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mbora sempre tivessem exist ido habitações precárias

A produção rentista de na cidade de São Pau lo, elas só passaram a se r consi-


deradas um prob lema pelas autoridades em meados
habitação e o autoritarismo ·da década de 1880, quando começaram a florescer as
atividades urbanas assoc iadas ao complexo cafeeiro
(CANO 1979), gerando extraordinári a expa nsão do mer-
da ordem sanitária cado de t raba lho e, em conseqüência, uma aglom era -
ção de trabalhadores mal-alojados que const itu ía grave ameaça à saúde púb lica.
Além de os dados demográficos aponta rem o ano de 1886 como o
ponto de aceleração do incremento populacional da cidade (tabel a 1.1), out ros
indicadores atestam que nessa época estruturou- se um dinâmico merca do de tra -
balho, exigindo moradias de baixo custo na capital. As mudanças ocorridas nas
relações de produção nas fazendas de café, com a adoção de mão- de- obra
assala riada, ocorreram ao longo dos anos 80, íntensificando-se a pa rt ir de 1886
com a chegada em massa de imigra ntes. De acordo com CANO (1979), entraram na
Província de São Paulo, entre 1886e1900, cerca de 900 mil estrangeiros.
Com isso, as atividades urbanas associadas ao complexo cafeeiro
ganharam grande dinamismo: o comércio de produtos im portados implantou -se
de forma diversificada; o sistema bancário consolidou-se com a Reform a Bancária
e o Encilhamento no início dos anos 90 (CARONE 1973); a indú stria teve seu
primeiro surto cte crescimento, ainda que limitado, entre 1885 e 1890 (S1MONSEN
1973 e KowARICK 1980); em 1886, inst alou-se a Hospedaria dos Imigrantes, que fez
da capital o centro distri buidor de traba lhadores pa ra o Estado ; os fazend eiros
~icos construíam cada vez mais residências na cidade, i m plantand o~se o primeiro
loteamento de elite, Cam pos Elísios; e, de modo geral, a difusão das relações capi-
talistas acelerou o crescimento do mercado de consumo.
O crescimen to da cidade deveu-se não só à sua consolidação
com o grande mercado distribuidor, mas também ao influxo da massa de imi-
grantes. Apesar da escassez de dados, há indícios de que imigrantes, subven-
cionados ou não, permaneceram na cidade, ande as oport unidades de ascensão
eram maiores. Éprovável que o fluxo rural-urban o no estado tenha ocorrido já na
última década do século, l ogo após o fim dos primeiros contratos de formação
do café. Seja cama for, a afirmação da capital como centro integrador regional
se deu na medida em que as relações capitalistas de produção se estenderam,

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intensificando a divisão do trabalho e o conseqüente crescimento do pequeno Além disso, loteamentos indiscriminados deram origem a inúmeras
comércio, da classe média profissional ou burocrática, dos ·primeiros núcleos necessidades urbanas - calçamento das vias, canalização de córregos, drenagem
operários. (FAUSTO 1977:18) de brejos e várzeas, controle de enchentes etc. Era preciso, enfim, estruturar os
Segundo a Sociedade Promotora de Imigração {MORSE 1970:18), serviços públicos e equipamentos coletivos. Já na década de 1870 foram tomadas
apenas dois quintos dos im igrantes que desembarcavam no Estado seguiam para a iniciativas nesse sentido, em geral por particulares que detinham concessões pú-
agricultura. Já PESTANA (1918) informa que, dos 104 mil imigrantes que passaram blicas. Desde 1872 funcionava um serviço de bondes puxados por burros, admi-
pela H~spedaria dos Imigrantes.em 1895, quase 40% (39 mil) permaneceram na nist rado pela Companhia Carris Ferro de São Paulo; em 1877, empresá rios orga-
capital. nizaram a Companhia Cantareira para abastecer d.e água a cidade e dotá-la de
esgotos. No entanto, esses empreendimen tos eram incapazes de acompanhar as
Tabela 1.i - População na Cidade de São Paulo por distritos (1886-1900) transformações por que passava a cidade.
O caso dos transportes públicos é exemplar: o serviço de bondes
Distritos 1872 1886 1890 1893 1900
movidos a t ração anim al, e'mbora tenha crescido sem para r entre 1873 e 1900,
Sê 9.213 12.821 16.395 29.518
n'ão garantia um deslocamento rápido entre os locais de morad ia e de traba lho a
Santa l figênia 4.459 11.909 14.025 42.715 preço acessíveis aos trabalhadores (STIEL 1978). A ineficiência do serviço era no-
Consolação 3.357 8.269 13.337 21.31 1 1 . tória, sendo constantes os .:cidentes, sobretudo nas ladeiras do centro da cidade,
Brás 2.308 5.998 16.807 32.387 e demorado o tempo de viagens, mesmo em percursos curtos.
Núcleo urbano 19.337 38.997 60.554 125.931 11 Por exemplo, a linha da rua Boa Vista à rua da Consolação, uma
Núcleos isolados 3.906 5.033 4.370 4.844 distância de apenas 2.11 5 metros, tinha seu tempo de viagem estipulado em cerca
1
{Penha, N. Sra. do ó de 22 minutos (STIEL 1978:57) - cerca de 5,6 km por hora, pouco mais do que uma
e São Miguel) pessoa caminhando. Computando-se o tempo de espera e os eventuais atrasos, era
Total 23.243 44.030 64.934 130.775 239.820 mais rápido fazer o t rajeto a pé. Além disso, "os preços das passagens não eram
acessíveis a todos, pois, em relação à época, eram caríssimos" (STIEL 1978:44).
Crescimento anual 5% 11% 28% 9%
As redes de distribuição de água e de colet a de esgotos ·cresciam
do periodo
a um ritmo mais lento do que o necessário. Em 1877, a Companhia Cantareira co-
Fonte: MoRSE (1970).
meçou a instalar a canalização que, a partir da serra da Cantareira, ao norte da
cidade, percorria 14,5 km para abastecer um reservatório na Consolàção. No en-
É nesse período de 1886 a 1900 que "São Paulo explode" (RoLNIK tanto, em 1888, apenas quinhentos edifícios estavam ligados à rede de ab'asteci-
1981), desencadeando-se sua primeira crise habitacional. A tabela 1.1 mostra que, mento e, dois anos depois, um vespertino reclamava do "grave inconveniente de
entre 1890 e 1893, acentuou-se o incremento demográfico, chegando a 280/o (ou se achar sem esgoto_a.maior parte das habitações da Pau licéia" (RAFFARD 1977).
seja, mais de 20 mil habitant es) por.ano. A carência de habitações tornou-se no- Com relação aos demais serviços públicos, um relato de 1889
tória, havendo indícios de que era um obstáculo a um crescimento ainda maior:
"diz-se que muita gente se retira da capital paulista por falta de habit ações", afir-
.. sobre os bairros italianos de São Paulo - ou seja, aqueles habitados quase que
apenas por traba lhadores imigrantes recém-chegados - revela suas cond ições:
mava RAFFARD (1977:15) em 1890. Na Barra Funda falta tudo. Até nas ruas principais não há um
São Paulo expandiu-se em t odas as direções com o loteamento de metro de calçamento, nem um palmo de calçada, nem um conduto subterrâneo.
chácaras e a abertura de novos bairros. A pequena cidade -de 1870 podia ser toda Como resultado, a natureza, por conta própria, cavou fossas que margeiam os
percorrida a pé; seus habitantes buscavam água nos chafarizes públicos (embora canais, o que levou os habitantes a construírem pequenas pontes primitivas
já em meados do século houvesse falta de água) ou retiravam-na de poços parti- para entrar na própria casa [ ..]. É materialmente impossível que o sr. prefeito
culares, e lançavam os detrit os nos rios ou em fossas. Ao receber milhares de novos municipal conheça o Brás[ ..] as calçadas não existem e tanto em dias de chuva
moradores, ·a cidade passou a exigir transportes rápidos pois as distâncias pas- como em dias serenos as pessoas não podem transitar senão descalças, com as
saram a ser medidas em quilômetros, os chafarizes deixaram de dar conta _ do con- saias ou as calças /evantaqas até o joelho. Imaginai agora o cheiro de tais ambi-
sumo, aumentou o risco de contaminação da água e o esgoto sem destino certo entes onde várias vezes por dia entram pés tratados de tal forma, imaginai tudo
tornou-se o principal inimigo da saúde pública. o mais .e tereis uma idéia mais ou menos exata do estado daqueles tugúrios e

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..

do dano imenso que disso deve necessariamente derivar para a saúde pública.
..
- (Fanful/a, 14/3/1899 e 16/3/1899, apud PINHEIRO & HALL 1981) . ·1
1 "triângulo" central, junto ao comércio e às oficinas (MATOS 1958:89). Essa reduzida
segregação espacial explica-se pelas reduzidas dimensões da cidade e pelo fato de
Frente à expansão da cidade, o poder público encontrou dificul- que "os dois grandes grupos sociais do velho burgo [os homens livres e os cativos]
1
dades - além de desinteresse, no caso dos bairros populares - para atender a podem estar misturados no tecido urbano porque estão infi nitamente separados
tantas solicitações. Os problemas que mais preocupavam as autoridades eram os no tecido social" (ROLNIK 1981:6). A partir da década de 1880, contudo, surgiram
que agravavam as condições higiênicas das habitações, dado que no final do os primeiros indícios de segregação com a "diversificação das funções e o apareci-
sÚulo foram inúmeros os surtos epidêmicos que atingiram as cidades brasileiras. mento, ao lado do velho centro, de bairros operários e de bairros residenciais
Essa questão passou a receber tratamento priori tário do Estado e pode-se dizer finos" (MATOS 1958:89). Ainda que tímido, o processo fazia parte de um projeto
que a a_ção estatal sobre a habitação popular se origina e permanece na Primeira sempre presente no corpo de idéias urbanísticas da elite dirigente que, ao longo
República voltada quase que apenas para esse problema. de todo o período em estudo (e, de certa forma, até o presente) foi lentamente
se implantando.
Infelizmente, os registros e a documentação divulgada sobre o
A emergência do problema período tratam quase que exclusivamente do ~ mp e nho da elite em construir uma
habitacional em São Paulo cidade "moderna", de aparência européia. É muito mais comum encontrar-se um
relato de um detalhe da construção de um imponente edifício público ou privado,
om a piora das condições urbanas e acentuando os neoclássico ou eclético, do que uma rápida descrição de habitações populares.
riscos à saúde pública, nos últimos quinze anos do A São Paulo do último quartel do século XIX, na fase conhecida
século houve extraordinário aumento da taxa de como a "segunda f undação" (Paula 1954), é comentada por dezenas de autores e
ocupação das moradias - o número médio de mo- viajantes. que tratam dos mais variados aspectos: inclinação das ruas, fam ílias im-
radores por prédio passou de 6,27 em 1886 para portantes, instituições públicas e privadas, indústria, comércio etc. Admi ravam-se
11,07 em 1900 - , da falta de habitações de aluguel com a pujança da cidade e com as novas fachadas de plat ibandas e cornijas que
baixo e da concentração de trabalhadores pobres. ocultavam os semblantes das antigas edificações de influência lusitana. Descre-
viam livrarias, confeitarias, cafés e lojas de modas, comparando-as com as do Rio
Tabela 1.2 - Expansão predial na Cidade de São Paulo (1886-1900) de Janeiro, de Buenos Aires ou de Paris. Faziam, com ares provincianos, a história
Pessoas da elite, do seu progresso econômico e do espaço que deveria expressar seu poder.
Ano Prédios População por prédio A habitação da elite foi descrita em detalhes: sabe-se até mesmo quais flores pas-
1886 7.012 44.030 6,27 saram a ornamentar seus jardins em substituição aos cravos antes tão utilizados.
1891 10.321 99.930 9,69 Em contrapartida, um véu negro encobre os alojamentos dos
1895 18.505 184.145 9,95 traba lhadores: ninguém os via, ninguém os descrevia. Já a elite retratava a vida
1900 21.656 239.820 11 ,07 urbana a partir de sua perspectiva. BRUNO (1977) compilou dezenas de relatos de
Font<: PESTANA 1916 e 1918; COMISSÃO CENTRAL OE EsrAlfSTICA, 1886; viaja ntes e moradores ilust res sobre São Paulo. Destes, 25 tratavam da vida na
DIRETORIA GERAL OE ESTATISTICA, 1900. cidade entre 1865 e 1914. Ne~se período, o Teatro Municipal é mencionado dez
vezes; a arquitetura oficial e institucional, 24 vezes; a arqui tetura religiosa, doze
1 O problema da habitação popular no final do século XIX é con- vezes; e a Faculdade de Direito, onze vezes. Sobre as habitações populares, a
comitante aos primeiros indícios de segregação espacial. Se a expansão da cidade maioria das edificações na cidade, foram encontradas apenas cinco menções, das
e a concentração de trabalhadores ocasionou inúmeros problemas, a segregação quais três insignificantes. ·
1
social do espaço impedia que os diferentes estratos sociais sofressem da mesma ma- Se as habitações populares não representassem perigo para as
1 nei ra os efeitos da crise urbana, garantindo à elite áreas de uso exclusivo, livres da condições sanitárias da cidade, nada se saberia sobre elas, pois as únicas infor-
deterioraçãG-, além de uma apropriação diferenciada dos investimentos públicos. mações sobre as mesmas nos chegaram através dos técnicos preocupados com a
Até a década de 1870, com exceção das chácaras periféricas, qua- saúde pública. Outra fonte .importante, a imprensa operária, somente iria se estru-
se não havia diferenças funcionais de um ponto a outro da cidade. As residências turar a partir de 1900. Mesmo assim, os relatos dos sanitaristas expressam uma
dos mais abastados e as da classe média muitas vezes localizavam-se no próprio visão elitista, viciada pelas concepções higienísticas e preconceituosa em relação

