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ABREU, Mauricio de Almeida.

Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão inicial das


favelas do rio de janeiro. Espaço & Debates. v. 14, n. 37, p. 34-46, 1994.

Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão ini-


cial das favelas do Rio de Janeiro*
Mauricio de Almeida Abreu

A imagem de que o Rio de Janeiro é um lugar de con- A favela se constitui, hoje, na forma de habitação po-
trastes tem acompanhado a cidade há bastante tempo. pular mais difundida no Rio de Janeiro. Em 1991, exis-
Os viajantes dos séculos XVIII e XIX, por exemplo, tiam na cidade, 545 favelas, que abrigavam cerca de
foram unânimes em destacar a diferença gritante que 1.100.000 habitantes.4 Trata-se, evidentemente, de um
se verificava, àquela época, entre o magnífico quadro número considerável, que revela bem a importância
natural que envolvia a cidade e o acanhamento e feiura dessa solução habitacional, que já está completando
do seu quadro construído. Alfred Agache, que elabo- cem anos de existência.
rou o primeiro plano urbanístico da cidade de provín- Apesar de sua longa presença no cenário carioca,
cia.1 Já uma publicação recente, dedicada ao Rio, in- pouco se sabe, entretanto, da origem e do processo de
dica que essa imagem ainda se mantém. Encarnando expansão inicial da favela. Esse desconhecimento
ao mesmo tempo a fartura e a carência, o belo e o feio, pode ser atribuído a dois fatores; de um lado, à dificul-
a alegria e a tristeza, a cidade é vista como refletindo, dade de obtenção de informações; de outro, à grande
nada mais nada menos, do que a “beleza do diabo”.2
difusão que tiveram dois importantes trabalhos publi-
Essa imagem de “terra dos contrastes” não é falsa. O cados nos anos sessenta,5 e que sustentaram, equivo-
Rio de Janeiro reflete, na sua economia e na sua cul- cadamente, que só a partir de 1940 é que a favela teria
tura, a diversidade e as disparidades características da passado a “chamar a atenção”, isto é, teria se tornado
sociedade brasileira como um todo. Fatores históricos um elemento importante da estrutura urbana carioca.
e naturais, entretanto, tornam esses contrastes mais O erro acima pode ser explicado. Até 1930, a favela
acentuados no Rio, o que contribui para alimentar a existe de facto mas não de jure. Está, portanto, pre-
imagem de “lugar exótico” que a cidade também pos- sente no tecido urbano, mas ausente das estatísticas e
sui. dos mapas da cidade; não é individualizada pelos re-
A favela talvez não seja o elemento mais importante censeamentos. É considerada como uma solução habi-
desse quadro de contrates. Por ser, entretanto, um de tacional provisória e ilegal, razão pela qual não faz
seus exemplos mais visíveis, ela vem ocupando, já há sentido descrevê-la, estudá-la, mensurá-la.6 Para os
bastante tempo, um lugar de destaque na pauta de de- poderes públicos, as favelas simplesmente não exis-
bates sobre a cidade. Não se deve pensar, entretanto, tiam.
que ela participa dessas discussões de forma consen- A mudança de regime político, em 1930, não mudou
sual. Ao contrário, à favela também podem ser associ-
essa situação. Embora os habitantes das favelas cario-
adas várias imagens contrastantes, que reproduzem, cas tenham sido beneficiados pela legislação traba-
em escala localizada, a imagem principal do Rio.
lhista e social implantada pelo governo de Getúlio Var-
Abrigo da marginalidade urbana, mas também residên- gas,7 a verdade é que, embora crescentes em número,
cia do trabalhador honesto; “chaga” da cidade, mas as favelas continuaram a ser consideradas como habi-
igualmente “berço do samba”; solução urbanística des- tat urbano temporário, razão pela qual mantiveram-se
prezada e, ao mesmo tempo, elogiada; as imagens da ausentes das estatísticas e dos documentos oficiais da
favela se impuseram-se no decorrer do século XX e já cidade.
se incorporaram ao imaginário coletivo da cidade. De-
A partir de 1940, entretanto, essa situação começa a
ram ensejo, também, a inúmeras reflexões sobre o seu
mudar. Decidido a “resolver problemas de higie-
papel no conjunto da estrutura urbana carioca.3

*
Trabalho realizado com apoio do CNPq e da FINEP. O autor agradece aos participantes do Projeto Evolução Urbana do Rio de Janeiro
pela Valiosa ajuda que prestaram à elaboração deste artigo, e a Lia Osório Machado e Roberto Lobato Corrêa pelas sugestões críticas.
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Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão inicial das favelas do Rio de Janeiro

