrantável e de difusor de saber verdadeiro
eram racionalizações que canalizavam elementos de sensibilidades que se evidenciavam constantemente
quando os intelectuais entravam nas querelas. As adjetivações que utilizavam iam justificando, para o
bem ou para o mal, o lugar em que se encontravam.
Nessa direção, Gondra (2000, p. 527) ressaltou a existência de uma rede de comunicação e de
diálogo entre médicos brasileiros e estrangeiros, sobre a fé no poder da razão científica, tomando como
fundamento os preceitos da higiene, dessa forma, transportando-os para a organização escolar sob vários
aspectos. A circulação de modelos pedagógicos e de outros artefatos culturais se dava, sobretudo,
através das viagens e da difusão de ideias através da imprensa que, na primeira república, ocorria
primordialmente através dos jornais e do rádio.
A intelectualidade feminina, mesmo em menor número, já tinha presença reconhecida no cenário
educacional brasileiro, fazendo, também, estes deslocamentos do Brasil para os Estados Unidos, como
Maria Gulhermina (CHAMON; FARIA FILHO, 2007) e Cecília Meireles (PIMENTA, 2007). Em
Sergipe, a título de exemplo, as mulheres ganharam notoriedade em diferentes campos profissionais e
migraram do estado, como tratou Freitas (2003). Também se destacou a viagem da professora Penélope
para o Rio de Janeiro, para estudar o jardim de infância e implantá-lo no Estado, o que veio ocorrer em
1935. Nesse cenário, Mercedes Dantas, em 15 de abril de 1930, inicia sua “peregrinação” pedagógica
para os estados do Norte, levando a “boa nova” da Escola Nova, no modelo implementado por Fernando
de Azevedo no Rio de Janeiro, e, também, arregimentando os professores para organização e inserção da
FNSE, anunciando a grande reunião que foi realizada no mês de outubro do mesmo ano. Ela foi
comissionada pelo governo do Distrito Federal e teve o apoio da FSNE para empreender a referida
viagem, seguindo o itinerário de Licínio Cardoso, então presidente dessa instituição, aos estados do Sul,
no início do mesmo ano.
Defensora do Nacionalismo e do ideário escolanovista já atuante no espaço social e educacional do
Rio de Janeiro, a baiana Mercedes Dantas chegou a cada estado e foi acolhida por autoridades locais,
especialmente em recepções e jantares oferecidos pelos governadores dos estados, academias de letras,
institutos históricos e outras agremiações educacionais, sociais e culturais. Os jornais locais e os do Rio
de Janeiro publicavam suas “impressões” da situação educacional de cada estado, acompanhando o
itinerário da intelectual.
Sua viajem foi adjetivada como “peregrinação pedagógica”, “excursão pedagógica”, “jornada
pedagógica”, “missão messiânica”, e a professora tornou-se uma mediadora cultural, tomando como
referência Miceli (2000). Saiu pelo paquete Bagé do Rio de Janeiro e, como toda viagem de viajante
ilustre, foi saudada por autoridade, amigos e familiares em direção à Bahia, no dia 14 de abril de 1930.
Sua viagem já anunciada pelo Correio Paulistano (N. 23.800, 12/03/1930), informando a “missão
educacional” da professora e escritora Mercedes Dantas, foi promovida pela Federal Nacional das
Sociedades de Educação e pela União dos Escoteiros do Brasil.
Na sua visita à Bahia, salientou que, a despeito da ação da reforma empreendida por Anísio
Teixeira, encontrou-a estacionada. Este havia assumido, em 1924, a condição de Inspetor Geral do
Ensino e foi comissionado para viagens aos Estados Unidos, onde conheceu a obra de John Dewey, uma
em 1925 e outra em 1927; em 1928, traduziu algumas obras do importante filósofo americano. Foi o
responsável pela Lei n. 1846, de 14/08/1925, que reformou a instrução pública do Estado da Bahia.
Matéria publicada no Correio Paulistano (N. 23866, 18/05/1930) deu conta das visitas realizadas pela
professora Mercedes Dantas ao Gynasio da Bahia, ao Centro de Hygiene Infantil Escolar, Escola Normal
e a grupos escolares. Como fazia parte da Academia Bahia de Letras, na condição de sócia
correspondente, foi recepcionada por essa entidade, com a Associação de Professores da Bahia.
Em Alagoas, recepcionada por uma comitiva, pôde visitar grupos escolares e outras instituições
assinalando, ainda, que nada de novo houvesse naquele estado, por não ser a educação uma preocupação
dos governantes: “O professor publico é um pária na vida collectiva do Estado. Vegeta à margem da
organização social e administração, sem estímulo, sem assistência” (JORNAL DO BRASIL, N. 165,
11/06/1930, p. 10). Evidenciou os processos antigos de memorização nas escolas, a ausência de
professoras na direção dos grupos, tendo apenas uma do sexo feminino, cargo esse “usurpado” por
jovens bacharéis. Também mencionou a situação da Escola Normal, naquele ano, com 40 alunas, tendo
diplomado apenas uma no ano anterior. Essa visão negativa atenuou-se em segunda visita a esse Estado,
relevando algumas iniciativas tomadas nesse intervalo.
Martins e Nogueira (2013, p. 42) assinalaram que:
Além da repercussão gerada pela visita e conferência da professora Mercedes Dantas, o
movimento de renovação escolar em Alagoas ganhou maior fôlego a partir da iniciativa da
Sociedade Alagoana de Educação em organizar e enviar ao estado vizinho de Pernambuco a
Cruzada Pedagógica Alagoana sob a responsabilidade de Craveiro Costa com o objetivo de
“estudar os novos processos de educação e ensino postos em prática pelo eminente Sr. Professor
José Ribeiro Escobar” (REVISTA DE ENSINO, 1930, p. 50.)
No Rio Grande do Norte, registrou notáveis avanços em escolas públicas e em iniciativas privadas.
O referido estado já tinha iniciado a implantação da reforma da instrução pública de 1924 a 1928,
quando esteve à frente o professor Nestor Lima dos Santos, bacharel pela Faculdade de Direito de
Recife. Segundo Menezes (2003), ele foi o responsável pelo discurso fundador da modernidade
educacional no Rio Grande do Norte. Suas ações na Instrução Pública daquele estado ocorreram após:
uma viagem de estudos realizada por esse Diretor, em 1923, para observar a organização e o
funcionamento das escolas normais e de ensino primário nos Estados de São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais, no país, e, no exterior, aos países do Prata: Argentina (Buenos Aires) e
Uruguai (Montevidéu). Por força de uma parada mais demorada do que o previsto do paquete
“Curvello”, o citado Diretor também visitou as escolas do Estado do Espírito Santo (PAIVA,
S/D)9.
Já em Pernambuco, mais especificamente em Recife, a visitante mostrou-se entusiasmada, afirmando
que os 18 grupos escolares de Recife e os 10 de Olinda caminhavam na perspectiva da escola ativa:
“Pernambuco se não interromper o trabalho regenerador da educação do seu povo será, proximamente a
Mecca incontestada de todos os que no Norte brasileiro falam primeiro em educação, quando se trata de
patriotismo” (JORNAL DO BRASIL, N. 177, 25/07/1930, p. 6). Fez visita ao grupo Escolar João
Ramalho e à Escola Normal, bem como à Escola Profissional Feminina. Desses contatos, descreveu os
avanços evidenciados na instrução pública desse estado (A PROVÍNICA, N. 108, p. 108, p. 3),
assinalando que “a escola activa tal como nos te sido possível no Brasil” estava sendo realizada em
Pernambuco. Professores orientados nos novos métodos de ensino, escolas com ambientes adequados e
nelas teve a oportunidade de assistir “aulas primorosas”. Durante a sua visita, foi fundada, em 15 de
maio, a Sociedade Pernambucana de Educação.
Fez menção a uma campanha contra a figura do Diretor da Instrução Pública, o professor José
Escobar, embora não mencione os motivos. Essa trama no cenário pernambucano iniciou-se com o
convite de três educadores paulistas para assumir a execução da Reforma implementada por Carneiro
Leão, José Escobar, à frente da Diretoria de Instrução Pública, sua esposa como professora de Didática
na Escola Normal e diretora do Colégio de Aplicação, e João Saramelli, na Escola Normal. Houve
rejeição dos opositores do governo e um certo fortalecimento de proposta com a inclusão no referido
programa da disciplina Anatomia e Fisiologia Humanas, com a inclusão de elementos de educação
sexual, mexendo com os brios da sociedade pernambucana, encabeçada por católicos. Isso gerou críticas
violentas nos jornais, passeatas e outras hostilidades aos educadores. Esses educadores foram
considerados por Gilberto Freyre como “matutões do interior” (ARAÚJO, 2002)10. Nesse cenário, deu-se
a visita de Mercedes Dantas a Pernambuco.
Na Paraíba, realizou conferências, dentre elas “Educar ou desapegar”, na Sociedade de Professores
Primários (JORNAL DO BRASIL, N. 136, p.8). O diretor técnico era o Prof. Eduardo Medeiros, que a
acompanhou em visitas a escolas e a outras instituições do estado.
No Ceará, proferiu duas conferências “para espalhar a semente das modernas doutrinas da escola.”
Sua atenção se voltou para a Escola do Trabalho e para as iniciativas do Dr. Moreira de Souza à frente
da Instrução Pública. À frente da instrução pública desse estado esteve Lourenço Filho, indicado pelo
governo paulista, no período de abril de 1922 a dezembro de 1923, dando os primeiros passos para a
reorganização do ensino e para a instituição da escola ativa. À época, também sofreu resistências e
insatisfações provocadas pelas medidas adotadas (MATE, 2002). Mercedes Dantas mostrou-se
entusiasmada pelo que viu nesse estado.
Ao chegar a Sergipe11, visitou a redação do Correio de Aracaju (n. 1431, 12/08/1930), concedendo
uma entrevista, na qual expôs os objetivos de sua excursão pelo Norte do país e apresentou as iniciativas
dessa Federação, apontando a oferta de cursos de aperfeiçoamento de professores, pois o objetivo
principal era o de trabalhar e cooperar com um Brasil maior. Apontou que a instrução não era a
preocupação dos governantes, por isso, a necessidade da propaganda para frutificar as associações e
promover a renovação educacional. (CORREIO DE ARACAJU, N. 1430, 11/08/1930). Reforçou seu
papel como vulgarizadora da reforma de Fernando de Azevedo, destacando a constituição de “um dos
mais formidáveis centros educacionais do paiz” (CORREIO DE ARACAJU, N. 1431, 12/08/1930). Em
16 de agosto de 1930, foi instituída a Sociedade Sergipana de Professores com a presença de Mercedes
Dantas, cujo discurso ressaltou a Escola Nova, que torna o aluno em ser pensante e não máquina dirigida
por outros, destacando as dificuldades da vida dos professores e congratulando os sergipanos pela
instalação da nova sociedade (CORREIO DE ARACAJU, N. 1438, 16/08/1930).
No Pará, evidenciou um grupo escolar pautado na escola ativa localizado em Belém. Segundo seu
relato, houve uma promessa de restituir o cargo de direção da instrução pública daquele estado
(JORNAL DO BRASIL, N. 226, 20/09/1930, p. 7).
No Maranhão, noticiou o “raid do Norte”, cujo objetivo era o de intensificar as relações intelectuais
entre a capital e os estados brasileiros. Deu entrevista ao jornal “Imparcial” (N. 47, 14/06/1930), dando
conta de seus objetivos na viagem que estava realizando e realizou conferência no cassino, tendo também
sido recepcionada pelo governo do estado em um jantar solene ocorrido no Palácio do governo. Nesse
estado, foi publicada uma carta aberta de autoria de C. Lopes saudando a presença de Mercedes Dantas
na “Athenas Brasileira” e, ao mesmo tempo, informando sobre as dificuldades que ela encontrara, tendo
em vista que o autor era um entusiasmado pela Escola Ativa, com militância na imprensa e na cátedra,
cujos resultados, depois de dez anos, eram desanimadores. Fez uma discussão sobre a escola e o
trabalho, na percepção de Adolph Ferrière, para finalizar suas colocações, asseverando o fato de a gente
do “Norte lê”, embora a propaganda atraia e frutifique quando aparece com o timbre da novidade.
Informou que, da viagem de Mercedes Dantas, restara apenas as impressões dos estados por onde
passou: “nada mais conseguirá” (A PACOTILHA, N. 132, 13/06/30).
No Amazonas, relatou que tudo estava se iniciando naquele momento e o professorado era distinto e
esforçado. Também foi fundada a Sociedade Amazonense de Professores, com grande participação da
intelectualidade e de autoridades locais.
No Espírito Santo, outro estado visitado por Mercedes Dantas, encontrava-se em franco andamento a
reforma da instrução pública, tendo à frente, na ocasião, Atílio Vivacqua, que também havia viajado para
São Paulo com o objetivo de estudar a reforma paulista e adequá-la à realidade de seu estado. Na visita,
foi fundada a Sociedade Espírito-Santense de Professores, em 01/09/1930, sob o patrocínio da FNSE
(DIÁRIO DA MANHÃ, N. 2420, 02/09/1930, p. 1). O impresso “Diário da Manhã” (n. 2417,
29/08/1930), em primeira página, fez a saudação à ilustre escritora baiana e noticiou a recepção de sua
chegada.
No final da década de 1930, alterações relevantes na política, na economia e na sociedade brasileira
mudam as configurações culturais e educacionais, abrandando as discussões de ordem política no campo,
justapondo-se a ênfase nas formulações mais pedagógicas, com especialistas preparados para esta
finalidade.
Mate (2002) assinala que, nos anos de 1930, houve a racionalização e universalização da Educação
já presente nos discursos da década anterior. O ideário escolanovista já presente em várias das reformas
dos estados passa nas falas dos chamados reformadores a defender um
projeto de homogeneização de escola que, com idas e vindas, se fortalecia contemplando um
conjunto de pressupostos políticos e excluindo outros. Assim, mais do que uma política nacional
de educação adotada a partir de 30, tratava-se de um projeto de reforma cultural em curso, através
do qual a escola seria o lugar privilegiado para a pretendida padronização dos costumes (MATE,
2002, p. 23).
Foi nesse cenário de mudanças ocorridas com a Revolução de 1930 que os reformadores assumiram
um papel mais organizativo, cuja culminância deu-se com a elaboração do Manifesto dos Pioneiros, em
1931. Segundo Pagni (2000), “o Manifesto teria emergido da ausência e política de educação por parte
do governo, da incapacidade dos educadores ligados a ele formulá-los”, embora considere que o evento,
patrocinado pelo ministério da Educação e Saúde, tinha ligação com os participantes.
Acompanhar a viagem da educadora e escritora Mercedes Dantas, em sua “peregrinação” aos
estados Norte Oriental e Oriental do Brasil, para difundir o modelo pedagógico desenvolvido no Rio de
Janeiro por Fernando Azevedo e contribuir para a FSNE, trouxe novos elementos analíticos para o
esforço desenvolvido pelo governo federal em colocar os pilares para a construção de um projeto de
educação nacional, e, sobretudo, de organização dos próprios educadores, articulando-os em torno de
algumas ideias que vieram a se consubstanciar em um documento único na história do país, o chamado
Manifesto dos Pioneiros, escrito em 1931 e publicado em 1932.

Aproximações finais
Este estudo teve, entre outros objetivos, trazer ao presente uma personagem que viveu e atuou em
diferentes contextos sociais, políticos e culturais, evidenciando seu contributo para determinada
sociedade carioca. Muitos dos chamados pioneiros da educação e responsáveis pelas reformas
educacionais de estados brasileiros, nas três primeiras décadas do século XX, têm sido objetos de
estudos, tais como Anísio Teixeira, Pascoal Lemme, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo. Alguns
textos procuraram dar visibilidade a outros personagens que viveram neste mesmo período, assumindo
diferentes postos na instrução pública de seus estados, que estão sendo “lembrados” com singular papel
nesse processo de renovação da Escola, embora sem os “louros” heroicos de outros protagonistas que
ocuparam a literatura pedagógica no decorrer do século XX.
As viagens pedagógicas desses intelectuais demonstraram, entre outras coisas, a circulação de
modelos educativos. Mercedes Dantas, objeto deste estudo, além de sua atuação nos movimentos
feministas, associativos e políticos de seu tempo, realizou um processo de difusão da Escola Nova em
dez estados brasileiros, dando seu contributo à política de unificação do sistema educativo nacional que,
a princípio, seria costurado com o ideário escolanovista, em uma vertente mais próxima ao pensamento
de Adolph Ferrière.
Nessa direção, o itinerário de Mercedes Dantas aos estados do Norte, como propagandista de uma
política educacional, pautada na reforma de Fernando de Azevedo no Distrito Federal, tornou-se
propagandista de uma perspectiva educativa alicerçada no conjunto de ideais difundidas pela FNSE.
Esses passos da educadora, no âmbito de uma organização nacional dos educadores, não sofreram
descontinuidade com a Revolução de 1930, embora tenham perdido a força no que concerne aos aspectos
políticos de luta e se assentado nas dimensões técnica e pedagógica das mudanças ansiadas pelos
simpatizantes de Getúlio Vargas.
Esse alinhamento a essa nova política e a fé que tinha no nacionalismo possivelmente fizeram com
que historiadores da educação não tenham dado visibilidade necessária a essa personagem que viveu
integrada no cenário social e cultural do Rio de Janeiro, uma das pioneiras na imprensa, como diretora
de jornal, como defensora de pautas feministas e, sobretudo, como engajada que foi nas lutas
educacionais de seu tempo, como professora e na condição de diretora e membro de associações e
partidos políticos.
Sua viagem pedagógica, circulando, durante cinco meses, os estados da Bahia, Alagoas, Sergipe,
Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Pará, Maranhão, Espírito Santo e Amazonas,
acompanhada de sua genitora, demarcou o esforço de se costurar, em nível nacional, um modelo
pedagógico a ser adotado. Suas impressões de viagens, apesar de nem todas terem sido localizadas,
possibilitaram a construção de um exercício comparativo sobre a Escola Nova no Brasil, dando uma
amostra do quanto intelectuais se empenharam na implantação desse ideário pedagógico, assumindo-o
como um apostolado em defesa da escola e do Brasil.

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DIÁRIO DA MANHÃ. Mercedes Dantas: a cidade hospeda essa ilustre escriptora baiana. Espírito Santo,
n. 2417, 29/08/1930,. p. 1.
______. Sociedade Espírito-Santense de Professores. Espírito Santo, n. 2420, 02/09/1930. p. 1.
O PAIZ. O ensino primário. N. 16778, p. 7
CORREIO DE ARACAJU. A excursão de Mercedes Dantas no Norte do Brasil. Sergipe, n. 1431,
12/08/1930.
______. Visitante Ilustre: a Professora Mercedes Dantas. Sergipe, N. 1430, 11/08/1930.
______. Sociedade Sergipana de Professores. Sergipe, N. 1438, 16/08/1930.
CORREIO PAULISTANO. Cruzada Nacional. São Paulo, N. 23866, 18/05/1930, p. 22.
______. Missão Educacional. São Paulo, N. 23.808, 15/01/1930, p. 9.
JORNAL DO BRASIL. A prof. Mercedes Dantas na Parahyba. Rio de Janeiro, N. 136, 07/07/1930, p. 8.
______. Cartas do Norte. Rio de Janeiro, N. 177, 25/07/1930, p. 6.
______. Impressões de Alagoas. Rio de Janeiro, N. 165, 11/06/1930, p. 10.
______. Os problemas brasileiros. Rio de Janeiro, N. 89, 3/4/1930, p. 6.
______. Bahia: recepção da Academia Baiana de Letras da Sra. Mercedes Dantas. Rio de Janeiro, N.
204, 24/08/1930.
______. O ensino público nos estados brasileiros: o que observou em sua viagem de estudo a escriptora
Mercedes Dantas. Rio de Janeiro, N. 221, 14/09/1930, p. 7.
O IMPARCIAL. Visita de Mercedes Dantas ao Maranhão. Maranhão, N. 2331, 14/06/1930.
______. A escriptora Mercedes Dantas visita o Maranhão. Maranhão, n. 2329, 12/06/1930, p. 1
PACOTILHA. A embaixatriz da mentalidade baiana. Maranhão. N. 131, 12/06/1930.
______. Carta Aberta: “À ilustre escriptora D. Mercedes Dantas”. Maranhão, n. 132, 13/06/1930.

Sobre autora
Maria Neide Sobral é professora Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Sergipe. Doutora em Educação, pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte e Pós-Doutora em Educação e Comunicação pela Universidade Aberta de Portugal.
Pesquisadora em História da Educação, Educação e Tecnologias da Informação e Comunicação e
Educação a Distância.

Notas
1.
2. Até a década de 1930, o Brasil era dividido nas seguintes regiões: Setentrional (Amazonas, Acre e
Pará); Norte-Oriental (Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Pará, Pernambuco e Alagoas);
Oriental (Sergipe, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro); Meridional (Minas Gerais, São Paulo, Paraná,
Santa Catarina, Rio Grande do Sul) e Central (Goiás e Mato Grosso). Embora com essa divisão, os
estados do Norte eram considerados aqueles que somavam a Setentrional, Norte-Oriental e Oriental.
3. Nasceu no Rio de Janeiro, em 1889, e morreu em 1931. Foi engenheiro civil e escritor, ligado ao
positivismo de Comte. Foi presidente da ABE e também professor da Escola Politécnica do Rio de
Janeiro. Foi, por pouco tempo, subdiretor técnico da Instrução Pública do Distrito Federal, a convite de
Fernando de Azevedo. Envolveu-se nos chamados “raids educacionais”, viagens em defesa da causa da
educação através da realização de debates, palestras e visitas aos estados do país. Fonte:
Biografia: Cardoso, Vicente Licínio. Disponível em:
<http://www.brasiliana.com.br/pop/pop_bio/24/7fcbaff05c53f0665a5753177163048c>. Acesso em: 20
jan. 2016.
4. No Rio Grande do Norte, ele foi um dos responsáveis pela reforma da Escola Nova, entre 1927-1928.
5. Relatou a autora que, ao chegar ao Brasil, o referido intelectual não pôde desembarcar em razão da
Revolução de 1930. Construiu, por isso, suas impressões de viagem a partir da leitura de revistas
brasileiras colocadas à sua disposição o Brasil: “Boletim da Instrução Pública” e a “Revista Brasileira
de Educação” (CARVALHO, 2007).
6. Esse partido foi criado na onda de redemocratização em 1945. Ligado à política getulista e, portanto,
de apoio ao seu governo.
7. Partido que surgiu no final da República, em 1889, permaneceu durante o Estado Novo proibido e
retornou a suas atividades em 1945.
8. Às vésperas dessa nova eleição, houve uma campanha de difamação que a prejudicou, conforme
noticiou a Revista A Semana, p. 51.
9. Disponível em: <http://www2.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/382MarluciaPaiva.pdf>. Acesso
em: 2 jan. 2016.
10. Após a Revolução de 1930, eles foram exonerados dos cargos que ocupavam na Instrução Pública de
Pernambuco.
11. Durante sua visita a Sergipe, tomou conhecimento de uma declaração atribuída à sua pessoa sobre o
assassinato de João Pessoa, o que gerou desmentidos na imprensa por parte dela e de outros envolvidos.
Aludira um dos jornais cariocas que Mercedes Dantas ouvira do governador do Rio Grande do Norte,
Juvenal Lamartine, que este recebera uma carta do autor do assassinato do presidente da Paraíba,
informando sobre a realização do crime. Tanto Lamartine quanto Mercedes desmentiram esse ocorrido.
CAPÍTULO 7

UM MÉTODO ANALÍTICO PARA A LEITURA EM SERGIPE:


SPENCER, CALKINS E OUTRAS FONTES NA HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO DOS ANOS 1910
Clotildes Farias de Sousa

Introdução

N
os anos de 1910, as crianças de Sergipe ainda aprendiam a ler com o abc, soletrando, em
descompasso com as propostas pedagógicas para o ensino da leitura e da escrita em voga. Isso
acontecia na Escola Normal, uma referência em matéria de educação no Estado, envergonhando
Adolpho Ávila Lima e Ítala Silva de Oliveira, duas expressivas lideranças intelectuais, críticos do poder
público e da pessoa que o representava na Diretoria de Instrução Pública - Helvécio de Andrade. No ir e
vir de muitas controvérsias, eles encontraram uma saída para o problema da educação estadual - o
método analítico da leitura, lógico ou positivo, coerente com os estudos científicos europeus e norte-
americanos, difundidos no Brasil no início do Século XX.
Aclarar a dimensão intelectual das polêmicas daqueles três educadores é proposta deste texto, de
forma articulada com os objetivos da minha pesquisa de Doutorado, em andamento no Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. O estudo que realizo é sobre as ligas
nordestinas de combate ao analfabetismo e sobre o associativismo educacional que representam na
história da educação brasileira. Tal estudo apresenta relações com o pensamento pedagógico moderno e,
nesse sentido, ocorre-me perguntar, principalmente: quais as referências teóricas – autores, obras e
ideias - dos intelectuais que lideraram o debate sobre o ensino da leitura e da escrita, nas primeiras
décadas do Século XX?
No estado atual da pesquisa, desconheço trabalhos acadêmicos que tratem dos fundamentos teóricos
da campanha levada a efeito pelas ligas nordestinas de combate ao analfabetismo, apesar de
determinados autores abordarem de modo significativo as ligas nacionalistas da Primeira República
(SOUZA, 2004; NOFUENTES, 2005; SANTOS, 2005; NOFUENTES, 2008; SILVA, 2009; SOUZA,
2009; DAMASCENO, 2009; CARVALHO, 2012).
É considerada fonte para o estudo a produção escrita dos intelectuais sergipanos selecionados,
precisamente vinte e cinco textos da lavra deles que interessam ao presente estudo, a saber: seis textos de
Adolpho Ávila Lima, dois publicados em março de 1915 e dois publicados em maio de 1917, no jornal
Diário da Manhã; quatro artigos de Helvécio de Andrade, dois publicados em maio de 1917, no Diário
da Manhã, e dois publicados no Correio de Aracaju, em outubro de 1912; quinze artigos de Ítala Silva de
Oliveira, sendo treze deles publicados no Diário da Manhã, entre os meses de setembro de dezembro de
1916, mais dois publicados no mesmo jornal, no mês de maio de 1917.
Uma vez eleita como fonte, a imprensa precisa ser compreendida na Primeira República como um
órgão que influenciou positivamente os demais setores sociais, no momento em que o país vivia uma
conjuntura política e econômica favorável, marcada pelo apogeu do café e pela diversificação das
atividades produtivas; a imprensa se destacou diante da nova ordem política republicana, dos novos
meios de comunicação e dos avanços nas técnicas tipográficas e de ilustração, dos programas de
urbanismo e de alfabetização (MARTINS & DE LUCA, 2006). A impressa periódica foi uma estratégia
de construção de consensos, propaganda política e religiosa, de produção de novas sensibilidades,
maneiras e costumes, assim como uma importante estratégia educativa (FARIA FILHO, 2002).
Mas, o jornal tornou-se também um monumento por gravar determinada imagem de uma sociedade
(LE GOFF, 1984, p. 95-106); passou a exigir a sua desconstrução por meio de um referencial teórico-
metodológico capaz de descortinar o mundo social estudado e as várias delimitações e classificações que
o organizam, sempre representativas de um dado grupo e do nível de seu poder. Lidar com as
representações, e também com as apropriações, é conveniente, pois esta é a “pedra angular de uma
abordagem ao nível da história cultural” e envolve três modalidades de relação com o mundo social:
[...] em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações
intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos
diferentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social,
exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma
posição; por fim as formas institucionalizadas e objectivadas graças as quais uns ‘representantes’
(instâncias colectivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência
do grupo, da classe ou da comunidade (CHARTIER, 1990, p. 23).
Tão importante quanto a representação, a noção de apropriação diz respeito aos sentidos atribuídos
aos textos (escritos ou não) e também aos seus possíveis usos, quer dizer, às múltiplas interpretações e
práticas dos elementos culturais, realizadas nos diversos contextos sociais e históricos, de acordo com as
diferentes épocas e com os diferentes lugares. De tais explicações extraio o caminho metodológico para
compreensão da produção intelectual da época, procurando estudar os sentidos atribuídos aos processos
de ensino da leitura. Este é o objetivo da história cultural, justamente: compreender as práticas,
complexas, múltiplas, diferenciadas, as quais constroem o mundo como representação (CHARTIER,
1990).
Neste texto, o pensamento de Adolpho Ávila Lima, Ítala Silva de Oliveira e Helvécio de Andrade,
sobre a leitura e os seus métodos, aparece atrelado à ideia de um associativismo educacional
conjecturado, exatamente, no âmbito das representações sobre a realidade social do Nordeste do Brasil,
na primeira década do Século XX, caracterizada por um altíssimo índice de analfabetismo, refletido e
dado a ler pelos intelectuais partícipes daquele movimento nacional mais amplo, conhecido por
“entusiasmo educacional” (NAGLE, 2000).
A respeito da noção de entusiasmo pela educação, considero a revisão já verificada em outros
recortes de pesquisa (PAIVA, 1987; CARVALHO, 1998; BRANDÃO, 1999), mas tento não reduzir a sua
importância para compreensão das campanhas sociais em prol do ensino primário obrigatório, no
contexto da Primeira República. De acordo com Mirian Warde (2000), não obstante a crítica dirigida à
obra “Educação e Sociedade na Primeira República”, de Jorge Nagle (2001), esse livro é um clássico na
História da Educação Brasileira e representa um “marco-de-passagem” na pesquisa educacional, pois
sinaliza mudanças nos padrões adotados pelos pesquisadores. O autor tratou da relação do “texto” com o
seu “contexto” e fez avançar a discussão teórica para além das formulações restritamente educacionais ou
pedagógicas, ao aproximar a educação das ciências sociais.
Na década de 1910, os intelectuais brasileiros estavam entusiasmados com a possibilidade de
solucionar o enorme problema do analfabetismo. De acordo com o censo de 1920, as taxas de
analfabetismo ainda eram elevadíssimas, na ordem de 71,2%, em relação à população acima de cinco
anos, sendo da ordem de 64,9% para maiores de 15 anos, considerando-se o total de 30.635.605 de
pessoas presentes no país (BRASIL, 1920). As elites políticas e intelectuais associaram-se, sim, com o
intuito de combater aquilo que concebiam como uma patologia, o mal da nação. Sobre a escola recaíram,
então, vários olhares e o sistema público de ensino passou a ser estudado para que as práticas
civilizatórias brasileiras pudessem se concretizar. Onde estava a solução para as mazelas da educação?
Análises que ultrapassem quaisquer “localismos” poderão trazer possíveis respostas, uma delas é esta:
nas apropriações efetuadas de modelos teóricos e científicos estrangeiros. Sistematicamente, as
similaridades e diferenças dos fenômenos são revelados quando comparados adequadamente (BLOCH,
1992).
Por ora, limito-me a comparar as ideias de Adolpho Ávila Lima, Ítala Silva de Oliveira e Helvécio
de Andrade entre si, procurando encontrar indícios do pensamento pedagógico europeu e norte-
americano no conjunto de proposições elaboradas pelos três intelectuais que pensaram a leitura e os seus
métodos. Este é o principal mote deste texto, organizado em duas partes além desta introdução. Uma
delas denomina-se “Um método analítico para a leitura e uma pedagogia moderna para Sergipe: Spencer,
Calkins e outras fontes de inspiração intelectual”; a outra parte traz apenas algumas “Considerações
finais”.

Um método analítico para a leitura e uma pedagogia moderna para Sergipe:


Spencer, Calkins e outras fontes de inspiração intelectual
Intérpretes de um cenário histórico marcado por necessidades específicas de formação humana,
Adolpho Ávila Lima, Ítala Silva de Oliveira e Helvécio de Andrade defenderam o ideário pedagógico
moderno para o ensino da leitura, na década de 1910, ao compartilharem a crença de uma reforma social
decorrente da reforma educacional. Eles fazem parte de um grupo de pedagogistas associados à proposta
nacional de formação dos cidadãos republicanos que mediram o próprio nível de inteligência,
moralidade e vitalidade física para enfrentar os problemas educacionais do momento, principalmente o
maior de todos os problemas - o analfabetismo. Assim, constituíram-se porta-vozes, na região Nordeste
do Brasil, das mudanças requeridas para consolidação do sistema nacional de ensino. Os dois primeiros
atuaram em nome da opinião pública e o terceiro da administração pública, ocupando os postos de maior
prestígio no Estado.
Com a introdução, no Brasil, de autores, obras e ideias que circulavam na Europa e nos Estados
Unidos da América, eles passaram a concorrer com novos referentes de destaque social – científicos,
modernos, pedagógicos, pois já estava em cena em Sergipe, nas primeiras décadas do Século XX, a
racionalidade técnica a imperar nos debates realizados, antecipando a formatação daquele perfil de
pedagogo marcado pelo profissionalismo educacional que ganharia notoriedade a partir da década de
1920 (NASCIMENTO, 2003). Mas, as disputas por autoridade basearam-se também nas experiências
técnicas adquiridas nos centros de maior desenvolvimento do país.
Adolpho Ávila Lima e Ítala Silva de Oliveira investiram, principalmente, nas teses pedagógicas
internacionais para se afirmarem como intelectuais, naquilo que Norbert Elias (2001) definiu como
“jogos de distinção”, próprios de determinadas configurações. Assim, obtiveram a legitimidade que
precisavam para defender os seus pontos de vista. Ele, na condição de catedrático do Ateneu Sergipense,
responsável pela cadeira de Pedagogia e Metodologia do Curso Normal e Presidente da Liga Sergipense
contra o Analfabetismo, evidentemente, achava-se um intelectual apto a discutir os temas do ensino
público. Ela, por sua vez, sua ex-aluna, recém-diplomada normalista do Atheneu Sergipense e leitora de
renomados autores e obras da literatura educacional, sentia-se competente o bastante para discutir a
formação de professores e outros assuntos pedagógicos em pé de igualdade com qualquer homem
instruído. Imersos em atividades de ensino e estudos, ambos se viram legítimos representantes do povo e,
sem timidez, revelaram as fragilidades intelectuais que avistaram em Helvécio de Andrade.
Na história da educação de Sergipe, é certa a importância de Helvécio de Andrade como homem
público – político e educador, seja pelas controvérsias suscitadas em torno de si pelo alto nível de
influência que possuía, atraindo admiradores e adversários, seja pela efetiva participação no movimento
pedagógico moderno (CARVALHO, 2003; VALENÇA, 2006). Não foi à toa que ele chegou a ocupar, de
uma só vez, cinco cargos na administração pública de Sergipe: Diretor Geral da Instrução Pública,
Diretor da Escola Normal, Diretor dos Grupos Escolares e da Escola Anexa; Professor de História
Natural e Higiene Escolar; Professor de Ginástica (OLIVEIRA, 1916a). Sua contribuição intelectual
ainda merece um olhar apurado, pois foi posta à prova por seus interlocutores, descrentes de que ele
portasse qualidades de um reformador.
Qual explicação para aquele homem se autodenominar reformador? Perguntou-se Ítala Silva de
Oliveira; ela mesma respondeu: Nada além da vaidade porque não possui a mínima noção do que vinha a
ser instruir e educar. Somente por generosidade comandava a instrução pública do Estado, embora tão
alto posto não lhe devesse ser entregue, pois ser médico não bastava à função exercida, era necessário
ser um educador consciencioso e verdadeiro. Como ela? Sim.
E eu posso muito bem falar da instrucção em Sergipe, porque sei ela o que é, e como é
organizada. O meu saber é real e não abstrato, e isto pode atestar a firmeza com que combato os
argumentos sinuosos e incoerentes de um dos mais pobres espíritos de minha terra (OLIVEIRA,
1916b, p. 2).
À frente das principais instâncias oficiais de educação no Estado, o médico Helvécio de Andrade
atraiu aquele tipo de oposição e teve que travar um “hostil diálogo”, segundo Cristina A. Valença C..
Barroso (BARROSO, 2013). De fato, complexas interdependências envolveram os três intelectuais,
ávidos por oportunidades de ascensão social, gerando tensões significativas e favorecendo a formação de
certas individualidades. Entretanto, além do obstinado debate entre eles, interessa-me conhecer os
entendimentos elaborados a respeito do método de ensino para a leitura, os quais circunscreveram as
disputas ao plano intelectual.
Helvécio de Andrade foi cognominado “cantor da educação da mocidade sergipana”, na famosa
“Carta Pedagógica - Fragmentos de uma homenagem”, de autoria de Adolpho Ávila Lima, dias após
proferir conferência sobre o “método analítico no ensino da leitura contemporânea”.
Seguiram-se os abraços de cumprimentos e felicitações, e, ecoados os últimos acordes dos
aplausos, eu tive ímpetos também de dar-lhe um forte e arrojado amplexo, transmitindo-lhe, ao
mesmo tempo, baixinho, ao ouvido, as seguintes palavras por meio das quais o nosso genial
Tobias Barreto, de uma feita, saudou um famoso orador pernambucano: - se estudasse, não
pronunciarias mais uma palavra... (LIMA, 1915a, p. 1)
Àquelas recomendações somaram-se as críticas ao orador pelo emprego da expressão “método
analítico da leitura” no simples ensino de palavras concretas às crianças. As “Recapitulações
Pedagógicas” retomaram tais críticas, sendo esse texto ainda mais carregado de lições de metodologia
científica e pedagogia (LIMA, 1915b). Mais tarde, Ítala Silva de Oliveira confirmava a incompetência
pedagógica de Helvécio de Andrade em uma série de artigos intitulada “Nos Domínios da Instrução”,
publicada no jornal Diário da Manhã, de 1916. Na ocasião, a Escola Normal e o ensino primário de
Sergipe eram os alvos das denúncias, porém, aos olhos da professora, por trás de tudo estava o homem
ignorante das normas mais elementares do ensino moderno que ainda incentivava práticas condenadas
pelos pedagogistas mais renomados, tais como os castigos, os prêmios, os exames e as lições decoradas
(OLIVEIRA, 1916c; OLIVEIRA, 1916d).
Além disso, a falta de referencias em seus escritos ajudava a construir aquela imagem. Quando
queria indicar uma fonte, Helvécio de Andrade apenas indicava: “diz um autor” ou “diz um publicista”.
Quando Adolpho Ávila Lima apresentava uma ideia não economizava as referências: Alexandre Bain,
Bertrand Arthur William Russell, Émile Maximilien, Fernando Puglia, Joseph Jacotot, Francisco Júlio de
Caldas Aulete, Jules-Gabriel Compayré, Pedro Augusto Carneiro Lessa, Silvio Romero e Tobias
Barreto. Idem nos textos de Ítala Silva de Oliveira, cujas referências são profusas: Alcindo de Azevedo
Sodré, António de Sena Faria de Vasconcelos, Édouard Claparède, Francis Parker, Friedrich Froebel,
Gustave Le Bon, João Cerca Vasconcelos, Johann Heinrich Pestalozzi, Jules Payot, Júlio Afrânio
Peixoto, Maria Amalia Vaz de Carvalho. Associados pela perspectiva de sistematização das orientações
pedagógicas modernas para o ensino da leitura, eles mobilizaram juristas, filósofos, psicologistas,
pedagogistas europeus e norte-americanos para fundamentar as suas proposições, certos de que,
realmente: “(...) ensinar não é coisa facil, como pensam por ahi incompetentes no assumpto. Ensinar é um
problema complexo, que exige do educador não pequena somma de conhecimento” (OLIVEIRA, 1916e,
p. 2).
Em que pese às poucas informações existentes sobre as fontes nos textos de Helvécio de Andrade, a
exemplo da menção ao professor paulista Carlos Escobar, com quem discute as bases do método
analítico, as ideias dele não deixam dúvidas quanto à afinidade que tinha com os princípios pedagógicos
modernos (ANDRADE, 06.10.1912). Mas, as contendas passavam disso e muitas linhas escritas foram
publicadas na imprensa, com destaque para questões de ordem moral no debate. Como professor de
História Natural, Helvécio de Andrade ainda foi acusado de falta de decoro em assuntos de fisiologia e
anatomia, tendo Ítala Silva de Oliveira chegado ao ponto de solicitar, por esse e outros motivos, ao então
Presidente do Estado, General Manuel P. de Oliveira Valladão, a destituição do Diretor da Instrução
Pública:
(...) auscultando os legítimos desejos de uma grande parte do povo sergipano, peço a S. Ex., em
nome da infancia de Sergipe, infancia que é o nosso futuro, em nome dos bons creditos intelectuais
que gosamos em todo o Brasil, que S. ex. lance suas vistas para a diretoria de Instrução Pública,
colocando á sua frente um educador que possa transformar a nossa instrução, dando-lhe uma
feição nova, organizando-a, porque só assim evitará S. ex. que aconteça o que agora acontece na
Escola Normal, onde o diretor da Instrução Pública vem embaraçando que as alumnas diplomadas
de 1916 sollenizem o recebimento dos seus diplomas por não ter elle sido escolhido paranympho
(OLIVEIRA, 1916f, p. 2)
Helvécio de Andrade sempre respondeu às críticas de Adolpho Ávila Lima e Ítala Silva de Oliveira
com ponderação, como um homem público ciente da sua envergadura. Em relação às cartas pedagógicas
de Adolpho Ávila Lima, parece ter usado o pseudônimo de “Um professor” para se defender (LIMA,
2015b, p. 1). Diante das acusações de Ítala Silva de Oliveira, sempre reagiu com poucas palavras e mais
atitudes, desistindo de determinados processos na Escola Normal, procurando fundamentar as suas
posições pedagógicas. O retorno mais contundente dele foi dirigido à Liga Sergipense contra o
Analfabetismo, à qual os dois intelectuais estavam associados, diminuindo-lhe a importância como
colaboradora do Estado. Chegou a dar o exemplo de São Paulo, onde a organização do sistema de ensino
ocorreu sem ajuda daquele tipo de associação. Em que pese à acusação de egoísmo e despeito por não
fazer parte da Diretoria daquela Liga, a postura dele era coerente com a sua forma de pensar
(OLIVEIRA, 2016g).
O educador sergipano sempre responsabilizou a União pelo ensino normal e primário, defendendo a
sua obrigatoriedade e uniformidade, tanto em relação ao método quanto em relação à programação
didática (ANDRADE, 30.05.1917).
A obrigatoriedade corresponde a importancia social do ensino. Se se pensa em combater
seriamente o analfaphabetismo, deve-se começar por tornar obrigatorio o ensino elementar. A
historia da democracia está compreendida na da escola elementar, escreve um publicista da
actualidade, a proposito do ensino particular e privado, que combate, em vista de não satisfazer as
necessidades da educação, que é dever das democracias ministrar aos cidadãos (ANDRADE,
1917, p. 2).
As suas ações em Sergipe comprovam tal convicção, desde o seu retorno em 1900, quando assumiu a
função de Delegado Fiscal do Governo Federal no Atheneu Sergipense e assumiu a responsabilidade por
diversos empreendimentos (NASCIMENTO, 2003). Convém lembrar a experiência dele em Santos - São
Paulo, onde chegou a exercer a função de Inspetor Geral da Instrução, a partir da qual é possível
perceber o seu envolvimento com os assuntos públicos. Os próprios adversários admitiram isso, a partir
de 1917, quando começaram a relativizar as críticas outrora formuladas:
Em trinta artigos de critica scientifica philosophica, por mim dados á luz da publicidade, pelas
colunnas deste acreditado orgam, para o qual ora escrevo estas modestas proposições, em defesa
dos insolitos ataques que me foram endereçados pela 1ª secretaria da Liga, não foi meu intuito
vulnerar a susceptibilidade daquelle operoso senhor, mas sim combater certas e determinadas
ideas, que me não pareceram justas á luz da verdade scientifica, por elle aventadas no seu
pequeno livro, denominado Curso de Pedagogia.
E se porventura, tive, com tal procedimento, ocasião de lhe dirigir esta ou a aquella censura, ou
de lhe fazer sentir esta ou aquella observação, de carácter mais pessoal do que doutrinario, não
foi certamente por ódio, ou desaffeição ao referido escriptor sergipano, mas por amor tão somente
a sciencia, que professo, lá, no Atheneu Sergipense, em falta talvez de pessoa mais douta do que
eu para o exercício daquelle ministério. (LIMA, 1917, p.2).
Adolpho Ávila Lima reconheceu o fato de o processo pedagógico encontrar-se em formação na
sociedade sergipana para justificar certos “senões” na instrução pública, naturais e lógicos para quem
tinha condição de entender. Ítala Silva de Oliveira, sentindo-se atingida em seus brios intelectuais, ainda
redarguiu às colocações do ex-professor de Pedagogia e Metodologia, (OLIVEIRA, 1917). Mas, do
ponto de vista das discussões teóricas, o debate arrefeceu-se. Estariam os intelectuais evoluindo para um
equilíbrio de tensões no âmbito das discussões sobre os métodos de ensino da leitura? Provavelmente.
Os três intelectuais estavam de acordo em relação às regras gerais da pedagogia moderna. Na obra
“Da educação: moral, intellectual e physica”, do filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903), buscaram
o valor do saber científico como o mais útil para disciplina e direção do homem, bem como da
Psicologia para fundamentação da educação. Ali encontraram o método objetivo, centrado na observação
dos fatos, coerente com os princípios científicos e com as leis do desenvolvimento das faculdades
infantis. Deduziram os princípios gerais desse método, ou seja, que parte do simples para o composto, do
definido para o indefinido, do concreto para o abstrato, respeitando a espontaneidade e o prazer pelo
estudo. Compreenderam a necessidade de preparação de quem vai aplica-lo, sejam professores ou pais e
mães de família (SPENCER, 1888).
Adaptado ao ensino da leitura, o método científico, lógico ou positivo, formado pelos processos de
observação, experimentação, comparação, indução e dedução, congregaria duas características
fundamentais: análise e síntese (LIMA, 2015a). A criança aprenderia a ler espontaneamente, por meio de
processos naturais, tal qual ocorre no cotidiano da família, onde ela aprende a falar, falando, partindo da
palavra real, positiva ou concreta (ANDRADE, 04.10.1912). Tais eram os princípios do “método do
ensino pelo aspecto”, ou, simplesmente, “método intuitivo”.
Marta Maria Chagas de Carvalho compreende a valorização do método intuitivo no Brasil, a partir
da experiência de São Paulo, das reformas de Caetano de Campos e Sampaio Dória, relacionando-o à
implantação da racionalidade pedagógica; uma racionalidade que pela via escolar introduziria no país
novas formas de organização do trabalho, pois a padronização metodológica visava à conformação de
uma unidade de controle nacional (CARVALHO, 2000).
Norman Alisson Calkins (1886) transformou as “lições de coisas” na versão prática do método
intuitivo, tornando-as essenciais à racionalização das atividades educativas, à modernização didática, à
uniformização e à organização geral dos sistemas de ensino. A obra “Primeiras lições de coisas - manual
de ensino elementar para uso dos paes e professores” foi traduzida para o português por Rui Barbosa e
publicada pela Imprensa Nacional, com ótima repercussão no Brasil, no final do século XIX e início do
XX, sendo adotada em todas as escolas brasileiras, pela possibilidade ensejada de superar o verbalismo
característico do ensino nacional.
Destaca-se na obra a validade do princípio fundamental do método natural para o ensino da leitura.
A leitura ocorre por simples intuição e começa com o despertar da atenção da criança para um dado
objeto, do qual advêm as primeiras lições, sempre acompanhadas da demonstração, da conversação a seu
respeito e da apresentação do seu nome. O objeto é representado por uma figura ou desenho, assim como
por seu nome completo exposto em uma carta ou escrito no quadro, a fim de que o aluno o distinga,
reconhecendo a sua imagem e a palavra que o nomeia. Assim, aprende, enfim, que as palavras são
símbolos do som, do objeto e do pensamento.
O meio natural de ensinar a creanças uma língua e começar pelas unidades da linguagem, que sao
as palavras. A linguagem depende do pensamento: as palavras são symbolos de idéas. Nem as
lettras, nem os sons são elementos do pensamento. As letras sao elementos da fórma das palavras;
os sons sirnples elementos do som harmonico da palavra; mas nenhum desses elementos constitue
unidade da linguagem. O verdadeiro ponto de partida, no ensino da leitura, está em tomar a idêa
com o seu signal como um só todo. Subsequentemente então se analysará o signal, docompondo-o,
e se aprenderão os seus elementos, quer do seu som, quer da sua fórma. (CALKINS, 1886, p.
426).
Cinco passos compõem a primeira fase do método intuitivo da leitura. Primeiro o professor ensina
pelo aspecto as palavras já conhecidas ao ouvido da criança, para que ela aprenda a distingui-las como
sinais de objetos, qualidades e ações. Segundo, ensina a decompor as palavras, escrevendo-as no quadro
e mostrando as letras e a ordem em que aparecem ou mostrando os sons das letras. Terceiro, ensina a
decompor as palavras em seus sons ou em suas letras. Quarto, ensina o aluno a ler a palavra completa,
destacando os sons e soletrando. Quinto, ensina a criança a ler palavras em grupo ou sentenças.
Os cincos passos da primeira fase do método intuitivo da leitura aplicam-se à segunda fase, quando o
livro começa a ser utilizado, abrangendo desde a descoberta das palavras novas aos pensamentos
enunciados em sentenças. Essa segunda fase inclui ainda explicações sobre o modo de manuseio do livro,
pois a criança deve aprender a segurá-lo na altura correta, localizar as páginas, desenvolver atividades.
O professor escolhe as lições, privilegiando aquelas com maior número de palavras conhecidas da
criança; ele dispõe as frases no quadro em ordem diferenciada do livro, para leitura pelo aluno. Aos
poucos, novas palavras devem ser exploradas no livro e no quadro, alterando-se os exercícios para se
evitar que a criança decore as lições.
Em resumo, a criança aprende a ler com exercícios para o ouvido e para a vista. O som das palavras
é apreendido no contexto da enunciação, ou seja, das “palavras proferidas”, conhecidas; já a escrita das
palavras é apreendida mediante observação das “palavras figuradas”, desconhecidas. Tanto as palavras
proferidas quanto as palavras figuradas simbolizam ideias e relembram as qualidades dos objetos, sendo
as primeiras comunicadas ao ouvido por meio das ideias dos vocábulos proferidos e as segundas
comunicadas aos olhos por meio das ideias contidas nos vocábulos figurados, ou seja, nas unidades da
linguagem.
O ensino da leitura começa com a forma completa das palavras porque isso garante uma entonação
natural, baseada na associação entre forma e ideia, quer dizer, na relação dos vocábulos impressos com
os sinais de objetos, atos e pensamentos. Mas as palavras proferidas e as palavras figuradas podem ser
decompostas em simples formas elementares, embora tais elementos não simbolizem ideias, porque
chega um momento em que surge na criança um pendor espontâneo para a investigação e ela passa a
sentir a necessidade de conhecer as partes que compõem as palavras, ou seja, os sons e as letras. Isso
deve acontecer apenas em uma segunda fase da leitura, quando o aluno estará apto a distinguir as partes
constitutivas das palavras, dado o acúmulo em sua mente de palavras figuradas já associadas às palavras
faladas. Somente nesse momento pode ser iniciado o processo de decomposição, o início do ensino dos
sons e suas combinações.
A escolha do método intuitivo para o ensino da leitura em Sergipe revela uma apropriação dos
princípios científicos modernos europeus e norte-americanos na educação que não se reduzem a
determinados autores e obras. As ideias de João Amos Comenius (2006), por exemplo, indiretamente,
apresentam-se via os autores lidos por Adolpho Ávila Lima, Ítala Silva de Oliveira e Helvécio de
Andrade. Jean Jacques Rousseau (1995) aparece nas referências que tratam da importância do cultivo
dos sentidos nas crianças; Pestalozzi (2006) manifesta-se na observação como base de todo o
conhecimento.