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aos trabalhadores. Desses relatos, so- lfigênia fo i a que mais cresceu na cidade, passando de 14.025 habitantes em 1890
f.
bressai o Relatório da Comissão de Exa- para 42.715 em 1893 - fez com que se edificassem di ferentes t ipos de
me e Inspecção das Habitações Operá- estalagens, cortiços e habitações operários, quase todos elas de construção
rias e Cortiços no Districto de Santa ~~ :~ ·""' ~ e:,,.y;~~~d,.... tr".cJ ~,t;~~~ ~,;,;,;ráo ~~ ;,;,,_:,.q:;;­ apressada e precário. Na zona afetado [ ..], as habitações destinados às classes
Ephigênia, publicado por MOTIA (1894) . ~ "i'iil'f'/p. .-4 ~;...~~ .....,,;.;• . operárias são numerosas. Existem aí nado menos de sessenta cortiços de todos
e que é a descrição mais completa das os tamanhos e feitios onde se agasalha uma população de 1.320 indivíduos de
moradias da classe trabalhadora em todas os nacionalidades e condições[ .. ] [número] que avultará se uma polícia
São Paulo no fim do século XIX. noturno se aplicar escrupulosamente no exame estatístico do povo que eventual
Embora abrangendo ou permanentemente vêm ocupar os cortiços à noite. (MOITA 1894)
somente alguns quarteirões de Santa Algumas abrigavam trabalhado res desacompanhados, sem per-
lfigênia, é possível extrapolar as in- tences de maior volume e que estavam na cidade prontos a vender sua força de
formações do Relatório para outros Original manuscrito da capa do Relatório. Os higie- trabalho, precisando de um teto para dormi r: é o caso do hotel-co rt iço,
nistas foram os responsáveis pelos principais relatos
bairros então ocupados por moradias uma espécie de restaurant ande o população operária se aglomero à noite paro
sobre a habitação operária na República Velha.
populares. Escolhida por ter sido bas- dormir, já em aposentos reservados, já em dormitórios comuns. Quase sempre os
tante atingida pela epidemia de febre aposentos são pequeníssimos: 2,5 m de frente por 3 m de fundos, ocupados por
amarela em 1893, a área limitava-se às ruas Duque de Caxias, Visconde do Rio operários sem família. A lotação que se lhes dá raro excede do normal: entretanto
Branco, Vitória, Triunfo e largo do General Osório. Com cerca de catorze hecta res, que o realidade é bem diverso, sabido como o acúmulo de gente nestes lugares
compreendia uma bacia palustre, já desaparecida sob o aterro e as edificaçõ es: excede de muito os limites do razoável. (MoTIA 1894)
"Ali a depressão do t~rreno no interior dos quarteirões é bem notável. Cada um No afã de se produzir novos alojamentos, também era comum
desses quarteirões é uma bacia rodeada pelo aterro das ruas, cujo calçamento fica aproveitar o fundo de terrenos já ocupados por outras construções:
de ordinário mais alto do que a área dos quintais. A drenagem superficial é assim [ ..] quase todos [os vendas] contêm nos cômodos do fundo
imperfeitíssima sem o concurso de um bom serviço de esgotos" (MOTIA 1894). aposentos paro aluguel e estes, de ordinário, nos piores condições de asseio,
A ocupação desses terrenos baratos, abaixo do nível do arrua - posição e capacidade. Nos fundos dos depósitos de madeira e outros materiais
ment o, revela a urgência e o descuido com que se executavam as construções nu- de construção, nos terrenos com oficina e canteiro, nas cocheiros e estábulos, os
ma época de grande demanda por novas moradias de aluguel. Esse descuido era cortiços improvisados, feitos de tábua e alguns cobertos de zinco são dos piores
ainda maior quando se tratava de habitações para trabalhadores pobres, nas quais que temos examinado. (MOTIA 1894)
toda redução de custo era buscada com avidez. A esses condicionantes de produ- Além desses alojamentos, outras modalidades de moradia, que
ção de moradias e de uso do terreno, soma-se a deficiência da rede de esgotos: du rante muito tempo seriam utilizadas pelos traba lhadores, já existiam na últ ima
[ ..]em mais de um ponto a drenagem é mesmo impossível por década do séculoXIX:"Há ainda os prédios de sobrado convertidos em cortiço por
se achar o encanamento do resto em nível superior. Em outros sítios, a carga mei o de divisões e subdivisões dos primitivos aposent os transforma dos. Estes cor-
adicional de água, no tempo de chuva, faz refluir à rede de esgotos materiais aí •\
tiços [...] não são senão casas de dormida a que se adicionam alguns cômodos
contidos ou retardados, o que demonstra as condições desfavoráveis em que para uso comum: uma sala com vários fogões improvisados para gozo de todos,
essa rede funciona. Em conseqüência, o umidade copioso do terreno, não raro, uma latrina pessimamente instalada e compridos corredores com iluminação insu-
forma nestes terrenos deprimidos, pequenos lagoas que os águas pluviais ali- ficiente" (MolTA 1894). São as famosas casas de cômodos. No entanto, devido à
mentam e que só desaparecem pela ação do calor solar[ ..]. No fundo de quase inexistência de um estoque significativo de casas antigas - em 1875 só exist iam
todos os quintais dessa zona, o solo, ainda que um tanto poroso e absorvente a 2.995 edifícios em São Paulo - e à incessante renovação predial, essa modalidade
princípio, perdeu já estas qualidades. A água do chuva aí acumulado desaparece de alojamento era ainda reduzida. Por fim, havia o tipo mais comum de habita ção
mais por evaporação do que por infiltração. As construções, já muito conden- popular, o cortiço-pátio:
sados [e] réfolhando o terreno com muros e paredes diversos, tornam ainda mais O cortiço ocupa comumente uma área no interior do quartei-
precárias as condições de escoamento e enxugo do solo. (MOTIA 1894) rão: quase sempre um qu~ntal e um prédio onde há estabelecida. uma venda ou
A urgente necessidade de alojar a grande massa de imigrantes tasca qualquer.
que afluía a São Paulo em busca de traba lho - a população do distrito de Santa Um portão lateral do entrado por estreito e comprido corredor

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para um pátio com 3 a 4 metros de largo nos casos mais favorecidos. Para este O número de torneiras para água nem sempre está em propor-
pátio, ou área livre, se abrem as portas e janelas de pequenas casas enfileiradas, ção com a população do cortiço e com os gastos que essa gente faz diariamente;
com o mesmo aspecto, o mesma construção, as mesmas divisões internas e a e por isso ainda se vê num bom número de casas a água de poço utilizada paro
' 1
mesma capacidade. Entre nós estes cortiços se caracterizam: 1) pela má qualidade vários serviços domésticos e até para beber.
e impropriedade das construções; 2) pela falta de capacidade e má distribuição As latrinas também não guardam proporção com o número dos
dos aposentos, quase sempre s.em luz e sem a necessária ventilação; 3) pela habitantes.
carência de prévio saneamento do terreno onde se acham construidos; 4) final- Jamais são estas latrinas servidas d'água e as bacias de barro
mente, pelo desprezo das mais comezinhas regras de higiene doméstica. vidrado cobertas por um imundo caixão de pinho, apoiado em solo encharcado
Raramente cada casinha tem mais de 3 m de largura, 5 a" 6 m de urina fétida, complementam o tipo dessa dependência bem característica do
de fundo e altura de 3 m a 3,5 m, com uma capacidade para quatro pessoas, cortiço. (MOITA 1894)
quando muito. Esse era o tipo de moradia popular mais comum em São Paulo e
São estas casinhas, em geral, assoalhadas, forradas nos cômo- assim continuaria sendo por várias décadas. O investimento nesses alojament os
dos de dormir e na sala da frente, sem outro sistema de ventilação que o natural era àltamente rentável em vi rtude do intenso aproveitamento do terreno e da
por intermédio das janelas e portas. No cômodo do fundo, onde nõo há assoalho economia de materia l possibilitada por sua organização espacial, da péssima quali-
nem forro, nem mesmo ladrilhos, assenta um fogão ordinário e rudimentar com dade da edificação e da inexistência de custos de manutenção. Em conseqüência,
chaminé.que pouco funciona em vista de sua má construção e do pouco cuidado como ressalta a Comissão, "o cortiço abandona à sórdida exploração de proprie-
que se lhe ttm. Doí vem que o interior dessas pequenas casas tem as paredes tário sem escrúpulos e excede tudo quanto se pode imaginar nesse gênero" (MOITA
enegrecidas e pouco asseadas, do teto já se lhes não conhece a pintura sob a 1894).
camada do sujo das moscas. As paredes com quadros de mau gosto têm o reboco Além desses quatro t ipos de moradia - o hotel-cortiço, a casa de
ferido por uma infinidade de pregos e tornos de que pendem vários objetos de cômodos, os co rtiços improvisados e o cort iço-pátio -, o Relatório aponta ainda
uso doméstico e a roupa de serviço. Os móveis desagradavelmente dispostos têm um "t ipo de habitação operária que carece de séria atenção da autoridade sani-
sobre si empilhadas peças de roupa para lavar. tária - a casinha''. Esta é um prédio independente, voltada para a rua e
O cômodo de dormir; aposento que ocupa o centro da constru- [. ..] apenas considerada cortiço pelo seu destino e espécie de construção. Peque-
ção, não tem luz nem ventilação nem capacidade para a gente que o ocupa à na e insuficiente para a população que abriga, não oferece garantia alguma pt!lo
noite. De ordinário no ato de dormir é esta peça hermeticamente fechada. A fa- que respeita a higiene. O assoalho sem ventilação e assentado sobre o solo, o forro
mília toda aí se agasalha em número de quatro a seis pessoas e os móveis acu- sem ventilador. os cômodos pequenos e ainda subdivididos por biombos que os
mulados tomam por um terço a capacidade do aposento. fazem ainda mais escuros, as paredes sujas e ferido o reboco que deixa perceber
O assoalho jamais se lava, com exceção daquelas habitações a má qualidade da alvenaria. No fundo uma área exígua, mal ladrilhada ou ci-
ocupadas por famílias alemãs, ou de gente do norte da Europa, onde o asseio é mentada com um .calo para esgoto e uma latrina ordinária sem abrigo. A cozi-
quase sempre irrepreensível. A crosta de lama que o encobre não deixa reconhe- nha, quando não é ao lado da latrina, está assentada junto do aposento de dor- .
cer a madeira, e tudo se mostra sob um aspecto nojento e insalubre. A umidade " mir e então as condições de asseio são as mais precárias possíveis.
do solo sobe pelas paredes puindo o papel ordinário que as reveste e danificando Deste tipo de construção são as casas de Carlos Gira ldina na
o assoalho que não é ventilado e se assenta diretamente sobre o terreno. rua do General Osório e Santa lfigênia, onde fecham quarteirões por duas faces,
Tal é o tipo de casinha ou cubículo que constitui a unidade do que são os maiores e mais densamente povoados. No interior desses quarteirões
cortiço. as construções de um tipo ainda pior se multiplicam formando grandes cortiços.
Na área livre, que pouco mais é do que um simples corredor. há (MOITA 1894)
assentado um ralo para esgoto, uma torneira para água, um tanque para lava- Como se vê, nem sempre as características habitacionais, em
gem e uma la trina, de ordinário, muito mal instalada. Só ultimamente que essas sentido estrito, orientavam a classificação dos higienist as, mas sobretudo o fato
áreas têm sfdo calçadas ou cimentadas: .ainda assim há cerca de 50% delas que de essas moradias serem ocupadas por t rabalhadores pobres. As casinhas descritas
estão carecendo de tal beneficio. Em algumas as sarjetas para a drçnagem são semelhantes às existentes nas vilas operárias - sem o controle exercido nes-
superficial nem sequer existem, ficando a água de lavagem ou da chuva empo- tas - que foram consideradas o modelo de habitação para traba lhadores. Sob o ·
çada do modo mais prejudicial. olhar dos delegados sanitários, entretanto, tornavam-se cortiços.

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A situação encontrada em Santa lfigênia repetia-se A intervenção estatal na habitação
[. ..]nos bairros do Bom Retiro, Bexiga e Brás, {onde] casas existem com acomo- e o autoritarismo sanitário.
dações para seis ou oito pessoas e que abrig arão, em completa promiscuidade,
trinta a quarenta indivíduos. No largo da Memória, na ladeira do Piques, na rua da última epidemia dominada em junho último
Consolação e em várias ruas desta florescente capital, são inúmeros os casarões [1893), pôs em evidência os dois seguintes fa-
abrigando durante a noite cen.tenas de pessoas sem luz, sem ar e que fazem tos: 1) O mal apareceu, prosperou e evoluiu
durante o dia a cozinha em alcovas escuras, por meio de fogareiros volantes onde as condições de meio, de topografia e de
envenenando ainda mais essa atmosfera, já deletério e perniciosa. A cor escur:a população foram-lhe especialmente propícias.
das paFedes, as elevações do assoalho, os utensílios e roupas esparsos pelo 2) A população operária pagou o maior tribu-
quarto, tudo revela a maior imundice que se pode imaginar. (VEIGA 11394) to, por isso mesmo que as suas condições de
Descrevendo a precariedade em que viviam os trabalhadores, os hi- vida impelem-na a acumular- se onde encontra mais facilidade de viver. e essa
gienistas revelavam uma visão preconceituosa e ra cista sobre os imigrantes pobres: facilidade só obtém com sacrifício da saúde.
[. ..] indivíduos que vivem na miséria e abrigados aos pares, em Estes dois fatos bastam para explicar a intervenção do poder
cubículos escuros e respirando gases mefíticos, que exalam de seus próprios corpos público em bem da saúde de todos: cumpre-lhe intervir corrigindo as más con-
não asseados, perdem de uma vez os princípios da moral e at iram-se cegos ao cri- dições da topografia urbana, regulando de modo severo as condições a preen-
me e ao roubo de forma a perderem sua liberdade ou a ganharem por essa forma cher não só a habitação de cará ter particular, como as habi tações comuns, isto
meios de realimentarem ou dormirem melhor[. ..]. A população italiana calculada é, os estalagens, cortiços, hotéis, casas de dormido etc. No primeiro caso o Esta-
em 70 mil almas, só na capital composta na sua maior parte de individuas recém- do intervém promovendo trabalhos públicos e encetando obras de saneamento;
chegados e de operários paupérrimos, é um fato grave perante a higiene do no segundo, legislando ou impondo regulamento à indústria da construção e
estado. Basta, como nos tem inúmeras vezes acontecido, penetrar em habitação locação de prédios. (MOTTA 1894)
aglomerada de italianos para se depreender desde logo que o menor preceito de A deterioração das condições de vida na cidad e, provocada pelo
higiene e de moral, que é a base do edifício social, ali não existe. (VEIGA 1894) afluxo de trabalhadores mal remunerados ou desempregados, pela falta de habi-
A situação era grave e tações populares e pela expansão descontrolada da malha urbana obrigou o poder
exigia a intervenção do governo: público a intervir para tentar controlar a produção e o consumo das habitações.
[. ..] a capital de São Para se compreender o significado dessa intervenção estatal na
Paulo está hoje em condições de prender Primeira República (1889-1930), é preciso ter em mente que o Estado liberal relu-
a melhor atenção dos poderes públicos tava ao máximo em interferir na esfera privada. Por exemplo, seu papel na regu-
nesse ponto de. vista [...]. A impressão lamentação das relações trabalhistas - duração da jornada, emprego de menores
que a autoridade sanitária sente ao pe- e mulheres, salários, previdênci a social et c. - era quase inexistente, só surgindo
netrar nesses recan tos imundos é indes- t imidamente nos anos 20 como resposta às mobilizações operárias do período de
critível, pois fica extasiada diante o fa to, •\ 191 7 a 1920 (FAUSTO 1977).
sem poder. por falta de uma legislação Na quest ão social, o Estado limitava -se a manter um aparato po-
especial, providenciar radicalm ente. licial para contro lar os t rabalhadores e def ender as instituições. Tratava-se de um
Os higienistas lançam o caso de policia, pelo menos até 1919, quando o Parlamento brasileiro homologou
alerta· para o poder público: é necessário o Tratado de Versalhes, obrigando-se a regulamentar as condições de trabalho.
intervir, criar uma legislação restritiva, Na habitação, porém, o Estado foi obrigado a atuar de forma
romper com as posturas liberais e com a mais vigorosa. A (ir)racionalidade da produção ca pitalist a de edifícios, o lotea-
privacidade do domicilio. Deve-se "provi- mento indiscriminado e a precariedade dos serviços de água e esgoto, a ca rgo de
denciar radícalmente". empresas privadas, entre outros, passaram a const ituir séria ameaça à saúde pú-
Desinfectador equipado para desinfecção de blica. Por isso, o contro le.estata l da produção do espaço urbano não só foi aceito
casas em 1894. Foram eles, juntamente com os como t ambém reivindicado, ainda que predominassem as concepções liberais.
inspetores e os policiais sanitários, os primei- O fato de os países europeus de tradição liberal - como Inglaterra,
ros profissionais a entrarem na casa operária.