nização”, o governo municipal dá início a uma série de informações provenientes de fontes arquivísticas e ou-
levantamentos sistemáticos das favelas.8 Com isso, ob- tros órgãos de imprensa.
jetivava-se cadastrar seus habitantes, visando a trans-
ferí-los das áreas valorizadas que ocupavam para par-
ques proletários a serem construídos pelo governo.
O Rio de Janeiro no final do século XIX
O fracasso dessa política é bem conhecido.9 Dela re-
sultaram, entretanto, as primeiras estatísticas detalha- O final do século XIX constitui um período de transi-
das sobre as favelas da cidade, e é esta a razão pela ção importante na história brasileira. Extinta a escravi-
qual os trabalhos que as estudam tendem a concentrar dão em 1888 e proclamada a República em 1889, o
sua atenção no período pós-1940. país vivenciará, no decorrer da última década do sé-
A grande acolhida que teve o Partido Comunista nas culo, uma série de transformações econômicas, políti-
favelas, nas eleições livres de 1947, também contri- cas e sociais, que embora traumáticas em muitos sen-
buiu para isso. Preocupado com a “demagogia comu- tidos,13 viabilizarão a sua integração efetiva à nova or-
nista”,10 o governo municipal fez realizar, logo a se- dem internacional surgida com o advento da segunda
guir, o primeiro recenseamento das favelas, de quali- revolução industrial.
dade reconhecidamente deficiente, mas que indicou a Capital do país e principal ponto de articulação do ter-
existência no Rio, naquela ocasião, de 119 favelas, ritório brasileiro com os centros nervosos do capita-
70.605 casebres e 283.390 moradores, ou seja, 14% da lismo mundial nessa época, o Rio de Janeiro será palco
população da cidade.11 Daí para frente, a favela passa- privilegiado onde se materializarão as pressões que en-
ria também a existir de jure, ainda que as estatísticas a volviam a República nascente. Cidade antiga, ela
seu respeito sejam falhas até hoje. acrescentará, entretanto, a essas novas tensões, todo
O presente trabalho pretende estudar os primeiros anos um rol de contradições que já lhe eram próprias e vi-
da favela no Rio de Janeiro. Concentrará sua atenção nham se acumulando há bastante tempo.
no período que se estende do final do século XIX a Essas contradições não eram de pouca monta. Elas
1930, época em que a favela se afirma como solução eram evidenciadas principalmente pela ausência de um
habitacional e se difunde pelo cenário urbano. O prin- porto moderno, necessário à agilização de todo o pro-
cipal objetivo do trabalho é resgatar do esquecimento cesso de importação/exportação de mercadorias e pela
roda uma história de luta pelo direito à cidade, ocorrida permanência de uma trama urbana ainda remanescente
no início do século XX, e que ainda permanece obs- dos tempos coloniais, que dificultava a circulação in-
cura. Na busca dessa história esquecida, e dadas as ca- terna e que dava à cidade, segundo críticos da época,
rências de informação citadas acima, o trabalho utili- um ar de “grande vila portuguesa”.
zará a única fonte que acompanhou, ainda que de
forma imperfeita, o processo de expansão da favela Apesar de sua importância populacional, evidenciada
pela cidade: a imprensa periódica. nos 522.651 habitantes registrados em 1890, a cidade
sofria também baixas demográficas consideráveis.
A utilização da imprensa como fonte principal do es- Epidemias diversas, notadamente de febre amarela, as-
tudo traz alguns problemas. Os órgãos de comunicação solavam anualmente o Rio. E ao incidirem com maior
da época, exaltadores da ordem burguesa recém-insta- violência sobre as habitações coletivas, acabavam por
lada, sempre apresentavam uma visão tendenciosa da matar, a cada ano, uma parcela considerável da força
favela, que é vista, via de regra, como a negação da de trabalho.
ordem e do progresso. Não há, entretanto, como fugir
deles. A imprensa operária, embora diversificada e Para resolver essas contradições, o que não faltavam
combativa durante o período estudado, nunca deu eram propostas. Todas apontavam para a necessidade
atenção às favelas. Os registros de histórias orais, por de intervenção direta sobre o meio ambiente, tanto o
sua vez, ou não foram feitos ou não são conhecidos. natural como o construído: havia que drenar os pânta-
Contamos, portanto, com uma única fonte, que embora nos, que arrasar os morros, que elevar o solo, que cons-
problemática em alguns aspectos, é, por outro lado, truir um porto moderno, que alargar as ruas, que cons-
bastante rica e pouco explorada. truir casas higiênicas. Todas essas propostas esbarra-
vam, entretanto, na falta de capitais ou na ausência de
Na busca de informações sobre favelas na imprensa, determinação política.
este trabalho privilegiou a leitura do Correio da Ma-
nhã, cujos números foram pesquisados desde o seu Se não era possível chegar à forma urbana que se
surgimento (em 1901) até 31/12/1930. A opção por desejava, era preciso, entretanto, que se atacasse de
este jornal foi determinada por um pré-teste, que indi- frente a questão sanitária, e disso vinha se incum-
cou ser ele o periódico que mais atenção dava às cha- bindo a política higienista do governo central já há
madas “causas populares”.12 Complementando essa algum tempo. Tratava-se com efeito, de uma ques-
investigação sistemática, o estudo contou também com tão tão nacional. O problema da insalubridade do Rio

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Espaço & Debates nº 37 – 1994

não se restringia à queda da produtividade do trabalho Apesar dessa campanha contra os cortiços, a forma ur-
urbano ou ao comprometimento da imagem da cidade; bana da cidade permanecia inalterada. As turbulências
ele também solapava a política imigratória e reduzia o políticas e econômicas vindas com a República invia-
fluxo de capitais para o país. bilizavam qualquer projeto de reforma urbana. Ade-
mais, para isso seria necessária a concorrência de vul-
tuosos capitais externos, que não se sentiam nada atra-
O combate às habitações coletivas ídos pelo clima de instabilidade reinante na capital do
país. No final da década, entretanto, retomado o poder
O exemplo mais significativo da intenção do governo político pela oligarquia cafeeira, esta logo restaurou a
brasileiro no campo da higiene pública no século XIX credibilidade financeira do país e abriu caminho para
foi, sem dúvida, a política de combate às habitações a chegada dos capitais externos necessários para a re-
coletivas do Rio de Janeiro. Iniciada ainda nos tempos modelação da cidade. No período de 1903-1906, a ci-
do Império, essa política envolveu uma série de inte- dade teve então a sua forma urbana radicalmente trans-
resses e projetou-se para muito além dos limites do hi- formada.19
gienismo.
Decidida e eliminar os “miasmas”, que a seu ver eram
responsáveis pela insalubridade da cidade, a Inspetoria
A origem da favela
de Higiene Pública encetou, nas últimas décadas do sé-
A favela é anterior à reforma urbana. Ela tem a sua ori-
culo XIX, uma batalha implacável contra habitações
gem ligada a dois focos de tensão que afetaram o Rio
coletivas, que eram conhecidas como estalagens ou
de Janeiro no final do século XIX; a crise habitacional,
cortiços,14 contando para isso com a ajuda da Acade-
mia de Medicina. Para essas duas instituições, os cor- que se agravou muito, e as crises políticas advindas
com a República. Dentre essas últimas, duas tiveram
tiços eram os grandes vilões da cidade e, por essa ra-
zão, defendiam a sua erradicação. As autoridades po- importância capital: a Revolta da Armada, ocorrida em
liciais também apoiavam essa decisão. A elas preocu- 1893-1894, e a campanha militar de Canudos, que se
prolongou de 1896 a 1897.20
pava a explosividade potencial de um centro bastante
denso e a dificuldade logística de controlá-lo em caso Desde a Revolta da Armada que o governo vinha en-
de conflito, face à estreiteza do plano viário exis- frentando problema do alojamento de soldados no Rio
tente.15 de Janeiro. Para resolver essa situação, ordens foram
expedidas autorizando a ocupação do convento de
Numa cidade pré-industrial como o Rio de Janeiro, a
Santo Antônio (localizado no morro do mesmo nome)
lógica rentista entretanto prevalecia.16 Os cortiços po-
por militares. Não tendo sido acomodações suficien-
diam ser insalubres, mas também uma enorme fonte de
tes, permitiu então o coronel Moreira César (que aca-
extração de renda, sendo inúmeros os indivíduos que
baria morrendo na campanha de Canudos) a constru-
se dedicavam a explorá-los. A Câmara Municipal, por
sua vez, representante dos interesses comerciais e ren- ção, numa das encostas desse mesmo morro, de diver-
sos barracões de madeira. Para tanto, concorreram a
tistas da cidade, pouco fazia para mudar essa situação.
existência “de grande número de praças casados neste
Embora promulgasse, sob pressão dos órgãos de higi-
batalhão e a deficiência de casas nas proximidades
ene, posturas severas de combate aos cortiços, fazia vi-
deste quartel.”21
sas grossas quanto ao seu cumprimento. Por outro
lado, o rápido crescimento demográfico da cidade só Em abril de 1897, antes mesmo do fim da campanha
fazia aumentar o poder de barganha dos chamados cor- de Canudos, a Prefeitura já tentava, entretanto, resol-
ticeiros. ver esta irregularidade. Informando que havia no
morro de Santo Antônio vários “galpões de madeira ...
Preocupado com essa situação, o Inspetor Geral de Hi-
construídos por ocasião da Revolta, por ordem do go-
giene informava, em 1890, que a população domicili-
verno e outros por conta própria”, um agente munici-
ada nos cortiços já representava “o dobro da recense-
ada em 1888, isto é, mais de 100.000 habitantes.”17 pal solicitava o envio de uma comissão de engenheiros
para vistoriá-los.22 Essa comissão, por sua vez, infor-
Esse grande aumento populacional, certamente ligado
mava, em dezembro do mesmo ano, que havia ali “41
a abolição da escravatura, coincidiu, entretanto, com o
barracões de madeira cobertos de zinco, construídos
recrudescimento das epidemias, o que levou à intensi-
ilegalmente em terrenos do governo”.23
ficação da campanha contra os cortiços. Sob pressão
direta da Inspetoria de Higiene, vários cortiços foram Há indícios de que, também em 1893/1894, come-
então fechados ou demolidos a partir de 1890, inclu- çam a ser construídos barracões no morro da
sive o famoso Cabeça de Porco, o maior deles, que Providência. L. Vaz afirma que, logo após a des-
abrigava cerca de 2.000 pessoas e que foi demolido em truição do Cabeça de Porco, que se situava exata-
1893.18 O combate aos cortiços continuou pelo res- mente no sopé desse morro, um de seus proprietá-
tante da década, agravando ainda mais a crise habita- rios, dono também de terrenos na encosta, autorizou
cional.
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Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão inicial das favelas do Rio de Janeiro

