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A cidade constituiu-se neste fim


do século em um dos grandes
temas de investigação
das ciências humanas.
Historiadores, antropólogos,
arquitetos, sociólogos têm-se
debruçado sobre aquilo que
na cidade é [ou foi] progresso
e atraso, indivíduo e sociedade,
trabalho e lazer, ordem
e desordem, sexo e repressão,
luzes ou sombras.
O presente texto resulta
do Encontro sobre imagens
da cidade, promovido
na Faculdade de Arquitetura
da UFRGS, e apresenta
um conjunto de trabalhos
estimulantes acerca do mundo
urbano, isto é, acerca
de um mundo que é o nosso,
pelo menos desde os meados
do século passado, cujas zonas
obscuras ou ocultas foram evi
denciadas e refletidas por
um rico conjunto de imagens
e olhares que estão à espera
da decífração.
Os assuntas são múltiplos.
Da maldição noturna de Porto
Alegre à construção
da auto-imagem elogiosa
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imagens
os DIVERSOS OLHARES NA FORMAÇÃO DO IMAGINÁRIO URBANO

urbanas
Universidade
Federal
do Rio Grande
do Sul

Reilord
Wrnna Panizzi

Vicc-Koiloi
Nllton Rodrigues Pnlm
Pró-Roitor do Extonsão
Luiz Fernando Coelho de Souza

Vico-Pró-Roiloi (Io Extonsao


José Augusto Avancini

EDITORA DA UNIVERSIDADE

1)1rol OI
Geraldo F. Huff

CONSELHO EDITORIAL
Anna Carolina K. P. Regncr
Christa Berger
Eloir Paulo Schcnkci
Georçina Bond-Buckup
|osc Antonio Costa
Livio Amaral
Maria da Graça Kriegcr
Maria Helofsa Lcnz
Odonc Sanguinc
Paulo G. Fagundes Vizentini
Geraldo F. Huff, prosiclonio

Editora da Univcrsidadc/UFRCS • Av. João Pessoa, 415 - 90040-000 Porto Alegre. RS - Fone (051) 224-
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ordenador). Carla M. Luzyatlo. Cláudia Bittencoiiit, Maria da GkSria Almeida dos Santos. Rubens Fíenato
Abreu • Administração: Júlio César de Souza Dias (coordenador). Laertc Balbinol Dias • Apoio: Iara Lom-
bardo. Idalina Louzada. Laércio Fontoura.
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imagens
os DIVERSOS OLHARES NA FORMAÇÃO DO IMAGINÁRIO URBANO

urbanas
© dos autores
1- edição: 1997

Direitos reservados desta edição:


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa e planejamento gráfico: Carla M. Luzzatto

Revisão: Maria da Graça Storti Féres


Maria da Glória Almeida dos Santos
Cláudia Bittencourt

Editoração eletrônica: Fernando Piccinini Schmitt


Fotos: Márcio Lana
Foto da capa: infografia sobre fotografia de Márcio Lana

A publicação desta obra contou com o apoio da FINEP e ANPUR.

31 i Imagens urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário urba


no /organizado por Célia Ferraz de Souza e Sandra Jatahy Pesavento.
- Porto Alegre : Editora da Universidade/UFRGS, 1997.

1. Sociologia - Urbanismo - Brasil. I. Souza, Célia Ferraz de. II.


Pesavento, Sandra Jatahy. III. Título.

CDU 301.01/.161:711.47.455

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto - CRB 10/1023

ISBN 85-7025-415-6
apresentação

Imagens urbanas é o resultado do Encontro sobre Imagens da Cidade,


promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Pla
nejamento Urbano e Regional (ANPUR), realizado na Faculdade de Arquite
tura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em abril de 1994, através
do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PRO-
PUR), cuja coordenação esteve a cargo das professoras: arquiteta Célia Ferraz
de Souza e historiadora Sandra Jatahy Pesavento. Contou, ainda, com o auxí
lio da FINEP, e o apoio da Editora da Universidade, para esta publicação.
Discutir de forma mais aprofundada, com um grupo de interesse especia
lizado a questão da imagem da cidade era o objetivo de então.
Juntamente com os discursos, as imagens fazem parte do que se conven
cionou chamar de "imaginário social", este vasto campo de representação do
real que, se com ele não se confunde, é, ao mesmo tempo, o seu outro lado.
Enquanto representação, a imagem evoca e presentifíca um ausente no tempo
e no espaço, atribuindo-lhe um sentido. Logo, essas imagens não são literais
ou reflexos do real, mas simbólicas ou metafóricas.
Os textos estão organizados de acordo com a ordem em que foram apre
sentados no Encontro e relacionam-se aos três grandes temas principais: Os
diversos olhares na formação do imaginário urbano, Urbanismo e suas re
presentações e Imagem como campo de poder e saber.
No caso urbano as imagens são, sem dúvida, fruto da percepção ambiental
e espacial, mas comportam um leque de possíveis olhares sobre o real. Estas
imagens urbanas, veículos visuais de uma idéia e um significado, podem-se
expressar através da iconografia, da fotografia, do desenho, da cartografia, da
pintura, ou ainda através de discursos literários, políticos e técnicos que evo
cam uma imagem mental.
Este tipo de estudo tem uma preocupação especial que se vincula à ques
tão do cotidiano, cujo interesse de análise nos remete ao campo mais especí
fico do planejamento urbano e do urbanismo, no que diz respeito às ativida-
des exercidas sobre um território, onde se desenvolvem as diversas práticas
sociais e suas respectivas socialidades através dos tempos.
Ao organizar-se o evento, se buscou promover uma aproximação de vi
sões interdisciplinares que permitisse avaliar e discutir, com tempo e profun
didade, a questão das imagens urbanas.
A troca de experiências e idéias entre pesquisadores preocupados com a
questão da cidade é, portanto, obrigatória, já que a força do imaginário coleti
vo tem conduzido historicamente a mudanças significativas tanto no compor
tamento social como na forma da cidade.

CÉLIA FERRAZ DE SOUZA


SANDRA JATAHY PESAVENTO
Organizadoras
sumario

Cidade, cidadania e imaginário 13


Maria Stella Bresciani

A cidade maldita 25
Sandra Jatahy Pesavento

Imagens e representações sobre a mulher


na construção da modernidade de Copacabana 43
Lena Lavinas e Luiz César de Q. Ribeiro

As imagens da cidade na prosa de Mário de Andrade 57


José Augusto Avancini

O policial e a cidade: um olhar vigilante


(Porto Alegre, final do século XIX) 69
Cláudia Mauch

A cidade como artifício corruptor 83


Anderson Zalewski Vargas

Confinamento e deriva:
sobre o eclipse do lugar público na cidade moderna 97
Carlos Roberto Monteiro de Andrade

Construindo o espaço da representação;


ou o urbanismo de representação 107
Célia Ferraz de Souza

As primícias da ordem 127


Mário Henrique Simão D'Agostino
A construção e a imagem cidade-progresso
em Porto Alegre na virada do século 147
Cláudia Pilla Damasio

Curitiba anos 90: a imagem urbana revisitada 161


Fernanda Ester Sánchez Garcia

Tristeza: a imagem que formou sua imagem 181


Artur do Canto Wílkoszynski

Cidade: imagem e imaginário 193


Lucrécia D 'Alessio Ferrara

A cidade dilacerada 205


Robert Moses Pechman

A imagem da cidade e o poder 223


Günter Weimer

Natureza e participação social:


uma nova estética para o desenho urbano 239
Maria Angela Faggin Pereira Leite

Um olhar nas áreas de imigração germânica:


algumas considerações 251
Ana Angélica Dantas Alves Mayr

Grande Vitória:.crescimento e pobreza 265


Maria da Penha Smarzaro Siqueira

O espelho do poder: fotografia, sociabilidade urbana


e representação simbólica do poder político
no Rio de Janeiro da belle époque 281
Ana Maria Maiiad de Sousa Andrade Essus
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maria stella bresciani

cidade, cidadania e imaginário

Cidade e imaginário, palavras de ordens diferentes e, no entanto, estreita


menteligadas no mundo contemporâneo. Imagens cidade disciplinada/disciplinar
dos planejadores urbanos e burocratas, a imagem integral e "dura" dos mapas,
da fotografia aérea, identificando as diversas áreas de ocupação específica, as
vias de comunicação e os diversos sistemas de serviços urbanos são constante
mente contrapostos a percepções parciais, cidades fragmentadas, labirínticas,
"macias" e moldáveis, onde reina o individualismo irrestrito, a solidão e as re
laçõespassageiras, as constantes modificações físicas e visíveis, cidadesplásti
cas, sem durabilidade.
A rígidadivisãodo tempo impostapelas atividadesdo citadino, pontualida
de e fragmentação interligadas aos esquemas mais amplos de organização do tra
balho e do lazer, tem como ponto de referência uma "gramática da vida urbana",'
variada e descontínua, formada por sinais de trânsito e de orientação sintéticos e
padronizados, redes de comunicação rápida, caminhos a serem obrigatoriamente
percorridos pelos meios de transporte. Essa multiplicidade de sistemas partilha
dos pela população urbana contrasta por sua vez com a sensação de anonimato,
de liberdade irrestrita para a realização de formas variadas de vida, de sonhos bi
zarros, trajetóriaspersonalizadas.A cidade, estrutura física que suporta referênci
as e fornece elementos para os símbolos e memórias coletivas, convive em nosso
imaginário com a cidade labiríntica e moldável das vidas pessoais onde recorda
ções compõem memórias sem lugar que fundam a cidade simbólica, diversa e
semelhante na forma como se vê nomeada. É a própria experiência do citadino,
este serurbano plural que constitui o imaginário modemo e o enredo deste artigo.
Para introduzir nosso tema, recorremos à sensibilidade estética expres
sa literariamente. De início, duas citações de Baudelaire;

Maria Stella Bresciani é professora no Departamento de História do Institutode Filosofia e


Ciências Sócias da UNICAMP.
' Jonathan Raban. Soft city (1974), citado por David Harvey, em The condition ofpostmo-
deniity (Blackwcll, 1989, p.6).

13
Dans les plis sínucux dcs vicllcs capitules,
Ou toüt mcmc {'horrcur, tourne aux cnchantcments,
Jc gucttc [...]

La forme d'unc villc


change pius vitc, hclás,
que le coeur d'ün morte! [...]
(Lc cyfine, 1857)

Duas formas encontradas pelo poeta francês para falar de sua experiên
cia de homem urbano, e mais, para expressar o "sentimento" de mudança no
desconcerto em meio às modificações impostas à cidade de Paris e aos seus
habitantes pelo prefeito Haussmann durante o Segundo Império (1853-1870).
Com essas citações pode-se pensar na dimensão das reformas e na relação entre
a materialidade das cidades e as referências para o habitante. Assim, as do
bras sinuosas formam lugares onde ele se reconhece, e os percements abrem
no tecido urbano vias de circulação. Anotemos a plasticidade estética da me
táfora orgânica.
Tomemos agora uma observação de outra natureza feita pelo arquiteto
austríaco Camillo Sitte (1992) nos anos finais do século passado: "uma cida
de deve ser construída para tornar o homem ao mesmo tempo seguro e feliz" .
Essa citação não nos coloca frente a um grito da alma ou a um sentimen
to de identidade, de referência, ou ainda da perda delas, mas oferece uma de
finição conceituai de cidade: um abrigo.
Nas três citações acima se expressam relações entre o homem e a cida
de, de homens que vivem em cidades. São opiniões que formam um domínio
comum de conhecimentos e de sentimentos sobre a cidade, uma opinião mu
tável, errante, anamórfica, na feliz expressão de Anne Cauquelin (1982).
Comecemos então por essa relação homem-cidade. Ela tem sido senti
da e avaliada de vários pontos de vista e, contudo, parte sempre de um ponto
comum - a cidade é produto da "arte humana", simboliza o poder criador do
homem, a modificação/transformação do meio ambiente, a imagem de algo
artificial, de um artefato enfim. Contudo, c a forma como se compõem sobre
a natureza, como aderem ao ambiente físico, que continua a ser matéria polê
mica entre os que, profissionais ou não, se preocupam com a cidade.
Grosso modo, pode-se falar de duas grandes tendências: os que partem
de um ponto de vista racional e universalista para ver e analisar a cidade, e
propõem soluções técnicas para resolver os problemas equacionados, e os que,
em oposição a esta vertente, defendem um ponto de vista que leva em consi
deração a dimensão cultural e histórica das cidades, sua singularidade e mar
ca diferenciadora eu(\uuuio comunidade específica.-

- Adotamos aqui o pressuposto de Françoisc Choay quanto ao fundamento político filosófico


das formas de se avaliar as cidades, e dela retiramos as duas vertentes que consideramos mais
importantes para a finalidade deste artigo. Cf. L'urhanisme. Utopies et realités (Seuil, 1965).

14
No centro do debate encontramos entendimentos diferentes da relação
entre arte e técnica: uns postulam claramente a subordinação da técnica aos
desígnios da arte, outros vêem na correta aplicação da técnica a formação de
uma nova estética.
E mais, uns privilegiam a arte como capacidade/habilidade humana de
transpor idéias para a materialidade das coisas; ou ainda, a arte ligada à noção
de artesanato, hoje vista como atividade complementar da técnica, embora dela
diferenciada por produzir a obra única, singular. Outros privilegiam a técnica
como ferramenta auxiliar do homem, que dele se separa, se exterioriza e pas
sa a áiiüT 'à melhor solução; a técnica concebida como relação neutra entre pro
blemas e soluções, noção estreitamente ligada a outra noção, a de progresso!
universalidade, aplicável a qualquer lugar onde o mesmo problema técnico se
apresente. Habilidade desgarrada de seu lugar de origem, desenraizada, itine-
rante, mutável.
Desse ponto de vista, a técnica é considerada como possibilidade infini
ta - dependendo dos meios disponíveis, que sempre se aperfeiçoam, e dos
custos, que limitam o investimento que se deseja ou que se pode fazer. É no
interior deste marco teórico que se constitui a questão urbana na primeira
metade do século passado: questão sanitária, onde a técnica a serviço da boa
finalidade de modificar melhorando o ambiente urbano compõe o meio for
mador do bom trabalhador e do bom cidadão tanto física como moralmente,
ao menos em termos do observável: seu comportamento.
Contudo, essa avaliação tão positiva da técnica - aliada à idéia de pro
gresso - teve seus críticos já no século 19.
Pode-se denunciar o tom romântico, conservador, às vezes medievalizante
de autores como Thomas Carlyle e William Morris na Inglaterra, de Camillo
Sitte e do lado romântico de Marx, na língua alemã; porém, é talvez nas pala
vras do arquiteto/urbanista italiano, nosso contemporâneo, Giulo CarloArgan
que encontramos expressos com maior clareza os limites da técnica. No arti
go "O espaço visual da cidade" (1971) ele afirma:

como di.sciplina que visa interpretar, estabelecer, reorganizar e finalmente pro


gramar para o futuro a conformação da cidade, o urbanismo está se separando
cada vez mais de seu objeto, dir-se-ia que aspira destruí-lo.

Na afirmação de Argan se expressa o reconhecimento da contradição de


uma prática que tem por objeto a cidade, mas que, impotente frente à dimen
são dos problemas a resolver, "propõe descentralizá-la, desarticulá-la, desmem
brá-la, transformando-a em uma inflorescência ou em uma constelação de
pequenosaglomerados, coordenados mas auto-suficientes, nenhum dos quais
teria, entretanto, a estrutura, o caráter, a configuração da cidade". Múltiplas
"cidades novas" compõem a paisagemdas áreas suburbanas das gigantescas
metrópoles, duplicando as redes de serviços e comunicações, incitando seus
habitantes a nelas encontrarem satisfação para todas, ou quase todas, as ne
cessidades de con.sumo. Ou, num movimento contrário, projetaria tornar viá-

15
vel, por meio do desejado progresso tecnológico das comunicações, cidades
de 40 a 50 milhões de habitantes.
Pode-se falar que da suposta crise da cidade para a proclamada crise da
disciplina acadêmica que dela cuida tem-se um encadeamento de crises onde
sujeito e objeto se confundem. Assim, enquanto disciplina que articula neces
sariamente questões tão amplas e complexas, tais como demografia, economia,
sanitarismo, sociologia, engenharia e concepções estéticas, o urbanismo se en
contra numa encruzilhada e ameaçado de perder o objeto que ele mesmo cons
tituiu. Decididamente pensamos que ou bem os urbanistas aceitam que vivem
uma crise, que questiona profundamente seus próprios pressupostos, ou bem
aceitam dispor-se no tempo da modernidade, encarando o presente como mo
mento sempre fugidio e deslocável que separa o futuro do passado.
Ora, esta aceitação implicaria aceitar primeiro a própria condição do ho
mem moderno que vive o impacto da fragmentação, do efêmero e das mudanças
caóticas eforma sua sensibilidade no centro da experiência de tempo, espaço e
causalidade sentidos e equacionados como transitórios, fortuitos e arbitrários.
Aceitar que a condição de modemidade é Dionísio, o deus criativamente des
truidor e destrutivamente criador. O que significa aceitar a definição baudelairi-
ana de modernidade para além de um simples grito poético da alma:

Modernidade é o transitório, o rápido, o contingente.

Sem durabilidade, diríamos nós. Durabilidade que Hannah Arendt indica


ser a condição humana do desejo de deixar marcas mais duradouras do que a efê
mera duração de uma vida, e que ela surpreende entre os gregos da época clássica,
na ambição de constmir lugares duráveis para abrigar instituições eternas.-^
Voltando a nossa definição de modernidade, podemos estabelecer uma
outra relação: o progresso e a extrema mobilidade das formas, chegando des
sa maneira ao âmago da sensibilidade do homem moderno. Essa sensibilida
de que torna plausível o longo e custoso trabalho de pôr em pé algo que logo
após será destruído: o símbolo dessa duração efêmera foram as grandes ex
posições universais dos produtos da indústria a partir da metade do século 19;
os grandiosos palácios construídos para acolher como num templo as merca
dorias e as máquinas; palácios c\xiü.duração esteve submetida ao ritmo da pro
dução e reprodução da mercadoria, ao ritmo do capital.
Se pensarmos na definição clássica de durabilidade, diríamos que ela
mudou de lugar, não mais se expressa nas obras eternas - o fórum, as cate
drais - e sim na possibilidade de (re)produzir infindavelmente novas obras.
Desta possibilidadese encarregariam as máquinasenquanto materialização da
força potencializadora do poderprodutivo humano, engenhos produzidos pela
inteligência que se socializa ao materializar-se (pode ser usada por qualquer
um que dela disponha - máquina ou técnica), mas que ao mesmo tempo se

M condição humana (Forense-Universitária/Salamandra/Eclusp, 1981).

1B
torna independente e coloca em algo exterior ao seu criador a potência movi-
mentadora do sistema social por ele mesmo criado. Estamos agora em pleno
domínio do imaginário ao fazer essa afirmação, pois dessa certeza partilha
mos todos nós sem termos individualmente o domínio de todas as dimensões
da técnica.
Como isso é possível? Creio ser porque vivemos os resultados positivos
da aplicação da ciência (conhecimento)/técnica (aplicação) na solução de di
versos problemas: distâncias a vencer rapidamente, tempo a ser economiza
do, obras e edifícios de grandes dimensões a serem construídos.
Na verdade, o prazer que sentimos em viajar em alta velocidade se con
funde com a ambição racional de conquistar o universo... Faz parte de uma
lógica de domínio da natureza pelo homem impressa em algo que podemos
úenommuxprojeto de modernidade elaborado pelos pensadores do Século das
Luzes. Um projeto que substituiu, no mundo ocidental, a universalidade trans
cendente da religião, materializada na Igreja e em seus pontífices, universali
dade rompida em parte pela Reforma protestante, pela universalidade imanente
da obra do homem. Sem dúvida, um raciocínio circular que coloca o homem
como princípio e finalidade de si próprio. A organização do mundo precedida
do conhecimento do mundo; de certa maneira, o saber intelectual permanece
reivindicando a primazia do saber sobre a sociedade.
Em linhas gerais, pode-se dizer que o projeto da modernidade setecen-
tista postulava:

1-: desenvolver a ciência objetiva: a constituição da relação sujeito-objeto; a


lei e a moralidade universais colocadas a serviço do homem e da melhoria da
vida cotidiana;
2-: estabelecer o domínio (conhecimento e modificação) da natureza pela ci
ência c pela tecnologia, libertando o homem da escassez, das necessidades su
jeitas à imprevisibilidade das catástrofes naturais;
3'-: postular que as formas racionais de organização social e o pensamento ra
cional livrariam a humanidade dos grilhões do mito, da religião e das supers
tições, c mais, das formas arbitrárias de dominação.

Em suma, eliminado o lado negro (escuro) da natureza humana, suas qua


lidades universais e imutáveis seriam reveladas.
Contudo, é preciso lembrarque, embora fosse aos poucos ganhando adep
tos e se tornasse dominante na primeira metade do século 19, essa forma de
estabelecer a relação entre o homem e o mundo teve também seus críticos.
Estes denunciaram o que denominavam a fatuidade de idealizar-se uma razão
única, despojada da tradição e da história, uma razão obediente à sua própria
lógica, construtora de formas belas e logicamente irrepreensíveis - constitui
ções, governos, raciocínios, edifícios, cidades. Acreditavam terem os homens
raízes deitadas na raça, na língua, nos costumes e cultura do grupo específico
em que viviam. Esses críticos do racionalismo das Luzes conceberam uma
imagem de homens singulares, presa a suas particulares características histó-

17
ricas que os diferenciavam de outros homens e de outros grupos. É preciso,
contudo, lembrar que nem sempre a noção de consangüinidade esteve presen
te; em Rousseau, por exemplo, a determinação passa antes pelo meio ambi
ente e pela dimensão do grupo que se constitui em sociedade.
Temos tnilàoespaço e tempo com densidade e conteúdo próprios versus
espaço e tempo convencionais, mensuráveis, a serem preenchidos com o con
teúdo desejado; vazios, portanto. Concepções opostas e que, no entanto, reti
ram sua fundamentação de uma mesma teoria já presente no Segundo tratado
do governo de John Locke de 1690 e nos pensadores do século \^,adopoder
do meio (social ou físico) na moldagem do homem.
Esta teoria pode enfatizar o/«í/o ético da concepção de ambiente e, como
Lx)cke, considerar todos os homens possuidores de cérebros com potenciali
dade semelhante, de maneira que seriam as diferentes experiências que os pre
encheriam em graus variados. Ou seja, não se pode negar a existência de uma
diferença enorme entre o homem letrado e o camponês analfabeto. Contudo,
esta concepção tem em si uma possibilidade "democrática", desde que esse
indivíduo formado pelo meio é ético e não determinado por nascimento; está
subordinado a uma concepção ética de indivíduo e de sociedade.
A teoria que a ela se contrapõe, chamemo-la culturalista, enraíza o ho
mem no meio onde na.sce e vive, meio que determina hereditariamente o que
ele é. Concepção historicizante do contrato social de inspiração rousseauísta
se contrapondo à concepção racional-universalizante durante os debates da As
sembléia Constituinte francesa de 1789-1791 e nas reflexões sobre os aconte
cimentos em França do inglês Edmund Burke em 1791.''
Configuram, pois, duas concepções da fundação da sociedade e da cida
dania: sujeito de direito universal ou sujeito de direito histórico e determinado
pelas peculiaridades de cada grupo ou país. Concepções que se reatualizam na
forma como se concebem as cidades, lugar da história e do sujeito da história: a
crença na potencialidade universal do sujeito de conhecimento e criador da téc
nica contrapondo-se às concepções "românticas" dos séculos 18 e 19, aos naci-
onalismos e aos totalitarismos do século 20. E, contudo, não podemos esquecer
que foram essas concepções de "raízes" românticas que orientaram a moderna
concepção de patrimônio, de memória atada a lugares, referências materiais
que conferem identidade, constituem personalidades. O que nos faz lembrar a
diferente forma de apropriação das teorias político-filosófícas.
Creio que vale a pena recorrer ainda a dois autores de língua alemã que
foram contemporâneos: novamente Camillo Sitte e também Georg Simmel.
Simmel faz em 1903 uma conferência (1989, p.233) onde estabelece
de maneira precisa o perfil psicológico do habitante da grande cidade. O cons
tante e diferenciado estímulo nervoso ao qual é submetido torna o citadino

^Cr. aprcscnlação dc Slcphanc Riais a La déclarotion des droits de 1'lioinme et dii citoyen
(Hachctlc, 1988), especlaímcnle p.l36 c s., E. Burke, tieflections on tiie revoluttion in Fran-
ce (Pengin, p.l48 c s.)

18
um ser no qual predomina o lado consciente (alerta) e intelectualizado. Este
perfil se define por contraste com o habitante do campo ou das pequenas ci
dades onde o ritmo da vida é constituído de estímulos persistentes e insig
nificantes em sua diferença, onde a sensibilidade pode seguir um ritmo mais
regular e lento, onde os hábitos têm permanência.Assim prossegue, enquanto
o habitante dos vilarejos reage mais com o coração, o citadino reage com o
intelecto que atua como uma proteção da vida subjetiva contra a violência
da grande cidade. A impessoalidade desses homens/sujeitos urbanos decor
re da objetividade das relações sociais; trata-se de relações entre indivíduos
proprietários, relações entre coisas, não regidas pela afetividade de pessoas
com características individuais, pessoas dissolvidas na multidão impessoal
das cidades.
Ora,nessarepresentação dicotomizada entre cidade e campoas imposições
ao habitante da cidade são siipra-subjetivas,ganham a condição de regras objeti
vas destinadas a regular as relações e os afazeres do citadino- pontualidade, cál
culo, medida das distâncias - regras a serem observadas em detrimento dos traços
irracionais, instintivos e impulsivos que devem ser eliminados. Na cidade as pes
soas se dissolvem numa mesma condição, e o desejo humano da diferença só en
contra lugar para expressar-sena quantidadee na qualidade das coisas possuídas.
Também Simmel recorre à cidade antiga,que para ele se assemelha à pequena ci
dade atual, para definira grande cidademodema. Naquelaos cidadãos mantinham
fortes laçosde coesão política e militar para fazerfrente aos inimigos; a coletivi
dade era mais importante do queo indivíduo, já quesua existência enquantocida
dão dependia da coletividade. Lá, numa situação bastante particular florescera o
"homem universal" tão diferente deste homem modemo, também considerado
universal em sua uniformidade, que preza a "liberdade individual", corolário ló
gico da extensão da cidade e da convivência entre estranhos; indivíduos que com
petem entre si ao invés de lutarem contra a natureza e o inimigo extemo.
Na avaliação de Simmel, a polarização entre concepções diferentes de
sociedade - a racional/progressista e a emotiva/conservadora —convivem na
elaboração da oposição entre campo e cidade, entre cidade antiga e metrópole
moderna. A vida mais humana das pequenas comunidades onde todos se co
nhecem, como idealizava Rousseau a forma da democracia direta, contrastando
com a vida desumana, porque regulada por imposições objetivas, e descon-
certantemente estipuladas pelo próprio homem, das grandes cidades.
Pode-se reconhecer em suas observações, aliás bastante instigantes, ele
mentos comuns a vários autores do início do século, entre eles Bergson ácMa
téria e memória e, no entreguerras, Walter Benjamin deAlguns temas de Bau-
delaire. A sobrecarga imposta aos neurônios dos habitantes das cidades e a
proteção intelectual/racional ou o condicionamento dos comportamentos
movidos por impressões fixadas no subconsciente são elementos que tiram sua
força de memórias residuais reativadas sobre o que significa morar em cida
des. Uma opinião vaga e itinerante que se desloca entre os que simplesmente
vivem em cidades e os que pensam a vida na cidade.

19
É assim que creio podermos estabelecer proximidade entre Simmel e Sitte;
a nostalgiadas antigas praças irregulares e simétricasem sua irregularidade, pra
ças que não são lugaresde passagem ou entroncamentode ruas, mas simplesmente
lugaresonde as pessoassabem que poderãoencontrar-se e se identificar-se enquanto
habitantes daquela cidade. Lugares, pois, onde os edifícios públicos simbolizam
a identidade coletiva, reenviam ao homem a imagem de sua própria liberdade; sem
dúvida resíduo arcaico do tempo em que os habitantes das cidades compravam
sua liberdade, em que o habitante das cidades livres contrastava com a servidão
do homem do campo. Nostalgia necessária para compor a crítica ao "funesto sis
tema de blocos de edifícios" e ao caráter desfigurado (sem rosto próprio) da cida
de modema, lugar onde o homem, ao invés de destacar-se pelo dom da boa orató
ria, se aproxima e se assemelha às máquinas.
Pode-se pensar, portanto, que quando falamos em cidade-cidadania hoje
estamos partilhando inúmeros fragmentos do imaginário social: a teoria con-
tratualista ainda funda nossas sociedades regidas por constituições, mas tam
bém ao contrato se sobrepõe o "orgulho" meramente imaginado das cida
des livres medievais, c, mais remotamente, a "virtude" do cidadão na ágora
ou no fórum, este lugar de homens livres, poucos, que nele se encontravam
para, pela palavra, atingirem sua plena condição humana e diferenciarem-
se uns dos outros pela eloqüência; o domínio da fala, símbolo maior da su
perioridade do homem entre todos os animais.
Estes restos arcaicos, traços, resíduos, fragmentos de várias camadas de
imagens que ligam o homem-livre à cidade compõem representações globais
da sociedade, idéias-imagens por meio das quais as sociedades, vale dizer, nós,
os habitantes das cidades e os urbanistas que pensam e projetam as cidades, ela
boramos uma auto-identidade individual e coletiva. Delas decorrem as divisões
sociais, a legitimação do poder, os modelos formadores das pessoas que a com
põem (o bom cidadão, o trabalhador, o guerreiro, o militante, o marginal).
É importante frisar que são representações e não reflexos dasociedade; re
presentações compostas com esses materiais recolhidos também de uma memó
ria "sem-lugar" - um fundo comum simbólico - e que, como representações, atu
am sobre as idéias e comportamentos individuais e coletivos, tem uma "realida
de" própria - os imaginários sociais (Baczko, 1984).