26 . ORI GENS DA HABITAÇÃO SOCIAL NO BRASIL NABIL 80NOUKI 27

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França e Alema nha - terem promulgado leis sanitárias, foi fundamental para que O poder público atacou em t rês frentes: a do controle sanitário
f . o tema não despertasse controvérsias no Brasil. Na Inglaterra, porém, só depois de das habitações; a da legislação e cód igos de posturas; e a da participação direta
cinqüenta anos de intenso processo de urbanização e industrialização, em meio a em obras de saneamento das baixadas, urbanização da área central e implantação
condições urbanas muito precárias e, após quase vinte anos de epidemias de de rede de água e esgoto. Sobretudo no que diz respeitá ao cont role sanitário,
cólera, foi aprovada, em 1848, a Lei Sanitária - e mesmo assim após uma grande essas medidas foram marcadas por uma concepção que identificava na cidade e
polêmica, na qual se esgrimiam .com insistência argumentos liberais contra a nas moradias as causas das doenças, as quais seriam extirpadas por meio da regu-
intervenção estatal. lamentação do espaço urbano e do comportamento de seus moradores - uma ação
Ouando essa legislação foi adotada, Londres abrigava cerca de 2,5 que seria importante instrumento de controle social e manutenção da ordem.
milhões ~e habitantes. E Paris já possuía mais de 1,2 milhão de habitantes quan- Conforme MACHADO (1978), desde sua origem a medicina social estava ligada à
do a França estabeleceu, em 1850, também sob grancle resistência dos liberais, idéia de que a cidade é causa de doença devido â desordem médica e social que
legislação semelhante. Em ambas as agiomerações, os trabalhadores estavam alo- a caracteriza. Os médicos formularam, assim, uma teoria da cidade, exigindo o
jados em condições tão alarmantes que sua chocante descrição se tornou clássica a controle sanitário como um poderoso instrumento de normalização da sociedade.
partir, sobretudo, do famoso livro Situação da Classe Trabalhadora no Inglaterra, Não há dúvida quanto ao empenho normalizador dos higienistas.
de Engels, depois aprofundada por outros autores. Porém, havia de fato em São Paulo, no final do século, um evidente processo de
As condições de moradia e de vida nas cidades industriais euro- deterioração das condições sanit árias, problema que tinha de ser enfrentado pelo
péias eram muito piores do que as existentes em São Paulo na virada do século. poder público. O crescimento da capital e de outros núcleos urbanos no interior,
No entanto, o prestígio da cultura européia junto a autoridades e técnicos brasi- ocasionado por levas ininterruptas de imigrant es que aqui chegavam após longas
leiros fez com que a polêmica entre regulamentação sanitária e liberalismo tivesse viagens na terceira classe dos navios, onde muitas vezes grassavam doenças con-
pouca repercussão. No Brasil - talvez com exceção da vacinação obrigatória no tag iosas; ci·intenso fluxo de .trabalhadores entre Santos, São Paulo e o interior; os
Rio de Janei ro, em 1904 -, prevaleceu a imitação das posturas estabelecidas além- alojamentos coletivos e desprovidos de sa neamento básico nos quais esta popula-
mar em meados do século XIX, consideradas como padrões, pois como afirma um ção era obrigada a viver; a fa lta de drenagem nas baixadas; e, por fim, a preca-
relatório higienista, "em uma cidade ainda tão nova, a vida de modo algum pode riedade do serviço sanitário até a década de 1890 - tudo isso contribuiu para
descer às condições misérrimas das velhas populações da Europa" (MOTTA 1894). aumentar o temor da eclosão de epidemias.
Assim que São Paulo começou a crescer, os higienistas ocuparam Em 1892, pressionado pela propagação de uma epidemia de febre
postos de relevo na administração pública e colocaram em ação seus planos. Ao amarela em Santos e em várias cidades do interior, o presidente do Estado enviou
contrário dos países europeus, nos quais a regulamentação do uso do solo urbano a seguinte mensagem ao Congresso Legislativo :
e o controle sanitário ,ocorreram após o surgimento das grandes cidades industriais, Epidemias intensas devastaram durante os últimos meses várias
em São Paulo a atuação estatal foi concomitante à deterioração das condições localidades do Estado. O governo não se limitou a proporcionar para o caso todos
habitacionais e sanitárias. os recursos de_mol'(lento ao seu alcance; mas, considerando a gravidade do as-
Nos últimos quinze anos do século XIX, higienistas, médicos e sunto,·tomou a iniciativa de grandes medidas que, estou certo aprovareis, e para .
engenheiros já começaram a clamar pela criação de leis e serviços sanita rios simi- as quais decretareis os meios necessários. As epidemias que assolam o principal
lares aos existentes na Europa_ E, tendo obtido o apoio da opinião pública, con- dos nossos portos não só perturbam gravemente o mecanismo econômico do
seguiram fazer com que ·o Estado desse prioridade à questão. Em 1890, o jornal Estado e ameaçam de sérias dificuldades a sua comunicação comercial c_om o
_. 1 O Estado de S. Paulo, influenciado pelos higienistas, critica a apatia das autoridades: exterior, mas expõe também todo o território paulista à invasão da febre ama-
[. ..] nem se faz com o necessário rigor o desinfecção das casos rela, como uma cruel experiência nos tem demonstrado. Convencido da urgência de
em que se dão óbitos, nem se trata de isolar as doenças que chegam, ou têm uma solução para esse problema, que julgo o mais grave de quantos preocupam
chegado com freqüência, do cidade vizinha [Campinas]. [. ..] Dos arredores do neste momento a administração, convidei um higienista norte-americano o vir
cidade, o bairro de Santa Cecília [. ..] é um dos que oferecem mais e melhores estudá-lo [. ..].O saneamento da capital, confiado por lei à municipalidade, parece
condições à propagação de uma epidemia, porque não tem ógua nem esgotos e que deve ser deferido ao Estado pela sua importância, e pela soma de recursos que
expõe o triste espetáculo de uma chácara aberta servindo de depósito de lixo e. exige do poder que o tiver de executar[. ..]. Tenho como certo que compreendereis
detritos da cidade, que ali são diariamente despejados por carroças im~ndas. o alcance do problema sanitário e autorizareis a avultada despesa que a sua
:' (0 ESTADO DE S. PAULO, 19/3/1890) solução exige e que ainda não é possível determinar. (CÉSAR 1892)
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1 28 ORIGENS DA HABITAÇÃO SOCIAL NO BRASIL NABIL BDNOUKI 29
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A questão sanitária tornou-se. portanto, prioritária para o gover- O advent o do cólera foi uma oportunidade para os higienistas
no, justificando seu controle sobre o espaço urbano e a moradia dos trabalhadores. usarem todo seu arsenal de esquadrinhamento e disciplina do espaço urbano
O receio do caos e da desordem, a ameaça que os surtos epidêmicos representa- (MACHADO 1978:244). Isolada a Hospeda ria dos Imigrantes, a Diretoria de Higiene
vam para a organização econômica, o pânico_que um ma l desconhecido tr.azia à tomou medidas agressivas a fim de controlar todos os eventuais focos da doença
população, o prejuízo que a morte de imigrantes recém-chegados causava às fi- na cidade, pois ao surgirem os primeiros casos de cólera na Hospedaria dos Imi-
nanças públicas (como afirma MQTIA (1894], "as epidemias nos ameaçam todos os grantes, part e dos estrangeiros ali abrigados já se mudara para o interior ou para
anos, dizimando a classe operária e roubando-nos braços úteis que importamos outros locais na capital.
com sacrifícios") e, enfim, o medo da classe dirigente de vi r a ser atingida pelas O dr. diretor da Higiene ordenou a seus delegados severas e
;· doenças•. foram as razões que levaram o Estado a intervir no espaço urbano. · repetidas visitas domiciliares, recomendando-lhes que tomassem providências
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As medidas governamentais para controlar as condições sanitá- imediatas, logo que verificassem qualquer caso suspeito. Graças a esta medida,
ri as e impedir a propagação de epidemias foram de t rês tipos: 1) criação da Dire- {. .. ] outros focos foram sendo descobertos e atacados em tempo de não se de-
t oria de Higiene, com poderes de policia e inspeção sanitária, isto é, podia entrar senvolverem. (COTRIM 1893)"
nos domicílios para controlar a vida, as regras de asseio, higiene e saúde de seus Os agentes da ordem sanit ária não hesitaram em invadir casas,
habitant es; 2) promulgação de vasta legislação de controle sanitário e de produ- . remover moradores (doentes ou não), desinfetar móveis e objetos pessoais, de-
ção das habitações, com destaque para o Código Sanitá rio de 1894; e 3) partici- molir e queimar casebres, isolar quarteirões, prender suspeitos, atacar focos.
pação do Estado na gestão de obras de saneamento e de abastecimento de água No mesmo dia {. ..] tive conhecimento da existência de dois outros
e de coleta de esgotos, sobretudo pela encampação da Companhia Cantareira de [doentes] na casa nº 18 da rua da Saúde, o.1de residiam colonos italianos e entre
Águas e Esgotos e pela criação da Comissão de Saneamento das Várzeas. eles alguns recém-chegados. Feita a remoção desses doentes para o hospital de
A Diretoria de Higiene foi montada como um verdadeiro im- isolamento, fiz evacuar a casa, retirei para a Hospedaria dos Imigran tes os
pério: laboratórios, hospitais e desinfect ório como retaguarda e dezenas de tentá- moradores restantes, e sob minhas visitas foi praticada rigorosa desinfecção.
culos espa lhados, através de delegacias sanit árias, pelas ruas e bairros da cidade, Este serviço, que foi executado com todo o cuidado e de acordo com os preceitos
os quais eram vistoriados por um exército de inspetores, fiscais, desinfectores, científicos, foi repetido durante oito dias sucessivos. {. ..] No dia 25 caiu grave-
delegados e policiais sanitários. mente enfermo, com todos os sintomas característicos da moléstia que tantas
Verdadeiramente nova foi a fose criada por esse ato [lei 43, de vidas já havia ceifado, um empregado da Fábrica de Sabão e Velas da avenida
18/1/1892] do então presidente{. ..] Dr. Cerqueira César, que deu maior impulso Martin Burchard, no Brás{. ..]. A fábrica ficou imediatamente isolada e como nela
possível na ocasião ó higiene de todo o Estado, quer aumentando o número dos trabalhavam mais de vinte operárias, foi preciso a emprego de força pública
delegados da capital, criando delegacias nas cidades e vilas do interior, quer en- para impedir a fuga de toda essa gente. (COTRIM 1893:276)
viando um comissionado ó Eur.opa com o fim especial de comprar vários aparelhos, Em face do perigo confirmado, as medidas higiênicas foram
tais como estufas e pulverizadores para desinfecção a mais rigorosa. O mesmo exarcebadas a tª I pqnto que toda a vida da cidade org~n izou-se para a eliminação
ato criou o instituto vacinogênico, o laboratório de análises químicas, o de bacte-
riologia, o lugar de engenheiro sanitário e o desinfectório central. (VEIGA 1894) .. do surto epidêmico:
No dia 27, ó noite, fomos surpreenrlidos com o aparecimento de
Este aparato foi posto em ação em 1893, quando a cidade foi mais dois doentes na casa n• 5 da rua da Consolação. Procediam do km 20 da
atingida por um surto epidêmico de febre amarela e pelo terrível cólera-morbo, Estrada de Ferro Sorocabana e, de viagem para esta capital, onde vinham procu-
que pela primeira vez chegava ao Brasil. O combate a este é um bom exemplo da rar socorros, haviam pernoitada em uma casinha no povoado dos Pinheiros.
terapia higienista. Logo após a descoberta do cólera na Hospedaria dos Imigrantes, Urgia atacar outros focos. A casa da rua da Consolação foi submetida a rigoroso
{. ..] a Diretoria de Higiene isolou todos os imigrantes no próprio estabelecimento tratamento sanitário nesta mesma noite, sendo as desinfecções, como em outros
da Imigração, fazendo guarnecer por força armada as portas de saída. Em seguida pontos, repetidas por espaço de oito dias sucessivos. Coma medida complementar
isolou-se os passageiros do vapor Re Umberto em um grande salão, por se ter determinei que fossem desinfectados todos os prédios do quarteirão, tendo em
logo verificado que os primeiros casos de cólera se deram enfre eles,"procedentes especial atenção os esgotas. No dia 28 {. ..]segui para Pinheiros {. ..] levando uma
em sua maior parte do porto de Nápoles. As bagagens e roupas desses passa- turma de desinfectadores {. ..]. Não foi difícil descobrir a casinha onde haviam per-
geiros foram primeiro que tudo separadas para serem esterilizadas na estufa a noitado os epidêmicas e, depois de convenientemente desinfectada e lavada, ficou
vapor. (VEIGA 1894) interditada {. ..]. Seguimos então para o km 20 da Estrada de Ferro Sarocabana,