a ocupação da mesma, cobrando dos antigos inquilinos (que construía o porto do Rio de Janeiro e seus eixos
o direito de ali construírem casebres.24 viários complementares e movia intensa campanha de
Não há ainda prova que indique que uma autorização controle do mosquito transmissor da febre amarela, in-
militar tenha sido dada a soldados retornados de Canu- vestindo com furor sobre as habitações coletivas), a ci-
dos, em fins de 1897, para que também eles pudessem dade viu desaparecer, em curto espaço de tempo, boa
ocupar as encostas do morro da Providência, locali- parte da parcela do seu parque construído.
zado nas proximidades do quartel general do Exército. Em relatório escrito por comissão designada pelo Mi-
Independente dessa confirmação, não há dúvida, entre- nistério da Justiça para elaborar um projeto de lei de
tanto, de que não mais procede a afirmação, hoje ge- construção de habitações operárias, o engenheiro Eve-
neralizada, de que foram esses soldados que deram ori- rardo Backheuser,33 um de seus autores, fornecia nú-
gem à favela na cidade. Como visto, ela surgiu um meros alarmantes:
pouco antes. Essa constatação não invalida, entretanto, Esta comissão ... verificou que estava muito além de
a afirmação de que foi realmente a partir do morro da toda a expectativa o número de casas demolidas ... Só
Providência que o termo favela25 incorporou-se ao a Saúde Pública ... fez fechar para mais de 600 habita-
quotidiano da cidade, conforme será discutido adiante. ções coletivas que davam alojamento a mais de 13.000
pessoas.34
Não há muitos documentos sobre o início do processo
de favelização da cidade. Sabe-se entretanto que, de A imprensa diária também fornece um quadro dramá-
1898 a 1901, um comissário de higiene alertou insis- tico dessa situação. As ordens de despejo eram geral-
tentemente para o crescimento de barracões no morro mente afixadas nos portões dos prédios a serem demo-
de Santo Antônio, não tendo recebido, entretanto, lidos e definiam prazos extremamente curtos para a sua
qualquer resposta para as suas inquietações.26 Foi ne- total evacuação. Expulsa de suas residências, a popu-
cessário que a imprensa denunciasse, em 1901, que es- lação tinha que resolver rapidamente o problema de
tava surgindo aí “um bairro novíssimo, construído sem moradia. Para alguns, mais abandonados, a saída para
licença nem autorização das autoridades municipais e os subúrbios foi a solução.35 Para muitos, entretanto,
em terrenos do Estado ... perfazendo um total de 150 que não podiam arcar com os gastos de transporte, a
casebres ... e cerca de 632 habitantes”.27 para que a fa- permanência no centro, ou em suas proximidades, tor-
vela finalmente atingisse o domínio público.28 nou-se ainda mais fundamental. Por essa razão, passa-
O impacto da denúncia foi imediato. O prefeito Xavier ram a se apinhar nas habitações coletivas restantes, pa-
da Silveira dirigiu-se imediatamente ao local e desco- gando altos aluguéis.
briu a existência, não de 150, mas de cerca de 400 ca- A este quadro social, já bastante dramático, somava-se
sinhas que, segundo ele, “eram verdadeiros chiqueiri- o impacto das migrações:
nho, não podendo nelas habitar pessoa alguma”.29 Sur- A situação da classe pobre era, pois, das mais precá-
preendeu-se também ao constatar que, embora os pri- rias, apesar de haver no Rio atualmente muito trabalho
meiros casebres tivessem sido construídos por milita- bem remunerado. Mas, por isso mesmo, de todos os
res, eram esses moradores agora francamente minori- lugares circunvizinhos chegavam diariamente campo-
tários; segundo ouviu no local, “essas casinhas, outrora neses, que trocavam o seu serviço na roça pelas ocu-
feitas por soldados, foram por estes vendidas a paisa- pações de operário ... A população pobre aumentava
nos”.30 sem que aumentasse o número de casas.36
Começavam a ser divulgados, assim, os dramas da fa- Escritos em plena “era das demolições, os relatos
vela na cidade. Ainda que ocupando terrenos que não acima constituem-se em fonte de valor inestimável
eram sues, já os primeiros habitantes das favelas bus- para a recuperação da dimensão social da reforma ur-
cavam extrair delas uma renda fundiária/imobiliária, bana carioca no início do século XX. É surpreendente,
processo esse que só tenderia a se intensificar com o entretanto, que os documentos da época não façam
tempo.31 Complemento dessa história de ocupação ile- qualquer vinculação entre o agravamento do problema
gal de terras, a ação repressora do poder público tam- habitacional e o crescimento das favelas.37 Embora o
bém logo se fez sentir de imediato: o prefeito ordenou morro da Favela seja citado por Backheuser como
a imediata destruição de todos os casebres.32 exemplo mais agudo do problema habitacional, o en-
genheiro lhe dá, na realidade, pouca atenção. Isto se
deve, com certeza, ao caráter inexpressivo que essa
A era das demolições forma de habitação ainda assumia na época. De fato,
frente à multidão de pessoas que se aglomerava nos
advento da reforma urbana, o déficit habita- cortiços, as soluções habitacionais encontradas por
cional, que já era grande na cidade, aumentou ainda aqueles que ocupavam o morro da Favela só mereciam
mais. Sob a ação conjunta da Prefeitura (que alarga- mesmo a atenção de Backheuser “pela originalidade e
va ruas e abria novas avenidas) e do governo federal pelo inesperado”.38