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARGAN, Giuio Cario. História da arte como história da cidade. 1971.


BACZKO, Bronisiaw. Lcs ímaginaires sociaux. Mémoires et espoirs collectivcs.
Payot, 1984.
CAUOUELIN, Annc. Essai de philosophie urbaiue. Paris: PUF, 1982.
SIMMEL, Gcorg. Lcs grandes vilics et Ia vic do rosprit. In: Philosophie de Ia nio-
dernité. Payot, 1989, p.233 c s. (Tradução francesa)
SITTE, Camillo. A construção das cidades se^^undo seus princípios artísticos. Áti-
ca, 1992.

20
•;v •; •:%
Sandra jatahy pesavento
a cidade maldita

A cidade parecia um ser vivo, monstro de corpo escaldante a ar-


quejar e transpirar na noite abalada. Houve um momento em que
o homem de gris confundiu as batidas do próprio coração com o
rolar do tráfego, e foi então como se ele tivesse a cidade e a noite
dentro do peito. (Veríssimo, 1954, p.3.)

A Porto Alegre dadécada de 1930 aparece animizada pela palavra deÉrico


Veríssimo na novela Vo/Vc. A imagem da cidade-organismo, da urbe-monstro que
espreita, devora, arqueja, geme, bufa, resfólega tem sido objeto de uma referência
metafórica ao longo da história do urbanismo. Como comenta Anne Cauquellin,
"membros, artérias, sangue, circulação, coração e ventre são as imagens comu-
mente empregadas para qualificar partes ou totalidadesda cidade" (1982, p.184).
Há, no plano da ordem simbólica, uma correlação entre o corpo indivi
dual e o corpo social, entre a cidade que se fabrica e o homem que a constrói
(p. 185). Neste sentido, a cidade, por oposição à natureza, é o lugar e a obra do
homem que, tal como o Deus bíblico, a constrói à sua imagem e semelhança.
Persigamos esta imagem da cidade-humana que, sem dúvida, dá conta
da complexidade da urbe e das suas múltiplas dimensões, possibilitando dife
rentes leituras.
Como um indivíduo, a cidade não apenas é um conjunto articulado de
espaços e vivências como também realiza funções, umas nobres e outras nem
tanto... As analogias que fazem da cidade um corpo simbólico extrapolam do
literário para se integrarem ao próprio jargão técnico. Assim é que o movi
mento das ruas-artérias dá vida à cidade, que tem nas áreas verdes o seu pul
mão e na zona central o seu coração...
Tal como um ser humano, a cidade possui uma identidade que faz com
que os indivíduos a reconheçam e se reconheçam nela como individualidade.
Na construção deste processo de identidade/alteridade, que opõe o "nós" aos
"outros", o processo de identificação entre um lugar e seus habitantes atinge
por vezes a construção de uma metonímia, com o estabelecimento de uma re
lação lógica que faz tomar uma coisa por outra (Juan, 1991, p.5). Assim se
daria para com Paris e seus habitantes, o Rio e os cariocas, etc.

Sanciru .latniiy Pesavento c profc.ssora titular dc História do Brasil na Universidade Federal


do Rio Grande do Sul. Doutora em História.

25
Corpo simbólico, a cidade humanizada pode também, como os indiví
duos, ser capaz de apresentar-se como detentora de virtudes ou realizar atos
condenáveis, ser portadora de positividade ou vilania.
Mas voltemos a uma certa visão da cidade, enunciada no texto de Erico,
quandose utiliza da imagem da urbe-monstro: o seu aspecto satânico e devo-
rador, que lembra certas descrições das máquinas que povoavam o universo
fabril do século 19.
Mero recurso ficcional, coincidência do reino das letras? Preferimos en
veredar por outro caminho de explicação: o da visão ameaçadora que tanto a
máquina quanto a cidade oferecem, num mundo que, sob o influxo do capita
lismo, mergulhava nos rumos da modernidade.
A cidade oferece muitas leituras e tem alimentado o imaginário social
desde o século 19:

Para alguns, cias são monstruosas: cm seu seio, as doenças c epidemias se mul
tiplicam, as perversidades morais proliferam e as desordens sociais ameaçam.
Para outros e por vezes para os mesmos - tanto o novo mundo urbano fascina
e amedronta a cidade representa as promessas de um mundo mais civiliza
do. (Pinol, 1991)

É este duplo caráter - de celebração e combate, de atração e repúdio —


que faz da cidade um tema tão controvertido. Sonho e pesadelo, sobre ela os
homens depositam angústias e esperanças. Ela tem tudo a oferecer aos recém-
chegados, mas nela eles também podem desaparecer, envoltos nas suas ma
lhas e meandros.
Ora, a cidade é em si uma realidade objetiva com suas ruas, construções,
monumentos, praças, mas sobre este "real" os homens constróem um sistema
de idéias e imagens de representação coletiva.
Ou seja, através de discursos e imagens, o homem re-apresenta a ordem
social vivida, atual e passada, transcendendo a realidade insatisfatória. Há, pois,
um deslizamento de sentido, uma representação do outro que não é idêntica,
porém análoga, uma atribuição de significados que expressam intenções, de
sejos, utopias, mitos.
Endossar essa postura implica assumir a decifração do real pelo imagi
nário, ou seja, pelas suas representações. E as representações que nos interes
sam são aquelas que apontam no caminho do monstro urbano. A cidade tem,
pois, um lado negro, uma faceta ameaçadora que, qual a esfinge mitológica, é
capaz de devorar quem não souber decifrá-la.
De onde se alimenta esta visão terrífica, quais são os medos desencade
ados que povoam os moradores da urbe?
Sem dúvida, eles têm o seu início ao longo do século 19, quando, sob o
impulso do desenvolvimento capitalista, ocorreu um inchamento urbano, mar
cado pela concentração populacional nas cidades em função do erguimento
de um mercado de trabalho de novas proporções. O crescimento desordenado
de casas e bairros e a aglomeração em espaços restritos de grupos heterogêne-

26
os puseram na ordem do dia uma série de novos problemas e necessidades.
Impunha-se a "questão social" como uma questão propriamente urbana: se era
preciso reordenar espaços, com mais profundidade se tratava de disciplinar as
vivências coletivas.
A cidade é assim, sob essa ótica, um problema e uma ameaça. Como ela
abriga indiscriminadamente os adventícios, como controlar os maus elementos,
assegurando a tranqüilidade dos cidadãos? Em suma, havia uma faceta maldita,
de vício e violência, abrigada pela urbe, que tinha seus atores, seus espaços e
seu tempo. Eram eles os boêmios, protagonistas essenciais dos cenários urba
nos condenados, que se decompunham numa variedade de "tipos suspeitos" que
o verniz lombrosiano do fím de século acentuava: assassinos, ladrões, escroques,
vadios, prostitutas, bêbados, aos quais se mesclavam embarcadiços, soldados e
- supremo perigo para a família burguesa e suas virtudes - os desgarrados da
ordem social estável, que faziam esporádicas —ou mesmo freqüentes - incur
sões neste meio povoado pela escória citadina, de baixa extração.
Os espaços malditos da urbe eram os bares, tavernas e tascas da beira do
cais e dos becos que infestavam a cidade e que, junto com as jogatinas e os
bordéis, configuravam a zona perigosa aos bons costumes, onde evitavam pas
sar as pessoas de respeito, principalmente as do sexo feminino (Pesavento,
1994).
E quanto ao tempo... bem, tudo ficava mais perigoso à noite, protegidos
pela escuridão e pela luz bruxuleante e mortiça de tais lugares. A cidade à noite
era mais ameaçadora, pois acobertava com mais facilidade vícios e crimes,
povoava-se de tipos que não eram facilmente vistos à luz do dia e procuravam
as sombras para atuar, qual morcegos e aves noturnas.
Neste contexto, vamos tentar resgatar a visão maldita da cidade de Porto Ale
gre, através da literatura. Ou, em outras palavras, buscando a cidade do passado
como nosso tema central, vamos tentar encontrar a história pela via literária.
Superadas as divisões entre o real e o não-real, ou entre a objetividade
do mundo social e a subjetividade das construções imaginárias, entende-se
que tanto a literatura como a história correspondem a representações da rea
lidade e buscam, através da narrativa, oferecer uma leitura "plausível" e con
vincente dos fatos.
Nesta nova forma de entendimento, peculiar à nova história cultural, a
história abdica do seu poder de enunciação da verdade, passando a admitir que
as fontes são marcos indiciários daquilo que teria acontecido um dia e com as
quais o historiador constrói uma versão. Neste caso, o historiador se reveste
de uma função de criação, ao selecionar documentos, compor um enredo, des
vendar uma intriga, recuperar significados. Estaríamos, pois, diante da pre
sença da ficcionalidade no domínio da história, assim como da imaginação
na tarefa do historiador. O historiador não elimina de todo o seu compromis
so com a veracidade, mas a leitura que realiza de uma época é um olhar entre
os possíveis. Por outro lado, pode-se dizer que o discurso literário, consagra-
damente tido como o campo preferencial de realização do imaginário, com-

27
porta também a dimensão da veracidade. Como refere Ricoeur (1982, v,3),
discurso ficcional é "quase história na medida em que os acontecimentos re
latados são fatos passados para a voz narrativa, como se tivessem realmente
ocorrido". Sem dúvida, a narrativa ficcional não precisa comprovar e subme
ter-se à testagem de sua veracidade, mas mantém um compromisso com o real
ou com a credibilidade do relato.
É ainda Ricoeur quem aponta parauma questão central que possibilita o
entrecruzamento da ficção com a história: a refiguração temporal. Tanto o dis
curso ficcional como o discurso histórico, enquanto representação, trabalham
com uma rein.scrição do tempo. Dando voz ao passado, ficção e história pro
porcionam a erupção do ontem no hoje, numa intensidade temporal que, ao
mesmo tempo que Justapõe passado e presente, os reinscreve em uma nova
instância. Esta re-apre.sentação de um tempo é que permite a leitura do passa
do pelo presente como um "ter sido", da mesma forma figurando como pas
sado e sendo dele distinto.
Neste contexto, os elementos concretos do urbano, do seu presente ou
da "passeidade", são selecionados e transfigurados pela imaginação criadora
do autor do discurso. Este é um processo que importa em opção e atribuição
de sentidos, e que faz com que seja possível visualizar a literatura como his
tória e esta como literatura.
Mas voltemos mais uma vez à preocupação em pauta: a cidade maldita,
com suas promessas e angústias, seus segredos e revelações.
Publicada em 1954, a novela de Erico Veríssimo, narra a trajetó
ria de um indivíduo que perdeu a memória pela cidade (supostamente Porto
Alegre) ao longo de toda uma noite, em contato com atores sociais da margi
nalidade, como caftens, prostitutas, bêbados.
Qual o tempo que se reinscreve nanovela de Érico e que baliza a espacia-
lidade urbana e o percurso dos atores sociais da trama narrada? É o tempo da
modernidade, que chega efetivamente para a Porto Alegre dos anos 30, após as
gestões de Otávio Rocha (1924-1928) eAlberto Bins (1928-1937), redesenhando
a cidade dentro de um novo éthos. Assim, os grandes marcos desta transforma
ção da vida urbana estão referenciados na novela, como cenários do incerto per
curso do desconhecido homem de gris. Este realiza seu itinerário num espaço
atingido pela modernidade, que é visualizado pelas luzes, pelo tráfego, pela
multidão que caminha nas ruas e na qual ele se mistura e se perde:

Ninguém lhe prc.stou maior atenção, pois naquele local e hora - uma esquina
da avenida principal da cidade: oito da noite - ele era apenas uma das cente
nas de criaturas humanas que morriam nas calçadas. (1954, p. I)

O início da novela remete, pois, a um cenário urbano onde, já caída a


noite, há movimentação nas ruas, animação e vida, que põe à distância a ima
gem de uma cidade interiorana.

28
Com o rosto colado ao poste, o Desconhecido escutava os ruídos da noite: o
tropei e as vozes indistintas dos transeuntes na calçada; a surda trovoada do
tráfego riscada pelo trombetear das buzinas e, a intervalos regulares, pelo ti-
lintar das campainhas das sinaleiras, (p.3)

Embora não haja uma precisão de tempo na novela de Érico, publicada


em 1954, é nítida a referência a uma cidade agitada pela presença do automó
vel, dos barulhos do tráfego, das luzes noturnas, todos eles elementos refe
renciais da modernidade urbana:

Ao passarem por baixo do grande anúncio de gás neônio, as faces dos transe
untes tingiam-se ora de vermelho, ora de verde ou violeta. O Desconhecido
quedou-se por algum tempo a contemplar aquele jogo de cores, como uma cri
ança entretida com um caleidoscópio, (p.4)

A própria menção da multidão que arrasta, que engolfa o passante e traz


o anonimato, numa evocação do já clássico conto de Poe (1958), é um indício
de que a ação se passa numa cidade moderna, talvez uma metrópole:

Abriu os olhos e se surpreendeu de novo em meio da multidão. Deixou-se levar


aos empurrões, as pernas meio frouxas, a garganta seca e ardida, o coração a
pular de.scompa.ssado - ate que atingiu a outra calçada. (Verísssimo, 1954, p.7)

Mas, afinal, que tempo seria este, de uma Porto Alegre (não explícita,
mas reconhecível) ser efetivamente uma metrópole?'
Com que olho resgatar a "passeidade" dos fatos e definir critérios para a
modernidade urbana? A abertura da avenida Borges de Medeiros, em 1934, a
remodelação do Parque da Redenção para sediar a exposição do Centenário
Farroupilha, em 1935, a destruição do famigerado Beco do Poço, com a de
molição de suas velhas casas, em 1927?
Poder-se-á contra-argumentar que, sem continuar a ser uma aldeia ou vila.
Porto Alegre não seria com isto já uma metrópole.
Mas, quando buscamos enxergar a história na literatura, não estamos em
busca da veracidade da narrativa, no sentido de uma comprovação de sua au
tenticidade (afinal, existiu esta Porto Alegre moderna nos hipotéticos anos 30
ou 40?). Não se quer saber se a representação oferecida pela narrativa literária
é comprovada, mas, sim, se, enquanto representação, ela poderia ter existido.
Neste sentido, importa avaliar a representação a partir de seus critérios de cre
dibilidade, e não de uma pretensa veracidade histórica. Até porque considera
mos que mesmo a história, enquanto representação, resgata possibilidades, e
não certezas...

' Para a análi.sc da cidade moderna alravc.s da literatura, consultar: CRUZ, Cláudio CelsoAlano
da. A cidade moderna no romance sul-rio-grandense. Porto Alegre: PUCRS, 1992. (Tese de
doutorado)

29
Mas voltemos a esta cidade noturna e moderna. Sem dúvida, Porto Ale
gre não é New York ou Paris, mas nem por isso, para os contemporâneos que
vivenciaram a instalação da luz elétrica, do bonde, o crescimento do tráfego
de automóveis, a construção de viadutos ou os luminosos em neônio, a cida
de não deixava de assumir ares metropolitanos. A própria noção de multidão
ou de "perder-se nela" é recorrente desde tempos mais recuados. Não é de
mais lembrar que a fuga de escravos, a partir da segunda metade do século 19,
reorientou-sc dos quilombos para a cidade, onde negros evadidos podiam mais
facilmente passar desapercebidos no meio de tal multidão que povoava a
urbe...(Pesavento, 1990) Assim, mesmo que a urbe não apresente as condi
ções que hoje atribuiríamos a uma metrópole, as pessoas sentiam a situação
vivida como tal. É aqui talvez que reside a essência do conceito de moderni
dade, tal como identifica Berman (1987): a experiência histórica, pessoal e co
letiva, de sentir-se num mundo em transformação e mudar com ele.
Maria Eunice Moreira (1992), num excelente ensaio, considera a novela
de Érico "alegoria de um tempo presente", relacionando aquela cidade oculta,
com seus personagens notívagos e marginais, com uma representação da reali
dade nacional daquele ano de 1954, convulsionado pela morte de Vargas. Con
cordando com o viés empreendido pela autora, queremos, contudo, realizar ou
tra leitura, aliás já insinuada pela mesma ao abordar o "lado oculto" da cidade.
A novela remonta, a nosso ver, a um passado histórico ainda presente
para os leitores e que se situaria na década de 1930, no período da República
Nova, mais especificamente entre os anos de 1935 e 1937.
Mais uma vez reiteramos que não se encara a matéria narrativa como
"fonte histórica", mas entendemos que ela fornece pistas indiciárias que nos
permitem melhor precisar a época. No bordel, a conversa do cáften com o co
mendador refere-se à possibilidade da ocorrência de uma guerra, assim como
são feitos comentários sobre os efeitos da última e os lucros auferidos pelo tal
comendador (Veríssimo, 1954, p. 108).Logo, o tempo aludido seria antes de
1939. Por ocasião da trajetória errante do Desconhecido pelo parque, há o
encontro de um recanto oriental, com um vulcão e um Buda, elementos de
ajardinamento resultantes da exposição de 1935.
E, para completar, há a referência, no ambiente do bordel, de que se en
contravam no andar de cima um banqueiro, um industrial e um deputado (p. 15).
Logo, a cena se passa cm um momento de normalidade da vida legislativa,
após a reconstitucionalização e antes do golpe, portanto, entre 1935 e 1937.
Mas todos esses indícios, que nos levam a uma tarefa de detetive, não têm
o objetivo de reconstituir fatos históricos, mas de situar a cidade num tempo.
A Porto Alegre dos anos 30 tinha sofrido intervenções, no sentido de
busca de uma modernidade urbana. Demolições e desapropriações se sucedi
am, pois o reordenamento do espaço pressupunha verdadeiras "cirurgias" que
redesenhavam a cidade. A abertura de avenidas largas para facilitar o escoa
mento, a verticalizaçãü da cidade com o surgimento dos primeiros arranha-
céus, o calçamento de novas ruas eram indícios desta transformação. Em par-

30
ticular, a área central da cidade, sofrendo os efeitos do projeto arquitetado pelo
urbanista Arnaldo Gladosch, implicaria a abertura de novas artérias para o es
coamento do tráfego, como a Avenida 10 de Novembro, atual Salgado Filho.
Quer parecer, inclusive, que o Desconhecido da novela percorreria, no
início de seu percurso, justamente aquelas duas artérias: a Borges de Medei
ros, avenida principal, e a 10 de Novembro, cruzada por automóveis e ônibus,
onde o homem de gris sentiu-se perdido entre as luzes dos faróis que o cega
vam, desorientando-o...(p.6)
A novela de Érico, assim situada, desenvolve-se nodecorrer de umanoite,
através da qual um homem desmemoriado vagueia, entrando em contato com
um "outro lado" da cidade que serevela. Éalguém deboa extração social, que
se vê projetado por ambientes estranhos, guiado por personagens insólitos que
lhe revelam uma nova ordem social, com suas regras e leis. A novela se inicia
em espaços da urbe resultantes da proposta burguesa de remodelação da cida
de: o centro iluminado, com suas vitrinas, sua agitação, o tráfego "intenso",
descambando para o Parque Farroupilha, remodelado e embelezado para os
festejos da exposição centenária.
Mas breve nosso personagem, caminhando sem rumo, se vê conduzido
a outros recantos da cidade, com menos brilho que a área central anterior.

Dc longe um lampião alumiava frouxamente um trecho da calçada. As casas


eram todas baixas e de aspecto pobre. De dentro de algumas delas vinham vo
zes cansadas. O Desconhecido lançava olhares furtivos para aquelas salas es
treitas que cheiravam a mofo ou cozinha, e onde se moviam vultos à luz triste
de lâmpadas nuas. (p.20)

O ambiente é acanhado, pobre, mesquinho, distante da iluminação feé


rica do "cartão de visitas" da cidade, representado pelas ruas centrais. As edi
ficações são baixas - as casas de "porta-e-janela"? -, os serviços urbanos re
fletem, na sua desigual aplicação, a também desigual apropriação social do
espaço. O ambiente lembra a Cidade Baixa, próxima da área central, e que
revelava, na época, a placidez das antigas ruas com as suas socialidades vici-
nais das noites de verão:

Continuou a marchar, dobrou a primeira esquina, entrou numa rua mais larga
mas igualmente mal iluminada. Ia de cabeça baixa, distraído, a olhar a pró
pria sombra. Andou assim uma quadra inteira, tão absorto a pensar em coisa
nenhuma, que, ao erguer os olhos, estava a dois passos duma meia-água em
cuja calçada se estendiam duas filas de cadeiras ocupadas por homens e mu
lheres que conversavam animadamente. (1954)

As referências se seguem, dando o tom de arrabalde sem o ser, mas que


induz à faceta da Cidade Baixa: meninos a jogarem futebol no meio da rua,
crianças a brincar de sapata na calçada, etc.
Mas o adentramento nos espaços malditos inicia quando começa a ronda

31
noturna pelos locais que expressam a vigência de uma outra ordem urbana.
A atividade noturna da cidade sempre despertou nos seus espectadores
- poetas, romancistas, jornalistas - um misto de fascínio e repulsa. Não fala
va Baudelaire (1972) que, nas velhas cidades, mesmo o horror tinha seu en
canto?

Dc.sccr na noite da cidade é sempre pouco a pouco penetrar nos Infernos.


Como Dante, o e.scritor ou o herói deve aprender a conhecer todos os abis
mos do pecado. (Juan, 1991, p. 10)

E, qual o Dante &á. Divina comédia, não seria uma passagem pelo infer
no a saga do homem desmemoriado pelos espaços noturnos, conduzido pelo
cáften elegante e o repugnante anão corcunda?
O itinerário de nosso personagem percorre assim lugares onde a contra
venção espreita a cada passo: o café-restaurante, o beco da zona do porto, o
bordel, o cabaré, a casa das prostitutas. Mas estes espaços, que se situam na
contramão da vida, que desafiam todas as regras da sociedade organizada e
que .se apresentam como a desordem e o caos, possuem a sua lógica, seu "éíhos
próprio", suas leis e códigos.
Em princípio, esta cidade maldita que se descobre é reduto dos pobres,
dos desafortunados, e tais locais revelam, na sua configuração arquitetônica,
o mau trato, o desleixo, a ruína e o enjambramento de acrescentar novas pe
ças ou elementos aos já existentes, sem preocupação com a uniformidade, se
gurança ou estética. De uma certa forma, a miséria uniformiza, e é assim que
certas descrições de Benjamin sobre Nápoles se ajustariam às zonas pobres
das metrópoles .sul-americanas:

Evita-sc cunhar o definitivo. Nenhuma situação aparece, como é, destinada


para todo o sempre; nenhuma forma declara o seu 'desta maneira e não de
outra'. Aqui c a.s.sim que se materializa a arquitetura, essa componente mais
conci.sa da rítmica da sociedade. [...] Em tais recantos mal se percebe o que
ainda está sob con.strução e o que já entrou em decadência. Pois nada está pron
to, nada e.stá concluído. A porosidade .se encontra não só com a indolência do
artítlce meridional, mas sobretudo com a paixão pela improvi.sação. Para ele,
em qualquer ca.so, espaço e ocasião devem permanecer preservados. Usam-se
prédios como palcos populares. Toda a gente os divide num sem-número de
áreas de repre.sentação simultaneamente animadas. Balcóe.s, átrios, janelas,
portões, e.scadas, telhados são ao mesmo tempo palco e camarote. Mesmo a
existência mais miserável é soberana no vago conhecimento duplo de atuar
em conjunto, em toda a perversão, numa cena de rua napolitana, que nunca se
repete; de, em sua pobreza, gozar o lazer de acompanhar o grande panorama.
(1993, p. 148-149)

E a.ssim que a.s descrições dos corliços porto-alegrenses desde o início


do século apontavam nesta direção: um amontoado de quartos repletos de uma
população mi.serável, onde a palavra "privado" não tinha maior significado:

32
Uma grande parte da nossa população vive, ou antes, vegeta em pequenos cu
bículos falhos de ar e de luz, respirando o ar viciado dos porões e de velhos
casebres que abundam em nossa capital

Não parecia ter muito melhor aspecto ou condições higiênicas e estéti


cas a moradia das prostitutas onde o Desconhecido acaba por passar o seu fim
de noite:

A casa onde e Ruiva e o Passarinho moravam tlcava numa travessa sombria,


de calçadas estreitas orladas de alamos. Era um velho prédio centenário, de
fachada de azulejo, com três estátuas mutiladas sobre a platibanda. (p.l52)

A descrição cabe bem às velhas mansões desocupadas pelos seus primi


tivos donos, mudadas para locais mais nobres e que eram sublocadas para as
populações pobres, onde cada indivíduo (no caso de prostitutas) ou famílias
ocupavam um quarto. O aspecto de decadência e má conservação da beleza
primitiva do prédio é evidente: estátuas mutiladas, a escada a ranger em todos
os seus degraus, revelando o madeirame velho e frouxo, o cheiro rançoso de
cozinha, denunciando os múltiplos usos de cada cubículo.
Da mesma forma, a passagem por um beco da zona portuária revela o
aspecto e o caráter da pequena comunidade que se abrigava na rua estreita,
onde quem estava "íbra" podia adivinhar o que se passava "dentro":

Entravam num beco sombrio, mas animado. Nas janelas de suas casas debru
çavam-se mulheres, que su.ssurravamou gritavam para os passantes: 'Vem, ne
gro' - 'Entra, meu bem, que eu quero te dizer uma coisa' - 'Olha aqui, bele
za!'. Uns paravam, trocavam algumas palavras com as mulheres e depois en
travam. Outros pas.savam de largo, (p.57)

Neste caso, a rua, antes de ser um local público, é um habitat, uma inte-
rioridade, é o espaço de um povo "habitué" de tais locais, assim como os su
postos espaços privados são, na verdade, uma extensão da rua.
Quem Qbserva da janela participa e interfere no que se desenrola no es
paço público, e o recinto privado é aberto a quem nele entrar... e pagar.
Público e privado se interpenetram numa dimensão diferenciada daque
la imposta pelo modelo burguês, que delimita a casa como o espaço da inti
midade familiar.
Retomando a imagem da sociedade espetáculo e das casas referidas como
palcos do texto de Benjamin, vemos que a descrição dos ambientes de Erico
Veríssimo obedece, também, a uma narrativa que dá ênfase ao "clima" e am-
bientação teatral:

A luz fluorescente que iluminava a sala quadrada e relativamente ampla dava às

- O Independente. l'orto Alegre, 17 jan. 1904.