30 ORIGENS DA HABITAÇÃO SOCIAL NO BRASIL NA81L 80NDUKJ 31

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onde se verificou que os indivíduos. ~m questão habitavam um imundo e quase higiene que lhes corte os abusos pela raiz. Em segundo lugar, propomos que os
,. arruinado rancho de palha, que não se prestava ao mais elementar processo de
desinfecção. O meio de garantir o inocuidade daqueles pordieiros era destruí-los
·I cortiços existentes, e tão somente aqueles que puderem continuar em função,
passem por transformações que a higiene impõe e a polícia deve exigir. (MonA
pelo fogo, providência que foi tomada sem hesitação. A 2 de setembro fui procu- 1 1894)
rado pela dr. Ferraz, chefe da Comissão de Saneamento, que referiu-me haverem t evidente a intenção de eli minar os cortiços da área e, com isso,
aparecido entre os trabalhadores de linho férrea da Cantareira alguns casos de
moléstia í..J. Parti imediatamente{ ..]. Ali chegando, encontrei agasalhados em
l acelerar o processo de segregação por meio da intervenção pública. Depois de lis-
tada uma série de exigências a serem atendidas pelos cortiços e pelas casas de
um rancho dois doentes { ..]em outro havia dois cadáveres. Como única medida cômodos - verdadeiro rol de normas e padrões de construção -. são indicadas as
de san~omento { ..]lancei mão do fogo { ..]e de combinação com o sr. dr. Ferraz providências a tomar no caso dos cortiços condenados:
foram destruídos todos os ranchos [. ..]. Os trabalhadores, aterrados com os efeitos [. ..] dentro da zona afetada, os cortiços condenados não são
da epidemia, que havia vitimado em poucas horas grande número deles, fugiam poucos. As condições higiênicas de tais habitações são tão desfavoráveis que o
em massa, sendo para recear, que viessem para o centro da cidade. Tomei provi- recurso único, mas pronto i:J lançar-se mão por agora, é propor- lhes o interdicto.
dências pare prevenir a disseminação do mal. (CoTRIM 1893 :277) O poder público deve de estar preparado: 1) Paro lançar -lhes o interdicto, coagin-
A síndrome da epidemia trazia pânico à população urbana, jus- do os moradores a desocupá-los em prazo curto e sendo intimados os proprie-
tificando toda e qualquer medida que a Diretoria de Higiene e a polícia sanitária tários o reformá-los sob plano aprovado, antes de os poder alugar novamente.
propusesse. "O pânico que tão desagradável noticia [o aparecimento do cólera] 2) Para exigir a demolição de prédios condenados paro os quais não haja con-
trouxe à nossa população tem sido dominado pela confiança, que a todos têm sertos ou reparos possíveis. 3) Para fazer a desapropriação por utilidade públ ica
inspirado as acertadas resoluções tomadas pelos poderes competentes para debe- daquelas construções que forem condenados pela higiene e de que haj a conve-
lar o mal" (SERVA 1894). A cidade ficou à mercê da ordem sanitária: a inviolabili- niência na reedificação, sob tipo especial aprovado. (MonA 1894)
dade do domicílio tornou-se letra morta, casas foram interditadas, demolidas ou Tais propostas, no início feitas para "converter as habitações
queimadas. defeituosíssimas de Santa lfigênia em casas, onde os operários possam encontrar
Enquanto as providências tomadas contra a disseminação do có- os elementos essenciais à vida" (Motta 1894), tornaram-se o embrião da legis-
lera seguiam a estratégia de detectar outros focos na cidade, o tratamento contra lação que regulamentou a construção de habitação operária, implementada pelo
a febre amarela foi mais localizado, limitando-se a uma zona de Santa lfigênia Estado através do Código Sanitário de 1894. Ela já indicava uma intenção velada
entre os Campos Elísios e a zona central. de eliminar os cortiços e os trabalhadores da área central e de reg iões também
Nota~se aqui urna preocupação explícita da Diretoria de Higiene habitadas por setores sociais mais privilegiados. Mas, além dessas medidas de
em melhorar as condições de habitação na área, tendo encomendado para tal fim caráter normativo, a terapia da área afetada de Santa lfigênia incluía a execução
o Relatório da Comissão de Exam~ e Inspecção das Habitações Operárias e Cor- de um plano de saneamento para regularizar o terreno, pois constatou -se uma
tiços no Districto de Santa Ephigênia. Nesse caso, o poder público decidiu melho- relação direta e_ntre..a disseminação da feb re amarela e a inexistência de sanea-
rar as condições de drenagem e saneamento, essenciais para a prevenção de epi- ment o. o poder público passou então a realizar trabalhos de drenagem e de rebai-
demias. A escolha de Santa lfigênia não foi casual : tratava-se de um bairro não xamento do lençol de água, além de empreender a limpeza do bairro e a obstrução
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só popular, mas habitado também pela classe média e pela burguesia cafeeira. A de poços.
reg ião analisada no R~latório de 1894 situa-se a menos de quinhentos metros do Portanto, das medidas contra as duas epidemias de 1893 surgiram
mais aristocrático bairro da época, Campos Elísios. Embora condições semelhantes três frentes de combate - legislação urbanística, planos de saneamento básico e
ás de Santa lfigênia existissem em outros bairros, gerando problemas sanitários e estratégia de controle sanitário - . que são a origem da intervenção estatal no
doenças contag iosas, foi só ali que se propõs uma in tervenção completa, na qual controle da produção do espaço urbano e da habitação.
se revelou outra estratégia sanitária: O surto epidêm ico do cólera foi contido e, apesar do pânico, não
{ ..]na zona afetada pela epidemia as providências a tomar têm matou mais de 53 pessoas. A febre amarela, depois de ter feito 125 vítimas em
de ser enérgicas, prontas e quase radicais para produzirem algum resultado 18S3, desapareceu de Santa lfigên ia, posta sob a guarda da polícia sanitária e sob
sobre a higiene das habitações operárias { ..]. Em primeiro lugar propomos que a ação da Comissão de Saneamento. Os higienistas se regozijaram pelo êxito do
se não permita a construção de novos cortiços dentro desta zona e que ãs casos tratamento e exigiram sua continuidade: novas leis regulamentando as const ru-
de dormida existentes se submetam a um regime todo especial de polícia e de ções, visitas domiciliares constantes, exames e inspeções nas habitações, cont role

32 ORIGENS DA HABITAÇÃO SOCIAL NO BRASIL NABIL BONDUKI 33

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sanitário, vacinações. Dai para a frente, a vida na cidade passou a ser cotidiana- sanitários sempre atentos não só ao que pudesse ser uma ameaça à saúde pública,
mente vigiada pelos higienistas. Com freqüência, sua intervenção pautou-se por mas a tudo que os higienistas considerassem pernicioso. O risco constante de epi-
atos de violência, como no caso das desinfecções: "(. ..] realmente contristador o demia mantinha a polícia sanit ária em alerta. E, como toda ação policial, tornou-se
quadro que representavam os carroções do Serviço Sanitário quando ocorria um fator de normalização e homogeneização do socia l.
algum caso de varíola. O enfermo era introduzido nela, enquanto os homens do
Desinfectório entravam na casa do varioloso e procediam a um expurgo total.
1
Pouco sobrava, depois da sua retirada, além do cônjuge rema nescente e dos filhos
chorando desesperadamente" (PENTEADO 1971 :281 ). O segundo conjunto de intervenções do poder público nas novas
A atribuição de poderes extraordinários à policia sanitária forà m condições urbanas surgidas na década de 1890 incluía as obras de saneamento,
explicifamente assumidas pelos higienistas, que assim justificaram o desrespeito distribuição de água e coleta de esgoto, cuja eficácia na melhoria das condições
às leis de caráter liberal: "a higiene não pode cingir-se às leis gerais que regem a sanitárias e urbanas foi bem mai or que as ações repressivas da policia sanitária.
sociedade, muitas vezes precisa, a bem da sa lubridade pública, intervir ditatorial- Até então, o serviço de águas e esgotos era explorado, através de
mente, praticando mesmo violências, segundo a gravidade da situação" (VEIGA uma concessão, por uma empresa privada - a Companhia Cantareira de Águas e
1894:97). Esgotos - , como era a reg ra nos serviços públicos. A São Paul o Light Power tt Cia.
As visitas domiciliares, por sua vez, eram interferências diretas era responsável pela geração e distribuição de energia elétrica e pelo serviço de
no cotid iano dos moradores, com os inspetores procurando determinar os com- bondes; a São Paulo Gás Co. ltd., pelo serviço de iluminação pública à gás edis-
portamentos e hábitos de vida e de asseio doméstico. "As visitas domiciliares sis- t ribuição domici liar de gás; e a Telephone Co. explorava os serviços de telefonia.
temáticas em uma cidade como a de São Paulo pela autoridade sanitária, visando O regime estritamente privatista ·reservava às empresas capitalistas o setor essen-
em uns o estimulo para a manutenção do asseio, em outros impondo sob penas cial dos serviços urbanos, preferido pelo capita l estrangeiro.
legais a execução das medidas higiênicas, só podem ser louvadas" (VEIGA 1894). A encampação da Companhia Cantareira foi importante por repre-
A população trabalhadora era a mais visada pela vigilância estatal sen tar uma intervenção do poder público num setor em geral destinado a parti-
pois suas habitações eram consideradas o principal foco de doenças infecciosas. culares. Essa ação deveu-se à prioridade que a questão sanitária ocupava nas preo-
"A predileção do cólera-morbo pelas habitações imundas, o extermínio da popu- cupações governamentais no início da década .de 1890, pois a contam inação da
lação miserável em todas as partes onde tem grassado essa epidemia, as vanta- água e a ausência de coleta dos esgot os eram os grandes meios transmissores de
gens que resultou do asseio doméstico, despertam no higienista a necessidade de doenças.
intervir com todo o rigor com o fim de sanear a habitação pobre" (VEIGA 1894:92). A Companhia Cantareira atuava morosament e na adução de água
A estratégia de visitas domiciliares e desinfecções em nada con- na serra e na ampliação da rede e não consegu ia acompanhar a expansão urbana.
tribuiu, porém, para melhorar as péssimas condições de moradia e saúde ou elimi- Por isso, em 1892, "o Congresso do Estado autorizou o poder Executivo a rescin dir
nar suas causas: pobreza, superexploração e baixos salários, subnutrição, falta de o contrato, encampar a Companhia Cantareira e mandar executar as obras de
saneamento e de moradias dignas. Gerados por uma ordem social e econômica abastecimento de água e de desenvolvimento da rede de esgotos" (STIEL 1978). As
injusta, esses problemas permaneceram intocados. Os higienistas enxergaram na ,, auto ridades foram eficientes, construindo uma via f érrea, o Tramway da Canta-
própria moradia a origem dos males e contra ela voltaram suas armas: "São as reira, para acelerar as obras e, logo, a maior parte da cidade era abastecida por
casas imundas o berço do vicío e do crime" (VEIGA 1894:82). Por fim, concebiam o água e servida por rede de esgoto.
trabalhador pobre como um ser ignorante que, sem moral, higiene e bons cost u- A pronta intervenção mostra o quanto o Estado considerava o
mes, podia tornar-se um ser politicamente perigoso: "O socialismo destruidor e setor essencial para a melhoria das condições sanitárias. E com razão: dentre as
pernicioso para o prog resso de µma nação encontra, nesses centros das grandes causas das doenças epidêmicas, a contaminação da água ocupava lugar de des-
cidades, uma atmosfera favorável para seu engrandecimento" (VEIGA 1894:82). Os t aque. Embora os higienistas apontassem diversos fatores ligados à moradia como
trabalhadores necessitavam ser vigiados, co ntrolados e reeducados em seus há - propagadores de doenças (promiscu idade, acúmulo de moradores, ausência de
bitos de mo.r.ar. Essa -visão moralista, que orientou a interve·nção est atal em São asseio ou de moral, maus hábitos etc.l. a falta de saneamento e drenagem - ao
Paul o, iria perdurar até a década de 1940. lado do acúmulo de pesso(;ls em moradias de área reduzida, um fator importante
A partir da montagem do império sanitário na primeira metade na propagação de doenças de aparelho respiratório, como a tuberculose - , era de
da década de 1890, milhares de casas foram visitadas todos os anos por inspetores fato a causa principal na disseminação de doenças infecciosas.

34 ORIGENS DA HABI TAÇÃO SOCIAL NO BRASIL NABIL BONDUKI 35


Por exemplo, a falta de rede de água foi a causa da epidemia de Nunca, entret anto, estas obras acompanharam a expansão hori-
febre amarela em Santa lfigênia, em 1893, pois os esgotos contami naram a água zon tal da cidade, visto que o poder público não desenvolveu um plano de drena-
dos poços: gem abrangente nem ordenou o crescimento da cidade como, por exemplo, foi feito
{..] além de imperfeitos esgotos, quase todos as casas tinham em Santos, com o Plano de Saturnino de Brito (ANDRADE 1991). Em São Pa ulo, fo-
latrinas de fossas fixas; com deficiência de água. As muitas lavadeíras que ali ram priorizadas as intervenções tópicas, com as obras de embelezamento nas áreas
moram utilizavam-se de água~ de poços [cisternas]. Ora, sendo certo que foi exa- centrais da cidade, que incluíram o sa neamento e o tratamento paisagístico da
tamente naquele perímetro que mais doentes importados apresentavam-se; sen- Várzea do Carmo e do Vale do Anhangabaú.