Das fontes às representações sobre o método de ensino para leitura em Sergipe


Ítala Silva de Oliveira aprovou o método intuitivo da leitura quando defendeu o sistema de
“palavração e sentenciação”, mas não avançou na discussão sobre isso nos artigos referidos aqui. Em
tese, Helvécio de Andrade o adotou, apesar de creditar ao ecletismo inteligente o potencial de atender
metodologicamente a variedade de situações escolares no contexto brasileiro. Para ele, em classes
pequenas e compostas por alunos do mesmo nível de capacidade mental, por exemplo, o método mais
adequado seria um; em uma escola isolada do interior, onde a professora contasse apenas com a sua
coragem para enfrentar toda sorte de hostilidade e indiferença, o melhor método seria aquele que
rendesse mais em termos do ler, escrever e contar.
Na prática, o sistema oficial de ensino requeria uma decisão e, assim, Helvécio de Andrade se
posicionou a favor da combinação da “palavração, sentenciação e silabação”; anos mais tarde, ele
adotou a proposta do método “João de Deus” como “método analítico para o ensino da leitura”
(ANDRADE, 1931). A proposta da “Cartilha Maternal ou Arte de Leitura”, de João de Deus de Nogueira
Ramos, publicada em 1876, sob a orientação de Cândido J. A. de Madureira, Abade d’Arcozelo,
dispensou o exercício mnemónico e especulativo da silabação, fazendo uso de um projeto gráfico que
permitia contrastar, simultaneamente, leitura da palavra como um todo e leitura silabada. Dessa forma,
condensou o binómio síntese-análise e assegurou a imagem complexa capaz de sobrepor forma e sentido
(MAGALHAES, 2013).
Antonio da Silva Jardim, Diretor da Escola Normal de São Paulo, divulgou o método de João de
Deus no Brasil para o ensino da língua materna porque reconhecia nele os princípios do método intuitivo
(MORTATI, 2000). Rui Barbosa estabeleceu essa mesma relação, quando da adaptação da obra de
Norman Allisson Calkyns para o português (TRINDADE, 2001, p.165). O próprio Norman Alisson
Calkins, em seu manual do ensino elementar, referiu-se a João de Deus, quando tratou da nomenclatura
adotada pelo autor da “Cartilha Maternal ou Arte de Leitura” para as letras porque lhe parecia ser a
opção do educador português a mais adequada ao método racional em razão do exame dos elementos
exatos da palavra oral (CALKINS, 1886).
Para a escolha daquela proposta por Helvécio de Andrade concorreu a experiência demonstrada
“nos maiores centros de instrução primaria”, embora desenvolvesse a sua própria interpretação a
respeito da leitura analítica. Era um método fundado no pressuposto psicológico de que a criança enxerga
o objeto totalmente, em conjunto ou em bloco, antes de conhecer as suas partes, pois a inteligência
baseia-se em sensações agrupadas e não isoladas, de modo que “a, b, c, d” são impotentes para gerar
uma consciência. O processo do abc exige um tempo enorme até que a criança comece a ler e não condiz
com as exigências do momento (ANDRADE, 04.10.1912).
Aprendendo a ler por sentenças, a creança mentalmente separa os termos dela, depois as syllabas
e as letras, mas também naturalmente, inverte a marcha, e começa a juntar as letras, e forma
syllabas e palavras. Naturalmente tambem, sem que ella dê por isso, a creança descobre as
relações entre as palavras, o que já é um avanço notável. Assim, quando a creança aprende a lêr a
sentença o gato caçou o rato, ella pode responder as perguntas: Que fez o gato? Quem caçou o
gato? Como caçou o gato? Que aconteceu ao rato? Praticando-se repetidas vezes, a creança
associa as posições do agente ao paciente às formas gráficas e ás palavras, de sorte a saber
apontar as palavras gato, caçou, e rato (ANDRADE, 1912, p. 1).
Mas, aquela interpretação fora condenada por Adolpho Ávila Lima que alertou: “(...) não pode haver
analyse no simples ensino de palavras concretas as creanças” (LIMA, 2015a, p. 1). No máximo, trata-se
de uma “lição de coisas” ou de um processo de “palavração”, conforme fora apresentado, insuficiente ao
desenvolvimento de um processo analítico de leitura.
Eu tenho, por mais de uma vez assistido ao tristíssimo espetaculo de ver alumnos, sahidos dos
nossos Museus Pedagogicos, lerem corretamente palavras e até proposições simples, compostas e
complexas, sem nenhuma consciência do que lhes fora ensinado; quero dizer que aprenderam de
cor, vocabulos e sentenças, entretanto, sem saberem distinguir palavras, nem tampouco terem a
menor noticia do sentido logico da frase. (LIMA, 1915a, p. 1).
Além disso, a expressão “método analítico da leitura” induz a certa profusão indevida de métodos,
algo confuso e inválido do ponto de vista pedagógico. O uso variado da palavra “método” é um vício de
linguagem e expressa tanto os modos como os sistemas de ensino, embora pedagogicamente o método
deva significar algo diferente, pois se refere ao objeto a se ensinar e não a se descobrir. Enquanto no
ensino o método serve para comunicar algo, na ciência, pressupõe a invenção ou criação. Jamais tal
expressão fora utilizada por Norman Allison Calkins, que optou por “método objetivo” ou método
intuitivo.
O método intuitivo na leitura possui limitações que foram apontadas também por Adolpho Ávila
Lima. Dos três intelectuais, ele fora o único a propor diretamente, nos textos analisados aqui, que as
“lições de coisas” são insuficientes para fazer chegar a compreensão. O aluno precisa raciocinar e
proceder além de ver, de modo que melhor seria se a escola adotasse as práticas já experimentadas nos
Estados Unidos da América, citadas por Jean-Marie Guyau e transcritas por ele:
- ha um methodo bem melhor que o ensino pelo aspecto, é o ensino pela acção: levar as proprias
creanças a fazer as coisas, que hoje se contentam em lhes mostrar. Este methodo parece muito
preferível; a acção é um raciocínio concreto, que grava simultaneamente as ideias no espirito e
nos dedos. Na America, ao envez de fazer compreender sobre o papel á creança o funcionamento
de uma machina de vapor, dão-lhe um modelo reduzido; é necessario que ella a desmanche peça
por peça e os coloque depois nos seus sítios, isto é, construa a machina (LIMA, 1915b, p. 1).
É exatamente isto que aconselha para o ensino da leitura: decomposição e reconstituição simultânea
da palavra positiva ou concreta. Tal visão ampliava, certamente, o debate dos intelectuais acerca do
ensino da leitura, dando indícios de outra vertente da modernidade pedagógica em Sergipe, provando que
não havia consensos acerca do ensino da leitura e dos seus processos metodológicos, mas uma variedade
de proposições intelectuais derivadas da apropriação dos princípios científicos mais modernos.
Em geral, a modernidade pedagógica representada nas discussões sobre leitura abrange um
movimento maior de ideias em circulação no mundo; ideias que serviram de base para a campanha
educacional empreendida no contexto brasileiro nas primeiras décadas do Século XX. O debate
científico ultrapassava o sentido restrito da educação escolar, abrangendo outras temáticas e propósitos,
inclusive de caráter político, identificadas com a defesa de soluções para os problemas do Brasil. Por
ora, basta reconhecer a existência de propostas educacionais em Sergipe, fundamentadas em modelos
pedagógicos estrangeiros, pensadas segundo o sistema natural e coerente com os princípios científicos da
época, totalmente condizente com o ideário pedagógico clássico da modernidade.

Considerações Finais
Este texto foi escrito com o propósito de aprofundar o estudo sobre as ligas nordestinas de combate
ao analfabetismo, meu objeto de estudo no Doutorado em Educação, buscando correlacionar as ideias
formuladas por três intelectuais sergipanos sobre o ensino da leitura com as principais teses da
pedagogia moderna clássica. A questão central proposta aqui foi esta: em quais autores e obras estavam
fundamentados os intelectuais que pensaram o ensino da leitura e da escrita, nas primeiras décadas do
Século XX? As fontes principais das informações foram os artigos encontrados nos jornais Correio de
Aracaju e Diário da Manhã, dos anos de 1912 a 1917, produzidos por Adolpho Ávila Lima, Ítala Silva
de Oliveira e Helvécio de Andrade.
Os intelectuais sergipanos adotaram o principio do desenvolvimento natural da criança como
fundamento para organização do ensino da leitura, fazendo crer que a escola deveria adaptar-se às
necessidades infantis mediante aplicação do método intuitivo. Estes princípios foram buscados,
principalmente, nas obras do filósofo inglês Herbert Spencer e do educador norte-americano Norman
Alisson Calkins. O método intuitivo para o ensino da leitura caracteriza-se pela ênfase nos processos
analíticos, os quais partem da palavra concreta, real ou positiva para decomposição dos seus elementos
constitutivos, ou seja, para sílabas e letras. Não obstante o consenso em torno daqueles princípios e da
aprovação do método intuitivo para o ensino da leitura, há diferenças nas interpretações observadas dos
intelectuais sergipanos quanto ao assunto, pois com Adolpho Ávila Lima, por exemplo, um ensino da
leitura restrito à demonstração do objeto completo ou da palavra inteira e das suas partes não é analítico,
uma vez que não basta a inteligência ver para compreender. Ele defende um processo de leitura que, após
a decomposição, permita ainda uma nova síntese, conforme já soubera ser aplicado nos Estados Unidos.
Importante frisar no debate sobre os processos de ensino da leitura que as disputas travadas pelos
intelectuais revelam a apropriação de elementos da cultura científica em um jogo de distinções que os
levou a criar determinadas representações de si próprios e da educação em Sergipe. Tal jogo se realiza
na complexa teia de interdependências em que caminharam pari passu forças representativas da
sociedade civil e do Estado, associadas a um ideário científico e pedagógico capaz de determinar os
rumos da política nacional de educação e orientar os Estados, ainda separados pela grande extensão
territorial do país, bem como pela dificuldade de comunicação, desproporção e má distribuição dos
recursos financeiros. Daquele jogo de tensões surgiu um equilíbrio que permitiu o estabelecimento de
uma configuração fundada nas teses científicas, da qual faziam parte os intelectuais sergipanos mais
fundamentados teoricamente e tecnicamente experientes, portanto, autorizados a propagar os
procedimentos analíticos para o ensino da leitura nos meios educacionais do Nordeste do Brasil, nas
primeiras décadas republicanas. Eles representam uma associação voluntária em prol da
profissionalização e especialização pedagógica e precisam ser ainda mais bem reconhecidos como tal
mediante o desenvolvimento de mais estudos sobre as fontes que embasaram as representações sobre o
ensino da leitura e os seus métodos, no contexto de formação das ligas nordestinas contra o
analfabetismo.

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Acesso em 08 de fev. 2016.
Sobre autora
Clotildes Farias de Sousa é licenciada em Pedagogia, Mestre em Educação e Doutoranda do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe (PPGED/UFS). É
membro do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq).
CAPÍTULO 8

ASSOCIATIVISMO E EDUCAÇÃO: DIÁLOGOS ENTRE


TOCQUEVILLE, WEBER, DEWEY E ADOLFO LIMA1
Simone Paixão Rodrigues
Eva Maria Siqueira Alves
Margarida Louro Felgueiras

Diálogo de apresentação

A
o longo da formação das sociedades modernas, registraram-se vestígios de ações coletivas que
conjecturaram interesses comuns e despertaram nos indivíduos a necessidade ou vontade de
promover o desenvolvimento do seu meio social através de práticas associativas. Estabeleceu-
se, nesse momento, o associativismo, como forma de atender à necessidade para se aprimorar as relações
sociais e as condições de vida. A prática associativa serviu como instrumento democrático capaz de
desenvolver o espírito de cooperação nos diferentes espaços sociais. Alguns teóricos são fundamentais
para a compreensão do associativismo como instrumento de desenvolvimento e de estruturação das
sociedades modernas, dentre os quais se destacam: Alexis de Tocqueville e Max Weber.
A prática associativa não é fruto apenas dos espaços políticos, ou delegada por homens ou mulheres
adultos à frente de uma causa coletiva. Ao direcionarmos nossas lentes para o campo da educação,
conseguiremos registrar a presença de inúmeras associações criadas por e para alunos no cotidiano das
instituições de ensino ao longo dos séculos XIX e XX nos mais diferentes lugares. Dentro das inúmeras
experiências associativas ocorridas ao longo desses dois séculos, as associações estudantis compuseram
o conjunto de atividades de socialização, peculiares à ação educativa da escola, que contribuíram na
formação da juventude que “aprendia fazendo”, por meio das vivências de experiências benévolas
fundamentadas no desenvolvimento de senso de responsabilidade, respeito, dignidade e cooperação para
o bem em sociedade.
Nesse sentido, o presente texto tem como objetivo apresentar e analisar as interpretações sobre o
associativismo como prática social e educativa, defendidas pelos intelectuais Alexis de Tocqueville,
Max Weber, John Dewey e Adolfo Lima. A produção deste texto está fundamentada em uma pesquisa
bibliográfica, na qual os textos sobre a temática do associativismo produzidos por esses intelectuais
foram tomados como fontes principais e compuseram diálogos que buscaram contribuir na ampliação de
um debate, necessário e urgente, sobre a prática do associativismo estudantil como mecanismo de
socialização, sociabilidade, cooperação e colaboração comum nos espaços sociais da juventude de
outrora.

Diálogo com Tocqueville e Weber


Alexis de Tocqueville, reconhecido como um dos mais importantes intelectuais políticos pioneiros
nos estudos sobre o fenômeno do associativismo como elemento fundamental das sociedades
democráticas para combater o individualismo dos cidadãos, em suas interpretações, destaca que o
associativismo se dá a partir da ação de indivíduos que promovem práticas potenciais legítimas da
socialização.
Tocqueville, em viagem aos Estados Unidos, em 1831, para estudar o sistema penal deste país, teve
seu interesse ampliado e modificado por uma série de outros aspectos da vida estadunidense, sendo a
estrutura e a organização da democracia as que mais lhe impressionaram e entusiasmaram. Por quase um
ano em contato direto com os estadunidenses, Tocqueville observou e registrou as impressões que teve
sobre as relações sociais e políticas e, especialmente, a igualdade de condição presente naquela
sociedade, como bem registrou em seus escritos:
Entre os novos objetos que me chamaram a atenção durante minha permanência nos Estados
Unidos nenhum me impressionou mais do que a igualdade das condições. Descobri sem custo a
influência prodigiosa que exerce esse primeiro fato sobre o andamento da sociedade; ele
proporciona ao espírito público certa direção, certo aspecto as leis, aos governantes, novas
máximas e hábitos particulares aos governados.
Não tardei a reconhecer que esse mesmo fato estende sua influência muito além dos costumes
políticos e das leis, e tem império sobre a sociedade tanto quanto sobre o governo: cria opiniões,
faz nascer sentimentos, sugere usos e modifica tudo o que ele não produz.
Assim, pois, à medida que eu estudava a sociedade americana, via cada vez mais, na igualdade
das condições, o fato gerador de que cada fato particular parecia decorrer e deparava
incessantemente com ele como um ponto central a que todas as minhas observações confluíam
(TOQUEVILLE, 2005, p.7).
Ao investigar a sociedade dos Estados Unidos da América do século XIX, Tocqueville identificou
que uma associação “consiste apenas na adesão pública que certo número de indivíduos dá a
determinadas doutrinas e no compromisso que contraem de contribuir de uma certa maneira para fazê-las
prevalecer”. (TOCQUEVILLE, 2005, p. 220). Prosseguindo, afirma que:
Uma associação é um exército; nela as pessoas falam para se contar e se animar, depois marcham
contra o inimigo. Aos olhos dos que a compõem, os recursos legais podem parecer meios, mas
nunca são o único meio de ter êxito. Não é essa a maneira como se entende o direito de
associação nos Estados Unidos. Na América, os cidadãos que constituem a minoria se associam
primeiramente para constatar seu número e debilitar assim o império moral da maioria; o segundo
objetivo dos associados é reunir e, assim, descobrir os argumentos mais propícios a impressionar
a maioria; pois eles sempre têm a esperança de atrair para si esta última e dispor em seguida, em
nome dela, do poder. (TOCQUEVILLE, 2005, p. 225).
As explicações tocquevilleanas expõem que nos “países democráticos, a ciência da associação é a
ciência-mãe; o progresso de todas as outras depende do progresso desta” (TOCQUEVILLE, 2004, p.
142). O associativismo, assim, apresenta-se como importante instrumento de sociabilização e civilização
entre os homens. O teórico assevera que os homens permanecem ou se tornam civilizados, quando entre
eles a arte de se associar se desenvolve e se aperfeiçoa na mesma proporção que a igualdade de
condições cresce (TOCQUEVILLE, 2004, p.136).
Tocqueville, também, identificou e definiu o associativismo voluntário como um modelo de
associações ou sociedades livres em que os indivíduos se reúnem de forma voluntária, motivados por se
identificarem com os objetivos presentes. Em suas observações, enfatiza que:
Os americanos de todas as idades, de todas as condições, de todas os espíritos, se unem sem
cessar. Não apenas têm associações comerciais e industriais de que todos participam, mas
possuem além dessas mil outras: religiosas, morais, graves, fúteis, muito gerais e muito
particulares, imensas e minúsculas; os americanos se associam para dar festa, fundar seminários,
construir albergues, erguer igrejas, difundir livros, enviar missionários aos antípodas; criam dessa
maneira hospitais, prisões, escolas. Enfim, sempre que se trata de pôr em evidência uma verdade
ou desenvolver um sentimento com o apoio de um grande exemplo, eles se associam
(TOCQUEVILLE, 2004, p.132).
Nos Estados Unidos oitocentista, as associações configuraram-se, assim, como um modo de
sobrevivência de um grupo e/ou uma forma de se relacionarem entre si. A associação reunia “em feixe os
esforços de espírito divergentes e impele-os com vigor em direção a um só objetivo claramente indicado
por ela2” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 220). Quando os indivíduos concebem um sentimento ou uma ideia
que querem produzir no mundo, eles se procuram e, quando se encontram, unem-se. A partir de então, não
mais isolados, mas uma força que se vê de longe e cujas ações servem de exemplo (TOCQUEVILLE,
2004, p.135).
É evidente que para Tocqueville a prática de se associar pelos mais diversos motivos e necessidades
criava em torno das relações dos indivíduos o sentimento de união e de que juntos eram mais fortes. Não
mais isolados, os indivíduos se reuniam, discutiam suas necessidades e ideais como forma de combater e
impedir
o despotismo dos partidos ou a arbitrariedade do príncipe, do que aquele em que o estado social é
democrático. Nas nações aristocráticas, os corpos secundários formam associações naturais que
detêm os abusos de poder. Nos países em que semelhantes associações não existem, se os
particulares não podem criar artificial e momentaneamente alguma coisa que se lhes assemelhe,
não percebo mais nenhum dique contra nenhuma sorte de tirania, e um grande povo pode ser
oprimido impunemente por um punhado de facciosos ou por um homem (TOCQUEVILLE, 2005,
p.223).
Desse modo, a sociedade assegura o Estado Democrático, constituído pela vontade da maioria, e por
meio das suas associações impede que a vontade de alguns se transforme numa ditadura e impeça a
liberdade do indivíduo.
Outra explicação sobre a presença do associativismo nas sociedades modernas é a do sociólogo Max
Weber que, em viagem aos Estados Unidos da América, no ano de 1904, identificou a prática associativa
no seio dos grupos de protestantes. Pouco mais de sete décadas depois da viagem de Tocqueville àquela
nação, Weber observou um país com avanço industrial e uma organização social e política mais
estruturada e percebeu que as seitas protestantes, classificadas como associações voluntárias naquela
federação política, pareciam ter maior liberdade de manifestação e na sua esteira floresceram as
associações seculares, cívicas e voluntárias3.
No pensamento weberiano, as associações voluntárias foram espaços sociais que se constituíram e
se legitimaram como um ambiente apto para o aprimoramento do caráter e da ética do indivíduo. Nelas,
criou-se um tipo de homem eficiente e grandioso que tinha de provar “sua igualdade com os outros, no
qual não as ordens da autoridade, mas a decisão autônoma, o bom senso e atitude responsável constituem
a preparação para a cidadania” (WEBER, 2002, p. 32). Weber ainda destaca que essas associações
eram, principalmente, os “veículos típicos de ascensão social para o círculo da classe média
empresarial. Serviam para difundir e manter o ethos econômicos burguês e capitalistas entre as amplas
camadas das classes médias (inclusive agricultores)” (WEBER, 2002, p. 354).
Nos Estados Unidos da América do século XIX, o dinheiro não era instrumento legítimo de honras
sociais, tampouco os herdeiros eram mais considerados homens de honras do que aqueles que se faziam
pelo trabalho e pelo esforço próprio. Weber explica que, para conquistar as honras sociais, a filiação a
uma associação, fosse ela uma seita, uma fraternidade de uma universidade ou clube distinto, era mais
importante do que qualquer coisa. O indivíduo, por meio de votação e de sua conformidade perante as
regras, era aceito como membro de uma associação e ganhava legitimidade e ascendia socialmente4.
A participação de indivíduo em uma associação faz parte da democracia norte americana, que tinha
como uma das suas características não ser constituída “como um monte uniforme de areia composto de
indivíduos, mas um animado complexo de associações rigorosamente exclusivas, embora voluntária”
(WEBER, 2002, p. 356). O associativismo como uma prática social, além de importante para a
manutenção da organização social, politiza o indivíduo a partir das reuniões de sócios, da participação
nas tomadas de decisões nas quais o interesse coletivo é considerado como a única direção possível. O
convívio nessas associações permite perceber a significância da liberdade e garante a sustentabilidade
da constituição do Estado Democrático5.
Ao direcionar tais interpretações para o campo da educação, ou especificamente das práticas
educativas, percebe-se vínculos estreitos com os reais objetivos do associativismo. A prática de
associativismo demarca a história da educação no mundo, pois são perceptíveis os diversos modelos de
associativismo presentes no interior de uma instituição educativa. Professores e alunos compuseram um
corpus de sócios de uma determinada associação que logicamente se fundamentou em princípios
democráticos, cujas finalidades primavam pelo desenvolvimento do espírito de cooperação e de
autonomia. Neste sentido, a seguir, apresentaremos reflexões sobre o associativismo como prática
educativa que contribuiu para o desenvolvimento do espírito de cooperação, de colaboração e de
autonomia dos educandos.

Diálogo com Dewey e Adolfo Lima


Os estudos sobre as instituições educativas destacam as associações como uma instituição
fundamental na formação cultural e social da juventude. Nos anos oitocentistas, as associações, fossem
literárias, esportivas ou ecológicas, reuniam um grupo de jovens de interesses comuns que desenvolviam
atividades que requeriam organização, disciplina, cooperação e colaboração, o que as tornavam como
um lugar de aprendizagem para o convívio social. “Depois da família e da escola, são as associações que
atuam na formação, sobretudo dos jovens, em relação ao tempo livre da escola e do trabalho” (CAMBI,
1999, p.488). Nelas se afirmavam “um ideal de vida e desenvolvia-se, assim, uma obra bastante explícita
de educação, capaz – muitas vezes – de incidir com maior profundidade que a própria educação escolar e
familiar” (CAMBI, 1999, p. 489).
Nesse sentido, é visível a significância do desenvolvimento de estudos sobre as associações como
instituições educativas. O associativismo na educação é, ainda, um lugar pouco visitado pelos
historiadores e sociólogos da educação. Os raros estudos que se propuseram a investigar esta temática
adentram no universo do associativismo de uma classe ou grupo social sem fazer interlocução com
teóricos da educação que discutiram o fenômeno do associativismo como um instrumento político e
educativo preciso para o desenvolvimento do espírito de colaboração e de cooperação do discente.
As associações de alunos, presentes no universo dos espaços educativos e de formação,
representaram as práticas estudantis desenvolvidas nas instituições de ensino ou fora delas. Nesse
sentido, o associativismo discente, dotado de peculiaridades e autonomia, fez parte de uma cultura
escolar e chama a atenção por sua significância na identidade do aluno e da educação. As razões para a
presença marcante deste tipo de associativismo na realidade da educação das sociedades democráticas
são plurais, mas a comunhão com os interesses ditados pela democracia é uma característica peculiar a
ele.
A investigação sobre a prática de associativismo discente entre o final do século XIX e meados do
século XX, por vezes, é marcado por um discurso, quase que comum, de que tal prática alicerçou-se sob
a ótica da apreciação dos ideais de civismo presente em determinados modelos de educação.
Emerge, assim, a necessidade de se revisitar alguns teóricos e intelectuais da educação para, assim,
se compreender melhor como o associativismo discente não só faz apenas parte de uma política de
governo, mas, sobretudo, é fruto de um modelo de educação proclamado e aplicado nas sociedades
democráticas. Logo, teremos que adentrar no espaço da educação para desvendar os discursos dos
intelectuais que defendiam o associativismo na educação pelas mesmas vias interpretativas dos teóricos
aqui já apresentados6.
Adentramos, assim, no universo do discurso de John Dewey sobre a educação e a democracia.
Reconhecido como o grande filósofo da educação moderna, Dewey possui um legado de escritos que
provocou e provoca debates no campo da Filosofia, da Educação, da Psicologia, da Sociologia e da
Política. Em seus escritos, deixou claro sua preocupação com a educação e defendeu a ideia de que uma
“sociedade é um conjunto de pessoas unidas por estarem a trabalhar de acordo com linhas comuns,
animadas de um espírito comum e com referência a objetivos comuns” (DEWEY, 2002, p.2).
Segundo Dewey, a sociedade só lograria êxito em meio ao sistema social democrático no qual o
indivíduo se sentia intrínseco. Para o teórico, toda instituição social originava-se a partir das
circunstâncias práticas da vida humana. Esclarece que:
A sociedade é concebida como única pela sua própria natureza. As qualidades que compunham
esta unidade, louvável comunhão de propósitos e bem-estar, lealdade para com os fins públicos e
mutualidade de afinidades, são enfatizadas [...] (DEWEY, 1959, p.85).
Desse modo, a sociedade é antes de tudo um conjunto de indivíduos que vivem associados; seus
indivíduos pertencem a diversos grupos, construídos a partir das relações sociais que mantêm. Por
conseguinte, a família é um grupo social construído por laços consanguíneos, mas que, segundo Dewey,
tem uma forma de vida associativa na qual a união e a ajuda mútua criam alicerces fortificados para o
convívio social. A família, assim, é a primeira experiência de vida em sociedade de um indivíduo. De tal
modo, o convívio e as relações nela construídas são formas de vida associativa na qual seus membros
compartilham objetivos e interesses comuns.
Se considerarmos, por outro lado, o tipo de vida familiar que ilustra o nosso modelo, verificamos
que existem interesses materiais, intelectuais e estéticos nos quais todos participam, que o
progresso de um membro tem valor para a experiência de outros membros – é rapidamente
comunicável – e que a família não é todo isolado, mas entra em íntimas relações com grupos de
negócios, com escolas e com todos os agentes culturais, assim como outros grupos similares, que
desempenha um papel adequado na organização política e, em troca, recebe apoio dela.
Resumindo, existem muitos interesses conscientemente comunicados e partilhados; e existem
pontos de contato livres e variados com outros modos de associação (DEWEY, 1959, p.86).
Dewey defende a ideia de que a vida em sociedade é nada mais que uma vida associada. Ou seja,
para este teórico da educação, sociedade e associação estão interligadas, a primeira não existe se nela o
fenômeno do associativismo não se faz presente. Esclarece que em qualquer sociedade a prática
associativa faz parte da sua engenharia social. São pelas associações que os homens reúnem-se e unem-
se pelos mais diversos propósitos. Ratifica Dewey que em sociedade os homens:
associam-se de todas as formas e pelos mais variados propósitos. Um homem envolve-se em
muitos e diversos grupos, nos quais os seus associados podem ser bastante diferentes.
Frequentemente, parece que nada têm em comum, exceto o fato de serem modos de vida
associada. Em cada grande organização social existem muitos pequenos grupos: não apenas
subdivisões políticas, mas também associações industriais, científicas, religiosas. Existem
partidos políticos com diferentes objetivos, grupos sociais, seitas, quadrilhas, corporações,
sociedade comerciais, grupos fortemente ligados por laços de sangue e outros mais, numa
variedade infinita. Em muitos Estados modernos e em alguns antigos existe uma grande
diversidade de habitantes com várias línguas, religiões, códigos morais e tradições. Sob este
ponto de vista, muitas das pequenas unidades políticas, uma das nossas grandes cidades, por
exemplo, são uma acumulação de sociedade livremente associadas, em vez de serem comunidades
inclusivas e permeáveis de ação e pensamento (DEWEY, 1959, p.84).
O que há de essencial no modo como Dewey define e percebe as relações sociais entre os homens é
a definição de sociedade democrática como uma forma de vida associada que procura solidificar valores
de natureza moral, liberdade e igualdade. Dewey acreditava que as instituições sociais – família, escola,
igreja e outras – eram resultantes de um processo engendrado nas práticas de vida do indivíduo. O êxito
desse processo se daria por meio da formação de uma sociedade em que os ideais de democracia
formassem uma espinha dorsal para os indivíduos que deveriam percebê-la como primariamente um
modo de vida associado, de experiência compartilhada. Seguindo essa linha de pensamento, elucida que:
A devoção da democracia pela educação é um facto adquirido. A explicação aparente é a de que
um governo baseado no sufrágio popular não pode ser bem sucedido se aqueles que o elegem e
que lhe obedecem não forem educados. Uma vez que a sociedade democrática repudia o princípio
da autoridade externa, deve encontrar um substituto nos interesses e na predisposição voluntária e
apenas a educação pode criá-las (DEWEY, 1959, p.88).
A comparação da sociedade como uma vida associada revela a opinião de Dewey sobre associação
e como os homens voluntariamente se associam por se identificarem com os objetivos e interesses
postos. Também são especiais a importância e a significância da educação dentro desse processo social.
A educação ocupa um lugar primordial e de pura necessidade vital para a consolidação das sociedades
democráticas. Elucida Dewey que:
Uma sociedade é democrática quando propícia uma participação de todos os seus membros, em
igualdade de circunstâncias, e quando assegura uma readaptação flexível das suas instituições
através de interação das diferentes formas da vida associativa. Tal sociedade deve ministrar um
tipo de educação que proporcione aos indivíduos um interesse pessoal nas relações e no controle
social e hábitos de espírito que permitam mudanças sociais sem que se introduzam desordens
(DEWEY, 1959, p.97).
Sendo assim, qualquer “educação que se ministra a um grupo tende a socializar os seus membros,
mas a qualidade e o valor dessa socialização dependem dos hábitos e dos objetivos do grupo” (DEWEY,
1959, p.85). Dewey concebe a educação como um processo de reconstrução e reorganização das
experiências de forma a argumentar e ampliar sentidos e, assim, conseguir mais larga habilidade para
dirigir o curso subsequente de novas experiências.
A compreensão da educação como uma função social conduz ao entendimento da escola como espaço
de introdução à vida social, na qual o convívio e as relações sociais estabelecidos são carregados de
valores e de espírito de liberdade, igualdade, cooperação e união. O aluno, assim, a partir de um
aprendizado baseado na experiência social, desenvolveria uma efetiva autonomia.
No recreio, durante as brincadeiras e desportos, a organização social ocorre espontânea e
inevitavelmente. Há algo para fazer, uma atividade para executar, exigindo uma divisão natural do
trabalho, a seleção de líderes e subordinados, a cooperação e emulação mútuas (DEWEY, 2002,
p.24).
É nesse sentido que a educação ganha um papel mais que fundamental no desenvolvimento e no
aperfeiçoamento das sociedades democráticas. Ao conceber a escola como locus de vida social, garante
a ela o papel de permitir uma prática associativa, pois na medida em que aceitamos a sociedade como um
contíguo de indivíduos associados, consequentemente, pensamos a escola como espaços que promoverão
as relações sociais cunhadas nas práticas associativas.
Para Dewey, a escola deveria ser compreendida como uma comunidade em miniatura, na qual o
aluno tivesse a oportunidade de desenvolver a cidadania, a responsabili​dade e a participação sociais.
Seria, assim, a escola o espaço pedagógico em que a liberdade, a aprendizagem pela experiência e a
interligação do conhecimento escolar com o real cotidiano dos educandos conjecturavam-se em prol de
uma educação para a vida. Esse tipo de educação estimula o de​senvolvimento da autonomia dos alunos,
fazendo com que adquiram não só a capacidade do desenvolvimento cognitivo, mas, especialmente,
permite o envolvimento espontâneo nas atividades escolares, que consequentemente exercitam a sua
autonomia.
A autonomia dos educandos idealizada no pensamento pedagógico de Dewey seria fruto da liberdade
e da aprendizagem por experiência, sendo a escola “[…] um lugar onde a criança vivesse realmente e
adquirisse uma experiência de vida que, sem deixar de lhe proporcionar prazer, possuísse um significado
próprio e inteligível” (DEWEY, 2002, p. 56). Assim, o espaço escolar seria um ambiente de formação
educativa e social e permitiria a construção do espírito de colaboração e exercício da cidadania.
A questão da autonomia dos educandos, presente no discurso da pedagogia deweyana, foi
amplamente debatida e defendida pelo intelectual e educador português Adolfo Lima7. Como professor e
diretor da Escola Oficina nº 1 de Lisboa, este intelectual português foi um grande defensor da autonomia
dos educandos por meio das associações escolares ou associações dos educandos. Em muitos dos seus
artigos, publicados na revista Educação Social, em circulação no território português na primeira metade
do século XX, a defesa da construção de uma escola nova portuguesa com base nas ideias de Adolfo
Ferrière marcou a sua teoria e a sua prática pedagógicas.
A coluna “Autonomia dos Educandos e as associações escolares: as Solidárias”, assinada por
Adolfo Lima, compôs diversas edições da citada revista. Por meio desta coluna, esse intelectual publicou
artigos sobre a autonomia dos educandos e seus benefícios para a formação e para a vida social.
No número quatro do segundo ano da edição da revista, Adolfo Lima apresentou e defendeu a escola
social como uma sociedade de criança, a qual deve criar nos educandos a prática do livre exercício de
seus direitos e deveres. Declarou que, para a criança caminhar para sua emancipação e dignificação, a
escola deveria ser compreendida como um laboratório sociológico e tinha que ser organizada e funcionar
de modo a conduzir os educandos a agir de forma consciente, emancipadora e libertadora. Destacou
ainda que:
A escola é um pequeno agregado social, cujos membros, as crianças, cuidam e tratam do bem
comum, dos meios de realizar os seus fins, desempenhando as diversas funções e cargos
escolares, que velam pelo bom andamento e progresso da colectividade a que pertencem.
Estas funções devem ser organizadas pela e para a colectividade, e não traduzirem apenas
“serviços”, que o mestre distribui, autoritariamente, “por ordens de serviço”, e que muitas das
vezes são apenas “uma economia” à falta de “pessoal menor” (LIMA, 1925c, p. 15)8.
Por meio das ações desenvolvidas neste ambiente educativo, os alunos exercitariam o espírito de
coparticipação e colaboração necessários para uma vida em sociedade, e a escola promovia uma
educação libertadora – conhecida pelos norte-americanos e ingleses como “self governmet”9 e pelos
latinos como “autonomia dos escolares, ou dos educandos” –, em que cada criança tem uma função social
a desempenhar, e, portanto, contribui para o bem geral, dentro da Escola.10
No regime da autonomia dos educandos, há uma atmosfera de harmonia e confiança na relação do
professor com o aluno, em que este último colabora com o desenvolvimento e sucesso da escola, tendo
sempre a consciência do seu papel individual em prol do bem da coletividade. Por meio de ações que
estimulam a colaboração e o bom desempenho do educando, ocorre a promoção de uma tendência ao
social em combate à individualidade. O aluno é estimulado a agir para o bem do seu semelhante,
tornando-se, assim, sociável, humano e humanitário. Os laços da vida em comum, resultantes de “uma
mutualidade de esforços individuais, convergentes para um fim, tornam evidente a necessidade, que todos
temos, de nos associar, de viver em sociedade, e que não nos é possível passar sem ela!” (LIMA, 1925c,
p. 18).
Ao destacar uma série de vantagens que o regime da autonomia dos educandos apresenta, dentre as
quais estavam o desempenho perfeito, a tendência ao social, o combate ao individualismo, a promoção
do bem coletivo e a prática de se associar, Adolfo Lima concluiu que:
A autonomia realiza um duplo benefício: 1º a livre expansão de tôdas as virtualidades individuais,
e concomitante exercício e prática da acção individual perante a colectividade; 2º a criação de
uma consciência coletiva da espécie pela solidariedade necessária das consciências individuais
na realização do bem comum, do Ideal Social (LIMA, 1925c, p. 18).
A autonomia dos educandos defendida por Adolfo Lima e praticada na Escola Oficina nº 1 de
Lisboa, através da associação dos alunos “A Solidária”11, teve como principal objetivo a promoção das
relações de solidariedade, cooperação e colaboração entre eles. Os alunos aprendiam a viver em
sociedade, cientes da sua real função em meio à prática do bem comum.
Com base nas explicações de Adolfo Ferrière, Lima (1925c) destacou as associações dos educandos
como mecanismos basilares para o desenvolvimento da autonomia dos alunos e determinantes para a
construção de uma educação social em que os discentes, através da promoção de seus direitos e
cumprimentos de seus deveres, aprendiam o convívio social.
A existência de uma associação de alunos dentro do universo escolar “revela já um estado de
progresso e de mentalidade activa e estudiosa, mas que varia em qualidade e quantidade de efeitos
educativos, conforme o tipo associativo escolhido e adoptado” (LIMA, 1925c, p. 19). Segundo Lima
(1925c), estas associações com fins diversos se apresentam em três tipos bem definidos.
O primeiro tipo é a associação de alunos de regime autoritário absoluto e patriarcal, organizada e
dirigida pelo diretor ou professor da escola. Muitas vezes, esse tipo de associação também é organizado
pelo corpo docente e não só apenas por um único professor. Nela, os alunos são obrigados a se
associarem e pagarem a contribuição de sócios. Esse pagamento provoca no educando a crença no
dinheiro como solução de tudo sem trabalho e empenho e o torna acomodado, passivo e submisso às
ordens daqueles “em que delega o exercício de seus direitos e cumprimento dos seus deveres” (LIMA,
1925c, p. 19). Mesmo sendo sócios e contribuintes, talvez por não se identificarem com a finalidade da
associação, o aluno mantém-se alheio à vida associativa e esta posição não será motivo de expulsão.
Para Adolfo Lima, as associações dessa espécie são completamente inúteis para educação, pois não
educam e não exercitam a vida social dos sócios que não se identificam como parte de um coletivo e com
interesses comuns. Lima (1925c) advertiu que:
[...] a entrada para a associação deve ser facultativa, como facultativo devem ser também os
cargos e serviços a desempenhar. Ela, porém, deve ser um foco de atração tão forte e poderoso
que a nenhum escolar, normalmente constituído, possa ser-lhe indiferente não ser associado.
O indivíduo que entra obrigado, contrafeito, para uma associação nunca é um associado, nunca
será um colaborador, um companheiro, e se, ainda por cima, lhe impuserem, despoticamente, com
sanções, a prestação de um serviço, ou o desempenho de um encargo, fá-lo-á não só mal, mas, o
que é pior, ao invés do que seria para desejar, tornando-se um elemento corruptor, em vez de um
elemento activo de colaboração. Fará as coisas por demais para [...] cumprir a obrigação, a
corveia (LIMA, 1925c, p. 15).
Lima (1925c) ainda alertou que essas associações estudantis criadas e organizadas por diretores e
professores são impostas aos alunos e apenas servem para criar uma massa de seres “sem iniciativa,
submissos, incapazes de um gesto que marque a sua individualidade, que quebre a tradição. São as
inconscientes ovelhas de Panun que se deixam ir para onde toda gente vai” (LIMA, 1925c, p. 19).
O segundo tipo de associações de educandos, destacado por Adolfo Lima, são as criadas e
organizadas pelos discentes, longe da vista, quase que em segredo, do diretor e dos professores da
escola, dirigidas por um líder de um agrupamento escolar. Esse tipo de associativismo pode ser
desenvolvido dentro da instituição escolar, mas pode ter sua origem não só nela, mas em casa, na rua ou
em jardins públicos. Nelas, os professores são convidados para sócios e só têm conhecimento delas por
pagarem generosamente a cota.
Contudo, o sucesso desse tipo de associações depende da importância que os docentes dão a elas,
por seus sócios dependerem de acompanhamentos e estímulos às suas iniciativas e empreendimentos.
Esses movimentos espontâneos associativos, sem o apoio do professor, podem ser efêmeros e ficarão à
mercê da vontade de seu líder, e duram tanto tempo quanto dura o prestígio ou o capricho dele.12
O terceiro tipo de associações de educandos são aquelas criadas e organizadas pelos alunos com a
participação dos professores e cujo funcionamento fica a cargo dos órgãos compostos por eles. São
associações “de cooperação, de colaboração, em que o corpo discente e o corpo docente constituem uma
só convergente acção educativa” (LIMA, 1925c, p. 19). Nelas, as ações são desenvolvidas em conjunto e
suas finalidades tendem a atender à vontade e às aspirações de ambos os corpos dirigentes.
Essas associações são extremamente importantes dentro do processo educativo de uma instituição de
ensino, por educarem os alunos a partir de experiências e relações sociais estabelecidas no convívio
diário que se dá através das reuniões, passeios e excursões. As finalidades desse terceiro tipo de
associação de educando dialogam com as reais necessidades da escola e do estudante. Seu corpo
diretivo visa a resolver especificamente os problemas oriundos das salas de aulas e, assim, atingir o bom
desenvolvimento da escola.
Entretanto, para o Adolfo Lima, esses três tipos de associações de educandos não se configuram
como uma associação ideal promotora de uma educação social, pois uma associação modelo, como bem
definiu, deve
[...] brotar dos próprios educandos, deve corresponder a uma necessidade sentida e compreendida
por eles, que criam, que organizam, conforme os seus ideais do momento, que marcam os
objectivos, e que devem pô-la a funcionar, dividindo entre os diversos trabalhos dos órgãos
criados.
A associação deve, pois, corresponder a uma necessidade, deve a sua origem na vida dos
educandos, nas aspirações. Se é outorgada pelo mestre, como monarca, arrisca-se a ficar inerte e
incompreendida (LIMA, 1925c, p. 21).
Uma associação estudantil comprometida com a educação social de seus sócios, além de ser fruto do
desejo e da necessidade exclusiva dos discentes, surge naturalmente do movimento espontâneo dos
educandos que, “sob o impulso de um ideal, pretendem associar-se para a realização de um certo fim
concreto” (LIMA, 1925c, p. 21). Essas associações de educandos são “verdadeiros laboratórios sociais,
em que a criança e o adolescente executam, experimentam a vida social, e, dentro dos limites das suas
fôrças, funções da mesma espécie, que mais tarde hão de desempenhar quando adultos” (LIMA, 1925c, p.
23).
Por meio dessas associações, os discentes desenvolvem o espírito crítico e responsável. Sentem-se
como parte de um todo, comungando valores, objetivos e interesses comuns, e são estes interesses que os
motivam a se associar e a formar órgãos que representam e legitimam suas vontades e necessidades. De
acordo com Lima (1925c), os interesses das crianças e dos adolescentes são
[...] os primeiros rebates das necessidades humanas, que levam o ser humano a associar-se, a
formar órgãos ou instituições sociais, cujo conjunto é o superorganismo humanidade, nós, filiando
e fixando os objetivos das associações escolares nos diferentes grupos de interêsses infantis e
adolescentes, fazemos, por isso, exactamente, dessas associações “sociedades humanas em
miniaturas”, onde existem aqueles mesmos e característicos órgãos e instituições que há nas
sociedades organizadas dos adultos (LIMA, 1925c, p. 22).
Por conseguinte, as associações estudantis são resultantes de interesses da mesma natureza dos
interesses dos adultos que criam suas instituições socais. É também através desse tipo de associativismo
que a escola pode contar com a contribuição de seu corpo discente na sua gestão e organização.
Considerando as possibilidades e tendências presentes na organicidade escolar, o aluno atuará para a
efetivação do bem comum e a escola passará a ser uma “ambiência de solidariedade social e um
laboratório de consciências sociais” (LIMA, 1925c, p. 23). Tais associações devem apresentar-se como
promotoras da autonomia de seus sócios. A partir delas o exercício da consciência social é praticado e a
educação social se faz presente no cotidiano dos educandos.
O reconhecimento das associações estudantis como locus de autonomia dos educandos as classificam
como uma instituição educativa que organiza não só a vida escolar, mas também a vida social e cultural
do educando. Nelas, os jovens são disciplinados e autodisciplinados, e por meio das experiências
vividas em conjunto com seus pares, combatem o individualismo e fortalecem o interesse pelo bem
coletivo.