33
caras dos presentes uma certa lividcz arroxeada. [...] Num misto de repugnân
cia e apetite, o Desconhecido aspirava o ar denso daquele ambiente abafado,
que recendia a batatas fritas, bifes acebolados, fartura de corpos suados -, tudo
isso temperado de quando em quando por um bafio rançoso, que vinha do fun
do da casa, das latas de lixo onde verduras fermentavam e restos de carne come
çavam a apodrecer. Mas o que havia de dominante naquela atmosfera era a pre
sença do sebo - o sebo quente que se erguia no vapor dos pratos e das panelas e
vinha da cozinha na fumaça das frituras; e o sebo frio de outros dias e noites que
se entranhara na casa e nas roupas dos proprietários e dos garçons, encardindo
as paredes, os móveis, o soalho e o teto, onde moscas passeavam, (p.24 e 26)

Nesta cidade maldita, o calor sufocante, reiteradamente mencionado pela


nanativa, que se passa durante uma abafada noite de verão, contribui para des
pertar a sensação de desconforto e náusea do personagem, bem como da de
gradação do ambiente.
A descrição é análoga quando se refere ao cabaré "Ao vaga-lume", "boi-
te de nuit" de terceira ou quarta classe, segundo a explicação do cáften, local
onde havia mulheres, música, bebidas e uma "pitada de sordidez".
Situado numa casa velha, dotada de um letreiro luminoso que se desta
cava numa rua deserta, tudo no cabaré revela o gosto barato, o ambiente aba
fado, a miséria dos freqüentadores:

Atravessaram um curto corredor mal-alumiado, onde guirlandas de papel verde


pendiam do teto, e, afastando uma cortina dum amarelo berrante de bandeira,
entraram no salão principal. Quase todas as mesas em torno da pequena pista
circular estavam ocupadas por homens e mulheres, muitos dos quais dançavam
languidamente ao som do arrastado e gemebundo blue que a orquestra - piano,
clarineta, pistom, contrabaixo e bateria - tocava com uma estridcncia que pare
cia aumentar o calor daquele ambiente agressivo. Tocos de vela ardiam, meti
dos nos gargalos das garrafas, sobre a toalha xadrez das mesas. O ar estava satu
rado da fumaça dos cigarros, dum bafio de álcool e do calor daqueles corpos em
combustão. Nas paredes caiadas viam-se, desenhadas a carvão, desenhos de
mulheres semi-despidas ou completamente nuas, com legendas ambíguas,
(p. 133-134)

A cidade, contudo, não é maldita e degradada somente em função dos


seus espaços arruinados, mas principalmente pelas práticas sociais que abriga
e pelos personagens que povoam aqueles lugares. São os desclassificados e
contraventores da ordem e da ética burguesa, legião patética de gente pobre,
feia, miserável, infeliz, por vezes má, repugnante e vadia.
Não se pode, contudo, atribuir ao autor do texto a visão preconceituosa de
que todo pobre é "feio, sujo e malvado" (embora, é claro, isto possa ocorrer,
conforme o autor). Mas, se a literatura é uma forma de representação do real, a
novela transmite uma forma corrente de sensibilidade, um determinado olhar
sobre certos espaços e personagens, que era socialmente sancionado.
Assim é que os personagens são, de uma certa forma, estereotipados: o

34
cáften é finório, elegante, educado e sem caráter:

Homem de idade indefinida, alto e esguio, trazia ele, numa elegância exage
rada de ator, uma roupa de sarja azul-marinho, muito bem cortada, camisa bran
ca, gravata grená, chapéu de feltro negro e sapatos de duas cores. Na botoeira
do Jaquetão chamejava um cravo vermelho, e do bolso superior sobressaíam,
empinadas, as pontas dum lenço da mesma cor da gravata, (p.37)

O corcunda-anão, espécie de artista da noite, é apresentado como a sín


tese de tudo o que é repulsivo e abjeto dentre estes personagens noturnos: es
panca mulheres, fede, é agressivo e violento.
Os freqüentadores habituais daqueles espaços são marinheiros e prosti
tutas, homossexuais e ladrões, bêbados e criminosos.
As pessoas têm feições embrutecidas, comem com as mãos, lambuzam-
se, fazendo as refeições acompanhadas de bebida forte. Ora explodem em gar
galhadas, como a mulata debochada e exuberante, que compartilhava a mesa
com o homem branco, gordo e de cabeça raspada do café-restaurante "Giras
sol dos oceanos", ora permanecem mudas e tristes, como o homem magro com
barba de dois dias que bebia e fumava no mesmo local. (p.24-25)
Devassidão e miséria, deboche e tragédia são facetas que se interpene-
tram no ritmo descompassado naquela sociedade alternativa. Personagens cen
trais no espetáculo noturno da "outra cidade" que se revela ao Desconhecido,
as prostitutas ora são novatas no ofício, com traços infantis, magras e pálidas,
ora exuberantes e atrevidas, como a dupla composta por Passarinho e Ruiva
no cabaré do fim de noite (p.l40). Por vezes, a fisionomia das "mulheres da
noite" - ou as "mulheres do mundo equívoco" - assume uma conotação cari
catural e fantasmagórica, como aquelas descritas na passagem do Desconhe
cido pelo beco:

As mulheres tinham as caras muito pintadas e algumas eram duma palidez ca-
davérica. De dentro de seus quartos, alumiados por lâmpadas veladas, vinha
um cheiro de fogareiro de espírito de vinho misturado com a fragrância de pó-
de-arroz e dentifrício. (p.57)

De novo retorna o perfeito entrosamento entre ambiente e personagem,


o espaço degradado e a fisionomia patética dos seus habitantes.
Em especial, elementos de cor eram presença constante em tais espa
ços. Os egressos da ordem escravocrata lutavam com dificuldades no mer
cado de trabalho que se formava, e ao estigma da cor combinava-se a baixa
extração social. Daí a sua presença em lugares freqüentados pelas popula
ções pobres ou a recorrência a "expedientes" e ao mercado informal de tra
balho para sobreviver. A discriminação - tanto racial como social —se reve
lava nas crônicas de jornal que relatavam ocorrências policiais e onde sem
pre o contraventor negro ou mulato era identificado entre os demais. Não é
por acaso, portanto, que as representações literárias reproduzam estas de-

35
signações e povoem aqueles espaços de contravenções com os tais elemen
tos de cor.
Os marinheiros e embarcadiços em geral, homens de pouso incertoe vida
errante, eramtambém atores preferenciais daqueles espaços formados por bor
déis, becos, travessas e casas de tavolagem:

Um marinheiro embriagado achava-se sentado no meio-fio da calçada, a ca


beça caída, a baba a escorrer-lhe da boca, os sapatos metidos na água negra e
estagnada da sarjeta. Ao redor dele voejavam mosquitos, (p.57)

De novo a integração homem-ambiente, numa confusão de espaços e prá


ticas sociais condenáveis, onde a violação das regras morais e higiênicas era
uma constante.
O quadro das perversões não ficaria completo sem a presença dos ho
mossexuais. O dono do cabaré é um deles, a mudar de traje várias vezes por
noite, numa coqueteria cujo alvo eram sem dúvida os freqüentadores daquele
ambiente:

A luz duma vela batia cm cheio no rosto do proprietário do cabaré —um rosto
envelhecido, com fundas rugas que partiam das aletas do nariz e desciam ate
o queixo pelos lados duma boca polpuda e ob.scenamentc sugestiva. E o que
havia de mais horrendo naquela cara c que ela estava pintada, tinha rouge nas
faces, batom nos lábios, rimei nos cílios que piscavam sobre os olhos agran-
dados pela bcladona. Na cabeça em forma de pcra negrcjava um chino de seda.
O homem sorria para os clientes um largo sorriso de dentes po.stiços. (p.l34-
135)

Não há como não detectar um vago tom lombrosiano na descrição das


fisionomias, com sugestões de caráter decorrentes dos traços. Assim é que a
narrativa literária se apropria das tendências presentes por longos anos na so
ciedade gaúcha, entre os médicos legistas, os redatores de jornais, os advoga
dos e as teses defendidas na Faculdade de Medicina, às quais se acrescenta
vam certas noções populares disseminadas pelo conjunto dasociedade. É neste
sentido que o homossexual possui lábios carnudos e sensuais, ou que a boca
de uma freqüentadora do café-restaurante ostentava "beiços cobertos duma
espessa camada de batom - dum vermelho que a luz ambiente dava uma tota
lidade violácea, vagamente sugestiva de putrefação" (p.25).
Mas é na descrição da fisionomia do indesejável anão-corcunda que os
traços apontam no sentido de teorias pseudocientíficas da antropologia crimi
nal: rosto largo, cavo nas faces, orelhas pequenas e coladas, pele de poros aber
tos de um branco seroso de queijo, nariz largo e recurvo, boca rasgada e de
lábios grossos, espessas sobrancelhas encimando os olhinhos miúdos e jun
tos, típico dos criminosos...(p.31)
Todavia, esta cidade maldita não se povoava apenas de tais atores notur
nos, agentes de práticas sociais condenáveis. Pois o tal bordel não era freqüen-

36
tado por gente da mais alta escala social - comendadores, deputados, gene
rais e damas da fina flor da sociedade dada a sua posição estratégica e abso
luta discrição de sua dona? Um bordel freqüentado por "gente fina", ou, como
então se dizia, uma "casa de encontros", precisava fornecer a segurança ne
cessária aos seus "habitués", que não podiam comprometer sua posição soci
al, sendo vistos.
Assim é que uma casa deste tipo tinha que localizar-se a uma distância
conveniente - o bairro do Menino Deus, na encosta do Morro Santa Teresa?
discreta e segura.

Estavam a meia encosta da colina, à frente dum velho portão colonial, de onde
se tinha uma ampla vista do estuário e da cidade. Para além dos cerros, do ou
tro lado das águas, relâmpagos clareavam o horizonte. (Veríssimo, 1954)

Assim como os graúdos do local valiam-se de tais ambientes para suas "es-
capadelas" da moral vigente, da mesma forma os jovens de sociedade também
incursionavam por tais espaços. Era a tal mocidade que compunha a"geração per
dida" das divagações filosóficas do cáften e que freqüentava com assiduidade tais
locais escusos, a revelar a duplicidade da sociedade estabelecida, (p.138-139)
Enfim, esta cidade das sombras, que se revela através da narrativa literá
ria, comporta sem dúvida uma carga de credibilidade e até, pode-se mesmo
afirmar, de "veracidade ficcional". Esta PortoAlegre poderia ter existido, pois
a ambientação e os personagens parecem saídos das crônicas policiais, dos dis
cursos de políticos, médicos e higienistas, dos relatórios das inspetorias de
higiene ou das páginas dos jornais. Ou seja, destes tantos "documentos" com
que lida o historiador para construir a sua versão dos fatos ocorridos. Reafir
ma-se que não se quer encontrar uma cidade real, mimética, na narrativa lite
rária, nem se admite que as tais fontes históricas dêem conta da versão defini
tiva daquilo que passou.
Entre o mimetismo e o sonho, inserem-se as representações do real, que,
não sendo o real-concreto, formam como que o seu outro lado.
Como diz Calvino (1991), uma cidade não pode ser confundida com o
discurso que a descreve, mas há uma relação entre ambos. Em outras pala
vras, há correspondências entre práticas sociais e representações, assim como
há uma relação entre a passeidade dos fatos e a leitura que, ex-post, fazemos
deles.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BENJAMIM, Waltcr. Nápoles. In: . Obras escolhidas II. Rua de mão úni
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37
dade. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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CAUQUELLIN, Anne. Essai de philosopliie urhaine. Paris: PUF, 1982.
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1992.
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PINOL, Jean Luc. Le monde des villes au XIX' .siècle. Paris: Hachette, 1991.
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VERÍSSIMO./Vo/7c. Porto Alegre: Globo, 1954.

38
Ik
^.riM-

WÇW»*

c
lena lavinas
luiz césar de q. ribeiro
imagens e representações
sobre a mulher na construção
da modernidade de Copacabana

Este artigo apresenta uma reflexão preliminar sobre a importância das rela
ções sociais de gênero na estruturação do espaço urbano. Partindo do princípio
que a modemidade tem como expressão a instauração da ordem pública, identifi-
cam-se na história urbana do Rio de Janeiro três grandes eras. A segunda, que nos
interesjsa analisar, corresponde à criação de Copacabana, onde se observajusta
mente a redefiniçãodo imagináriocoletivosobre a relaçãopúblico-privado, rede
finição que passa pelaquestão da moradia. Acentua-se fortemente o processo de
nuclearização familiar, individualizam-se os comportamentos sexuais e sociais,
emergem novas práticas de apropriação do espaço urbano.
Copacabana vai representar uma ruptura profunda nos modelos culturais
de referência anteriores que sustentavam comportamentos e modos de vida. A
mulher, ou, mais precisamente, a mudança nas relações homem-mulher, apare
ce como um dos principais veículos dessa ruptura. Com base em pesquisa do
cumental (revistas, artigos, crônicas), o trabalho apresenta as imagens e repre
sentações de que se serviram vários setores - inclusive o capital imobiliário -
sobre as mulheres, a família e o privado. De um lado, Copacabanaé vista como
o "cemitério da civilização"; de outro, como a expressão da modernidade e do
progresso. No âmago do debate, a mulher no espaço público.
Comecemos com duas citações.

A mulher da elite já possuía, na segunda metade do século XIX, uma outra


função na família. Com mais instrução, passou a ser a 'companheira inteli
gente' do marido. Mas, como lembra Luiz Edmundo, um cronista da época,
'ainda não sai sozinha à rua', lá isso c verdade, mas sai bastante, seja ao lado
da mamãe, do irmão ou de um parente mais velho.

Lena Lavinas c pc.sc|uisadora do IPEA.


Luiz César de Q. Ribelm c proícssor no Instituto de Pós-Graduação em Pesquisa Urbana e
Regional - IPPUR da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

43
A rua, ainda no início do século 20, era pouco visitada pela mulher higi-
enizada, a casa em que morava era geralmente fechada e com poucos contatos
com a vida exterior. Desde criança, essa mulher tinha o seu lazer condiciona
do ao espaço único da casa em que morava.
Conforme o mesmo cronista, "quando (a mulher), em voltas pela parte
central da urbe, sente algum apetite, não entra nunca em um café, muito me
nos em um bar ou restaurante; em uma confeitaria, porém, entra" (Esteves,
1989, p.43).

Os últimos cinqüenta anos encerram período de grandes transformações em


hábitos, costumes e maneiras nas várias camadas brasileiras. Tais foram as
mudanças em que um 'fluminense' de 1895 não .se reconheceria num 'cario
ca' de 1945; e as 'candongas' e 'sinhás', pálidas e tímidas de há meio século,
arrepiar-se-iam ao ver uma 'grã-tlna' de perna cruzada e escanhoada, coxas à
mostra e corpo quase nu, de piteira e cigarrilho, a bebericar whisky entre ba
foradas de fumo, num bar de Copacabana, diante de um cavalheiro em tanga
e peito barbudo (Pinho, 1945, p.35).

Mais do que algumas décadas, o que separa esses depoimentos de cro


nistas do Rio de Janeiro é a forma pela qual a mulher é representada na cida
de, como ela aí se comporta, qual seu grau de autonomia. No primeiro, ela
transita na rua enquanto membro de uma família, rodeada de proteção. Há ter
ritórios que lhe são ainda interditados por serem espaços sexualmente apro
priados. Os espaços público e privado distinguem-se, fortemente, pelo corte
de gênero. As mulheres que rompiam tais fronteiras eram aquelas que encar
navam a figura da libertina, da mulher de vida fácil; logo, arquétipo negativo
da mãe de família idealizada pelos reformadores, higienistas e moralistas do
século 19, que tinham como projeto a implantação da moderna sociedade oci
dental no Brasil.
O segundo depoimento revela uma outra representação da mulher e do
seu lugar no espaço público. Ela aí está, como indivíduo, independente do seu
lugar na família. Os antigos territórios masculinos são agora investidos por
ela, o que é vivenciado positivamente como sinônimo de uma nova moderni
dade. A conotação sexuada do espaço nem por isso desaparece, mas contem
pla a possibilidade de novas relações entre os sexos ne.s.ses espaços masculi
nos. Novas relações que não se constituem com base no reconhecimento e ex
tensão dos direitos políticos às mulheres - muito embora o movimento sufra-
gista e outros movimentos femininos tenham tido grande expressão nos pri
meiros trinta anos deste século -, mas através de uma outra categoria de direi
tos relativos ao acesso individualizado ao espaço público. A modernidade se
constrói também, e sobretudo, com a figura emblemática da mulher moderna
na cidade. Ela conqui.sta a rua, os cafés, a praia, que não são espaços de poder
- estes sim, permanecem-lhe fechados-, mas espaços de autonomia dos indi
víduos frente às relações familiares.
O que teria contribuído para que em tão poucos anos o dar as costas à

44
sociedade colonial, escravocrata e patriarcal do passado para fundar uma so
ciedade moderna, apoiada na razão para o progresso, implicasse a moderni
zação das relações homem-mulher? A pergunta não é nova, embora mante
nha-se atual.'
Nossa idéia é que a modernidade, ao ser construída com base na trans
formação e recriação permanente do espaço urbano, da cidade, cria outra ca
tegoria de direitos que não a da cidadania política strictu senso e que diz res
peito ao acesso individualizado à cidade. Esse pressuposto explicaria, entre
outras coisas, por que os movimentos sociais urbanos no Brasil são historica
mente espaços de construção da cidadania, notadamente para aqueles grupos
sociais mais discriminados, excluídos ou marginalizados do processo mesmo
de modernização social.
Refletir sobre as mudanças ocorridas na noção de morar na cidade, com a
invenção de "Copacabana-apartamentos", permite apreender as transformações
nas relações entre espaço público e espaço privado, que têm como um de seus
principais veículos as representações sobre as relações homem-mulher.
Cortiços, vilas e apartamentos são categorias de classificação que tradu
zem estas representações em movimento. As primeiras, enquanto "moradias
coletivas", designam uma noção de família popular ameaçada pelo congesti
onamento e pela promiscuidade. As casas de vila correspondem à emergência
da família burguesa higienizada e urbanizada, contraponto ao modelo "casa-
grande e senzala". Já os apartamentos representam não apenas o surgimento
da moderna família nuclear, com seus membros crescentemente individuali
zados, mas igualmente a possibilidade da moradia dissociada da relação fa
miliar, voltada para o indivíduo.
Embora estas formas habitacionais não se substituam umas às outras, elas
explicitam, na sua diversidade, contemporaneidades próprias das relações soci
ais de gênero na história do Rio de Janeiro. O debate social, presente na história
urbana da cidade a propósito das virtudes e mazelas do ato de morar, tem como
centro os diversos momentos de construção da moderna ordem pública. Acre
ditamos que as relações sociais de gênero constituíram-se num dos principais
veículos desse processo. A posição da mulher na família, sua presença fora de

'Miriam Moreira Lcilc, cm seu livro Outra face dofeminismo: Maria Lacerda de Moura (1984),
pergunla-sc o que teria levado a imprensa a caracterizar a década de 20 como a do aparecimento
da mulher moderna. "As translomiações do cotidiano feminino, com a divulgação do automóvel
e a freqüência ao cinema, a comunicação rápida c a prática de esportes seriam suficientes para
modernizar a mulher? Os aperfeiçoamentos tecnológicos introduzidos nas cidades e o consumo
ávido da vida de outros lugares, provido pelos filmes e noticiáriose pelas revistas,teriam o poder
de transfomiar a figura tradicionalda mulher brasileira,subordinadae indiferenteà realidadeso
cial que ultrapassasse a vida familiar?A criação de uma grande quantidade de associações femi
ninas e feministas seria também resultante da crise dos mecanismos econômicos e políticos, como
os movimentos populares c militares que alloraram na década de 20? Ou as mudanças na mulher
e nas idéias sobre o papel feminino viriam das levas de profissionais que começavam a conquis
tar postos, num mercado de trabalho até então exclusivamente masculino? Não é possível sequer
saber se as questões a serem fomiuladas seriam exatamente estas." (p. 32).

45
casa, nas ruas e no mercado de trabalho, seu comportamento social e sexual são
elementos permanentes nos discursos dos engenheiros, médicos, juristas e inte
lectuais eruditos. Porém, além de a mulher ter sido objeto dos dispositivos disci-
plinares, ela se torna, de fato, um dos agentes dessa modernidade.

A PRIMEIRA ERA DA MODERNIDADE:


MORADIA E FAMÍLIA NA CONSTRUÇÃO DA ORDEM PÚBLICA

Gilberto Freire nos fornece algumas descrições e considerações sobre o


Brasil urbano do século 18 que nos permitem refletir sobre as mudanças na
morfologia da casa brasileira e na sua relação com as noções de espaço públi
co e privado. Seu fio condutor é a análise das relações patriarcais na sua espa-
cialidade. A casa-grande é o modelo do patriarcado brasileiro. Sua arquitetu
ra fechada para si mesma evidencia o predomínio das relações privadas na
formação do poder durante toda a colônia. No interior da casa-grande, como
assinala Jurandir Costa Freire (1979), utilizando-se do próprio Gilberto Frei
re, prevalecia a mistura indiferenciada de relações entre senhores, escravos e
agregados. Não havia, portanto, a diferenciação entre casa e rua. A mulher
preenchia um lugar de total dependência nas relações familiares.

A casa-grande, no Brasil, pode-se dizer que se tornou um tipo de construção


domestica especializada neste sentido quase freudiano: guardar mulheres e
guardar valores. As mulheres dentro das grades, por trás das urupemas, de ra
los, de postigos; quando muito, no pátio, na área ou no jardim, definhando entre
as semprc-vivas e os jasmins; as jóias e moedas, debaixo do colchão ou den
tro de paredes grossas (1951, p.346).

O sobrado conserva ao mesmo tempo que modifica a casa-grande. Isto


é, conserva a função de guardar a mulher.

Daí os cacos de garrafas espetados nos muros: Não só contra os ladrões, mas
contra os don-juans. Daí as chamadas urupemas, de ar tão agressivo e sepa
rando casa e rua, como se separasse dois inimigos (1951, p.247).

A arquitetura dos sobrados expressa, porém, uma mudança, com a in


trodução da varanda, assim como a do palanque e do caramanchão. Nas pala
vras de Gilberto Freire (1951), realizou-se a

desorientaiização da vida da mulher no Brasil. Sua europeinização ou reeu-


ropeinização". [...] "A varanda e o caramanchão marcam uma vitória da
mulher sobre o ciúme sexual e uma das transigências do sistema patriar
cal com a cidade antipatriarcal. Com a varanda e o caramanchão, veio o
namoro da mulher senhoril, não apenas com o primo, mas com o estranho.
Um namoro tímido, é verdade, de sinais de lenço e de leque. Mas o bas
tante para romantizar o amor e torná-lo exógamo. Quando as urupemas

46
foram arrancadas à força dos sobrados do Rio de Janeiro, já nos tempos de
D. João e dos sobradões de Recife e das cidades mais opulentas da colônia
Já quase independente de Portugal, pode-se dizer que se iniciou uma nova
relação entre os sexos (p.351).

É interessante assinalar que, com os sobrados, surge uma oposição casa/


rua até então desconhecida. A perda progressiva do controle patriarcal sobre a
sexualidade feminina é um dos elementos constitutivos da ruptura do espaço
social entre mundo privado e mundo público. Cunha-se a palavra mulher de
janela ou mulher pública como imagens de um espaço onde a sexualidade
feminina deixa de ser completamente regulada. Esta representação reforça a
idéia de que se estaria assistindo a uma dissolução dos costumes, conforme
impressões de um estudioso do Primeiro Reinado.
O fato é que o confinamento doméstico a que esteve submetida a mulher
na sociedade colonial até meados do século 19, e que se devia, antes de mais
nada, "ao papel instrumental que as mulheres desempenhavam na reprodução
do regime econômico" (Costa, 1979, p.l04), começa a erodir-se diante das no
vas formas de sociabilidade que a urbanização e a modernização do país impu
nham e que iriam inverter o jugo da família sobre a cidade, da casa sobre a rua.
Novas formas de sociabilidade que correspondem a funções redefinidas do lu
gar da mulher na família, na casa, na sua condição de esposa e mãe, trazendo
maior autonomia individual e novos vínculos afetivos e sexuais.
A mulher colonial tornou-se, com a urbanização, uma anacronia. A pe
netração do capitalismo industrial europeu dinamizou a vida social e [...] a
vida privada. As 'enclausuradas nas alcovas' tornaram-se 'antifuncionais'. A
corte requeria a 'mulher de salão', a 'mulher da rua'. Os grandes negócios e o
pequeno comércio exigiam uma e outra, respectivamente. A casa perdia sua
auto-sufíciência. A cidade dominava a família (p.ll9).
O agente legitimador e ordenador dessas transformações tão profundas
será a ordem médica, que vem sanar as disfunções e as seqüelas da velha so
ciedade. Mas, além dos sobrados, também as habitações coletivas (cortiços,
estalagens e casas de cômodos), forma predominante de moradia popular na
segunda metade do século 19, são investidas pelo discurso e pelas políticas
sanitaristas, com a finalidade de construir um modo de vida sadio. Abrir, are-
jar e ao mesmotempoproduzira intimidade familiarcom a separaçãodos cô
modos são objetivos de intervenções voltadaspara a reformado habitat popu
lar. Novamente as mulheres são um dos vetores desse processo.
O movimento legislativo quejá aparece na década de 1840, data de edi
ção do primeiro código de postura da cidade, se acentua nas últimas décadas
do século 19 e se consolida nos primeiros anos de 1900,faz parte de um pro
cessode instauração de umaordempública na cidade. Ao ladoda fábrica, onde
a ordem é estabelecida pela disciplina fabril, busca-se instaurar uma ordem
pública criando um espaço público (ver MariaAlice Rezende e outros autores
sobre essa questão). R. Morse fala-nos também de Freire, de como sua obra

47
expressa as transformações entre espaço público e espaço privado na organi
zação urbana brasileira.-
O furor legislativo sobre as posturas, inclusive impondo certas condutas,
tem este sentido. Sevecencko (1989) dá algumas indicações a este respeito: a
obrigatoriedade em usar gravatasno centro e as proibiçõesde cuspir no chão e
andar descalço.Antônio Dimas (1942), citando passagens de Bilac, fomece outras
indicações sobre o sentido simbólico da reforma Passos, especialmente a Ave
nida Central, como condensador desta ordem pública em construção.

A SEGUNDA ERA DA MODERNIDADE: COPACABANA -


APARTAMENTOS E AS NOVAS RELAÇÕES HOMEM-MULHER

Um momento subseqüente de construção da ordem pública é a criação


de Copacabana, bairro que vai operar uma "inflexão no imaginário simbóli
co" (Pereira, 1991) da cidade, "forjando um território distinto do que havia
em termos de vida pública até então no cenário carioca" (p.59). Além das ruas,
bulevares, praças, surge a praia, e com ela novas formas de sociabilidade.

Copacabana reeditava na metade do século o que Pereira Passos fizera no co


meço do século, uma ruptura com o passado e com o tradicional. Esta ruptura
se deu em dois níveis: profunda transformação do espaço construído ao nível
do real e radical mudança na imagem que o morador tinha da cidade ao nível
simbólico. No limite, Copacabana foi exatamente isso: a irrupção do simbóli
co no real, a materialização, no espaço, de uma nova maneira de viver e pen
sar a cidade (Cardoso et al. 1986, p.135-136).

A partir dos anos 30, Copacabana deixa de ser o lugar do lazer familiar
higienizado, estação de veraneio e convalescença das elites do início do sécu
lo, para constituir-se no espaço de uma nova forma de moradia: o edifício de
apartamentos. E com a criação de Copacabana - um novo bairro para uma
nova cidade - que se consolida a separação entre ordem urbana e ordem fa
bril, isto é, moradia e trabalho são definitivamente dissociados no imaginário
carioca. O mito da "cidade maravilhosa" ganha aqui concretude. O espaço
público deixa de ser discutido apenas a partir do prisma da moralização dos
pobres para o trabalho. O velho conflito entre ordem escravocrata e ordem ca
pitalista, que estigmatizava a cidade como espaço de negação do trabalho as
salariado, é resolvido pela afirmação de Copacabana como lugar onde se as
sociam de maneira intrínseca moradia e lazer.
Os códigos sociais são reelaborados: criticam-se as pessoas que jogam
objetos pela janela, que exibem roupas íntimas nas sacadas e que se despem à
vista dos vizinhos. O exibicionismo aparece como a marca registrada deste

-Freire também adota uma visão organicista dos autores latino-americanos. Sua obra tenta
mostrar como ocorre uma decadência do "patriarcado urbano", através da "cidadização".

48
novo modo de vida, em que a intimidade ganha as ruas e a privacidade da fa
mília torna-se restrita. Restrita porque os apartamentos não são mais, enquanto
moradia, a esfera por excelência da reprodução social. Os novos serviços que
ainda nos anos 30 aparecem, multiplicando-se e diversificando-se no pós-guer
ra, como bancos, filiais de grandes lojas, restaurantes, lanchonetes, apartamen
tos mobiliados,^etc., transformam a vida familiar e deslocam para a rua fun
ções antes exclusivamente de competência da casa.

Há modificações profundas que dizem com o 'morar'.A pouco e pouco, na classe


rica intlltrou-se o hábito de preferir a casa à chácara, e afinai o apartamento à
casa. Houve razões de limitação, tanto como de economia: valorização dos ter
renos, novas construções, crescimento da cidade - mas os efeitos foram especi
almente a favor da rua, dos restaurantes, dos clubes e em detrimento do antigo
patriarcado da família reunida, dos serões íntimos, do aconchego do lar.
Foi minguando o espaço, encolheram-se as salas, dispersou-se a sombra aco
lhedora e quieta das árvores em parques e pomares. A casa que se estreita con
vida menos e a rua passa a oferecer compensações aos encantos que o 'home'
vai perdendo.
Na maioria dos arranha-céus de Copacabana, a sala de visitas c a praia, são as
calçadas. O restaurante, a casa de chá, os corsos, os 'footings', as vastas insta
lações dos grandes clube.s, os espetáculos de 'sport', a crescente indispensa-
bilidade do cinema diário ou quase -ca vida externa que abafa a antiga vida
de família. Para muita gente, o apartamento c apenas o domicílio legal e o dor
mitório, c há de lembrar que o apartamento já c uma rua pelos mil tributos
que rende à vida coletiva do prédio (Pinho, 1945, p.41).

O espaço público é redefinido no sentido de umpúblico-coletivo que se


opõe ao privado-individiial. As referências ao fim da família, abundantes nas
revistas de época (Fon-Fon, O Malho, O Cruzeiro, Revista de Copacabana),
expressam a mudança na vida privada. Muitas das atividades familiares pas
sam para o espaço público, como o comer,'' por exemplo.
Comércio e serviços noturnos são implementados no bairro. E indisso
ciável nesse movimento a generalização do apartamento como forma predo
minante de moradia. O edifício de apartamentos, embora moradia coletiva,
tem novo significado em relação a formas anteriores de moradias coletivas,
como o cortiço. Isso porque desaparece a associação produzida pelos higie-
nistas e reformadores entre coletivo e aglomeração desordenada. Agora, o co
letivo passa a ser constituído pelas individualidades. Nem por isso escapa à

'As famílias não prcci.savam sc preocupar comos criados, poisos encarregados dos apartamen
tosse incumbiam de tudo. O Palácio Império (1936)- que bem poderia ser considerado um pre
cursordos aparl-holcis quese instalariam na cidade e no bairro 50 anosmais tarde - oferecia ta-
cilidades maiores. Localizado naAvenida Copacabana, próximo ao Lido, eraanunciado cm 1936
pela revista O Cruzeiro com apartamentos mobiliados, restaurantes e garagens.
•"Surge em Copacaliana a pizzaria Itamaraty, em 1946; a casa Flakes, de reteições leves e
agradáveis, em 1949; o Bob's, já no início dos anos 50, etc. Mas antes desses marcos, o co
mer fora ganha importância, o estar na rua.