1.
do igualmente verdade que as dejeções eram atiradas ó latrina sem desinfecção;
sendo. incontestável que eles podiam se infiltrar no lençol de água subterrâneo
J A~ intervenções urbanísticas na área central de São Paulo nos
an os 10 foram uma outra forma do poder público enfrentar a questão das habi-
ou na bacia lacustre, é óbvio que as águas infeccionadas do subsolo intoxica- tações insalubres, à moda de Haussmann e Pereira Passos: expulsando seus mora-
1 vam os poços e conseqüentemente os habitantes daquele ponto. (MorrA 1894)
O governo estadual passo u então a investir maciçamente na am-
dores e demolindo os cortiços, para afastá - los do centro. Mesmo sem a "gran -
diosidade" que marcou, no Rio de Janeiro, a derrubada para abertura da avenida
1 pliação da rede de água e esgotos, conseguindo atender, até 1920, cerca de 850/o Central, as obras viárias e o embelezamento de São Paulo também serviram para
! dos prédios da cidade (tabela 1.3). A alta densidade da cidade - em 1914, a densi- sanear "regiões "deterioradas", como o entorno da Sé (ROLNIK 1981).
dade bruta era 110hab/ha, a mais alta em todos os tempos (VILlAÇA 1978) -, facili-
tou a expansão da rede, mas não evitou a falta de água nos períodos de seca: "é
exatamente nos bairros popu lares, onde a higiene deixa muito a deseja r, que a
carência de água mais se manifesta''. A terceira forma de intervenção estatal deu-se através da criação
da legislação de controle do uso do solo, também defendida pela ordem sanitarista.
Tabela 1.3 - Evolução do número de prédios servidos pelas "des de
A higiene não pode cingir-se ós leis gerais que regem a sociedade
água e esgoto na Cidade de São Paulo (1905- 1950) [. ..].A interdição de umo casa, o desalojamento de uma família, a penetração no
lar doméstico a título de visita sanitária, a designação da forma de enterra-
Ano Água (1) Esgoto (2) Prcdios (3) % 1/3 % 2/3 mento e do cemitério, são atos reclamados pela higiene pública e que riõo pare-
1905 23.743 21.882 25.976 91 84 cem obedecer a uma lei geral, mas sim a um regulamento sanitário especial. [. ..]
1910 32.474 29.771 32.914 98 90 Os largos dispêndios a que são forçados os cofres públicos nas
1915 49.961 45.601 53.990 83 82 obras de saneamento geral, nos serviços mantidos em bem da higiene defensiva,
1920 51.825
justificam, quando não fosse a necessidade de salvação pública as medidas de
49.521 59.784 86 82
j rigor para conter a exploração gananciosa dos que constroem sem consciência
1927 75.370 61.775 88.407 85 69
!' e dos que locam e.sublocam prédios sem atenção ós leis da moral e ó vida dos
1935 104.741 83.956 119.017 88 70
seus inquilinos. A higiene pública pode e deve em certos casos suprimir garan-
1940
1950
135.242
211.021
106.485
140.267
224.883
360.336
60
58
47
39
.. tias [. ..]. Com as leis de higiene na mõo o poder público manda demolir, retocar
e reformar o que não pode permanecer sem corretivo: faz desaparecer utilidades,
Font.s: llo!ETIM DO DfPAllTAMElflO OE EsrATiSTICA DO EsrADO DE 5Ão PAULO; ANUI.RIO ESTATlsnco DO criar outras e nem sempre é obrigado a indenizar o que houve de condenar
EsrADO DE SÃO PAUW, 1942; Bol.ETIM DA DIRffOl/IA DA INDÚSTRIA E CoMtROO.
muitas vezes. (VEIGA 1894)
Desde o Código de Posturas do Município de São Paulo de 1886,
Outra intervenção do poder público foi no âmbito do saneamen- várias leis estabeleceram · os tipos e as especificações das habitações operárias.
to e da drenagem de várzeas e baixadas. Em 1890, foi constituída a Comissão de Elas definiam seus gabaritos, desenho, dimensões, cubagem e equipamentos sani-
l Saneamento das Várzeas, que constatou a necessidade de _grande quantidade de tários; por outro lado, determinavam quais sol uções de aloj amento eram proi-
obras, pois·a expansão promovidá'por loteadores e especuladores atingia extensa bidas. De toda e5sa legislação, a mais completa foi o Código Sanit ário de 1894.
1
1 área de baixada, onde a ausência de drenagem gerava focos epidêmicos. Em geral, Inspirado na legislação francesa, ele foi conseqüência direta da presença dos hi-
! estas áreas eram ocupadas por moradias populares, pois os terrenos eram mais gienistas na administração e tornou-se um com pêndio dos princípios gera is da
1. baratos. higiene pública, seguido por todos os municípios do Estado.
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f" 36 . OR IGENS DA HABITAÇÃO SOCIAL NO BRAS IL NABIL BONDUKI 37
1!

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1 O grande motivo de preocupação que transparece nesses dispo- nem casas que para tal fim não forem construidas, nem os co rtiços que nã o est i-
) 1
! sitivos legais são as casas coletivas, as estalagens e os cortiços, pois considerava-se verem de acordo com o padrão".
j
que, para ser completo, o tratamento sanitário da cidade não podia excluir a un i-
l dade urbana: ·
É coerente com o enfoque higienista a atenção dedicada pelo
poder público aos cortiços e outras habitações coletivas, pois a superlotaçã o, uso
{ ..] não bastava, com efeito, melhorar as condições de abaste- comum de san itários e ausência de saneamen to criavam cond ições para a propa-
cinfento de água e do serviço .de esgoto, encetar a drenagem profunda e super- gação de doenças contagiosas. No entanto, o fa to de o higienismo ter transfo r-
ficial do solo, proceder â regularização e limpeza dos terrenos baldios, retificar mado suas posturas em leis não sign ificava que essas normas eram obedecidas na
o curso dos rios urbanos, efetuar o asseio e limpeza das ruas e quintais, reg(lla- prática. Pelo contrário, já no final do século XIX começou a se ampliar o fosso
rizar pu regulamentar as construções novas, arborizar as praças e logradouros entre os pad rões legais e a atividade de construção de moradias populares, em-
públicos, calçar as ruas, tomar enfim todas as medidas para manter em nível weendida quase sempre por particulares que visava m obter delas re ndimentos por
elevado a higiene de uma cidade que cresce rapidamente e cuja população tripli- meio da cobrança de aluguel.
cou em dez anos; é preciso cuidar da unidade urbana da habitação, não já da A construção barata era uma exigência intrínseca ao negócio,
habitação privada, mas daquela onde se acumula a classe pobre, a estalagem pois os níveis de remuneração dos traba lhadores não perm itiam al uguéis eleva -
onde [se aloja] a população operária - o cortiço como vulgarmente se chama- dos. Os cortiços e as casas coletivas eram, portanto, essenciais para a reprodução
ram as casas, construções acanhadas, insalubres, repulsivas algumas, onde as da força de trabalho a ba ixos custos e, enquanto tal, não podiam ser rep rimidos
forças vivas do trabalho se ajuntam em desmedida, fustigadas pela dificuldade e demolidos na escala prevista pela lei e desejada pelos higienistas. Esse conflito
de viver numa quase promiscuidade a que a economia lhes impõe mas que a entre a legislação e a realidade, que nunca desapareceu, decorria do processo de
higiene repele. (MonA 1894) exploração da força de trabalho e permeou a produção de morad ias popu lares em
Desse modo, a maioria das leis regulamentava a construção de São Pau lo.
cortiços - sempre entendidos como habitações produzidas em série e abrindo Embora existam inúmeras referências à Y:Jemo lição de habita ções
para um pátio ou corredor. O Código de Posturas de 1886 determinava uma área tidas como insalubres, nunca o pod er pú blico pôde levar a lei ao pé da letra pois
mínima de 5 m' para cada cômodo, uma distância de pelo menos 5 m entre cada isto significaria deixar ao desabrigo boa parte dos trabalhadores urbanos.
linha de cortiços, um poço com água e um pequeno tanque de lavagem para cada A carestia de habitação higiênica, nesta capital, para as classes
seis habitações, uma latrina com água para cada duas habitações - e dispunha pobres, cada vez se agrava e, em conseqüência, alojam-se estas em porões que
que esses assentamentos eram proibidos no perímetro do comércio. não oferecem condições de salubridade ou em cortiços em que se aglomeram
Os cortiços, portanto, eram tolerados, uma vez que o Código de- com os maiores inconvenientes sanitários. A lei faculta â autoridade despejar os
t erminava padrões para sua edificação. Outros tipos de alojamentos, como casas ocupantes dessas habitações impróprias e, nas toleráveis, proporcioná- los â
de cômodos, hotéis-cortiços e cortiços improvisados não eram citados - provavel- lotação; mas a crise de alojamento e o repugnãncia que causo tal violência em
mente porque estes se difundiram somente depois de 1886. Já o Código Sanitário circunstâncias tais, tolhem a ação do Serviço Sanitário. (CAMPOS 1925)
era mais rigorosd, refletindo a ascendência dos higienistas. Ao tratar das "habit a- Ao se chocar com as condições econômicas estrutura is, baseadas
ções das classes populares", proibia terminan temente a construção de cortiços e •\
nos baixos salários e em regras mercantis de produção de moradias de aluguel, o
atribuía à municipalidade a responsabilidade de fechar os existentes; não tolerava higienismo perde sua arrogân cia. Nem por isso, contudo, a legisla ção urbana tor-
as casas subdivididas; que serviam de domicílio a muitos indivíduos; determinava nou-se letra morta. Pelo menos até meados da década de 1920, a fiscalização e a
que as casas destinadas às classes poqres deveriam ser construídas em grupos de pol icia sanitária mantiveram-se ativas e vig ilantes. Embora incapazes de impedir
quatro a seis, no máximo, e que as habitações insalubres deveriam ser saneadas a prolif eração de cortiços e habitações precá rias, dific ult avam a construção de
ou demolidas. moradias clandestinas, exercendo uma ação rep ressora.
Posturas semelhantes foram adotadas no municipio de São Paulo: De qualquer modo, o poder de fisca lização do poder público no
em 1893, a lei 38 estabeleceu que toda e qUalquer nova edificação dependia de controle do uso .do solo era muito mais eficaz do que seria a partir da década de
planta apmvada e a lei 375, de 1898, determinava que cortiços infectas e insalu- 1930, quando a fiscalização dos loteamentos clandestinos tornou-se desmorali-
bres não seriam permitidos e deveriam ser demolidos ou reconstruidos conforme zada e inoperante. Essas alterações devem-se, em part e, a mudanças na visão pre-
o padrão municipal. Esta intenção é reforçada, entre outras, pela lei 493; de 1900, dominante na burocracia da saúde:
que declarava "não serem permitidas as habitações coletivas em forma de cortiços, Em 1925, através do decreto 3876, durante a direção de Paula

ORIGENS DA HABITAÇÃO SOCIAL NO BRASIL NABIL BOND UKI 39


- ,,

Souza, reorganiza-se completamente o Serviço Sanitário, passando a ter papel desestimularia o investimento privado, sugerindo incentivos fiscais para os parti-
•. secundário as práticas sanitárias basadas na concepção bacteriológica (como o Cl{)ares (CINTRA 1927).
controle sanitário da moradia e os desinfecções) e tornando-se predominantes as Adotados por todos os níveis do governo e regiões do país, os es-
práticas médico-sanitárias fundamentadas nas concepções da Escola Americana tímu los ·à iniciat iva privada foram sempre muito bem aceitos por todos: higienistas,
segundo a qual o Saúde Pública se exerce por ações perman entes de Educação poder público e empreendedores. Para estes, a vantagem era óbvia, pois aumen-
Sanitária, preferencialmente realizadas em unidades locais. (EscRNÃO JR. 1985:26) tariam seus lucros; para o poder público, mesmo que os resultados fossem pífios,
Por outro la.do, como a postura governamental relativa à habi- era uma forma de mostrar uma iniciativa em favor da melhoria da habitação dos
tação tinha forte apelo repressivo e limitador da livre construção, o poder público pobres; por fim, para os higienistas, era a oportunidade de difundir o padrão de
preci~ava apresentar alguma proposta que estimulasse a edificação de novas habitação recomendável. Nesse contexto, foram propostas várias leis de estímulo
moradias: à construção de vilas operárias.
[. ..] de acordo com as leis, os consrruções encontradas sem a Baseada na casa unifamiliar, a vila operária era o modelo de ha~
devida seguran ça e ameaçando perigo iminente ou insalubridade foram demoli- bitação econômica e higiênica, o ideal a ser at ingido. Desde o Império, surgiram
das. Acho que a Câmara deve sobre o assunto tomar medidas mais amplas incentivos, inclusive isenção de impostos de importação de materiais, para facili-
porque não é possível, de momento, suprimir o cortiço sem que se dê habitação tar sua construção. Em São Paulo, a lei 493/ 1900 previa a isenção dos impostos
· que o substitua. Épreciso conceder favores do poder público para a construção municipais para as vilas operárias construídas conforme o padrão da prefeitura e
de vilas operárias, provando assim o legislador cooperar para a supressão dos fora do perímetro centra l, incentivo reforçado, em 1908, pela lei 1098. Nesse dis-
célebres cortiços ou estalagens. (SOUZA 1921) positivo, a Câmara Municipal reafirmava a legislação anterior e propunha-se a fazer
A concessão de favores ao setor privado foi a única medida aceita gestões junto ao Congresso Legislativo estadual, para que este to masse medida
·pelo Estado para incentivar a produção habitacional. Rejeitou-se a possibilidade semelhante, e ao Congresso Federal para que autorizasse as Caixas Econômicas a
de produção direta de moradias por órgãos governamentais ou de uma legislação empregar um quinto de seus fundos em empréstimos hipotecários às sociedades
que regulamentasse as relações entre locadores e inquilinos. Essas medidas so- construtoras de casas barat as e higiênicas e às sociedades de créd ito que facilitas-
! ~ mente seriam adotadas no governo Vargas, apesar de a construção de casas pelo sem a compra ou construção dessas casas.
Estado ter sido sugerida por técnicos do Departamento Estadual do Trabalho ainda No que se refere às relações ent re locador e inquilino, n·a pri meira
na década de 1910: República vigoraram as disposições liberais da Constituição e do Código Civil, que
[. ..] fica pois bem entendido de que se não preconizarmos um garantiam o direito absoluto de propriedade, isto é, o domínio do proprietário so-
radical socialismo do Estado, contudo nõo podemo.s endossar uma certa opinião bre o imóvel alugado. O aluguel era fixado pela partes segundo as regras do merca-
que infelizmente corre e faz adeptos, segundo a qual a função do Estado é a de do, sem interferência do poder público. Entre 1921 e 1927 vigorou uma primeira
mero espectador dos acontecimentos. É evidente que a iniciativa privada não lei do inquilinato que t eve reduzido impacto no merca do, como será mostrado no
pode dar uma solução à questão [. ..]. Sendo as casas operárias, para os capita- capítulo 5.
listas, uma questão de dinheiro como qualquer outra, qual o meio de conseguir. Foram essas as mais significativas formas de intervenção do
para as classes pobres, casas ao mesmo tempo higiênicas e baratas? A resposta Estado no setor da habitação até a década de 193 0. Sob o controle da burgu~sia
"
é óbvia: ou o Estado.fem nosso caso o município) assume o papel do capitalista, cafeeira, o Estado liberal-oligárquico tratou a questão de um ponto de vista sobre-
construindo as casas, ou proporciona empréstimos aos operários para que as tudo repressivo, ditado pela ordem sanitária, postura coerente com sua aborda-
construam ou concede certas regalias aos indivíduos e associações que se obri- gem dos problemas sociais. Entretanto, considerando-se que a regra era o Estado
garem a efetuar a construção de tais casas de acordo com um tipo aprovado, manter-se afastado do âmbito privado, não há co mo negar a especificidade da
bem como alugá-las por preço módico, devidamente fixado. (BOLETIM DO DEPAR- intervenção estatal, impondo limites à ação de promotores de cort iços.
TAMENTO ESTADUAL DO TRABALHO, 1916) Ao se tornarem um guia pa ra a ação estatal, as concepções higie-
Construir casas, "assumindo o papel de capitalista", era incom- nistas resul:taram em um "autoritarismo sanitário", ou seja, na imposição de uma
patível com a concepção liberal do Estado vigente até 1930. Assim, durante a Pri- te.rapia ao urbano que procurava sanear os males da cidade sobret udo através da
meira República, privilegiou-se apenas o incentivo aos particulares. As conclusões eliminação dos seus sintomas - as morad ias insalubres - , nunca questionando
de uma comissão formada pelo prefeito Pires do Rio, em 1927, é exemplar desta suas causas. O controle higiênico das habitações e a conseqüente vigilância de seus
postura: desaconselhou o envolvimento da prefeitura na construção de casas, que moradores por meio de visitas domicil iares, a legislação de combate aos cortiços