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Espaço & Debates nº 37 – 1994

A era das demolições Já tomando ímpeto na primeira década do século, é,


entretanto, a partir de 1910 que o processo de faveliza-
A expansão da favela pelo tecido urbano carioca teve ção ganha ímpeto. Em 1912, publica-se que “a encosta
início durante a reforma urbana. É interessante notar, do morro do Andaraí está quase toda edificada de ran-
entretanto, que também os jornais diários não se aper- chos, tugúrios e choupanas de todos os feitios”.44 Já
ceberam disso. Terminada a reforma, entretanto, os outro artigo indicava que, na recém-aberta Copaca-
jornais dão-se conta que a nova fisionomia do Rio não bana, havia “uma população inteira que se abriga na
se resumia apenas às amplas avenidas que surgiram ou Vila Rica, em casebres piores que os do morro da Fa-
aos novos edifícios, em estilo eclético, que agora em- vela e ali vivem na mais completa imundície”.45 Ou-
belezavam a área central. Não muito longe desses tros informes confirmam ainda a existência de inúme-
“símbolos do progresso”, uma quantidade apreciável ros barracões no morro do Leme.46
de barracos, verdadeiras negações da modernização A favela de São Carlos surge em fins de 1912.47 Em
urbana, também havia se incorporado à paisagem da 1913, o diretor da Saúde Pública denuncia que já exis-
cidade. tem 219 casebres no morro da Favela e 450 no morro
Surpreendida pela expansão rápida de uma forma ur- de Santo Antônio, “vivendo em ambos uma população
bana inusitada, que se contrapunha a todo o esforço de de perto de 5.000 almas”. Informa, ademais, que em
compreendido de aburguesamento da cidade, a im- sete distritos sanitários urbanos já são 2.564 os barra-
prensa começa então a se ocupar desse novo habitat cões e 13.601 as pessoas que neles vivem.48 Em 1915,
urbano, e é através dela que se pode recuperar, ainda já há indícios da existência de uma favela no morro dos
que parcialmente, o processo de difusão espacial da fa- Cabritos, em Copacabana, e confirmação de outra em
vela. Botafogo, no morro do Pasmado.49 Logo depois, a fa-
vela passa a ocupar os morros do Catumbi,50 e chega
Já em 1907, esse processo era claramente identificado também a Ipanema, à Lagoa e ao Leblon.51 Atinge, in-
pelo Correio da Manhã, que afirmava que, para a clusive os subúrbios.52 (Ver mapa).
“grande leva de bandidos” da cidade, ou seja, para
aqueles que haviam sido expulsos da área central pelas No curto espaço de dez anos, surgem, pois, diversas
obras de reforma, ou que eram agora expelidos dali favelas na paisagem carioca. Em comum, elas apresen-
pelo grande aumento do valor dos aluguéis, só resta- tam não apenas a localização nas encostas dos morros
vam mesmo “as montanhas agasalhadoras... (isto é) ... da cidade, mas também a proximidade de importantes
quase todos os morros que formam a cinta da ci- fontes de emprego, tanto no centro como nos bairros
dade”.39 e dizia mais: residenciais. A partir da década de 1920, a expansão
das favelas tornar-se-ia multidirecional e incontrolá-
O êxodo não cessa. Diariamente passam carrocinhas vel.
carregando trastes desconjuntados, latas, vasilhas de
barro, gaiolas, baús arcaicos, e vão pelas estradas dos
subúrbios, param nas fraldas das montanhas. Os bos-
ques alpestres e os das planícies abrem-se acolhedores
e entre as árvores aboletam-se os expulsos, sentam-se
Da favela às favelas
nas pedras, nas grossas raízes, penduram os fardos aos
ramos e, enquanto os homens, à pressa, vão levan- Barracões situados em morros não eram incomuns no
tando os ranchos, as mulheres instalam a cozinha ao Rio de Janeiro do século XIX. A sua presença é assi-
tempo... A montanha povoa-se. É a caridade da nalada, por exemplo, em relatórios escritos em 1865 e
Terra... assim vai a pobreza recuando para as eminên- em 1881.53 Tratava-se, entretanto, de uma exceção à
cias, abrigando-se nos cerros, repelida pela Grandeza, regra da habitação popular, que era o cortiço. Ademais,
pelo fausto arrasador das casas humildes, pelo Pro- nunca formavam esses barracões qualquer aglomera-
gresso que não consente na permanência de um pardi- ção de vulto.
eiro no coração da cidade. A montanha abre seu manto
verde e acolhe os pobrezinhos como os santos no Ao concentrarem-se nos morros de Santo Antônio e da
tempo suave dos eremitas.40 Providência na virada do século, entretanto, os barra-
cos que aí surgiram passaram a constituir uma exceção
Não foi possível identificar a data exata em que os de peso. Somente a chancela da autorização militar e o
diversos morros do Rio passaram a ser favelizar. caráter provisório atribuído a esses alojamentos pare-
Notícias esparsas, entretanto, muitas vezes vindas cem explicar a ausência de uma condenação imediata
da crônica policial, permitem que recuperemos, ainda da Saúde Pública, de resto tão empenhada na demoli-
que imperfeitamente esse processo. Em 1907, ção das habitações insalubres a retomada da ação pu-
já há indicações precisas da presença de diversos nitiva, evidenciada pela remoção da favela do morro
barracões no morro da Babilônia, na zona sul da de Santo Antônio antes mesmo da reforma urbana, in-
cidade.41 Em 1909, tem-se como certa a existência da dicava, entretanto, que o controle do espaço urbano
favela do Salgueiro.42 Em 1910, por sua vez, surge voltaria ao comando do Estado.
a favela da Mangueira, no morro do Telégrafo.43

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Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão inicial das favelas do Rio de Janeiro