49
idéia de caos: a babilônia de arranha-céus, metáfora usual de então, parece
exprimir ainda assim uma noção de desordem, de permissividade, de costu
mes dissolutos.
Mas, na verdade, o par ordem-desordem ganha novos conteúdos e novas
relações de causalidade. Os comportamentos individuais no espaço público
escapam à vigilância e ao controle por se tratar de uma aglomeração que con
centra a diversidade e a simultaneidade de atividades e tempos distintos. Es
paço de moradia, espaço de trabalho, espaço de lazer, Copacabana é visuali
zada, no plano simbólico, como espaço de virtualidades para homens e mu
lheres de todas as camadas sociais. Esta virtualidade, no entanto, não está co
locada para todos os indivíduos, mas apenas para aqueles que compartilham
daquele espaço, suporte desse novo modo de vida.
Nesse sentido, Copacabana vai diferenciar-se do resto da cidade, geran
do uma dualidade ao nível das representações entre o moderno e o atrasado,
o público e o privado, o indivíduo e a família. Trata-se da dualidade subúr-
bio-Copacabana, ou zona sul/zona norte, dois mundos caracterizados por
modos de vida distintos.

Nos dois mundos antagônicos do Rio, sc forjaram dois estilos de vida total
mente distintos. Aqui não falamos, c claro, de meio-termo, mas do que são
caracteristicamente a 'zona sul' e a 'zona norte'. A zona sul, que começa pro
priamente no Flamengo, é a civilização do apartamento e das praias malicio
sas, do traje e dos hábitos esportivos, da 'boite' e dos pecados à meia luz, dos
enredos grã-finos, do 'pif-paf de família, dos bonitões de músculos à mostra
e dos suculentos brotinhos queimados de sol, dos conquistadores de alto co-
turno e certas damas habitualmente conquistáveis, das enfatuadas cozinheiras
de um conto de reis, dos 'shorts', do blusão e do 'slak', dos hotéis de luxo (e
de outros de má reputação) e dos turistas ensolarados. O Rio cosmopolita está
na zona sul, onde uma centena de nacionalidades se tropicalizam à beira das
praias. A zona norte c Brasil 100%. A gente mora largamente em casa (muitas
vezes com quintal) e a casa impõe um sistema diferente de vida, patriarcal,
conservador. Vizinhança tagarela e prestativa. Garotos brincando na calçada.
Reuniões cordiais na sala de visitas. Solteironas ociosas e mocinhas sentimen
tais analisando a vida que passa debaixo das janelas. Namoro no portão, amor
sob controle - para casar. Festinhas familiares de fraca dosagem alcoólica. A
permanente compostura no traje ajustada com a do procedimento. Paletó e
gravata. Mais 'toilette' que vestidos, mais área coberta nos corpos. Vida mais
barata. Empregada de 300 reis, menos água, mais calor. Diversão pouca, nada
de 'boite' e 'nights clubs'. Noite vazia de pecados e de passos boêmios e sor-
tilégios. Vida menos agradável aos homens, mas abençoada pelos santos.
Zona sul-zona norte, paraíso e purgatório do Rio. Sair do purgatório e ganhar
o paraíso c aspiração de quase todos. Há quem prefira, sinceramente a vida
simples e provinciana dos bairros e subúrbios do norte. Para muitos, a zona
sul não c o para só, mas o inferno da perdição, onde Copacabana dita a imora
lidade, o aviltamento dos costumes, a frivolidade e a boêmia. (Gomes, 1953,
p.45)

5G
As oposições construídas no texto são controle social versus autonomia,
recato versus exibicionismo, nacional versus cosmopolita. Na zona sul estabe
lece-se uma oposição entre casa e rua, enquanto na zona norte a rua aparece como
extensão da casa. Mas outra dualidade aí presente nos parece fundamental: en
quanto sedução, belos corpos e sensualidade caracterizam os habitantes da zona
sul, tratando-se, pois, de corpos e sexualidadepublicizados, na zona norte, con
tinuam privatizados os corpos e controlada a sexualidade. O público é o lugar
do comedimento e a casa é o eixo da vida social. Em Copacabana, e por exten
são na zona sul, este eixo não é apenas a rua, mas também a praia, espaço que
traz para a esfera da vida pública o que antes era próprio da vida privada: nota-
damente, a exposição dos corpos. Nada mais associado à vida privada do que o
recato do corpo. Se, no século 19, reformadores e sanitaristas empenharam-se
em produzir a intimidade como estratégia de constituição da família burguesa,
no século 20, na nova morfologia urbana Copacabana-apartamentos, a nudez
no espaço público, nudez hedonista, constrói a possibilidade da individuação.
A apropriação simbólica dos seus corpos pelos indivíduos e suas conseqüênci
as na redefinição dos padrões comportamentais relativos à vivência da sexuali
dade são o marco dessa nova modemidade.

O século XX ficará conhecido na história como o século do nu. A nudez trium-


pha com as mulheres nas praias e com o cimento dos arranha-céos. Tudo se
desnuda menos a consciência de certas damas." [...] "Uma mulher que mostra
o seu corpo a toda a gente é uma mulher despida... de preconceitos (Revista O
Malho, 1936, n.l37).

O corpo feminino exibido em público opera uma profunda transforma


ção nas representações da mulher na sociedade moderna. O desnudamento,
além de galvanizar novas relações entre o público e o privado, tende a indife-
renciar as mulheres, despindo-as também das marcas que antes as situavam
no espaço social e familiar (no qual as vestimentas identificavam as categori
as de mulheres: casadas, solteiras, honestas, prostitutas, que trabalham ou são
donas de casa, etc.). Mulheres de roupa de banho, maiô frente única, sozinhas,
fumando, coxas à mostra, "para quem o corpo representa um patrimônio" (Be-
nedetti. Revista de Copacabana, 1949).

Nós não somos como os habitantes de Andara que só têm corpo quando vestem
vestidos de baile. Nós temos corpo todos os dias, não damos uma folga. Cada
dia o corpo fica mais importante. Fazer ginástica é tão corriqueiro como beber
café pela manhã. Andar de bicicleta é uma obrigação, quando algumas banhas,
irrefletidamente, se deixam ficar por lugares não convencionados. [...] Praia tem
dessas coisas. Nós somos praia. Temos obrigação de ser praia com muita de
cência. E fazemos o possível. Jamais traímos nossa situação de praianos honra
dos. Eis que, em virtude dessa nossa dedicação, estamos metidos num apuro
danado. Quebraram nossa inocência, avisando que corpo é feio e que falta de
roupa é contra a lei. Sem nenhuma preparação psicológica, nem nenhuma ins
trução prévia. [...] Impor o roupismo com rádio patrulha e 'cassetête' é uma idéia

51
espantosa (idcm).

Na rubrica Trepações, da Revista Fon-Fon, não faltam comentários po


sitivos a este novo modo de vida e às mudanças que induz nas relações entre
homens e mulheres e nos casais,

Sc madamc soubesse o principal motivo do encanto do marido pelos banhos


de Copacabana, naturalmente perderia o hábito de se deixar ticar comodamente
em casa, e passaria a acompanhar o caro esposo ate a praia. Porque ele em
casa c um homem de hábitos mongerados, pacato, apóstolo da moral sã, po
rem na praia, solto, longe das vistas da companheira c inteiramente outro. Tira
a máscara do rosto, perde o ar de santarrão, in.screvendo-se no batalhão dos
tubarões de praia. Madame que repare na pontualidade do marido em cumprir
seu horário matinal do banho... Sempre na mesma hora sai de casa, porque
assim acontece também com uma discípula de natação, que ele arranjou (n.4,
25/1/1930).

Também nu.Revista de Copacabana, criada pelos comerciantes do bair


ro para a comunidade local, não faltam referências ao novo comportamento
sexual que o espaço "pagão" de Copacabana incita e que rompe, no plano sim
bólico, com a moral da velha sociedade.
O que todas essas citações revelam com humor e ousadia, e não raro
com perplexidade, é a nova espacialidade das relações sociais de gênero e
os mecanismos que lhes dão materialidade simbólica. No processo de cons
tituição das modernas identidades sociais, o espaço urbano ganha centrali-
dade. A segregação espacial que se opera com a criação de Copacabana e
com a sua rápida metamorfose de bairro de elite em metrópole cosmopoli
ta, onde se mesclam tipos dos mais distintos de diversas classes sociais que
têm em comum —ou como parâmetro comportamentos desreprimidos sexu
almente e publicizados, vai ser responsável pelo surgimento de uma nova
categoria de mulheres, fora do recorte tradicional que as fazia boas mães de
família ou mulheres da vida. Mulheres presentes no espaço público como
indivíduos, sem alusão à sua situação conjugai, familiar, de trabalho ou ge
ração. Anônimas, sem sobrenome, sem a referência da casa-família, referên
cia patriarcal. Essa individuação é gerada por um estilo de vida, instituído
num e por um espaço urbano de representações onde o corpo feminino é
desprivatizado, permitindo, portanto, projetar, idealizar, fantasiar novas re
lações entre os sexos.

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53
f
josé augusto avancini
as imagens da cidade
na prosa de mário de andrade

Dentro do conjunto da produção poética de Mário de Andrade, reunida no


volume Poesias completas, editado dez anos após a morte do escritor em 1945,
destacam-se dois livros significativos que enfocam a grande musa do poeta - a
cidade de São Paulo. São eles Paulícéia desvairada, que abre o conjunto e o
movimento modernista em 1922, e Lira paulistana, que fecha a obra, uma vez
que foi composta entre 1944-1945, e editada um ano após a morte do poeta.
Se procurarmos na poesia brasileira do corrente século, constataremos
que Mário deAndrade foi com quase certeza o poeta que elegeu preferencial
mente a cidade como motivo central de seu poetar. A cidade de São Paulo apa
rece em quase todos os seus livros de poesia. É a preocupação central de sua
obra poética: ora a cidade é o espetáculo multifacetado da modernidade dese
jada e buscada em 1922, ora é a constatação dos desequilíbrios e desenganos
de um desenvolvimento desarmonizado e injusto, como o expresso na Lira
paulistana.
Pela leitura atenta desses dois livros pontuais podemos percorrer os ca
minhos e os descaminhos da modernização no Brasil, tendo a cidade de São
Paulo como fulcro dessas reflexões, associada ao mesmo tempo ao percurso
pessoal do poeta. No início do percurso temos a cidade vista como o motivo
entusiasmante do viver:

São Paulo! comoção do minha vida.


Os meus amores .são flores feitas de original!...

São Paulo! comoção de minha vida...


Galicismo a berrar nos desertos da América.'

José Aiigii.sto Avancini c proíe.ssor no Departamento de História da UFRGS.


' "In.spiração", Jn: Paiilicéia Desvairada. Edição Crítica de Dilca Zanotlo Manfio. Belo Ho
rizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1987, p.83.

57
Para o tom alterar-se radicalmente, passando da proclamação altissonante
e agressiva áe Paulicóia desvairada, em 1922, para o lamento dolorido e bai
xo duLira paulistana de 1945:

Minha viola quebrada


Raiva, anseios, lutas, vida,
Miséria, tudo passou-se
Em São Paulo.-

Entre o desvairismo e a melancolia oscilaria a visão que Mário de An


drade elaborou sobre sua cidade natal e que escolheu como musa de seu amor
seqüestrado. Num rápido histórico desses dois livros pontuais é necessário in
dicar ao leitor não especializado as circunstâncias de criação dessas obras po
éticas e o estado de espírito de seu criador e da sociedade na qual vivia. Fa
zendo o retrospecto da criação dos poemas, como cabe sempre ao bom exer
cício didático, veremos que Paulicéia desvairada foi composta entre dezem
bro de 1920 e dezembro de 1921, no auge da movimento modernista que já
datava da exposição Malfatti de dezembro de 1917 a janeiro de 1918.
O grupo toma fôlego e começa a voar alto após os fins de 1920. Sendo o
ano de 1921 o da preparação para a grande revelação pública da nova tendên
cia que queria impor-se ao gosto dominante e destronar o "passadismo", as
sociado ao realismo-parnasianismo nas artes brasileiras. Esse esforço coleti
vo associava-se ao ardente desejo de modernizar o país e a cultura, tentando
integrá-lo no todo chamado Ocidente do qual fazia parte, mas estava de fato e
de sentimento relativamente apartado.
Paulicóia desvairada é o manifesto e a concretização poética das propos
tas modernistas aplicadas pela primeira vez no Brasil e que nos colocavam em
sintonia com a produção cultural do Ocidente euro-norte-americano. Ainda era
a França a matriz dessa modernidade que já repartia com a Alemanha e a Itália
essa preeminência. Nosso modernismo mostra isso de forma clara no uso das
fontes européias e das propostas vanguardistas. O relevo que Mário de Andrade
sempre deu à vertente alemã é prova de que queria compensar a hegemonia fran
cesa, buscando outras fontes mais consoantes com a nossa tradição particular.
Encontrou no expressionismo alemão o movimento cultural que melhor pode
ria nos indicar caminhos inovadores, sem ignorar ou destruir nossa incipiente
tradição autóctone, tornando possível a elaboração de uma proposta cultural que
não excluísse os elementos específicos da cultura brasileira.
O tema principal de Paulicéia desvairada é a cidade-metrópole moderna
que é vista através do poeta-arlequim. Cidade mais desejada do que real, se
pensarmos que São Paulo dos anos 20 ainda não tinha chegado a um milhão de
habitantes, mas já apre.sentava todas as características de uma metrópole capita
lista, com classes .sociais bem definidas e com intensa atividade econômica e

'Minha viola bonita". In: Lira pmiiislana, PC, p.351.

58
ares e pretensões de refazer a França nos trópicos. Exemplo urbanístico foi o
tratamento dado ao vale do Anhangabaú, centro nevrálgico entre o espaço novo
e velho da cidade, desde os anos 10 até aos anos 60 desse século.
O poema que Mário dedica ao parque é boa página de ironia às preten
sões de urbanismo à francesa que as cidades brasileiras, em particular São Paulo
e Rio de Janeiro, tentavam realizar nas primeiras décadas do século.

Estes meus parques Anhangabaú ou de Paris,


onde as tuas águas, onde as mágoas dos teus sapos?
"Meu pai foi rei!
- Foi. - Não foi. - Foi. - Não foi".
Onde as tuas bananeiras?
Onde o teu frio encanecido pelos nevoeiros,
contando histórias aos .sacis?...^

O presente do parque para Mário de Andrade oculta o verdadeiro passa


do esquecido, onde lendas e .seres fantásticos revelariam mais da brasilidade
do que o falso cenário à européia montado em mármore e bronze. O poeta-
arlequim quer nos mostrar a cidade multifacetada, indicando os espaços de
lazer e trabalho e os diver.sos grupos sociais e étnicos que compõem o painel
da metrópole moderna. A "viagem" que o poeta faz em sua cidade, seus di
versos bairros e espaços, mimetiza a mítica viagem dos heróis tradicionais em
busca de si mesmos e de sua elevação espiritual, realizando a reunião do indi
víduo com o todo social.
A viagem do poeta moderno é o flanar incessante pelas ruas da cidade
captando suas mais variadas manifestações sem alcançar um ponto de encon
tro e integração, real ou hipotético. Não há centro social e simbólico ao fím
de.ssa viagem; apenas uma aproximação nos é dada pelo sentimento aliado às
sensações de velocidade e constante deslocamento do poeta, pelo seu cons
tante movimento externo e interno, conduzido pela loucura - "Minha loucu
ra" - de.svairadamente na procura de uma síntese onde passado e presente e
espaços diversos se encontrassem. Este lugar se dá para o poeta no exercício
da arte. Exemplo claro está na conjunção que realizou de técnicas e intenções
do poema "Tietê":

Era uma vez um rio...


Porém os Borbas-Gatos dos ultra-nacionais espertamente!
Havia nas manhãs cheias de Sol do entusiasmo
as monções da ambição...
E as gigânteas vitórias!
As embarcações singravam rumo do abismai De.scaminho.,.

- Nadador! Vamos partir pela via dum Mato-Gros.so?

^"Anhangaliaú", In: Paulicéia desvairada, PC, p.93.

59
- Io! Mail... (Mais dez braçadas.
Quina Migonc. Hat Storcs. Meia de seda.)
Vado a pranzare con Ia Ruth."*

O mesmo tom é mantido em "O domador" onde mostra o filho do imi


grante como novo elemento social colocado ao lado dos "donos-da-vida":

Mas... olhai, oh meus olhos saudosos dos ontens


E.s.se espetáculo encantado da Avenida!
Revivei, oh gaúchos Paulistas ancestremente!
E oh cavalos de cólera sangüínea!
Laranja da China, laranja da China, laranja da China!
Abacate, cambucá e tangerina!
Guardate! Aos aplausos do esfuziante clown.
Heróico suce.ssor da raça heril dos bandeirantes.
Passa galhardo um fílho de imigrante,
Louramente domando um automóvel!''

Já em posição oposta a esta Mário apresenta o imigrante marginalizado


no "Noturno":

Luzes do Cambuci pelas noites de crime...


Calor!... E as nuvens baixas muito grossas,
Feitas de corpos de mariposas,
Rumorejando na epiderme das árvores...

Num perfume de heliotrópios e de poças


Gira uma tlor-do-mal... Veio do Turquestã;
E traz olheiras que escurecem almas...
Fundiu esterlinas entre as unhas roxas
Nos oscilantes de Ribeirão Preto...
- Batat' a.s.sat' ô furnn.!...''

Cidade feita de contrastes e oposições, conflitos surdos ou evidentes, de


reminiscências do passado e projeto de futuro. Tudo contado "asperamente"
através do poeta-arlequim, guia e portador, mascarado dessa nova realidade
chamada metrópole, lugar e símbolo da modernidade.
Esse novo "trovador" se veste com as roupas do velho comediante da
Comédia deli'Arte para num exercício de prestidigitação nos mostrar o novo
e nos lembrar do velho:

Sentimentos em mim do asperamente


dos homens das primeiras eras...

"Ticlc", In: Paulicciu üesvuirada, PC, p.87.


"O Domador", In: 1'aitlicéici desvairada, PC, p.92.
"Nolumo", In: Paalicéia desvairada, PC, p.95.

BD
As primaveras de sarcasmo
intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
Outras vezes c um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som redondo...
Cantabona! Cantabona!
DIorom...

Sou um tupi tangendo um alaúde!'

Arlequim que une a primitividade de um índio ao refinamento do ins


trumento poético do trovador, o alaúde, dedilhado nas ricas cortes da alta Ida
de Média, agora lançado nessas bandas do Atlântico para uso livre dos filhos
da terra. O poeta como o portador da verdade é o línico capaz de revelar essas
facetas variadas através do "movimento de visitação" que realiza aos vários
espaços da cidade, nos proporcionando a idéia de uma nova síntese.
Já 'd Lira paulistana, escrita 22 anos após, revela um outro momento de
Mário de Andrade e do país. Escrita no fim de sua vida (1944-1945), durante
o Estado Novo e a Segunda Guerra, tem um forte tom melancólico e uma acen
tuada crítica social aliada ao desengano e à relativa desesperança de soluções
imediatas para nossos problemas.
Simplicidade e concisão na construção poética são aliadas a um exercí
cio afetivo do poeta em acertar contas com sua obra e principalmente com seu
passado. O livro tem claro teor testamentário, é uma despedida; um acerto de
contas com ele próprio, com seu país e sua cidade. Inserida nos poemas cur
tos e concisos, o poeta acrescenta, em tom de relato, uma história proletária,
de uma vida gourada:

Agora cu quero cantar


Uma história muito tri.stc
Que nunca ninguém cantou
A triste história de Pedro,
Que acabou qual principiou.'^

Vida gourada que julga também ser sua como no poema:

Tua imagem se apaga em certos bairros,


Mas tua dor rasga nos ares,
Não me deixa dormir.

A tua dor se dispersa nos ares,


Mas tua imagem suando ao dia inútil
Me impede até de chorar."

^"O trovador", In: Paitlicéia desvairada, PC, p.83.


""Agora cu quero cantar". In: Lira paulistana, PC, p.372.
""Tua imagem .se apaga em ccrto.s bairro.s", In: Ura paulistana, PC, p.363.

B1
Ou ainda o fracasso da esperada e cantada modernidade:

Eu nem sei se vale a pena


Cantar São Paulo na lida,
Só gente muito iludida
Limpa o gosto e assopra a avena,
Esta angústia não serena,
Muita fome pouco pão,
Eu só vejo na função
Miséria, dolo, ferida,
isso c vida?'"

Ou num poema anterior o tom patético das perguntas já preparava o poe


ma citado acima em:

Ruas de meu São Paulo,


Onde está o amor vivo,
Onde está?
Caminhos da cidade,
Corro em busca do amigo,
Onde está?

Há de estar no passado,
Nos séculos malditos.
Aí está."

Quando a cidade se apresenta favorável ao poeta é no momento de sua


identificação com o clima e a tarde clara com céu azul:

O céu claro tão largo, cheio de calma na tarde,


E ver uma criança adormecida
Baixando as pálpebras sem pensamento
Sobre um mundo que ainda não viveu.

A cidade já não apresenta possibilidades de alegria ou beleza, e muito


menos de renovada esperança de um lugar de reunião e confraternização. O
esforço para isso é transferido para mais além. O poeta-arlequim desvairado
de 22 é o melancólico cantor de uma cidade impossível que resume todas as
misérias e impossibilidades pessoais e sociais. O poema de abertura de Lira
paulistana historia a trajetória do trovador de 22, que trocou o alaúde pela vi
ola, sertaneja sem dúvida, e que canta no final cantos de dor e de uma espe
rança postergada:

'""Eu nem .sei se vaie a pena", In: Lira paulistana, PC, p.362.
" "Ruas do meu São Paulo", In: Lira paulistana, PC, p.355.
'-"O céu claro tão largo, cheio de calma na tarde", In: Ura paulistana, PC, p.362.

62
Minha viola bonita.
Bonita viola minha.
Crc.sci, crc.scc.stc comigo
Nas Arábias.

Minha viola quebrada


Raiva, anseios, lutas, vida,
Miséria, tudo pas.sou-.se
Em São Paulo."

O violeiro de 45 se identifica com sua cidade no derradeiro passeio que


realiza já sem o gosto do flanador baudeleriano, agora como o amargo cantar
de uma Paulicéia envilecida:

A catedral de São Paulo


Por Deus! que nunca se acalia
- Como minha alma."

Que se complementa pela convocação quase trágica de

... os que esperam, os que perdem


o motivo, os que emudecem,
os que ignoram, os que ocultam
a dor, os que desfalecem."

Por fim a derradeira identificação com sua amada cidade de São Paulo,
berço e túmulo, lugar de amor e morte, cujo amor ilimitado e entrega total leva
à morte simbólica e à repartição do corpo do poeta, como o do totêmico Boi-
Paciência, um de seus sinais, e também do próprio povo brasileiro. Traça no
poema o percurso de sua vida, dando ao leitor sinteticamente os principais
momentos e lugares, vividos e transformados em símbolo da simbiose entre
o poeta e sua cidade:

Quando eu morrer quero ficar,


Não contem aos meus inimigos.
Sepultado em minha cidade.
Saudade.
Meus pés enterram na rua Aurora,
No Paiçandu deixem meu .sexo?
Na Lopes Chaves a cabeça
E.squeçam.
No Pátio do Colégio afundem

'Minha viola bonita", In: Lira paulistana, PC, p.351.


'A Catedral de São Paulo", In: Lira paulistana, PC, p.37().
'... o.s que esperam, os que perdem", In: Lira paulistana, PC, p.371.

63
o meu coração paulistano:
Um coração vivo o um defunto
Bem juntos."'

Este poema-testamento realiza a profunda identificação do poeta com sua


cidade, sendo ao mesmo tempo uma rememoração da vida e indicação do de
sejo de fusão com esse todo, finalmente encontrado pela dissolução do Eu
poético no espaço da cidade. Somente no espaço social é possível encontrar
lugar para a atuação do artista imbuído de uma missão educativa que, agindo
como um profeta, indica à coletividade os caminhos a seguir.
Este rápido percurso pelos dois livros pontuais de Mário de Andrade nos
dá uma visão panorâmica das mudanças que sofreram suas relações com o prin
cipal objeto de suas preocupações poéticas que foi a cidade de São Paulo.
Mostrando-nos um percurso de 23 anos que vai da euforia esperançosa de
modificações aceleradas nos anos 20 às conclusões céticas e amargas com as
realizações sociais e políticas do país, manifestadas com intensidade na cida
de do poeta
São Paulo berço da desejada modernização que nos conduziria ao con
vívio com as nações mais desenvolvidas, isto é, os países europeus com os
quais tínhamos relações seculares, é também túmulo das esperanças de justi
ça, amor e paz entre os homens. São Paulo comoção de uma vida e lugar de
sofrido e doloroso percurso de um trovador-violeiro que reúne em sua obra a
primeira grande tentativa de síntese da moderna cultura brasileira.

"•"Quando eu morrer quero ficar", In: Lira paulistana, PC, p.381,

B4
Cláudia mauch

o policial e a cidade
um olhar vigilante:
porto alegre, final do século XIX

No ano de 1896 a cidade de Porto Alegre assistiu a modificações signi


ficativas na sua organização policial. Finalmente a Intendência Municipal to
mava uma atitude no sentido de refrear a ação dos turbulentos e gatunos que,
segundo alguns jornais locais, infernizavam a vida das famílias.'
Em conformidade com a lei de reorganização dos serviços policiais do
Estado, uma série de leis municipais procuraram fornecer ao policiamento de
Porto Alegre uma estrutura mais racional e eficiente. Ocorreu uma redivisão
distrital do município, uma regulamentação das detenções nos xadrezes das
delegacias e, por fim, foi criada uma nova polícia, a Polícia Administrativa.-
Uma análise mais atenta dessas mudanças no policiamento (que à pri
meira vista não passam de um punhado de leis insossas) mostra que a v/gí7á«-
cia parece estar no centro das preocupações do poder público.
Ora, no Brasil de finais do século 19 não é mais novidade para os gover
nantes que o espaço urbano com seus becos, ruelas, cortiços, aglomerações,
pode ser percebido e utilizado por alguns grupos ou indivíduos como "escon
derijo". A novidade estaria na tentativa de dotar a polícia e, mais especifica
mente, o policial de um "olhar vigilante".
"Prevenir os crimes mediante uma vigilância sistematicamente exerci-

Cláudía Mauch é Mestre em História pela UFRGSe professora da ULBRA.


' Este texto c uma versão resumida de um dos capítulos da dissertação Ordem pública e mo
ralidade: imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na década de 1890. Curso de Pós-
graduação em História da UFRGS, 1992.
governo do Estado do Rio Grande do Sul, com a Lei n-11 de 4 de janeiro de 1896, deixa
va completamente a cargo do município o policiamento preventivo entendido como a vigi
lância sistemática dos indivíduossuspeitos; a prisão sob custódia dos contraventores por 24
horas, o cumprimento das posturas municipais e manutenção da ordem e moralidade no es
paço público. Os municípios tinham a liberdade de estabelecer o regulamento de suas polí
cias administrativas a partir das funções básicas determinadas pela lei estadual. O regula
mento da Polícia Administrativa de Porto Alegre consta em PORTO ALEGRE. Intendência
Municipal. Ato n'-' 20 de 10 de outubro de 1896. Arquivo Histórico de Porto Alegre.

69
da"; eis a missão da PolíciaAdministrativa. Para cumprir essa missão de acordo
com o que ditava o regulamento da nova corporação, os policiais - denomina
dos vigilantes municipais - deveriam desenvolver uma "sensibilidade" para
observar detalhes, fixar traços, intenções.
Pode-se dizer que a organização dessa nova polícia baseia-se na idéia de
que tanto o habitante da cidade como o próprio espaço urbano são potencial
mente perigosos e passíveis de uma intervenção ordenadora-moralizadora por
parte do poder público.

AATENÇÃO COM O ESQUADRINHAMENTO DO ESPAÇO

Ocorrida em setembro de 1896, a delimitação dos distritos e comissari


ados policiais do município visava tornar mais eficiente o policiamento com
a multiplicação dos postos policiais e o conseqüente esquadrinhamento da área
urbana pelos agentes da polícia.
Considerando que a divisão anterior não mais correspondia às necessi
dades da administração municipal e que a existência de distritos em parte ur
banos e em parte suburbanos, dificultava o policiamento, a Intendência divi
diu o território de Porto Alegre em oito distritos, sendo os três primeiros ur
banos e os cinco últimos suburbanos.^
O primeiro distrito compreendia a área mais densamente povoada'' - a pe
nínsula onde se localizava o centro comercial e administrativo da capital. Foi
dividido em quatro comissariados policiais. Inicialmente o 1® distrito compre
endia também as ilhas do Guaíba, onde se localizava o 4® comissariado. Poste
riormente, em 1898, foi criado nas Ilhas Fronteiras o 9® distrito. Tomando-se a
partir do 1- distrito a Estrada do Meio (atual Avenida Protásio Alves) como di
visória, o 2- distrito ficava ao sul daquela, compreendendo o Campo da Reden
ção, Cidade Baixa, Praia de Belas, Menino Deus e Azenha até o fim dos limites
urbanos estabelecidos em 1892. O 3- distrito se localizava ao norte da Estrada
do Meio, abarcando os atuais bairros Bonfim, Rio Branco, Independência,
Moinhos de Vento, Floresta e Navegantes. O 2- e o 3- distritos foram divididos
cada um em três comissariados. Após a separação das Ilhas Fronteiras do 1® dis
trito, ambos ficaram com um território bem mais extenso que este.
O 4- distrito era constituído pelos subúrbios da capital, compreendendo
toda área fora dos limites urbanos desde o bairro Navegantes até o Menino
Deus e incluindo a povoação de Belém Velho e o Arraial da Glória. Foi tam
bém dividido em dois comissariados. A povoação de Belém Novo e adjacên-

^PORTO ALEGRE. Intendência Municipal. Ato n'- 17 do 4 de setembro de 1896. Arquivo His
tórico de Porto Alegre.
^Segundo reccnseamento de 1900, o 1'- distrito tinha 20.970 habitantes, o 2- distrito 12.228
habitantes, o 3- distrito 16.124 habitantes e o 4- distrito 10.073 habitantes. Todos os outros
distritos tinham menos de 4.000 habitantes. Sinopse estatística do município de Porto Ale
gre. Porto Alegre: Globo, 1940. p.22.