40 . OR IG ENS DA HABITA ÇÃO SOCIAL MO BRASIL NABIL BONDUKI 41


.-·.

e habi tações coletivas, as desinfecções violentas e ar.bitrárias, os excessos e inter- Esses foram os primórdios da intervenção estatal na questão da
dições dos prédios - tudo isso fazia part e desse autoritarismo sanitário, contra- habitação. Num período em que a questão social era tratada como caso de policia,
ponto no plano urbano do autoritarismo patronal exercido nas unidades produ - o problema da habitação foi enfrentado pelo autoritarismo sanitário basicamente
! t ivas sem qualquer interferência do Estado. como uma questão de higiene, na perspectiva de difundi r padrões de comporta-
De qualquer maneira, as epidemias foram relativamenl:e contidas mento, de asseio e de hábitos cotidianos. A ação mais importante foi a ext ensão
em São Paulo: com exceção da gripe espanhola, que fulminou cerca de seis mil das redes de água, embora a insuficiência da aduçã o tenha gerado escassez. Por
pessoas em 1918, reduziram-se os efeitos dos surtos epidêmicos. De fato, .entre outro lado, os incentivos para a constru ção de vilas operárias beneficiaram mais
1895 e 1899 a taxa de mortalidade caiu de 30,53 por mil habita ntes para 16,45; os investidores do que os trabalhadores.
ficando, entre 1899 e 1930, na faixa de 15 a 19 por mil, com exceção do ano da Fora a abordagem higienist a, a participação do Estado foi limi-
gripe espanhola. Esse desempenho, porém, deve ser atribuído mais à expansão da tada. O poder público, entretanto, não foi um espectador passivo das condições de
rede de água e esgotos, às obras de saneamento e a uma melhoria relativa nas moradia dos pobres. Tanto assim que criou uma polícia para vigiá-los, examiná-los
condições gerais de vida da população do que ao conjunto de medidas agressivas e inspecioná-los, e uma legislação para servir-lh es de padrão; porém, pouco fez
e controladoras pertinentes ao autoritarismo sanitário. para melhor.ar suas moradias, a não ser quando eram chocant es demais - de-
molindo-as. E este modo de reso lver o problema da habitação - característico do
Tabela 1.4 - Evolução da mortalidade autoritarismo sanitário - nada mais é que sua própria recriação.
na Cidade de São Paulo (1894-1949)
(por 1000 habitant~s)

Produção rent ista e a


Índice de
Ano mortalidade
moradia dos traba lhadores
1894 28,09
esde o surgim ento do problema habitacional em
1895 30,53
São Paulo no final do século XIX até a década de
1896 28,89
1930, surgiram várias modalidades de moradia pa-
1897 22,76 ra alojar os setores sociais de baixa e média renda,
1898 19,55 todas constru idas pela iniciativa privada. Entre
1899 16,45 elas, as mais difundidas foram o cortiço-corredor,
1900 17,12 o cortiço- casa de cômodos, os vários tipos de vilas
1905 16,96 · e correr de casas geminadas.
1910 19,89 -. É importante ressaltar o que essas habit ações possuiam em co-
1915 15,24 mum: quase todas eram moradias de aluguel. Até a década de 1930, "a forma
•I
1918 28,03 dominante de morar da população paulistana (incluindo a classe média) era a
1920 18,24 casa de aluguel" (Sampaio 1994), situação normal, pois não existiam sistemas de
1925
financiamento da casa própria. É certo . que alguns trabalhadores conseguiam
16,25
comprar um lote e erguer por conta própria uma casa; como alguns italianos que
1930 15,30
"à medida que-conseguiam economizar algum capit al adquiriam um terreno nas
1935 13,37
áreas menos valorizadas e construíam em etapas" (BENCLow1cz 1989:249).
1940 11 ,69
Isto, porém, era exceção, sendo mais comum a moradia em casas
1949 10,18 de aluguel, produzidas por uma gama variada de invest idores privados com o ob-
Fonte: SANros 1962. jetivo de obter uma boa rent abilidade, como o comprovam levantamentos da
época. Em 1920, apenas l 9, 1Olo, e em 1925, 23,80/o dos prédios da cidade era m
ocupados por proprietários (BOLETIM DO DEPARTAMENTO DE INDÚSTRIA E COMÉRCIO). Tudo
indica que, antes de 1920, esses números eram ainda menores, uma vez que os

l 42 ORIGENS DA HABITAÇÃO SOCI AL NO BR AS IL NABIL BONOUKI 43


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trabalhadores só conseguiam se tornar proprietários após décadas de trabalho e e comercialização do café. Surgiram, assim, pequenos, médios e grandes investido-
poupança. E como em geral os prédios ocupados pelos proprietários eram unifa- res, ligados à intermediação do café ou aos setores dependentes do capital cafeeiro
miliares e os ocupados por inquilinos eram, em boa proporção, coletivos, a porcen- - indústria, comércio de importação, exportação e varejista, sistema bancário,
tagem da população que vivia em moradias de aluguel era, no período, superior serviços urbanos etc. (CANO 1979, SILVA 1978).
a 800/o. ·
Como os fazendeiros em geral contratavam financiamentos jun-
Embora o número de traba lhadores-proprietários possa ter cres- to aos bancos ou comissários, estes acabaram concentrando capital e estavam
. cido grada tivamente ao longo ·das primeiras quatro décadas do século, em 1940 sempre prontos a financiar empreendimentos rentáveis num periodo de limitadas
apenas 250/o dos domicílios eram próprios (IBGE 1940), o que revela que a situação opções de investimento. Devido aos ciclos de expansão e retração da economia
não se. alterou muito até o final dos anos 30. cafeeira, ocasionados por crises de superprodução, queda ou elevação dos preços e
Até essa época, portanto, a produção habitacional coube à ini- variações do mercado internacional, nem sempre o setor absorvia todos os capitais
ciativa privada, situação que perdurou até as transformações por que passou o disponíveis em determinado momento. O mesmo se dava em outros setores, so-
pais na era Vargas desestimularem os investimentos no setor, deixando como opção bretudo o industrial, que seria, por excelência, o mais importante pólo urbano de
a interven.ção estatal - sempre limitada - e a ação dos próprios trabalhadores- investimento.
moradores através do auto-empreendimento da moradia. Ainda que a indústria tenha sido a maior beneficiada pela trans-
Isto significa que na Primeira República existiam inúmeros inves- ferência do capital cafeeiro, os investimentos nesse setor apresentavam limita-
tidores interessados em aplicar seus·capitais na produção de moradias de aluguel: ções de várias ordens. O processo de industrialização era ainda incipiente, frágil e
"O tipo mais freq üente foi o representado pelas iniciativas de investidores ou áe instável, às vezes ameaçado por crises de superprodução, além de sofrer com a
companh ias particulares que visavam lucrar com o aluguel das casas" (BENcww1cz ausência de um mercado nacional integrado e com a concorrência estrangeira.
1989:250). Razões de ordem jurídica e econômica explicam essa opção. O investi- Por isso, o ritmo de acumulação industrial era não só lento como intermitente,
mento em casas de aluguel era seguro e lucrativo; os riscos eram baixos e certa a mantendo-se em níveis bastante mediocres (CANO 1979). E. pelo menos até mea-
valorização imobiliária, sobretudo em cidades de grande crescimento e dinamismo dos da década de 1920, a indústria limitava-se a produzir bens de consumo para
econômico, como São Paulo. a classe traba lhadora (sobretudo têxteis e alimentos}, o que também restringia
Por outro lado, o setor era regulado pelo mercado, inexistindo sua capacidade de expansão.
controles estatais sobre os valores dos aluguéis, fixados em contrato pela lei da Desse modo, a existência de excedentes econômicos nas mãos de
oferta e da procura, ao mesmo tempo em que o direito à propriedade, garantido investidores de diversos portes, a restrita· capacidade de aplicação no setor indus-
pela Constituição e pelo Código Civil, permitia o despejo (denúncia vazia). Além trial, a expansão e retração cíclica da cafeicultura, a· valorização imobiliária e a
disso, o predomínio do higienismo levou à criação, pelo poder público, de incen- grande demanda por habitações em São Paulo, os incentivos fiscais e a inexis-
tivos fiscais e vantagens para soluções habitacionais consideradas salubres, como tência de controles estatais dos valores dos aluguéis - tudo isso tornou o inves-
as vilas, que aumentavam a rentabilidade desses empreendimentos. Por fim, as timento em morqdias de aluguel bastante atraente durante a Primeira República.
taxas de inflação, de grande importância no mercado de locação, foram baixas ou Neste sentido econômico, as soluções habitacionais de aluguel produzidas em
negativas: entre 1900 e 1914 não houve aumento nos índice de preços, ocorrendo, série para os operários e para a classe média - cortiços, vilas, conjunto de casas
ao contrário, em vários anos, deflação. geminadas, minipalacetes de e.dificação seriada etc. - tinham o mesmo significa-
As características da economia de base agrário- exportadora, com do e representavam agendamentos específicos do mesmo movimento financeiro,
predomínio do capital comercial, favoreciam esses investimentos, que ocorreram ou seja, capita is buscando aplicação rentável através.da exploração de locação
- em maior ou menor grau - em todas as cidades brasileiras nesse período (RIBBRO habitacional.
1989). No caso de São Paulo, a economia cafeeira gerou um excedente econômico As condições econômicas no período de 1900 a 1920 foram bas-
que podia ser aplicado no ramo imobiliário. A cidade se expandia com rapidez e tante favoráveis à produção de habitações e edificações, tendo sido const ruídos
era enorme a procura por moradias, estimulando a construção de novas unidades, mais de 38 mil novos prédios, caindo a média de moradores por edifício de 11,59 em
cuja rentabilidade era garantida pelos mecanismos de mercado que, na escassez, 1900 para 9,6 em 1930. Como cerca de 800/o dos prédios eram alugados, esse surto
elevavam os aluguéis. ' de construções é forte indicio da elevada rentabilidade do negócio de locação.
Por outro lado, o dinamismo da economia paulista promo~eu rela- No entanto, a atividade construtora não se comportou de forma
tiva distribuição da renda entre os diversos agentes que participavam da produção uniforme nessas duas décadas, va riando de acordo com a demanda por habitações

44 ORIGENS DA HAB ITA ÇÃO SOC IAL NO BRASIL NAB/l BONDU~I 45

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e os valores dos aluguéis. Entre 1908 e 19 14 a produção de novas edificações Com isso, a produção rentista propiciou o surgimento de várias
alcançou a marca de 23 mil unidades construídas. quase 4 mil prédios por ano, modalidades de moradia para aluguel. Uma delas foi a vi la operária, sob a forma
em média. Essa aceleração, aliada à crise econômica iniciada em 1913, resultou de pequenas moradias unifamiliares construídas em série. Desde a emergência do
numa superabundância de edificações no ano seguinte. Isto, porém, não acarre- problema da habitação popular em São Paulo, tal modalidade de alojamento foi
tou queda significa tiva nos valo res dos aluguéis. sempre recomendada, pelo poder público e pelos higienistas, como a solução melhor
É verdade que há centenas de prédios desocupadas, mas isto e mais salubre para a habitação operária. Diversas leis previam incentivos fiscais
{. ..] não tem impedido que a maioria dos proprietários conserve tenazmente os para estimular sua construção e permitir um alugue! mais baixo. No entanto, só
preços cobrados há meses atrás ou apenas lhes façam abatimentos ridículos. uma parcela dos operários teve acesso a essas moradias: em geral operários com
Até hq pouco reinava em São Paulo uma alta excessiva que dava extraordinários
rendimentos ao capital empregado em prédios [...]. Estranhável é qlie essa
i alguma qualificação, fu ncionários públicos, comerciários e outros segmentos da
baixa classe média.
redução seja tão pequena (de 10, 15, 20%}, apesar de passada a época das vacas
gordas e anormalíssima é a teimosia com que tantos proprietários se agarram.
de unhas e dentes aos preços convencionados há seis meses ou um ano atrás,
,,~
't.
- ~.
Existiam duas modalidades muito diversas de vilas ope1árias: uma,
o assenta mento habitacional promovido por empresas e destinado a seus funcio-
nários; outra, aquele produzido por investidores privados e destinado ao mercado
sob o regime dos rendimentos fabulosos. (O ESTADO DE S. PAUlO, 7/10/1914) ~. de locação. Muitas vezes essas modalidades apresentavam as mesmas caracterís-
A partir de 1914 a crise econômica e a Primeira Guerra provoca-
1 ticas físicas e confundiam-se no espaço urbano. Aqui, serão denominadas "vila ope-
~

ram acentuada queda no ritmo das construções - entre 19 14 e 1918 foram cons- ~ rária de empresa" e "vila operária particula r", ou "vila de empresa" e "vila particular''.
truídos menos de 6 mil prédios. Tais variações mostram que a lei da oferta e da pro-
cura regulava o mercado, fazendo com que a falta de moradia e a conseq üente
.