Diálogos finais
A vida associativa corrobora para que o indivíduo associado, em meio ao seu convívio social,
desenvolva o hábito de expressar suas opiniões, ouvir e respeitar as opiniões alheias, civilizar-se, e a
ratifica como uma única via de organização e desenvolvimento social e promoção do bem comum.
Compreender o fenômeno do associativismo como uma organização social, como bem esclareceram
Tocquevilee e Weber, revela-o como um mecanismo presente nas sociedades modernas e democráticas
que visa combater ao individualismo. O modelo de associações ou sociedades livres em que os
indivíduos se reúnem de forma voluntária, motivados por se identificarem com os objetivos presentes, fez
parte de um conjunto de características das sociedades democráticas ao longo dos séculos XIX e XX. As
associações confiavam ao indivíduo o direito de se reunir e de se unir em torno de um interesse comum, a
partir do entendimento de que, por meio delas, estabelecem-se a socialização e a sociabilidade em prol
de um projeto coletivo.
Ao enveredar pelo cotidiano escolar, a presença desse tipo de associativismo marca a história da
educação das mais diversas sociedades modernas. Presentes nas instituições de ensino, as associações
criadas por alunos e para alunos configuraram-se como uma peça na engrenagem das práticas educativas
e promoveram as ações e as relações estabelecidas.
Dewey e Adolfo Lima defendem que as práticas associativas no interior da escola garantem o
desenvolvimento do espirito da cidadania, da responsabili​dade e da participação social. As associações
estimulam o de​senvolvimento da autonomia dos educandos e contribuem para um melhor aperfeiçoamento
e espontaneidade dos escolares, bem como do desenvolvimento cognitivo. A autonomia dos educandos
idealizada pelos dois intelectuais tinha nas associações um ambiente profícuo de formação social,
cultural e político que aprova a construção do espírito de colaboração, de cooperação, além do exercício
da cidadania.
Em comum, as interpretações aqui apresentadas sobre o associativismo na sociedade e na educação,
ancoram-se em princípios democráticos, nos quais a liberdade e a participação social são colunas
basilares no convívio social. O associativismo configura-se como uma ação coletiva motivada por um
sentimento de defesa ao bem comum e de combate ao individualismo. As associações estruturam-se como
uma rede de sociabilidades nas quais laços de convívio e interesses são solidificados a partir de uma
base democrática, sendo a igualdade na promoção dos direitos e deveres um elo forte na garantia do
estabelecimento de uma sociedade onde o bem comum se torna interesse de todos.
Finalizando o diálogo, fica o convite para adentrar no universo das associações, sejam políticas,
religiosas, culturais, escolares e estudantis, cujas finalidades são generosamente diversas e contribuem
para o convívio social em meio à prática de sociabilidade e de socialização, à garantia da promoção do
bem comum e ao desenvolvimento do espírito de responsabilidade, cooperação, colaboração e
solidariedade.

Referências
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______. Ensaios de Sociologia. 5ª ed. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: LTC Editora, 2002.

Sobre as autoras
Eva Maria Siqueira Alves é Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP), Mestre em Educação e Licenciada em Matemática, Mestrado em Educação pela
Universidade Federal de Sergipe (UFS). É professora do Departamento de Educação. Coordena o Centro
de Educação e Memória do Atheneu Sergipense (CEMAS) por meio do termo de cooperação técnica
firmado entre a Secretaria de Estado da Educação e a Universidade Federal de Sergipe. É Presidente do
Conselho Municipal de Educação de Aracaju - CONMEA. Coordena convênio firmado entre a
Universidade Federal de Sergipe e a Universidade do Porto.
Margarida Louro Felgueiras é professora Associada da Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação da Universidade do Porto. Coordenadora do Domínio Educação e Herança Cultural, ao nível
do mestrado em Ciências da Educação. Coordenadora do GT História da Educação, Herança Cultural e
Museologia do Centro de Investigação e Intervenção Educativas-CIIE. Professora visitante na USP e em
várias universidades públicas brasileiras. Autora de vários livros e artigos em História da Educação e
de vários projetos financiados a nível nacional e coordenadora de equipas portuguesas em projetos
europeus. Avaliadora de projetos na Fundação para a Ciência e Tecnologia–FCT.
Simone Paixão Rodrigues é licenciada em História e doutora em Educação por esta mesma
universidade pela Universidade Federal de Sergipe. Realizou estágio doutorado sanduíche na
Universidade do Porto/Portugal (2013/2014) como bolsista CAPES. Exerceu a função de coordenadora
de disciplina e de tutora da Universidade Aberta do Brasil/UFS. Atualmente é professora da rede pública
de ensino do Estado de Sergipe e da Faculdade São Luís de França, membro do grupo de pesquisa:
Disciplinas Escolares: história, ensino e aprendizagem (DEHEA/UFS) e conselheira do Conselho
Estadual de Educação. Realiza pesquisas em História e História da Educação, principalmente nos temas:
Associações Estudantis, jornais estudantis, História das Disciplinas e Instituições Escolares.

Notas
1. Parte deste texto faz parte da Tese de Doutorado em Educação: “Com a palavra os alunos:
associativismo discente no Grêmio Literário Clodomir Silva (1934-1956)”, defendida no Programa de
Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe, em março de 2015, de Simone Paixão
Rodrigues, sob a orientação da Profa. Dra. Eva Maria Siqueira Alves e coorientação da Profa. Dra.
Margarida Louro Felgueiras.
2. Este tipo de associativismo teve sua origem no século XVII na Inglaterra, mas se constituiu com maior
intensificação na América do Norte. Cf: TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e
costumes. Livro I. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
3. Cf: GERTH, H. H; MILLS, C. Wright. O homem e sua obra. In: WEBER, Max. Ensaios de Sociologia.
5ª ed. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: LTC Editora, 2002, p. 30-31.
4. “Como bem se sabe, não poucos (bem poderíamos dizer a maioria da geração mais velha) dos
“promotores” capitães da indústria americanos, dos multimilionários, dos magnatas, dos trustes
pertenciam formalmente às seitas, especialmente a dos batistas. Mas, segundo o caso, essas pessoas
frequentemente eram filiadas por motivos convencionais, como na Alemanha, e não apenas a fim de se
legitimarem na vida pessoal e social – não para se legitimarem como homens de negócios; na era dos
puritanos, esses “super-homens econômicos” não precisavam de tal muleta, e sua religiosidade era
certamente com frequência de uma sinceridade do que dúbia. As classes médias, acima de tudo as
camadas em ascensão com as classes médias e as que delas estão se afastando, foram os portadores desta
orientação religiosa específica que devemos, na realidade acautelar-nos para não considerarmos apenas
como oportunistas” (WEBER, 2002, p. 354).
5. Segundo Putman (2002), é importante a participação em associações, “não só por causa de seus efeitos
“internos” sobre o indivíduo, mas também por causa de seus membros hábitos de cooperação,
solidariedade e espírito de cooperação e o senso de responsabilidade comum para com os
empreendimentos coletivos. Além disso, quando os indivíduos pertencem a grupos heterogêneos com
diferentes tipos de objetivos e membros, suas atitudes se tornam mais moderadas em virtude de interação
grupal e das múltiplas pressões. Tais efeitos, é bom que se diga, não pressupõem que o objetivo
manifesto da associação seja político. Fazer parte de uma sociedade orfeônica ou de um clube de
ornitófilos pode desenvolver a autodisciplina e o espírito de colaboração” (PUTMAN, 2002, p.103).
6. Dentre os quais estão: Alexis de Tocqueville e Max Weber.
7. Adolfo Ernesto Godfroy de Abreu e Lima, escolanovista português conhecido como um dos maiores
difusores, além de praticante, das ideias libertárias no campo da educação e do ensino em Portugal,
nasceu em Lisboa, capital portuguesa, em 28 de maio de 1874, e faleceu, também nesta capital, em 27 de
novembro de 1943. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, teve a educação como seu
principal campo de trabalho. Entre os anos de 1906 a 1914, foi professor de Sociologia e diretor
pedagógico da Escola Oficina Nº 1 de Lisboa, instituição escolar pertencente à Sociedade Promotora de
Asilos, Creches e Escolas, uma organização de caráter maçônico e republicano, que, em 1913, passou a
chamar Sociedade Promotora de Escolas. Cf: CANDEIAS (1994) e BARREIRAS (2006).
8. Segundo Lima (1925), “É preciso não confundir funções sociais numa sociedade escolar, como
derivadas, organicamente, da solidariedade de todos os seus membros, e a exploração económica” dos
alunos, que suprem os empregados e são obrigados, despoticamente, a prestar serviços, sem a menos
consciência coletiva (LIMA, 1925c, p. 15).
9. “A expressão ‘self governmet’ tem dois sentidos em inglês: um psicológico, outro político. Significa,
sobretudo, o império sobre si próprio, o domínio de si próprio. A virtude dos que são capazes de resistir
as suas paixões, de conduzir-se, segundo os princípios racionais, de decidir contra o seu interêsse
pessoal, quando êsse se opõe ao interesse público; de reconhecer os seus êrros, quando os comete. Por
outro lado, o ‘self governmet’ designa um regime político: é a autonomia, o regime democrático, em que
os cidadãos são livres e só obedecem às leis que fizeram directa ou indirectamente” (BALDWIN, 1925,
apud LIMA, 1925c, p. 14).
10. Cf: Lima, Adolfo. Autonomia dos Educandos e as associações escolares: as Solidárias. In: Educação
Social - Revista de Pedagogia e Sociologia. Lisboa, ano 2, n, 4, p. 10-24, abr, 1925c.
11. De acordo com Lima (1925): “A associação dos alunos na Escola Oficina nº 1 – A Solidária, como
se depreende dos relatórios da gerência, foi fundada por eles numa assemblea geral, em 13 de Fevereiro
de 1910. Numa sessão solene, realizada em 1 de Maio dêsse ano, o seu secretário geral afirmava: “A
nossa associação, como o seu nome indica, é um agrupamento em que todos os sócios se encontram
unidos num grande abraço fraternal; é um todo homogêneo nos seus fins e intuitos. Procura realizar um
ideal, em que um mal de um sócio seja um mal para todos; o bem de um sócio seja um bem para todos”.
Pensai nisto: o esforço individual vale muito, é a base da vida; mas êsse esfôrço tem de ser combinado,
conjugado com os demais esfôrços dos outros indivíduos, que isolados, para nada servem” (LIMA,
1925d, p.19).
12. Cf: LIMA, 1925c.
CAPÍTULO 9

POMBAL, ANTIBRITANISMO E INSTRUÇÃO PÚBLICA:


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES*
Luiz Eduardo Oliveira

O mito do Marquês de Pombal

N
o longo século XVIII português, a governação pombalina foi um divisor de águas, uma vez que,
mesmo não alcançando todos os seus objetivos imediatos, alterou irreversivelmente a estrutura
jurídica e social do reino português. A preocupação do ministro com a colônia brasileira, que
já ultrapassava o reino em população e riqueza, sempre foi uma constante, mesmo porque, durante a
União Ibérica, foram os “brasileiros” que tinham defendido o rico domínio português da investida dos
holandeses. Desse modo, se, por um lado, o modo radical com que reprimiu as revoltas e motins
coloniais em Pernambuco e Minas Gerais plantou as sementes de um sentimento nativista e autonomista,
por outro, sua habilidade política ajudou-o a cooptar os principais homens de letras do Arcadismo
brasileiro, como Basílio da Gama (1741-1795), que compôs uma epopeia, O Uraguay (1769), em sua
homenagem. Sua fama internacional alcançada em vida e sua importância histórica, sacramentada em
Portugal em 1934, quando foi erguida uma estátua em sua homenagem no centro de Lisboa, até hoje são
objeto de polêmica e controvérsias, nas universidades e mesas dos bares, onde disputam primazia, no
decorrer da história, duas correntes, uma antipombalina, pela crueldade de suas punições, que não
pouparam nem os nobres nem o clero, e outra filopombaina, pelas suas medidas econômicas e
educacionais inovadoras.
Desde seus primeiros escritos econômicos, produzidos na época em que era diplomata em Londres,
Sebastião de Carvalho e Melo, baseado nas interpretações então correntes sobre os tratados firmados
com a Inglaterra em 1703, desenvolveu toda uma mitologia negativa da Inglaterra, atribuindo à má índole
dos ingleses grande parte dos males da economia portuguesa. Durante seu governo, a anglofobia torna-se,
por assim dizer, uma razão de Estado, uma vez que quase todas as suas medidas políticas, econômicas e,
sobretudo, educacionais buscavam prejudicar os interesses da Inglaterra, numa época em que os ingleses,
por conta dos tratados, gozavam de privilégios e imunidades incomuns. Maxwell (1996) afirma que sua
anglofobia era exagerada, pois a imputação que fazia aos ingleses de que eles tinham um complot com os
jesuítas superestimava a sutileza inglesa. Em 1766, Martinho de Melo e Castro, à época enviado
português em Londres, declarou que a obsessão de Pombal quanto às intenções britânicas era
despropositada, pois os franceses e os espanhóis eram os verdadeiros inimigos de Portugal. Contudo, a
ameaça espanhola na fronteira Sul do Brasil obrigou-o a manter e a se valer da aliança inglesa.
A par desse cenário, este trabalho investiga o modo como se desenvolveu, como política de Estado,
embora velada, a anglofobia pombalina, que, tornando-se razão de Estado no seu governo, repercutiu na
legislação que regulamentava as Aulas e as Companhias de Comércio então criadas, bem como os
intentados incrementos à defesa, à industria e à Instrução Pública, mesmo que para tanto o país fosse
obrigado a contar com o auxílio inglês.

Da anglofobia
O reinado de D. João V (1689-1750) foi marcado, dentre outras coisas, pelos efeitos do Tratado de
Methuen, tendo Portugal adquirido, na memória histórica portuguesa, a imagem de um reino afastado tanto
de seus vizinhos ibéricos – mesmo depois dos casamentos reais entre as duas Casas peninsulares –
quanto da Europa ilustrada, sob a liderança de um rei tido por lúbrico e beato. Todavia, do ponto de vista
cultural, o período joanino caracteriza-se pela importação de artistas e intelectuais estrangeiros,
especialmente de músicos italianos, bem como pela encomenda sistemática de pinturas e obras
arquitetônicas, graças ao incremento financeiro advindo do ouro do Brasil. São deste período a
construção do palácio e convento de Mafra, de 1713 a 1730, a fundação da Real Academia da História
Portuguesa, que funcionou de 1720 a 1776, a tradução e impressão de obras portuguesas e estrangeiras,
inclusive de periódicos, e a constituição da figura do homem de letras estrangeirado, representado por
escritores que tiveram experiências diplomáticas ou formativas internacionais, tais como o já referido D.
Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão (1695-1753), Martinho de Mendonça de Pina Proença (1693-
1743), António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), Luís António Verney (1713-1792) e Sebastião José
de Carvalho e Melo (1699-1782), mais tarde Marquês de Pombal.
Assim, nos discursos político-econômicos pré-pombalinos, isto é, nos estudos produzidos pelos
intelectuais estrangeirados do reinado de D. João V, como Alexandre de Gusmão (1695-1753), D. Luís da
Cunha (1662-1749) e Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), podemos perceber o caráter
destrutivo que é atribuído à aliança inglesa, que havia sujeitado a nação portuguesa à humilhação de ter
que depender da Inglaterra até mesmo para os cereais necessários à sua subsistência. Segundo K.
Maxwell (2005, p. 25), na primeira metade do século XVIII, apenas a Holanda e a Alemanha
sobrepujavam Portugal como consumidores das exportações inglesas, e apenas nos momentos mais
críticos da Guerra dos Sete Anos (1756-1763), os navios britânicos no porto de Lisboa ficaram aquém de
50% do total. O embaixador francês Étienne-François, conde de Stainville e duque de Choiseul (1719-
1785), escreveu, cinco anos depois do terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755, que Portugal tinha de ser
considerado como uma colônia inglesa. João Lúcio de Azevedo (2004, p. 220), por sua vez, afirma que,
depois do Tratado de Methuen, Portugal, como principal consumidor das manufaturas inglesas, era “a
mais excelente colônia da Grã-Bretanha”. Seu comércio era praticamente monopolizado pelos súditos
britânicos, que vinham fazer fortuna no Porto ou em Lisboa, mas também trabalhar como tanoeiros,
sapateiros, alfaiates e cabeleireiros, de modo que a imigração abarcava todo tipo de gente, desde o
“inglês falido” ao irlandês fugido da forca de Londres. Ademais, com a intensa produção das minas do
Brasil, escasseava o numerário, o que fazia com que as moedas com a efígie de D. João V fossem mais
comuns na Inglaterra do que as do rei Jorge I (1660-1717).
Falcon (1993, p. 280-285) classifica os textos escritos – ou pelo menos assinados ou a ele atribuídos
– pelo Marquês de Pombal em sete grupos temáticos, os quais incluem as peças legislativas expedidas
durante a sua governação. Conforme o autor, o primeiro grupo, que compreende o período que vai de
1738, ano de sua chegada a Londres como diplomata, ainda durante o reinado de D. João V, até 1778,
quando o Marquês, depois da morte de D. José I e de sua queda do ministério, se defendia dos seus
adversários políticos, é composto dos escritos sobre as relações econômicas anglo-lusitanas. O segundo
grupo compõe-se das Instruções produzidas durante os primeiros anos de sua governação e destinadas a
diversas autoridades, como as Instrucções regias publicas e secretas encaminhadas ao seu irmão
Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1779), em 31 de maio de 1751, mesmo ano de sua
nomeação como Capitão-General e Governador do Pará; o terceiro refere-se às suas obras polêmicas,
tais como o Compêndio histórico da Universidade de Coimbra, publicado em 1771; o quarto à
legislação; o quinto é composto pela sua correspondência diplomática em geral; o sexto pelas suas
Observações secretíssimas e o sétimo, finalmente, pelo material produzido após a sua queda, em 1777,
no qual se encontram inclusive seus discursos de louvação do próprio governo. O primeiro grupo
temático, que aqui mais interessa, se apresenta sob várias formas e abrange diversos tipos de
documentos, que vão desde relatórios, instruções, correspondências e pareceres diplomáticos até
algumas peças legislativas, constituindo-se como uma espécie de súmula de todos os argumentos que
compunham o discurso luso-britânico do século XVIII, que era ao mesmo tempo político e econômico.
Os primeiros textos desse primeiro grupo foram produzidos durante o tempo que Sebastião José de
Carvalho e Melo passou em Londres como diplomata, de 1738 a 1742. Em 8 de outubro de 1738, ele
partiu para a Inglaterra, a bordo do navio britânico King of Portugal, como novo enviado extraordinário
de Portugal à corte de Jorge II (1683-1760), por indicação de D. Nuno, o cardeal da Cunha (1664-1750),
para substituir seu primo Marco Antônio de Azevedo Coutinho, que, estando em Londres desde 1735,
voltou ao reino português, a pedido de D. João V, para exercer o cargo de Secretário de Estado. Sua
primeira missão era pedir auxílio militar ao governo inglês para defender as possessões portuguesas na
Índia, ameaçadas pelos maratas, que haviam tomado a ilha de Salsete, e pelos bonsulós, que assediavam
Goa. O gabinete britânico, chefiado à época por Robert Walpole (1676-1745), assim como na ocasião
dos ataques espanhóis na fronteira da colônia de Sacramento, mesmo sem se negar ao cumprimento do
Tratado da Liga Defensiva de 1703, usava de vários subterfúgios para se eximir de tal responsabilidade,
alegando que não poderia fazer nada sem ouvir a Companhia das Índias Orientais – fundada em 1698 por
Guilherme III (1650-1702) –, que por sua vez tinha muito interesse na derrota dos portugueses, como veio
provar a sua posteiror anexação da ilha de Salsete ao seu império, bem como de outras praças
portuguesas vizinhas a Bombaim. O problema foi resolvido com o envio de uma esquadra portuguesa, em
1740, na qual estava D. Luís Carlos Xavier de Meneses (1689-1742), quinto conde de Ericeira, que
assumiu, pela segunda vez, o cargo de vice-rei da Índia. No entanto, o conflito deixou vários soldados
portugueses mortos, entre eles José Joaquim de Carvalho (c. 1712-1740), irmão mais novo de Pombal
(BARRETO, in MELO, 1986, p. vii; xii-xiii).
Seus escritos dessa época buscam explicar as causas profundas do estado de decadência do
comércio e da economia portuguesa, que é sempre contraposto ao desenvolvimento da Inglaterra e de
outras “nações polidas da Europa”, através de uma comparação em negativo na qual o Outro, como um
espelho invertido, aparece como modelo a ser imitado. Embora sua função não permitisse fazer análises
ou dar sugestões aos governantes em matéria tão delicada, como lhe aconselhava o Cardeal da Mota,
receoso de desagradar D. João V, que considerava o diplomata “novato” e capaz de cometer
imprudências, Sebastião de Carvalho teve oportunidade de expor suas ideias sobre as relações político-
diplomáticas luso-britânicas quando recebeu de Lisboa, em 15 de outubro de 1740, um ofício com a
contraproposta portuguesa ao projeto de convenção inglês contra a Espanha. No ofício, exigia-se a
reparação das negligências ou contravenções do Artigo XV do Tratado de Aliança Defensiva de 16 de
maio de 1703 e do Artigo Secreto do Tratado de Paz de 10 de julho de 1654, que garantiam aos
portugueses na Inglaterra a reciprocidade de privilégios e liberdades do comércio que os ingleses tinham
em Portugal. Ao representante do governo português em Londres cabia instruir-se a respeito da questão,
antes de emitir seu parecer, o que fez no mesmo ano, ao interromper as negociações e começar a redigir
uma Relação dos gravames que ao Comércio e Vassalos de Portugal se tem inferido e estão atualmente
inferindo por Inglaterra com as infrações que dos pactos recíprocos se tem feito por este Segundo
Reino; assim nos Atos do Parlamento que publicou, como nos costumes que estabeleceu; e nos outros
diversos meios de que se serviu para fraudar os Tratados do Comércio entre as Duas Nações.
Antes de escrever a Relação dos gravames, que só foi enviada a Lisboa no dia 2 de março de 1741,
o diplomata havia redigido uma longa Carta de Ofício, datada de 2 de janeiro de 1741 e dirigida a Marco
Antônio de Azevedo Coutinho, sobre a questão. Ao contrário de Alexandre de Gusmão, que chegou a
propor a anulação dos tratados com a Inglaterra em proveito de uma aliança com a França, o enviado
português defendia a manutenção da aliança, pois, em seu entender, não era o Tratado de Methuen a
principal causa da ruína da economia portuguesa, mas a sua infração pela ambição, cobiça e soberba dos
ingleses, que invejavam o “nosso Brasil” e eram considerados como os “tiranos do comércio”. Assim,
antes se devia tolerar “um mal grande, que nos tem com sossego, do que, expormo-nos a muitos maiores,
que nos trariam fatais perturbações”. Nesse sentido, Sebastião José de Carvalho e Melo inaugura o
discurso oficial da anglofobia, que mitifica a Inglaterra como uma encarnação do mal, uma vez que, nos
escritos dos outros intelectuais do período, o caráter malévolo da aliança inglesa é atribuído à conjuntura
político-econômica da Europa, e não à má índole ou à ganância do seu “gênio” (MELO, 1986, p. 7).
Apesar de inacabada, a Relação dos gravames é um texto bem estruturado e apresenta suas teses
econômicas de forma sistematizada, como o resultado de inquéritos e averiguações. Após expor os
“Motivos da obra”, que se justificam pela importância da regulamentação do comércio para qualquer
nação, o autor faz um “Juizo geral do comercio de ambos os reynos”, no qual, com base na análise dos
tratados firmados entre os dois países, busca mostrar como Portugal sustenta todo o peso das convenções,
que se tornaram muito onerosas, enquanto a Inglaterra, tendo pouco ou nenhum encargo, recolhe delas
todo o proveito. Sobressai na obra a imagem negativa com que são representados os ingleses, pela sua
cobiça e prepotência. Assim, buscando descrever os “humores que formão o carácter dos que habitam e
os costumes que nelle se observão como regras, que são inalteraveis”, o enviado português afirma que,
apesar de os britânicos não serem sanguinários, eram saqueadores das fazendas alheias, o que se
justificava pela sua pretensão de assenhorear-se do mundo. O trecho a seguir é bastante significativo, por
consolidar um mito negativo da Inglaterra, na medida em que considera os ingleses de todos os grupos
sociais como membros de um complot, ou conspiração para arruinar e destruir todos os estrangeiros que
se opusessem aos seus interesses. Apesar do seu tom ao mesmo tempo caricatural e rancoroso, que em
alguns aspectos chega a ser exagerado, o texto não deixa de documentar a experiência de um diplomata
que representa um país frágil e dependente na capital do reino que vivia um momento de cristalização das
ideias e mitologias expansionistas e imperiais (MELO, 1986, p. 34; 52).
Apesar de mitificar Inglaterra como encarnação de um mal à economia e à prosperidade portuguesas,
Sebastião José de Carvalho e Melo, em seus escritos produzidos durante o tempo em que esteve
diplomata em Londres, manifesta um certo fascínio pelo desenvolvimento comercial e marítimo dos
ingleses, assim como pela simplicidade, flexibilidade e eficácia do seu sistema de manufaturas. Tal
fascínio, no entanto, não impedia que o diplomata português criticasse asperamente o sistema político
inglês, dado o conflito de prerrogativas entre a coroa e o parlamento, bem como a preponderância dos
interesses pessoais sobre os da nação. Com a morte de D. João V e a ascensão de D. José I ao trono
português, Sebastião de Carvalho vai se tornar Secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, o que
vai lhe possibilitar pôr em prática muitas das convicções adquiridas em sua experiência diplomática,
expedindo uma série de medidas tendentes à proteção do comércio e da economia portuguesas, em
oposição ao que considerava “usurpações” dos tratados firmados com a Inglaterra. No entanto, tais
medidas, em muitos casos, eram subreptícias e até mesmo veladas, dada a importância, por ele
reconhecida, da manutenção da aliança, perante as constantes ameaças espanholas aos domínios
portugueses na América, o que não o impedia de sugerir aos aliados, sempre que podia, a possibilidade
de uma aliança com a França, como um meio de barganha em suas negociações políticas e diplomáticas.

A governação pombalina
A primeira fase da governação pombalina foi marcada por acontecimentos decisivos para o
desdobramento das relações político-diplomáticas entre Portugal e Inglaterra: a implementação do
Tratado de Madri (1750), o terremoto de Lisboa, em 1755, e a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), que
opôs a França, a Rússia e a Áustria à Prússia e à Inglaterra. A Espanha, inicialmente neutra no conflito,
aliou-se à França em 1759, quando da subida ao trono de Carlos III (1716-1788), após a morte de
Fernando VI (1713-1759), especialmente quando os ingleses começaram a atacar, no final de 1760, as
colônias espanholas das Antilhas. A diplomacia portuguesa tentou, sem sucesso, casar o rei viúvo da
Espanha e seu primogênito com infantas portuguesas, mas em 1761, com a formação do terceiro Pacto de
Família entre os monarcas da Casa de Bourbon da França, da Espanha, de Nápoles e Parma, a França
exigiu que Portugal fechasse os portos aos ingleses. Mantida a já histórica aliança, sacramentada que
estava pelo Tratado de Methuen, os exércitos franceses e espanhóis atacaram Portugal em abril de 1762,
declarando guerra posteriormente. Foi nesse período também que começou a manifestar-se de modo mais
ostensivo o descontentamento dos sectores mercantis ingleses com relação às medidas protecionistas de
Pombal, bem como as manobras de açambarcamento de trigo realizadas por comerciantes ingleses,
burlando assim o Regimento do Terreiro do Trigo.
A partir de 1762, as relações anglo-portuguesas passaram por uma série de atritos, os quais já
vinham se manifestando através da reação dos comerciantes ingleses estabelecidos em Portugal contra a
política econômica pombalina. Assim, quando ocorreu a invasão espanhola na província de Trás-os-
Montes, o então conde de Oeiras se viu obrigado, a contragosto, a solicitar auxílio militar inglês, o que
mais uma vez fazia ver a sua situação de dependência política e econômica com a antiga aliada. Na
Inglaterra, contudo, a aliança era objeto de várias críticas. Em 11 de maio de 1762, por exemplo, quando
foi apresentada na Câmara dos Comuns a mensagem do rei recomendando apoio a Portugal, o
representante dos comerciantes de Londres, Mr. Clover, colocou-se contra a proposta, sendo sua
oposição repercutida numa carta aberta dirigida ao monarca português e publicada no mesmo ano e na
mesma cidade com o título de Punch’s pollitiks. Conforme o panfleto, o primeiro passo a ser dado pelo
rei de Portugal seria “uma retirada imediata a bordo da frota britânica, com seus tesouros, toda a sua
família e vassalos fiéis [...] para os Brasis”. Assim, os conquistadores seriam deixados com a “concha”
enquanto o “núcleo” seria levado embora. Tal plano, descrito como o “sonho de fadas”, de Mr. Punch,
tinha o objetivo de alertar Pombal: “Se o comércio da Grã-Bretanha não for capaz de encorajar o da
França e da Espanha, adieu à liberdade do vosso país”. Três anos depois, o ministro britânico em Lisboa,
Mr. Hay, afirmava, num relatório enviado a Londres, que Pombal, ao mesmo tempo em que estabelecia o
princípio de que era de interesse da Inglaterra ajudar Portugal em todas as suas emergências, tomava uma
série de medidas comerciais que faziam com que tal interesse diminuísse (apud MAXWELL, 1996, p.
120).
Com efeito, para competir com os ingleses no comércio colonial, Pombal concedeu privilégios
especiais de proteção aos grandes empresários portugueses da Companhia do Grão Pará e Maranhão,
criada em 1755, assegurando-lhes o direito exclusivo do comércio e navegação das capitanias, o que fez
com que fossem expulsos do Brasil todos os comissários volantes, principal elo de ligação entre os
comerciantes estrangeiros e os produtores brasileiros, e banidos os pequenos comerciantes itinerantes. O
mesmo havia acontecido com a criação, em 1756, da Companhia Geral da Agricultura dos Vinhas do Alto
Douro, que teve o objetivo inicial de proteger os principais proprietários de vinhedos, incluindo ele
próprio, em prejuízo dos pequenos produtores, que vendiam mais do que o dobro de vinho aos
comerciantes ingleses. Estes não reagiram de imediato porque as companhias, além de não representarem
ameaças abertas à hegemonia comercial inglesa em Portugal, não violavam nenhum dos tratados. Tudo
leva a crer que se tratava de um plano camuflado de atacar os interesses ingleses, o que havia sido
possibilitado pela sua habilidade política, adquirida depois de muitos anos vivendo no exterior como
diplomata. Segundo K. Maxwell (1996, p. 67), a política econômica pombalina não pode ser confundida
com o Mercantilismo em sentido restrito, em que o comércio é regulamentado, taxado e subsidiado pelo
Estado, pois o seu intuito era fazer uso de técnicas mercantilistas para facilitar a acumulação de capital
pelos comerciantes portugueses, individualmente.
Apesar de ter permanecido em Londres como representante do governo português durante um bom
tempo – de 1739 a 1743 –, e de ter frequentado a Royal Society, uma espécie de academia científica e
literária criada em 1666 por Carlos II, da qual faziam parte nomes ilustres do período, Pombal não
dominava o inglês (AZEVEDO, 2004, p. 20), algo que se justifica tanto pelo estatuto do francês como
língua diplomática quanto pelo uso que ele fazia de intérpretes, como era costume nas embaixadas. No
entanto, sua estada em Londres o pôs definitivamente em contato com as correntes contemporâneas do
pensamento político-econômico inglês, como sugerem os livros existentes em seu gabinete londrino,
traduzidos para o francês e o espanhol, como Le marchand anglaise (1721), de Charles King, e Tratado
del uso de la aritmética política em El comercio y em La hacienda real (1698), de Charles Davenant
(1656–1714). Ademais, não há dúvidas de que sua experiência londrina proporcionou-lhe o
conhecimento necessário para incomodar os comerciantes ingleses estabelecidos em Portugal,
embargando parte dos lucros obtidos pelo rei da Inglaterra, a ponto de provocar, em 1766, um documento
formal elaborado pela feitoria britânica contra a política pombalina, Memorials of British consul and
factory at Lisbon, que reproduzia protestos escritos de comerciantes ingleses de 1759, 1760 e 1764,
contra o confisco de dinheiro de súditos ingleses e os monopólios estabelecidos pelas companhias
recém-criadas (FALCON, 1993, p. 295).