70
cias, ao sul do centro da cidade, formava o 5- distrito. Os outros três distritos
que compunham o extenso município de Porto Alegre se localizavam do ou
tro lado do Guaíba. Eram eles a povoação de Pedras Brancas (6- distrito), Barra
do Ribeiro (7- distrito) e a colônia de Mariana Pimentel (8- distrito), cada um
destes formando um só comissariado.
A divisão distrital da capital tinha como objetivo facilitar a ação poli
cial, estabelecendo detalhadamente a área de atuação de cada destacamen
to. Segundo o regulamento da Polícia Administrativa, em cada distrito ha
veria um Subintendente com funções policiais e em cada comissariado um
posto policial com um xadrez, a cargo do comissário de polícia e de seus
subordinados, os vif^ilantcs. Assim, de acordo com os planos da Intendên-
cia da capital, seriam instalados dentro dos limites urbanos três Subinten-
dências e nove postos policiais, sendo o centro da cidade a zona mais es
quadrinhada pela atenção das autoridades, pois em relação ao segundo e ter
ceiro distritos sua área era a menor.
Esta atenção se justificava, pois, além da concentração populacional, o
centro deveria ser a vitrina de Porto Alegre. No final do século passado exibia
a beleza de sobrados, lojas e prédios do governo, mas também a feiúra de cor-
tiços, tabemas, quitandeiras e carroceiros.Através da leitura de jornais da época,
percebe-se como era incômoda e preocupante (para os mais abonados) essa
convivência entre o que era considerado belo e feio, civilizado e atrasado. Os
homens de jornal exigiam da Intendência Municipal providências no sentido
de organizar um espaço que lhes parecia desordenado.A par da organização e
fiscalização do trabalho dos ambulantes e dos serviços públicos, os principais
alvos das críticas de jornais como a Gazetiníia e a Gazeta da Tarde eram os
"sórdidos e nauseabundos" becos,^ os cortiços, tabernas e bordéis, ou seja, as
"espeluncas" e seus "degenerados" freqüentadores.

O DESENVOLVIMENTO DO OLHAR VIGILANTE

A principal função do vigilante era a de ser "inexorável e constante perse


guidor dos gatunos, dos malfeitores e das pessoas mal-intencionadas ou de cos
tumes viciosos". Para tanto, deveria tratar de conhecê-los bem para vigiá-los me-
Ihor, gravando na memória a sua fisionomia e o nome ou alcunha dos "ratonei-
ros" conhecidos, indagando de "seus costumes, seus cúmplices habituais e todas
as circunstâncias que levem a conhecer a suasmás intenções e evitar seus crimes".
O regulamento da Polícia Administrativa é bastante detalhado tanto na

'Expressões de Ferreira (194Ü, p.l6-18).


'•Em minha dis.serlação de mestrado analiso as representações sobre os becos, espeluncas e
seus moradores e/ou freqüentadores divulgadas nestes dois jornais porto-alegrenses da dé
cada de 1890, constantes do acervo do Museu da Comunicação Social Hipólito José da Cos
ta e do Arquivo Histórico de Porto Alegre. (Mauch, 1992.)

71
definição das competências dos policiais quanto na maneira como estes de
veriam cumprir suas funções.
Assim sendo, recomendava que cada vigilante deveria empregar todos
os meios para ficar conhecendo os habitantes da região por ele policiada, a
fim de poder "proteger eficazmente suas pessoas e propriedades". Teriam de
estar sempre atentos ao serviço, pois quando percebessem algum indivíduo
disposto a praticar alguma contravenção ou crime deveriam tentar demovê-lo
da intenção. Advertidos do fato de que não podiam nunca prender alguém salvo
em flagrante delito ou sob ordem escrita de autoridade competente, os vigi
lantes, entretanto, deveriam anotar o nome e endereço dos contraventores. Caso
estes se recusassem a fornecer essas informações, não portassem nenhum do
cumento de identificação ou parecessem ter "dado nome ou domicílio supos
to", o agente policial poderia "convidar" o indivíduo a comparecer à presença
de um comissário para justificar-se.
Nas ruas, os vigilantes tinham que percorrer incessantemente a seção a
seu cargo no percurso e espaço de tempo determinado pelo comissário res
ponsável pela área. Era-lhes expressamente proibido parar para conversar en
tre si ou com outras pessoas, principalmente "mulheres públicas", a não ser
por imperiosa necessidade do serviço.
Conhecer bem para vigiar melhor: trata-se, portanto, de vigiar os indiví
duos suspeitos o tempo todo e em toda a cidade. A intenção das autoridades
municipais seria promover um esquadrinhamento do espaço urbano através
da constante circulação dos vigilantes por uma Porto Alegre retalhada em dis
tritos, comissariados e seções policiais.
Com a descrição das funções dos policiais administrativos, pode-se ob
servar uma ênfase no controle sobre um determinado padrão de ordem pública
e moralidade que deveria vigorar no espaço urbano (Storch, 1984/1985, p. 7-
33). Poder-se-ia mesmo dizer que se encontra expressa no regulamento da Polí
ciaAdministrativa não apenas intenção de prevenir o delito e controlar o espaço
público, mas também de produzir novos comportamentos e atitudes "civiliza
das", uma vez que os vigilantes tinham uma missão explicitamente educativa.
No nível das intenções dos governantes da cidades, o projeto da "nova polícia"
parece estar muito mais preocupado com o aprimoramento da táticas de polici
amento ou aplicação das leis do que com as leis propriamente ditas.^ A opção
por controlar a desordem urbana através de um policiamento preventivo, antes
instituidor do que repressor de comportamentos, representa, pois, uma crença
na eficácia de recursos disciplinares.
A Polícia Administrativa, com a instalação de seus diversos comissaria
dos pelo município, pretendia estender o controle policial sobre a população

^"... enquanto a tinalidadc da soberania é ela mesma, c seus instrumentos têm a forma da lei,
a llnalidade do governo está nas coisas que ele dirige, deve ser procurada na perfeição, na
intensificação dos processos que ele dirige e os instrumentos de governo, em vez de serem
constituídos por leis, são táticas diversas." (Foucault, 1988, p.284).

72
em geral, mas, acima de tudo, sobre os suspeitos. Quem seriam, então, esses
suspeitos, ou melhor, quem deveria ser considerado suspeito pelo vigilante?
Certamente encabeçam o rol de pessoas que deveriam ser vigiadas as
prostitutas, os "bêbados por hábito", gatunos e turbulentos. Assim, cabia ao
vigilante em seu trabalho nas ruas operar uma classificação dos indivíduos, a
fim de poder reconhecer os suspeitos e de não confundir delinqüentes em po
tencial com "bons cidadãos". Mas com base em que tipo de conhecimento o
policial opera essas distinções?
Como diz o historiador carioca Marcos Bretas (1988, p.l32), na época
em questão os métodos de identificação prescritos pela criminologia positi
vista ainda não tinham sido incorporados pela prática policial, e a rapidez das
transformações sociais dos anos iniciais da República contribuía para diluir
alguns dos símbolos formais de reconhecimento entre as pessoas.
As ruas seriam o espaço de circulação do poder discricionário do polici
al. Tendo o dever de manter a ordem e moralidade no espaço urbano, o policial
defronta-se no dia-a-dia com uma série de acontecimentos e conflitos não pre
vistos em lei ou nos regulamentos da corporação. Ele acaba, então, tomando-se
intérprete das leis e um árbitro de normas morais e sociais.A fim de evitar que o
necessário espaço de discricionariedade do agente policial transforme-se em
espaço de pura e simples arbitrariedade, a polícia deve investir no treinamento e
profissionalização de seus membros. Mas, na medidaem que a formação do"bom
policial" pela instituição torna-se deficiente, o agente vê-se na contingência de
tomar decisões baseadas quase que unicamente na sua própria apreciação dos
indivíduose dos conflitos. De forma que, ao classificarou distinguir os indiví
duos através da atribuição de valores à sua cor, sexo, idade, posição social e na
cionalidade, o policial certamente estará ativando estigmas sociais culturalmente
aceitos. Ou seja, avaliações calcadas no senso comum, mas também mediadas
pela sua posição enquanto membro da instituição policial. Para Marcos Bretas
(p.89-90), este saber policial forma-se no contato cotidiano do agente de polí
cia com a população, e é a partir deste contato, muitas vezes conflituoso, que a
própria instituição vai elaborar suas estratégias de atuação.

OS SUBINTENDENTES

Com a criação da Polícia Administrativa foram também regulamentadas


as atribuições dos subintendentes, auxiliares imediatos do intendente de Por
to Alegre encarregados de exercer as funções de polícia nos seus respectivos
distritos.
Ocorre que o significado do \Qxbopoliciar era mais amplo do que aque
le que costumamos atribuir hoje às funções da instituição policial. Policiar sig
nificava não somente perseguir suspeitos e bandidos, mas também cuidar, por
exemplo, da limpeza pública. Entre as diferentes atribuições dos subintendentes
de polícia constavam:

73
A inspeção do serviço de limpeza das vias públicas e quintais particulares, bem
como da remoção do lixo das casas de habitação, comercio e indústria;
A inspeção do serviço de remoção de matérias fecais e águas servidas.''

A fim de verificarem a boa execução desses serviços, os subintendentes


eram instruídos a fazer "visitas domiciliárias". Deveriam também zelar pela
boa conservação de ruas, estradas, pontes e edifícios municipais existentes em
sua circunscrição," além da fiscalização do tráfego de veículos e do controle
sobre o comércio de armas e pólvora previstos nas posturas municipais. Para
melhor exercer suas diversas funções, os subintendentes nomeados pelo in
tendente eram "obrigados a residir em seus distritos" (palavras do regulamen
to), devendo instalar-se na área central de cada distrito, em local previamente
aprovado por seu superior.
Percebe-se claramente que tratar do asseio público, da extinção de in
cêndios, da prestação de socorros, da boa conservação dos equipamentos ur
banos, da inspeção dos divertimentos públicos por um lado, e por outro con
trolar e reprimir prostitutas, bêbados e turbulentos, são apenas dois lados da
mesma moeda: a manutenção da ordem pública.
No seu sentido original, o i&imopolícia dizia respeito às táticas de bem
governar uma população (Foucault,1988, p.281 e 293). E assim que se pode
compreender que as funções ditas policiais eram muito mais abrangentes do
que as que hoje lhe são atribuídas, pois a garantia da segurança de uma popu
lação era entendida como o controle sobre o abastecimento, a circulação, a
salubridade e saúde públicas,o trabalho, a "moral pública". Não é sem razão,
portanto, que no Brasil do século 19 as posturas municipais chamavam-se de
posturaspoliciais e deveriam regulamentar tudo quanto dissesse respeito à po
lícia, economia das populações e urbanização (Weber, 1992, p.58).
Posteriormente, a própria especialização das funções de governo do Es
tado acaba por retirar da competência da polícia propriamente dita uma série
de encargos.Aliás, o mais apropriado é dizer que a instituiçãopolicial se cons
titui como tal nesse processode complexidade e burocratização do Estado, que
vai aos pouco separando funções e nestas especializando instituições.

INTENÇÕES ELIMITES DA VIGILÂNCIA POLICIAL


No regulamento da polícia há uma clara preocupação em fazer com que
os vigilantes.tivessem conduta exemplar tanto nas rondas como nos seus ho
rários de lazer. Entre as condições para serem admitidos na Polícia Adminis-

"PORTO ALEGRE. Intcndcncia municipal. Ato n.20 dc lOdc outubro de 1896. Arquivo His
tórico de Porto Alegre.
"PORTO ALEGRE. Intendcncia municipal. Ato n- 1 de T- de outubro de 1892. Lxi orgânica
do Município de Porto Alegre. Arquivo Histórico de Porto Alegre.

74
trativa constavam a alfabetização e "inteligência necessária para o serviço",
além do usual atestado de moralidade e boa conduta.
Todos os agentes da polícia deveriam ter sempre em mente a importân
cia de sua "missão social", dando, para tanto, exemplo de moralidade, isto é,
"ser honrado, de bons costumes, circunspecto e de maneiras delicadas", além
de escrupuloso nos seus deveres cívicos e privados. Isto significa que eram
obrigados a abster-se do jogo, bebida e convivência com pessoas de "má con
duta". Mesmo em dias de folga, não deveriam tomar parte em diversões de
seriedade duvidosa, como "bailes públicos, mascarados ou não". Diz o artigo
84 do regulamento: "em suas relações de família deve observar uma conduta
exemplar, porque o agente que tenha faltas graves na vida privada, carece da
moralidade necessária para fazer parte da polícia municipal"."'
O policial também era instruído no sentido de não abusar no uso de ar
mas, só as utilizando em defesa própria ou quando tivesse esgotado os meios
persuasivos para submeter o delinqüente. Deveria ser "prudente sem fraque
za, firme e enérgico sem violência, cortês e amável sem baixeza, para inspirar
confiança aos bons e infundir receio aos maus". Para conquistar a simpatia
dos cidadãos, só se apresentaria em público com asseio no corpo e limpeza
no uniforme, bem penteado e de cabelos cortados. Nunca poderia dar gritos
ou usar palavras obscenas, alcunhas ou "ademanes desenvoltos".
Em suma, cada membro da Polícia Administrativa deveria ser um gen-
tleman, exemplo de comportamento para vadios, bêbados e turbulentos. O re
gulamento visava formar uma polícia eficiente, mas que conquistasse a sim
patia da população porto-alegrense para sua prática cotidiana. As autoridades
municipais mostram-se plenamente cientes do fato de que a conduta violenta
da polícia provocava resistência por parte dos delinqüentes e criava "antipa-
tias" e "sentimentos hostis" na população.
Medidas como o estabelecimento de um regime de trabalho de oito ho
ras diárias e a preocupação com a vida privada do agente da Polícia Adminis
trativa fazem parte da tentativa de profissionalizar o serviço policial munici
pal. Essa profissionalização implicava a construção de um novo sujeito, o "bom
policial", funcionário público e cidadão exemplar. As atitudes exigidas do po
licial na sua vida pessoal serviriam para demarcar a distância entre este e os
"malfeitores" que deveria perseguir. Daí a recomendação de que não estabe
lecessem relações de amizade com vizinhos e moradores de sua circunscri-
ção, embora o agente devesse conhecer a todos, a fim de poder melhor vigiá-
los. Ou seja, o vigilante teria que descolar-se da comunidade para poder nela
exercer suas funções.
A intenção do poder público de organizar uma polícia eficiente, moder
na e civilizada esbarrou, entretanto, nas deficiências da profissionalização do
serviço e na resistência criada pela população contra a interferência do polici-

PORTO ALEGRE. Inlcndcncia municipal. Ato n- 20 dc 10 de outubro de 1896. Arquivo


Histórico dc Porto Alegre.

75
al no seu cotidiano. Os indícios sobre as falhas na formação do policial sur
gem nas críticas ao seu mau comportamento publicadas pela imprensa e em
documentos da própria instituição.
Descontando-se as simpatias ou antipatias dos jornalistas porto-alegren-
ses com relação à Polícia Administrativa, diversas de suas críticas eram pro
cedentes. Consultando a "Matrícula geral de pessoal da Polícia Administrati
va do 1- posto" percebe-se que muito poucos dos indivíduos que tiveram ali
registrada sua passagem se assemelhavam à figura do "bom policial" desenhada
no regulamento."
O regulamento da instituição só permitia a admissão de homens alfabeti
zados com idade mínima de 21 anos e moralidade atestada por cidadão idôneo.
Não foi possível apurar o modo como era feita a seleção dos policiaise nem que
tipo de tratamento recebiam, mas a matrícula dos agentes mostra que muitos
entravam para a corporação sem preencher os requisitos exigidos, e que a maior
parte dos vigilantes não permanecia por muito tempo no emprego. Com base
nos dados da matrícula, ressalvadas suas limitações, pode-se dizer que o ingresso
na Polícia Administrativa se colocava como opção de emprego para diversas
profissões, mas, acima de tudo, para trabalhadores não qualificados e militares
de baixa patente no exército. Destes últimos, a maior parte era natural de outros
estados do país, principalmente da região nordeste.
A grande maioria dos policiais cometia, ao longo do período em que per
manecia na corporação, diversas infrações ao regulamento. Contrariando fron-
talmente as regras de bom procedimento enumeradas acima, os vigilantes
quando em serviço eram encontrados dormindo em soleira de portas ou em
bancos de praças; conversando com prostitutas e vagabundos; promovendo
desordens e brigas e bebendo em botequins.
Muitas punições registradas referem-se a infrações cometidas pelos vi
gilantes fora de .seu horário de trabalho, de forma que os registros corroboram
versões jornalísticas segundo as quais os agentes da PolíciaAdministrativaeram
desordeiros habituais e freqüentadores de bodegas "suspeitas".
Diantede.s.ses dados desabonadores, o projetode formação do "bom po
licial" e da "nova polícia" parece desmanchar-se. O "moderno" e detalhado
regulamento não era seguido rigorosamente pelas próprias autoridades e, sis
tematicamente, era desobedecido pelos vigilantes. A moralidade dos agentes,
considerada essencial para a eficiência do policiamento, era duvidosa.
Dentre os aspectos que desde já depõem contra a profissionalização dos
agentes está a forma de acesso ao cargo. Ao que parece, critério mais importan
te de admissão não é idade, moralidade, alfabetização ou qualificação profissi
onal, mas uma relação "de empenho" com pessoas de confiançado governo es
tadual. A lista dos "cidadãos idôneos" que forneceram atestado de conduta aos
candidatos à Polícia Administrativa se descortina como uma lista majoritaria-

" PORTO ALEGRE. Inlcnclcncia municipal. Matrícula geral do pessoal da Polícia Administra
tiva do 1- posto. Arquivo Histórico de Porto Alegre.

76
mente composta de cargos militares, onde se destacam os tenentes-coronéis
Marcos Alencastro de Andrade e Aurélio Viríssimo de Bittencourt, homens da
estrita confiança dos líderes do Partido Republicano Riograndense (PPR).
E provável que os atestados de conduta fossem utilizados como forma
de aproximar da máquina governamental setores populares aspirantes a um
emprego na Polícia Administrativa, à maneira dos procedimentos definidos
por José Murilo de Carvalho como "estadania".'-
Embora seja óbvio que o aspirante a policial que apresentasse atestado
de conduta fornecido por elementos de confiança do PRR teria potencialmen
te mais chances que outros que não o fizessem, não se sabe qual a vantagem
que qualquer um dos matriculados levava em abandonar sua atividade anteri
or para ingressar na Polícia Administrativa. Os jornais falam sobre os baixos
salários e desmoralização da profissão de policial frente à população. O Esta
do pretendia melhorar a imagem do policial, mas o indivíduo se veria na obri
gação de adequar sua vida pessoal às normas de comportamento prescritas pela
instituição. Ou seja, é como se o ingresso na Polícia Administrativa devesse
significar para um indivíduo o ingresso num outro modo de vida. Como diz
Eduardo Silva, o fato de os policiais em geral pertencerem à mesma categoria
social e viverem nos mesmos espaços que aqueles que deveriam ser objeto de
sua atenção e ação pode, por um lado, facilitar a perseguição, mas, por outro,
reforça as possibilidades de acordo.'-^
De outra parte, tirando-se as punições disciplinares, não parece ter havi
do muito empenho da própria instituição policial em formar/educar seus agen
tes de acordo com o modelo do "bom policial". A alta rotatividade do pessoal
indica que os vigilantes ou não encaravam a polícia como carreira, e sim como
um emprego como qualquer outro, ou que consideravam os custos do efetivo
ingresso na carreira mais elevados que as vantagens daí advindas.
A pretendida profissionalização e racionalização do policiamento urbano da
capital dependia da construção de um certo aparato burocrático que tratasse de
controlar o próprio processo de racionalização, ou seja, de controlar a aplicação
do regulamento e a formação do "bom policial". Embora a criação da Polícia Ad
ministrativa representasse um passo importante nesse sentido, parece ter faltado
ao governo municipal tanto condições materiais como a decisão politico-admi-
nistrativa para colocar o projeto em andamento por completo. Disso resulta a difi
culdade de encontrar-se, seja nos documentos policiais, seja nos jomais, indícios
da presença do "bom policial" nas ruas da cidade no final do século 19.

'-0 autor contrapõe à cidadania a noção de "c.stadania", pela qual a participação política sc
dá "não através da organização dos interesses, mas a partir da máquina governamental, ou
em contato direto com ela." (CARVALHO, 1987, p.65)
""Tiveram a mesma origem, a mesma infância; moravam no mesmo cortiço, na mesma es-
talagem, no mesmo sul5Úrbio. Eram vizinhos e conheciam as manhas do inimigo. A perse
guição por isso era implacável; o acordo, sempre possível." (SILVA, 1988, p.35)

77
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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neiro. Dissertação de mestrado. lUPERJ, 1988. p.l32.
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não foi. 2. cd. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.65.
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bo, 1940. p.16-18.
FOUCAULT, Michel. M/cra//'v/ca do poder. 1. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988 p.284.
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sileira de História. São Paulo, ANPUH-Marco Zero, v. 5, n.8/9, p.7-33, set. 1984/
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Porto Alegre no século XIX. Di.ssertação de mestrado. Curso de Pós-graduação
em História. UFRGS, 1992. p.58.

78
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anderson zaiewski vargas
a cidade como artifício corruptor

Em 19 de março de 1919, publicou-se na primeira página do jornal O


Independente, de Porto Alegre, uma matéria intitulada "O Apóstolo do Natu
rismo". Nela noticiava-se a passagem pela capital gaúcha de Bliezer Kame-
netzki e sua conferência, no Club Caxeiral, às 8 h de um sábado, sobre os pro
blemas da alimentação, habitação, vestuário, costumes, exercícios físicos. E
comentava-se que

Com muita singeleza, e não menos inspiradamente, abordou transcendentes


problemas de ordem moral, combatendo o luxo, os horrores da guerra, as es
peculações da indústria, o fumo, o álcool e a vida artificial das cidades {O
Independente, 19/3/1919)

Exatamente uma semana depois, outra matéria do jornal esclarecia que


à vida artificial das cidades Eliezer Kamenetzki contrapunha uma existência
alternativa,

uma vida simples, harmônica com a Natureza, higiênica, moral, elevada pe


los sentimentos e pelas ações, excluindo o luxo, os preconceitos de moda, os
vícios, o assassinato dos homens e dos animais. {O Independente, 26/3/1919)

Na Porto Alegre do início do século, na mente dos intelectuais d'O In


dependente, entre outras concepções da vida urbana, pensava-se por vezes na
cidade como uma criação humana que corrompia o homem ao afastá-lo da Na
tureza. Em 1919, em menor grau que durante o entusiasmo ádiânsia de civili
zação^ do início do século, os redatores e colaboradores do periódico defen-

Anderson Zaiewski Vargas é professor assistente no Departamento de História da Univer


sidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
' A expressão ânsia de civilização designa a preocupação daqueles intelectuais de civilizarem a
cidade atravésda ação do Estado,eliminandoas áreas pobres ou miseráveis, eliminado também

83
diam o progresso urbano, mas lamentavam suas conseqüências, uma contra
dição comum a outros intelectuais modernos.-A imagem da cidade como an-
tinatural, corruptora, era usualmente invocada em meio a juízos negativos e
moralistas da realidade. Tais juízos ameaçavam com a decadência da socie
dade para defender a regeneração dos costumes conforme um princípio natu
ral, a-histórico e inumano.
Analisa-se aqui a concepção, presente nas páginas d'O Independente e
de longa história no mundo ocidental, que atribui à cidade, como a todo arti
fício (aquilo que é produto da ação humana), um potencial corruptor de uma
suposta natureza primordial. Uma representação que contém ressonâncias bí-
blico-mitológicas - imaginando a existência humana como devedora de uma
instância transcendente e partilhando de uma visão negativa da liberdade hu
mana - e extremamente adequada a ideologias que aspiram à transformação
da realidade.^

Ao longo da história, o homem tem recorrido à idéia de uma ordem exte


rior, eterna e imutável, imaginando-a como sede do fundamento social. Ela é
indissociável da concepção de mundo de sociedades arcaicase encontra-se em
diversos mitos de criação. Se, por um lado, este quadro de pensamento revela
a recusa do homem em assumir a singularidade de sua existência, por outro.

os próprios miseráveis - pela educação, repressão ou expulsão para lugares emios da cidade
ou do país (Acre e Maio Grosso) criando uma cidade com estrutura urbana, arquitetura,
habitantes e hábitos condizentes com o progresso pretendido. Esta preoeupação foi manifes
tada freqüentemente, e, muitas vezes, de forma exaltada.
^"O mundo moderno comporta duas grandes avaliações sobre seu progresso. Uma delas o
interpreta como a vitória da luz, do saber, do conhecimento sobre as trevas, a superstição, a
ignorância c o erro. A outra vê a história como um processo de declínio, de decadência mo
ral do homem. Para a primeira a história do Ocidente significou um avanço de igualdade e
da racionalidade. Para a segunda, as conseqüências do progresso foram muito pesadas, in
cluindo a anomia, a alienação. Rousseau como que partilhava destas duas interpretações;
deseja o progresso, mas critica o seu preço" (Oliveira, 1990, p. 35-36). Os intelectuais d'0
Independente tinham a mesma postura de Rousseau.
^Este artigo, sob o ângulo da análise ideológica, c uma continuação da pesquisa que resultou na
dissertaçãode mestradosobre o pensamento descontente dos intelectuais d'0 Independenteinti
tulada "Os subterrâneos de PortoAlegre", Imprensa, ideologiaautoritária e reformasocial (1900-
1919). Pensamento descontente, expressão de Clément Rosset (1989, p. 29), designa o pensa
mento inconformado daqueles indivíduoscom a realidadede seu tempo. Com diversosaspectos
desta realidade ao longo de quase vinte anos, especialmente o atraso da cidade e a presença dos
inferiores, julgada ameaçadora ao futuro da sociedade. A análise dessa ideologia procurou de
monstrarseu caráter autoritárioe, mais precisamente,sua dependência de um esquema de pensa
mento que imaginava a sociedade como um sistema de costumese que, a partir da análise dos
comportamentos individuais, defendia a regeneração da soeiedade acenando com ameaça de de
cadência do organismosocial afastadode sua naturezaoriginal. Uma forma moralistade pensara
realidade que persiste até hoje quando, por exemplo, reduzem-se os problemas de um país ao di
agnóstico de crise moral dos indivíduos.

84
tem servido para justificar, graças à objetividade inconteste de uma ordem
imutável, projetos particulares de ordenação da realidade. Imaginar tal ordem
exterior é pensar segundo um código que acompanha o homem desde os perí
odos mais remotos de sua história. Este código implica uma negação da auto
nomia humana e revela um misto de medo e preconceito frente ao homem,
sua liberdade, e os produtos de sua ação, refletido na conotação negativa de
todos os termos ligados ao artifício. Para compreensão disto, é preciso anali
sar uma onipresente idéia de Natureza.
Uma "ilusão ancestral e inextirpável" acompanha a humanidade, a ideo
logia naturalista, a

doutrina segundo a qual a natureza existe, isto é, a forma gerai da crença de


que alguns seres devem a realização de sua existência a um princípio alheio
ao acaso [matéria] e aos efeitos [artifício] da vontade humana. (Rosset, 1989a,
p.24)

Clément Rosset refere-se às representações naturalistas que afirmam a


existência de naturezas - humana, vegetal ou animal - como resultado da ação
de um princípio transcendente a toda circunstância, seja ele denominado Deus,
lei, energia, ou simplesmente Natureza. Um princípio ao qual é atribuído o
fundamento inumano de tudo o que existe, e que pode ser utilizado como pa
râmetro de avaliação da realidade, de pressuposição da existência de umnexo
natureza-sociedade, com importantes conseqüências normativas.
Esta idéia de natureza tem acompanhado a história do homem desde o
momento em que o homo sapiens registrou, nas paredes das cavernas, as re
presentações de suas relações práticas e emotivas com o mundo exterior, quando
já estava presente

O scnlimcnlo, a intuição ou a concepção de uma realidade que o dominava,


hostil ou benigna, e da qual ele próprio dependia, [que] assumiram os contor
nos de uma divindade poderosa, volúvel e estranha. (Casini, 1987, p.8)

A compreensão de que "as diferentes ordens culturais têm seus modelos


próprios de ação, consciência e determinação histórica - suas próprias práticas
históricas", não significa a inexistência de regularidades ou, como ressalvou
Marshall Shalins (1990, p.63), tipos estruturais. E é certo que não há registros
de sociedades ditas primitivas que tenham prescindido de atribuir a uma ordem
externa a sua razão de ser, a razão de ser do mundo. O que Mareei Gauchet de
nominou de dívida constituidora do sagrado, ou dívida do sentido, corresponde
a um polêmico desejo áeheteronomia.'^ Sejam quais forem os móveis de tal con-

•' Em A divida do sentido e as raízes do Estado, Mareei Gauchet argumenta que o desejo de
heteronomia resulta da opção humana por constituir uma sociedade una pela submissão
de todos ao invisível, o responsável pela razão de ser da sociedade (Gauchet, 1980, p.51-
88). Clément Ros.sct classifica a idéia de Natureza como uma ilusão, sendo assim, de acordo
com S.