~
Vá rias análises têm explicado a emergência das vi las de empre-
sas como um gesto filantrópico de empresários favoráveis à harmonia entre o
elevação dos valores locativos levasse a um aumento da produção de novas
unidades. O fenômeno era regulado pela ca pacidade de pagamento dos diferentes
. ·capital e o trabalho, como uma estratégia para atrair operários em um mercado
de trabalho incipiente ou, ainda, como forma de disciplinar o tem po livre dos
setores sociais, de forma que se produziu uma gama de soluções habitacionais de ~ operários, submetendo-os à ordem burguesa e mantendo-os sob permanente
distintas dimensões, qualidade e padrões, refletindo a estrat ificação social então ~
~
controle. De fato, muitas empresas criaram não só -vilas mas verdadeiras cidadelas,
prevalecente. porque se estabeleciam em locais isolados, onde inexistia mercado de t rabalho ou
Essa produção de casas para locação será aqui chamada de produ-
ção rentista, pois o investimento visava a obtenção de uma renda mensal pelo uso
~.; cidades capazes de con centrar traba lhadores e oferecer o mínimo de serviços e
equipamentos urbanos. Essas interpretações, no entanto, que explicam a constru-
do dinheiro. Ribeiro, ao contrário, denomina essa produção de pequeno-burguesa, ,!, ção de várias vilas de empresas no período, aplicam-se parcialmente à cidade _de
alegando "que nela existe um investimento de capital", mas afinal admite que o ·• São Paulo.
"aluguel é uma espécie de juros calcu lados sobre um ca pital emprégado - mate- 1 Os casos em que a industrialização ocorreu simultaneamente à
rial, força de t rabalho e propriedade fundiária -, o que nos conduz a denominá-lo 1lt urbanização, ger:.ando cidades em torno de grandes fábricas, seriam a "reg ra no
de renda imobiliária''. Essa produção era realizada pelo investidor que "compra o t Brasil da República Velha", no dizer de Francisco de Oliveira. Em geral, estas vilas
t erreno e contrata um empreiteiro, a quem encomenda a construção de um con-
~
.. procuravam difundir "padrões de comportamento adequados, na óptica capitalista
junto de moradias. Praticamente, inexiste lucro na construção na medida em que
ela é paga pelo preço ·da força de t rabalho empregada" (RIBEIRO 1989:209-10).
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do desempenho do trabalho livre. Os padrões de honra exaltados, as regras de mo-
ral burguesa e as normas de vida t ra nsmitidas pela burguesia ao operariado cons-
"'
Na produção rentista, predominou a construção por encomenda, !:j
tit uíam parcela da ideologia a ser difundida aos subordinados" (BLAY 1980 :148).
que permitia a part icipação de investidores de diferentes portes, inclusive peque- .,,
"T Para tanto, as vilas-cidadelas contavam com vários equipamen-
nos. Para o proprietário do imóvel, "(... ) interessava a persistência da construção
por encomenda pois poderia optar por construir lentamente com o dinheiro ajun-
.. tos coletivos - escolas, igrejas, enfermarias, clubes, pequeno comércio - adminis-
t rados e sustentados pela indústria, que exercia controle quase absoluto sobre
tado dos aluguéis dos cômodos que iam sendo construídos. Na construção por ..-
,~
seus funcionários, tanto durante a jornada de trabalho como nas chamadas horas
encomenda; o contrato com o construtor, conforme o andamento da obra, poderia :·,.i livres. A vida cotidiana obedecia ao ritmo imposto pela sirene da fábrica e, como
ir sendo pago regularmente (...) e, se fossem muitos cômodos de alugueJ acons- assinalou ROLNIK (1981 ), a vila operá ria "funciona como um verdadeiro laboratório
~
truir, antes de terminá-los já poderia estar recebendo aluguel dos primeiros, o que
serviria para pagar a construção dos últimos" (PEREIRA 1984:273).
.•."*.
~
de uma sociedade disciplinar, combi nando um saber higienista com um poder que
ao mesmo tempo proíbe, pune, reprime e educa". Apesar da importância dessas
..
46 ORIGENS DA HAB ITAÇÃO SOCIA L NO BRASI L
·::1 NAB/l BONOUKI 47

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vilas enquanto "imagem em tijolo e cimento das fantasias burguesas da servidão
operária", na cidade de São Paulo elas foram raras, destacando-se a famosa e mo-
delar Vila Maria Zélia, edificada no Belenzinho por Jorge Street.
Esta "regra", portanto, embora tenha dado origem a cidades como
Paulista (PE) e Votorantim (SP). tem muito pouco a ver com o proces-so d~ indus-
1ri"
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Excetuados os casos em que era essencial a proximidade cons-
tante e o controle dos t raba lhadores, as outras vi las em São Paulo, mesmo algumas
de empresas. eram edificadas por serem uma alternativa segura de investimento.
Muitas vezes, o empresário que a construía destinava as casas aos seus operários
co.m a intenção de conseguir vantagens adicionais, negociando uma redução nos
trialização e de constituição das vilas de empresas na cidade de São Paulo, onde · ~ aluguéis em troca de salários menores, exigindo que outros membros da familia
a economia cafeeira promoveu uma imigração intensiva, ocasionando uma concen- , se empregassem na empresa e contando com a relut ância do operário em buscar
tração operária, mercado de trabalho e um dinamismo urbanístico que, em certa outro emprego melhor remunerado, pois a demissão implicaria perda da casa. A
medi~a. antecede a industrialização. identidade patrão-senhorio trazia ainda a vantagem de a casa nunca permanecer
Assim, por essa interpretação, a maior parte das vilas de empre- vazia e de o aluguel jamais deixar de ser pago, pois o desconto era feito na própria
sas paulistanas não foi construída com o intuito de atrair trabalhadores (salvo, folha de pagamento.
talvez, os mais especializados), o que explica seu reduzido número. Tudo isso compensava o fato de os aluguéis serem um pouco mais
Entre os motivos que levavam empresas a construir vilas pa ra baixos, mas não parece ter sido suficiente para levar muitos industriais a edificar
seus empregados em São Paulo estava a necessidade de manter o pessoal de ma- vilas em quantidade suficiente para abrigar todos seus operários. Boa parte das
nutenção sempre próximo ao local de trabalho, de modo que pudessem ser con- empresas que tinham vilas dispunham de um número de unidades muito inferior
vocados em qualquer eventualidade. É o caso das numerosas vilas de companhias ao número de empregados.
ferroviárias e de energia elétrica. No caso das indústrias têxteis, o alojamento de Um levantamento rea lizado em 1919 pelo Departamento Estadual
mestres, contramestres e outros trabalhadores especializados, então escassos, foi do Trabalho no Estado de São Paulo, abrangendo 227 empresas (BOLETIM DO DEPAR-
outro fator que levou muitas empresas a construir vilas. TAMENTO ESTADUAL DO TRABALHO 1919), mostra que o maior número de vilas de empre-
Tais condições, porém, não eram características desse pe ríodo e sas estava no interior do Estado e pertenciam a empresas de t ransporte (estradas
permaneceram mesmo depois de 1930. BLAY(1985:294) analisou o caso de vilas de de ferro, para as quais era essen-cial que os funcionários morassem junto das linhas),
empresa, como a da Nadir de Figueiredo, edificada na década de 1950 em função que muitas vezes ced iam as casas gratu itament e ou por valores simbólicos. Entre
da necessidade de manter os operários junto à fábrica, uma vez que seus altos- as poucas empresas paulistanas que possuíam vilas, a maior parte cobrava· aluguel,
fornos não podiam ser desligados. embora um pouco mais baixo que o de mercado.

·l V
1

Ao fado, Vila Biro-Biro, implantada em


1 meados do século XIX, a 20 quilômetros
de Diamantina (MG}, junto ó queda
d'águo que gerava energia para a fábrica. Acima, casas da Vila Economizadora. em São Paula,
Acima, entrada da Vila Maria Zélia, edificadas para obter renda através da aluguel.
implantada no bairro do Belém, em Ao lado, casa da Vila Bayes fposteriormente Vila
São Paula, na década de 10. Matarazza), na bairro do Brás, em São Paulo,
construída para alojar operários da indústria têxtil.

48 OR IGENS DA HABITAÇÃO SOCIAL NO BRASIL NABIL BONOUKI 49


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A indústria téxtil Belenzinho, por exemplo, alugava a seus ope- Rua São João
rários casas por 44$000; a Fiação da Saúde, por 25$000; a Sílex, indústria meta-
:,;
·, ! lúrgica, por 30$000; a tinturaria das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, por
;
Melh ores habitações si tuadas de
44$000; a Ítalo-Brasileira, de vestuário, por 25$000; e a Casa Rodovalho, por frente para a rua, permit indo a
35$000. Em geral, a qualidade das casas dessas vilas era equivalente ii da vi la par- cobrança de aluguéis mais altos.
t icular de baixo padrão, cujo aluguel variava de 45$000 a 50$000.
As vilas particulares, por sua vez, constituíam a grande maioria
dessas habitações no periodo. Era um tipo de empreendimento realizado tanto por Corredor lateral para iluminação
do segundo dormitório e da sala,
pequenos investidores como por grande empresas construtoras e sociedades mu-
obedecendo à legislação mun icipal.
tuárias, abrangendo desde pequenos conjunt os de casas até grandes núcl eos que
ocupavam vários quarteirões. O máximo aproveitamento dos terrenos, muitas vezes
no centro do quarteirão, e a racio nalização dos proj etos tendo em vista a econo- Ausência de recuos laterais
mia de materiais - com o uso de paredes comuns, áreas livres mínimc;·s e ausên cia e fro ntais, aumentando o
de recuos - faziam c9m que os investimentos fossem extremamente rentáveis em aproveitamento do t erreno.
relação ao capital investido, que se beneficiava também de isenções fiscais.
Um exemplo de vila particular de tamanho médio, construída
Lot es de 40m', com a alta taxa de
por um investidor privado, é a do sr. Regina de Aragão, erguida em 1911 na rua
ocupação de 75%, correspondente
São João, entre as alamedas Nothmann e Glette, no bairro de Santa lfigênia (RE- a 30m' de construção.
VISTA DE ENGENHARIA, 1912}. Composta de 33 casas de médio padrão, custou a seu
proprietário 150 contos, dos quais 125 contos foram usados na construção e 25
contos na aquisição do terreno. As 27 casas internas que davam para o corred or Corredor perpendicular à rua,
foram alugadas por 60$000 e as seis que davam para a rua, por 75$000. A rend a garantindo o aproveitamento do
miolo do quarteirão.
total, portanto, era de quase 25 contos por ano, cerca de 160/o do capital invest ido,
o que pode ser considerado altíssimo.
Pela planta da vila do sr. Regino nota-se a racionalização da or- Paredes hidráulicas e paredes
ganização espacial, que buscou reduzir ao máximo o preço da construção e obter la terais comuns a duas casas,
o maior aproveitamento do terreno, ao mesmo tempo que seguia os padrões reduzin do o custo da construção.
municipais de modo a desfrutar da isenção fiscal. Essa otimização abra ngente
encontra-se em todas as vilas e cortiços construídos na época, revelando uma ra-
cionalidade capitalista na produção das habitações para aluguel. Tal característica
assinala uma clara diferença em relação à produção da habitação pelos t rabalha-
Uma villa operaria
dores na periferia, onde a inexistência de racionalidade no projeto ou construção
pelo sr. eng. Ao Ioda, planta de uma vila projetada
eleva substancialmente os custos de produção. Reglno l\ragão pelo engenheiro Regina Aragão, em
A vila do sr. Regino é sim ilar a muitos outros empreendimentos, de (Rua S. João - S. Paulo) 1911, exemplar da atitude adotada pela .
maior ou menor porte, realizados por investidores privados. Na maioria das vezes, produção rent ista. Notar a preocupação
as construções aproveitavam os terrenos profundos, dando origem a variada gama em ordenar e racionalizar a construção,
de tipos de habitação - todas baseadas numa viela central, casas ou cômo.dos objetivando reduzir o custo, como se
geminados em um ou em ambos os lados da viela, e casas ou espaços comerciais p ode notar nas observações acima.
diferenciados que davam para a rua. No caso de cômodos ou de pequen as casas
desprovidas dé água encanada, as privadas e os tanques localizavam-se no fun do
do lote. Dependendo do tamanho e formato do terreno, a fieira de casas poderia
ser erguida j unto ao ,alinhamento da rua, mas esta era uma solução mais onerosa.