Anglofobia e instrução pública


Nos anos seguintes, entre os vários panfletos publicados pela Bolsa de Londres contra Pombal,
destacam-se dois textos. O primeiro, de 1767, tem um título contundente que resume seu conteúdo:
Pensamentos ocasionais sobre o comercio português e a inexpediência de conservar a Casa de
Bragança no Trono de Portugal, com uma completa discussão da perniciosa natureza de algumas
novas leis Pragmáticas concernentes ao comércio modernamente feitas neste Reino. O segundo é um
artigo publicado em 1768 no London Chronicle sobre “o presente estado da nação britânica”, no qual o
declínio de seu comércio com Portugal é atribuído às medidas econômicas do todo-poderoso ministro
português. Às reclamações da Inglaterra, que foram ainda mais agravadas pela prisão de um comerciante
inglês, naquele mesmo ano de 1768, acusado de transgredir as posturas municipais, o ministro rebateu,
em 1769, com as Respostas que o M. de Pombal, então Conde de Oeiras, deu às 24 Queixas que o
governo inglês fez ao de Portugal, que concluíam que, se as companhias recém-criadas não tinham
acionistas ingleses, era por culpa do desinteresse dos próprios vassalos da Inglaterra. No ano seguinte,
escreveu o “Discurso anglo-lusitano”, que mandou verter para o inglês e publicar em Londres, servindo-
se, para tanto, dos argumentos já usados em seus escritos anteriores, bem como no “Discurso político”,
escrito em 1756 e a ele atribuído (FALCON, 1993, p. 295-298).
Com efeito, dada a importância, à época, do desenvolvimento do comércio para a prosperidade
econômica de Portugal, o ministro de D. José I havia não somente legislado sobre questões consideradas
emergenciais, como as referentes ao negócio do vinho e das matérias primas produzidas no Brasil, mas
também sobre a formação de futuros comerciantes, o que só traria resultados a longo prazo. Assim, antes
da reforma dos Estudos Menores, em 1759, Pombal buscou desenvolver, no campo da Instrução Pública,
os setores relacionados com as tentativas de recuperação econômica da nação portuguesa, que, embora
possuísse uma história de conquistas e riquezas, estava em decadência, especialmente na América do Sul,
onde a sangria, causada pelos jesuítas, negociantes ingleses, colonos, escravos libertos bem-sucedidos e
contrabandistas, impedia um melhor aproveitamento do ouro e dos diamantes da colônia. Foi com esse
intuito que foi criada, pela Junta do Comércio, a Aula do Comércio, cujos estatutos foram publicados
com o Alvará de 19 de maio de 1759, em razão da falta de formalidade na distribuição e ordem dos
Livros do Comércio, tida como uma das causas da decadência de muitos negociantes, bem como da
ignorância da redução dos dinheiros, pesos e medidas, câmbios e outras matérias mercantis, o que
causava grandes prejuízos a Portugal, sobretudo em suas negociações com as nações estrangeiras. Com
os mesmos objetivos foi criada, pela Junta Administrativa da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas
do Alto Douro, uma Aula de Náutica, com o Decreto de 30 de julho de 1762 (OLIVEIRA et alii, 2010, p.
49-102).
Um ponto recorrente no discurso da legislação pombalina relativa à instrução comercial diz respeito
à necessidade de tornar esta profissão digna para os nobres e a nascente burguesia mercantil, deixando de
relacionar-se, no imaginário popular, com as atividades plebeias. O governo português, nesse sentido,
buscava formar um novo homem, apto a enfrentar os desafios que a modernidade impunha ao comércio: o
“perfeito negociante”. Com efeito, já em 19 de fevereiro de 1742, na carta endereçada ao Cardeal da
Mota, Sebastião de Carvalho, ao tratar do projeto de criação de uma companhia oriental, nos moldes da
que tinham os ingleses, fazia ver que as atividades mercantis, na Inglaterra, eram reputadas como nobres,
não somente pelo seu gênio, religião e costume, que não consideravam o enriquecimento terreno
pecaminoso ou indecente, mas também pela importância com que tais atividades eram tidas para o
progresso e prosperidade da nação (MELO, 1986, p. 134-135).
Por mais que suas iniciativas tenham encontrado obstáculos políticos e econômicos, o que fez com
que muitas vezes não saíssem do papel, o fato é que elas iniciaram um movimento sem precedentes de
valorização e institucionalização das atividades comerciais em Portugal. Em 29 de julho de 1803, por
exemplo, foi publicado um Alvará confirmando os Estatutos da recém-criada Academia Real de Marinha
e Comércio da Cidade do Porto, assinados por Luís Pinto de Sousa Coutinho (1735-1804), primeiro
visconde de Balsemão, conselheiro, ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino, os quais
previam o ensino de “hum systema de Doutrinas Mathematicas, e Navegação, e huma Aula de
Commercio, outra de Desenho, e duas das Linguas Ingleza e Franceza”, acrescentando “outra Aula para
as lições de hum Curso de Filosofia Racional e Moral, assim como outra de agricultura”. A condição de
ingresso para os discípulos, além da idade mínima de quatorze anos, era o conhecimento das quatro
operações da Aritmética. As aulas das línguas francesa e inglesa são tratadas especificamente do Título
XXIX ao XLIII, sendo possível verificar não apenas o seu papel como instrumento de acesso, pela
tradução, aos conhecimentos adequados às matérias da academia, mas também um pouco do seu método
de ensino, baseado principalmente na gramática e na tradução, com alguma ênfase na pronúncia, no
intuito de apreender o “gênio”, o “caráter”, o “estilo” e “gosto” de cada uma delas nos “Authores dignos
de se estudarem” (OLIVEIRA et alii, 2010, p. 61-63). A Academia Real de Marinha e Comércio da
cidade do Porto era uma reivindicação antiga da Junta Administrativa da Companhia Geral da
Agricultura das Vinhas do Alto D’ouro, que em 1785 havia solicitado a El Rei a criação de Aulas de
Matemática e Comércio. Sua Relação de 4 de janeiro de 1803, importante documento divulgado por José
Silvestre Ribeiro (1872, p. 401-402), ao reforçar os argumentos em prol da criação da academia, é
bastante esclarecedora a respeito da necessidade e utilidade do conhecimento das línguas estrangeiras
para os marinheiros e comerciantes.
Desse modo, as relações comerciais entre Portugal e Inglaterra provocaram também o incremento do
ensino do inglês e do português como língua estrangeira. Esse era um discurso frequente nos prefácios
das gramáticas e dicionários então publicados, desde A Portuguez Grammar, de 1662, escrita por um
capitão francês chamado Monsieur de La Mollière e dedicada a Carlos II da Inglaterra, logo depois de
seu casamento com Catarina de Bragança, passando por A Complete Account of the Portugueze
Language, dicionário publicado em Londres em 1701 e composto por um certo A. J. – Alexander Justice,
segundo Manuel Gomes da Torre (1996, p. 33-47) –, até a Grammatica anglo-lusitanica & lusitano-
anglica, cuja primeira edição data de 1731, de autoria de Jacob Castro. Com efeito, o objetivo principal
da primeira gramática inglesa escrita em português de que se tem notícia, conforme as palavras do autor
no prefácio, era o seu “great Use in Commerce”, isto é, sua grande utilidade no comércio. Na edição a
que tivemos acesso – a terceira, datada de 1759 e impressa em Londres –, o título completo é
Grammatica anglo-lusitanica & lusitano-anglica ou Gramatica Nova, Ingleza e Portugueza, e
Portugueza e Ingleza; dividida em duas partes”, a primeira para a “instruição dos Inglezes que
desejarem alcançar o conhecimento da Lingua Portugueza” e a segunda “para o uso dos Portuguezes
que tiverem a mesma inclinação a Lingua Ingleza. Segundo informações da folha de rosto do livro, a
primeira parte foi corrigida e emendada, e a segunda “executada por Methodo claro, familiar, e facil”. O
autor, J. Castro, era “Mestre e Traductor de ambas as Linguas” e ensinava, tanto em sua casa quanto “por
fora”, a “Ler, Escrever, Contar, e Livro de Caixa pello Modo Italiano e em pouco Tempo (sem as
costumadas Regras, Taboadas, e impertinentes ou inutils Questoens) por um Methodo, claro, patente, e
bem a provado no estilo Mercantil”, tendo já publicado um Tratado intitulado Hum presente para os
mancebos em entrando ao Contor (Compting-House), como faz questão de frisar, numa “Advertência”
escrita nas duas línguas (CASTRO, 1759, p. xii).
Em 1768, Antônio Vieira Transtagano (1712-1797) publicou em Londres A New Portuguese
Grammar, cujos diálogos familiares foram várias vezes transcritos pelas gramáticas inglesas do século
XIX. Do mesmo autor foi publicado, em 1773, A Dictionary of the Portuguese and English Language in
two parts, em cujo prefácio afirmava que a língua inglesa era necessária a todas as nações que com a
Inglaterra negociavam. Da mesma forma, Grammatica da Lingua Ingleza, ou A Arte de Fallar com
Propriedade e Correção o Idioma Inglez, publicada pela primeira vez em 1779 e escrita por Agostinho
Neri da Silva, oficial da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cônsul Geral de Portugal na
Dinamarca, enfatizava a importância da língua inglesa para os portugueses por conta das relações
comerciais anglo-portuguesas. Um ano depois, Diogo Inácio de Pina Manique (1733-1805), Intendente-
Geral da Polícia desde 1760, quando foi instituído o órgão, criou a Casa Pia, em cujo Colégio de S.
Lucas o inglês figurava entre as matérias de ensino. Caso diferente foi o de André Jacob, maçon de
origem inglesa radicado em Lisboa, que enfatizava, para além de sua importância comercial, o caráter
filosófico, científico e literário da língua inglesa, em sua Grammatica Portugueza, e Ingleza, publicada
em Lisboa em 1793, na qual afirma que o inglês era a língua da filosofia, dos Bacons, Newtons, Lockes,
Popes e Miltons, sendo, portanto, a língua que era recomendada pelos philosophes para todas as nações
de espírito nobre.
Como vimos, já no início da década de 1760, os ingleses haviam percebido o verdadeiro objetivo da
legislação econômica de Pombal, o que se nota tanto pela correspondência trocada com o diplomata
português em Londres Martinho de Melo e Castro (1716-1795) quanto pelos relatórios do representante
do governo inglês em Lisboa, Mr. Hay, nos quais informava, dentre outras coisas, que a meta de Pombal
era estabelecer um comércio ativo entre os indivíduos de Portugal e tornar inúteis os agentes
estrangeiros, como dizia em 1763. Assim, não é de surpreender que, ao requerer o auxílio militar
britânico, em 1762, o ministro tenha tomado o cuidado de não fazer referências aos tratados anglo-
portugueses, privando assim os franceses e espanhóis do argumento que tinham usado para invadir
Portugal, de que aqueles tratados eram ofensivos, e não defensivos. Como à Inglaterra não interessava
que Lisboa ficasse em mãos inimigas, seus pedidos foram atendidos. Para o comando das tropas inglesas
nessa expedição Pombal indicou o nome de Lord Tyrawly, que teve muitos filhos ilegítimos nascidos em
Portugal e havia se mostrado simpático com relação à sua política em 1752, mas que agora já estava
muito velho para o bom desempenho de suas funções, motivo pelo qual foi substituído por Wilhelm Graf
von Schaumburg-Lippe (1724-1777), neto de Jorge I por descendência ilegítima, que permaneceu no país
depois da declaração de paz, no ano seguinte, a pedido de Pombal, para ajudá-lo a reformar a estrutura
militar portuguesa (MAXWELL, 1996, p. 111).
Não sendo a preparação militar uma das prioridades do Conde de Oeiras e futuro Marquês de
Pombal, os ingleses reputavam como miserável o estado do exército português. Mesmo assim, devido à
inconsistência e às dispersões das investidas franco-espanholas, ao apoio de tropas inglesas e à chegada
a Lisboa do conde Guilherme de Schaumburg-Lippe, que era senhor de um pequeno Estado germânico e
havia se tornado marechal-general e diretor de todas as armas do exército português, o reino conseguiu
sobreviver à invasão, sendo assinado no final de 1762 um armistício entre os exércitos peninsulares. Por
outro lado, se os desdobramentos de tais conflitos denunciam a fragilidade militar de Portugal e de seus
territórios, demonstrando que o exército era um reduto aristocrático difícil de ser controlado, isso não
significava necessariamente que o governo não se preocupava com a formação e a organização das armas
portuguesas. Em 1763, por exemplo, dando continuidade a uma série de medidas tendentes à organização
dos Corpos da Milícia de Terra e Mar, D. José I decretou, no dia 10 de maio, que os Corpos de
Artilharia fossem reduzidos a quatro regimentos de doze companhias cada um. Seu regulamento,
expedido com o Alvará de 15 de julho, foi cometido ao “prudente exame, e madura consideração” do
Conde Reinante de Schaumbourg Lippe, “Meu muito amado e presado primo, e Marechal General do
Meus Exércitos”, segundo o soberano (RIBEIRO, 1871, p. 126).
Uma medida importante nesse sentido foi a Carta de Lei de 7 de março de 1761, publicando os
Estatutos do Real Colégio dos Nobres – antigo Colégio das Artes dirigido pelos Jesuítas –, aberto
oficialmente em 19 de março de 1766 e destinado à formação do “perfeito militar”. O Plano de Estudos
da nova instituição trazia novidades, pois além das matérias usuais do ensino de Humanidades (latim,
grego, retórica, filosofia, teologia), estavam presentes alguns elementos das matemáticas, astronomia e
física, e se achava recomendado o estudo das línguas francesa, italiana e inglesa. Os Estatutos do Real
Colégio dos Nobres foram recebidos com entusiasmo, principalmente pelo Diretor Geral dos Estudos D.
Tomás de Almeida, que se envolveu muito no projeto e no mesmo ano da publicação dos estatutos enviou
várias cópias para todos os governadores e comissários do Brasil. Um ano após a publicação dos
estatutos foi impressa uma Grammatica ingleza ordenada em portuguez, “na qual se explicão clara, e
brevemente as regras fundamentaes, e as mais proprias para falar puramente aquela lingua, composta e
dedicada á magestade fidelissima de elrey Dom Jozé o I, nosso senhor”, por Carlos Bernardo da Silva
Teles de Menezes, militar e “fidalgo da Caza de Sua Magestade”, conforme a folha de rosto do livro
(MENEZES, 1762, p. iii). Assim, foi durante o governo pombalino que se institucionalizou o ensino de
línguas estrangeiras modernas, dentre elas o inglês, e tal fato, ao que tudo indica, foi motivado pela sua
anglofobia.

Referências Bibliográficas
AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e a sua época. São Paulo: Alameda, 2004.
CASTRO, J. Grammatica Anglo-Lusitanica & Lusitano-Anglica: ou, Gramatica Nova, Ingleza e
Portugueza, e Portugueza e Ingleza; dividida em duas partes. A primeira para a instruição dos Inglezes
que desejarem alcançar o conhecimento da Lingua Portugueza. A segunda, para o uso dos Portuguezes que
tiverem a mesma inclinação a Lingua Ingleza. Das quaes a Primeira está corrigida e emendada, a segunda
executada por Methodo claro, familiar, e facil. 3. ed. London: W. Meadows, 1759.
FALCON, Francisco J. C. A época pombalina. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993.
MAXWELL, Keneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Tradução: Antônio de Pádua
Danesi. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
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João Maia. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
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OLIVEIRA, Luiz Eduardo Oliveira et alii, “A legislação pombalina e a história do ensino das línguas no
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RIBEIRO, José Silvestre. Historia dos estabelecimentos scientificos, literarios e artisticos de
Portugal nos sucessivos reinados da monarchia. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias,
Tomo I, 1871.
RIBEIRO, José Silvestre. Historia dos estabelecimentos scientificos, literarios e artisticos de
Portugal nos sucessivos reinados da monarchia. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias,
Tomo II, 1872.
TORRE, Manuel Gomes da. “Who wrote A Compleat Account of the Portuguese Language?”, Revista de
Estudos Anglo-Portugueses. Lisboa: Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica / Centro
de Estudos Comparados de Línguas e Literaturas Modernas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa, n. 5, 1996, pp. 33-47.

Sobre o autor
Luiz Eduardo Oliveira é professor Titular do Departamento de Letras Estrangeiras (DLES) da UFS.
Fez Mestrado em Teoria e História Literária na Universidade Estadual de Campinas (1999), Doutorado
em História da Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006) e Pós-Doutorado em
Literatura Comparada pela Universidade de Lisboa (2012). É autor de A Historiografia Brasileira da
Literatura Inglesa: uma história do ensino de inglês no Brasil (1809-1951), publicado em 2015 pela
Editora Pontes, O Mito de Inglaterra: anglofilia e anglofobia em Portugal (1386-1986), publicado em
2014 pela Editora Gradiva, de Portugal, e Gramatização e Escolarização: para uma história do ensino
das línguas no Brasil (1757-1827), publicado pela Editora UFS /Fundação Oviêdo Teixeira em 2010.
CAPÍTULO 10

HISTÓRIA, EDUCAÇÃO E A ESQUERDA LATINO-AMERICANA:


A EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL E NA VENEZUELA NO
INÍCIO DO SÉCULO XXI.
Rafael Araujo

Introdução

A
s experiências ditatoriais argentina, chilena e uruguaia iniciadas na década de 1970
principiaram a aplicação das ideias políticas e econômicas neoliberais na América Latina.
Entre os anos 1980 e 1990, período de maturação e apogeu dessas diretrizes, assistimos na
região modestos índices de crescimento econômico, ampliação da marginalização social e o desgaste dos
sistemas democráticos representativos. Decorrente desse cenário, observamos, ao final da década de
1990, a ascensão política de novos atores sociais. Com isso, foi iniciado um momento de profunda
reestruturação da política, do seu agir e da sua práxis, em virtude do protagonismo de grupos sociais de
esquerda.
A partir da eleição de Hugo Chávez à presidência venezuelana, em dezembro de 1998, vivemos uma
década de efervescência social e política que levou distintas lideranças de esquerda ao poder na região.
O desgaste social derivado das medidas neoliberais esteve entre as causas centrais para o momento
político que as nações latino-americanos viveram naquele período.
Acreditamos que a esquerda latino-americana pode ser dividida em dois grupos. O primeiro foi de
centro-esquerda. Esse possuiu um programa político análogo ao da socialdemocracia europeia. As
políticas sociais foram coadunadas aos paradigmas econômicos do neoliberalismo. Nesse caso
enquadramos os governos de Nestor e Cristina Kirchner na Argentina entre 2003-2015; de Lula da Silva
e Dilma Rousseff no Brasil a partir de 2003 e de Tabaré Vázquez e Pepe Mujica no Uruguai após 2005.
O segundo grupo foi composto por uma esquerda radical e nacionalista. Evo Morales (Bolívia),
Rafael Corrêa (Equador), Hugo Chávez e Nicolas Maduro (Venezuela) representaram um setor que se
posicionou de forma mais veemente contra os paradigmas neoliberais e que advogou pela construção do
socialismo do século XXI como uma alternativa para os povos latino-americanos.
Independente das definições que utilizemos para a analisar as esquerdas, destacamos que os dois
grupos se comprometeram com a ampliação do acesso da juventude à educação superior. Ao longo da
década de 1990, o predomínio das diretrizes econômicas neoliberais fez com que a expansão do ensino
superior ocorresse a partir da ação do setor privado. Tal aspecto fez com que 60% das universidades
latino-americanas ao final daquela década fossem privadas (VIZCAÍNO, 2007).
O fortalecimento dos paradigmas contrários ao neoliberalismo fez com que a inclusão dos setores
menos favorecidos na educação superior pública fosse uma prioridade. No Brasil, por exemplo, entre
2003 e 2011 o número de vagas ofertadas anualmente nas instituições públicas saltou de
aproximadamente 109 mil para 230 mil vagas, segundo dados do Ministério da Educação. Na Venezuela,
o número de matriculados nas faculdades públicas foi ampliado em quase cinco vezes, saindo de 337 mil
para 1.680 milhões entre 1998 e 2009. (MEC, 2012 E MPPES, 2009)
Abordaremos neste artigo os resultados iniciais de nossa investigação de pós-doutoramento iniciada
ao final de 2015 junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Federal
de Sergipe (UFS). Nossa pesquisa almeja a análise das políticas públicas para o ensino superior
desenvolvidas pela esquerda sul-americana entre 1999-2014. Realizaremos uma análise comparativa
entre Brasil e Venezuela, países que apresentaram ao longo desse período uma significativa expansão do
ensino superior público.
Esse artigo está dividido em três partes. Na primeira, analisaremos o ideário neoliberal e suas
consequências para a América Latina ao final da década de 1990. Na segunda parte, realizaremos uma
breve análise histórica da educação superior na América Latina buscando compreender os seus ciclos de
reformas e de expansão da oferta de vagas ao longo do século XX. Por fim, avaliaremos as
características centrais do ensino superior brasileiro e venezuelano com o intuito de compreender as
mudanças vividas no início do século XXI.

Neoliberalismo, crises e a esquerda latino-americana no início do século XXI


A primeira crise do petróleo, em 1973, marcou o fim da excepcional fase de expansão do
capitalismo desenvolvido ocorrida entre as décadas de 1950 e 1970. Este período, caracterizado por
Eric Hobsbawm como a “Era de Ouro”, foi marcado pelo intenso crescimento econômico mundial,
embora ela tenha pertencido essencialmente aos países desenvolvidos (HOBSBAWM, 1995).
A crise econômica iniciada em 1973 alavancou críticas ao intervencionismo estatal nas áreas sociais
e econômicas. Essas condenações ganharam projeção com as ascensões de Margareth Thatcher ao cargo
de primeira ministra na Inglaterra e de Ronald Reagan à presidência norte-americana. Esses líderes
transformaram o pensamento e a administração das estruturas econômicas dos seus países, estacando a
ingerência estatal, ao mesmo tempo em que difundiram o ideário neoliberal. (WALLERSTEIN, 2009)
Segundo David Harvey, o neoliberalismo consiste em uma teoria das práticas políticas e econômicas
que defende que o bem-estar humano pode ser conquistado a partir da liberação das capacidades
empreendedoras individuais em uma institucionalidade caracterizada por direitos à propriedade privada,
livre mercado e livre comércio. Para tal, o Estado deve criar e preservar uma ordem jurídica apropriada
a essas práticas, além de estabelecer as funções militares, de defesa, de polícia e legais requeridas para
garantir os direitos de propriedade individual e para assegurar o melhor funcionamento dos mercados.
Economicamente, o intervencionismo estatal nos mercados deve ser mínimo, pois, de acordo com os seus
apologistas, o Estado não possui informações para entender os sinais do mercado e porque grupos de
interesses poderão distorcer as ações estatais para o atendimento dos seus próprios objetivos (HARVEY,
2008).
Nesse sentido, destacamos que o neoliberalismo possui algumas características fundamentais para a
sua compreensão, tais como: (i) busca da eficiência do mercado e ataque frontal ao Estado nacional
regulador e social; (ii) ruptura dos monopólios públicos; (iii) privatizações; (iv) abertura comercial; (v)
desregulamentação dos movimentos do capital internacional; (vi) flexibilização das leis trabalhistas e
(vii) cortes nos gastos sociais (CANO, 2000).
A difusão das medidas neoliberais foi marcada pelo debate dos seus apologistas com os keynesianos
que defendiam o intervencionismo estatal. Em pauta esteve o tipo de modelo que deveria guiar o
capitalismo a partir daquele período. Segundo Hobsbawm, os embates desenvolveram-se da seguinte
forma:
A batalha entre keynesianos e neoliberais não era nem um confronto puramente técnico entre
economistas profissionais, nem uma busca de caminhos para tratar de novos e perturbadores
problemas econômicos (...) Era uma guerra de ideologias incompatíveis. Os dois lados
apresentavam argumentos econômicos. Os keynesianos afirmavam que os altos salários, pleno
emprego e o Estado de Bem-estar haviam criado a demanda de consumo que alimentara a
expansão, e que bombear mais demanda na economia era a melhor maneira de lidar com as
depressões econômicas. Os neoliberais afirmavam que a economia e a política da Era de Ouro
impediam o controle da inflação e o corte de custos tanto no governo quanto nas empresas
privadas, assim permitindo que os lucros, verdadeiro motor do crescimento econômico numa
economia capitalista, aumentassem. De qualquer modo, afirmavam, a ‘mão oculta’ smithiana do
livre mercado tinha de produzir o maior crescimento da ‘Riqueza das Nações’ e a melhor
distribuição sustentável de riqueza e renda dentro dela; uma afirmação que os keynesianos
negavam (HOBSBAWM, 2002, p. 399).
Esse debate fez com que apoiadores do neoliberalismo, como Francis Fukuyama, justificassem esse
ideário afirmando que não existiam mais horizontes para o desenvolvimento econômico para além do
liberalismo econômico. Um mundo de prosperidade material para a humanidade foi prometido pelos seus
ideólogos, como observamos no trecho a seguir:
“os princípios liberais em economia - o ‘mercado livre’ – estão hoje disseminados, conseguindo
produzir níveis sem precedentes de prosperidade material, tanto nos países industrialmente
desenvolvidos quanto nos países que, no fim da segunda Guerra Mundial, faziam parte dos países
do terceiro mundo”. (FUKUYAMA, 1992, p. 14)
A articulação da América Latina com a economia mundial com o neoliberalismo foi caracterizada
por três fases de acordo com Carlos Eduardo Martins. A primeira ocorreu na década de 1980. Nesse
momento, os Estados Unidos, sob os efeitos da crise econômica iniciada em 1973, drenaram os
excedentes da economia mundial e não ofereceram um projeto de desenvolvimento alternativo para a
região. O segundo período foi transcorrido ao longo da década de 1990. Nesta fase, se estabeleceu um
novo projeto de inserção internacional para os latino-americanos a partir da elaboração de um conjunto
de políticas públicas conhecido por Consenso de Washington. O terceiro momento ocorreu na primeira
década do século XXI. Neste momento emergiram tenazes críticas ao neoliberalismo, que sofreu
modificações e adaptações, em razão da emergência do nacionalismo de base popular e dos governos
social-liberais que realizaram, por exemplo, políticas sociais compensatórias (MARTINS, 2011).
O neoliberalismo atravessou uma crise de credibilidade na América do Sul entre a segunda metade
da década de 1990 e o início do novo milênio. Em razão disso, presenciamos a retomada do papel
regulador e coordenador do Estado, cujo intervencionismo foi recobrado enquanto um instrumento
fundamental para o crescimento econômico. A ascensão dos governos de esquerda fortaleceu a ação
estatal na elaboração de políticas sociais, o que interferiu diretamente na educação superior, como
veremos posteriormente.

Pensar a educação superior na América Latina: história, reformas e expansão


Os sistemas de educação superior da América Latina se caracterizaram em sua história recente por
dois fatores: expansão e diversificação. Na 2ª metade do século XX verificamos o aumento da matrícula
estudantil e a ampliação da infraestrutura física das universidades. Entre as décadas de 1950 e 1990, por
exemplo, o percentual de jovens entre 18 e 24 anos inscritos em cursos de graduação saltou de 2% para
18% e o número de instituições aumentou de 75 para 700 (CASANOVA, 1999). Tal tendência se manteve
nos anos 2000, período marcado pela busca de um maior nível de excelência na educação superior por
parte dos governos latino-americanos.
Segundo Cláudio Rama, três ciclos reformistas marcaram a educação superior da região. O primeiro
ocorreu no início do século XX como resposta às demandas modernizantes dos setores médios urbanos.1
Impactados pela urbanização e pelo processo de industrialização transcorridos naquele período, esse
grupo demandou a democratização, a expansão do acesso às universidades e uma nova orientação para a
formação de profissionais. Os modelos autônomos e de cogestão implementados a partir de então
ampliaram o acesso às universidades públicas, democratizando o ingresso no ensino superior a novos
grupos urbanos, algo que contribuiu para uma maior mobilidade social. Tal modelo, marcado pela forte
presença do poder público, perdurou até a década de 1970, quando os distúrbios econômicos
contribuíram para a superação desse modelo (RAMA, 2006).
O segundo período de reformas aconteceu na década de 1980. A crise econômica daquele período
dificultou o atendimento pelos governos latino-americanos das reivindicações estudantis direcionadas à
expansão do acesso ao terceiro grau. Observamos a expansão do setor privado, possibilitando a
constituição de um modelo universitário dualista, pois foi caracterizado pela presença de instituições
públicas e privadas.
Este ciclo foi baseado no incremento da cobertura, mas com diferenciação entre as instituições no
tocante à qualidade dos serviços educativos. Presenciamos uma educação pública socialmente elitizada
com restrições ao acesso, pois este se sustentou em exames meritocráticos decorrentes das limitações do
financiamento público. Paralelamente, tivemos uma educação privada socialmente restrita em virtude dos
custos das mensalidades. Isso limitava o acesso à população de baixa renda pelas dificuldades no
pagamento das mensalidades.
As restrições ao ingresso no terceiro grau não foram suficientes para deter sua expansão, mas
influíram na qualidade do ensino. As dificuldades econômicas dos interessados em cursar uma graduação
e o restrito controle da qualidade das instituições pelo poder público proporcionaram a expansão do
modelo dualista descrito acima.
Quanto às instituições privadas, estas tiveram diferenciados preços, condições de financiamento e
qualidade. Segundo Claudio Rama, a expansão do setor privado pautou-se pela presença de um pequeno
setor com qualidade e um outro maior que se orientou pelo atendimento de uma demanda insatisfeita e
com menores exigências de excelência no ensino. Assim, presenciamos um sistema de ensino superior
heterogêneo e não controlado pelo poder público (RAMA, 2006).
O início do século XXI marcou a terceira fase das reformas. A sociedade da informação e do
conhecimento, decorrente da globalização, contribuiu para uma nova fase no ensino superior. Essa possui
como um dos seus traços marcantes a internacionalização e a massificação. As demandas por vagas nos
cursos de graduação provieram da maior concorrência no mercado de trabalho e pela identificação de
que a formação superior é caminho para o desenvolvimento profissional e social.
Com isso, a educação superior latino-americana ao longo da década de 1990 expressou os seguintes
aspectos: (i) controle burocrático estatal mediante a regulação do ensino superior e financiamento das
universidades públicas, que desfrutam de autonomia acadêmica e administrativa e (ii) dualismo público e
privado, por meio do qual o Estado regulou a existência de instituições públicas e privadas
(CASANOVA, 1999).
A ampliação de matrículas no ensino superior latino-americano entre as décadas de 1990 e 2000 foi
contundente. A presença na graduação deixou de se restringir a seletos grupos. Entre 1994 e 2005 o
número de matriculados no 3º grau dobrou, pois saiu de aproximadamente 7,5 milhões para 15,2 milhões.
Além da expansão de vagas, presenciamos, a partir dos anos 2000, uma maior fiscalização e controle da
qualidade da educação superior pelo poder público, pois este buscou superar os desajustes e as
diferenças da fase anterior (TROJAN, 2010).
Os debates sobre as políticas públicas para o alargamento do acesso à educação superior na
América Latina durante a década de 1990 tiveram contribuições do Banco Mundial e da Organização das
Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Ambas colaboraram para a conformação
de políticas públicas para educação superior, embora tivessem um viés diferenciado.
O Banco Mundial, a partir de perspectivas tecnicistas e economicistas, sugeriu a redefinição das
funções estatais no ensino superior no sentido de diminuir a sua interferência. A instituição, ao mesmo
tempo, sugeriu que o poder público deveria promover um ambiente político favorável ao aprofundamento
da participação das instituições públicas e privadas com o indicativo de ampliação das funções deste
último setor (CASANOVA, 1999).
A UNESCO, por outro lado, argumentou que a expansão da educação superior deveria ser permeada
pela articulação das suas instituições com o poder público e a sociedade civil. Para tal fim, as reformas
educacionais necessitavam dos debates entre essas três esferas, com o poder público ficando responsável
pela regulação do seu funcionamento e pelas normas financeiras de desenvolvimento das instituições de
ensino superior. O cumprimento das metas de qualidade e responsabilidade social das instituições de
ensino superior perpassaria, segundo a UNESCO, pelos seguintes aspectos: autonomia institucional,
liberdade acadêmica e princípios de responsabilidade, eficácia e eficiência (CASANOVA, 1999)
Como destacado anteriormente, a ampliação das matrículas no ensino superior latino-americano
ocorreu por meio da forte presença do setor privado. Acreditamos que os desajustes econômicos entre as
décadas de 1980 e 1990, as diretrizes do Banco Mundial para a educação superior e a influência
ideológica do neoliberalismo, com a consequente limitação dos gastos públicos em políticas sociais,
contribuíram para tal cenário.
A redução dos gastos públicos interferiu na educação superior, que foi “(...) ponta de lança da
reforma do Estado” (CASASSUS, 2001). Os inócuos investimentos estatais e a incipiente fiscalização
pelo poder público derivaram em um alargamento do atendimento que não foi marcado pela qualidade. A
presença majoritária de instituições privadas, muitas delas despreocupadas com a qualidade do ensino e
com o desenvolvimento de atividades de extensão e pesquisa, colaborou para a existência de
significativas diferenças na formação profissional dos estudantes (VIZCAÍNO, 2007).
Apesar dessas críticas, constatamos que foi estendido o número de matriculados no ensino superior a
partir da segunda fase das reformas acima apontadas. Essa afirmação pode ser constatada na tabela
abaixo. O aumento da oferta de vagas no ensino superior se coadunou com as demandas da sociedade da
informação e do conhecimento, contribuindo para a massificação do ensino superior.

Número de estudantes matriculados nas instituições de ensino superior latino-


americanas entre 1970 e 2005
1970 1.640.000
1980 4.930.000
1990 7.350.000
2000 11.500.000
2005 15.293.181

Fonte: SEGRERA, 2007. (Tabela elaborada pelo autor)

Nos casos brasileiro e venezuelano, destacamos que a expansão do ingresso no ensino superior
ocorreu de forma análoga a dos vizinhos latino-americanos. Assistimos ao predomínio de instituições
privadas, pois estas se aproveitaram da incapacidade do poder público em ampliar sua participação no
ensino superior entre nas décadas de 1980 e 1990.
No início do século XXI, a crise dos paradigmas neoliberais e o bom momento econômico dos dois
países, para o qual contribuiu a elevação do preço internacional das commodities, possibilitaram a
eclosão de políticas educacionais direcionadas a uma maior participação estatal no ensino superior, com
o alargamento da presença das suas instituições. A seguir, analisaremos características do ensino
superior no Brasil e na Venezuela. Buscaremos compreender as características do alargamento do acesso
à educação pública e suas conexões com as mudanças políticas vividas na região no início do novo
milênio.

O ensino superior brasileiro e venezuelano: história, expansão e mudanças no início


do século XXI
O fim da ditadura de Marcos Pérez Jiménez, em 1958, inaugurou uma fase de ampliação do acesso à
educação na Venezuela, em todos os seus níveis, que se manteve até a década de 1980. No ensino
superior, esse período possuiu três aspectos centrais: (i) aumento do número de vagas, materializada em
uma política de “portas abertas”; (ii) expansão do número de instituições, que passou de 12 em 1958 para
83 em 1982 e (iii) autonomia universitária (SANDOVAL, 2007).
A instabilidade econômica vivida nos anos 1980 e 1990 e os distúrbios políticos daí derivados
contribuíram para que as mudanças na educação superior pública fossem pouco significativas.2 Como as
demais nações latino-americanas, o país vivenciou um período de diversificação e ampliação do ensino
superior que teve na presença do setor privado a marca central (SANDOVAL, 2010).
A eleição de Hugo Chávez para a presidência transformou politicamente o país. A chegada do
“comandante” ao governo decorreu das crises socioeconômica e política ocorridas durante a década de
1990. Ele foi eleito por uma frente eleitoral, intitulada Polo Patriótico, que apregoou transformações
sócio-políticas e econômicas, sendo o traço antineoliberal marcante em seu programa de governo.
Os mandatos de Hugo Chávez alteraram significativamente as diretrizes para a educação
venezuelana. Essa área foi considerada prioritária para o desenvolvimento da revolução bolivariana. As
transformações culturais e educacionais foram vistas enquanto centrais para o chavismo por criar um
“novo homem” e “uma nova cultura” identificados com os objetivos revolucionários do bolivarianismo.
Neste sentido, o chavismo difundiu críticas à ideologia dominante e tentou construir uma nova
hegemonia a partir da formação de um campo político constituído por setores sociais alinhados ao
chavismo. A ampliação do acesso ao ensino superior público, desencadeada pela formação da
Universidade Bolivariana de Venezuela, teve um forte componente ideológico, visto que o governo
buscou atrelar essa expansão aos paradigmas do bolivarianismo com o intuito de arregimentar
apoiadores ao seu projeto político.
Na educação superior o chavismo teve três metas: (i) conquistar a inclusão e a igualdade no acesso
em virtude do reconhecimento da exclusão dos grupos sociais subalternos; (ii) fazer com que a formação
profissional e a geração de conhecimento fossem prerrogativas eminentes da educação superior, pois
deveria responder às necessidades e aos problemas da sociedade venezuelana e (iii) melhorar a
qualidade das instituições de ensino (SANDOVAL, 2008).
Entre 1999 e 2004 a Venezuela, mais uma vez, teve um período político instável. A tentativa de golpe
de Estado em abril de 2002 contra o presidente Chávez, o paro petroleiro entre dezembro de 2002 e
fevereiro de 2003 e o referendo revogatório do mandato presidencial em agosto de 2004 consistiram nos
seus principais acontecimentos. As incertezas políticas e as dificuldades econômicas, geradas pela
contração do PIB, que segundo a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL)
encolheu 8,9 em 2002 e 7,7 em 2003, fizeram com que o governo ficasse paralisado e tivesse
dificuldades para avançar na formulação das políticas sociais (CEPAL, 2005).
Esse período notabilizou-se por incipientes avanços na educação superior, pois houve uma pequena
ampliação na oferta de vagas pelas instituições públicas ou do número destas. A superação da
instabilidade política em 2004 foi sucedida da orientação socialista do bolivarianismo. O Partido
Socialista Unido de Venezuela (PSUV) se debruçou em torno do projeto de construção do socialismo do
século XXI e a criação de novas diretrizes políticas para a educação superior foi um elemento central
para o êxito desse projeto.
O atendimento dos desafios da educação superior venezuelana perpassou pela criação do Ministério
do Poder Popular para a Educação Superior, em 2002, que ficou responsável pela formulação e controle
das políticas públicas direcionadas à educação superior. O ministério se debruçou sobre os programas
educacionais, a infraestrutura das universidades e o seu financiamento. Com ele, o governo desejou
centralizar as políticas de educação superior e controlar as suas instituições, coadunando a formação
universitária aos objetivos do seu projeto revolucionário (SANDOVAL, 2010).
De acordo com Humberto Gonzales, após a consolidação política do chavismo em 2004, foram
estabelecidas orientações estratégicas para a educação superior venezuelana. As mais relevantes
propostas foram as seguintes: (i) universalização da educação superior; (ii) fortalecimento das
capacidades nacionais para a geração, transformação e socialização do conhecimento; (iii) criação de
uma nova rede de instituições e a transformação das já existentes; (iv) municipalização da educação
superior com sua estreita vinculação às comunidades interioranas e (v) utilização das instituições de
ensino superior enquanto um instrumento auxiliar da integração e cooperação entre os latino-americanos
(GONZALES, 2008).
A extensão das instituições universitárias instrumentalizou-se por meio de dois mecanismos: a
Universidade Bolivariana de Venezuela (UBV) e a Missão Sucre. A primeira, alinhada ideologicamente
ao projeto socialista do governo, tem 12 sedes e estabeleceu em torno de mil aldeias universitárias
espalhadas pelo interior do país. Essas descentralizaram o ensino superior ao atender os municípios e às
comunidades. Por outro lado, a Missão Sucre surgiu com o intuito de complementar o acesso ao ensino
superior, pois permitiu o ingresso direto dos cidadãos que não conseguiram vagas nas instituições
oficiais. Como a UBV, ela também se utilizou de sedes comunitárias e municipais (UBV, 2015; MISIÓN
SUCRE, 2015).
Tais mecanismos fizeram com que a Venezuela possuísse o maior acesso ao ensino superior entre os
países latino-americanos ficando, apenas, atrás de Cuba no percentual de jovens matriculados no terceiro
grau. A prevalência das instituições públicas possibilitou uma maior democratização do acesso ao 3º
grau, como pode ser constatado na tabela a seguir:

Matrículas nas Instituições de Ensino Superior Venezuelanas (1989-2014)


Ano 1989 1998 2008 2014
Instituições públicas e privadas 542.236 668.109 2.260.221 2.629.312
Instituições públicas 394.198 377.107 1.673.963 ------
Instituições privadas 148.038 291.002 586.258 ------

Fonte: MPPES, 2009; MPPP, 2015

A extensão do ensino superior venezuelano nos últimos quinze merece algumas críticas. Houve uma
falta de planejamento nesse processo. A infraestrutura das aldeias universitárias e das novas instituições
é débil, algo que dificulta o processo de ensino-aprendizagem. O ingresso no terceiro grau não ocorreu
concomitantemente ao aprimoramento da formação docente. Como isso, foi afetada a qualidade das novas
instituições. As condições de permanência dos graduandos na universidade não foram fomentadas, pois
não foi desenvolvido um plano nacional de assistência estudantil proporcional ao aumento das vagas.
Com isso, dificultou-se a permanência dos estudantes oriundos de famílias pobres nos cursos de
graduação.
O chavismo, igualmente, priorizou os investimentos na UBV e na Missão Sucre, espaços de
doutrinação ideológica e de ativismo político, pois essas instituições estavam alinhadas com o
bolivarianismo revolucionário. Com isso, as instituições autônomas ficaram em um segundo plano, pois
não se beneficiaram da elevação do investimento público na educação superior.
Outra crítica reside na negação da autonomia e da diversidade tão necessárias ao desenvolvimento
do ensino superior. Ao priorizar instituições fomentadoras do “bolivarianismo revolucionário” e do
“socialismo do século XXI” o governo feriu a histórica busca pela independência em relação aos
governos, partidos políticos ou órgãos públicos na produção do conhecimento pelos docentes e discentes
universitários.
O atrelamento dos investimentos públicos ao alinhamento político-ideológico das universidades ao
projeto de poder do chavismo também contribuiu para que a ocorrência de práticas clientelistas. Atuar na
docência universitária ou em sua burocracia não significou afinidade com o chavismo, mas, muitas vezes,
no mero aproveitamento para fins profissionais das políticas públicas chavistas.
Há outro debate importante ao avaliarmos o ensino superior venezuelano. A universalização e a
democratização do acesso não levaram automaticamente a desejada inclusão social. Acreditamos que
esta somente é alcançada com a maior qualidade do ensino e este aspecto ocorreu de forma insatisfatória
na Venezuela. A inclusão social perpassa pela melhoria da qualidade do ensino e não apenas pela
democratização do acesso às instituições superiores.
No Brasil, também visualizamos a tendência de expansão das instituições privadas após a década de
1980. As dificuldades econômicas e a difusão do ideário neoliberal fizeram com que a presença dos
estabelecimentos de ensino privado se alargasse. Como nos outros países da região, essa tendência não
foi seguida do controle da qualidade do ensino pelos órgãos públicos.
Os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), entre 1995 e 2002, expressaram a
vinculação brasileira com o ideário neoliberal. Seu governo, afetado pelos distúrbios econômicos
derivados das crises financeiras ocorridas na Ásia (1997), na Rússia (1998) e na Argentina (2001),
exerceu um forte controle dos gastos públicos. Por opção política, os cortes dos gastos incidiram sobre
as áreas sociais, como a educacional. Foram diminuídos os investimentos nas universidades públicas,
aspecto que fortaleceu a presença de instituições de educação superior privadas.
Em relação à expansão das instituições privadas, José Dias Sobrinho e Márcia Brito destacaram que
esta tendência foi iniciada na última ditadura brasileira, entre 1964-1985. Contudo, a ampliação da sua
relevância ocorreu, principalmente, durante as gestões de FHC. Além do apoio do Banco Mundial à
mercantilização do ensino superior e das tentativas de desqualificação do serviço público, os
pesquisadores apontaram que os aspectos a seguir contribuíram para esse cenário: (i) a flexibilização
dos meios de controle dos resultados pelo predomínio de uma simples avaliação para os egressos e
análise das condições básicas de infraestrutura; (ii) a concessão de autonomia universitária para as
instituições privadas que tiveram desempenhos satisfatórios nos instrumentos avaliativos; (iii) escassez
dos investimentos públicos e de ampliação da oferta nas universidades públicas e (iv) maior demanda
pelo acesso à educação superior, algo que pressionou as instituições superiores pela elevação do número
de vagas (DIAS E BRITO, 2008).
Como isso, assistimos a uma forte presença de instituições privadas ao final dos anos 1990. A
lucratividade dessa atividade e a incapacidade do poder público em atender às demandas por vagas,
decorrentes do aumento dos concluintes do ensino básico, que se elevou de aproximadamente 541 mil em
1980 para 1.855 milhão em 2002, fizeram com que o setor privado alargasse a oferta de vagas.
Em 1998, 78% das instituições de educação superior eram privadas. Em 2014, esse percentual
alcançou os 87,4% (INEP, 2015). A tabela a seguir apresenta outros dados do número de matrículas no
ensino superior que nos ajudam a compreender essa tendência.

Matrículas no ensino superior (instituições públicas e privadas)


Ano Setor Público Setor Público Setor Privado Setor Privado Total
- Vagas - - % - - vagas - - % -
1985 556.680 40,7 810.929 59,3 1.367.609
2004 1.178.328 28,3 2.985.405 71,1 4.163.733

Fonte: MEC-INEP – 2005. Citado por FRANCO, 2008.