85
cepção, foi o seu rompimento, com a pólis grega e a democracia ateniense, o
propiciador do surgimento de uma organização social autônoma, que tomou os
homens conscientes da sua história como história humana.^A pólis democráti
ca não representou a eliminação da heteronomia, de forma que a visão ou espe
rança religiosa de um mundo animado pode ser caracterizada como uma

aspiração e ilusão centrais do homem, de que deve existir alguma corres


pondência fundamental, alguma adequatio entre os nossos desejos ou nos
sas decisões e o mundo, a natureza do ser [...] uma suposição ontológica,
cosmológica e ética, segundo a qual o mundo não é simplesmente algo no
sentido próprio e arcaico, uma ordem total que engloba a nos mesmos, a
nossas aspirações e iniciativas, como seus elementos centrais e orgânicos.
(Castoriadis, 1987, p.291)

Assim, invocar a Natureza é lançar mão de um esquema ancestral e ar


caico de pensar o homem e o mundo, contrário à autonomia e que, entre ou
tras coisas, revela a aceitação da existência com reservas de justificação ao invés
de sua aceitação incondicional (Rosset, 1989, p.lO). O que não significa afir
mar a equivalência de todas as representações que se utilizam de tal esquema.
Na cultura das sociedades orientais antigas, a heteronomia subentendia a sa-
cralização de tudo o que fosse significativo, inclusive as cidades.'^
Há outras implicações deste recurso à ideologia naturalista. Como as de
certas representações que se baseiam na existência de uma ordem natural das
coisas para elaborar e justificar suas propostas de ordenados da realidade; a
singela condenação de Eliezer Kamenetzki do artificialismo urbano, o com-
tismo, uma tentativa de transformação autoritária da vida social e muitas ou
tras.^ E, para compreendê-las, é preciso continuar examinando a idéia de Na
tureza, no sentido específico definido anteriormente.
Neste aspecto, a análise de Clément Rosset é reveladora. O cerne da ar
gumentação desse filósofo francês, defensor do acaso como a origem de to
das as coisas, é a demonstração da inexistência da natureza, ou a demonstra-

Freud, da ordem do desejo,de caráter irracional e irredutível à análise tal como o racismo(Ros
set, 1989, p. 26-28). Porém,em outros momentos, Rosset indica uma razãoespecial para tal de
sejo irredutível:o de configurar"uma instânciaperene adequadaparao homemque acredita nela
estar mergulhado consolar-se de não ser senão instância frágil c insignificante, e reunir, para
alcançar essa configuração, o diverso em um sistema que, psicologicamente falando, assegura
ao homem um aconchego tão tranqüilizador quanto presença de uma mãe", (ibid., p 10)
'Conforme Vernant (1984). Esta transformação é utilizada por Marshall Sahiins na caracteri
zação do tipo estrutural da história heróica. O surgimento da pólis, e posteriormente da de
mocracia, constituiu a substituição de uma prática histórica baseada na consciência de elite,
do soberano divino responsável pela ordem social e natural, por uma prática mais coletiva
(Op. cit., p.61-62).
'Ver Eliade (1988).
^A análise do comtismo, nos termos gerais deste artigo e de uma forma sistemática, foi feita
quando da pesquisa sobre a ideologia dos intelectuais d'0 Independente.

86
ção de que natureza é um nada a partir do qual se pensa muita coisa, como a
metafísica e a conduta humana.
A idéia de natureza, tal como a define Rosset, pertence a uma trilogia
ontológica que distingue três grandes domínios na existência: o artifício (o
que é fruto da ação humana), a natureza e o acaso (ou matéria). De Platão a
Aristóteles, e até hoje, a definição de natureza nunca deixou de ser negativa:
ela é apresentada como o que não é fruto da ação humana ou do acaso.
Oposta tioacaso da matéria e às vicissitudes do agir humano, sl natureza
surge como uma zona de certeza, como o lugar da ordem e da necessidade.
Assim, a definição mais geral de natureza seria necessidade, enquanto a de
artifício e de matéria seria acaso. A necessidade natural transcenderia a to
das as formas de necessidade não-naturais, porque seria superior à ordem das
necessidades factuais {acaso) e arbitrárias {artifício) (ibid., p.l7).
Esta idéia de natureza implica um preconceito em relação àquilo que
é resultado da ação humana cuja característica é a imprevisibilidade. Uma
arbitrariedade que inclui a alternativa de arremeter contra a obra-prima que
é a natureza, dimensão transcendente do real. A liberdade humana significa
risco de corrupção de uma ordem natural, do que é imaginado como uma
forma espontânea de organização social ou de comportamento humano. O
homem tem, nesta concepção, uma aptidão inata para a degradação. Conse
qüentemente, as obras humanas, como as cidades, são qualificadas como
inferiores e corruptoras.
O problema é que sob a idéia de natureza nada existe. Ela permanece
indefinida nas enunciações negativas, e o silêncio persiste com a introdução
da idéia deforça natural, a que, por exemplo, faz crescer as plantas. Esta idéia
apenas fecha o círculo tautológico que aprisiona o conceito de natureza: "a
força natural não é nem inércia material nem o poder humano de intervenção,
tampouco é sempre alguma coisa pensada e definida", (ibid., p.l8). E, em ter
mos filosóficos, a força material decepcionante: silenciosa, invisível e impen
sável, quer dizer, irrepresentável (ibid.).
A natureza inexiste, ou seja, não é possível reduzi-la a um conceito. Ao
invés de algo pensável, encontra-se uma miragem, com o duplo caráter de uma
duplicação de imagens ("<2 natureza nunca se mostra sozinha^') e de cumpli
cidade ideológica ("a idéia de natureza sempre serve à instância não mate
rial que acompanha sua aparição*^). Nas palavras de Rosset,

Se interrogarmos a própria natureza, nada aparece, mas se interrogarmos o espíri


to, a liberdade, a natureza humana, surge sub-repticiamente, num ângulo dificil
mente localizável do horizonte intelectual, uma natureza, no interior da qual es
pírito, liberdade e natureza humana adquirem significação e realce, (ibid., p.l9)

Em todas as ú\sú\\ções,Natureza-História, Natureza-Espírito, o primeiro


termo não é só um signo de oposição, mas o referencial em relação ao qual as
distinções são feitas: o que dele se distingue recebe sua determinação, seu
significado a partir dele (ibid.). Natureza, tal como está aqui sendo conside-

87
rada, é o ponto de apoio para todos os temas metafísicos e para projetos de
normatização que aspiram à objetividade inquestionável.
A idéia de natureza é um nada a partir do qual se pensa muita coisa. Sua
indefinição, significando que nunca foram determinados os limites entre o que
é GO que não é natural, garante uma indefinida compossibilidade a todas as
proposições concernentes à natureza. Nunca tendo sido definida, esta vaga idéia
tem sido sempre oposta a

uma certa quantidade de fatos, atitudes e acontecimentos que ferem a sensibi


lidade de alguns homens, sendo antes de tudo a expressão de um desagrado,
não de uma idéia [...]. (ibid., p.23)

Rosset observa que a função ideológica da idéia em questão se desdobra


e se reforça neste ponto, como uma função de ordem eminentemente moral:
ela permite pensar não somente a metafísica, mas também a culpabilidade dos
homens. Uma culpabilidade decorrente da violação do sagrado e da conseqüen
te perda da melhor natureza possível. O homem é a genial criação divina, mas
o fulgor deste sucesso também implica risco e possibilidade de degradação."
A natureza é reputada como jogo de forças espontâneo e inocente, anterior a
qualquer degradação promovida pelo homem. Natureza que pode ser o mun
do perfeito dos mitos de criação, como o Paraíso bíblico.
A idéia de uma natureza anterior à degradação promovida pelo homem
é inerente a este tipo de mito, os mitos de criação (do mundo, da realeza, do
homem, da agricultura, etc.), analisados por Mircea Eliade.'' Relatos sagra
dos que têm entre os seus objetivos o de fornecer modelos de conduta para o
homem. Através da repetição dos atos primordiais, o homem arcaico garantia
a sobrevivência da criação, sob a forma perfeita da primeira vez. Este homem
reconhecia-se como real apenas quando imitava os gestos de um outro, dos
seres sobrenaturais. Essa repetição cotidiana de atos sagrados não impedia a
degenerescência do mundo, causada pelos pecados humanos, o que exigia ri
tuais de renovação do tempo para recuperação da pureza original.
A duplicidade destaidéiatorna-se entãocompleta: elaé nmnada a partirdo
qual se pensa a autonomia humana e a culpabilidade dos homens. Isso explicaa
orientaçãodesta idéiaáe natureza para temasmoraisindicados pelasconcepções
deprimitividade, autenticidade^ de "puroprecedendo àpoluição", (ibid.) Con
cepções que não são estranhas à doutrina católica que, pela idéia do pecado origi-
"Esta frase de Rosset faz parte de sua análise de Platão, o filósofo da degradação, idéia natura
lista por excelência. Pode,contudo, ser aplicada a outras ideologiasnaturalistas(Op. cit. p.215-
229).
"Nas obras de Mircea Eliade o mito c sempre um relato sagrado das origens de tudo o que c
significativo para os homensdas sociedades primitivas, antigas ou tradicionais, e sempre tem
o objetivo de forjar modelos de comportamento. Esta posição já foi muito questionada, bem
como sua mitologia comparada que ignora as particularidades históricas de suas fontes. Os
mitos podem diferenciar-se cm sua morfologia e cm sua função social devendo sempre se
rem analisados dentro de seu contexto histórico-social (Kirk, 1985, p.15-54).

88
nal, afímia a inferioridade e o potencial corruptor de tudo o que é humano.
Nas páginas do jornal pode-se sentir a influência desta concepção cris
tã, quando são invocados os exemplos clássicos de corrupção promovidos pelas
cidades.

Sabemos que em todos os tempos o vício evolui pari passu com o ritmo civili-
zacional. Babilônia, Atenas, Alexandria, Roma, Bizâncio, Paris, Viena, Lon
dres, os centros principais da civilização foram sempre os focos de todo o des-
regramenío, de todo o vício; mas não é esse nosso caso. {O Independente, 12/
3/1905)

Nesteartigo,atacava-se, como foi costumeao longoda históriado periódico,


as "bodegas das mas duvidosas", com seus botecos, prostíbulos, cortiços e habi
tações humildes. Em 1905, julgadas um sinal precoce da decadência que acom
panhava a civilização. Em outros momentos, civilização era o sonho daqueles in
telectuais que viviam numa cidade definida certa feita como "Aldeia Grande", afas
tada da "febre de melhoramentos" que atingia outras capitais do país."' Porém, na
matéria em questão, civilização, como símbolo maior da própria cultura humana,
é reputada como produtora do vício corrompedor da moral, da essência de uma
sociedade original. No caso, uma indefinida sociedade porto-alegrense anterior a
uma suposta degradação, possivelmente dos costumes tradicionais; costumes cuja
repetição é um dos elementos responsáveispela fabricação da miragem naturalis
ta (Rosset, 1989, p.Bü). Anos depois, continuava-seafirmando:

Ora, todos sabem que os laços, tão poderosos primitivamente, do costume ten
dem gradativamente a relaxarem de tal forma que a tendência do século XX é
toda de sublevação contra os austeros princípios da sã moral. {OIndependente,
25/9/1910)

Porque o homem tinha uma tendência inata para a degradação, pois era
evidente que,

Para uma completa vitória social dum povo, duma agremiação de homens ir
manados pelos interesses e pelas mesmas leis, a condição primeira é que uma
forte coesão de costumes ou de imposições legais que mantenham uma certa
diretriz sobre os atos e as tendências ruinosas de seus membros sem o que o
aniquilamento e a prostração moral são inevitáveis, (ibid.)

Ou seja, o homem entregue a si mesmo, a sua liberdade de ação e pensa


mento, tendia inevitavelmente à corrupção. Sem a "coesão dos costumes" e
sem a coerção legal, as tendências naturais e espontâneas do indivíduo conde
navam-no ao "aniquilamento e à prostração moral."

'"As constatações entreaspas foram escritas, respectivamente, nasediçõesde 5 de novembro e


29 de outubro de 1905 d'O Independente.

89
Nestas, e em outras matérias, desclassificavam-se certas áreas da cidade
graças à idéia de que existia uma natureza a ser corrompida. Uma entidade
indefinida, constituída na prática pelas posições particulares dos articulistas.
E permitiaexigências que ameaçavam com o caos da degenerescência social,
não descartando novamente o exemplo clássico de dissolução moral.

O que urge é desmantelar a corrupção, o vício e a degenerescência-, porque


doutra forma, a nossa sociedade encaminhar-se-á para o despudor, a deson
ra e o esgotamento moral, que são as causas inevitáveis do fracasso dum povo
e duma nação [...]
Assim morreu Roma, assim morrem todas as nações, que não tem a inteligên
cia e a sabedoria de estrangular o vício em seu leito de nascença.
Insistiremos no assunto, (ibid.)

Dada sua orientação moral comum, não é sem motivo que natureza e
decadência sejam usualmente palavras interligadas, constituindo a base de uma
concepção moral de realidade, que concebe a sociedade como um sistema de
costumes."
Ao longo da história da humanidade o desejo de heteronomia tem assu
mido diferentes formas e possibilitado diversas representações. Natureza, as
sim como decadência, é uma palavra imprecisa que serve para expressar um
desagrado preferentemente moral frente à realidade. Ela fornece um ponto de
apoio à expressão de desagrados particulares; é um refúgio para o pensamen
to ameaçado, pois permite afirmar que isto não deveria ser, que deveria ser
diferente (ibid., p.29). Da mesma maneira, sua imprecisão é que a capacita a
servir de apoio a diversas representações que retiram sua coesão desta impre
cisão essencial.
Natureza é o referencial que permite afirmar o declínio dos tempos e,
conseqüentemente, defender sua regeneração. Mas as variantes são grandes.
O referencial da idéiade decadência podeser, ao mesmo tempo, uma impre
cisa Idade de Ouro, quando tudo corria normalmente, quando a natureza se
guia seu curso, suas leis eram efetivas, ou simplesmente quando tudo era me
lhor, semviolência, drogas ou desumanidade, antes do desgaste inevitável pro-
'' Conceber a sociedade como um "sistema decostumes" corresponde aoque Paul Veyne deno
minou "sociologia ingênua". Sociologia que, de.sconhecendo ou ignorando as dimensões cole
tiva e material da realidade, explica-a pela análise dos comportamentos individuais. Na Anti
güidade e ate meados do nosso século, quando a história econômica conquistou um lugar de
destaque na di.sciplina hi.stórica. Julgaram-se os acontecimentos preponderantemente pelo in
divíduo e sua moral, quando não pela sorte ou pela divindade (Veyne, 1984, p.71-2; 1.x; Goff,
1990, p.408-409). Todos os diagnósticos de decadência examinados provêm da observação e
análise dos costumes da cidade.
'-Esta hipóte.se de desgaste promovido pela pa.ssagem do tempo baseia-se na interpretação que
Mircea Eliadc faz da especulação indiana que allrma a destruição c a criação periódica do Uni
verso. Nesta allrmação da decadência inevitável do Universo, Eliade identifica uma deprecia
ção metafísica da história, pois sua própria duração provocaria um desgaste de todas as for
ças, esgotando .sua sub.stância antológica. (Eliadc, op. cit., p.l29.)

90
movido pela passagem do tempo.'-
N'0 Independente, cujo proprietário foi presidente da agremiação tra
dicionalista Grêmio Gaúcho, a natureza original podia ser uma imagem do
passado rio-grandense.

O Rio Grande legítimo, o Rio Grande legendário não está representado nos
habitantes mesclados das cidades, nem das colônias, \'i\'e e palpita junto aos
fo^qões gaúchos, no giiasca, que alça a perna e corre o campo atrás da rês hra-
via, no tipo puro que tem honra e tem brio e que não vende a consciência e
nem avilta o caráter. (O Independente, 15/4/1918)

E possível identificar nesta atitude uma negação do tempo contínuo, uma


tentativa de exorcizar toda e qualquer mudança, de negar o mundo moderno.
Este é associado à corrupção da natureza, o "Rio Grande legítimo'", o qual,
apesar de tudo, podia ser recuperado pelo cultivo de tradição, através de uma
regeneração dos costumes, da moralidade individual. Em 1918, o tradiciona-
lismo gaúcho certamente ignorava o quão tradicional estava sendo ao atribuir
à sua imagem peculiar do passado rio-grandense a objetividade inconteste de
uma ordem exterior à qual a realidade degradada deveria ser reduzida.

A afirmação da artificialidade das cidades pode prestar-se aos mais diver


sos objetivos. Em todos os casos, supõe um esquema arcaico de pensamento,
oposto à autonomia e revelador de um preconceito frente ao homem e à sua li
berdade de ação. Preconceito simbolizado na conotação negativa do artifício,
tudo aquilo que é resultado da vontade humana, a própria cultura. Este quadro
de pensamento, baseado na heteronomia, pressupõe a existência de um modo
de vida natural, não convencional, superior pela sua qualidade de inumano. No
entanto, esta idéia é vazia, seu conteúdo varia de acordo com as concepções par
ticulares de seus enunciadores, que desfrutam da pressuposição generalizada de
que natureza significa objetividade, permanência e pureza.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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jan./jun., 1984.

gp
i

í
•. •, .íA-.ií^r-. J.J
carlüs robertü monteiro de andrade

confinamento e deriva:
sobre o eclipse do lugar público
na cidade moderna

As cidades modernas sempre foram marcadas pelo signo do confinamen


to. Nascidas amuralhadas, fortalezas novas como as cidades militares do Re
nascimento, ou herdadas do mundo medieval com seus espaços de clausura,
as cidades do capital são, antes de mais nada, aparelhos de captura.' Enquan
to máquina territorial, a cidade moderna é construída para controlar todo tipo
de fluxos, e esta característica irá configurar sua forma e as múltiplas imagens
que dela sáo feitas. Além do controle dos fluxos diversos que a atravessam -
da água e ar, aos homens, mercadorias e desejos -, como nó que une os fios
de uma malha, articulando-a em uma rede urbana, a cidade moderna também
exercerá o controle do olhar, disciplinando-o.
Henry Wotton afirmava, em 1685, que "o olhar é um sentido imperioso,
vagabundo e usurpador, náo suportando qualquer cautela";- tratava-se, portan
to, de educá-lo. A criação de novas sensibilidades, redefinindo o campo do visí
vel, estabelece relações de detenninaçáo recíproca com a instauração de novas
práticas sociais. Assim, a noção de paisagem dos teóricos do pinturesco^ pres
supõe separação e observação, formatando umolhar que a organiza como frag
mento e nela dissolve a arquitetura. Mas, para que sua fruição estética possa ser
plena, demandará vilegiaturase deambulações, exigindoespaços que ordenem
possíveis fluxos deriváticos e ampliem os modosde apreciação cenestésica.Alain
Corbin, ao tratar da construção da paisagem à beira-mar, chama a atenção para
essa domesticação dos corpos, por meiode"maneirasinéditas de postar-se, per
manecer na praia, sentar-se, estender-se na areia..."(199ü, p.J77). Em vez das

Carlos Kobcilo Montein) de Andrade c professor no Departamento de Arquitetura/Plane


jamento - EESC/USP.
'Tomo essa noção nosentido em que ela c exposta porGiiles Dcicuse e Fclix Guattari (1980,
cap. 12 e 13).
"Citado por Jo.seph Rykwerl (1982, p.l69).
'Ver a respeito John Dixon Hiint e Petcr Willis (1979).

97
viagens dos artistas do pinturesco, a cena urbana moderna demandará o passeio,
o ato de flanar por bulevares, ruas, praças e galerias.
Camillo Sitte, ao incorporar a tradição do pinturesco na teoria da cons
trução de cidades, abrirá o seu livro abordando tal questão com o seguinte pa
rágrafo: "Agradáveis lembranças de viagens são parte integrante de nossos mais
belos sonhos. Ante nosso olhar espiritual {geistigen Auge) deslizam praças,
monumentos, imagens urbanas {Stcidíehikler) adoráveis e belas paisagens
(Fernsichten), e fruímos (schwelgen) novamente o prazer de se demorar junto
a tudo aquilo de gracioso e sublime que, outrora, nos fizera tão felizes"
(p. 14). Visando re.sgatar a dimensão cívica dos espaços públicos, daí tomar o
fórum romano como tipo ideal, indicando sua filiação neoclássica, Sitte pre
coniza como princípio de desenho urbano a continuidade de edifícios dispos
tos concavamente, de modo a criar-se um espaço hípetro. Assim, como obser
va Dewitte (1987), situando o olho no centro do espaço, "a praça ou o pátio
formam uma curvatura harmoniosa e contínua que acolhe o olhar sem dificul
dade", Ao impedir que o olhar escape da praça - como sugere sua expressão
"nicht hinaussehen " —"o dispositivo visual do fechamento assegura a prote
ção do olhar contra um vazio que é também pura extensão sem referência";
com isso "as belas praças civilizam o olhar, domesticam, por assim dizer, o
excesso que está nele e o risco de barbárie que ele comporta", ainda conforme
sugere Dewitte em seu belo ensaio sobre Sitte.
Mas de onde vem essa vacuidade dos espaços da cidade moderna que De
Chirico nos mostra em suas pinturas metafísicas?André Corboz sugere uma res
posta ao apontar o emprego da noção newtoniana de espaço absoluto, tanto pe
los neoclassicistas quanto pelos arquitetos da geração dos CIAMs, vinculada a
uma poética das grandes dimensões que tem suas origens nos projetos urbanís
ticos do Iluminismo (projeto de Boullée para a reconstrução de Versalhes, por
volta de 1780; projeto de Antolini para o Fórum Bonaparte, em Milão, 1801).
Ao espaço isotrópico dos modernos, que pretende forjar imagens do ili
mitado, Sitte propõe um "campo qualitativo cujas propriedades são definidas
por seus limites e pelos objetos que nele estão imersos"(Corboz, 1993). Assim,
adotando uma abordagem topológica, ao analisar o espaço urbano a partir da
interação entre o espaço e os corpos que contém, Sitte reitera o princípio da hi
erarquia e subordinação, presente na unidade barroca, privilegiando certos es
paços da cidade, ao sugerir "que a grande massa de moradias seja consagrada à
labuta —nesta esfera, a cidade pode apresentar-se em roupas de trabalho, mas as
poucas praças e ruas principais deveriam poder apresentar-se em trajes domin-
gueiros, para a alegria e orgulho dos cidadãos, para o despertar do espírito cívi
co, para nutrir a juventude que aí vive o seu crescimento dos sentimentos gran
des e nobres"( p. 101).
O discurso de Sitte, longe do espírito romântico de que é com freqüên
cia acusado, resigna-se às imposições da técnica e da economia na construção
da cidade, mas ressalta seu caráter artístico, apontando para os efeitos que a
dimensão estética da cidade pode ter sobre os sentimentos e a moral dos cida-

98
dãos. A historiadora Michelle Perrot, ao estudar os valores que os operários
atribuíam à moradia e à cidade, em fins do século 10, observa que, ao contrá
rio de hoje, naquele período de formação da cidade moderna, os operários rei
vindicavam menos o direito à moradia que o direito à cidade.
De fato, conforme Perrot (1088), o mundo operário daquela época ainda
era móvel, quase nômade, centrando-se as reivindicações relativas à moradia so
bretudo na questão dos aluguéis, que aliás já estivera na origem da Comuna de
Paris. No bojo de suas lutas pela conquista do direito à cidade, manifesta-se nos
operários, como nota com argúcia Perrot, o cuidado com a apresentação, expressa
na expansão do item vestuário nos seus orçamentos domésticos, implicando uma
nova relação com o e.spaço público. Assim, a conquista do direito à cidade pe
los trabalhadores não se faz sem constrangimentos, regras e exigências de com
portamento que darão origem ao sentido de urbanidade que deve presidir as ações
do cidadão moderno, regulamentando o uso civilizado do espaço público.
Diferenciando o espaço da cidade, Sitte privilegia os espaços públicos
abertos, utilizados pelos trabalhadores apenas em dias de festa, e critica fir
memente o esvaziamento a que o urbanismo moderno na.scente os estava sub
metendo, com seus edifícios isolados na paisagem, separados por vazios des
comunais. A esta desertificação do espaço público, apontada por Sitte, cor
responde o confinamento de atividades que antes se faziam a céu aberto, em
praças, ruas ou terrenos baldios das franjas urbanas, como o teatro, jogos e
brinquedos, disputas esportivas, feiras, mas também refeições, conversas e
reuniões, todas com um tom marcadamente popular. Edifícios especializados,
como estádios, restaurantes, cafés, hipódromos, teatros e mercados, surgem
para atender as novas exigências de separação de certas práticas sociais do
âmbito da vida pública. A arquitetura disciplinar - do período do Granel Re-
fermement às estruturas panópticas que desenharão casernas, escolas, hospi
tais, asilos e prisões - fornecerá o modelo dos espaços habitacionais dos ope
rários. Pelas calçadas, ao longo de bulevares ou pelos novos parques urbanos,
percorrendo as alamedas de uma cidade-jardim, construída segundo a ideolo
gia heaiix-arts dos urbanistas do embelezamento e dos melhoramentos, pas
seará uma jovem burguesia ou uma elite trabalhadora, educadas e civilizadas
pela ordem urbana. Para a maior parte da clas.se operária restará a Berlim de
pedra com ^wíx^mietkascrncn denunciadas por Hegemann (1963),''e a perma
nência dos fenômenos da habitação "insalubre", "áreas deterioradas" ou do
homeless, coníirmam a manutenção da questão habitacional no cerne da crise
da cidade moderna.
A história da urbanística moderna é marcada pela luta dos trabalhadores
pelo direito à cidade, disputando o centro, mas também pela criação de mo
dos de morar confinados, em vilas operárias, conjuntos de habitação social,
subúrbio.s-jardins ou condomínios fechados, microenclaves urbanos que são
a expressão físico-territorial da segregação social e das profundas separações

Ver uni sumário des.se livro em Casahella, v.288, p.21-22, jiin. I%4.

99
que atravessam a cidade moderna - entre local de trabalho e local de moradia,
entre centro e periferia, entre público e privado.
A praça, para um Sitte nostálgico do mundo medieval, como o da tradu
ção francesa de Camille Martin, é a mesma praça pública presente na obra de
Rabelais, vista por Bakhtin (1987) como "o ponto de convergência de tudo
que não era oficial, (que) de certa forma gozava de um direito de 'extraterrito-
rialidade' no mundo da ordem e da ideologia oficiais, e o povo aí tinha sem
pre a última palavra". Mas a este caráter libertário da praça sitteana - sem dú
vida distinto da praça popular, pagã e subversiva de Rabelais - corresponde
uma evocação do .sentido moral da cité, a dimensão cívica e civilizatória de
uma arte pública que também foi chamada de urbanismo, arte cívica, planeja
mento urbano ou arte de construção das cidades.
A praça, enquanto lugar público em que .se enfrentam formas de socia-
bilidade antagônicas, é o cenário de exorcização das diferenças sociais por meio
do sentimento comunitário, portanto, palco privilegiado para a exibição dos
conflitos e seu enfrentamento através da palavra, dos gestos e posturas corpo
rais. Ao esvaziamento da praça corresponderá um silêncio de vozes - daí pro
vavelmente Sitte concordasse com Bakhtin de que "em relação ao período de
Rabelais, o século 19 foi um século de mutismo"-, mas também a imposição
de maneiras reguladas de comportar-se em público, heranças das etiquetas da
nobreza.''Não será à toa a coincidência no surgimento e difusão de três tipos
de códigos na cidade moderna de fins do século 19: o de posturas, o sanitário
e o de edificações e urbanismo.
A noção de conforto que determina o funcionalismo da arquitetura mo
derna, de Ledoux a Le Corbusier, como aponta Kaufmann (1982), construída
também pelos higienistas e engenheiros sanitários do .século 19, .se estenderá da
moradia à cidade como um todo. Responsável pela emergência de um certo pa
drão de privacidade, as.sociado a certos modos de vida doméstica, a "maquina
ria do conforto", como .sugere Beguim, visa "reformar a economia do bem-es
tar, não proibindo, nem reprimindo, mas substituindo um modo de satisfação
corporal cujos instrumentos e efeitos eram incontrolávei.s, por um bem-e.star cujos
meios de produção e os efeitos po.ssam ser controlados e utilizados (1991). Des.se
ponto de vista, tanto o banheiro moderno, com .seu interior asséptico, quanto os
shoppings-centers, com .seusma//.ç e "praças de alimentação", são máquinas de
conforto que regulam nossas vidas íntimas e públicas. Máxima exposição e trans
parência arquitetônica; máxima privacidade e i.solamento arquitetônico: dois
pólos antagônicos que tensionam formalmente a cidade moderna, .segmentan
do de modo brusco o público do privado, a massa do indivíduo.
Conforme sugere Sennett (1988), à morte da vida pública emerge uma
ideologia comunitarista que, da concepção da comunidade dentro da cidade,
como preconiza Sitte, passa a conceber a comunidade contra a cidade, como

^Ver a rc.spcito: Norbcrl Elia.s, O processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de
Janeiro: Zahar, 1990 (1939).

inn
querem os urbanistas do pós-guerra. As imagens das cidades contemporâneas
são pontuadas por enclaves que criam uma artificialização completa do coti
diano, em uma situação de isolamento onde as funções da cidade se interiori
zam conforme a pretendida auto-suficiência dos monastérios ou dos modelos
das utopias científicas pós-ilustração.
Na urbanística moderna que produz a cidade do século 20 e anuncia a ci
dade do século 21, dois tipos arquitetônicos e urbanísticos serão dominantes na
configuração da imagem da cidade: por um lado, o bloco isolado criticado por
Sitte, tal qual se manifesta nos blocos perimetrais das hõfes vienenses ou nas
siedliin^en da República de Weimar, e que resultará no superbloco da tradição
da iinitó habitacional de Le Corbusier, que, conforme Colquhoum (1978), ca
racteriza a paisagem da cidade moderna, ao definir "amplas zonas formadas por
enormes imóveis, cada um dos quais financiado, programado e desenhado como
uma entidade única: o superbloco" . Por outro lado, encontramos as paisagens
pinturescas, ainda que enclausuradas, dos subúrbios-jardins que passaram a con
figurar as áreas de expansão das principais cidades européias e americanas, onde
o ideal de vida comunitária é perseguido por meio de um desenho urbano inspi
rado em Sitte e na tradição norte-americana &ãcity beautiful, com um paisagis
mo pinturesco e uma arquitetura residencial tributária docottage rural e da"Red
House" projetada por Webb para Morris.''
Superblocos ou bairros-jardins, ou ainda a cidade verde e radiosa de Le
Corbusier pretendendo amalgamar essas duas características, ambos tipos te
rão em comum a negação da cidade naquilo que lhe é essencial - a vida públi
ca. Talvez, de fato, todo o urbanismo moderno - salvo Hilberseimer com sua
cidade sem qualidades, para quem "a metrópole não permite alternativas" e
nela qualquer familiaridade é uma farsa —possa ser visto como uma ideologia
antiurbana. Negando a cidade em seu sentido primordial, o bloco ou o condo-
mínio-jardim, através das diferenças de suas formas arquitetônicas, delimi
tam de modo diverso a fronteira entre o público e o privado.
Na concepção dos blocos isolados, praça e rua se diluem reafirmando a
idéia do espaço absolutamente newtoniano, infinito e homogêneo, estabele
cendo uma passagem bru.sca entre o público e o privado e reduzindo os espa
ços coletivos à função predominantemente circulatória. Já no desenho con
forme o tipo cidade-jardim, reitera-se a rua e a praça como espaços de conví
vio, ainda que vigiados e separados do resto da cidade, hierarquizando-se a
passagem do público ao privado através da criação de inúmeros espaços de
transição entre a intimidade e a vida doméstica, em um "home" que lembra a
cabana primitiva, e a exposição aos olhares dos vizinhos ou funcionários nos
pátios comuns e espaços coletivos.
A perda da forma urbana e o eclipse dos lugares públicos são fenôme
nos correlatos ao esgotamento da dimensão representativa e simbólica da ci-

'• Vera respeitoDonatellaCalabI {oTg.),Architeltura domesticaInGrau Breíagna. Milão:Elecla


Edilrice, 1982.