1 ORIGENS DA HABITAÇÃO SOCIAL NO BRASIL


50 NABIL BONDUKI 51
Édificil estabelecer, nesse período, limites precisos entre a habi- A opção das sociedades mutuárias pela construção de casas para
tação dos traba lhadores e da imprecisa classe média. Claro que o cortiço-corredor aluguel mostra que era de fato um investimen to ren tável e seguro, pois as com-
era habitado sobretudo por trabalhadores pobres e que os correr de casas gemi - panhias mutuárias administravam seus recursos visando a máxima rentabilidade e
nadas no alinhamento da rua eram ocupadas pela classe média. No entanto, havia o mínimo de risco. Não por acaso, portanto, formou-se uma mentalidade de que o
uma infinidade de soluções intermediárias: por exemplo, cortiços-corredores às investimento imobiliário, sobretudo no mercado de casas para aluguel, era exce-
vezes eram constituídos de unidades habitacionais com dois ou três cômodos, só lente negócio, visão que se consolidou nesse período: "os quarteirões de casas se-
se diferenciando de certas vi las por não contarem com instalações sanitárias indi- meihantes feitas por um mesmo er.ipreendedor povoaram os mais variados bairros
viduais. O fato é que um mesmo agenciamento tipológico e espacial propiciava de São Paulo" (SAMPAIO 1994:20).
grande variedade de soluções de diferentes qualidade, custos e aluguéis: Nem todo trabalhador, porém, ti nha condições de se mudar para
Outro tipo de vila particular, de maior porte, foi edificada por uma casa de vila. Em 1911, um operário adulto da indústria téxtil ganhava, em
companhias mutuárias e sociedades imobiliárias. As companhias mutuárias eram média, algo como 4$500 por dia, ou seja, cerca de 117$000 por mês; em outros
sociedades de econ omia privada que administravam depósit os de cidadãos dese- ramos, trabalhadores não-especializados receb iam de 100$000 a 150$000 por mês.
josos de poupar, criar um pecúlio e receber, depois de alguns anos, uma aposen- Se outros membros da fam ília não t raba lhassem, dificilmente poderiam gast ar
tadoria. Dirigidas por banqueiros, industriais, profissionais liberais ou cafeicul- entre 45$000 e 75$000 com habitação, aluguel aproximado de uma casa de vila,
tores, concentraram grande volume de recursos, pois não havia então um sist ema mais as despesas com água e luz, cerca de 5$000 por mês.
previdenciário estatal. Parte desses recursos foi aplicada, com freqüência, na cons- 1 A vila operária era o modelo de moradia ideal para os higienis-
tas, pois era salubre e continha equipamentos sanitários em cada unidade; para o
trução de vilas de casas de aluguel, além de também financiarem a venda de casas 1i•:
a seus sócios. A partir do inicio do século, após a aprovação de uma lei federal ~ poder público, que as incentivava com isenções de impostos; e para os industriais,
regu lamentando seu funcionamento, surgiram em São Paulo dezenas de so- que chegaram a construir vilas que eram verdadeiras cidades em miniatura. No
ciedades desse tipo, entre as quais a União Mútua, Mútua Brasil, Caixa Mútua de i., ent anto, as reg ras da ordem capit alista, na qual os salários precisavam ser man-
Pensões Vitalícias, Cooperativa Construtora Predial, Companhia Mútua de Crédito .."
~~
t idos abaixo do necessário à subsist ência, foram mais fortes que as intenções dos
Predial, Associação Predial Construtora, Previdência Mútua Predial Paulista, _.,~ sanitaristas pois, antes de se abrigar numa habitação modelar, o operário preci-
-1
Companhia Economizadora Paulista, Mútua Exce!sior e a Montepio da Familia. " sava se alimentar. Além disso, nem. sempre ele reconhecia os problemas que os
Exemplo dessa modalidade de empreendimento foi uma das três outros apontavam em seu modo de morar:
vilas edificadas pela Companhia Economizadora Paulista (as outras duas foram no ,,
)
Na classe pobre, especialmente na classe operária, o aluguel da
Cambuci e nas Perdizes), construída entre 1908 e 1910 no bairro da Luz, entre a casa absorve uma boa parte dos limitados ganhos do chefe de família. A exigüi-
rua São Caetano, a rua da Cantareira e a avenida do Estado. Nesse caso, além da dade do salário, comum às grandes indústrias [ .. ]põe o operário entre as por-
tas de um angustioso problema: ou comer pouco e mal, ou morar num cortiço.
.:1
rentabilidade obtida com as c;asas de aluguel, a Economizadora se beneficiou do
fato de ter urbanizado a gleba (as vi las menores eram erguidas em lotes urban i-
, Em. nove casos.sobre dez, ele opta pt;la segunda solução. Obedece ao est ômago.
)

zados) e vendido uma parte com alto lucro, de modo que o terreno restante, no (BOLETIM DO DEPARTAMENTO ESTADUAL DO TRABALHO, 1916:146)
qual foi erguida a vila, nada custo u para a cor.ipan hia. Não podendo pagar o aluguel de uma casa unifamiliar e isolada,
O projeto foi realizado pelo construtor ital iano Antonio Bocchini " o operário de menor renda, o trabalhador informal e o desempregado encontra-
e inclula 147 casas ·de vários tipos (de um a três dormitórios) e vinte armazéns. va m no cortiço e na casa de cômodos o alojamento compatível com seus parcos
Os novecentos contos aplicados em sua construção rendiam, graças aos aluguéis, rendimentos. O cortiço mais comum em São Paulo era uma enfiada de cômodos
mais de 100 contos anuais, ou seja, cerca de 120/o do investimento. A segurança dispostos ao longo de um corredor ou pátio, no qual se situava a área de lavagem
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· I
do investimento era uma das vantagens alardeadas pela sociedade: e secagem de roupas e o banheiro de uso comum.
1
O caráter de inalienabilidade do nosso capital de pensões dá Entre a vila e o cortiço-co rredor, os limites são imprecisos. Na
i posição relativa ao quarteirão, os dois se assemelhavam, uma vez que ambos perfu-
aos nossos mutuários uma garantia que nenhum outro gênero de sociedade po-
derá dar-"lhe. O nosso mutuário tem o certeza absoluta de encontrar em qualquer ravam o quarteirão perpendicularmente à rua, ocupando seus meandros e interiores.
tempo o seu dinheiro, integrado em nosso fundo inalienável, ao pa~so que em Em termos de dimensões, 95 limites também são vagos, pois entre a menor moradia
qualquer outra sociedade, comercia / ou industrial, seu dinheiro poderia perder-se da vila (cômodo, sala e cozinha) e a maior unidade do que se considerava cortiço,
em uma falência. (COMPANHIA ECONOMIZADORA PAULISTA, s/d) a diferença era pequena. A maior diferença estava na situação dos equipamentos

52 ORIGENS DA HABITAÇÃO SOCIAL NO BRAS IL NAB IL BONDU KI 53


hidraúlicos (banheiro e tanque): na vila, eles eram individuais e ficavam no fundo Devido à sua visibilidade, o conjunto de cortiços do sr. Francisco
da casa; no cortiço, eram coletivos e localizados na área comum. Muitas v.ezes, Barros, situado no Bexiga (ao lado da rua Jacareí, onde Prestes Maia implanta ria, na
entretanto, essa distinção desaparecia com o t empo: quando havia uma área livre década de 1940, o viaduto Jacareí) e quase todo construído na primeira metade
no f undo da unidade do cortiço de dois cômodos (muito comum no Brás e no da década de 1920, tornou-se o símbolo desse tipo de assentamen to. Formado
Bexiga), o proprietário construía um banheiro individual e dava um novo status à por prédios independentes, deno minados "Navio Parado", "Vatica no", "Geladeira"
moradia. O cortiço transformava -se em vila e o aluguel podia ser aumentado. e "Pombal'', cada qual com ca racterísticas próprias, o conjunto ti nha um desenho
Na verdade, ·havia uma gradação descendente, das vilas mais so- único, com acessos controla dos, formando uma espécie de cidadela onde acabaria
fisticadas ao cortiços ma is precá rios, refletindo a esca la socia l - da classe média surgindo um modo de morar co letivo. Condenado pelos higienistas, pela elite e
ou d~ traba lhador mais qualificado ao desempregado. O mesmo se dava com os pela imprensa como território da promiscuidade e da falta de higiene, seus mora-
aluguéis, que se adequavam aos vários níveis salariais. Abaixo de certo nível de dores desenvolveram uma forte coesão interna, cuja m~ior expressão era o fato de
qualidade, o empreendimento deixava de seguir os padrões municipais e tornava- a polícia não conseguir entrar no loca l ou, quando entrava, nunca encontrava nin-
se "cla ndestino", deixando de ser vila, merecedora de incentivos e elogios, e pas- guém, nem mesmo o famoso bandido Meneg hetti, espécie de Robin Hood do local.
sa ndo a ser cortiço, condenado e estigmatizado. Para os investidores o objetivo era O conjunto abrigava todos os tipos de cortiço: o "Vaticano",
o mesmo: obter lucros através do aluguel de moradias populares. O empreendedor embora ligado fisica mente aos demais, era um casarão transformado em cortiço-
de cortiço necessitava de menos recursos: o t erreno podia ser menor, as exíguas casa de cômodos. Antiga residência do século XIX com três pisos, de alto padrão
const ruções eram executadas com material da pior qualidade e a área hidráulica e frente para a rua Santo Amaro, seus cômodos eram sublocados e, em 1925,
comum a várias moradias reduzia bastante os custos. Com isso, a const rução e a podia- se alugar um quart o ali por 47$000. No fundo do casarão foi edificado, na
exploração dos cort iços ficavam ao alcance até mesmo de pessoas com recursos década de 1920, um anexo, avarandado como o "Navio Parado" e o "Pombal", o
relativamente limit ados, como imig ran tes enriquecidos. que faz supor que sejam contemporâneos.
Tal sit uação não excluía os grandes proprietários, como o sr. Fran-
cisco de Barros - de famíl ia de fazendeiros, herdeiro de grande fort una e dono de
um dos ma iores conjunto de cortiços da cidade -, de um negócio que, como se
observou na época, "representa, em relação à casa higiênica, um maior rendimento
para o capital empregado" (BOLETIM DO DEPARTAMENTO ESTADUAL DO TflABALHO, 1916).
Embora aluga dos a valores absolutos mais baixos, acessíveis aos sa lários dos tra-
balhadores, a soma dos aluguéis dos vários cômodos de um corti ço rendia mais
qu e a de uma vila de casas unifamiliares: "o sen horio tem aqui ma is uma fonte Vista geral e planta da complexa
de receita: manda construir casinhas acanhadas, incômod as e deselegantes e as de cortiços formado pelo "Navio
al uga por um preço mais ou menos ao alcance de uma familia, mas excessivo, Parado'', "Vaticano", "Geladeira" e
mesmo em relação a outras casas; há senhorios que não querem outras casas: "Pombal".
essas é que rendem: a exploração da miséria" (TERRA LIVRE, 10/12/1905).
Co nsiderando-se que, numa vila operária, uma moradia unifa- "Navio Parado"
miliar de 35 m' - com dois dormitórios, sala, cozinha, tanqu e e WC individual -
custava em 1911 cerca de 60$000 e que, em 1912, não se alu gava um cômodo
num cortiço por menos de 20$000, fica evidente a vantagem para o proprietário.
Embora condenado, proibido e ameaçado de demolição, o cor-
tiço se di fundiu, tornando-se uma das formas de habitação mais comuns da classe
t raba lhadora. Em 1904, a Fanfulla estimava que um t erço das habitações paulis-
tanas, cerca de 8.100 moradias, era de cortiços. Nestes, "as forças vivas do traba-
lho se ajuntam em desmedida [ .. .].Em cada cubículo, verdadeira colméia humana, "Geladeira"
com freqüência se comprime toda uma fa mília de t raba lhadores, às v~zes com-
posta de oito ou nove pessoas" (FANFULLA, 11 /10/ 1904).
"Pombal"

54 . ORIGENS DA HAB ITAÇÃO SOCIAL NO BRASIL 55

.. ---- -- - - - --·--- - - - - -- -- - - - -- - - - - - -- - - --,---- - - -- - - -- - - -- - - -- -- - -


Principal edifício do conjunto, o "Navio Parado" ocupava o antigo
va le do rio Bexiga. De grandes dimensões, ti nha dois pavimentos e era ladeado
por varandas que serviam simultaneamente de área de circulação, de sociabili-
dade e cozinha. Cada unidade do cortiço, segundo relatos de antigos moradores,
era constituida de dois cômodos com dimensões razoáveis. Isolado oo terreno, o
"Navio Parado" foi de certo modo o primeiro bloco habitacional da cidade, rom-
pendo com a lógica do lote.
Já o "Pombal" era um grupo de prédios voltados para a rua Ja-
purá, separados entre si apenas por passagens que davam acesso ao fundo ·do vale
e, portanto, ao "Navio Parado". Uma espécie de ponte unia as va randas dos vários
l l blocos, criando uma rede de circulação labirintica. Apresentando o aspecto de um
sobrado para quem passasse pela rua Japurá, os blocos acompanhavam o declive
do terreno e no fundo tinham três pavimentos, todos com varandas, as quais
eram utilizadas para circulação, cozinha e atividades de socialização.
No interior do conjunto, construções improvisadas e out ro pe-
queno bloco, chamado "Geladeira" por causa de sua umidade, completavam o
enorme nik leo habitacional, que apresentava a mais al ta densidade de ocupação
da cidade. Um pátio utilizado para a lavagem de roupa e recreação era o espaço
onde se realizavam as famosas festas j uninas promovidas pelos moradores.
Esse conjunto foi um forte símbolo da produção rentista em São
Paulo, num período marcado pelos empreendimentos privados voltados para a
produção de moradias para os trabalhadores. Sua est igmatização e posterior de-
molição em 1948, para dar lugar a um conj unto residencial do Instituto de Apo-
sentadoria e Pensões dos lndustriários (ver páginas 198 e 199) - uma verdadeira
Unité d'Habitation - assinalou a mudança nas formas de provisão de m-0radias
que ocorreu no pais e em São Paulo du_ra nte a década de 1940.

Ao lado, o Conjunto
Residencial Japurá
em construção nos
anos 50, pelo /API,
no mesmo local do "
"Navio Parado: Junta
ó rua pode-se notar a
"Pom bal" ainda em pé.

11.
,•· ~, : 56 ORIGE NS DA HABITAÇÃO SOCIAL NO BRASIL
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