É um fato, entretanto, que isto não aconteceu. Tendo mínia anterior, e a associação do termo “favela” às
sido poupado da remoção forçada que atingira o morro imagens de “perigo”, de “crime” e de “descontrole”
de Santo Antônio, talvez pela sua localização mais generalizou-se pela imprensa.
afastada do centro nervoso da cidade, o morro da Pro-
Na difusão dessa imagem teve também papel funda-
vidência não só permaneceu como exemplo notável de
mental a Revolta da Vacina, uma violenta manifesta-
um contra-movimento que se instalava na cidade, e de-
ção popular ocorrida em 1904, e que foi causada por
safiava a ordem que lhe era imposta pelas classes diri-
um acúmulo de insatisfações populares (reação contra
gentes, como assumiu um papel de destaque na crônica
o projeto de vacinação obrigatória, contra as demoli-
policial carioca.
ções que amentavam a crise habitacional etc.), habil-
É que logo começaram a ocorrer aí uma série de cri- mente manipuladas por grupos políticos interessados
mes, em nada diferentes daqueles que aconteciam nos na destituição do governo.56 Como foi no sopé do
densos bairros populares da cidade, mas que se distin- morro da Providência que os distúrbios mais sérios
guiam dos demais por duas razões: primeiro, pela lo- aconteceram, muitos dos que deles participaram aca-
calização exótica do aglomerado e pela existência, aí, baram se refugiando no morro, ou moravam mesmo aí,
do aparato de repressão preventivo que percorria as de- contribuindo assim para aumentar sua má fama perante
mais áreas; segundo, porque em função das caracterís- a imprensa.
ticas do local (acesso difícil, possibilidade de embos-
À exceção desses acontecimentos, entretanto, o perí-
cada), a ida da polícia ao morro geralmente se revestia
odo da reforma urbana tirou o morro da Favela tempo-
num caráter verdadeiramente militar.
rariamente do noticiário. Com tantas modificações afe-
Em 1902, o morro da Providência já é visto pela tando a forma da cidade, havia muitas outras questões
imprensa como “uma vergonha para uma capital a informar. No que diz respeito à questão da habitação
civilizada”,54 como “o perigoso sítio, que a voz popular, a imprensa tratava agora de chamar a atenção
popular denominou morro da Favela”.55 Não há para o agravamento do problema de moradia e para a
como saber se foi mesmo a “voz popular” ou, o necessidade urgente de o governo adotar uma política
que é de mais provável, a “voz da burguesia”, que aca- de casas operarias.
bou dando a esse morro a imagem de “perigoso Esta política nunca surgiu. Consequentemente, a
sítio”. A verdade, entretanto, é que a alcunha “morro solução habitacional iniciada nos morros de Santo
da Favela” rapidamente tomou o lugar da topo-

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Antônio e da Providência, como já visto, espalhou-se uma suave viração que sopra continuamente dulcifi-
pela cidade. Ela não foi acompanhada, entretanto nessa cando a rudeza da habitação”.64
fase inicial, pela difusão do nome genérico de favela.
Lugar de criminosos, mas também lugar de trabalha-
Durante toda a década de 1910, a imprensa utiliza essa
dores; lugar onde se mora mal, mas onde se mora ba-
palavra sempre com F maiúsculo, indicando tratar-se
rato; lugar insalubre, mas que é mais saudável do que
de nome próprio, de um lugar específico da cidade.
as opções que se oferecem aos pobres na cidade legal;
Isto não impede de que as descrições do morro da Fa-
a favela vai assumindo assim a suas imagens contradi-
vela sejam sempre carregadas de significados negati-
tórias, e vai permanecendo também na paisagem cari-
vos e de alusões pejorativas, tais como “o fantástico
oca.
morro da Favela”,57 “a terrível Favela”,58 a “já triste-
mente famosa Favela”,59 o “célebre morro da Fa- A manifestação dessa dualidade de imagens na im-
vela”.60 prensa é constante. Em um artigo de 1909, a Careta
revela o “Rio desconhecido” e informa que as casas
Embora ainda não chamadas de favelas, era inevitável,
existentes na Favela, “laboriosamente construídas so-
entretanto, que as aglomerações de barracos que surgi- bre rocha ... abrigam numerosa famílias, operários, la-
ram em outros morros da cidade logo passassem a ser vadeiras e até facínoras”. Conclui, entretanto, que
comparadas ao “modelo original”, de F maiúsculo. Ao “apesar de possuir elementos honestos, a Favela é um
comentar o surgimento de barracos do Andaraí, por antro de facínoras e deve ser arrasado para a decência
exemplo, o Correio da Manhã reclamava que “esse e higiene da Capital Federal.”65
bairro, outrora tão pacato, vai se transformando em
morro da Favela”.61 Outra reportagem, sobre crimes No mesmo ano, o Correio da Manhã descreve o morro
que vinham ocorrendo no morro da Mangueira, permi- da favela como “o lugar onde reside a maior parte dos
tia ao repórter concluir que “já não temos dúvidas em valentes de nossa terra ... o esconderijo da gente dis-
afirmar que se trata mesmo de uma Favela”.62 posta a matar por qualquer motivo, ou até mesmo sem
motivo algum...”66 Dois anos depois, entretanto,
A partir da década de 1920, e em função da sua enorme quando seus habitantes sofriam ameaça de remoção
difusão pelo espaço urbano, o termo favela se genera- por ordem da Saúde Pública, o mesmo jornal assim se
lizou. E adotando uma nova forma substantivada e posicionava:
com f minúsculo, passou a designar todas as aglome-
rações de habitações toscas que surgiam na cidade, ge- Tanto na Favela como no morro de Santo Antônio mo-
ralmente nos morros, e que eram construídas em terre- ram centenas de trabalhadores, gente honesta, digna de
nos de terceiros e sem aprovação do poder público.63 consideração dos poderes públicos, e que só se foi me-
ter nos tão malsinados casebres porque não encontrou
outras habitações ... Cuidado, Calma, Prudência são de
bom conselho nessas conjunturas apertadas, em que o
pobre tem direito de exigir que se lhe respeite a própria
As imagens da favela miséria, causada principalmente pela incúria dos po-
derosos.67
Como visto, a imagem de uma “terra sem lei”, atribu-
ída ao morro da Favela no início do século, loco aca- Essa duplicidade de imagens é compreensível. Con-
bou englobando também as outras favelas que se for- forme indicou N. Sevcenko, a linha que separava o le-
mavam. Numas sociedade recém-saída da escravidão, gal do ilegal era extremamente tênue nesse período.
era inevitável, entretanto, que as favelas e sua maioria Por um lado, a lei mandava considerar vagabundo todo
da população negra, fossem também identificadas individuo que não tivesse domicílio certo, sem consi-
como símbolos de “atraso”. Referências à “persistên- derar se ele tinha ou não a probabilidade de arranjar
cia da África no meio da civilização” e à “ralé de cor qualquer domicílio. Por outro, quem não trabalhasse
preta” são constantes nessa época. Principal responsá- deveria ser considerado vagabundo, mas o alto índice
vel pela difusão dessa imagem negativa, a imprensa da de desemprego estrutural existente na cidade reduzia
época apresenta também, contraditoriamente, uma sé- grande parte da população à condição de “vadios com-
rie de evidências que mostram que a favela – ao con- pulsórios”, o que os obrigava, para sobreviver, a reve-
trário do que se queria difundir – também tinha faces zarem-se permanentemente entre o subemprego, os ex-
bastante positivas. pedientes eventuais e incertos, a mendicância, e até
mesmo a criminalidade.68
Backheuser, por exemplo, embora assombrado com
a precariedade das habitações encontradas no morro Ora, era nas favelas que todos esses processos se
da Favela, já informava, em 1905, que “ali não faziam sentir com mais intensidade. Aí estavam o
moram apenas os desordeiros e facínoras ... trabalhador honesto (ainda que subempregado), o
moram também operários laboriosos, que falta ou biscateiro, o mendigo, o vagabundo. Todos, entre-
a carestia dos cômodos atiram para esses lugares tanto, moravam em habitações que não eram con-
altos onde se goza de uma barateza relativa e de sideradas pela lei como permanentes, não fazendo
jus, portanto aos status de terem “domicílio cer-