Em 2002, o Brasil foi mais uma expressão latino-americana do esgotamento de parcelas da
sociedade civil com as medidas difundidas pelo neoliberalismo. Como ocorrido na Venezuela, assistimos
ao triunfo eleitoral de um candidato de esquerda, o petista Luiz Inácio Lula da Silva. A possibilidade da
sua vitória naquele ano fez com que ocorressem pressões de agentes financeiros internacionais sobre
nossa economia. Estas se expressaram por meio da fuga de capitais, pressão inflacionária e alta do dólar.
Buscando “acalmar” o mercado financeiro, em 22 de junho de 2002, antes mesmo do início da
campanha eleitoral, o Partidos dos Trabalhadores (PT) divulgou a Carta ao Povo Brasileiro. Nesse
documento o partido se comprometeu com a não alteração das diretrizes econômicas neoliberais e com o
cumprimento dos contratos internacionais estabelecidos por FHC. Com esses compromissos, o PT
objetivou “acalmar os mercados” e criar de condições de governabilidade, caso a vitória de Lula, então
favoritíssimo na disputa presidencial, se consolidasse.
Nesse sentido, as gestões petistas foram marcadas pelo social-liberalismo. Embora não tenham
rompido com os paradigmas neoliberais, como desejado por uma parcela dos eleitores petistas em 2002,
os governos de Lula, e após 2011 de Dilma Rousseff, ampliaram a realização de políticas sociais. O
crescimento econômico, sobretudo no segundo mandato de Lula, e a reorientação das diretrizes
governamentais no sentido de alavancar os investimentos públicos em educação levaram a um novo
cenário no ensino superior brasileiro.
O petismo reconheceu o papel da universidade pública e gratuita como um instrumento de
transformação social e inserção do país no cenário internacional. O crescimento do número de
universidades públicas sustentou-se em sua interiorização pelo país e na integração com países sul-
americanos, caribenhos e lusófonos, especialmente os africanos. Entre 2003 e 2010 o número de
universidades federais saltou de 45 para 59, a quantidade de unidades foi de 148 para 274 e as
matrículas nas instituições públicas se estenderam de 596.219 em 2003 para 1.029.141 em 2011 (MEC,
2012).
A ampliação da democratização do acesso à educação superior não ocorreu, apenas, com a elevação
do número de instituições públicas. O ensino privado foi amplamente utilizado para esse fim. Foi
alavancado o número de vagas ofertadas pelo Programa Universidade Para Todos (PROUNI). Segundo
dados do MEC, a quantidade de bolsas de estudo ofertadas por meio deste programa entre 2005 e 2014
saltou de 112.275 para 306.726. Ao mesmo tempo, o petismo elevou os recursos disponíveis para o
Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) com o intuito de elevar as oportunidades de acesso ao ensino
superior. Entre 2003 e 2014 o número de atendidos por esse programa saltou de aproximadamente 276
mil para 1.9 milhão de estudantes. (PROUNI, 2015, FIES, 2015).
Observamos, porém, que o aumento do número de universidades públicas e da oferta de vagas ao
longo dos governos Lula e Dilma não arrefeceu o predomínio do setor privado. O acesso ao ensino
superior após 2003 manteve características análogas às transcorridas nas décadas anteriores. Segundo
dados do INEP, em 2014 25,05% dos matriculados no ensino superior estavam em instituições públicas
contra 74,95% nas privadas. Ao compararmos com os números de 2004 disponíveis na tabela anterior,
observamos que a tendência do predomínio setor privado não arrefeceu com as gestões petistas, mas se
alavancou, embora tenha havido um alargamento do quantitativo de instituições públicas e do número de
vagas.
O predomínio das instituições privadas levantou questionamentos sobre a qualidade do ensino.
Segundo dados do INEP, em torno de 75,65% dos docentes das instituições privadas são horistas
(35,25%) ou professores em tempo parcial (40,40%). Aferimos com esses dados a incipiente valorização
pelas instituições privadas das atividades de extensão e, principalmente, pesquisa. A realização dessas
atividades contribui diretamente para a qualidade do ensino docente e o exíguo incentivo pela grande
maioria das instituições propicia distorções na formação universitária brasileira.
No Brasil e na Venezuela tivemos um aumento do percentual do PIB investido na educação, como a
tabela abaixo demonstra. Acreditamos que o incremento na aplicação de recursos na educação decorreu
do crescimento econômico e de uma mudança nas orientações políticas que tornaram os investimentos na
educação prioritários.

Fontes: VENESCOPIO, 2015; INEP, 2015 e BANCO MUNDIAL, 2015 (Elaboração do autor)

Houve méritos dos governos do PSUV e do PT na democratização do acesso ao ensino superior. O


aumento dos investimentos na educação possibilitou a ampliação do número de instituições públicas,
como já foi destacado. Este aumento ocorreu de forma mais intensa na Venezuela do que no Brasil em
razão das prioridades políticas do chavismo, apesar de ambos terem investido um percentual semelhante
do PIB na educação, conforme observamos no gráfico anterior.
Contudo, como já foi destacado anteriormente, cremos que não há uma automática relação entre a
elevação dos investimentos ou do número de universidades e a qualidade da formação superior. Nesse
sentido, cremos que os dois países apresentam problemas análogos a serem solucionados. E o principal
deles consiste na qualificação dos cursos de graduação, em virtude dos problemas debatidos
anteriormente para cada país.

Considerações finais
Como asseveramos inicialmente, objetivamos com este artigo analisar o ensino superior no Brasil e
na Venezuela entre 1999 e 2014. Tivemos por intenção compreender as políticas públicas para esse setor
realizadas pelas gestões de Lula da Silva/Dilma Rousseff e Hugo Chávez/Nicolas Maduro.
Avaliamos que os governos do PSUV e do PT contribuíram para a democratização do acesso ao
ensino superior. Nos dois países, a ascensão de líderes de esquerda desencadeou a elevação dos
investimentos estatais em educação, a extensão do número de instituições públicas (que se interiorizaram)
e das vagas por elas ofertadas. Tais medidas beneficiaram, principalmente, os grupos sociais subalternos,
que historicamente estiveram excluídos das universidades.
Esse processo, porém, se desenvolveu de forma diferenciada nos dois países. No Brasil, a
democratização do acesso às universidades ocorreu por meio do fortalecimento do setor privado. Apesar
da elevação do número de universidades federais e das suas unidades, o número de instituições privadas
elevou-se, consolidando a sua importância. A capacidade de atendimento das demandas por vagas dos
egressos do ensino básico que não conseguiram aprovação nas universidades públicas, associada à
ampliação dos programas governamentais, como PROUNI e Fies, beneficiaram diretamente as
instituições privadas, consistindo em fatores fundamentais para o aumento da sua presença no ensino
superior brasileiro.
Na Venezuela, por outro lado, o alargamento do ensino superior ocorreu com a intensa elevação do
número de instituições públicas. O pretenso caráter revolucionário do chavismo fez com que o ensino
superior fosse visto enquanto um instrumento propiciador da ampliação da sua base social. Em razão
disso, o governo criou a sua “universidade revolucionária”, a UBV. Ao invés de se aproveitar das
instituições já existentes, como ocorreu no caso brasileiro, o chavismo formou uma nova universidade
que foi claramente identificada com os seus princípios políticos e ideológicos. Destacamos, ainda, que a
educação superior também foi universalizada pela Missão Sucre. Esta, por meio das aldeias
universitárias, criou cursos superiores em municípios, o que contribuiu para o aumento do número de
matriculados no ensino superior.
Asseveramos, ainda, que há problemas análogos na educação superior desses dois países. A
ampliação do número de vagas no terceiro grau não foi seguida da melhoria do ensino. Se na Venezuela a
rápida expansão do número de instituições públicas não foi proporcional à formação de mão de obra
docente, no Brasil o exíguo controle governamental possibilitou a disseminação de cursos de graduação
com deficiente qualidade. Ademais, nos dois países as instituições, principalmente as públicas, carecem
de infraestrutura para o exercício das atividades de ensino, o que interferiu diretamente na sua qualidade.

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Sobre o autor
Rafael Araújo é Pós-Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutor em História pelo PPGHC/UFRJ. Pesquisador associado
ao Núcleo de Estudos de História Política da América Latina (NEHPAL) da UFRRJ, ao Grupo de
Estudos do Tempo Presente (GET) da UFS e ao GEHSCAL - Grupo de Estudos em História sociocultural
da América Latina da UPE. Membro da Rede de Estudos do Tempo Presente.

Notas
1. O Cordobazo na Argentina, em 1916, consistiu no principal movimento reivindicatório da reforma
universitária na América Latina no início do século XX. Segundo José Luis Romero, os estudantes da
Universidade de Córdoba realizaram reivindicações que tinham um caráter revolucionário. Eles exigiram
a saída de professores reacionários e negligentes com o exercício docente; defenderam novos métodos de
estudos; a renovação das ideias e pesquisas; o fim da elitização das universidades; a autonomia
universitária e gestão participativa e a missão social das universidades, no sentido de sua conexão com
demandas da sociedade argentina (ROMERO, 2009
2. Entre 1989 e 1998 a Venezuela vivenciou um momento de instabilidade política e econômica. O
Caracazo em fevereiro de 1989, o impeachment do presidente Carlos Andrés Pérez em 1992, as
tentativas de golpes de Estado fevereiro e novembro de 1992 e os distúrbios econômicos do período
contribuíram para a ruptura do pacto democrático de Punto Fijo, estabelecido em 1958 e que norteou o
sistema democrático-representativo venezuelano até a eleição de Hugo Chávez ao fim dos anos 1990.
Para mais informações sobre esses temas, ver: MAYA, Margarita López. Del viernes negro al referendo
revocatorio. Caracas, Alfadil Ediciones, 2006.
CAPÍTULO 11

“TIA NAZARÉ” E A CIRCULAÇÃO DE PRÁTICAS EDUCATIVAS


NA TV SERGIPANA (1971-1979)
Rísia Rodrigues Silva Monteiro
Joaquim Tavares da Conceição

Introdução

E
ste trabalho é resultante da pesquisa que investiga a atuação da comunicadora Nazaré Carvalho
nos programas televisivos, dedicados ao público infantojuvenil, exibidos nas primeiras
emissoras de televisão sergipana na década de 1970. Apresentando os programas Clube Júnior
(TV Sergipe - 1971 a 1974) e Nosso Mundo Infantil (TV Atalaia - a partir de 1975), Nazaré foi detentora
de significativos índices de audiência nas televisões locais, encantando, divertindo e fazendo uso de
práticas educativas. A pesquisa é norteada pelas seguintes questões iniciais: O que teria levado as TVs
sergipanas, logo na fase de suas respectivas implantações, a investirem nos programas infantis? Como
esses programas eram produzidos e realizados? Além do fator entretenimento, eram pensadas questões
educativas? Teria Nazaré Carvalho, a “tia Nazaré”, como era conhecida, a intenção de educar? E quais
foram as práticas educativas utilizadas pela comunicadora?
O interesse pelo objeto ganhou mais força com a constatação da carência de estudos sobre educação
não formal na televisão local. Nazaré Carvalho é parte da história da TV sergipana e, como tal, é citada
em registros escritos, vídeos e sites. Entretanto, na historiografia educacional sergipana, não foi
identificada nenhuma pesquisa interessada na circulação e historicidade de práticas educativas nos meios
televisivos sergipanos e, sobretudo, na atuação de Nazaré Carvalho na condução de programas
televisivos dedicados ao público infantojuvenil. Corroborando com esta afirmativa, Nascimento (2003),
em seu livro Historiografia Educacional Sergipana: uma crítica aos estudos de História da Educação,
apresenta um levantamento das pesquisas de História da Educação realizadas em Sergipe, no período de
1916 a 2002. As temáticas abordadas são diversificadas, mas nenhum trabalho inclui a investigação ou
historicidade de práticas educativas veiculadas por meio da TV sergipanaI. No Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe, foram identificadas três dissertações que
incluem a televisão em suas abordagens. Todas lançam o olhar sobre a inclusão da TV, mais precisamente
do vídeo, como ferramenta educativa nas escolas1. Em nível nacional, a historiografia da educação
também não privilegiou o estudo da atuação de educadores na TV e nem da circulação de práticas
educativas nesse meio de comunicação. Assim, a título de exemplo, das 146 dissertações e teses geradas
nos programas de Pós-graduação em Educação no período de 1972 a 1988, analisadas por Bontempi
(1995), nenhuma se ocupou da educação na televisão.
Este estudo utiliza fontes diversas, a saber, livros, jornais, documentos oficiais, fotografias, vídeos e
relatos orais. As memórias, com suas singularidades, semelhanças e contradições, assumem papel
importante na reconstrução da trajetória e atuação profissional de Nazaré, principalmente diante da
precariedade dos arquivos das televisões locais relativos à fase de implantação das emissoras e dos
programas por elas veiculados. Os entrevistados foram amigos, familiares, ex-colegas de profissão de
Nazaré Carvalho e os ex-participantes e ex-telespectadores dos programas infantis.
Os relatos orais foram coletados através da técnica da entrevista com a utilização de um questionário
ou roteiro, confeccionado a partir das evidências históricas preliminarmente encontradas em outros tipos
de fontes. Levou-se em consideração que o grupo é suporte da memória, pois ela é coletiva, mas é o
indivíduo que recorda. Assim, por muito que se “[...] deva à memória coletiva, é o indivíduo que
recorda. Ele é o memorizador e das camadas do passado a que tem acesso pode reter objetos que são,
para ele, e só para ele, significativos dentro de um tesouro comum” (BOSI, 2001, p.411). Mesmo com um
roteiro pré-estabelecido, permitiu-se que os depoentes discorressem à vontade sobre suas memórias
relacionadas ao assunto. Assim, foi possível conhecer aspectos não apenas da história da TV, mas da
cidade, das pessoas, seus usos e costumes.
Somam-se a essas entrevistas material audiovisual, documentários e programas de televisão. Um dos
documentários utilizados trata dos 35 anos da TV Sergipe (TV SERGIPE, 2006), no qual constam 44
entrevistas com participantes da fase de implantação da televisão no estado, outro documentário, sobre a
vida do radialista e cantor Erílio Alves, no qual Nazaré aparece em registro fotográfico (TV SERGIPE,
2014), e uma entrevista em vídeo fornecida pela comunicadora à TV Assembleia Legislativa de Sergipe
(TV ALESE, 2006).
As fotografias também foram fontes importantes para a escrita da história dos programas televisivos,
dedicados ao público infantojuvenil, exibidos nas primeiras emissoras de televisão sergipana na década
de 1970. As fotografias utilizadas fazem parte do acervo da apresentadora Nazaré Carvalho, outras foram
coletadas em documentação escolar, arquivos pessoais de ex-colegas de trabalho e fãs da “tia Nazaré”,
jornais da época, redes socais e sites. As fontes imagéticas utilizadas assumem forma de evidência
histórica (BURKE, 2004), sem, entretanto, desconsiderar a importância, segundo Kossoy (2009), de
levar em conta o processo de construção da representação e da ficção documental. Assim, foi necessário
também interpretar as fotografias fazendo uma desmontagem do signo fotográfico.
Os jornais da época apresentam registros importantes a respeito da capital Aracaju nos anos 1970.
Através deles, também foi possível acompanhar a inclusão e atuação de Nazaré Carvalho no mundo da
comunicação. Foram pesquisados quatro jornais que circulavam em Sergipe na década de 1970: Gazeta
de Sergipe, A Cruzada, Diário de Aracaju e Jornal da Cidade.
No levantamento sobre a formação intelectual de Nazaré Carvalho, recorreu-se à própria
comunicadora e a fontes oficiais, examinando documentos escolares nos colégios onde ela estudou e no
Departamento de Inspeção Escolar da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe.
Operou-se separando, reunindo e transformando em documentos históricos as informações ou os
objetos coletados (CERTEAU, 2002). A opção foi por uma “história descontínua”, buscando
compreender as informações que os agentes quiseram registrar nas fontes analisadas. Levou-se em conta
que os “documentos” são repletos de significados e interesses, devendo ser analisados como um
monumento no sentido de que todo documento é uma “montagem” que deve ser esquadrinhada pelo
historiador para entender a “imagem” que os agentes históricos quiseram nele representar (LE GOFF,
2003).
Este trabalho tem como recorte temporal os anos de 1971 a 1979, período em que foram veiculados
programas televisivos dedicados ao público infantojuvenil na TV Sergipe (1971-1974) e na TV Atalaia
(1975-1979). A escrita histórica é feita numa perspectiva da História Cultural e leva em conta as
apropriações e representações postas em circulação nos programas apresentados pela radialista e
jornalista Nazaré Carvalho. A pesquisa considera e aborda dois aspectos: o primeiro trata da trajetória
de vida de Nazaré Carvalho e a sua inserção no campo da comunicação, contextualizando com aspectos
importantes da fase de implantação das duas primeiras emissoras de TV locais; o segundo é uma
abordagem preliminar dos conteúdos veiculados pela apresentadora nos programas infantis, elucidando
práticas educativas difundidas por meio das emissoras de televisão sergipanas.

Trajetória de vida de Nazaré Carvalho


Maria Nazaré Carvalho nasceu no município de Nossa Senhora das Dores, Médio Sertão sergipano,
em 25 de agosto de 1949. Aos quatro anos de idade, mudou-se com a mãe, professora primária do Estado
de Sergipe, o padrasto, um policial militar, e os quatro irmãos para a capital Aracaju. Inicialmente,
Nazaré foi alfabetizada pela mãe, tendo depois passado pelo Curso Ginasial do Colégio Senhor do
Bonfim, também cursou o Curso Pedagógico no Instituto de Educação Rui Barbosa e no Colégio Dom
José Thomaz. Frequentou também, como ouvinte, disciplinas do Científico no Colégio Estadual Atheneu
Sergipense e finalmente graduou-se em Letras na Universidade Federal de Sergipe.
Examinando a vida escolar ginasial de Nazaré Carvalho no Colégio Senhor do Bomfim e nos
documentos disponíveis no Departamento de Inspeção Escolar da Secretaria de Estado da Educação de
Sergipe, é possível obter informações sobre as disciplinas que ela cursou (Português, Francês, Inglês,
Latim, Matemática, Ciências Naturais, História do Brasil, Geografia, Desenho, OSPB e Canto
orfeônico2), frequência e desempenho. Quanto a este último, Nazaré foi uma aluna com rendimento
escolar mediano, tendo destaque apenas em História, OSPB e Português (SERGIPE, [196?]).
A primeira evasão escolar de Nazaré, na 4ª série ginasial, aos 16 anos de idade, é explicada pelo
nascimento de sua filha. Expulsa de casa pela família, por ser mãe solteira, Nazaré e a filha foram
acolhidas por uma vizinha. A escola deixava de ser prioridade, era preciso trabalhar para prover o
sustento dela e da filha. Nesse intuito, seu primeiro emprego foi vendendo cera líquida em domicílio. O
segundo foi como caixa em um supermercado, onde ela conheceu as pessoas que a levariam para o mundo
das comunicações, como conta Nazaré:
[...] passavam no meu caixa todas as tardes dois senhores simpaticíssimos e diziam: ‘fale alguma
coisa, menina’. E eu: falar o quê? Eu era muito dócil. Um dia, um disse: ‘você quer fazer um teste
para trabalhar em rádio?’ Eu perguntei: Como é trabalhar em rádio? Ganha muito? Ele disse:
‘ganha mais do que você ganha aqui’. Quem eram esses cidadãos? Hélio Fernandes e Humberto
Mendonça, dois jornalistas e radialistas [ da Rádio Cultura]. Eles me levaram para o rádio.
Comecei como discotecária e apresentadora do programa “Boa tarde, madame” (CARVALHO,
2014).
Pouco tempo depois, ela foi convidada para trabalhar na Rádio Jornal. “Eu saia de uma emissora
para outra perguntando: quanto é? É mais? Eu vou. Nunca pensei em outra coisa a não ser em ganhar mais
para poder cuidar de minha filha” (CARVALHO, 2014). Considerada pelas pessoas do seu convívio
como uma pessoa simpática, inteligente e dedicada, Nazaré logo conquistou os ouvintes e os colegas de
trabalho. Registra J. Batista na coluna “Panorama radiofônico” no Jornal A Cruzada:
No dia 24 de agosto3 próximo passado, (sábado), esteve aniversariando nossa ilustre coleguinha
Nazaré Carvalho, discotecária da Rádio Jornal de Sergipe e que também atua (de maneira
brilhante) como locutora. Muito estimada pelos seus colegas, Nazaré Carvalho foi alvo das mais
significativas homenagens por ocasião da passagem do seu natalício. [...] Nesta oportunidade,
porém, queremos desejar sinceramente muitas felicidades e votos de intenso sucesso em sua
carreira artística. Aquele abraço, Nazaré!! (A CRUZADA, 1968, p. 3).
Igualmente, sobre a passagem de Nazaré pela Rádio Jornal, o radialista e jornalista Raymundo Luiz,
diretor da emissora à época, lembra que:
Nazaré era a ‘carregadora de piano’, a faz tudo da empresa. Gerente, chefe do escritório, locutora,
controlista [...] Uma garota de 18 ou 20 anos: não chegaria a 1,60, cabelos pretos, ondulados, sem
qualquer tipo de ostentação, modesta, mas eficiente no que fazia. Passava o dia na rádio, também
não era pra menos, tinha de fazer tudo, desde atender o telefone, receber contratos de comercial,
enfim, tinha de ‘tocar mais de sete instrumentos’. Sempre jovial e alegre (SILVA, 2015).
A necessidade de ganhar dinheiro, a pouca experiência de vida, a falta de apoio familiar podem ter
interferido no rendimento escolar de Nazaré Carvalho durante o ginásio. Já profissionalmente, ela
crescia. Era chamada para apresentações de shows e concursos, passava a ser conhecida na cidade e
ganhava prestígio. Com a filha aos cuidados da vizinha, era possível trabalhar muito e não abandonar os
estudos. Aos 21 anos de idade, Nazaré4 se matriculou no curso noturno de Formação de Professores
Primários no Instituto de Educação Rui Barbosa, a Escola Normal. Cursou Português, Matemática,
História, Geografia, Educação Moral e Cívica, Didática, Psicologia e Línguas estrangeiras modernas,
conseguindo a aprovação final (SERGIPE, [196?]).
O 2º e o 3º ano do curso Pedagógico Nazaré estudou à noite, no Colégio Dom José Thomaz. A escola
era dirigida pelos professores Raimundo Valquírio Correia Lima e Isabel Sobreira Correia, cearenses
que se estabeleceram em Aracaju, em 1952 (COLÉGIO ..., 1971, 1972). O colégio oferecia o Curso
Primário e o Ginasial e ainda os Cursos de Pedagogia, Contabilidade, datilografia e artes domésticas
(GAZETA DE SERGIPE, 1969, p. 6).
Nos arquivos do Colégio Dom José Thomaz, na documentação dos anos de 1971 e 1972, encontra-se
um farto material sobre o curso e sobre a vida escolar de Nazaré Carvalho. Pistas sobre onde e como ela
aprendeu a ensinar. Constam listas de professores e suas disciplinas lecionadas, horários, relação de
alunos por série, conteúdo das disciplinas, atas de resultados finais, valor da anuidade e da remuneração
de professores, entre outros documentos. Na capa do dossiê escolar, está fixada uma fotografia da jovem
Nazaré Carvalho, a qual revela que, no 2º ano do Curso de Pedagogia5, ela estudou Português,
Matemática, Biologia, Didática, História da Educação, Administração Escolar, Educação Moral e Cívica
e Psicologia. Em duas dessas disciplinas ela obteve média final 10, e sua menor nota foi 7,4. O dossiê da
aluna, que traz na capa uma fotografia da jovem Nazaré Carvalho, revela que a média global totalizou
8,6, a 8ª maior nota em uma turma de 39 alunos, na qual apenas dois eram do sexo masculino. No 3º ano
pedagógico, Nazaré estudou Estatística, Estudos Sociais, Didática, Filosofia, Português, Higiene e
Práticas de Ensino – obtendo ótimas notas nestas três últimas. Nas demais, alcançou desempenho regular
ou fraco, o que determinou uma média geral final de 6,4 (COLÉGIO ..., 1971, 1972).
Figura 1: Nazaré Carvalho aluna do Colégio Dom José Thomaz (1971)

Fonte: Acervo do Colégio Dom José Thomaz. Autoria desconhecida.

Enquanto se forjava professora primária, Nazaré permanecia nas ondas do rádio e marcava presença
também na fase experimental de implantação da primeira emissora de televisão: a TV Sergipe.

Sergipe entra na Era da TV


Os primeiros movimentos para a chegada da televisão em Sergipe começaram no início dos anos
1960, dez anos depois da inauguração da primeira emissora de televisão no Brasil - a TV Tupi Difusora
de São Paulo - implantada pelo jornalista e empreendedor Assis Chateubriand (TV SERGIPE, 2006;
BARBOSA, 2010). O representante comercial da Empire Rádio e Radiola em Sergipe, Irineu Fontes, viu
em São Paulo a revolução que a televisão estava fazendo e pediu à empresa um aparelho de TV e uma
antena para demonstração: “Eu, na minha casa, comecei a testar o canal 2 de Recife e peguei a imagem
com muito chuvisco. Aí eu fui trazendo amigos, parentes, comerciantes [...] pra ver. Eles não acreditavam
que eu pegasse televisão em Aracaju” (TV SERGIPE, 2006). Para melhorar a recepção do sinal, o
prefeito da capital, à época, Godofredo Diniz, entusiasmado com a novidade, liberou verba para a
compra de uma antena repetidora. O sinal da TV Jornal Rádio Comércio de Recife passou a ter maior
alcance.
Segundo Antônio Correia, a chegada dos primeiros aparelhos televisores no estado foi um
acontecimento: “Eu trazia um carregamento misto: cerveja num lastro e os televisores em cima. O carro
de propaganda na frente enaltecendo o povo sergipano” (TV SERGIPE, 2006). Era um aparelho caro e só
chegava às casas mais abastadas da cidade. Ter televisão “era uma espécie de privilégio, quase um
distintivo social” (COSTA, 2015). Os modernos equipamentos eram vendidos nas melhores casas do
ramo da capital, Aracaju. Nos jornais, os anúncios das “Lojas Diamante” convidavam para a “Feira da
Philips”, na qual “cada produto era um espetáculo de qualidade e preço”. Na ilustração da propaganda
da loja, era exibido o televisor Philips Stabilimatic de mesa, que prometia “estabilidade automática total
de imagem e som” (GAZETA DE SERGIPE, 1969, p.5). Igualmente, a loja de eletrodomésticos
“Eletrolar” oferecia o mesmo produto com facilidades de pagamento: “Compre na Eletrolar e diga como
quer pagar”, alardeava o reclame. Por sua vez, o reclame da “Movelaria Brasileira” oferecia a maior
promoção do ano: “Tudo na Valsa!” (A CRUZADA, 1966, p. 8). Todavia, o som e a imagem que
chegavam às casas, até pela falta de uma antena repetidora potente, estavam muito aquém do que fora
prometido.
Figura 2: Propaganda de aparelhos televisores – Lojas Diamante (1969)

Fonte: Gazeta de Sergipe, 31 de jul.1969, p.5.

Mas não bastava ter um aparelho e ver o mundo através dele, era preciso ter uma emissora de TV
local. Em 1966, incentivados pelo radialista Nairson Menezes, que já havia trabalhado na TV Excelsior
de São Paulo, nove empresários decidiram implantar a primeira emissora de TV do estado. O capital
necessário foi dividido em 10 cotas. Nove foram compradas pelos empresários fundadores6 e a décima
foi dividida em ações ordinárias e vendidas a quem se interessasse. Nascia a primeira emissora de TV
do Brasil com participação popular. Para despertar o interesse das pessoas pelas ações, foi montado um
estande de vendas na praça central da cidade. Um sucesso! Afinal, quem não queria ser dono de uma
emissora de TV? Aracaju ainda não conhecia realmente o progresso. Era a “cidade-menina vestida de
Sol”, título singelo dado pelo ex-governador Luiz Garcia para a capital ainda com “ares provincianos”.
Conta o jornalista Raymundo Luiz:
Os recursos arrecadados pela prefeitura de Aracaju eram muito limitados, o que impedia,
certamente, gestões que desenvolvessem nossa capital. Simultaneamente, a evolução
socioeconômica de Aracaju processava-se em ritmo lento, quase parando. Diversão: cinemas. Um
de primeira linha, o Palace, mais uns quatro de menos categoria: Rex, Vitória, Guarany, Rio
Branco [...] Era no Cine-teatro Rio Branco que aconteciam as melhores apresentações teatrais
[...]. As retretas da Praça Fausto Cardoso começavam a perder fôlego, enquanto clubes sociais
como a Atlética, o Iate Clube de Aracaju, Cotinguiba, Vasco realizavam festas que atraiam as
atenções e preferências da sociedade (SILVA, 2015).
Antes de ser inaugurada oficialmente, a TV Sergipe fez alguns experimentos. As primeiras
transmissões, por breves períodos, foram realizadas em 1967 e 1968. Uma nova autorização, concedida
em 1969, permitiu que os sergipanos pudessem acompanhar pela emissora local grandes acontecimentos,
como a chegada do primeiro homem à Lua e a Copa do Mundo de 1970.
Com a chegada da Petrobras a Sergipe, Aracaju começa a passar por grandes transformações. “E aí
começaram a vir as grandes empresas que trabalhavam para Petrobras. [...] Sergipe já era, naquela
época, o segundo maior produtor de petróleo em terra. E já se havia descoberto petróleo no mar. [...]
(COSTA, 2015). Além da presença da Petrobras, outros fatores ajudaram no desenvolvimento do estado.
Segundo Dantas (2004), algumas orientações das políticas nacionais favoreceram também a expansão da
economia capitalista interna, que ganhou mais dinamismo e funcionalidade. Cresceu a importância dos
empresários urbanos, especialmente da construção civil, que passaram a gozar de mais poder de pressão
sob os pleitos eleitorais e junto aos projetos governamentais (DANTAS, 2004). Foi nesse cenário
promissor que, no dia 12 de maio de 1971, a Rádio e Televisão de Sergipe entrou de fato em fase
experimental e, em 15 de novembro, foi inaugurada oficialmente. A imprensa registrou a chegada do
“caminhar civilizatório”:
Televisão – Finalmente na próxima segunda-feira encerra-se a novela do vai-não-vai da nossa TV
Sergipe, Canal 4. Definitivamente no ar no dia 15 de novembro de 1972 [sic]7, data de muito
significar para os sergipanos. Iniciamos de fato a era da comunicação, do entretenimento pelas
imagens como antes era feito somente com os sons. É um dia que ficará lembrado [...] como o
início do nosso caminhar civilizatório em busca da sintonia que deverá ser nacional e universal,
tal o valor da nossa assistência regional (GAZETA DE SERGIPE, p.3, 1971).
A emissora começou como afiliada da Rede Tupi e sua programação tinha cerca de seis horas de
duração “[...] Acival Gomes apresenta o primeiro telejornal da emissora. [...] A professora Nazaré
Carvalho apresenta o “Clube Júnior”. As crianças são levadas para o estúdio e, ao lado da tia Nazaré,
brincam e se divertem com desenhos animados” (TV SERGIPE, 2006).

Os programas infantis da “Tia Nazaré”


O programa “Clube Júnior”, realizado na TV Sergipe, durava inicialmente 30 minutos. Nazaré conta
que atuava de forma quase improvisada, pela “intuição”, e sob o comando de Luiz Carlos Campos, seu
mentor. “Tudo veio dele”. (CARVALHO, 2014). Luiz Carlos Campos veio de São Paulo para assumir a
área comercial e artística da TV Sergipe. Publicitário formado na Escola Superior de Propaganda de São
Paulo, “seu” Luiz montava a grade de programação, vendia comerciais e fazia de tudo um pouco. Ele já
havia trabalhado na produção artística do famoso “Grandes atrações Pirani”, na TV Tupi, em São Paulo.
O programa apresentava também quadros direcionados ao público infantojuvenil (CAMPOS, 2015).
Outros programas infantis da TV Tupi também serviram de inspiração para Luiz Carlos Campos8. Assim,
o “Clube Júnior” tinha um modelo a seguir.
A carismática e alegre apresentadora abria o programa com músicas infantis. Durante o programa
dava conselhos, lia cartinhas, elogiava as caligrafias, mostrava fotos e desenhos, selecionados entre os
mais de 100 recebidos por semana, e exibia desenhos animados da Hanna- Barbera. Crianças, a maioria
“sugeridas”9 pelos pais, se apresentavam cantando e dançando. “Tia Nazaré” elogiava o talento dos
pequenos astros: “Eu não disse pra vocês que ele era ótimo? Olhe, tia Nazaré vai lhe dar um beijo, viu?
[...] E agora vamos para mais um desenho animado. A produção era essa” (CAMPOS, 2015).
E de onde teria vindo essa facilidade para lidar com as crianças? As aulas de Didática, Canto
Orfeônico, Educação Moral e Cívica, Psicologia, entre outras disciplinas dos currículos do ginásio e do
pedagógico cursados por Nazaré Carvalho certamente contribuíram para o desempenho da comunicadora.
Além disso, embora timidamente, ela já havia lidado com o público infantil no programa “Carrossel
Infantil”, realizado aos domingos, no auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e
transmitido pela Rádio Jornal. A apresentação era de Erílio Alves e Nazaré Carvalho e Jairo Alves eram
os coadjuvantes. “Há cada domingo nós convidávamos, duas, três ou quatro escolas. [...] podiam trazer
apresentações das escolas, poesias, esquetes, participar do quadro de calouros” (ALVES, 2014).
Segundo o jornalista Ronaldo Moreira, um dos participantes do Clube Júnior, os programas
apresentados por Nazaré Carvalho não tinham grande produção: “[...] sentada no chão ao lado de várias
crianças. Além do conteúdo dos programas, a figura de Nazaré era marcante para quem assistia. Ela era
uma espécie de superstar do mundo infantil. Era mesclado de entradas ao vivo de Nazaré lendo as
cartinhas e mostrando as fotos de quem as escreveu [...]” (MOREIRA, 2014). A voz, a dicção perfeita e
as características físicas são sempre lembradas. O mesmo ocorre também com o sotaque de Nazaré. A
esse respeito, a apresentadora explica:
Eu falava suave e com muito sotaque [local]. Foi aí que Luíz Carlos me mandou para o Rio de
Janeiro estudar com Cynira Arruda e Íris Lettiere10. Passei 60 dias estudando dicção, postura
[como voltou diferente]... aí as pessoas me chamavam de afetada. Não sabiam que eu fui obrigada
a falar daquele jeito (CARVALHO, 2014).
Indiferentes às críticas, as crianças adoravam a “tia Nazaré”. Conta Idalina Campos11: “Ela agradava
muito as crianças [...] Aonde ela ia, conhecidíssima, aquele cabelinho dela [curto], brincando, ‘tia
Nazaré chegou!’ E aquele alvoroço...eu não sei de onde saia tanta criança em volta dela. [...] era ótima
com as crianças” (CAMPOS, 2015). E, para os colegas de profissão, ela era competente, inteligente e
atraente: “Eu era locutor e fazia a abertura da televisão [...]. Depois apresentava o programa de Nazaré.
[...] uma excelente colega [...] Era linda, linda e muito cobiçada” (FONTES, 2014). Assim, Nazaré
adentrava no mundo da televisão buscando novas interpretações, incorporando práticas e mudando
posturas. Certamente ela rompia com visões e conceitos que havia aprendido em casa. Pelos relatos
colhidos, é possível identificar apropriações e representações da comunicadora. Apropriação aqui
tomada no entendimento de Chartier (1990, p. 20), que “tem por objetivo uma história social das
interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais,
culturais) e inscritas nas práticas que as produzem”.
Mais músicas, brincadeiras, desenhos, gincanas entre escolas, prêmios e mais tempo no ar. E tudo em
cores. Era o “Nosso Mundo Infantil”, o novo programa da tia Nazaré que estreava em 1975 com a
implantação da nova emissora de televisão de Sergipe: a TV Atalaia. A comunidade foi convidada para
inauguração.
AVISO - ATALAIA CANAL 8 tem o prazer de convidar as autoridades civis, militares e
eclesiásticas, e ao povo sergipano da Capital e do Interior do Estado, para o ato de sua
inauguração que ocorrerá [...] Às 17 horas do próximo 17 de maio de 1975, data em, que se
comemora o Dia Internacional da Comunicações. Esperando contar com sua presença e
participação [...] (GAZETA DE SERGIPE, p.5, 1975).
A TV Atalaia, como a TV Sergipe, não dispõe de gravações em vídeo dos seus primeiros programas.
Entretanto, relatos de memórias e fotografias de acervos particulares contribuíram para a escrita e
compreensão da história da atuação de Nazaré Carvalho no comando de programas televisivos para o
público infantojuvenil. Na figura em sequência, são apresentadas crianças de uma escola, provavelmente
durante uma apresentação junina, no programa “Nosso Mundo Infantil”. Uma professora acompanha
atenta a “dança” do grupo que é recepcionado pela sempre sorridente “Tia Nazaré”. A parede do estúdio
foi decorada com uma mistura de motivos juninos, personagens de gibis nacionais e internacionais,
peneiras, vassoura e candeeiro. Esse é um registro bastante elucidativo da costumeira presença de alunos
nos programas televisivos.
Figura 3: Escola Santa Joana D’Arc no Programa “Nosso Mundo Infantil” TV Atalaia (1976)

Fonte: Acervo de Nazaré Carvalho. Autoria desconhecida.

Por meio das memórias de ex-participantes do programa, é possível ampliar a compreensão da


participação de escolas nos programas infantojuvenis apresentados por Nazaré Carvalho:
[...] A diretora do colégio era a organizadora das caravanas dos alunos que iam [...] Tinha disputa
de colégio para responder perguntas culturais. Eu lembro bem que tia Nazaré dava conselhos
sobre respeitar os pais, questões de higiene, ir à escola. No programa eram construídos valores
(SANTANA, 2014).
A apresentadora também relata suas experiências na condução dos programas televisivos:
[...] NA TV Atalaia já começamos praticamente a tarde toda [...] tinha calouros jurados, crianças e
adultos. [...] Nós tínhamos patrocinadores que distribuíam muitos prêmios, bicicletas, caderneta
de poupança... Tinha gincana: colégio × colégio. Eram tarefas que as escolas recebiam sobre
Educação, História e Cultura. Aí a gente falava, por exemplo, a Semana do Trânsito, vamos falar
da importância [...] Na TV Atalaia, passamos a levar colégios públicos e particulares. Então, não
havia nenhuma distinção [...] havia uma mesa redonda onde elas sentavam e discutiam as ações
públicas das cidades delas. Assim: ‘na minha cidade jogam lixo na água no rio’. Tratávamos de
cidadania. A gente até dizia: Moral e Cívica na TV (CARVALHO, 2014).
Os programas foram realizados na década de 1970, quando o país vivia a ditadura militar e o ensino
de conteúdos de moral e civismo era incentivado pelo governo. Mais que isso: era lei. O Decreto-Lei nº
869, de 12 de setembro de 1969,12 dispunha sobre a inclusão da Educação Moral e Cívica como
disciplina nas escolas em todos os graus e modalidades dos sistemas de ensino do país. Em seus oito
artigos, a mencionada norma tratava da obrigatoriedade do ensino da disciplina, que teria como
finalidade a defesa do princípio democrático, a preservação do espírito religioso, o culto à Pátria, aos
seus símbolos e tradições, a preparação do cidadão para o exercício das atividades cívicas, entre outros
fins relacionados. O Decreto-Lei também discorria sobre a necessidade da prática educativa da moral e
do civismo através de atividades extraclasse e de orientações dos pais. Igualmente, estabelecia a criação
no Ministério da Educação e Cultura, da Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC). Caberia à
Comissão, dentre outras atribuições, influenciar e convocar a cooperação, para servir aos objetivos da
Educação Moral e Cívica, das instituições e dos órgãos formadores da opinião pública e de difusão
cultural como jornais, revistas, teatros, cinemas, estações de rádio e de televisão. O Decreto-Lei nº 869
foi regulamentado em 14 de janeiro de 1971. Com a reforma do Ensino de 1º e 2º graus, realizada através
da Lei nº 5.692 de 11 de agosto de 1971, a obrigatoriedade do ensino da disciplina Educação Moral e
Cívica foi mantida.
Uma das músicas cantadas na abertura dos programas da “Tia Nazaré”, a “Canção da criança”, de
Francisco Alves, reflete esse sentimento. Na gravação original, a música era precedida da declamação
dos seguintes versos: “Brincando, marcha o menino de hoje. Lutando, marchará o menino de amanhã.
Crianças despreocupadas desse Brasil-Menino cujas glórias hão de colher os homens grandes que
dominarão o Brasil Gigante [...]”. E todos cantavam juntos: “Criança feliz, feliz a cantar. Alegre a
embalar seu sonho infantil. Oh, meu bom Jesus que a todos conduz, olhai as crianças do nosso Brasil13
[...]”.

Considerações finais
A pesquisa deste objeto tão rico ainda tem um longo caminho a percorrer. Neste trabalho, deu-se
conta de investigações e resultados preliminares. É possível concluir que, nos programas comandados
pela “tia Nazaré”, aprendia-se a contar, estimulavam-se o desenho, a pintura, o canto, a boa caligrafia, o
respeito aos pais, a valorização da família, entre outros ensinamentos.
De outro modo, o Brasil vivia uma ditadura militar e, oportunamente, como se fazia nas escolas, os
programas televisivos infantis pregavam o amor à pátria e o civismo exacerbado. Era preciso ensinar as
crianças a serem “bons” filhos, alunos e cidadãos obedientes.
O conteúdo dos programas apresentados por Nazaré Carvalho, em parte, seguia esse ideário moral e
cívico transmitido pelos órgãos oficiais. Assim, as televisões sergipanas, logo nos seus primeiros
programas infantis, de forma intencional ou não, ao passo que procuravam entreter e garantir a audiência
com suas produções, acabaram por inculcar diversos conteúdos educativos.

Referências e fontes
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A CRUZADA. Aracaju/SE. 24 mar.1966. p.8.
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Escola Normal, 1º ano Pedagógico, [196?].
SERGIPE. Divisão de Inspeção Escolar (DIESP-SEED/SE). Dossiê escolar de Nazaré Carvalho,
Colégio Senhor do Bomfim, [196?].
TV SERGIPE – 35 ANOS - Nossa história (DVD). Direção, Roteiro e Edição- Dida Araújo.
Coordenação de produção: Fernando Petrônio. Direção de imagem- Humberto Alves. 88min, Núcleo de
Produções Especiais da TV Sergipe, Aracaju/SE: 2006.
TV SERGIPE. Programa TERRAS SERIGY (DVD) - Goiabinha TV Sergipe. 15min. 8 de março de
2014. Aracaju/SE: 2014.

Sobre os autores
Rísia Rodrigues Silva Monteiro é mestranda em Educação (PPGED-UFS), graduada em
Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela Universidade Tiradentes (1994). Membro do
Grupo de pesquisa História da Educação: intelectuais, instituições e práticas escolares (UFS). Atuou
como professora colaboradora voluntária na Humana People to People nos EUA e em Moçambique
(2011/2012), colaborando na formação de professores primários (Educomunicação) no Development
Instructor Program. Atualmente trabalha como jornalista na empresa Destaque Assessoria de
Comunicação e Marketing Ltda.
Joaquim Tavares da Conceição é Doutor em História (2012) pelo Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal da Bahia, Mestre em Educação (2007) e Graduado em História pela
Universidade Federal de Sergipe (1993). Professor efetivo da Universidade Federal de Sergipe da
Carreira do Magistério do Ensino Básico Técnico e Tecnológico, lotado no Colégio de Aplicação
(CODAP-UFS) e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFS. Líder do
Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação: Memórias, sujeitos, saberes e práticas
educativas (GEPHED).