101
dade moderna, corpo sem memória de uma máquina que se quer pura funcio
nalidade. Talvez, nesse sentido, podemos afirmar que a urbanística do século
20 debateu-se na busca de uma saída para a crise da forma que caracteriza a
cidade moderna e contemporânea. Trabalho do sísifo dos arquitetos e enge
nheiros do social, sempre em busca da boa forma que, em uma cidade frag
mentada, só pode surgir como enclave, ilha de utopia que reitera a imagem
insular fornecida por Morus para a boa sociedade.
Se retornarmos às operações de deambulação que vão de paisagens subli
mes a campestres ou da periferia de uma cidade, vista através de aberturas fe-
nestrais, aos parques e jardins públicos, lembremos do comentário que Tafuri
faz ao projeto do ático de Beistégui, de Le Corbusier, sobre os Champs-EIysées,
em 1929-1931: "o ático de Beistégui é a etapa final da 'viagem' através do apa
relho arquitetônico, a alternativa à livre visão do panorama metropolitano". Não
por acaso identificamos nesse projeto de reforma do apartamento de um amigo
de Le Corbusier a intromissão de uma prática surrealista.
Como observa Tafuri (1984), naquele espaço quadrado, "quarto a céu
aberto", se está livre para o jogo, procurando-se resgatar "a sublime indife
rença do 'flâneur', contemplando o teatro metropolitano sem comprometer-
se com ele". Os muros desse terraço suspenso, deixando aparecer apenas frag
mentos da silhueta urbana - partes do Arco do Triunfo e da Torre Eiffel -, ins
talando uma falsa lareira em uma das paredes, frente um piso todo gramado, e
equipamentos óticos com um periscópio, fazem do edifício um aparelho de
visão, que estabelece com a cidade uma relação lúdica permeada pelos múlti
plos recortes paisagísticos definidos pela arquitetura. Assim, a célula habita
cional corbusiana também será uma câmara de visão que propõe um jogo apa
rentemente sem riscos, salvo os decorrentes da alienação do homem ante o
seu habitat, alojado em assentamentos informes que promovem "o isolamen
to em conjunto", como sugere Debord (1983).
A falsa ausência de riscos da cidade corbusiana, o urbanismo unitário
da Internacional Situacionista^ proporá a deriva como modo de territorialida
de dominante, seja através de operações organizadas para o reconhecimento
psicogeográfico do traçado de uma cidade, ou então por meio de projetos como
o da cidade nômade de "Nova Babilônia", de Constant Nieuwenhuis. Valori
zando a deriva como jogo, os situacionistas rejeitam a placidez das metrópo
les vazias e recusam a noção de conforto do urbanismo funcionalista.
Ao retomarem o nomadismo frente à ausência de forma da cidade mo
derna, os situacionistas nos lembram de Valéry que vê a cidade como uma cri
ação da inquietude. E, como observa Froment-Maurice (1987), "ser inquieto
é não encontrar repouso, não poder se sentirem casa. É não encontrar seu lu
gar. Mas apenas pode ser inquieto aquele que busca; e apenas pode buscar
aquele que percebe o sofrimento do próprio lugar, para lá não permanecer...".

'Ver a rcspcilo C. R. M. de Andrade, "À deriva: introdução aos situacionistas", e Textos da


Internacional Situacionista, em Ôculuni, 4, novembro de 1993, Campinas.

1G2
... pela.s sendas perdidas da cidade moderna transitarão os desejos labi-
rínticos narrados por Benjamin, em busca das formas do tempo público e das
imagens da luz...

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TAFURl, Manfredo. "Machine et mémoire" - La città nelFopera di Le Corbusier.
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103
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Célia ferraz de souza

construindo o espaço
da representação:
ou o urbanismo de representação

O urbanismo c a arquitetura são a história da necessidade, da adap


tação da sociedade aos lugares, criação de ordem, ordenação do
mundo e da luz, motivo de religião c desgostos, ostentação e luxo,
delicadeza e paixão, amor e forma. (Taveira, 1974, p.l4.)

Desde os tempos mais remotos, as cidades sofrem adaptações e mudan


ças na sua estrutura física, seja porque em cada tempo cada sociedade apresenta
suas próprias características estruturais, seja em função do seu próprio cresci
mento e desenvolvimento em um determinado período de sua história. Equipa
mentos vão sendo constmídos, aumenta-se o número de moradias, abrem-se ruas,
constroem-se pontes, ou ainda obras de infra-estrutura (água, esgoto, energia,
etc.). Essas transformações marcam o processo da evolução urbana.
Entretanto, as soluções encontradas para resolver os problemas urbanos
de caráter físico não se reduzem apenas às questões técnicas, imediatas ou não,
mas perpassam pelos campos político e simbólico, que lhes dão respaldo. O
mais singelo e prosaico problema, como um buraco na rua, cuja solução pare
ce ser a mais simples possível, envolve verbas, decisões e ações de instâncias
diferentes do poder público, com repercussões diretas na população. Trata-se
de uma ação política, com interesses específicos, cuja intervenção deve aten
der aspectos ideológicos e tecnológicos nas soluções e ainda preencher as as
pirações da comunidade. Imagine-se, então, o que representa um projeto ur
banístico mais complexo, ou mesmo um plano para a cidade: o grau de difi
culdades que envolvem os problemas, vontades e interesses em jogo ou até
mesmo metodologias de ação!
Realmente, ao aprofundar-.se o estudo das questões urbanísticas, não se
pode ignorar que atrás delas vem junto uma série de interpretações e de inte
resses os mais diversos. Segundo Bazcko (1986), um dos caracteres funda
mentais do falo social é precisamente seu aspecto simbólico. Embora o urba
nismo e a arquitetura gerem formas que exigem conhecimento de ciência, arte
e tecnologia, a forma, como afirmaTaveira (p.32), deveser entendida no sen-

Cclia Ferraz de Souza c arquiteta, professora do Programa de Pós-Graduação cm Planeja


mento Urbano e Regional e do Departamento de Urbani.smo da Faculdade de Arquitetura da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - PROPUR.

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Célia ferraz de souza

construindo o espaço
da representação:
ou o urbanismo de representação

O urbanismo c a arquilciura são a história da necessidade, da adap


tação da sociedade aos lugares, criação de ordem, ordenação do
mundo e da luz, motivo de religião c desgostos, ostentação e luxo,
delicadeza e paixão, amor e forma. (Taveira, 1974, p. 14.)

Desde os tempos mais remotos, as cidades sofrem adaptações e mudan


ças na sua estrutura física, seja porque em cada tempo cada sociedade apresenta
suas próprias características estruturais, seja em função do seu próprio cresci
mento e desenvolvimento em um determinado período de sua história. Equipa
mentos vão sendo construídos, aumenta-se o número de moradias, abrem-se ruas,
constroem-se pontes, ou ainda obras de infra-estrutura (água, esgoto, energia,
etc.). Essas transformações marcam o processo da evolução urbana.
Entretanto, as soluções encontradas para resolver os problemas urbanos
de caráter físico não se reduzem apenas às questões técnicas, imediatas ou não,
mas perpassam pelos campos político e simbólico, que lhes dão respaldo. O
mais singelo e prosaico problema, como um buraco na rua, cuja solução pare
ce ser a mais simples possível, envolve verbas, decisões e ações de instâncias
diferentesdo poder público, com repercussões diretas na população.Trata-se
de uma ação política, com interesses específicos, cuja intervenção deve aten
der a.spectos ideológicos e tecnológicos nas soluções e ainda preencher as as
pirações da comunidade. Imagine-se, então, o que representa um projeto ur
banístico mais complexo, ou mesmo um plano para a cidade: o grau de difi
culdades que envolvem os problemas, vontades e interesses em jogo ou até
mesmo metodologias de ação!
Realmente, ao aprofundar-se o estudo das questões urbanísticas, não se
pode ignorar que atrás delas vem junto uma série de interpretações e de inte
resses os mais diversos. Segundo Bazcko (1986), um dos caracteres funda
mentais do falo social é precisamente seu aspecto simbólico. Embora o urba
nismoe a arquitetura geremformas que exigem conhecimento de ciência, arte
e tecnologia, a forma, como afirmaTaveira (p.32), deve ser entendida no sen-

Cclia Ferraz de Souza c arqiiitcla, profc-ssora do Programa dc Pós-Graduação cm Plancja-


mcnlo Urbano c Regional c do Dcpartamcnlo dc Urbani.smo da Faculdade dc Arquitetura da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - PROPUR.

107
tido aristotélico do termo, no qual estejam presentes simultaneamente os con
ceitos de idéia e imagem, "obrigando assim a uma adequação e a uma vida
conjunta entre a intenção e a corporificação". Nesse caso, a forma temcaráter
de representação social, e de marcação no espaço de referenciais simbólicos
da sociedade.

O URBANISMO EA REPRESENTAÇÃO SOCIAL

É nesse sentido que o urbanismo está sendo colocado neste texto como
uma íbrma de representação dos interesses coletivos, expressos pelo poder, pela
cla.sse dominante ou ainda pelas crenças e mitos, enfim, pela própria sociedade.
Não se trata, portanto, de apenas uma questão técnica, científica ou mesmo ar
tística, como muitas vezes foi encarado desde o princípio deste século.
As ciências humanas, e em particular a história cultural,' têm dado espe
cial atenção às representações coletivas, provindas do imaginário da população,
permitindo a abertura de um campo muito profícuo, no âmbito do cotidiano,
cuja integração disciplinar reúne diversos olhares sobre o mesmo fenômeno.
Ao pretender colocar o urbanismo nesse campo de discussões, é necessá
rio estabelecer algumas aproximações conceituais interdisciplinares. Para isso,
a utilização do {qxío Imaginação social, de Bronislaw Bazcko (1986), comple
mentado por alguns outros autores, parece ser básico. O imaginário social é uma
das íbrças reguladoras da vida coletiva, segundo o referido autor, porque atra
vés dele "uma coletividade designa sua identidade, elabora uma certa represen
tação de si, estabelece a distribuição de papéis e das posições sociais, exprime e
impõe crenças comuns e constrói uma espécie de código de 'o bom comporta
mento', designadamente através de modelos formadores, tais como o do 'che
fe' o 'bom súdito' o 'guerreiro corajo.so', etc.", e, poder-se-ia acrescentar, espe
cificamente constrói o código do modo de vida urbano. "Cada geração traz con
sigo uma certa definição de homem e de sociedade, simultaneamente descritiva
e normativa, no mesmo tempo que adota, a partir de.ssa concepção, uma idéia
de imaginação do que a sua sociedade é e do que ela deveria ser" (p.3()9). De
corre daí a afirmação de que cada geração deveria reescrever a sua história, por
que, embora o passado não mude, o presente .se modifica a cada geração. Não é
o pa.ssado que altera o presente, mas sim o presente que altera a maneira de ver
o passado. São novas perguntas que surgem e encontram novas áreas de simpa
tia e afinidade à medida que se revivem "distintos aspectos das experiências de
seus predecessores"(Hill, 1987, p.32).São novas interpretações, novas revela
ções, vinculadas ao imaginário da sociedade. Por isso, o imaginário social tem

' Ver CMARTIER. Rogcr. A história cultural —entre práticas e representações . Li.sboa: Dl-
FEL-Bcrtrand Bra.sil. 1WO. c, a propósito das etapas que a Hi.stória tem pa.ssado, Sandra Pe-
savento faz uma análise, evoeando notnes como Cliartier, Le GolT, Hunt e outro.s, no Relató
rio de Pesqui.sa para o CNPq. intitulado Eni busca de unia outra história: inia^^inando o ima
ginário - 1902/1003.

108
que ser visto como uma peça efetiva e eficaz do dispositivo de controle da vida
coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e do poder "se transforman
do, assim, no lugar e no objeto dos conflitos sociais" (Bazcko, p.l l3). Ora, a
cidade, então, é, por excelência, o lugar que melhores condições tem de produ
zir um ambiente fértil para o desenvolvimento das idéias, das imagens e das re
presentações. Através dos diversos olhares com que a sociedade a vê, das múlti
plas opiniões que ocorrem no seu meio,dos vários conceitose preconceitosque
se estabelecem, dos símbolos que se criam, e também por ser o "locus" do po
der, é que a cidade é a projeção no espaço físico, do imaginário social.
O imaginário busca sentido para as coisas e para os fatos (e, por conse
guinte, para a cidade e para as obras urbanas; ou para as edificações), através
dos diversos olhares ou leiturasque são feitas da realidade. O olhar"qualifica
o mundo, transformando o acontecimento em fato e o espaço em lugar" (Pe-
savento, 1992/1993). Écomo se a cidade fosse um texto, e o papel do cidadão
fos.se o de lê-la, compreendê-la e perceber o sentido de sua abordagem. Para
ÍS.SO, é claro que não basta ser apenas alfabetizado, mas é preciso saber buscar
o sentido, para entender o seu significado. Na leitura urbanística, é necessário
não só perceber a forma, entender seu conteúdo, como associar e desvendar
as formas de pensamento que estão por trás de suas representações. Tem-se
dito que é preciso ver forma, conteúdo e pensamento no texto da cidade.
A Representação, segundo Le Goff (1992/1993, p.lü), é a tradução men
tal de uma realidade externa e percebida (abstração). O que leva a crer que a
representação é a presentificação de um ausente, que é dado a ver, segundo
uma imagem mental ou material, que se distancia de mimetismo puro, e tra
balha com atribuição de sentido. O ausente se presentifica por força da ima
gem, já que existe sempre um outro sentido além do manifesto. Os documen
tos históricos são formas de representação expre.ssas por palavras ou coisas.
A representação social possui sem dúvida uma faceta de transformação e en
godo, mas é também portadora do sonho da coletividade, na sua dimensão
utópica.-

O URBANISMO DE REPRESENTAÇÃO

No âmbito da arquitetura e do urbanismo, a representação de que se fala


é mais operacional; é aquela usada para expressar as futuras formas que as edi
ficações ou os espaços urbanos assumirão. Trata-se da representação grálica
do projeto arquitetônico ou urbanístico, que é feita através de plantas, cortes,
perspectivas, utilizando uma escala adequada, já que não se pode representá-
lo no tamanho real.
Desde a antigüidade o homem, ao imaginar novas formas arquitetôni
cas ou urbanísticas, ou transformações da cidade ou das edificações, apren-

- Sobre o assunto é interessante ver a abordagem de Pcsavcnto em seus textos e publicações.

109
deu a fazê-lo em modelos reduzidos. Inicialmente foram expressões muito sim
ples através de plantas ou ainda alguns cortes das construções em materiais
disponíveis do local (em placas de argila ou pergaminhos, ou ainda no pró
prio chão). No Renascimento as técnicas de representação foram-se aprimo
rando, principalmente com o desenvolvimento da construção da perspectiva,
permitindo a percepção do projeto completo, a tal ponto que possibilitou o
afastamento do arquiteto do canteiro de obras. As formas de representação
foram-se sofisticando cada vez mais, e hoje o computador permite fazer uso
de recursos antes inimagináveis, como rotação das figuras mostrando diver
sos ângulos de seu exterior ou interior, aproximação ou afastamento das figu
ras (zoom), testes com texturas e cores, etc.^
As representações a que os arquitetos estão tão familiarizados não se con
fundem com as representações das práticas sociais, mas as construções, repre
sentadas em projeto arquitetônico ou urbanístico, são freqüentemente represen
tações muito explícitas da sociedade. Quando a representação do urbanismo (o
desenho urbano) .se torna uma representação social, transformando-se Qmiirha-
nismo de representação? Quando o urbanismo, através de seu desenho ou pro
jeto, representa efetivamente as aspirações da sociedade, seja através do seu poder
político, da sua religião, da sua elite, ou das suas classes sociais?
Nesse sentido, se evidencia a importância da compreensão das imagens
da cidade, enquanto forma, enquanto arquitetura, enquanto urbanismo, porque
estes são os elementos de leitura da imagem visual. Taveira (1974) afirma: "A
urbe é o texto e a arquitetura é a língua" . Quando o cidadão não consegue per
ceber, destacar, .selecionar, perguntar-se ou lançar um olhar inquisidor e inter-
pretativo sobre as imagens visuais da cidade, é porque as representações nelas
contidas são fracas e seus significados imperceptíveis. O ausente deixa de insti
gar a sua busca, outro lado não existe. Dessa maneira, os espaços onde estão
construídas e.ssa.s formas vão perdendo as características de lugar ou de ambi
ente, restando apenas a de espaço, e também vão perdendo a capacidade de in
formar e de .ser referencial da cidade e, mais ainda, vão-se apagando da memó
ria coletiva.
Da colocação anterior, onde o olhar do presente é que caracteriza ou qua
lifica o pa.ssado, decorre a de como o futuro verá o nosso presente e ainda como
o presente vê o presente, no campo das imagens visuais. A resposta a essas ques
tões é que passaremos a discutir através de uma avaliação histórica.
De uma maneira geral, na análise das estruturas urbanas, verifica-se que
se confere sempre um lugar privilegiado ao poder, explorando a carga simbóli
ca das formas onde o urbanismo e a arquitetura traduzem eficazmente, numa
linguagem própria, o prestígio que rodeia o poder, utilizando para isso a escala

'Sobre as lornias de repre.sentar o urbanismo, ler os consagrados autores L. MumCord, A.


Kom, S. Giedion ou L. Benevolo. Ver lambem SOUZA, Célia Ferraz. Uma metodologia de
análise da transformação do espaço urbano. 1993 - texto apresentado cm Salvador, no En
contro sobre História da Cidade e do Urbanismo, 1993, ANPUR.

110
monumental, recursos técnicos de valorização das construções quanto à visua
lização e ao uso de materiais nobres, etc. Interessante é o exemplo do urbanis
mo barroco em que, com o domínio de articulação de eixos e pólos, valorizan
do a simetria e a perspectiva, criando sensações através da ilusão, quase se visu
aliza o desenho na escala 1:1, na dimensão do real. E o caso, por exemplo, dos
três acessos ao Palácio de Versalhes, que vindos de pontos diferentes em linha
reta, com dimensões bem maiores do que as usuais e eqüidistantes, se encon
tram num ponto único, local onde está assentado o monumento da figura do rei.
O simbolismo dessa representação urbamstica assume características muito claras
ao analisar-se sua representação social. O mesmo acontece com Karisrühe,
Manheim e outros exemplos onde o poder absolutista marcou a paisagem urba
na, criando um grande foco de referência, traduzindo para o espaço o papel que
o rei exercia de elemento referencial da sociedade.**
Na antigüidade, Roma foi um exemplo de grandes intervenções urbanís
ticas que representavam ideologias e mentalidades de uma época, mas tam
bém grandes jogos de interesses políticos e pessoais. As inúmeras arenas cons
truídas por todo Império representavam claramente a política de "pão e circo"
desenvolvida pelos imperadores. Talvez um dos fatos que melhor evidencia
os interesses que estão por trás das grandes obras seja o incêndio de Roma, ao
que Nero assistiu tocando lira. Para a história ele passou como louco e irres
ponsável; no entanto, os incêndios em Roma eram comuns, intencionais ou
não, seja pela precariedade das construções das "insulae", as "suburras" (ha
bitações da plebe), seja com objetivo de sanear essas áreas insalubres. Curio
samente, no local do sinistro, Nero construiu seu próprio palácio, o que não
representa exatamente um ato de desatino! São inúmeros os exemplos na his
tória do urbanismo mostrando o caráter de representatividade das obras urba
nas. O Papa Sisto V criou em Roma, através de intervenções urbanísticas, um
sistema de referências capaz de orientar qualquer peregrino que chegasse a
Roma de 1595. Abrindo vias retas interligando igrejas, colocando obeliscos
em sua frente, ele propiciou à população uma leitura fácil e acessível a todos.
Entretanto, esses exemplos se multiplicam e tomam-se bem mais expres
sivos a partir do período barroco onde uma burguesia emergente, do novo mun
do capitalista, busca o seu espaço na cidade. Se o século 19 coroará esse ápi
ce, não se pode desprezar os séculos 17 e 18, quando o processo teve início.
Na França, por exemplo, a construção das praças Vendôme, Dauphine, Vic-
toires representou exatamente a acomodação da alta burguesia, cujas habita
ções agrupadas representavam um grande palácio. Não eram nobres, os bur
gueses, mas era como se assim os fossem, pois viviam em palácios, mesmo
que fosse apenas numa parcela destes! Reforçaram a imagem de representa
ção e criaram representações claras. Na Inglaterra esse procedimento se acen
tua, não só na capital, mas também na criação de locais de veraneio para a

•'A propósito da história do urbanismo, dc (brma genérica, os autores já citados —Mumford,


Kom, Gicdion e Benevolo - são suricientcs para introdução ao tema.

111
burguesia, como é o caso de Bath, projetado e comercializado pelos arquite
tos John Wood e seu filho J. Wood Jr. A forma arquitetônica era a do palácio,
mas cada família tinha apenas um apartamento (vertical). "Faça de cada ho
mem um rei" era o ditado da época, a palavra de ordem. As cidades passam a
conter espaços que traduzem as aspirações da população, de galgar novos es
calões sociais. Trata-se, portanto, de um urbanismo de representação, com
imagens concretas, visuais e de significado.
O século 19 traz consigo a complexização das cidades, com os avanços
tecnológicos trazidos pela revolução industrial, com o incremento do comér
cio e a valorização das mercadorias, com o crescimento da burguesia e do pro
letariado, das injustiças sociais e o surgimento das novas visões de mundo.
Ideologias que constróem um mundo imaginário, contrário ao existente, vol
tado às questões de igualdade dos homens, sem especulação, sem proprieda
de, e ninguém sem teto. Éa busca dautopia socialista. É a busca deuma nova
estrutura social, a criação de uma nova sociedade que induz à formulação de
um espaço físico completamente diferente. E como se a criação de um novo
espaço físico oportunizasse a construção da sociedade idealizada. New Har-
mony, de Owen, o Falanstério de Fourier, ou a Icária de Cabet se transformam
em símbolos desse momento, propondo a alteração da estrutura física, para
abrigar a sociedade sã, a sociedade de iguais, que seus autores haviam imagi
nado.^A partir de suas reflexões, aprofundaram-se nos aspectos sociais e su
perestimaram a questão espacial. Não foram os primeiros a cometer esse equí
voco e nem seriam os últimos. O poder do espaço é percebido por eles, mas
mal dimensionado. Infelizmente, não basta uma reorganização de espaços para
obter reformas estruturais na sociedade. Aqui, as idéias podiam estar repre
sentando alguns setores da sociedade, mas no âmbito do urbanismo não acon
teceu o urbanismo de representação. O espaço realmente não é neutro, a sua
influência restringe-se ao comportamento das pessoas, de que, aliás, se aper
ceberam Haussmann e Napoleão III quando da reforma de Paris. Novamente
aqui o urbanismo assume um papel de representação na cidade, só que agora
de protagonista, através de sua imagem. Paris transformada, ordenada e pla
nejada se transforma na vitrina do mundo. A partir de agora não só povoa o
imaginário social da cidade, mas de todas as cidades do mundo. Todas preci
sam parecer-se com Paris. Essa extrapolação do âmbito local para o mundo
está vinculada ao desenvolvimento político, econômico, social e cultural que
a cidade representava. Até então as aspirações eram pessoais. Cada um queria
gozar dos benefícios que os mais ricos desfrutavam: reis imitavam reis; a alta
burguesia imitava os nobres; a média burguesia, a alta; e assim por diante.
Agora, transportavam-se para o plano coletivo os anseios individuais. Todas

^A partir da Revolução Industrial, ver também RAGON, M. (Hisíoire mondiale de 1'arquitec-


ture et de 1'urbanisme. Bélgica: Casterman, 1971), BENEVOLO, L. (Historia de Ia arquitec-
tura moderna. Barcelona: Gili, 1974), CASTEX, De Paule e PANERAl (Formes urbaines: de
1'ilôt à Ia barre. Paris: Dunod, 1980).

112
as cidades procuravam imitar Paris através de seu urbanismo. Formalmente,
tratava-se ainda do urbanismo barroco: eixos, simetrias e perspectivas valori
zavam palácios e jardins, praças e monumentos. Com Haussmanna escala das
intervenções é mais ampla: não se trata de apenasalgumou algunsbairros,mas
de toda cidade; para o urbanismo uma visão inédita, de reformas viárias, de re
formas administrativas, de infra-estrutura e de construção de novos equipamen
tos. Isso tudo representavaa Paris moderna,a capital da cultura,a cidade sanea
da, enfim, a cidade bela, a verdadeira capital do século 19, como a chamou Walter
Benjamin (1984). Eixos, paralelismos, retilineidades, simetrias, pontos focais
eram os princípios de composição dos projetos urbanísticos, que através da ar
quitetura neoclássica e art nouveau, de avenidas e bulevares, com prédios con
tínuos por quadras e semelhantes nos seus dois lados, com calçadas largas e ar
borizadas, que reforçavamo caráter retilíneodas vias, os rondpoints, que rece
biam em seu foco as várias avenidas, que para aí se dirigiam, formavam a sua
imagem. Mais que isso, "vendiam" sua imagem. Embora com problemas dife
rentes dos que levaram Paris à sua reforma (resolver o problema das guerrilhas,
acomodar a burguesia, criar novos serviços e equipamentos, reorganizar a ad
ministração), as outras cidades do mundo a imitavam, como diz Berman (1986),
nem que fosse numa pequena área da cidade, ou apenas com um bulevar, como
é o caso das cidades dos países subdesenvolvidos, apesar de todas as diferen
ças. Esta imagem de semelhança, ajudaria a definir sua identidade de cidade mo
derna. O Brasil não escapou a esse processo. Implantou no Rio de Janeiro sua
Avenida Central e com ela iniciou a sua belle époque. Só uma avenida, mas foi
o suficiente para que o Rio agora se transformasse no modelo nacional, "ven
dendo a imagem da imagem"! A partir do Rio, as cidades brasileiras importa
ram a imagem parisiense.
Entre o final do século passado e o início deste, urbanismo se organiza
com disciplina. Não era só Paris que havia crescido em dimensões, popula
ção e problemas. O avanço tecnológico estava a exigir da cidade uma adequa
ção cada vez mais rápida. Eram os meios de transportes que se transforma
vam, os trens, os bondes, os metrôs, os automóveis, os ônibus que exigiam
espaçosde circulação apropriados; eramos elevadores que permitiam a cons
trução de edifícios cada vez mais altos, trazendo para o centro das cidades,
em especial, uma população jamais vista; o desenvolvimento das indústrias
com sua poluição e a atração de mão-de-obra vinda do campo, criando bair
ros cada vez mais afastados do centro, desenvolvendo a periferização da cida
de; o saneamento básico que não acompanhava o ritmo de crescimento das
cidades, apesar da modernização dosencanamentos de água ou das manilhas
deesgoto. Já nofinal doséculo 19, preocupações com o"embelezamento" ou
com a questão estética das cidades foram abordadas por Camillo Sitte^' e Bur-

''Sitte, é autor de um dos primeiros livros de urbanismo, onde levanta a importância da esté
tica na elaboração dos projetos urbanos, elaborando princípios metodológicos de interven
ção no espaço.