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Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão inicial das favelas do Rio de Janeiro

to”. Por essa razão, e em função de alegados interesses e derrotas, que revelam que as tensões criadas pela sua
da segurança pública, eram os habitantes das favelas presença eram muitas.
periodicamente importunados pela polícia, que não
Bom exemplo disso é, sem dúvida, a história da favela
raro alegava razões de vadiagem para levá-los presos,
do morro de Santo Antônio. Primeira favela da cidade,
mesmo que não houvesse prova disso.
ela foi removida ainda em 1901, mas retomou seu an-
tigo lugar durante a reforma urbana.73 Em 1910, mui-
A “dança” das favelas tos barracos foram novamente removidos, consentindo
entretanto o governo que seus moradores construíssem
No relatório que escreveu no auge da “era das demoli- outros no morro do Telégrafo, afastado da área cen-
ções”, Backheuser afirmava que a política de habita- tral.74 Pouco tempo depois, já estavam novamente os
ção popular a ser adotada pelo governo deveria dar res- barracos de volta àquela colina, para serem novamente
posta imediata a três questões: a salubridade, a bara- ameaçados de despejo em abril de 1916.75 Tendo os
teza e a proximidade do trabalho. Em não fazendo isso, moradores conseguido, em maio, um adiantamento da
não haveria outra saída senão “jugular uma rebelião execução da ordem judicial,76 foram todos eles surpre-
francamente popular, causada pela carência e carestia
endidos no mês seguinte por violento incêndio, certa-
das casas”. Ao encerrar o relatório, o autor afirmava
mente de natureza criminosa, que destruiu grande
que já havia percebido, inclusive, “os primeiros rugi-
parte dos casebres ali existentes.77 Qual fênix renas-
dos da tempestade próxima”.69
cida, entretanto, já ocupava a favela novamente o seu
Escrito logo após a Revolta da Vacina, esse relatório antigo lugar em 1919, para horror da imprensa bur-
apenas alertava para uma provável e ampliada repeti- guesa.78
ção da crise de 1904, que havia sido estancada por
meio de brutal repressão policial. Alegados interesses de segurança militar exigiram, por
seu lado, em 1917, a remoção (ao que parece, parcial)
Apesar dessas advertências, as três questões citadas no da favela existente no morro da Babilônia.79 Já a pro-
relatório foram ignoradas: o governo não adotou qual- gramação de passeio planejada para a visita do rei da
quer política de construção de casas populares ale- Bélgica, em 1920, determinou a erradicação de uma
gando ver nisso uma “perigosa investida no socia- favela que vinha se formando na encosta do morro
lismo” e a iniciativa privada jamais demonstrou inte- Dois Irmãos no Leblon.80 Várias famílias que habita-
resse em participar desse mercado, ainda que alguns vam o morro do Telégrafo foram, por sua vez, violen-
incentivos tenham sido aprovados para atraí-la.70 E tamente expulsas daí em 1926, em cumprimento da or-
embora a população carioca tenha crescido rapida-
dem judicial de reintegração de posse.81
mente no início do século, atingindo 811.443 habitan-
tes em 1906 e 1.157.873 em 1920, as previsões som- Cada revés, entretanto, resultava numa reação neces-
brias de grandes revoltas sociais também não se con- sária. Expulsos de um local, os favelados logo diri-
firmaram. giam-se a outro lugar e, ali, davam início a uma nova
favela. Essa “migração” ou “dança” das favelas é cla-
Para explicar esse aparente paradoxo, algumas razões
têm sido ultimamente encaminhadas e apontam para a ramente apontada por Mattos Pimenta que, a partir de
permanência da favela no cenário urbano como um fa- 1926, escreveu uma série de artigos sobre as favelas do
tor de estabilidade importante. Segundo essas interpre- Rio. Liderando uma campanha iniciada pelo Rotary
tações, após a reforma urbana, e atingida a metade con- Club, Mattos Pimenta visava, com seus artigos, sensi-
trole das epidemias, o governo transferiu a força de tra- bilizar as autoridades federais para a necessidade de
balho grande parte dos custos da sua reprodução, mas construir habitações proletárias.82 Segundo ele, des-
foi obrigado a aceitar, ainda que jamais tenha admitido truir barracões não resolveria nada: o problema seria
isso explicitamente, a permanência da favela na ci- apenas transferido de lugar.83
dade. Garantia-se assim o mínimo de estabilidade so- A verdade é que a situação havia se tornado incontro-
cial necessário ao processo de acumulação.71 Ademais, lável. Segundo Mattos Pimenta, já habitavam as fave-
tudo indicava que a permanência das favelas não es- las, em meados da década de 1920, mais de 100.000
barrava nos interesses do capital. Este, ao contrário, pessoas.84 O crescimento econômico da cidade, por
delas podia se beneficiar, já que representavam uma seu lado, continuava a atrair migrantes, e esses davam
importante reserva de mão-de-obra para a indústria, origem a novas favelas, sempre situadas nas proximi-
para as atividades de construção civil e para a presta- dades das fontes de emprego. A inevitável invasão de
ção de serviços, inclusive domésticos.72
terreiros dava ensejo, por sua vez, a inúmeros proces-
Embora coerentes teoricamente, essas interpreta- sos de despejo, alimentando a “dança das favelas” pelo
ções não devem levar a crer que a permanência e espaço urbano. Iniciada a década de 1930, a situação
expansão da favela constituiu-se em processo tran- em nada havia se modificado. Conforme registrou a
quilo. Ao contrário, a afirmação da favela na pai- imprensa:
sagem carioca foi pontilhada por inúmeras vitórias
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Espaço & Debates nº 37 – 1994