Notas
1. São elas: A experiência do Vídeo Escola em Aracaju (1997), de Ronaldo Linhares Nunes; Curso de
TV na Escola e os desafios de hoje – sua materialização em Sergipe (2003), de Andrea Karla Ferreira
Nunes, e Educação Ambiental: uma análise dos vídeos do Programa TV Escola (2004), de Fábio Costa
Figueirôa.
2. Nas escolas brasileiras, o Canto orfeônico tornou-se obrigatório no currículo a partir de 30 de abril de
1931. Em Sergipe, a prática teve início na Escola Normal em 1934 e só foi retirada do currículo em
1971, através da Lei nº 5.692/71. A partir daí passou a fazer parte da disciplina Educação Artística.
Conforme SANTOS, Elias Souza dos. Educação Musical Escolar em Sergipe: uma análise das práticas
da disciplina Canto orfeônico na Escola Normal de Aracaju (1934-1971). Dissertação de mestrado,
USP/SP 2012).
3. O colunista se engana quanto à data do aniversário de Nazaré Carvalho. O correto é 25 de agosto.
4. Nazaré contou em entrevista que também foi aluna do Colégio Atheneu Sergipense, onde teria feito
parte do Ginásio e do Científico como aluna ouvinte. Teria contado com essa facilidade porque a mãe
lecionava no colégio. No entanto, nos registros do Atheneu, até o momento, não foi localizado nada que
comprove a passagem de Nazaré Carvalho por aquele colégio.
5. 1971, ano de melhor desempenho escolar de Nazaré, coincide com o ano de implantação da TV
Sergipe e estreia do programa infantil comandado por ela.
6. Os empresários fundadores da TV Sergipe foram Francisco Pimentel Franco, Josias Passos, Getúlio
Passos, José Alves, Hélio Leão, Augusto Santana, Paulo Vasconcelos, Lauro Menezes e Luciano
Nascimento. TV Sergipe, 2006.
7. A data correta é 15 de novembro de 1971, ano de veiculação da notícia no jornal.
8. Programas como Teatrinho Trol (1956), Capitão Aza (1966), Capitão Furacão (1965), entre outros,
tinham conteúdos parecidos: desenho, música e participação das crianças. Disponível em:
<ao/programas-infanis.phpT> Acessado em 10 abr. de 2015.
9. Os pais das crianças eram, na maioria das vezes, os anunciantes da TV Sergipe.
10. Cynira Arruda é jornalista e fotógrafa. Na década de 1970, fez muito sucesso como modelo e jurada
de programas de televisão. Íris Lettiere é locutora, ex-modelo, ex-apresentadora de telejornal e cantora.
É dona de uma voz grave e aveludada. Desde 1970 é a “locutora oficial” dos aeroportos do Rio de
Janeiro, de São Paulo, entre outros.
11. Idalina Campos é viúva de Luiz Carlos Campos e amiga de Nazaré desde a inauguração da TV
Sergipe.
12. O Decreto- Lei Nº 869, de 12 de setembro de 1969, dispunha ainda sobre o ensino da Educação
Moral e Cívica no Ensino Superior, a formação dos professores da disciplina, criação da Cruz do Mérito
da Educação Moral e Cívica, que seria concedida a personalidades que se destacassem em dedicação à
causa da Educação Moral e Cívica.
13. Disponível em: <http://www.vagalume.com.br/francisco-alves/cancao-da-crianca.html>. Acesso em
15 jan. 2015.
CAPÍTULO 12

HISTORIOGRAFIA ESCOLAR DIGITAL: DÚVIDAS,


POSSIBILIDADES E EXPERIMENTAÇÃO
Anita Lucchesi
Marcella Albaine da Costa

A
s mídias digitais têm sido responsáveis por uma mudança sem precedentes na percepção e na
compreensão dos fenômenos comunicacionais. A humanidade experimenta as novidades e os
desafios inerentes à transição da cultura puramente alfabética para a cultura digital. Diante do
novo, e embalados na velocidade que a chamada “virada digital” (digital turn) imprime às recentes
transformações tecnológicas, estudiosos de diversas áreas das Ciências Humanas têm refletido sobre as
possibilidades inovadoras, mas também sobre os riscos e cuidados que o avanço tecnológico traz para
seus variados saberes e fazeres.
O presente capítulo, fruto da conversa entre duas historiadoras em formação, propõe uma reflexão
sobre continuidades e possíveis rupturas metodológicas que os profissionais da história podem vivenciar
na Era Digital. Indelevelmente marcado pelo contexto do primeiro encontro e troca de experiência das
autoras – originalmente, um espaço de formação de professores –, os questionamentos e proposições
feitos aqui se voltam para as peculiaridades da história enquanto disciplina, mas com especial atenção à
dimensão do ensino, pensando na formação dos futuros professores de história e no ensino dessa matéria
no âmbito escolar.

Uma história recente e em constante movimento


Diante do surgimento e da popularização das novas tecnologias de informação e de comunicação,
bem como do acesso à rede mundial de computadores, deparamo-nos com a emergência de uma nova
nomenclatura para formas de expressão e registros históricos denominada “história digital”. Contudo,
ainda não está claro se essa adjetivação da história pelo digital se trata, de fato, de um método, um
campo, ou simplesmente uma abordagem passível de ser aplicada aqui e ali, em diferentes domínios da
história, combinada a outros métodos e sem tanto papel fixo (LUCCHESI, 2014). A ausência de uma
definição bem delimitada do que vem a ser e onde pode se operar com/a partir de/através da história ou
historiografia digital, porém, é coerente com o momento transitório sobre o qual comentamos acima. E,
nos atuais debates curriculares em que se inscreve este texto, essa abertura revela-se, aliás, bastante
valiosa, dado o espaço que abre para discussões livres e criativas sobre o tema. Só não podemos deixar,
como já argumentado em outra oportunidade, que o contínuo movimento de mudança e um certo fascínio
pelo avanço técnico inibam a crítica (LUCCHESI, 2012).
Nessa passagem dos átomos para os bits, metáfora a que se referia o autor Nicholas Negroponte
(2001), há mais de uma década, ao falar da vida digital, inúmeros aspectos da nossa vida, trabalho e
comunicação são alterados. Nosso intento, aqui, portanto, está muito longe da pretensão de fazer uma
análise exaustiva sobre os diversos pontos em que a sociedade tem sido afetada pelos recentes
desenvolvimentos tecnológicos, nessa seara há outros trabalhos, de longo fôlego, que podem ser pontos
de partida. Longe disso, nosso intento é o de, pelo menos, trazer à discussão algumas mudanças e
permanências das práticas historiadoras nessa transição cultural.
Para avançar, é preciso pontuar que o desenvolvimento tecnológico trouxe consigo (a necessidade
de) toda uma nova gama de conhecimentos, ou se quisermos, de uma especialização de conhecimentos. A
esse movimento seguiu-se um debate muito polarizado acerca das vantagens e/ou desvantagens desse
aprimoramento tecnológico, de um lado, os mais céticos e críticos em relação ao afã tecnológico, de
outro, aqueles manifestos mais abertamente otimistas em favor da potência dos desenvolvimentos
recentes. “Nem tanto ao céu, nem tanto a terra”, como diria o ditado popular, alguns estudos têm
introduzido a necessidade de se pensar sobre o novo, de forma mais ancorada ao que já conhecemos,
evitando, portanto, uma simples oposição entre analógico/tradicional e digital/inovador, mas buscando
identificar as vantagens e desvantagens oferecidas pela tecnologia digital no encontro da novidade com a
experiência. Assim, compreendendo que essa tecnologia não é neutra, e que altera relações, métodos,
resultados etc. de uma forma que não pode mais ser ignorada, existe também, na mesma arena dos debates
cyberutópicos e cyberpessimistas, pesquisadores que preferem evitar o risco do obscurecimento da
crítica pela rasura do maniqueísmo, e optam por abordagens mais híbridas. Para recorrer a outro ditado
popular, o que essas vozes do meio procuram é “não jogar fora o bebê junto com a água da banheira”.
Desse modo, para dar um exemplo, disciplinas como o design thinking e a própria ciência da
informação propõem que se pense o já conhecido conceito de usabilidade (usability) também aplicado às
ferramentas e ambientes digitais. Nessa direção, igualmente, inúmeras pesquisas são feitas, não sem
grande interesse econômico, sobre a aplicação qualitativa do design às interfaces de usuários em
sistemas operacionais, no desenvolvimento de aplicativos, softwares etc.
Nesse caminho, na era das “máquinas inteligentes”, mesmo entre aqueles que discutem a história
digital com certo otimismo, pode-se notar que a experiência, e tudo o que se aprendeu no passado sobre
“fazer história”, continua iluminando o presente. Tendo em conta que o cerne do trabalho empenhado em
uma operação historiográfica permanece, basicamente, o exercício do pensamento humano - a
interpretação das fontes, a elaboração da crítica e da narrativa - o historiador belga, Andreas Fickers,
estudioso de mídias e tecnologia, lança a questão se não estaríamos, de fato, caminhando para um dito
“historicismo digital” (FICKERS, 2012). Para ele, tanto no passado, como hoje, historiadores têm sido
confrontados com o desafio de dar sentido a tradições lidando com informações de arquivo e, nesse
sentido, certas questões permanecem, bem dizer, as mesmas. A necessidade de garantir a autenticidade de
uma fonte é um exemplo disso. Hoje, diz ele:
Se assumirmos que a internet será o principal arquivo do futuro, que tipo de competências críticas
os historiadores devem adquirir ou possuir para serem capazes de verificar a autenticidade de
uma fonte online? Se as futuras gerações de historiadores querem manter essa competência chave
no âmbito de sua disciplina e de seus hábitos, eles vão precisar desenvolver habilidades na
ciência da computação, na análise de imagens digitais e em tecnologias de rede. (FICKERS, 2012,
p.07)1
Dessa forma, o autor chama atenção para o fato de que aquilo que nos faz historiadores, como as
etapas mais filológicas no nosso trabalho, continua existindo. Entretanto, como no caso da conferência de
autenticidade a certa fonte, procedimento tão caro ao historicismo de um tempo, outras atividades podem
requerer do historiador novos aprendizados, especialmente relativos ao ambiente digital e às ferramentas
disponíveis para mediar o acesso a esse novo meio. As questões de fundo, porém, continuam as mesmas.
A interpretação permanece tarefa do cérebro humano. Mesmo naquilo em que a tecnologia pode ajudar a
automatizar algumas etapas do trabalho, como na exploração de grandes corpos documentais a partir da
chamada distant reading com seus perigos e promessas (MORETTI, 2013), ainda cabe ao historiador
operacionalizar esse processo, desde a escolha da ferramenta correta, a efetuação de comandos, a
seleção de filtros e, finalmente a análise do que determinado processo eletrônico obteve como resultado,
o que depende da capacidade de leitura e compreensão que o historiador pode dizer sobre aqueles dados.
Contudo, não raro, a premência de novas habilidades para o manejo do digital tem sido encoberta
nos debates, tanto em humanidades digitais como em história digital, por perspectivas que valorizam
mais enfaticamente as ferramentas, correndo o risco de, em alguns casos, reduzir os problemas de método
à técnica. Mas, como lembra o linguista Patrik Svensson, em sua colaboração ao volume Debates in
Digital Humanities, essa abordagem tool-oriented é apenas uma entre tantas outras formas possíveis de
engajamento neste debate, sugerindo que a discussão pode tomar outros rumos, como ver o digital ou a
tecnologia como objeto de estudo, meio, laboratório ou lugar de ativismo, ao invés de ferramenta
(SVESSON, 2012).
Daí a emergência do debate acerca do letramento digital ou literacia digital, digital literacy no
inglês (SOARES, 2002; BURDICK & WILLIS, 2011; LIVINGSTONE, 2011), e de uma nova educação
do olhar em nossos dias, capaz de lidar com a multiplicidade e imprevisibilidade do que podem nos
oferecer os produtos culturais digitais e a cultura visual digital, de uma forma em geral. Compreender por
que este novo letramento é necessário é parte central para a discussão que desejamos trazer aqui em
diálogo com recentes produções acadêmicas, tanto voltadas à história digital, quanto ao currículo, como
veremos adiante.

Interferências e incerteza criativa


Tomando o campo da história, enquanto disciplina e saber escolar, de que forma essa conjuntura
transitória tem sido trabalhada? Quais são as interferências da tecnologia no saber e fazer
historiográfico? Conforme ressaltado, por diferentes perspectivas, em nossos trabalhos dissertativos
(LUCCHESI, 2014; COSTA, 2015), redigidos quase contemporaneamente, um dando mais ênfase às
questões da escrita, outro àquelas do ensino, as (já não tão novas) tecnologias de comunicação e
informação marcaram esse início do século XXI e condicionaram a emergência de questionamentos
robustos para os historiadores e professores de história no tempo presente. Entre eles, a ampliação da
noção de fonte histórica, a modificação das noções de tempo e espaço, a re-problematização do conceito
de arquivo, o fenômeno das super digitalizações, os bancos de dados, as novas formas de pesquisa, de
escrita, ensino e divulgação científica que as mais variadas arquiteturas da informação tornaram
possíveis no meio eletrônico.
Será que as interferências trazidas por essas tantas “novidades” para os profissionais da história
tratar-se-iam “apenas de mudanças formais, estilísticas e/ou de design da informação” na escrita da
história? Permaneceria a recente história ou historiografia digital “restrita a um grupo de historiadores
que vão usá-la como metodologia e/ou estudá-la enquanto campo?” (LUCCHESI, 2014, p. 165). Em
2009, refletindo sobre a escrita da história e o ensino de história, ou bem sobre a “escrita da história
escolar”, Manoel Luiz Salgado Guimarães já se perguntava “como pensar em nossa atualidade o ensino
de história desconsiderando o arsenal de inovações tecnológicas disponíveis que exercem forte atrativo
sobre o público escolar?” (GUIMARÃES, 2009, p. 37). Tal questionamento sugeria, como praticamente
toda a obra do Professor Manoel Salgado, que não bastava refletir escrita e ensino da história
separadamente. Considerando-se especialmente o trabalho dessas tecnologias lá e cá, logo se tornaria
incontornável investigar “que articulação na formação inicial de professores” (COSTA, 2015, título,
grifo nosso) poderia ter currículo, história e tecnologia.
Assim, no presente capítulo, convidamos à reflexão não apenas sobre os efeitos das tecnologias
digitais nas diferentes etapas da operação historiográfica (documental, explicativa/compreensiva e
representativa)2 em que consiste a escrita da história, mas também sobre as interpelações entre esses
procedimentos e o processo de ensino e aprendizagem dessa disciplina, e novamente, deste com as
tecnologias e, por fim, com seus públicos, sejam eles alunos na educação básica, licenciandos na
graduação, ou outros tipos de leitores, críticos e livre admiradores da história. O digital altera
sensivelmente as maneiras como fazemos, ensinamos e consumimos história. Entretanto, por mais que as
bases epistemológicas dessa disciplina continuem as mesmas, há, nas entrelinhas, no fazer cotidiano, no
chão da escola, na elaboração de aulas e na construção de textos algo potencialmente de inovador,
interferências, ora mais ou menos óbvias, que não podemos simplesmente naturalizar, ignorar. Apesar das
muitas perguntas que podem ficar em aberto, dado o caráter transitório que já assinalamos, a reflexão se
faz urgente, e se falta o distanciamento costumeiro do nosso ofício, como historiadores do tempo
presente, precisamos lidar com os fatos quentes. E se esse processo for demasiadamente denso,
acelerado, a ponto de não nos permitir encontrar ou construir referências claras ou minimamente estáveis,
como gostaríamos, que avancemos no debate com cautela, mas sem perder a ousadia de “tentar”. Como
notou Costa (2015), o recurso àquela artesania intelectual de que nos falava Mills (1982) pode ser por
demais valioso nesse verdadeiro “aprender fazendo” com que construímos nossas pesquisas sobre o
digital, que segue avançando a saltos largos.
A história, enquanto componente curricular da educação básica, deve ser pensada também nas suas
articulações com o amplo processo de letramento que os alunos dos anos iniciais e finais do Ensino
Fundamental vivenciam. Mais além, como parte do “pensar criticamente”, que se almeja construir com os
alunos, vale lembrar que esse processo de letramento continua mesmo no Ensino Médio, onde,
sobremaneira, adensa-se a complexidade das várias linguagens em jogo. E aqui, como professores de
história, pensando naquela “leitura de mundo” sobre a qual nos falava Paulo Freire (1989), é importante,
para a “prática consciente” de professores e alunos, que também nos atentemos aos signos linguísticos da
literacia digital, observando-os além de sua forma e/ou funcionamento no ambiente eletrônico. É
importante aprender ferramentas, comandos e botões, mas fundamental é buscar compreender o todo, com
base na experiência. É preciso desenvolver as competências para navegar criticamente e efetivamente
avaliar, criar e filtrar informação utilizando as tecnologias hoje disponíveis.
O desejável letramento crítico digital, portanto, não se limita à habilidade técnica de manusear
dispositivos e programas informático-digitais, mas se define pela busca da compreensão da experiência
social inscrita na cultura digital. Daí, por exemplo, a necessidade de discutir, como discutimos para a
imprensa impressa ou televisionada, os sentidos (usos e abusos) que determinados conteúdos podem ter
na Internet. Aqui, à luz do que já sabemos sobre autenticidade, autoria e autoridade de documentos, é
preciso rediscutir o estatuto de verdade que certos gêneros carregam. Não precisamos enveredar por
profundos debates filosóficos, mas compreender que existe, por exemplo, uma diferença radical entre as
populares Enciclopédias Barsa (para citar um exemplo comum, hoje já quase em desuso) e as dezenas de
enciclopédias digitais acessíveis gratuitamente online, dentre as quais a mais representativa é a
Wikipédia, exemplo típico de crowdsourcing, que ao contrário dos antigos e pesados volumes da Barsa
que se consultavam nas bibliotecas ou nos lares mais abastados, pode ser acessada de qualquer
dispositivo conectado à internet.
Entender as dinâmicas desse mundo digital, e as manobras que ele permite, muito mais do que
simplesmente saber lidar com as interfaces e as linguagens de programação existentes, pode contribuir de
forma significativa para um letramento digital que continue, como outros letramentos, servindo à leitura
de mundo. Para isso, é preciso desnaturalizar a tecnologia, compreender, por exemplo, que um texto
online, em um blog, não é simplesmente um texto em outro suporte, mas um texto submetido a todo um
conjunto diferente de protocolos, etiquetas e (boas e más) práticas.
O sociólogo Manuel Castells, em A Sociedade em Rede (2005), já alertava para a necessidade de
desmistificar a tecnologia, para o bem e para o mal. No caso da Wikipédia, por exemplo e, de modo
geral, toda a avalanche de informação disponível na rede, “a verdadeira questão - como assinalou Dilton
C. S. Maynard - não é ser contra ou a favor da Internet. O importante é compreender as suas mudanças
qualitativas” (MAYNARD, 2011, p. 42). Condenar tudo seria ignorância, como também, por outro lado,
exaltar a tecnologia (a Internet, os aplicativos mobile, os dispositivos em si etc.) como algo “mágico”
poderia conduzir a “determinismo tecnológico” perigoso, com tons de solucionismo (MOROZOV, 2014).
Lucchesi discute a importância desse olhar crítico para a tecnologia em diálogo com as ideias do
professor de história da tecnologia, Melvin Kranzberg, fundador da Society for the History of
Technology, que em 1986 publicava as suas “seis leis para a tecnologia”, cuja primeira estabelecia:
A tecnologia não é boa, nem má e também não é neutra.
Com isso pretendo dizer que a interação da tecnologia com a ecologia social é tal que os
desenvolvimentos técnicos frequentemente têm consequências ambientais, sociais e humanas que
vão muito além dos próprios objetivos imediatos dos dispositivos técnicos e das práticas em si, e
a mesma tecnologia pode ter resultados muito diferentes quando introduzida em contextos
diferentes ou sob diferentes circunstâncias. (KRANZBERG apud LUCCHESI, 2014, p. 27)3
Soma-se a todo esse contexto, portanto, no caldo da “ecologia social” de que nos fala Kranzberg, um
presente marcado pelo retorno das testemunhas e por uma espécie de inflação da memória no espaço
publico virtual da Web (LUCCHESI, 2014). Como ficou emblemático no caso dos acontecimentos no
World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, a forma como podemos compartilhar, globalmente,
quase que instantaneamente, as experiências dos eventos no tempo presente também não tem precedentes.
Como preparar, para esse mundo contemporâneo, as crianças e jovens ditos “nativos digitais”
(PRENSKI, 2001), que realizam suas pesquisas escolares a partir de um mecanismo de pesquisas como o
Google? Como prepará-los para escapar das caixas-pretas do conhecimento acerca do funcionamento
técnico e das engrenagens sociais do digital? Como prepará-los para os falsos, os negacionismos e
revisionismos que colonizam websites aqui e acolá, explorando politicamente o potencial ideológico-
pedagógico (MAYNARD & LUCCHESI, 2012) desses canais online? Como prepará-los para as guerras
de memória que acontecem na rede, não apenas nos fóruns de redes sociais, onde o debate comumente é
explícito, mas também no interior de enciclopédias como a Wikipédia (PEREIRA, 2015)? Poderíamos
continuar levantando questões indeterminadamente, mas, em resumo, queremos chamar a atenção, de fato,
para quais seriam os novos e velhos problemas que se (re)apresentam diante disso? O que isso pode
significar para uma disciplina tradicionalmente centrada no documento de texto, que prima pela forma
escrita e impressa de transmissão de conhecimento? Certamente não poderemos responder a tudo aqui,
mas acreditamos que seja oportuno aproveitar essas incertezas para refletir criativamente sobre caminhos
possíveis.

O potencial pedagógico do hipertexto eletrônico


Desde os anos 1960, os conceitos de espaço e tempo têm sido repensados por teóricos de mídia,
sempre de forma conectada ao desenvolvimento tecnológico e também como um registro próprio da
globalização. Em 1974, o desconstrucionista Jacques Derrida já conectava a nova ideia de espaço (pós-
cartesiano) a um diverso modo de ler e de escrever (CALL, 1998). Ao mesmo tempo, analistas
começavam a questionar como a chegada dos computadores poderia transformar a comunicação. Esse
“diverso” modo de ler e escrever foi posteriormente identificado como o hipertexto eletrônico, a base do
projeto Xanadu de Theodore H. Nelson4.
O advento do hipertexto eletrônico já foi comparado com a revolução literária do Iluminismo dos
séculos XVIII e XIX, devido ao seu potencial de liberar a disseminação de informações, bem como de
possibilitar sua disposição em uma rede (DARNTON, 1999; CALL 1998). Para fins pedagógicos, por
exemplo, autores defendem que o hipertexto eletrônico teria um enorme valor, por ser uma alternativa aos
métodos de instrução passivos (CALL, 1998), possibilitando aos professores apresentarem as ideias
pelas evidências, conectando-as, através de links hipertextuais aos seus contextos, cabendo ao aluno
criar as chaves interpretativas ao invés de adotarem modelos de aula meramente expositivos.
Autores argumentam que, no que diz respeito ao ensino de história, especificamente, o hipertexto
pode ser um instrumento muito poderoso para encorajar o pensamento histórico crítico, no lugar de
incentivar a reprodução de “verdades universais” (CALL, 1998; BARON, 2013), ao mesmo tempo em
que seu uso também contribuiria para combater a descontextualização das fontes a que estaríamos
sujeitos hoje em face dos projetos de digitalização imaturos (SWEENY, 2009), ainda pouco conscientes
da importância de se manter o vínculo entre fontes e contextos para a pesquisa histórica.
Segundo o historiador Robert Sweeny, os dados computadorizados, organizados numa arquitetura de
informação hipertextual, podem ter um enorme valor para estimular tanto a reflexão epistemológica,
quanto metodológica, uma vez que podem despertar certa consciência acerca do próprio método de
pesquisa histórica (SWEENY, 1998). O advento dos bancos de dados digitais, por exemplo, tem afetado
substancialmente a percepção que temos das fontes históricas e da própria historicidade. Com Sweeny,
seu colega na Memorial University of Newfoundland (Canadá), Valerie Burton refletiu acerca do
“potencial democrático das fontes online na sala de aula” a partir de um experimento chamado
Explaining Ourselves, realizado com estudantes da graduação em história nesta mesma universidade.
Compreendendo a si mesmos como “pedagogos da história” (BURTON & SWEENY, 2015, p. 178), eles
se interrogaram:
Quando você tem em suas mãos séculos de documento antigos, sente o seu peso, ouve o craquelar
do papel, nota uma mancha ou simplesmente reage à poeira, você sente uma conexão com o
passado, que é ao mesmo tempo humilhante, enriquecedora e potencialmente enganosa. (...) Pode
o encontro virtual ser igualmente significativo? Na verdade, o quão útil é pensar dessas
representações virtuais como sendo do passado? (Burton; Sweeny, 2015, p. 178, tradução nossa)5
Neste experimento, os pesquisadores perceberam diferenças no manuseio e na análise que os
estudantes fizeram utilizando os documentos digitalizados. A diferença foi que um grupo trabalhou com
uma versão que continha os textos introdutórios descritivos, que normalmente integram os arquivos
digitais em bancos de dados online, e outro trabalhou com a mesma informação desse texto, mas
distribuída em alguns balões espalhados pelo documento que poderiam ser acessados/consultados pelos
alunos caso esses clicassem em ícones tipo alfinetes, fixados na digitalização. Segundo os autores, o
simples fato de dispor a informação de uma forma diferente, e não apresentá-la/entregá-la de forma
pronta, levou os alunos a explorarem o documento digital de outra forma, escaneando visualmente as
páginas, lendo, observando e consultando os tais balões de forma aleatória, não-linear, enquanto
buscavam as respostas para o questionário de crítica documental aplicado (BURTON; SWEENY, 2015,
p. 178-179).
O experimento de Burton e Sweeny mostrou como a fonte apresentada online, navegável
hipertextualmente, permitiu aos estudantes uma maior autonomia na exploração do material, ao deixá-los
livres para mexer, ler e analisar o documento, individualmente, da forma como queriam, no seu ritmo,
sem serem constrangidos ou sugeridos de alguma forma a realizar uma leitura única do documento. Ao
mesmo tempo, tal atividade se mostrou interessante também para os professores, pois permitiu que eles,
como sugeria Freire há meio século atrás, pudessem reconhecer o valor do conhecimento já existente
daqueles estudantes (BURTON; SWEENY, 2015, p. 181).
É verdade que a rica experiência de Explaining Ourselves é passível de questionamento, porque,
mesmo na não linearidade da abertura dos balões/alfinetes do documento, alguém poderia argumentar que
a empaginação já sugere uma linearidade e que a diferença entre o manuseio dos estudantes foi casual,
subjetiva. Ainda assim, consideramos significativo, exatamente o destaque dessa subjetividade, que por
mais casual que seja, pode, em muitos casos, ser portadora de uma serendipitidade importante para a
pesquisa. Esse experimento, contudo, apesar de trazer um argumento bem sofisticado, tecnicamente, não
exigiu muito, foi simples, a disposição dos alfinetes no documento seguiu, por exemplo, a mesma ideia
básica do Google Maps, que possui pins (pontos ativos) clicáveis, através de hipertextos, com
informações extras e geralmente passíveis de ampliação e diminuição do mapa em questão.
Os mais recentes desenvolvimentos tecnológicos, porém, complexificam esse cenário, atribuindo ao
ambiente digital, hipertextual, características novas e diversificando também o leque de opções de
software e ambientes digitais mais amigáveis para o usuário comum, como é o caso de inúmeras
ferramentas web-based e aplicativos mobiles intuitivos, que requerem baixa complexidade de
conhecimento técnico (de linguagem computacional, por exemplo) para serem operadas, ocultando, por
outro lado, processos mais complicados sobre seu funcionamento real, já que o usuário comum só precisa
“seguir o passo-a-passo” clicando aqui e ali, exigindo pouco ou nenhum trabalho diretos com
configurações técnicas, algorítmicas, desses apps.
Ao mesmo tempo em que é uma desvantagem não entender exatamente o funcionamento de um
determinado programa por detrás da sua interface, muitas dessas ferramentas e aplicativos, por serem
gratuitos e de fácil acesso e manuseio, tanto para professores quanto alunos, podem se tornar aliadas do
professor na sala de aula. Vale ressaltar, porém, que nem sempre a finalidade original dessas
“bugigangas” digitais é voltada para atividades de ensino e aprendizagem. Embora já exista um grande
número de opções dedicadas, que foram desenhadas especialmente para fins educativos, o uso criativo de
redes sociais, ferramentas e outros aplicativos não necessariamente planejados para finalidades
pedagógicas é muito bem vindo.
Esse dito uso “criativo” do digital, na verdade, tem sido a ponta, o desafio, no que diz respeito ao
uso de tecnologias digitais em espaços educacionais. Ainda que as discussões na educação estejam se
avolumando em torno das habilidades digital teaching e digital learning, não existe uma unanimidade
dos mais corretos fundamentos pedagógicos sobre como melhor utilizar as tecnologias digitais em sala
de aula, quer em escolas, quer em universidades. Há muitos conceitos, muitos métodos e teorias
diferentes que buscam oferecer um respaldo científico para a reflexão sobre o uso das tecnologias
digitais no ensino, ocorre que grande parte deles está ainda atrelada a estudos especulativos de propostas
pedagógicas em andamento, dada a novidade do tema. As novas gerações estão ainda se formando e só
poderemos efetivamente avaliar os desdobramentos da utilização sistemática desse tipo de tecnologia em
sala de aula, de maneira consistente, a longo prazo, daqui a algum tempo6. Por isso, tão valiosa a ideia
do artesanato intelectual de Mills (1982) e da construção de um espaço e de uma prática de
experimentação responsável, baseada no diálogo, na negociação e na construção coletiva de experiências
de ensino e aprendizado entre professores e alunos.

Historiografia escolar digital


Com essas questões em mente, em março de 2015, as autoras organizaram um curso de extensão para
alunos do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) de História da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, programa este que visa incentivar e valorizar a profissão docente.
Intitulado “História Digital: oportunidades e desafios para a formação em história”, os objetivos do
curso abrigavam-se sob o grande guarda-chuva de “proporcionar aos licenciandos participantes
experiências relacionadas ao ensino e à pesquisa em história na Era Digital.” Embora não tivéssemos
uma receita pronta para isso, esperávamos que as reflexões e vivências compartilhadas durante os
encontros colaborassem para a crítica do fazer docente para o qual se preparavam os alunos. Para nós,
estava clara a necessidade de discutir o papel das mídias digitais na sala de aula e nos fenômenos
comunicacionais e educacionais como um todo. Assim, cientes da carência de investimentos efetivos em
pesquisa e em formação voltadas para o Letramento Digital (Digital Literacy), acolhemos com
felicidade o convite da UFRN e decidimos dedicar uma parcela das 12h de carga horária do curso para
colocar a “mão na massa”, para não nos limitarmos à mera exposição dos pontos mais quentes do debate
e/ou da simples demonstração de funcionamento de ferramentas desconectadas do dia a dia e da prática
dos formandos.
Após introduzirmos, de forma bastante resumida ainda, “O que é História Digital?”, apresentamos
materiais de referência e compartilhamos nossas próprias experiências pessoais com ensino de história e
tecnologia, de modo que os alunos, por eles mesmos, pudessem formar suas impressões sobre o tema da
história digital e seu papel na formação de professores em si. Após essas primeiras trocas, o ponto
central do curso se desenvolveu após a apresentação preliminar de alguns projetos de história digital, de
memória e patrimônio online, bem como da apresentação de algumas ferramentas e exemplificação
rápida de possíveis usos. Havíamos planejado, para o momento seguinte a esse mostra de projetos e
ferramentas, inverter o sentido da comunicação7. Queríamos saber deles o que achavam interessante, o
que achavam possível, como utilizariam todas aquelas e qualquer outra “bugiganga” digital nas suas
próprias atividades como professores de história. Assim, propomos realizar uma experiência original
com as ferramentas, aplicativos e softwares apresentados, envolvendo uma atividade pedagógica, a fim
de ressaltar a possibilidade da construção autônoma de objetos educacionais digitais8 por cada professor,
de acordo com as especificidades de suas turmas, temas abordados etc.
Ao longo dos encontros, havíamos pedido que a turma realizasse, a partir da ferramenta Google
Docs, uma anotação coletiva do decorrer das aulas, tomando notas das discussões, registrando dúvidas,
críticas, ideias etc. Da mesma forma, pedimos que o desenvolvimento dessa atividade fosse feito, ao
vivo e contemporaneamente, por todos, escrevendo no mesmo documento online. Foi uma experiência
interessante sugerir que, ao invés de anotarem apenas em seus cadernos, compartilhassem conosco e com
os colegas as suas observações. No início, primeiros minutos, houve risos e observamos que alguns
alunos-licenciandos estavam mais reservados e/ou tímidos que outros no processo de anotação, mas, em
pouco tempo, a maioria já aparentava estar mais à vontade, manuseando com mais agilidade,
concentrados na tarefa, quase abstraindo o “novo suporte”.
Dentre as anotações dispersas, em momentos distintos das aulas, lemos sucintas ideias tomando
forma como “A questão de utilidade para o ensino - a representação para os alunos (...) #os alunos que
podem fotografar a sua vida, o seu bairro o seu mundo.” (a hashtag “#” fazia parte da anotação, como
marcador), “Os museus virtuais- fuga de determinadas estilos de aulas (Ex.: Museu da Inconfidência).”.
Ao mesmo tempo em que registravam críticas bem pontuais a problemas correntes no “mundo digital”,
como: ““batalha de memória” construção de histórias ‘interessadas’ na rede”, “O uso dos recursos
tecnológicos exigem avaliações prévias das condições e possibilidades de uso, e planos secundários na
previsão de problemas” ou ainda “As novas possibilidades não excluem as antigas, principalmente se as
mesmas não foram exploradas em suas potencialidades, como o livro didático. Apesar disso, essas novas
formas de comunicação e informação constituem realidade a ser encarada.” (sic)
Já no desenvolvimento da atividade proposta, houve planejamentos e estruturações como o seguinte:
Planejamento para o trabalho.
Palavras-chave: Diversidade religiosa, música, roupas, alimentos, rituais
TEMA: As religiões que o Brasil abraçou (ou não)
Objetivo Geral: Trabalhar com os alunos a utilização de memes
(https://imgflip.com/memegenerator), a característica de como eles observam cada religião. Assim,
trabalhando com os alunos a questão da intolerância religiosa, olhando como elas chegaram e se
construíram, quais elementos dessa religião os alunos têm incorporados nas suas vidas.
Exemplo do trabalho: imagens, com um senhor e uma letra de música ao lado, música religiosa
(homem de traços afrodescendentes).
E também:
Tema: Cultura afro-brasileira
Título: As “gentes” do samba.
Objetivo:
Trabalhar com os elementos da cultura afro que foram em determinados períodos marginalizados e
que com o tempo se tornaram parte da cultura nacional. Pensar o samba como um demonstrativo
das alterações sociais, políticos e econômicos instituídos no Brasil no decorrer do tempo.
Abordar questões relativas às diversidade étnica e cultural dos grupos que atuarão no
desenvolvimento do samba. Seria uma forma mais atrativa para trabalhar com escravidão, cultura
afro e mostrar o porquê da existência do feriado da Consciência negra no nosso país.
Metodologia: O tema em questão poderia ser trabalhado em sala com o auxilio de músicas, imagens
e poemas, livro. Por exemplo:
Musica: Liberdade, liberdade - Imperatriz leopoldinense (https://www.youtube.com/watch?
v=0FkJoUhCj6Y)
Poema: O Navio Negreiro de Castro Alves.
(http://www3.universia.com.br/conteudo/literatura/O_navio_negreiro_de_castro_alves.pdf)
Livro: Visões da liberdade : uma historia das ultimas decadas da escravidão na corte
(http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000043257) de Sidney Chalhoub.
A partir da interpretação e do debate das fontes, poderá ser solicitado que os alunos elaborem textos,
História em Quadrinhos (http://www.pixton.com/br/) ou pequenas encenações teatrais que evidenciem o
pensamento de cada um. E toda a aula com os debates e produção dos alunos poderia ser filmada para a
produção de um documentário que seria divulgado pelos alunos através das redes sociais.9
Já, para a conclusão, solicitamos uma autoavaliação e uma avaliação geral do curso, não obrigatória.
Não estabelecemos tamanho ou conteúdo, deixando-os livres para abordar os aspectos que achassem
mais relevantes, se o quisessem fazer:
A princípio, o curso sobre “História Digital” não representava muito sentido, eu não fazia muita
ideia do que se tratava. Com o desenvolver, um novo mundo me foi apresentado, principalmente
as discussões sobre a cultura digital e sim, o pensamento crítico pelo quais devemos ter ao utilizar
novos métodos em sala de aula, sobre o “Letramento Digital” que é essencial entrar na pauta de
escolas, lares, encontrando uma forma de aplicar na prática. As novas ferramentas apresentadas,
que enriqueceram meus conhecimentos e me auxiliaram, tanto com novos meios de aplicar
didaticamente o assunto, como refletir criticamente como eu, futura professora, vou interagir com
meus alunos, como vou equilibrar a tecnologia, extremamente presente na vida dos alunos, com os
métodos já utilizados há tantos anos, que na maioria dos casos funcionou, como o livro didático.
Ou ainda:
Foi muito gratificante participar do curso História Digital, pois sem sombra de dúvidas ele me
forneceu uma capacitação quanto ao uso de tecnologias para a elaboração de aulas. Valendo
salientar principalmente o grande estímulo à criatividade que acontece de forma natural e
espontânea de acordo com a ministração das aulas.
Destacamos esses poucos trechos, considerando-os, porém, extremamente significativos. Seja porque
neles observamos ressonâncias de aspectos que nós levamos para discutir com os alunos, como o “uso
interessado” de certos conteúdos na Internet, seja por que identificamos estratégias novas, como a
proposição de ferramentas que não havíamos indicado, seja pela sintomática opção por propostas de
atividades que, de certa forma, vão abordar e representar conteúdos programáticos que, por vezes, não
são abordados em profundidade pelos livros didáticos, como a diversidade religiosa, ou aspectos
específicos da cultura afro-brasileira com “as ‘gentes’ do samba”. Vale ressaltar também a profusão de
ideias (não apenas as citadas aqui) originais no que concerne ao uso e à combinação de diferentes
linguagens e mídias. Propostas de experimentações inusitadas como abordar religião a partir de memes,
ou seja, de imagens com pequenos textos que investem no humor como forma de expressão, ou reunir
música, poema, historiografia e história em quadrinho, também demonstram a diversidade de práticas que
exercícios de livre criação como esses podem gerar. Destaca-se, ainda, a sensibilidade dos licenciandos
na intuição e/ou intencionalidade de utilizar a tecnologia para prover acesso a elementos de áudio e
vídeo, que não podem ser oferecidos pelos livros impresso, bem como pela seleção de temáticas tão
relevantes para a formação cidadã e para a construção de uma sociedade justa e igualitária10.
Ao compartilharmos essas experiências e pensamentos, gostaríamos de propor uma reflexão teórico-
intelectual na esfera do que optamos por chamar de historiografia escolar digital11, e convocar os
colegas a também compartilharem suas experiências e, se possível, caminharem da discussão teórica à
prática e à experimentação criativa dessas ferramentas das tecnologias, desse modo de fazer, ensinar e
aprender história.
Para nomear e sustentar a expressão da historiografia escolar digital, remetemos à escrita da história
feita na escola por meio da ação do professor que use de forma crítica do potencial das tecnologias de
informação e comunicação na narrativa de sua aula e à construção de materiais didáticos digitais que
explorem e extrapolem a especificidade deste meio, levando-se em consideração, inclusive, a
participação, a criatividade e a autoria dos sujeitos posicionados como alunos. Em outras palavras, a
história que pode/poderia ser escrita a partir de experiências como as descritas acima.
Interessa-nos, ao propor esta reflexão e ação, identificar e experimentar as especificidades do
digital, em seus limites e possibilidades, e como isso de fato afeta o ensino e a prática do professor da
referida disciplina, tanto na educação básica quanto na educação superior. Nesse sentido, consideramos
pertinente a articulação da historiografia escolar digital com a proposição de um web currículo de
História (COSTA, 2015). Pelo que vimos pensando até aqui, esta noção de web currículo de História e
de historiografia escolar digital é uma aposta política para pensar a relação com o ensino nos processos
de formação e atuação de professores de história e historiadores que não supervalorizem a tecnologia,
mas busquem experimentar, brincar com ela, de modo consciente, desafiador, curioso, jogando com suas
possibilidades, revistando seus limites, encontrando casualmente alternativas e reconhecendo eventuais
fracassos. Algo por demais valioso para reflexões epistemológicas, como o apelo por uma experimental
media archeology proposto por Andreas Fickers e Annie van den Oever, um exercício de arqueologia da
mídia, que destaca o valor eurístico de interagir, manusear, brincar e experimentar as tecnologias, ao
invés de se concentrar nas análises do discurso, do que a literatura pode oferecer (FICKERS & OEVER,
2014).
Assim, o web currículo, se conectaria diretamente às noções de letramento digital e de internet
literacy ou ciberliteracidade (SOARES, 2002; BURDICK;WILLIS, 2011; LIVINGSTONE, 2011),
podendo ser um caminho interessante para pensar uma formação inicial de professores que se afine com
as demandas tecnológicas de nosso tempo e mantenha o diálogo aberto com os colegas atuando em outras
áreas da história. O web currículo de história, como proposto por Costa (2015), trabalha na / pela
tentativa de aproximação entre currículo e tecnologia na formação inicial docente e vai para além dela,
colocando-os em uma mesma cadeia de equivalência de forma que se possa falar em uma nova
configuração do significante ‘escolar’ no ensino de história. Opera, então, com a ideia de um letramento
histórico-digital, recusando a ideia de que haja algum sentido previamente dado e naturalizado nesta
relação. Como já dissemos assim, com outras palavras, “a precisa natureza da relação entre a
historiografia e seu meio está longe de ser transparente” (ANDERSON, 2011, p. 04). E se esse meio é o
digital, recomendamos atenção redobrada e mão na massa.