O tempo e o intenso desenvolvimento da cidade de- Um marco importante dessa mudança no tratamento da
monstraram que mesmo os morros, depois de benefi- favela é uma reportagem publicada em 1923, uma ano
ciados, eram um excelente negócio para a venda de depois da realização da Semana de Arte Moderna em
terrenos em lotes. E, tangidas pela intimação de mu- São Paulo e que descreve, de forma totalmente nova,
dança, centenas e centenas de criaturas, cujo único mal
uma das favelas da cidade:
é serem pobres na cidade mais linda do mundo, vão
sendo periodicamente privadas de teto misérrimo que Os subúrbios tiveram em Lima Barreto o intérprete fiel
a força do hábito já as levara a considerar como seu ... de sua monótona existência. Os nossos morros, porém,
Uns se dispersaram; outros vão formar novos núcleos ainda não encontraram quem lhes sentisse a rude e bru-
em terras de outros donos – casos futuros de ruídos e tal poesia, em cuja beleza selvagem se misturam os re-
de escândalo.85 frões nostálgicos dos ‘sambas’ e o drama sangrento
dos ‘bam-bam-bans’.87
Os exemplos acima são significativos. Eles indicam
que, mais do que um processo que se explica apenas E quem eram os personagens que davam conteúdo a
pelos interesses do Estado ou do capital, a permanên- essa rude e brutal poesia dos morros? Descrevendo os
cia e difusão da favela no cenário carioca deve ser en- “tipos” que podiam ser encontrados na favela e que
tendida também como a materialização de uma verda- eram agora devidamente apresentados aos leitores a
deira luta que os grupos mais pobres do Rio de Janeiro partir da pena do pintor modernista Di Cavalvanti,
travaram no início do século pelo direito à cidade, uma prosseguia então o repórter:
luta que, na realidade, mantem-se até hoje. O ‘bamba’ ... é uma reprodução mais original, mais
perfeita e mais interessante do famoso ‘taita’ argen-
tino, ... É um misto do valentão e do malandro. É ne-
As novas faces da favela gaceador, é sestroso e herdou, ao mesmo tempo, todas
as belas qualidades do capoeira, corajoso e destemido,
e todos os graves defeitos do ‘tungador’, trapacista e
A década de 1920 pode ser considerada como a década ladrão....
da afirmação definitiva das favelas na paisagem cari-
oca. Apesar da instabilidade que ainda rondava essas A dançadeira de ‘sambas’, ... a Salomé crioula ... tem
o seu encanto perfumado e sua graça inebriante e se-
aglomerações, constantemente sujeitas a despejos co-
dutora. Os seus olhos são quebrados ... os seus seios
letivos, o fato é que, estimuladas pelo crescimento de- são bamboleantes; o seu colo é morno; a sua boca é
mográfico da cidade e pela ausência de uma política lasciva. Ela simboliza a perdição daquele mundo in-
habitacional oficial, as favelas não só se multiplicaram fecto, onde os homens se esfaqueiam com a calma e a
como adensaram-se. E ao fazerem isso, tornaram cada simplicidade com que nós, do lado de cá, nos abraça-
vez mais difícil a sua erradicação. mos.88
Agindo igualmente nessa direção, as mudanças cultu- Lugar de homens valentes, de mulheres sensuais e da
rais que sacudiram o país nessa década, evidenciadas melodia inebriante dos vilões, a favela ainda sem per-
pela eclosão do movimento modernista, também con- der a característica de “mundo infecto” e de “local de
tribuíram para a permanência da favela. assassinos”, passa agora a ser exaltada por poetas, a ser
retratada por pintores. Seus personagens, que só atin-
Ao promovera experimentação artística e ao pregar a giam o domínio público a partir da crônica policial, in-
busca de novas possibilidades culturais, o modernismo vadem agora o repertório dos sambas que exaltam a
não apenas defendia a adoção de uma estética nova, “cabrocha”, a “casinha pequenina”, o “malandro”,
que afrontava os padrões culturais vigentes, como en- sambas esses que se popularizam rapidamente, atin-
fatizava a necessidade de libertação da dominação cul- gindo todas as camadas sociais.
tural estrangeira. Resultando desse movimento, as “te-
máticas nativas”, as “estéticas brasileiras” passaram a Tendo assumido essa nova imagem, a favela insere-se
então de forma diferente no imaginário carioca. Deixa
ser valorizadas e é nesse contexto que a imagem da fa-
de ser apenas sinônimo de desordem e de crime e passa
vela passa então por um processo de transformação.
a assumir também o papel de “criadora de sonhos”,
Onde antes só havia feiura e pobreza, passa-se agora a
imagem essa que se cristalizará definitivamente em
ver também beleza e lirismo. Onde antes só habitavam
meados da década de 1930 através da música ‘Chão de
marginais e proletários, descobre-se agora que também
estrelas’, de Orestes Barbosa, que retrata, de forma idí-
havia poetas e musas. E descobre-se também que essas lica o cotidiano da favela.89
categorias não eram mutualmente exclusivas! De antí-
tese do modernismo, a favela enquanto imagem global, A eleição da favela como “coisa nossa” logo atrai
passa então a ser uma das suas expressões, confir- também a atenção de personalidades estrangeiras
mando a afirmação de Dumont de que uma das capa- que visitam a cidade. Foi o que aconteceu, por
cidades da modernidade é a de integrar o seu contrá- exemplo em 1926. Em visita ao Rio, o escritor
rio.86 fascista Filippo Marinetti – o “papa do futurismo”