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Tempo Presente. Rio de Janeiro: Luminária academia, 2012, pp.17-44.
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Sobre as autoras
Anita Lucchesi - Doutoranda em História Digital e História Pública pela Universidade de
Luxemburgo, junto à Faculté des Lettres, des Sciences Humaines, des Arts et des Sciences de l Éducation,
na unidade de pesquisa Identités, Politiques, Sociétés, Espaces (FLSHASE / IPSE / Institute of History),
onde integra o Laboratório de História Digital. É Mestre em História Comparada pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Possui bacharelado e licenciatura plena em História pela mesma universidade
(2012), tendo participado de programa de intercâmbio na Università degli Studi di Firenze (Itália, 2008).
É membro e pesquisadora do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET-UFS). É membro da Rede
Brasileira de História Pública e também associada à Federação Internacional de História Pública (IFPH)
e ao Conselho Nacional de História Pública (EUA/NCPH). Participou como parecerista do MEC no
processo de avaliação dos livros didáticos de História do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)
2014 e 2015.
Marcella Albaine da Costa é doutoranda em História pela Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especialista em
Tecnologia Educacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora da educação básica e
professora substituta da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Notas
1. Tradução livre do inglês: “If we assume that the internet will be the main archive of the future, what
kind of critical competences must historians acquire or possess to be able to ascertain the authenticity of
an online source? If future generations of historians want to keep this key competence within the realm of
their discipline and habitus, they will need to develop skills in computer science, digital image analysis
and network technology.”
2. Tomemos como referência as fases destacadas por Paul Ricoeur, apoiado na compreensão operacional
da história de Michel de Certeau: 1ª. Fase documental – aquela que “vai da declaração das testemunhas
oculares à constituição dos arquivos” e diz respeito ao estabelecimento da “prova documental”; 2ª. Fase
explicativa/compreensiva – aquela etapa em que os historiador responde aos “porquês” motivadores de
sua pesquisa; e 3ª. Fase representativa – que diz respeito à colocação em forma literária, isto é, à escrita
propriamente dita, que levará o conhecimento produzido ao público leitor. Cabe ressaltar que tal divisão
“não se trata de momentos cronologicamente distintos, mas de momentos metodológicos imbricados uns
nos outros” (RICOUER, 2007, p.146-147)
3. Original: “Technology is neither good nor bad; nor is it neutral. By that I mean that technology’s
interaction with the social ecology is such that technical developments frequently have environmental,
social, and human consequences that go far beyond the immediate purposes of the technical devices and
practices themselves, and the same technology can have quite different results when introduced into
different contexts or under different circumstances.”
4. “Projeto Xanadu é uma das mais mal compreendidas iniciativas para criar um diferente tipo de mundo
de computadores, baseado em um diferente tipo de documento eletrônico. (Documentos eletrônicos
convencionais - PDF, Word, HTML - simulam papel e são construídos em cima de conceitos de
impressão. Documentos do projeto Xanadu fazem o que nenhuma impressão pode fazer.) Conceito:
Páginas voadoras! Profunda interconexão! Intercomparação paralela! Todo o conteúdo conectado com
suas fontes originais! E muito mais.” Ver: http://www.xanadu.com/ Acessado em: 20.01.2016.
5. Original: “When you hold a centuries old document in your hands, feel its weight, hear the paper
crinkle, notice a stain or perhaps just react to the dust, you sense a connection to the past that is
simultaneously humbling, enriching and potentially misleading. (...) Can a virtual encounter be as
meaningful? Indeed how useful is to think of these virtual representations as being from the past?”
6. Uma proposta, por exemplo, é o chamado Technological Pedagogical Content Knowledge (TPACK),
abordagem que se baseia na ideia da construção do Conhecimento Pedagógico do Conteúdo (no inglês,
abreviado como PCK), desenvolvida pelo psicólogo da educação Lee Shulman nos anos 1980, porém
adicionando o Conhecimento da Tecnologia. Nos quadros dessa proposta de estudo, a integração da
tecnologia no ensino se dá pela sistemática interseção teórica e prática entre conteúdo, pedagogia e
tecnologia. Entretanto, os próprios teóricos que se apoiam no TPACK avisam: “There is no “one best
way” to integrate technology into curriculum. Rather, integration efforts should be creatively designed or
structured for particular subject matter ideas in specific classroom contexts.” (KOEHLER & MISHRA,
2009). Ver também: http://www.tpack.org/ Acessado em: 15.02.2016.
7. Compartilhamos online um apanhado de referências contendo, entre outras, algumas das ferramentas
que discutimos durante o curso, bem como leituras para o aprofundamento das discussões. Esta lista é
constantemente atualizada pelas autoras. Ver blog Historiografia na Rede:
https://historiografianarede.wordpress.com/referencias-curso-de-extensao-historia-digital/ Acesso:
17.03.2016.
8. Nomenclatura também utilizada pelo Ministério da Educação em documentos oficiais do Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD) para fazer referência aos jogos educacionais digitais, simuladores,
infográficos animados, audiovisuais e hipermídias que podem acompanhar os livros didáticos desde o
PNLD 2014 (Ensino Fundamental, Anos Finais), primeira edição do Programa em que o conteúdo
multimídia é previsto, podendo acompanhar os livros didáticos impressos.
9. Note-se que onde o texto está sublinhado, originalmente, a pessoa inseriu o hiperlink para o endereço
eletrônico que, na versão impressa, optamos por colocar entre parênteses.
10. Vale notar que não incluímos citações aqui, mas propostas de atividades para história local, as
mulheres na revolução e diversidade étnica também apareceram. Registra-se, ainda, que se deve levar em
consideração a precária infraestrutura disponível em muitas escolas pelo Brasil, que não oferecem
condições mínimas para o desenvolvimento de atividades como essas, mas é preciso dizer que, ainda
assim, os professores e licenciandos podem, em alguns casos, preparar e sugerir atividades para serem
feitas mesmo de casa ou de bibliotecas públicas que ofereçam acesso a computadores conectados à
Internet.
11. Termo proposto por Costa, em notas particulares (ainda privadas ao momento que escrevemos este
texto), tendo por referência experimentações que realizou com alunos de seu Estágio de Doutoramento na
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Tais notas deram origem a um trabalho de conclusão
de curso para a disciplina “O tempo como problema historiográfico”, o qual Costa compartilhou com
Lucchesi. O presente texto foi concebido a partir da leitura e crítica de Lucchesi ao trabalho de curso
escrito por Costa. Da discussão entre as autoras, surgiu a proposta do retorno à experiência realizada na
UFRN, como sempre, em conversas virtuais, o que tem se tornado cada vez mais comum nas
colaborações acadêmicas recentes.
CAPÍTULO 13

A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE HISTÓRIA E O ESTÁGIO


SUPERVISIONADO ENTRE NORMATIVAS E EXPERIÊNCIAS -
LIMITAÇÕES E INCONGRUÊNCIAS
Claudefranklin Monteiro

N
o início de 2016, uma polêmica tomou conta do meio educacional brasileiro. A nova Base
Nacional do Comum Curricular (BNCC) do Ensino Brasileiro, anunciada pelo Ministério da
Educação, desagradou, em muito, professores de história, sobretudo pelas alterações
significativas em torno do novo currículo da disciplina. Em xeque, o futuro do ensino de história no
Brasil.
Diante da reação dos professores, organizados em entidades, como a ANPUH, o Ministério da
Educação recuou e chegou mesmo a admitir falhas, as quais deverão ser sanadas depois de ouvidas as
partes interessadas, em um amplo debate.
A historiadora Circe Maria Fernandes Bittencourt, uma das maiores autoridades intelectuais no
assunto, em declaração para o portal globo.com, assim se pronunciou a respeito: “A gente entende que
ela (proposta para história) está mal estruturada. Não estamos combatendo os princípios. (...) É um
momento oportuno, queremos que o ensino de história tenha uma mudança” (G1, São Paulo, 05/01/2016
19h34 - Atualizado em 05/01/2016 21h35).
Destarte, não é a primeira vez que a história fica à mercê das conjecturas políticas e das políticas
públicas. Nunca é demais lembrar o que se lhe ocorreu em tempos de ditadura militar, quando a
disciplina foi abolida dos currículos e substituída por Moral e Cívica e OSPB.
Em que pese esta discussão inicial, que envolve diretamente a prática de ensino de história no Brasil
e sem entrar em maiores detalhes sobre o documento oficial produzido, entende-se como oportuno o
momento histórico vivido por pesquisadores e docentes nesta área. A história da educação brasileira, nos
últimos anos, reservou alguns capítulos importantes sobre o assunto e relegou o conhecimento histórico,
em sala de aula, a patamares significativos, sobretudo em nível de currículos, se levarmos em conta os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e os avanços em torno da escolha do livro didático de
história, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
Sobre os PCNS, notadamente, no Ensino Médio, no que diz respeito às competências específicas da
História, considera-se como objetivo de seu ensino a “(...) superação da passividade dos alunos frente à
realidade social e ao próprio conhecimento (p. 74)”. Por isso, a ênfase na criticidade, na análise e na
interpretação, não só de fontes, mas da própria realidade e do cotidiano. No que se refere ao ensino de
história, o documento exige do aluno em formação docente estar munido dessas habilidades para ser
capaz de lidar com seus alunos.
Entretanto, no que diz respeito à docência e à formação do professor de história, os últimos vinte
anos expõem alguns problemas que não permitem a existência efetiva de cursos de licenciaturas voltados
exclusivamente para esta área, abrindo espaços para lacunas que também devem passar pelas discussões
atuais em torno da nova Base Nacional do Comum Curricular (BNCC) do Ensino Brasileiro.
Resolver o problema curricular e não investir na formação é cobrir um santo e descobrir outro, há
muito necessitado de um cobertor que dê alento aos alunos que, em sua maioria, ou desistem de serem
professores ou, mesmo formados, retornavam à universidade para investirem em outros cursos,
notadamente, Direito e Relações Internacionais.
Em 2001, o Ministério da Educação estabeleceu novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os
cursos de História implantados e a serem implantados no país a partir daquele momento. Na pauta, entre
tantas coisas, a normatização do Estágio Supervisionado em História a partir do Parecer CNE/CP 9/2001
e do Parecer 27/2001.
Tendo como referência o Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Sergipe, em
suas modalidades, Presencial e à Distância, através das atividades e relatórios de estágio do curso a
partir de 2005 (reforma curricular que substituiu a disciplina Prática do Ensino de História pelo Estágio
Supervisionado), pretendemos, neste texto, discutir as inúmeras dificuldades entre o que os normativos
pretendem e a experiência apresenta, apontando caminhos para a superação das dificuldades observadas
entre a teoria e a prática, no campo do estágio em docência na formação do professor de História.
Vejamos, inicialmente, o que preconiza a legislação a respeito do Perfil do Egresso das
Licenciaturas em História, no Brasil. Segundo o Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE)
0492/2001, faz-se necessário formar cidadãos com vistas a: 1) As ampliações teórico-metodológicas da
pesquisa em História; 2) A ampliação dos campos de atuação do profissional formado em História. Neste
segundo aspecto, destaque para: atividades de ensino; institutos de pesquisa; pesquisas vinculadas ao
patrimônio artístico e cultural e à cultura material; serviços dos meios de comunicação de massa;
assessorias culturais e politicas; elaboração de bancos de dados, organização de arquivos, reunião e
preservação da informação.
Por sua vez, a Resolução CNE/CES 13, de 13 de março de 2002, estabelece as Diretrizes
Curriculares para os Cursos de História. Chama a atenção, de modo particular, o seu artigo 2º, em suas
letras a, c e f, onde estão preconizados normativos que atendem à formação do professor de história.
Em que pese tais considerações, a experiência no campo da formação do professor de História da
Universidade Federal de Sergipe mostra que são mantidas as peculiaridades típicas desse tipo de saber:
ênfase nas temporalidades e com a exigência de uma formação específica que habilite o profissional de
História a um trabalho, com variadas fontes documentais, tendo como parâmetros sociais e culturais de
seu contexto de formação.
Entretanto, em linhas gerais, pode-se dizer que o tipo de sujeito que a Universidade Federal de
Sergipe vem graduando nos últimos dez anos tem sido capacitado ao exercício do trabalho de
Historiador, em todas as suas dimensões, o que supõe pleno domínio da natureza do conhecimento
histórico e das práticas essenciais de sua produção e difusão. E isto ocorre, mesmo com a extinção de
seu Curso de Bacharelado há alguns anos, o que contribui para um dos dilemas de alunos e professores:
forma-se o que, efetivamente?
Ainda à luz da legislação educacional vigente, no que diz respeito às competências e às habilidades
de nossos alunos, destaque para a necessidade de estes: dominarem as diferentes concepções
metodológicas que referenciam a construção de categorias para a investigação e a análise das relações
sócio-históricas; problematizarem, nas múltiplas dimensões das experiências dos sujeitos históricos, a
constituição de diferentes relações de tempo e espaço; conhecerem as informações básicas referentes às
diferentes épocas históricas nas várias tradições civilizatórias assim como sua inter-relação; transitarem
pelas fronteiras entre a História e outras áreas do conhecimento; desenvolverem a pesquisa, a produção
do conhecimento e sua difusão não só no âmbito acadêmico, mas também em instituições de ensino,
museus, em órgãos de preservação de documentos e no desenvolvimento de políticas e projetos de gestão
do patrimônio cultural; terem competência na utilização da informática. Isto no âmbito mais geral de sua
formação.
No âmbito das chamadas competências e habilidades específicas, destaque para duas assertivas:
domínio dos conteúdos básicos que são objeto de ensino – aprendizagem no ensino fundamental e médio;
e domínio dos métodos e técnicas pedagógicos que permitem a transmissão do conhecimento para os
diferentes níveis de ensino.
Com relação aos conteúdos curriculares e práticas de ensino, estes últimos objetos de nossas
preocupações enquanto professor, formador e pesquisador, é possível, ainda ao nível da legislação
educacional em vigor, observar: deverão ser incluídos os conteúdos definidos para a educação básica, as
didáticas próprias de cada conteúdo e as pesquisas que as embasam.
E ainda: as atividades de prática de ensino deverão ser desenvolvidas no interior dos cursos de
História, e sob sua responsabilidade, tendo em vista a necessidade de associar prática pedagógica e
conteúdo de forma sistemática e permanente.
A sensação que temos e, porque não dizer, a constatação é a de que muito se é pedido, pouco se
oferta e quase nada se tem como resultado efetivo depois de concluída a jornada de estudos de nossos
estudantes no Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Sergipe. Em geral, notamos
um hiato enorme entre as três instâncias. É comum, desse modo, nossos alunos chegarem desestimulados
ao final, sem ao menos terem a certeza de que serão docentes na área para a qual se licenciaram.
Seus depoimentos quando encerram a disciplina Estágio Supervisionado em História II atestam isto
que estamos ressaltando como um problema de formação. Seus relatórios finais também corroboram uma
realidade que carece de uma reflexão mais profunda interdepartamental e extra-departamental, inclusive
no que tange aos estágios na instituição locus de nossa investigação.
Vejamos o que diz um aluno concludente, em experiência de estágio supervisionado, a respeito: “Em
minha experiência, creio que algumas aulas [da universidade] poderiam ser melhores se eu tivesse o
domínio de alguns conteúdos que me pudesse trazer mais curiosidades e/ou debates com os alunos”
(D. L. S. S. – DHI / 2013.2).
É comum os nossos egressos retornarem ao nível superior, não necessariamente para se aperfeiçoar
em sua especificidade, a história, em programas de pós-graduação, por exemplo, mas para fazerem outros
cursos, nem sempre de licenciatura. A experiência mostra isto. Questionados, ao final do curso do por
que, é comum ouvir deles que o contato com a prática de ensino, via estágio, os fizeram tomar esta
decisão.
Ainda no início do curso, quando são “calouros”, quando são questionados sobre o porquê de terem
escolhido história no nível superior, a grande maioria, sobretudo em tempos de ENEM, fala que foi a
menor nota de corte, que pensa em migrar para Direito, por exemplo. O restante diz ter se inspirado em
algum professor de história do Ensino Médio. E poucos, muitos poucos, convictos da escolha.
Nesse sentido, vale destacar o que afirma Maurice Tardif:
Os cursos de formação para o magistério são globalmente idealizados segundo um modelo
aplicacionista do conhecimento: os alunos passam um certo número de anos a assistir a aulas
baseadas em disciplinas e constituídas de conhecimentos proposicionais. Em seguida, ou durante
essas aulas, eles vão estagiar para aplicarem esses conhecimentos. Enfim, quando a formação
termina, eles começam a trabalhar sozinhos, aprendendo seu ofício na prática e constatando, na
maioria das vezes, que esses conhecimentos proposicionais não se aplicam bem na ação
cotidiana. (TARDIF, 2002, p.270)
Atentemos agora para a Resolução CONEPE nº 65/2011, que estrutura e organiza o referido curso, o
qual está de acordo com as normas até então elencadas e comentadas.
Em termos de carga horária, está organizado em 2.865 horas, com previsão de término entre 3 anos e
meio a seis anos.
Sua estrutura curricular está organizada em quatro núcleos, a saber: comum, educação básica,
estágios e atividades complementares.
As disciplinas que compreendem o primeiro núcleo são:

A – História Geral
Consiste no conteúdo de História do Ensino Médio e Fundamental, revisto em maior profundidade,
com conceitos e instrumentos históricos adequados, além de uma apresentação teórica dos tópicos
fundamentais.

B – História do Brasil
Consiste no conteúdo de História do Brasil, tais como História do Brasil Colônia, História do Brasil
Império, História do Brasil República, História de Sergipe.

C – Metodologia da História
É o conjunto mínimo de conceitos necessários ao tratamento adequado dos fatos históricos, composto
por Introdução à História, Teorias da História I, Teorias da História II, Metodologia da Pesquisa
Histórica, Historiografia Brasileira.

D- História da África
Consiste no conteúdo de História da África para o Ensino Médio e Fundamental, revisto em maior
profundidade, com conceitos e instrumentos históricos adequados, além de História da Cultura Afro-
Brasileira.
As disciplinas que compreendem o segundo núcleo são:

A - Didática e Metodologia do Ensino de História


Consiste num conteúdo que trata da relação em Teoria e Prática de Ensino; Didática da História
como uma subárea da História; Objetivos do ensino de História; Consciência Histórica e modelos de
currículos de História; Princípios básicos do ensino de História; Transversalidade e Ensino de História;
PCN e Ensino de História; PNLD e a escolha do Livro Didático; Diferentes fontes e linguagens no ensino
de História.

B - Estrutura e Funcionamento de Ensino


Consiste num conteúdo que trata das questões referentes à Educação e à sociedade, política
educacional brasileira, organização e funcionamento do ensino básico, reformas de ensino, nova LDB,
democratização do saber, autonomia da escola, qualidade de ensino e finalmente, o ensino básico em
Sergipe.

C - Introdução à Psicologia da Aprendizagem


Consiste num conteúdo que trata dos conceitos básicos da aprendizagem, das teorias da
aprendizagem, dos contextos culturais da aprendizagem e da escolarização formal, da Psicologia da
Aprendizagem e da Prática pedagógica.

D - Psicologia da Aprendizagem e do Desenvolvimento


Consiste num conteúdo que trata das questões referentes à conceituação e metodologia científica
aplicada à Psicologia do Desenvolvimento, princípios e teorias gerais do desenvolvimento físico, motor,
emocional, intelectual e social, das principais áreas de pesquisa em Psicologia do Desenvolvimento.

E - LIBRAS
Consiste em conhecimento introdutório de Libras. Aspectos diferenciais entre Libras e a Língua
Portuguesa.
No que diz respeito aos estágios supervisionados, assim são estabelecidas por resolução própria:
são desenvolvidos considerando as diferentes dimensões da atuação profissional, sendo centradas nos
fundamentos teóricos em Estágio, na regência de classe na escola selecionada e na participação em
atividades extraclasses aí desenvolvidas. Ocorrerá sistematicamente a avaliação do trabalho realizado
em regência de classe e deverá ser realizado relatório final do estágio.
O estágio supervisionado é uma exigência da LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional
nº 9394/96 nos cursos de formação de professores. Em 2008, o Ministério do Trabalho lançou uma
cartilha que procurava esclarecer a Lei de Estágio, no. 11.788/2008. Em sua página deste, no que diz
respeito a quem pode fazer estágio, assim se refere:
Estudantes que estiverem frequentando o ensino regular, em instituições de educação superior, de
educação profissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino
fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos. (art. 1º da Lei nº
11.788/2008)
Dentro dos normativos da Universidade Federal de Sergipe, o Estágio Curricular Obrigatório é
previsto pela Lei 11.788/2008 e constante no projeto político pedagógico de cada curso. Na
Universidade Federal de Sergipe, tanto o Estágio Curricular Obrigatório como o Estágio Curricular não
Obrigatório, realizado voluntariamente pelo estudante para enriquecer a sua formação acadêmica e
profissional, podendo ou não gerar créditos para a integralização do currículo pleno, são regulamentados
pela Resolução Nº 65/2011/CONEPE, aprovada em 22 de julho de 2011, que orienta a elaboração das
Normas Específicas para o Estagio, de cada Curso.
O chamado núcleo das atividades complementares corresponde a 390 horas do Curso, assim
divididas: disciplinas optativas (180) e atividades complementares (210). Neste último particular,
notamos uma grande dificuldade para os alunos que frequentam o turno noturno e a modalidade à
distância. Em geral, são sujeitos trabalhadores que encontram empecilhos para participarem de eventos e
projetos de extensão que o nível superior oferece ao longo de sua formação. Há, nesse sentido, um
esforço hercúleo, o que implica uma formação açodada pela indisponibilidade e impossibilidade de
administrar o tempo.
Ainda sobre as atividades extensionistas, vejamos o que pudemos detectar nos últimos dez anos.
Em linhas gerais, a ideia é aproximar a extensão universitária da prática de estágio supervisionado,
por exemplo. Para tanto, cabe-nos refletir sobre os sentidos atribuídos à extensão universitária,
especialmente no que diz respeito à formação do professor de história; e, por fim, entender como a
prática extensionista pode se relacionar com a pesquisa e com o estágio, visando à promoção da
melhoria da qualidade de ensino de história.
Façamos, antes, uma breve reflexão conceitual para situarmos a questão aqui exposta.
Por extensão entende-se o processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que
promove a interação transformadora entre a universidade e outros setores da sociedade orientada pelo
princípio constitucional da indissociabilidade com o Ensino e com a Pesquisa.
Por Projeto de Extensão entende-se o conjunto de ações processuais contínuas, de caráter
educativo, social, cultural ou tecnológico, com objetivo específico e prazo determinado.
Por Programa de Extensão entende-se ser um conjunto articulado de projetos e outras ações de
extensão, preferencialmente de caráter multidisciplinar e integrado a atividades de pesquisa e de ensino.
Tem caráter orgânico-institucional, integração no território e/ou grupos populacionais, clareza de
diretrizes e orientação para um objetivo comum, sendo executado a médio e longo prazo.
Em termos de legislação, vejamos, também, o que se diz a respeito. Nesse particular, chama-nos a
atenção o Artigo 207 da Constituição Federal, o qual dispõe que as universidades obedecerão ao
princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (BRASIL, 1988), tendo a educação
superior por finalidade, conforme prescreve o Artigo 43 da Lei da Educação Nacional – 9.394/96,
incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica (inciso III), comunicar o saber através do
ensino (inciso IV) e promover a extensão aberta à participação da população (inciso VII) (BRASIL,
1996).
O Plano Nacional de Extensão assim se refere ao estágio curricular:
O estágio curricular é alçado como um dos instrumentos que viabilizam a extensão enquanto
momento da prática profissional, da consciência social e do compromisso político, devendo ser
obrigatório para todos os cursos, desde o primeiro semestre, se possível, e estar integrado a
projetos decorrentes dos departamentos e à temática curricular, sendo computado para a
integralização do currículo de docentes e discentes. (BRASIL, 1998, p. 06)
A prática, mais uma vez, nos mostra um realidade limitada e incongruente entre o que se preconiza, o
que se deseja e o que se faz. Em geral, no escopo da extensão, estão circunscritos eventos e alguns
projetos, geralmente, resultados de editais e de atividades de grupos de pesquisa, com pouca ou quase
nenhuma ênfase ao aspecto coletivo.
Sobre os estágios, não fossem os fundamentos de estágio e a prática efetiva no campo da docência,
nosso aluno não teria a menor condição de lecionar, ao menos, em bases legais e reais mais sólidas e
bem sucedidas. Ainda assim, nesse patamar, destaque, mais uma vez, para ações isoladas, pouco e nem
sempre articuladas entre as disciplinas e mesmo como parte das preocupações administrativas e
pedagógicas do curso como um todo, mais afeito à teorização e à prática da pesquisa em história.
Sobre as práticas de ensino desenvolvidas nas disciplinas Fundamentos de Estágio I e II, pode-se
dizer que o cenário é mais animador, incluindo experiências de simulação de aulas de história no interior
das salas de aulas e mesmo fora delas, fazendo valer a ideia e a necessidade de um momento laboratorial
para nossos alunos no nível da docência.
A prática mostra que nossos alunos, em sua maioria, se encontram com o curso no que ele pode e
deveria proporcionar no que tange à formação do professor de história, propriamente dito. Vencendo as
ansiedades, limitações, medos e vícios universitários, até, vão além do que se apresenta na letra fria de
uma resolução ou parecer. Isto deveria ser mais bem disseminado e amadurecido num todo, sobretudo,
numa primeira oportunidade de reforma curricular.
Atentemo-nos, em nível de reflexão, para alguns outros depoimentos de egressos, em plena
experiência de estágio supervisionado:
A prática de estágio serviu para, além de conhecer melhor a profissão assumindo agora o papel de
professor, foi a de conhecer a realidade da escola pública brasileira. (...) Esta atividade serviu
para enxergar a atuação do professor com outros olhos, algo que só ocorreria na prática e ver o
esforço que é para preparar uma aula e, por isso, valorizar ainda mais o que eu assisto (G. B. S. –
DHI/2012.2).
Ainda continuo muito decepcionada com o tratamento que certos professores dão aos alunos e
também a disciplina, como se fosse um mal necessário. Muito do fracasso escolar existente hoje
se devem a eles e não só ao sistema. (...) Também percebo as dificuldades desta profissão e os
empecilhos que provavelmente irei enfrentar (C. D. S. – DHI/2013.1).
Entrar em uma sala de aula foi uma experiência muito boa, conheci alunos interessantes, alunos de
vários jeitos, tranquilos, levados, brincalhões, o sem paciência, o que entende, o que tem
dificuldade de entender... e é nessa hora, que decidimos por ser ou não professor... (R. C. S. C. –
DHI/2012.1).
Nesse sentido, pesa também, em contrário, a falta de comprometimento coletivo com a prática da
docência em história. Isto, geralmente, é relegado para a responsabilidade de alguns poucos professores
credenciados para tanto, quando deveria ser uma responsabilidade de um todo colegiado, o que contribui
para, paradoxalmente, ser a prática de ensino uma entidade alienígena no conjunto do curso e nas pautas
departamentais.
Em tese, o desenvolvimento de práticas extensionistas integradas aos estágios da licenciatura, em
história, da Universidade Federal de Sergipe, deveria representar uma oportunidade de contribuição
efetiva de formação para a escola e para os campos de estágios. Não é o que tem demonstrado ser nos
últimos dez anos. Salvas raríssimas e promissoras exceções.
O mesmo pode se afirmar para a extensão universitária, que, no campo do ideal, poderia ser um
canal de comunicação entre a teoria e a prática profissional de história: uma importante opção para o
desenvolvimento de práticas pedagógicas e para a construção de saberes docentes diversificados nesse
nível de formação e ensino específico.
Ainda sobre o estágio supervisionado, vejamos a seguir o que podemos externar para aprofundar a
discussão, com vistas, evidentemente, a fomentar um cenário mais promissor de mudanças
consubstanciais e significativas mudanças.
Na melhor acepção da palavra, estágio seria: Um rito de iniciação profissional? Uma estratégia de
profissionalização? Conhecimento da realidade? Um momento de colocar em prática a teoria recebida?
Um treinamento?
Afora todas essas questões pertinentes, o estágio é, a nosso ver, o elemento central e integrante no
processo de formação profissional, aqui, de modo particular, na formação profissional do professor de
história. Ou, ao menos, deveria sê-lo.
Entretanto, nos adverte Pimenta: “(...) não se pode colocar o estágio como polo prático do curso, mas
como uma aproximação à prática, na medida em que será consequente à teoria que será estudada no
curso, que, por sua vez, deverá se constituir numa reflexão sobre e a partir da realidade da escola.”
(2006, p.14)
Mas, e essa questão da prática? Como a podemos conceber melhor para aventarmos seu uso no
campo da formação do professor de história? Se a concebermos enquanto experiência e vivência
laboratorial da docência, já teremos começado com o pé direito. E nesse nível, preocuparmo-nos como
será feita a transposição de forma acessível aos alunos do ensino fundamental e do ensino médio, melhor
ainda.
Ou seja:
A formação de professores e a sua prática não podem mais ser consideradas executoras de
modelos, de decisões alheias, e sim capazes de analisar, decidir, confrontar práticas e teorias,
produzir novos conhecimentos referenciados ao contexto histórico, escolar e educacional.”
(BARREIRO e GEBRAN, 2006, p. 27)
Nesse ínterim, precisamos ter bem claro em nossa mente que a prática docente está intimamente
ligada aos saberes e fazeres que ultrapassem as fronteiras dos conhecimentos específicos em história. A
teoria deve estar à disposição da formação docente, munindo-o de elementos e pontos de vista para
efetivar e executar uma ação contextualizada, dar vazão a uma capacidade de fazer análises e de
compreensão dos contextos históricos, sociais e culturais, sejam eles em nível local e macro.
Aliás, a regionalidade ou tendência a isto é rechaçada pela maioria dos docentes que compõem o
quadro do curso. Em tese, ou por lhe propugnarem uma concepção mais holística ou por encontrarem
dificuldade de atuar na particularidade de forma universal.
Em linhas gerais, o estágio em história deveria se pautar pelo tripé: interatividade, cotidiano e
competência profissional. Não há como dissociar teoria e prática. Na prática formativa, efetivamente,
teorizamos mais e praticamos menos. Nesse sentido, nosso exercício profissional como professor de
história estará mil anos-luz de uma práxis transformadora pretendida. E nessa toada, ele jamais será
capaz de atender às demandas de uma realidade que se faz nova e diferente a cada dia, de forma intensa e
instantânea.
No campo da competência profissional, permita-nos ilustrar com a seguinte assertiva:
(...) O trabalho docente competente é um trabalho que faz bem. É aquele que o docente mobiliza
todas as dimensões de sua ação com o objetivo de proporcionar algo para si mesmo, para os
alunos e para a sociedade (RIOS, 2001, p. 107).
Se entendermos que a identidade do professor de história é construída no decorrer do exercício da
sua profissão, efetivamente, ressaltamos que é durante a sua formação que ele deverá encontrar os
elementos necessários à sua construção identitária enquanto docente. Um curso de formação,
necessariamente, comprometido com isto será mais fadado ao sucesso do que a limites e incongruências.
Frente ao exposto até o momento, permita-nos levar a discussão da prática de ensino de história,
mais de perto, para a formação do professor de história sob as lentes que escolhemos para apreendê-la:
ainda que não seja uma pauta polêmica, ao menos pretenda ser inquietante e provocativa.
Vejamos.
Em 1993, tivemos acesso a uma obra que marcou o cenário das discussões sobre a formação e o
ensino no Brasil. Se você finge que ensina, eu finjo que aprendo, de autoria de Hamilton Werneck, a
qual alcançou um sucesso editorial impressionante, sendo referência até a presente data para se discutir,
com esgarçadura, as mazelas de nossa educação brasileira.
Vejamos o que diz o autor a respeito da pedagogia do fingimento:
(...) Trata-se de um método simples de representação, na realidade há pouco trabalho e nenhum
comprometimento, há, no entanto, a total burla do necessário e de qualquer espécie de trabalho
duro na direção de um aprendizado capaz de garantir o domínio do assunto em pauta (1993, p.
13).
Para, enfim, refletirmos sobre os limites e as incongruências da formação do professor de História
no Brasil e, de modo particular, no Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de
Sergipe, pautar-nos-emos por três postulados defendidos por Hamilton Werneck, a saber:
Postulado 01:
A educação convive com um problema antigo, que parece resistir a todos os avanços tecnológicos
disponíveis para a prática pedagógica. De um lado, ainda há professores que fingem ensinar,
cobrando pouco de seus alunos ou ensinando sem se preocupar com o aprendizado efetivo. De
outro, persistem alguns alunos que parecem não se importar em não aprender. Como resolver esse
impasse? (2011).
Postulado 02:
Um professor despreparado pedagogicamente que ensine um conteúdo acima da capacidade
psicológica da criança, mesmo trabalhando bem as suas aulas que podem representar um alto
padrão de eficiência, ou seja, fazer bem feito, pode estar fingindo ensinar, porque as crianças não
conseguirão aprender. Faltou a esse profissional a eficácia que significa fazer o que deve ser
feito. Portanto, sem eficácia sempre haverá fingimento (2011).
Postulado 03:
O salário é baixo e a motivação do professor também, consequentemente a educação; e os alunos,
diante de seu tumulto interior são obrigados a aprender em um ambiente onde varia em
extremismos o contexto da aula devido ao humor do professor. Sem se estabelecer metas e rumos
a educação tende a tornar-se um processo falho tanto para os alunos quanto para os professores,
que dentro deste contexto estão negando sua capacidade de ensinar (2011).
Dentro de um horizonte de expectativa positiva, o cenário de nossa formação será melhor quando
nada for mais importante, em termos profissionais do que conhecer o que se faz e fazê-lo bem, com
domínio de causa e dedicação a esta. Até porque, construímos nossa visão de mundo e nosso
entendimento sobre as coisas, inseridos numa conjuntura histórica, as quais norteiam não só nossas
atitudes, bem como nossas concepções e entendimentos.
Nesse sentido, vale pensar sobre o que se pede, o que se espera e o que se tem no que tange à
formação de professor de História não só em Sergipe, mas no Brasil. Do professor hoje se espera que ele
preze por três aspectos fundamentais: domínio de conteúdo, conhecimento e utilidade de práticas
pedagógicas e habilidade didática.
Atrelado a isso, também se torna imprescindível, nos dias de hoje, com a renovação do ensino e por
força da nova realidade de alunos e condições de todas as ordens, dominar não somente a teoria, mas
também as habilidades de pesquisa.
O professor do tempo presente deve proceder como a um relações públicas, levando seu aluno a
nutrir um sentimento de pertencimento ao conteúdo ministrado, intimamente envolvido por este, ao
tempo em que ele aprende a ler as coisas em sua volta com mais desenvoltura e discernimento.
Um professor mal preparado e desmotivado não consegue dar boas aulas nem com o melhor dos
livros, ao passo que um bom professor pode até aproveitar-se de um livro com falhas para
corrigi-las e desenvolver o velho e bom espírito crítico entre os seus alunos (PINSKY, 2005, p.
22).
Somos partidários da chamada pedagogia da sensibilidade (2012), proposta por Marcus de Mario.
O autor se utiliza dos preceitos morais, a fim de proporcionar elementos que estruturem a construção do
caráter dos indivíduos. Trata-se de processo construtivo, em que pais e educadores devem respeitar a
sensibilidade de cada sujeito.
Na educação, a sensibilidade deve estar acima de quaisquer preceitos morais. Trata-se de um fio, de
um elo, que nos religa ao sujeito aprendiz por meio do treino da percepção do outro. Para educar não
existe nada que não seja ou possa ser ferramenta de educação. A sensibilidade permite ao educador
perceber que tudo pode estar a serviço da educação e da necessidade de educar. Para isso, é preciso
estar com as janelas de sua mente e de seu coração bem abertas.
Como uma última assertiva reflexiva, o que dizer dos sobreviventes, daqueles cujas experiências de
formação, com deficiências ou não, seguem firmes na profissão?
Para tanto, parece-nos muito salutares as ponderações e experiências compartilhadas pelo
historiador Leandro Karnal, em seu livro “Conversas com um jovem professor”. A pergunta é muito
sugestiva e pode lançar luzes sobre as questões que vimos expondo até então: “por que continuo sendo
professor?” (KARNAL, 2015, p. 121).
Para o autor, em princípio, é a persistência da dúvida que impede a resolução de largar qualquer
coisa. Como historiadores, temos consciência de que o quadro de formação, no escopo dos estágios
supervisionados, é limitado e falho, que a realidade não é animadora em seu todo, mas as experiências
apontam que um futuro pode ser promissor, se os esforços se concentrarem no sentido da coletividade, do
comprometimento e da sistematização eficiente.
Alguns dos depoimentos dos alunos egressos e que seguiram na profissão atestam que a superação
das dificuldades esteve entre as atitudes mais promissoras e que tornaram, também, promissores seus
caminhos na docência de ensino de história. Não se trata de um apostolado ou uma vocação, mas de algo
mais.
Vejamos o que diz Karnal a respeito:
(...) nós, professores, reclamamos muito da nossa profissão. Reconheço: há certo narcisismo em toda
reclamação. Nossa vaidade exige que até os nossos problemas sejam os maiores do mundo. Ninguém
sofre tanto como o professor, pelo menos na nossa versão de professores. É preciso um pouco de
perspectiva” (KARNAL, 2015, p. 124).
Em que pese às considerações aqui expostas, entendemos que nossas universidades devem,
urgentemente, reinventar a formação de seus professores. Embora se saiba que mais da metade dos
egressos em cursos de licenciatura não tenham a mínima ideia da escolha, escolhe-no por inumeráveis
motivos, menos pela aptidão à docência.

Referências
Legislação
Cartilha esclarecedora sobre a lei do estágio: lei nº 11.788/2008 – Brasília: MTE, SPPE, DPJ, CGPI,
2008.
Constituição Federal 1988.
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - 9.394/96 (LDBEN-1996).
Parecer CNE/CP 9/2001 e do Parecer 27/2001.
Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) 0492/2001.
PARECER N.º: CNE/CES 492/2001.
RESOLUÇÃO CNE/CES 13, DE 13 DE MARÇO DE 2002.
Resolução CONEPE/UFS nº 65/2011.

Bibliografia
BARREIRO, Iraíde Marques de Freitas; GEBRAN, Raimunda Abou. Prática de ensino: elemento
articulador da formação do professor. IN: BARREIRO, Iraíde Marques de Freitas; GEBRAN, Raimunda
Abou. Prática de ensino e estágio supervisionado na formação de professores. São Paulo: Avercamp,
2006.
BITTENCOURT, Circe Maria F. Ensino de história: Fundamentos e Métodos. São Paulo, Cortez: 2005.
IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. 8
ed. São Paulo: Cortez, 2010.
KARNAL, Leandro. Conversas com um jovem professor. São Paulo: Melhoramentos, 2015.
MARIO, Marcus de. Pedagogia da sensibilidade. Mythos Editora: São Paulo, 2012.
PIMENTA, Selma Garrido. O estágio na formação docente: unidade teoria e prática? 7 ed. São Paulo:
Cortez, 2006.
PINSKY, Jaime.; PINSKY, Carla B. O que e como ensinar: por uma história prazerosa e consequentes.
In: História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2003.
RIOS, Terezinha de Azeredo. Compreender e ensinar: por uma docência de melhor qualidade. São
Paulo: Cortez. 2001.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002.
WERNECK, Hamilton. Se você finge que ensina, eu finjo que aprendo. 24 ed. Petrópolis/RJ: Vozes,
1993.
______. Ensinamos demais e aprendemos de menos. 22ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2011.

Eletrônica
Polêmicas do novo currículo de história serão temas de seminários. In:
http://g1.globo.com/educacao/noticia/2016/01/polemicas-do-novo-curriculo-de-historia-serao-temas-de-
seminarios.html. Acessado em 5 de janeiro de 2016.
PARECER N.º: CNE/CES 492/200. In: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES0492.pdf.
Acessado em 25 de janeiro de 2016.
RESOLUÇÃO CNE/CES 13, DE 13 DE MARÇO DE 2002. In:
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES132002.pdf. Acessado em 25 de janeiro de 2016.
Base Curricular Nacional. In: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/documentos/BNCC-
APRESENTACAO.pdf. Acessado em 25 de janeiro de 2016.

Sobre o autor
Claudefranklin Monteiro Santos é doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco.
Professor do Departamento de História, do Programa de Pós-Graduação em História e do Profhistória da
Universidade Federal de Sergipe. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Culturas, Identidades e
Religiosidades (CNPq/UFS).
CAPÍTULO 14

PRINCÍPIOS DA ESCOLA INCLUSIVA: DIVERSOS OLHARES SE


ENTRECRUZAM
José Adelmo Menezes de Oliveira
Verônica dos Reis Mariano Souza

Introdução:

A
o longo da história, a humanidade vem procurando caminhos que levem os homens a uma
melhor condição de vida. Nessa trajetória, a educação ocupou lugar de destaque. Dentre as
muitas concepções e finalidades, destaca-se a educação como fenômeno de inclusão. De
acordo com Mendes (2006), o princípio da inclusão passa a ser defendido como uma proposta de
aplicação prática na educação, que implica na construção de um processo bilateral, no qual as pessoas
excluídas e a sociedade buscam, em parceria, efetivar a equiparação de oportunidades para todos,
construindo uma sociedade democrática. Nela, todos conquistariam a cidadania, a diversidade seria
respeitada e haveria aceitação e reconhecimento político e social das diferenças.
A luta pelos diretos humanos é contígua à própria história da humanidade. Resguardadas as
contradições inerentes ao iluminismo e, por conseguinte, à revolução francesa, há que se reconhecer que
é a partir daí que se dará a consagração dos ideais de igualdade e liberdade para todos os homens e
mulheres. Com a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que enfatiza o
reconhecimento da dignidade de todo ser humano e dos seus direitos iguais e inalienáveis, confirma-se
que o respeito a todo ser humano é uma reivindicação que perpassa a história da humanidade.
Nesse contexto, a luta pela educação escolar como um direito inerente ao desenvolvimento humano
não é recente, e vem ganhando mais força no ambiente das políticas públicas com a publicação da
Declaração de Salamanca (1994). Este documento aponta, com clareza, os contornos de um modelo de
escola inclusiva, o qual vem conquistando relevância na agenda dos debates e das práticas educacionais
por oportunizar, conforme Ferreira (2007), a participação das minorias sociais em ambientes antes
reservados apenas àqueles que se enquadravam nos ideários preestabelecidos e perversos de força,
beleza, riqueza, juventude, produtividade e normalidade. Essa assertiva expõe o conflito entre distintos
modelos de sociedade: um produtor da exclusão e outro baseado na equidade. A travessia para uma
sociedade mais humanizada está associada à consolidação de uma escola inclusiva, entendida como o
lócus adequado para “constituir consciências críticas, efetivamente autônomas e criativas, capazes de
construir sociedades mais justas – voltadas para a solidariedade e o respeito pelo outro” (FERREIRA,
2007, p. 553). Nessa perspectiva, e somado ao disposto na Declaração de Salamanca, este escopo de
educação escolar é um direito inalienável de todos, que deve oportunizar aprendizagens significativas,
independentemente de diferenças individuais, respeitados os interesses, as necessidades e os talentos
próprios de cada um.
Os esforços pela superação da exclusão social e os debates acerca de um modelo de educação
vocacionado com a inclusão de todos no ambiente escolar datam de séculos. Ao revisitar a clássica
literatura da educação, vê-se que Comenius (1592-1670), na Didática Magna, apresenta um paradigma de
escola para todos, sem excluir ninguém; Condorcet (1743-1794), na obra Cinco memórias sobre a
instrução pública, destacadamente na primeira carta, defende a instrução pública como um dever do
estado e sempre orientada para a superação da desigualdade; e Pestalozzi (1746-1827), nas Cartas sobre
educación infantil, apresenta forte preocupação com a educação das classes populares.
Ao se fazer o entrecruzamento entre os olhares de Comenius, Condorcet e Pestalozzi, dá para notar
que são convergentes, ao tecerem uma forte crítica aos princípios e finalidades da escola dos séculos
XVI ao XVIII. Esta escola se configurava como predominantemente privada, ainda reservada aos
integrantes das classes abastadas, aos homens e aos ditos normais. Dela, estiveram excluídos os pobres,
as mulheres e as pessoas com deficiências. Para além das críticas, nos escritos desses pensadores,
encontram-se elementos que apontam para a formulação de um modelo de escola. Este modelo tem como
princípios: a universalização – educação para todos; a integralidade - educação comum; e a diversidade
– centrada nas diferenças. O conjunto desses princípios, mobilizados articuladamente, constitui o eixo
estruturante de um paradigma educacional menos excludente. E desses pensadores pode-se extrair os
fundamentos para a formulação do conceito de escola inclusiva, entendida como
uma escola de qualidade para todos, uma escola que não segregue, não rotule e não “expulse”
alunos com “problemas”; uma escola que enfrente, sem adiamentos, a grave questão do fracasso
escolar e que atenda à diversidade de características do seu alunado (CARVALHO, 2012, p. 96).
Dito de outro modo, e nesta perspectiva, na escola inclusiva, não existe a figura do aluno de ninguém.
Nela, cultiva-se o esforço permanente de reafirmação da identidade de cada pessoa que ali se encontra.
Sendo um tempo/lugar marcado pelo coletivo, a individualidade não ocupa atenção secundária. O esforço
é pela promoção de uma educação que não deixe ninguém para trás, a despeito das diferenças individuais
que, em síntese, caracterizam a espécie humana. Em outras palavras, deve-se ter em mente que, “subindo
por degraus devidamente dispostos, nivelados, sólidos e seguros, quem quer pode ser conduzido a
qualquer altura” (COMENIUS, 2002, p. 49).
Cabe salientar que os pressupostos de uma escola inclusiva, identificados nos postulados teóricos de
Comenius, Condorcet e Pestalozzi, convergem com a atual noção de escola inclusiva. Em suas
formulações teóricas, constam proposituras de construção de um modelo orgânico de educação. Nelas
não se vê a indicação de dois paradigmas de educação escolar distintos. Nestes escritos, resguardado o
contexto de sua elaboração, constam que a escola se constitui num bem social e deve ser acessível a
todos, em todas as formas e níveis. Todas as manifestações escolares, todos os usuários dos bens e
serviços promovidos pela escola, todos os objetivos e finalidades devem convergir para que “[...]se
construa uma escola para a educação comum[...]” (COMENIUS, 2002, p.36).
Os postulados teóricos herdados desses pensadores exerceram muitas e profundas influências na
educação ao longo dos últimos cinco séculos. Resguardadas as tensões entre o proselitismo e o laicismo,
a fé e a razão, o público e o privado, as suas contribuições serviram ora para denunciar, ora para
anunciar caminhos e descaminhos da/para a escola. Suas inquietações acerca da educação resultaram em
formulações sobre a concepção de educação, de escola, de função social, de finalidade, princípios e
procedimentos didáticos que favoreceram um movimento de profundas e significativas transformações
neste espaço chamado escola. E é sobre algumas dessas contribuições que passaremos a discutir de modo
mais detido.

Reforma escolar: entre discursos, pretensões e práticas


Historicamente, a escola sempre foi objeto de crítica. Em coadjuvância às críticas há sempre a
indicação e a maneira de reformar a escola. O termo reforma carrega um significado quase sempre
positivo. No âmbito da educação sistemática, as reformas produzem a crença de alteração positiva da
realidade. Disto resulta um intenso movimento reformista na escola, conforme se constata a partir da
leitura dessas três obras clássicas da educação. Em poucas palavras, as reformas escolares ocorreram
ora para reforçar um projeto civilizatório ora para a formação de uma mentalidade cidadã, crítica,
reflexiva e transformadora.
Sociedade e escola vêm sofrendo transformações e provocando mudanças, reciprocamente. Estas
mudanças, por vezes, não ocorrem no tempo nem na forma desejada e servem para revelar um passado
possivelmente ainda mais imperfeito, além de potencializar a crença de que, mesmo em compasso de
lentidão, as coisas sempre tendem a mudar. Melhor dizendo, “A um observador reflexivo as páginas da
história lhe falam de uma humanidade vinculada a prejuízos como a uma cadeia cujos anéis vão se
rompendo pouco a pouco”. (PESTALOZZI, 2006, p. 101, tradução nossa).
Ao longo da história da humanidade, a escola vem sendo marcada por profundos desejos de
transformação. Destacadamente, a partir do século XVI, surge um conjunto de pensadores especialmente
interessados em questionar e, por conseguinte, apontar caminhos que conduzam à sua ressignificação.
Muitos são os estudiosos, muitas são as formulações teóricas, e não menos são as mudanças ocorridas na
escola, conforme atesta o dito no início do penúltimo capítulo da Didática Magna, “Discorremos
largamente acerca da necessidade e do modo de reformar as escolas” (COMENIUS, 2002, p. 157). Nessa
altura da obra, o autor já havia tecido um conjunto de considerações acerca do tipo de educação
desenvolvido pelas escolas da época. Ele une razão, religião e natureza para nos apresentar uma
sistematização concreta da arte de ensinar e, nessa esteira, aponta as bases para a reforma ou melhoria de
uma escola pensada para promover a emancipação do homem e a manutenção do Estado. As críticas,
seguidas de proposituras, formuladas por este pensador acerca das questões que desafiam a educação,
ocasionaram relevantes alterações no cotidiano escolar daquela época, e o passar do tempo inaugurou
novas questões e novos desafios para a escola.
Assim, a escola chega ao século XVIII como cenário de uma realidade político-pedagógica passível
de ajustes, pois
não é mais possível aqui a existência de doutrinas ocultas ou sagradas que estabelecem uma
distância imensa entre duas partes de um mesmo povo. [...] onde as luzes não podem concentrar-se
numa casta hereditária nem numa corporação exclusiva. (CONDORCET, 2008, p. 19).
Disto depreende-se que, à época, a escola se caracterizava por forte ranço proselitista e
estruturalmente dual; com propostas de ensino distintas, endereçadas a grupos populacionais conforme
sua posição social. A privatização da escola exclusivamente a segmentos privilegiados da sociedade
acaba por represar a produção e a circulação do conhecimento, fato que, por certo, aprofunda a
desigualdade social. O afastamento do povo da escola, ao que se vê, figura como uma importante
motivação para a necessidade de reforma defendida pelo Marquês de Condorcet.
No dizer de Mello (1996), observa-se uma mudança copernicana na escola. Tem sido vigoroso o
movimento de reposicionamento do lugar da escola nas reflexões e nas agendas públicas. A escola vem
sendo pensada com considerável relevância e centralidade entre os teóricos e os formuladores de
políticas educacionais. A centralidade da escola nos debates, nos constructos teóricos e nas agendas
estatais serve para reafirmá-la como um lugar privilegiado para a formação de uma sociedade mais justa,
humana e democrática, para uma sociedade culturalmente inclusiva.

Comenius, Condorcet e Pestalozzi: três olhares na direção de uma escola diferente e


melhor
Com o advento do movimento renascentista, a humanidade presenciou uma série de tensões político-
filosóficas e a inauguração de importantes transformações em diversos segmentos da sociedade, a
exemplo da economia, cultura, educação, artes e religião. A análise dos clássicos da educação revela as
evidências dos projetos educacionais em disputa, a correlação de forças e a perplexidade diante da
possibilidade de mudança de mundo e de educação, visto
que não vai acontecer de maneira diferente com este nosso novo invento, diz-no-lo uma voz
interior. Mais ainda, sofremos já, em parte, o assalto da crítica. Todos se admirarão e se
indignarão de que haja pessoas que ousem lançar em rosto às escolas, aos livros e aos métodos,
aceites pelo uso, a sua imperfeição, e propor um não sei quê de insólito e superior a toda a crença
(COMENIUS, 2002, p. 47).
No entanto, o exame tanto dos fatos recentes quanto do passado indicava ao filósofo que nem o
progresso das ciências e artes, nem o estabelecimento da democracia política impediriam o surgimento
de novas formas de domínio e desigualdade, se os povos não fossem esclarecidos em torno das normas
que governam, das coisas e dos homens, aprendendo a aplicá-las, corrigi-las, inová-las de forma
inteligente e criativa.
Trata-se de um tempo da história da humanidade marcado por profícuos debates, embates de
propostas, questionamentos e proposituras.
Se alguém disser: onde iremos nós parar, se os operários, os agricultores, os moços de fretes e
finalmente até as mulheres se entregarem aos estudos? Respondo: acontecerá que, se esta
educação universal da juventude for devidamente continuada, a ninguém faltará, daí em diante,
matéria de bons pensamentos, de bons desejos, de boas inspirações e também de boas obras. E
todos saberão para onde devem dirigir todos os atos e desejos da vida, por que caminhos devem
andar e de que modo cada um há de ocupar o seu lugar (COMENIUS, 2002, p. 39).
É deste movimento, e mais adiante, com o aparecimento do ideal iluminista, especificamente a partir
do século XVII, que haverá a configuração de um projeto educacional e, por conseguinte, de uma
pedagogia direcionada à “ilustração” de todas as pessoas, sem se levar em consideração a
nacionalidade, a classe social ou a religião. Presenciam-se os ideais de democracia, igualdade,
liberdade, direitos humanos fixados em leis, e as lutas pelo exercício tácito dos direitos políticos e
sociais, dos quais destacamos o direito à educação escolar.
O dever da sociedade, relativamente à obrigação de estender de fato, tanto quanto for possível, a
igualdade de direitos, consiste, por conseguinte, em proporcionar a cada homem a instrução
necessária a exercer as funções comuns do homem, do pai de família e do cidadão, para sentir e
conhecer todos os deveres” (CONDORCET, 2008, p. 21).
O exercício pleno da cidadania pressupõe o direito de todos ao acesso e à permanência com êxito na
escola. A formação do homem educado, surgido no renascimento, ilustrado, conforme o ideário
iluminista, e cidadão, da contemporaneidade, tem como lastro um projeto educacional inclusivo. Assim, a
escola inclusiva se ancora num conjunto de princípios, muitos deles já presentes nas obras clássicas da
educação, que atravessaram séculos e ainda permanecem, até os dias atuais, reafirmados entre a maioria
dos governos, intelectuais e organismos internacionais.
A universalização se constitui num dos princípios da escola inclusiva. De acordo com este princípio,
“devem ser enviados às escolas não apenas os filhos dos ricos ou dos cidadãos principais, mas todos por
igual, nobres e plebeus, ricos e pobres, rapazes e raparigas, em todas as cidades, aldeias e casais
isolados” (COMENIUS, 2002, p. 38).
As novas demandas da sociedade, intensificadas nos últimos cinco séculos, impuseram um processo
de abertura da escola às pessoas, no mundo todo. Iniciado na Europa, no século XVI, o desejo de
construção de uma escola universal se expandiu mundo afora. Entre avanços e recuos, críticas e defesas,
este processo vem se constituindo como um dos principais desafios impostos à educação escolar.
Ademais, a universalização implica
(...) a progressiva extensão das oportunidades de acesso à escola, em todos os níveis do ensino,
para setores cada vez mais amplos da coletividade – ou, em outras palavras, o denominado
processo de democratização do ensino – sem dúvida alguma aparece como o elemento central nas
mudanças então observadas. Sob o impacto desta democratização das oportunidades, em poucas
décadas, o antigo ensino criado e organizado para atender às necessidades de minorias
privilegiadas vem sendo substituído por um novo sistema de ensino, relativamente aberto no plano
formal e, pelo menos tendencialmente, acessível à maioria da população (BEISIEGEL, 1986, p.
383).
Nesta linha de reflexão, universalizar a escola tem a ver, estritamente, com sua democratização. O
princípio de universalização implica a recusa pela escola como privilégio de poucos. Portanto, nessa
esteira, apresentam-se desafios de diversas ordens, tais como de financiamento, de valorização social e
econômica da profissão, de formação de professores e de uma Pedagogia centrada na aprendizagem. Será
sempre mais democrática, digo universalizada, a escola que não admite qualquer tipo de exclusão. É
mister afirmar que um sistema educacional universalizado é aquele que garante escola para todos. Dito
de outra forma, “a instrução pública, para ser digna desse nome, deve se estender à generalidade dos
cidadãos [...]” (CONDORCET, 2008, p. 58).
O movimento de reforma da escola tendo em vista a ampliação do acesso ao maior contingente
possível de pessoas tem sido longo, complexo e assaltado por uma multiplicidade de compreensões.
Reduzir o princípio da universalização exclusivamente à garantia da oferta de vagas nas escolas constitui
o principal desvio conceitual. Este princípio conjuga o duplo desafio de garantia de acesso à escola
como condição basilar para a promoção contínua do desenvolvimento de todas as potencialidades do
homem. Assim, a universalização sozinha não dá conta de compor a complexa malha de um paradigma de
educação inclusiva.
Outro princípio do paradigma educacional inclusivo é a integralidade. Cabe asseverar, logo de
início, que este princípio não se confunde com escola de tempo integral. Não é rara a associação direta
entre escola integral e jornada escolar integral. A primeira, essência desse debate, remete a uma proposta
que integra ciência, experiência, sociedade e escola. A organização do trabalho político-pedagógico da
educação integral favorece a aprendizagem contínua, que transcende o aprendizado dos conhecimentos
acadêmicos e eleva as oportunidades de aprendizagem para além do espaço escolar. Vida escolar e vida
social se intercomplementam. Este pressuposto implica na dinamização de um ensino que parta de uma
base de conhecimentos igual para todos que vai se potencializando a partir das experiências e demandas
da própria vida em sociedade. De acordo com (PESTALOZZI, 2006, p. 83, tradução nossa) “[...] deveria
a educação, ao invés de considerar unicamente aquilo que deve transmitir às crianças, começar por
considerar o que estas têm, que são as faculdades ainda não plenamente desenvolvidas, mas em vias de
desenvolvimento [...]”.
É notório o imbricamento entre a universalização e a integralidade. É possível afirmar que eles
constituem elementos de uma mesma unidade. A noção é a de que a escola é acessível a todos, a partir de
um conjunto orgânico de conhecimentos em favor do desenvolvimento de todas as potencialidades do
homem. Então, é adequado “[...] que em toda e qualquer comunidade de homens bem ordenada (quer seja
cidade, ou vila ou aldeia), se construa uma escola para a educação comum [...]” (COMENIUS, 2002,
p.36).
A educação integral se assenta num conjunto de conhecimentos comuns a serem trabalhados nas
escolas, que servirão para desenvolver as dimensões cognitivas, laborais, críticas e inventivas dos
indivíduos. Nessa perspectiva, a intenção é a formação omnilateral do sujeito. A escola deve cuidar para
que todas as faculdades do homem sejam desenvolvidas integralmente, de modo que nenhuma seja
sacrificada, desprezada ou potencializada intencionalmente em função de outra.
[...] devemos cultivar todas as disposições das quais somos dotados, sem distinção, teremos então
que a tarefa educativa, assim ampliada, poderá ser considerada desde um critério unitário.
Devemos ter sempre plena consciência de que o fim último da educação não é somente o
aperfeiçoamento dos conhecimentos escolares, mas também a eficiência para a vida [...]
(PESTALOZZI, 2006, p. 81-82, tradução nossa).
Por essa via, o empenho a ser destacado é o de potencializar os múltiplos atributos dos quais a
espécie humana é dotada, sejam racionais ou sensitivos. À escola compete não somente cumprir a função
de inserir o homem no universo letrado; mas, sobretudo, ajudá-lo a fazer uma leitura crítica e construtiva
da sociedade, a partir da compreensão rigorosa das principais questões do lugar e do tempo vividos por
ele. Desse fundamento se desenha um arranjo curricular que toma o aluno como um sujeito concreto, com
forças e fraquezas. O conhecimento sistematicamente elaborado e acumulado pela humanidade é
apresentado ao aluno como incompleto e passível de ajustes e complementos. Não constituem verdades
prontas e acabadas, mas o acesso a ele é fundamental para o crescimento pessoal e para a elaboração de
novos conhecimentos, que, por certo, afetarão positivamente a sua vida em sociedade.
O fundamento da educação integral implica o acesso a uma sólida base de conhecimentos teóricos a
serem trabalhados pelas escolas, oportunizando que a formação das pessoas que a elas chegam se dê sob
a mesma plataforma teórica e prática. Mais ainda, a tarefa da escola é proporcionar um ambiente de
aprendizagem que capacite “todos” os alunos para ter êxito, apesar de suas diferenças iniciais”
(GONZÁLEZ, 2002, p. 132). Assim, consideradas as inclinações pessoais e os fatores sócio históricos, o
sujeito possa, preferencialmente de modo autônomo, decidir sua trajetória de vida. Trata-se de um
princípio que propicia não somente uma base curricular comum para todos, mas se compromete com o
respeito às identidades individuais no interior de um espaço essencialmente coletivo.
Do século XVI aos dias de hoje, a escola se caracteriza pelas classes povoadas por diversos alunos,
heterogêneos entre si. São pessoas distintas em quase todos os aspectos. Não obstante enquadradas na
mesma classe, elas se distinguem pelos diferentes interesses, pelas expectativas que os movem, pelos
traços físicos e intelectuais. No dizer de Libâneo (2003), a escola é um lugar de síntese. No seu interior,
interrelacionam-se múltiplas e diferentes realidades.
[...] a escola é um lugar de luta entre interesses em competição onde se negocia continuamente.
[...] As políticas culturais das escolas costumam ser muito complexas, entre outras coisas, porque
distintos grupos podem levar à organização bagagens culturais distintas que podem originar sérios
conflitos sobre ideologias e tecnologia; neste sentido, a prática educativa de uma escola, sua
definição de pedagogia e currículo, avaliação e disciplina, é resultado de políticas culturais, não
são independentes do contexto sociopolítico em que se situam mas derivam e contribuem à
divisão de classe, gênero, raça, idade, próprios da sociedade mais ampla. As culturas das escolas
se relacionam com as da sociedade mais ampla (ESCUDERO e GONZÁLEZ, 1994, p. 91).
Desse modo, a diversidade emerge como mais um princípio da escola inclusiva. A diversidade é o
terreno no qual se encontram, dentre muitas outras, as diferenças culturais, ideológicas, religiosas, gênero
psicosensoriais. É deste princípio que resulta a clareza de que a escola precisa ser “[...] a mesma para as
mulheres e os homens. Com efeito, toda instrução se limita a expor as verdades, a desenvolver suas
provas, não se vê como a diferença dos sexos exigiria uma diferença na escolha das verdades ou na
maneira de provê-las” (CONDORCET, 2008, p. 57).
Como já foi dito, o debate sobre as diferenças, além da questão de gênero, etnia e classe social,
inclui, de igual modo, a temática da pessoa com deficiência. Em publicação de 1929, sob o título Os
problemas fundamentais da defectologia contemporânea, Vygotski assevera que a deficiência exerce um
papel de destaque na formação da personalidade da pessoa. O contingenciamento imposto pela
deficiência é o mesmo propulsor da superação dos limites e barreiras impostas à pessoa com deficiência.
A base do seu pensamento reside no fato de que a deficiência se constitui em pretexto para a eficiência,
para o aguçamento de outros sentidos, como forma de compensação. Assim, os aspectos intrínsecos à
personalidade e a estimulação da família e da escola ocupam lugar central no processo de adaptação e
superação das limitações decorrentes da deficiência.
A inevitável interlocução entre a realidade própria da escola e a pluralidade de realidades que
compõe o tecido social posiciona, no mesmo terreno, o encontro entre iguais e diferentes. Portanto, a
implementação de um trabalho educacional profícuo depende da compreensão da diversidade como um
princípio fulcral da escola inclusiva. A diversidade não condiz com a subordinação, o esfacelamento, a
imobilização ou a anulação de identidades nem de culturas. Ao contrário, é o território da intersecção,
pois
A coexistência com igualdade de direitos de diferentes comunidades étnicas, grupos lingüísticos,
confissões religiosas e formas de vida não pode ser obtida ao preço da fragmentação da
sociedade. O processo doloroso de desacoplamento não deve dilacerar a sociedade numa miríade
de subculturas que se enclausuram mutuamente (HABERMAS, 2002, p. 166).
O respeito à diferença, na escola inclusiva, assenta-se no direito à igualdade como condição para o
desenvolvimento pessoal e coletivo. O imbricamento entre grupos culturais distintos acaba por gerar
novos e diferentes arranjos sociais e culturais. Desse princípio, deriva um movimento constante de
junção, troca e recomposição de ideias, gêneros, crenças e modos de vida. Conforme assevera Pestalozzi
(2006, p. 82, tradução nossa), “A grande diversidade de aptidões e propensões, de planos e de esforços
que observamos nas pessoas, constitui, por si, uma prova inequívoca da necessidade que atuemos de
modo distinto segundo cada caso”.
Uma sociedade de base democrática, regida, dentre outros princípios, pelo da igualdade, implica o
reconhecimento e o respeito à individualidade. E reconhece que, de igual modo, cada sujeito possui uma
identidade que o faz naturalmente diferente dos demais. Seguindo essa lógica, a diversidade como um
pressuposto da escola inclusiva não resulta de uma escolha institucional, mas obedece a um aspecto
natural que constitui a própria espécie humana – a singularidade física e cognitiva característica de cada
ser humano. A prática pedagógica assentada na diversidade pressupõe que “[...] se admitam a esta cultura
mesmo aqueles que não são dotados de grandes inteligências e até os de inteligência lenta [...]”
(COMENIUS, 2002, p. 158). Desse excerto, depreende-se que não é recente a clareza de que a escola
deve trilhar o caminho da inclusão, pela certeza de que todos nós somos sujeitos da aprendizagem e de
que cada um aprende em seu próprio tempo. O ritmo de aprendizagem varia de pessoa para pessoa. “Nem
todos os indivíduos nascem com faculdades iguais e, mesmo ensinados pelos mesmos métodos, pelo
mesmo número de anos nem todos aprenderão as mesmas coisas” (CONDORCET, 2008, p. 34). Os
traços pessoais e a história de vida de cada um são os guias para esta concepção de educação que foge à
opressora lógica de planificação das mentalidades, das aptidões, das deficiências e dos talentos.

Últimas considerações
Ainda hoje persiste uma variação de concepções e projetos educacionais em disputa. A luta por um
modelo de escola que parta da desigualdade, comprometido com o pleno desenvolvimento das múltiplas
capacidades individuais e orientado para a formação de mentalidades independentes, continua sendo um
desafio contemporâneo. Conforme atestam as obras dos clássicos, um mundo melhor para todos está
diretamente remetido a uma educação humanizadora, emancipatória e solidária.
Ademais, resta esclarecer que a complexidade que circunda a escola inclusiva transcende os
pressupostos de universalização, de integralidade e de diversidade, abordados neste capítulo. A escolha
em refletir somente sobre estes três aspectos orientou-se, predominantemente, pelo fato de eles serem
explícitos e convergentes nas formulações dos clássicos em epígrafe. Além deles, os estudos de Beyer
(2005), Mendes (2006), Ferreira (2007) e Edler (2009) constituem uma sólida base teórica para o campo
da educação inclusiva e acrescentam, dentre outros princípios, a interdisciplinaridade, a ênfase na
eficiência em detrimento da deficiência e os métodos pedagógicos centrados na aprendizagem. Dessa
tessitura forja-se o modelo de escola inclusiva, pretexto deste capítulo.

Referências
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geral da civilização brasileira. São Paulo: DIFEL, 1986.
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CONDORCET, Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, Marques de. Cinco memórias sobre a instrução
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CARVALHO, RositaEdler. Educação inclusiva: com os pingos nos “is”. Porto Alegre, Mediação, 2009.
ESCUDERO, Juan M. GONZÁLEZ, María T. Profesores e escuela: hacia una reconversiónde los
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FERREIRA, M. E. C. O enigma da inclusão: das intenções às práticas pedagógicas. Educação e
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HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2002
LIBÂNEO, José Carlos (Org.). Educação escolar: políticas, estrutura e organização. São Paulo: Cortez,
2003.
MELLO, Guiomar Namo de. Cidadania e competitividade: desafios do 3º milênio. SãoPaulo: Cortez,
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MENDES, Enicéia Gonçalves. A radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil. Revista
Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33, 2006.
PESTALOZZI, Johann Heinrich. Cartas sobre educación infantil. Madrid: Editorial Tecnos, 2006.
VYGOSTKI, Los problemas fundamentales de la defectologia contemporânea. In: VYGOSTKI. L. S.
Obras escogidas, volume V, Madrid, 1997.

Sobre os autores
Verônica dos Reis Mariano Souza é Doutora em Educação e Professora do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe.
José Adelmo Menezes de Oliveira é Mestre em Educação Tecnológica. Professor do Instituto
Federal de Sergipe e doutorando em Educação na Universidade Federal de Sergipe.
CAPÍTULO 15

O ENSINO DE HISTÓRIA DE TRAUMAS COLETIVOS ATRAVÉS


DO HOLOCAUSTO: UM ESTUDO PARA O TEMPO PRESENTE
Karl Schurster
Alana de Moraes

É latente a necessidade de se problematizar a forma como as sociedades contemporâneas lidam com o


ensino dos chamados “traumas coletivos”. Analisar, discutir e historicizar esses processos se coloca
como um desafio frente à construção de um modelo de escola que vise à formação da cidadania. São
crescentes os casos de discriminação no Brasil e no mundo, levando a uma forte discussão sobre o
quanto de fato conseguimos avançar quando falamos de temas como inclusão ou mesmo a questão de
gênero. Os dados apontam que apenas na primeira metade de 2016 o número de assassinados por questão
de orientação sexual no Brasil chegou a 1601. Casos de violência contra a mulher são igualmente
crescentes, a citar o ocorrido na favela do Rio de Janeiro, quando 30 homens abusaram sexualmente de
uma jovem gerando grande repercussão nas redes sociais e imprensa, nacional e internacional2.
Emblemático ainda é o racismo, que muitos chamam de “velado”; nas comunidades brasileiras, poucas
são as oportunidades de vida dada a jovens, em sua maioria negros e pobres, que esbarram
cotidianamente com os camburões da Polícia Militar, quando não na bala que parece saber quem deve
atingir. Uma polícia que criminaliza, tortura e mata, de forma sistemática3.
Recentemente, foi criada uma página no facebook chamada “Últimas palavras de jovens negros”.
Tal a página busca dar visibilidade aos atos de violência, crescente, nas comunidades brasileiras. É
somente dessa forma que ecoa no Brasil de hoje as palavras ditas por esses jovens que, muitas vezes,
encontram uma sociedade e um Estado inaudíveis às suas dores. A partir dessa página muitos dos casos
de violação dos direitos humanos cometidos pela PM brasileira passam a ser compartilhados, seguidos
da hastag das últimas palavras da vítima. Eis o caso de Santana, menino de 11 anos de idade, negro e
pobre, morto no 25 de setembro de 2015, na comunidade Parque Alegria – complexo do Caju – Rio de
Janeiro, quando compartilhada a #QueroMinhaMãe.4
Sendo assim, torna-se fundamental repensar o papel da escola e dos agentes educacionais enquanto
responsáveis por debater criticamente as causas e os efeitos do fascínio pela violência, dentro e fora da
escola. Violência essa que se apresenta em parte do aparato policial, nos campos de futebol, em forma de
racismo, de homofobia e tantas maneiras de negação da alteridade, mas que só persiste como sendo fruto
de um Estado, que não a coloca como ponto central a ser resolvido, e ainda da própria sociedade civil,
que em muitos momentos perpetua e legitima a violência.
O debate no Brasil acerca do ensino de História, em especial o que denominamos “traumas
coletivos”, é crescente, no entanto, ainda é necessário estabelecer lugar de fala, onde se possa
historicizar o quanto desse passado ainda se torna presente ou mesmo o quanto desse passado-recente
teima em não passar. Os massacres na Bósnia (1995), Kossovo (1998) e Macedônia (2001), na própria
Europa, ou o Genocídio em Ruanda (1994), além das constantes matanças na África Ocidental e o
programado genocídio de Dafur, no Sudão (2003), como tantos outros casos, se contrapõem à ideia de
que o conhecimento acerca do talvez maior trauma coletivo do século passado, o holocausto, ou, melhor
dizendo, do Shoá, seria suficiente para cessá-los. Faz-se necessário ir a fundo no debate. É preciso
estudar o que permitiu o assassinato sistemático de milhões de indivíduos, pelo simples fato de serem o
que eram, procurando reconhecer o que aprendemos e o que fomos e somos capazes de ensinar. Parece-
nos que os exemplos supracitados demonstram que a escola não tem conseguido responder a essas
questões com clareza, profundidade e cuidado que esses temas necessitam, figurando, muitas vezes, como
reprodutora de conteúdos, quando deveria ser o local do encontro da diferença e da elaboração conjunta
de críticas ao mundo dado como algo natural ou mesmo naturalizado.
É notório que nos livros didáticos o fenômeno do genocídio5 tenha sido, em larga medida, esquecido.
A necessidade do estudo da historiografia do Holocausto se dá na medida em que oferece análise e
reflexão sobre onde somos capazes de chegar, movidos pela não aceitação do outro. A referida
historiografia oferece inúmeros materiais, os quais podem ser trabalhados desde a infância até a
universidade. Estes vão desde testemunhos – da memória viva – até filmes, livros, desenhos. Estudar e
ensinar a história do Holocausto abre parâmetros para a negação de qualquer teoria que vise negá-lo
enquanto fenômeno histórico e abre um campo fundamental de discussão sobre as questões ligadas à
temática da alteridade, tão fundamental para entender as sociedades contemporâneas.
Concomitante ao estudo da historiografia do Holocausto, é necessário revisitarmos e atualizarmos os
conteúdos que integram os currículos da educação básica. Buscaremos neste trabalho discutir as
propostas de ensino de história do Holocausto, suas justificativas e motivações, bem como o papel da
escola, dos textos e instrumentos didáticos, e como eles têm sido utilizados na formação educacional das
crianças e jovens. A urgência do ensino do Holocausto pode ainda ser evidenciada na resolução da
Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2005, que ao estabelecer o Dia Internacional de Lembrança
das Vítimas do Holocausto (27 de Janeiro), recomenda que fossem promovidos programas educacionais
que visassem o ensino das consequências que podem ser geradas decorrentes do autoritarismo e da
negação da liberdade do outro de decidir sobre o que ser.
É verdade que houve um avanço no que tange à expansão dos estudos acerca do ensino do
holocausto, no entanto, a operacionalização desses estudos ainda se tem feito de forma bastante lenta.
Constitui-se, a título de exemplo, como dificuldade aos professores da rede básica de ensino, os
enrijecidos currículos que levam o professor a tratar, como nos mostra Yehuda Bauer, a História acerca
dos grandes filósofos e generais, negando a devida atenção aos assassinatos massivos desde toda a
História. Assim, é na escola que buscamos a oportunidade de repensar a educação brasileira, de pensar
uma educação que caiba no nosso tempo, com suas novas demandas e motivações, uma educação que
pense para além do bojo dos currículos enrijecidos e que forme de fato para a construção de uma
cidadania que aceite o outro nas suas diferenças.
Está claro que somente os currículos não resolverão os problemas da educação no Brasil. A
formação dos profissionais responsáveis por passar esse conhecimento também se coloca como uma
questão de imprescindível importância. É preciso desmistificar os genocídios, passados e correntes. A
culpabilização da vítima não é o caminho para uma educação de fato emancipatória, os perpetradores
estavam movidos pelo ódio violento que não aceita o outro nas suas diferenças, que divide a sociedade
entre os “aceitos” e os “indesejáveis”, sendo assim, não estão passíveis de culpa e de responsabilidade.
Fato de igual importância nesse processo se dá nas propostas de legislações em municípios
brasileiros que buscam instituir o ensino do Holocausto como obrigatório nas salas de aula. Nesse
sentido, podemos citar o Rio de Janeiro, com a lei municipal 4.782/08, de autoria da então vereadora
Teresa Bergher; o município de Porto Alegre, a partir da lei 10.965/10, de autoria do então vereador
Valter Nagelstein (PMDB); e, ainda, os projetos de lei da cidade de Curitiba, de Emerson Prado
(PMDB/2011); e do município de São Paulo, através dos projetos 0112/09 e 0129/09 que versam sobre a
temática, ambos de autoria de Floriano Pesaro (PSDB). Dentre os dispositivos supracitados, que
evidenciam o ensino do tema como mecanismo de combate à intolerância, seja qual for sua natureza, dois
casos tornam-se emblemáticos por questões distintas. No município de Porto Alegre, a sanção da lei que
tornou obrigatório o ensino do Holocausto no território municipal foi tema de grande debate, fazendo com
que os adeptos fossem acusados de causar uma “dogmatização do ensino público brasileiro”,
apresentando argumentos da teoria revisionista do Holocausto, a qual nega o fenômeno histórico. Por sua
vez, a capital paranaense, Curitiba, abriu em 2011 o primeiro espaço de “rememoração” do Shoah no
Brasil, o Museu do Holocausto/Curitiba. O museu baseia-se em quatro pilares principais: Memória,
Documentação, Investigação e Educação, em consonância com três dos pilares do Museu oficial da
Memória do Shoah, o YadVashem/Israel.
Aqui, entretanto, reside a discussão acerca da obrigatoriedade versus responsabilidade com a
memória de um evento que se funda como sendo um evento da humanidade. Tomemos dois exemplos: i) o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA 8.069/1990) completou em 2015 25 anos, assistimos, então,
na sociedade brasileira, um importante debate acerca da redução da maioridade penal e concomitante a
isso o completo desconhecimento da lei antes referida, bem como os inúmeros casos de sua omissão; ii)
no ano de 2013, a lei 10.639, que versa sobre a obrigatoriedade do ensino de História da África nas
escolas da rede básica, completou 10 anos, no entanto, nas escolas, a temática segue reduzida a temas
como a “escravidão africana”, ao “sincretismo religioso” e às degradantes condições dos “navios
negreiros”, deixando de lado outros que se apresentam como um grande recurso didático, como o regime
de Apartheid na África do Sul. Os exemplos nos mostram que garantir dispositivos legais que
condicionem o ensino não basta, o dever da memória não pode ser tido apenas como obrigatoriedade. É
ainda mais necessário criar mecanismos que garantam a responsabilidade pela efetiva implementação das
leis do processo educacional.
O Museu de Curitiba, alicerçado nas mesmas bases da International School for Holocaust Studies,
desempenha o papel de oferecer formação e instrumento didático-pedagógico para o ensino do tema;
além disso, é realizada pelo museu, em parceria com demais instituições, a “Jornada Interdisciplinar para
estudos do Holocausto”, tendo sua primeira edição em 2008; o evento se funda para evidenciar a
urgência do ensino do tema.
Em 1953, foi fundado o YadVashem, instituição que tem por objetivo “proteger a memória do
passado e dá seu significado ao futuro”, para tanto, atua em quatro pilares: comemoração, investigação,
documentação e educação. Cada um dos pilares mencionados possui um mecanismo de funcionamento
que, mesmo movidos pelo mesmo intuito, atuam de forma diferenciada. No presente trabalho, daremos
maior relevância ao pilar da educação e à forma como este opera.
O eixo da educação operacionaliza sua atuação a partir da International School for Holocaust
Studies, escola responsável pela produção, publicação e difusão do material de ensino, fundada no ano
de 1993, 40 anos após a formação do YadVashem. Realiza a construção de materiais didáticos que
auxiliem no ensino, visando à multidisciplinaridade. A pergunta central para a construção do material é:
“Como os indivíduos viviam antes, durante e depois do Holocausto?”. A estrutura dos livros é
construída partindo da necessidade de fazer com que a sociedade tome conhecimento da História do
Shoah e dos traumas gerados por esta História. Entre os principais objetivos educativos da escola está o
dever da memória, educar para que o Holocausto nunca mais se repita. A partir de 2013 o Estado de
Israel incorpora a filosofia do YadVashem ao currículo oficial e, desde então, este programa atende
desde o ensino primário até o secundário.
A International School for Holocaust Studies divide os patamares da educação em uma forma
espiral de ensino: pré-escolar, primário, intermediário e secundário. Dessa forma, ainda que exista o
debate acerca da carga emocional que está sendo lançada sobre o aluno, existe também o cuidado com os
temas que estão sendo tratados. Embora muitos dos temas possam ser encontrados nos diferentes níveis
de ensino, a didática e o conjunto de métodos que são utilizados em cada um dos patamares são
diferentes. É necessário, segundo a filosofia educativa, que, por exemplo, no pré-escolar, sejam
construídos significados a partir dos recursos visuais, levando sempre em consideração a carga
emocional à qual a criança está exposta. Utilizaremos para fins de análise, neste texto, as lições e
propostas pedagógicas para uso do professor utilizadas no processo de ensino, buscando, dessa maneira,
compreender a proposta pedagógica do YadVashem que tem sido implementada nos espaços que abordam
o tema no Brasil.
“Não é brincadeira de crianças”!6 Trata-se de uma exposição itinerante do YadVashem para o
público da escola primária. A exposição trata sobre a luta pela sobrevivência, a luta das crianças pela
sua vida e o esforço de preservar a sua infância frente à difícil realidade em torno delas, ao modo como
o desenvolvimento de suas vidas foram alterados e as alterações pelas quais passaram as relações
sociais e familiares. Apresenta-se através de brinquedos e desenhos que recebem distintos significados
acerca do Shoah. Assim, na exposição: “O brinquedo se tornou um símbolo que liga a criança com sua
vida passada, a última coisa que o ligava com sua infância. [...] e os desenhos são a expressão do mundo
interno. Assim, ele expressa seus sentimentos e desejos. ”
Assim como na construção do material didático, a exposição está dividida em três períodos: antes,
durante e depois do Shoah. Na primeira parte, o docente que acompanha a exposição deve relatar um
mundo em harmonia, como as crianças vivem quando não têm sua ordem e rotina alteradas. A segunda,
durante o Shoah, é a parte mais importante da exposição e deve ser encaminhada no sentido de fazer com
que as crianças mantenham relação com o seu passado, através dos jogos e desenhos. E a terceira e
última parte, depois do Shoah, enfatiza qual o destino das crianças sobreviventes, como elas se
relacionaram/relacionam com o fato de que pessoas próximas lhes foram tiradas e como construíram uma
vida quando a base educacional da infância foi invadida por uma ordem autoritária e discriminatória.
Como proposta de atividades são expostos muitos desenhos, brinquedos e poemas, dos quais são
extraídas perguntas que envolvam a criança no processo de ensino, como é o caso de uma proposta de
atividade a partir da exposição de uma boneca. Trata-se da boneca de uma sobrevivente, Eva Modvál,
que foi doada ao YadVashem para a exposição em 1998. Eva conta que a boneca passou por tudo com
ela, desde que seu pai foi enviado ao campo de concentração e de lá nunca mais retornou, Eva, Gertá (a
boneca) e sua mãe emigraram para Israel em 1945.

Fragmento da carta de despedida escrita por Eva Modvál a sua boneca Gertá. Yad Vashem/Israel

Uma das ferramentas muito utilizada pela International School for Holocaust Studies para o ensino
do Shoah é a imagem. É o caso do material didático para crianças de seis a nove anos de idade que
tenham conhecimento prévio sobre o Shoah: “Uma infância presa na dor: uso criativo das imagens na
sala de aula”7, de autoria de Liz Elsby.
Na primeira parte da aula, os alunos irão entrar em contato através da arte com a história de Hava
Wolf, uma criança judia durante o holocausto, artista e sobrevivente, analisarão algumas de suas pinturas
e observarão o uso original da cor, simbolismo e composição. Na segunda etapa da aula, eles podem
expressar seus símbolos, cores, formas e composição pessoal através de seus próprios desenhos.
Nesse sentido, aqui está expresso mais uma característica da filosofia do Yad Vashem no tocante ao
ensino da História do Shoah. Neste nível de ensino, é de imprescindível importância o envolvimento da
arte, da literatura, do cinema e da música como mecanismo didático.

Chava Wolf-Wijnitzer - La fiesta de cumpleaños que nunca tuve.

A imagem acima, de título “A festa de aniversário que nunca tive”, é um dos quadros utilizados nesse
material didático para o ensino do Shoah. Retrata o mundo da fome, da pobreza e da doença em que o
artista viveu. A autora da pintura explicita a necessidade que sente de comemorar cada um dos seus
aniversários com os entes queridos após o Holocausto. Como proposta de atividades estão perguntas que
estabelecem comparações entre o durante e depois do Shoah.
Em última instância do ciclo educativo proposto pelo YadVashem está o secundário. Nesse sentido,
as atividades de propostas são de maior complexidade e envolvem temas mais duros à comunidade judia.
Neste trabalho, analisaremos o material “Sete poemas, sete pinturas: guia didático para a análise de
uma seleção de poemas sobre o Holocausto. ”8 Para o YadVashem, a proposta de utilizar poesia no
ensino/estudo do Shoah é por acreditar que é mais eficaz para despertar o interesse histórico. “A
dimensão humana, que é muitas vezes o foco da poesia, é mais atraente que o relato histórico impessoal.”
Entre os objetivos de se trabalhar com poemas estão a necessidade de examinar o problema da
identificação judaica pós Holocausto e de incentivar o estudo do tema através da poesia e da arte em
geral.
Neste material foram elencados sete poemas, e a cada um vinculada uma imagem que busque retratar
o sentimento do artista ao lê-lo: Si esto es un hombre (Primo Levi), Herencia (Hayim Gouri), Salmo
(Paul Celan), La mariposa (Pavel Friedman), Si acaso (Wislawa Szymborska), Escrito con lápiz en el
vagón sellado (Dan Pagis) e Primero vinieron por los judíos (Martin Niemöller). Através dos poemas
são tratados os diversos temas, tais como a importância de transmitir o que aconteceu às gerações futuras,
como o caso do poema de Primo Levi; a identidade judia, no poema de Hayim Gouri; e os observadores
passivos, como encontrado no poema de Martin Niemöller.
A literatura acerca do Shoah é crescente, os materiais didáticos produzidos pelo YadVashem buscam,
em alguma medida, uma nova concepção de ensino, em que o aluno esteja diretamente envolvido com o
conteúdo que está sendo trabalhado, fazendo-os participar do processo de ensino e do estabelecimento de
comparações entre diferentes tempos históricos. Responsabilizar o aluno pela História e memória do
Shoah, além de fazê-lo participante, representa um rompimento com modelos há muito esgotados, a citar
a conceitualização vazia dos termos que servem apenas para transformar a História em uma disciplina
decorativa e incapaz de gerar o interesse no aluno.
A utilização de imagens e poemas abre um novo campo de ensino, demonstrando que não é
necessário usar as imagens tradicionais de pilhas de corpos empilhados, as quais servem apenas para
mostrar e perpetuar a dor, sem fazê-los sensíveis ao fato de que a negação da alteridade ainda se encontra
presente, em níveis diferentes, na nossa sociedade. A emergência de estudos que visem uma sociedade
livre de discriminação sempre será necessária enquanto continuarmos a assistir formas extremas de
negação da alteridade.

Referências bibliográficas:
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Anistia Internacional”. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015.
Anistia Internacional: O jovem negro vivo. Relatório Anual da Anistia Internacional Brasil. In:
https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/, consultado em 18/01/2016.
http://www.yadvashem.org/yv/es/index.asp.
https://homofobiamata.wordpress.com/
Plan de lección que acompaña a la exposición itinerante de Yad Vashem: “No es juego de niños”. La
escuela internacional para el estudio del holocausto. Disponível em:
http://www.yadvashem.org/yv/es/education/lesson_plans/no_childs_play.as.
Plan de lección que acompanha el libro: ELSBY, Liz. “Uma infância presa na dor: uso criativo das
imagens na sala de aula.” Disponível em:
http://www.yadvashem.org/yv/es/education/lesson_plans/chava_wolf.asp .
Sete poemas, sete pinturas: guia didático para a análise de uma seleção de poemas sobre o Holocausto.
Disponível em: http://www.yadvashem.org/yv/es/education/lesson_plans/poems_paintings.asp .
Waiselfisz, J. J. Mapa da violência 2015: mortes matadas por armas de fogo. Brasília:
FLACSO/UNESCO, 2015.

Sobre os autores
Karl Schurster é Pós-Doutor em História. Doutor em História Comparada pela UFRJ. Professor do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Pernambuco. Atualmente é professor
visitante da Universidad Tres de Febrero no Centro de Estudios sobre Genocidio e realiza o segundo
estágio de Pós-Doutorado na Universidade Livre de Berlim. Esse texto é fruto da pesquisa Ensino de
História de Regimes Autoritários e Traumas Coletivos financiada pelo CNPq e pela FACEPE.
Alana de Moraes é mestranda no Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade de
Pernambuco. Graduada em História pela Universidade de Pernambuco. Pesquisadora no Laboratório de
Estudos do Tempo Presente – Núcleo UPE.

Notas
1. https://homofobiamata.wordpress.com/ “Quem a homotransfobia matou hoje? ” – Site que lista
diariamente os assassinatos cometidos contra a comunidade LGBT.
2. http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/31/politica/1464713923_178190.html . Acesso em:
07/06/2016.
3. No ano de 2015 foram publicados dois documentos que corroboram essa realidade, o documento
“Você matou meu filho”, da Anistia Internacional, e o Mapa da Violência de 2015, ambos denunciam o
uso da força e da violência, de natureza variada, como forma de ação da Polícia Militar nas comunidades
do Rio de Janeiro. “Você matou meu filho: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio
de Janeiro / Anistia Internacional”. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015. Waiselfisz, J. J. Mapa da
violência 2015: mortes matadas por armas de fogo. Brasília: FLACSO/UNESCO, 2015.
4. http://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/08/politica/1460132767_979858.html . Acesso em: maio de
2016.
5. Aqui temos uma reflexão que necessita ser feita e que foi primeiramente levantada pelo britânico
Martin Shaw: qual a importância de estudar os genocídios? Eles seriam capazes de resolver o problema
de desorientação sobre processos tão traumáticos para diversas sociedades de uma forma geral? Há,
aqui, uma advertência antes mesmo das respostas que necessitam ser dadas. Os estudos do genocídio e
mesmo o nosso caso em questão, o ensino desses traumas coletivos, pode tanto superar as questões de
desorientação sobre esses temas como pode também agravar esses traumas. Quando se estuda os
genocídos não é possível manter uma imparcialidade clara e objetiva dentro do processo histórico. Em
verdade, configura-se uma obrigação do pesquisador se colocar ao lado da vítima, mesmo procurando o
lugar de fala e as condições de produção dos perpetradores. De fato, as razões do ponto de vista ético
sempre se sobrepõem às outras quando se estuda o genocídio. Talvez seja a hora de atualizar novamente
a teoria criada pelo jurist Raphael Lemkin de que genocídio foi um processo exaustivo no qual um poder
atacou e destruiu os modos de vida e as instituições dos povos. Essa pode ser considerada uma definição
um pouco limitada tendo em vista as diversas realidades afetadas por esses duros processos históricos.
Muitas outras interpretações, como a do teórico Stevens Katz, apontam para o fato de que apenas a
intenção de extermínio total de um povo pode ser considerado genocídio, mesmo que essa intenção não
tenha sido plenamente levada a cabo. Para mais informações ver: SHAW, Martin. Qué es el genocidio?
Buenos Aires: Prometeo, 2014.
6. http://www.yadvashem.org/yv/es/education/lesson_plans/no_childs_play.asp. Acesso em: 10/07/2016.
7. http://www.yadvashem.org/yv/es/education/lesson_plans/chava_wolf.asp. Acesso em: 10/07/2016.
8. http://www.yadvashem.org/yv/es/education/lesson_plans/poems_paintings.asp. Acesso em:
10/07/2016.

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