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segundo a imprensa – acolheu conselhos de intelectu- Não. Aos intelectuais extravagantes que fazem apolo-
ais cariocas e resolveu fazer uma “visita noturna” ao gia a malandragem e a sujidade, que exaltam o capa-
morro da Favela, para buscar aí “emoções fortes”. dócio e a sordideza, que celebram as senzalas e as fe-
dentinas, e proclamam que isto é brasileiro, que isto é
O relato dessa excursão é de grande importância histó- carioca, oporemos nós a voz do bom senso, as regras
rica. E isto se deve não tanto pela visita em si, mas pela incorruptíveis da verdadeira Arte, os preconceitos le-
descrição detalhada que o repórter faz da nova relação gítimos da verdadeira Ciência, salvando do desman-
que se estabelecera entre a polícia e os habitantes da telo futurista esta obra prima da Natureza que é o Rio
Favela, uma relação que era agora intermediada por de Janeiro.92
dois chefões locais, que haviam dividido o morro em O final da década de 1920 mantém aceso um grande
áreas de influência distintas. Vivendo do aluguel de debate sobre a favela. Se a glorificação do samba e
barracos e dos ganhos obtidos na exploração de bote- seus personagens, que então tomava ímpeto, contri-
quins, esses indivíduos chegaram mesmo a enviar re- buiu para dar às favelas um status poético que se tor-
presentantes à Delegacia Policial mais próxima, para naria definitivo logo depois, os debates urbanísticos
ali receberem Marinetti e sua entourage e guiá-los, por sobre a inconveniência de sua presença também man-
volta da meia-noite, pelos caminhos íngremes da Fa- tiveram-se fortes. Por um lado, Mattos Pimenta dá con-
vela. Sobre essa nova relação de poder informava o tinuidade à sua campanha de erradicação das favelas,
jornalista: mas não consegue convencer o governo a adotar uma
A polícia não poderia permanecer em pelotões no política habitacional. Alfred Agache, por outro lado,
morro. Veio uma perfeita situação de entente-cordiale que agora coordenava a elaboração do Plano da Ci-
com os mais prestigiosos dungas. As autoridades da dade, tenta impor no espaço urbano todos os ideais es-
zona tacitamente delegavam poderes a esses obedeci- téticos e funcionais pelos quais batalhava Mattos Pi-
dos homens fortes, que passaram oficiosamente a agir menta, mas reconhece que, sem a construção de novos
como representantes do comissário. Só assim se resol- “bairros operários” nos subúrbios, não será possível
veu o problema da pacificação lenta da Favela. Dentro extirpar as favelas da cidade.
em pouco, com tais ‘olhos’ de autoridade, foram as
providências sendo adotadas. Os botequins, as bode- A revolução de 1930 acabará por redefinir o papel da
gas foram sendo fechadas cedo. As pendengas foram favela no cenário da cidade. Tendo no urbano um de
sendo resolvidas com o prestígio dos chefes amigos seus maiores foco de sustentação, o novo regime, em-
das autoridades. Hoje a Favela, já às 8 horas, quase bora não justificando a sua presença na cidade, vai dei-
toda dorme.... xar a favela relativamente em paz. Em algumas instân-
Essa nova face da Favela, de espaço tornado território, cias, vai até mesmo socorrer os seus habitantes, defen-
era também exaltada por um dos guias da excursão: dendo-os contra a ação dos proprietários de terras, con-
tribuindo assim para forjar a imagem de Getúlio Var-
Se os senhores pensam que vêm buscar aqui sensações
novas para descrições de fatos, onde aparecem os nos- gas como o “pai dos pobres”. Essa situação permane-
sos homens como elementos perigosos, terríveis fací- cerá relativamente estável até a década de 1960,
noras escorraçados pela polícia, e aqui abrigados à quando o jogo de forças será então mudado. Fortaleci-
sombra da nossa proteção, iludem-se. Vê-se aqui a po- dos agora pela mudança do regime político, decorrente
breza da cidade, a miséria mesmo, mas de gente que do golpe militar de 1964, os interesses imobiliários da
trabalha... Aqui a disciplina, há ordem....91 cidade acabarão por impor uma mudança radical no
Não se pense, entretanto, que essas novas imagens da comportamento do governo, que patrocinará então
Favela, retratadas por artistas e chefões locais, haviam uma campanha maciça de erradicação de diversas fa-
feito desaparecer o preceito de generalização contra velas da cidade, notadamente daquelas que se localiza-
elas. Inconformado com o que julgava ser uma inver- vam em suas zonas mais privilegiadas.
são de valores, assim se indignava Mattos Pimenta:
Senhores, deplorável e incompreensível, nefasto e pe-
A “dança” das favelas
rigoso, é o vezo que adquiriram alguns de nossos inte-
lectuais, de glorificarem as favelas, descobrindo poe- A favela está fazendo cem anos. Seu aparecimento
sia e beleza, por uma inominável perversão do gosto, na cidade, ocorrido em 1893/1894, está intima-
nestes aglomerados triplamente abjetos como antiesté- mente ligado à crise habitacional que afetava o Rio
ticos, anti-sociais e anti-higiênicos. Ridícula e revol- de Janeiro àquela época. Sua expansão pelo tecido
tante é a tendencia que se vai acentuando entre nós, ao urbano carioca, entretanto, só começou na década
bafejo de certos espíritos boêmios, de aceitar as fave- seguinte, e pode ser explicada pela não resolução
las como uma característica nossa, uma instituição fe- das contradições engendradas pela reforma urbana
liz e interessante, digna de ser legada aos nossos pós- que transformou a cidade no início do século XX.
teros como tradição nacional.

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Espaço & Debates nº 37 – 1994

Com efeito, a rápida expansão horizontal e o incre- Conjunturas recentes, entretanto, têm alterado bastante
mento das atividades econômicas do Rio de Janeiro, essa situação. Se os ganhos políticos dos moradores
que a reforma urbana facilitou, resultaram não apenas das favelas têm sido os maiores de todos os tempos
num aumento substancial da oferta de emprego ur- (adoção de programas de melhoramentos pelo Estado;
bano, como também na sua descentralização. Em de- conquista do direito de propriedade em muitas favelas
corrência disso, intensificaram-se os fluxos migrató- etc.), por outro lado a longa recessão que atinge o país
rios para a cidade, o que não foi contrabalanceado, en- desde a década de 1980 tem resultado numa nova onda
tretanto, pela adoção de qualquer política de constru- de favelização do Rio, que reproduz, no final do século
ção de casas operárias. Agravou-se, portanto, o déficit XX, muitas das situações aqui estudadas. A transfor-
habitacional da cidade, já bastante comprometido pela mação de muitas das favelas da cidade em verdadeiro
política de destruição das antigas habitações coletivas. feudos do crime organizado e do tráfico de drogas, por
Este problema foi realçado ainda mais pela adoção de sua vez, tem despertado reações as mais diversas, re-
uma rígida legislação edilícia que, aplicando-se a toda velando que a inserção da favela no cenário urbano
a cidade e exigindo a utilização de materiais de cons- ainda continua a ser um processo complexo e contro-
trução de alta qualidade, inviabilizou a ocupação dos vertido, detonador de opiniões divergentes e, muitas
subúrbios pela população mais pobre. Some-se a este vezes, irreconciliáveis.
quadro, finalmente, a não adoção de qualquer política Como sempre foi!
de transporte destinada a facilitar o deslocamento fácil
e rápido da força de trabalho para os novos locais de Maurício de Almeida Abreu é professor adjunto do
emprego e estará completo o conjunto de situações que Departamento de Geografia da UFRJ.
tornou irreversível o processo de permanência e ex-
pansão da favela no cenário carioca.
Como bem disseram outros autores que estudaram o
assunto, só a partir dos anos 1940 é que a favela “co-
meça a chamar a atenção”. Há que se explicitar bem,
entretanto, o que quer dizer esta frase. Pelo que pôde
ser reconstruído da história da favela neste trabalho, é
possível afirmar que não foi a partir dessa data que a
favela se tornou visível ou incomodava o governo. Isto
aconteceu muito antes. É a partir de 1940, entretanto,
que os poderes públicos parecem reconhecer que a fa-
vela chegou para ficar, ou seja, que uma nova geopo-
lítica urbana havia se instaurado de facto na cidade.
Não é de surpreender, portanto, que só a partir de então
é que a favela tenha sido “oficializada”, passando a fa-
zer parte dos planos e preocupações oficiais.
É também a partir desse momento que tem início um
processo que se prolonga até hoje, e que vincula o po-
der de barganha dos moradores de favelas ao grau de
liberdade política existente no país. Com efeito, a his-
tória recente das favelas demonstra que, nos últimos
cinquenta anos, estabeleceu-se uma nítida correlação
entre a vigência do regime democrático e a aceitação
da permanência da favela nas áreas valorizadas da ci-
dade. Em tempos de “fechamento político”, como
ocorreu, por exemplo, em alguns momentos da dita-
dura de Getúlio Vargas (1937-1945) e no período da
vigência dos governos militares (1964-1985), o com-
bate às favelas mostrou-se bastante forte, resultando,
daí, a erradicação forçada de muitas delas. O advento
das fases de liberdade política (1946-1964 e 1985 até
hoje) deram ensejo, entretanto, às lutas pela permanên-
cia e melhoria dessas áreas da cidade, e valorizaram a
principal arma com que contam os favelados para me-
lhorar a sua sorte: o voto.

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