113
Iam.'As questões da ordenação dos espaços e adequação das funções urbanas
e, acima de tudo, o sério problema da especulação imobiliária, que crescia a
cada dia, também conduziram os estudos de Howard com sua "cidade jardim",
Soria y Mata com sua "cidade linear" eTony Garnier com sua "cidade indus
trial".'^ Embora tratando-se praticamente de modelos, eles nortearão os rumos
do urbanismo no século 20, desembocando em duas vertentes fundamentais:
a primeira, chamada genericamente de modernista, é também conhecida como
corrente progressista ou racionalista; e a segunda, corrente culturalista ou
corrente empirista.''
O urbanismo passou a ser discutido, desde então, como ciência, como
arte e como técnica, sendo o ponto de partida dessas reflexões a própria
imagem que se fazia da cidade. A corrente empirista, ou culturalista, via a
cidade como um organismo doente e se propunha a "curá-lo", sem cortar
as linhas da sua evolução cultural, procurando evitar as transformações ra
dicais. O urbanista exerceria o papel de médico da cidade, que era refor
çado, na medida em que a utilização de termos emprestados da medicina
ajudavam a esclarecer a sua atuação: "cirurgia urbana", "artérias viárias",
o "core" ou o "coração" da cidade, etc. Portanto, curar e não criar uma nova
cidade. Partindo dos pressupostos teóricos de Howard, os urbanistas des
sa corrente se basearam em aspectos formais das primeiras cidades-jardim,
projetos de Raymond Unwin e Berry Parker para Letchworth, e Louis de
Soisson para Welwyn, ambas nas proximidades de Londres."' O paradig
ma dessa corrente foi, na realidade, Radburn, um subúrbio de Nova York,
projeto de Clarence Stein e Henry Wright, em 1929, que sintetizava todos
o preceitos e conceitos apregoados. Usando como elementos de projeto o
traçado não-ortogonal, basicamente casas unifamiliares, no meio de jar
dins, sem muros ou cercas, em ruas arborizadas, aqui foi introduzido o
conceito de unidade de vizinhança^^ e com ele o dimensionamento anteci
pado dos espaços. Essa imagem do subúrbio cresceu tanto que se tornou a
representação da vida americana, num momento em que os Estados Uni
dos queriam firmar sua imagem como o grande representante do capitalis
mo mundial. "The american way of life" foi amplamente mostrado por
Hollywood através de filmes dos anos 50 e 60 particularmente. Aliás, ain
da hoje, se pode assistir a filmes mostrando a tranqüilidade dos bairros re
sidenciais, com seu verde intenso, jardins e a facilidade de circulação dos

^Burnham foi autor do Plano de Embelezamento de Chicago, que deu origem ü corrente City
Beauiiful.
** Ver autores já citados sobre a história do urbanismo moderno e também REIS, Nestor Gou
lart. Teorias de urbanização.
'''•'"Nomes dados por Choay e Reis respectivamente.
" Unidade de Vizinhança é uma área residencial, dimensionada em função do número de ha
bitantes, em cujo centro está situada a escola, que não deve ultrapassar o raio de 400n>. Essa
medida foi calculada em relação à capacidade máxima para que a criança se dirija a pé para
a escola levando em conta o fato de que ela não deve atravessar nenhuma via de trânsito.

114
carros que não cruzam com as crianças. Novamente, aqui, um "urbanismo
de representação", com uma representação urbanística bem específica.
Já a corrente racionalista agia como se a cidade atual não correspon
desse às necessidades do mundo moderno. Era necessário pensar uma ci
dade absolutamente nova, que atendesse a imagem que se formava da ci
dade contemporânea, aliás, nome dado pelo expoente dessa Corrente, Le
Corbusier,'- à sua proposta para uma cidade de três milhões de habitantes.
O princípio básico era de que o urbanismo deveria ser tratado como ciên
cia e, como tal, deveria ter um corpo de doutrina para criar-se o referenci
al teórico. Desenvolvida a partir da teorização da cidade industrial, a nova
cidade deve organizar-.se como as máquinas, de forma racional, onde cada
parte faz parte do todo. A busca da imagem da máquina para explicar não
só a cidade, mas também a casa, chamada por Le Corbusier de a "máqui
na de morar", é significativa e demonstra ainda a confusão entre ciência e
técnica e o deslumbramento com as novas tecnologias da época. A idéia
de sociedade, aqui, acompanhava a idéia do homem-tipo, do "Modulor",
que acompanharia também uma sociedade-tipo com as mesmas necessi
dades, seja na Europa, na índia ou no Brasil.A indústria traz as inovações,
os bens que facilitarão a vida de todos, e a industrialização como proces
so dará condições de emprego à mão-de-obra ociosa. A partir dessas pre
missas, Le Corbusier entra de corpo e alma na defesa do que ele chama
cidade racional. Usando às vezes uma linguagem até panfletária, ele de
fende suas idéias buscando imagens fortes para o seu discurso. Assim, na
defesa da geometria para a composição dos projetos urbanísticos em nova
escala, ou para implantação do traçado ortogonal ou da retilineidade das
vias, separando os tráfegos (pesado, leve, local, ou rápido), ele afirma que
o caminho dos homens é a linha reta; quem anda em curvas são os asnos.
Outro princípio defendido por ele é o das altas densidades, pois com a tec
nologia existente era possível levantar prédios altos, liberando o solo com
áreas verdes. Seu lema - concentrar para descongestionar —, menos pré
dios, porém muito mais altos. Outro ponto básico de sua proposta era o
zoneamento de funções, defendido explicitamente na famosa Carta de Ate
nas de 1933, e publicada em 1943. No intuito de evitar a promiscuidade
de usos do solo urbano, propõe o seu ordenamento a partir das quatro fun
ções urbanas por ele identificadas: habitar, trabalhar, recrear e circular. A
proposição é de separação espacial das atividades poluidoras da indústria,
da tranqüilidade das zonas de moradias, também separando o trânsito de
pedestres do de veículos e criando zonas específicas de lazer. Iniciava-se
assim uma mudança radical na imagem e na estrutura física da cidade. De
corre daí a questão da escala, porque os espaços urbanos são redimensio-
nados proporcionalmente às suas propostas: edificações de grande porte,

Le Corbusier escreveu vários livros de urbanismo, lenlando organizar um corpo de doutri


na, criando um embasamento teórico, a partir das idéias vigentes.

115
atingindo às vezes 60 andares; vias expressas para veículos a motor, espa
ço para aterrissagem de pequenos aviões no centro, etc.
Mais uma vez se construía uma utopia partindo de novas formas, em
busca de um sociedade melhor. Uma cidade limpa, organizada e com uma
nova estética, para responder às necessidades da sociedade moderna e in
dustrializada. Num espaço novo, com novos referenciais, a sociedade se
adaptaria melhor e, conseqüentemente, seria mais feliz, usufruindo dos be
nefícios da indústria e das vantagens da industrialização. Só que desta
feita as abordagens e as reflexões sobre a sociedade são bem menos ques
tionadas que as espaciais, já que a população que aí viveria, para Le Cor-
busier, como já foi dito, era formada por homens definidos pelo "modu-
lor", que representava o homem-tipo. Embora sejam utópicas as idéias, as
formas propostas não o eram. Apesar de radicais, de romperem as tradi
ções, eram exeqüíveis e vinham no sentido de resolver alguns problemas
sérios, que deixavam a população angustiada, como o congestionamento
de tráfego e a promiscuidade de usos. Vias expressas foram abertas, apro
ximando pontos e introduzindo uma nova noção de escala e de morfologia
da "rua". As marcas das intervenções contrastavam com a cidade antiga,
mas estavam profundamente relacionadas com o progresso, no imaginá
rio da sociedade.
Brasília, projetada por Lúcio Costa, e Chandigarh, na índia, por Le
Corbusier, mais ou menos na mesma época (fins da década de 1950, iní
cio de 1960), são os dois maiores exemplos construídos dessa corrente e,
talvez, os únicos que implantaram de forma completa seus projetos. Fo
ram transpostos para eles os princípios fundamentais da corrente raciona-
lista e alguns aspectos do urbanismo culturalista. Chegou-se à construção
do real a partir do imaginário, de uma representação do moderno, em so
ciedades cuja realidade tinha dificuldade de confirmar essa tese. Mas foi
feita a revolução pelo espaço: geometrização como ponto de partida, seto-
rização das atividades através de zoneamentos, distâncias a serem venci
das apenas pelas máquinas, morte à rua-corredor, espaços para cotiano em
dimensões que extrapolam as dimensões da convivência. Estas e outras
características geraram uma imagem que tem propiciado um campo de dis
cussões muito fértil sobre o caráter da representatividade da corrente raci-
onalista.
Por coincidência ou não, trata-se de dois países subdesenvolvidos,
com uma porcentagem de população de baixa renda extremamente signi
ficativa. Curiosamente, para ela não estavam previstos locais nessas cida
des. Se próximo de Brasília se agrupam favelas, as cidades em torno rece
bem a população pobre, e o plano piloto ficou destinado à classe média e
alta. No caso de Chandigarh, as favelas invadiram literalmente a área do
plano. Todos aqueles espaços superdimensionados, e até mesmo os espa
ços monumentais do setor governamental, não escaparam da invasão de
barracos, construídos de barro com cobertura de sapé. O contraste com a

11B
arquitetura em concreto e vidro, projetada por Le Corbusier, é assustador.'^
Nem a imaginação consegue alcançar! Valores foram perdidos e os refe
rências culturais não existem. Chandigarh talvez seja o exemplo mais con
creto da rejeição de um modelo que não tem nada a ver com sua popula
ção e que não representa nem sequer a sua elite. Aqui, o projeto urbanísti
co "vende" uma imagem de cidade moderna, mas a ele não corresponde
uma representação social. Em cidades existentes, onde foram adotadas
apenas algumas premissas de projeto, adaptações apenas, estas consegui
ram-se transformar em uma representação social, mas nesses casos deixa
ram de representar o modelo que lhes deu origem.

A REPRESENTAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS


NAS GRANDES CIDADES BRASILEIRAS

O exemplo extremo de Chandigarh remete-nos para as nossas cidades.


Não há semelhanças formais, mas há a questão da representação que merece
atenção. As dificuldades em nossas cidades são tantas que nos últimos tem
pos, por tudo que já foi dito - crescimento populacional, aumento do número
de veículos circulando, trânsito, sistema viário, expansão e incremento dos pro
blemas básicos de infra-estrutura física e social, aumento da pobreza e da fome
nos países subdesenvolvidos —, se fez com que as ruas e as praças passassem
a ser vistas, quase que exclusivamente, como espaço de circulação e de ma
landragem. Numa palestra recente, a geógrafa M. Adélia de Souza expôs um
trabalho seu, onde procura mostrar que o verdadeiro "dono" da rua é o pivete
ou o marginal, pelo seu domínio de espaço e conhecimento das entranhas da
cidade.''' E onde está o cidadão das ruas?
Uma das imagens mais fortes e mais concretas da cidade é a rua, espaço
plurifuncional, onde os mais variados fatos ocorrem, do comércio à circulação,
do ponto de encontro ao local de desfile. Ela, juntamente com a praça, sempre
representaram o espaço da liberdade, o espaço do cidadão, o espaço de fora, o
espaço público, enfim, o espaço da coletividade, que se contrapõe ao espaço de
dentro, ao espaço íntimo, ao espaço do controle familiar, das regras individuais.
As regras e o controle aqui se referem ao controle coletivo, que vem inclusive
no sentido de orientar o comportamento da população. Nesses espaços, o cida
dão sempre assumiu a sua característica de parte do coletivo social. A morfolo-
gia urbana, as tipologias arquitetônicas e as práticas sociais desenvolvidas nas
ruas e nas praças também sempre serviram como elementos de orientação e lei
tura. Entretanto, a desagregação da ordem, a confusão das atividades e fluxos

Ver revista publicada pela ANQ - Architcctiira cfe Naiiira - dedicada a Chandigarh, .sob o
título "Chandigarh: Forty Years after Le Corbusier" 1993. As Imagens fotográficas sobre a
situação atual impre.ssionam realmente.
'••Souza, M. Adclia realizou palestra promovida pela UFRGS no Seminário sobre a Fome -
29/3/94.

117
de circulação, a falta de identidade, a insegurança social têm tirado das ruas cen
trais da cidade o seu papel didático-referencial.
O urbanismo é o instrumento técnico, da organização dos espaços pú
blicos, em especial das ruas e praças no arranjo ou rearranjo de suas ativida
des, aplicado através dos órgãos públicos. Estes foram desenvolvendo meto
dologias de intervenção adequadas às suas possibilidades e necessidades, de
forma a criar um processo de implementação das ações provindas do planeja
mento que, na verdade, deveriam fazer parte do seu dia-a-dia, para que o cará
ter de representação das práticas sociais não desaparecesse, e os espaços não
ficassem relegados à decadência. Entretanto, isso nem sempre acontece.
Os países desenvolvidos se deram conta dos problemas que vinham sur
gindo e começaram a repensar a rua, criando concursos de projetos urbanísti
cos, onde ruas e praças teriam novamente as características tradicionais, onde
o homem tivesse prioridade ao veículo, se sentisse valorizado e tivesse segu
rança. É o caso da cidade nova deCergy-Pontoise, onde se abriu um concurso
urbanístico para a criação de um bairro novo, cujo tema central deveria ser a
redescoberta da rua.'^
Por outro lado, novas soluções foram sendo encontradas para resolver
uma série de problemas relacionados com as novidades que iam surgindo. Em
termos internacionai.s, a burguesia, que se via tão valorizada desde o fínal do
século 19, indo aos cafés e confeitarias, escolhendo e comprando mercadori
as cada vez mais atraentes, em lojas também atraentes, dentro do processo ca
pitalista, a cada tempo, "teria" que sofrer um novo estímulo. Essa atração iria
crescer até alcançar um conjunto de lojas de só uma vez. Sucintamente, sur
gem primeiro os grandes magazines, com todos os produtos numa só loja,
depois vêm os supermercados, onde cada um escolhe o que quer sem interfe
rência de ninguém e, por fim, os shopping centers, onde várias lojas do vestu
ário ao calçado, do restaurante ao fastfood estão sob um mesmo teto, onde a
grande tônica passa a ser o elemento atração, do lugar, das lojas e das merca
dorias. É a fase do marketing como urbanista.
O fantástico é que isso tudo extrapola o mundo desenvolvido e cai entre
nós da forma mais"integradora possível", criando fortes elementos referenciais
para a população urbana. Cada vez mais popular e sofisticado, o shopping cen-
ter chega ao ponto de criar muito mais que o imaginário social teria aspirado.
Introduzindo a construção da fantasia, remete o usuário ao plano do irreal, atra
vés das alegorias utilizadas na nova ambientação de ruas e praças, que passam a
representar agora os espaços urbanos em edifício.^^' Essa metáfora morfológi-
ca,^'' característica exaltada em um projeto específico de shopping, tranqüila-

Villc Nouvcllc dc Ccrgy Ponloisc. Concours dc Maisons dc Villc a Jouy-lc-Moulicr. Cahi-


ers (te fínstitut cfAinéncigeinetU et (fUrbanisme de Ia Héf^ion d'Ile de France, v. 147, 1977.
if.i 17 Projeto, n. 170. dez. 93 - Shopping Ccnlcrs- dedicada praticamente aos proje
tos dc shopping centers, mostrando os últimos exemplares brasileiros, comentando sobre sua
inserção nas cidades e o caráter desses projetos.

118
mente pode estender-se a todos os demais, já que se tornou a grande atração de
nossas cidades, se identificando cada dia mais com a população.
Os shopping centers não estarão tomando lugar da rua comercial no ima
ginário coletivo? Deixando a rua para a população marginal? Não seria essa
uma das explicações do porquê, também no imaginário coletivo, a rua se iden
tifica cada voz mais com a população marginal? É importante refletir sobre
essa questão e procurar extrair dela algumas observações.
As áreas e as construções destinadas aos shopping assumem cada vez
mais dimensões de maior destaque. Relacionadas com as áreas da cidade por
uma acessibilidade boa, esses locais representam os focos na estrutura de ei
xos viários. Não mais os rond points do "urbanismo barroco de representa
ção", para onde confluíam as avenidas; agora os pólos são essas grandes mas
sas edifícadas, esses verdadeiros templos do consumo. No seu interior, "ruas"
organizadas, limpas, protegidas climaticamente e seguras.

Tipologia controversa entro os arquitetos, por suas características programáti-


cas que decorrem de raciocínios de pesquisa de mercado e marketing, nem sem
pre alinhados com conceitos arquitetônicos mais criativos. Há uma mitologia
entre o arquitetos que qualifica o shopping conter como um projeto sem mar
gem para "manobra", isto c: o arquiteto pouco pode interferir na qualidade ar
quitetônica dos espaços, senão seguir as rígidas regras ditadas pelo sistema em
preendedor. (Revista Projeto, p.48)

Apesar disso, a proliferação de shopping centers mostra a aceitação, com


ambientes agradáveis que se traduzem na beleza, na tranqüilidade, na sensa
ção de riqueza, tanto do ambiente como do próprio transeunte. Tudo é feito
para deslumbrar o consumidor. Todos têm acesso a esse palácio, ninguém é
"discriminado". Embora, evidentemente, só compre quem puder, quem não
pode é levado a não ter uma sensação de exclusão. Tudo é feito para criar um
ambiente fantástico, para o cidadão comum sentir-se valorizado e dominando
esse espaço, dando a ele a ilusão de que esse é o seu reino. Aqui, até parece
que se respira o "ar da cidadania"!
Marx foi quem chamou a atenção sobre o caráter fetichizante da merca
doria, que Benjamin retoma quando da sua análise sobre Paris;entretanto,
parece que se trata de um processo que vem crescendo, abarcando a mercado
ria e as lojas, agora o conjunto de lojas. Será que hoje, só com a fetichização
do espaço urbano, como uma mercadoria, é que se conseguirá a verdadeira
representação? Será possível que a cidade precisa ser vista com os olhos do
marketing para evitar a perda da identidade? Qual o poder de competição de
nossas ruas com essas "ruas" construídas?Teremos que trazer o fetiche, a fan-
tasmagoria ou as alegorias para os espaços públicos? Não é isso que algumas
cidades já estão fazendo, criando as "Ruas 24 Horas" ou construindo o "mun
do do Papai Noel", como Gramado?

Ver esse tipo cie rcrcrcncia nas obras de Benjamin, op. cil.

119
Mike Davis , no seu livro A cidade de quartzo (1993, p.31), faz uma ci
tação logo de início, transcrita aqui, exatamente no sentido de transformação
da cidade em mercadoria que deixa perplexo o leitor:

Los Angeles, isto deve ser entendido, não como uma mera cidade. Ao contrá
rio, ela é, e sempre foi desde 1888, uma mercadoria; algo para ser anunciado
e vendido para o povo dos Estados Unidos, como automóveis, cigarros e de-
sinfetante bucal. (Morrou Mayo)

Entretanto, olhando por outro lado, outras edificações mais recentes, de


caráter público, como estações de metrô e de trens urbanos, os aeroportos e
os centros de cultura, onde a circulação de pedestres também é intensa, têm
trazido para si um caráter de ordem e respeito, de lugar do cidadão, mesmo
sem o elemento fantasia, presente nos shopping centers. De uma maneira ge
ral, também esses "espaços urbanos em edifícios" não refletem as caracterís
ticas culturais locais das populações que para aí se dirigem, como os shop
ping, porque também seguem as normas de projetos internacionais. Nesse sen
tido, certamente, se estão criando novos referenciais, semelhantes, pelas ci
dades de todo mundo. Não são muito diferentes as estações de metrô da De-
fense em Paris e da Conceição de São Paulo, nem os shopping Praia de Belas
em Porto Alegre, e o Bayside, de Miami.
O que se constata, entretanto, é que o comportamento do público muda
nesses novos espaços. Os comentários da imprensa dão conta de que os usuá
rios do metrô nem parecem os mesmos dos ônibus, já que os espaços são res
peitados, não havendo depredação de patrimônio. O que os faz se sentirem
diferentes quando estão nas ruas e quando estão nesses ambientes, e de novo
se portarem como verdadeiros cidadãos?
Não será porque em meio a espaços tão complexos, com fantasia ou não,
ele, o cidadão, se sente bem orientado, com referências claras, informações
precisas, independente de todos? Bem diferente de como ele se sente nos es
paços públicos atuais de nossas cidades, tão desorientado, tão perdido e tão
indefeso. Em alguns casos, até computadores são colocados a sua disposição,
para que ele, se quiser, possa buscar informações complementares que julgar
necessárias, já que por toda parte há informações, inclusive com programa
ção visual de ícones, para facilitar a comunicação. Os metrôs não ficam atrás.
Todos os trens expõem, de forma clara, o trajeto e as paradas. Por que os ôni
bus não apresentam seus itinerários também? Embora a grandiosidade daque
les espaços, o usuário não se sente reduzido. Foi dado a ele o respeito; ele sabe
onde está e para onde vai. E ele saberá respeitar.
Até Kevin Lynch (1974) já comentava que uma das piores sensações que
o homem pode sentir em relação ao espaço é a da perda de referência, de loca
lização, a sensação de estar num labirinto. Não é por menos que a mitologia
grega relevou esse aspecto.
A cidadania só se constrói sobre uma base sólida, que é dada, entre ou-

ipn
tros fatores, pelos referenciais que os cidadãos têm de sua cidade e que per
mitem a construção da memória coletiva da população. Sem conhecê-los, sem
saber o que representam, o que representam os prédios, as ruas e quais são as
práticas sociais que vêm sendo aí desenvolvidas, não há condições de se de
senvolver um cidadão por inteiro.
De um modo geral, as nossas cidades não se aperceberam que o urba
nismo de representação está se afastando das ruas. O cidadão não reconhece o
patrimônio cultural que configura as ruas, um dos fortes elementos de repre
sentação .social e formadores da identidade cultural, que pela sua presença pode
e deve acionar o dispositivo da memória coletiva. Por muitas vezes, esse pa
trimônio, por ser de.sconhecido da população, se encontra tapado por placas
de propaganda, ou em condições difíceis de .ser percebido e valorizado pelo
transeunte. Os valores são encobertos, e a memória empobrecida.
O urbanismo e a arquitetura, como foram expostos, sempre tiveram
um papel significativo quanto a sua representação e a representação social
na história da humanidade. Merece destaque, porém, o urbanismo do pe
ríodo barroco, que através de eixos, simetrias e perspectivas criava efeitos
e sensações que mudavam o real e valorizava o espaço ou as edificações
através de princípios de projeto e construção.
Atualmente, com todos os avanços da sociedade, tanto no campo tecnoló
gico como a criação do turismo de massa, o cinema, ou a multimídia de manei
ra geral, que povoam o imaginário da população, há uma relação dialética im
pulsionado e permitido a solução de problemas reais e o uso de efeitos espe
ciais para a construção do real, dando uma dimensão de complexidade muito
maior às cidades. Nestas condições, torna-se imprescindível a marcação de ele
mentos referenciais claros para a leitura dos espaços urbanos tanto na constru
ção do mundo da fantasia quanto na construção do mundo do pesadelo.
Existe uma correlação muito forte entre o imaginário social e os pro
jetos urbanísticos, tal como foi exposto aqui. Entretanto, é fundamental
que se mantenha o sistema de referências, porque o homem sempre preci
sou dele para identificar-se com o meio, com os espaços, com a cidade.
Trata-se da relação entre o lugar e o cidadão, que se vem enfraquecendo,
principalmente nos centros das nossas cidades grandes. Decorre daí que o
urbanismo de representação não pode afastar-se das ruas da cidade, nem
que seja para produzir uma "paisagem maquilada" (Veja, v.27, p.81):

Na au.scncia dc projetos urbanísticos cricicntcs para revitalizar os centros ur


banos deteriorado.s, a pintura pode funcionar como paliativo... Tal expediente
urbanístico, que andava meio esquecido, voltou à tona o ano passado com apoio
da iniciativa privada.... os painéis brasileiros mais encantam do que agridem
e ajudam a melhorar um pouco o áspero visual das grandes cidades.

... Ajudam a criar ou reforçar referenciai.s, ainda que sejam só visuais e


distantes, mas já é um princípio.

121
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BENJAMIN, Waltcr. Paris, capital do século XIX. Espaço e Debates , n. 11, ano 4,
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122
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mário henrique simão d'agostinü
as primícias da ordem

A forma c pura, como a que descreve o sol cm seu percurso.


(Ledoux)

Aos olhos áophilosophc da arquitetura, a Cidade - isto é, Paris - requer


"a essencial beleza de um parque, a multitude de caminhos, de vias amplas e
retas; ainda mais, [...] a ordem e o inusitado (bizarrerie), a simetria e a varie
dade" (Laugier, 1979,p.222). Por intermédio desses quatro termos finais e suas
duas parelhas, o abade Laugier ensaiou uma das mais arrojadas sínteses entre
as muitas atitudes e princípios artísticos da arquitetura da ilustração; síntese
esta cujas paradoxais implicações ainda hoje vivenciamos.
Em 1933, Emil Kaufmann publicou o clássico De Ledoux a Le Corbii-
sier, argumentando sobre o legado da ilustração para a modernidade. Toda
via, uma sorte de murmúrio perturba este diálogo que a arquitetura moderna
manteve com as Luzes: sua defesa á?i arquitetura autônoma, assente na feno-
menologia e voltada às questões da percepção, encobre, por assim dizer, um
significativo território da architecture parlante. Por isso, a altissonante res
posta dada pela contemporaneidade a diretrizes estéticas modernas - revives-
cendo preocupações tipológicas, contextualistas {genius loci, referências a sig
nos locais...), etc. —pôde ver-se igualmente atraída pela ilustração —e não por
acaso seu interesse pelas questões de representação e linguagem sugere uma
nova orientação estética, influenciada pela lingüística. Mas não falamos aqui
de revival, em nenhum dos casos. A mesma unidade tensa entre domínios apa
rentemente antagônicos ainda se faz presente.
Dois,dentreos quatrotermos empregados porLaugier, consideraremos, neste
trabalho, em maiores detalhes. A tal dissociação, o leitor legitimamente poderia
rebater osjuízosacimaapresentados. Entretanto, mais do que negligenciar tudoo
queestáemjogo na"síntese" a quenosreferimos, procuramos apreender suapos
sibilidade sob um ponto de vista muito singular: o da genealogia das idéias. Or
dem e Simetria, princípios fundamentais do classicismo, promoveram, noSette-

Mário Henrique Simão D'Agos'tino é profe-ssor na Faculdade de Arquitetura da PUC-Campi-

127
cento, uma transformação radical nos procedimentos compositivos clássicos e, em
última instância, na experiência das formas visuais. Para compreendermos a re
volução em curso, devemos examinar- e trata-se de algo realmente muito signifi
cativo - a profunda mutação de sentido que essas noções sofreram no âmbito da
própria "fundamentação do Clássico" revistapelo iluminismo.

ESPAÇO MÉTRICO, REGULARIDADE E CUBISMO:


GÊNESE DA RETÍCULA

Coube à crítica do princípio clássico da proporzionalità consumar


uma nova disposição artística, para a qual o espaço métrico reduzir-se-ia a
um elemento neutro, suporte de considerações quantitativas da realidade
visível. Porém, as implicações estéticas que esta espacialidade acarretava
se fizeram sentir muito antes dela ter cobrado forma acabada. Por mais pa
radoxal que possa parecer, foi no âmbito das próprias investigações sobre
proporção harmônica que este espaço métrico "neutro" tomou corpo. Ao
delegar à proporção o lugar que Perrault havia reservado às Belezas Posi
tivas, Christopher Wren universalizou o estudo geométrico-matemático de
sintaxe lingüística,' tornando-o aplicável, portanto, às arquiteturas góti
ca, vernacular, etc. Este método, em certa medida, já prenunciava os des
dobramentos futuros, embora se mantivesse demasiado preso aos proce
dimentos da estética clássica. Não causa estranhez, portanto - e ainda
menos se rememorarmos aqui o fio que conduz àStonebenge de Inigo Jo-
nes -, vir da Inglaterra o salto para as disposições estéticas radicalmente
novas relacionadas com o espaço métrico.
No seu Arquitetura na era da razão, Kaufmann comenta com palavras
enfáticas a consolidação do "cubismo"- como um procedimento compositivo
revolucionário na ilustração. Identificando seus precursores e centrando a aten
ção na Horse Guarás de William Kent, conclui: "Os arquitetos progressistas
da Inglaterra e os ainda mais violentos, embora muito posteriores, da França
lutaram pelo domínio do espaço medianteo cubismo" (Kaufmann, 1974, p.21).
Assim, os tímidos resultados a que chega a Horse Guarás não impedem de
sinalizar, para o historiador, uma mudança mais profunda. Comprometida com
um classicismo rigoroso, esta transformação comparecerá em todo seu vigor
na obra teórica de Robert Morris.

'"Existem duas causas de beleza, a natural e a consuetudinária. A natural vem da geometria,


consistente em uniformidade (isto c, igualdade) e proporção. A beleza consuetudinária c en
gendrada pelo uso de nossos sentidos ante aqueles objetos que nos são habitualmente gratos
por outras causas, tal como a familiaridade ou a particular inclinação alimenta o amor a coi
sas não amáveis em si mesmas: Aqui reside a grande ocasião dos erros: porem, sempre a prova
veraz c natural ou beleza geométrica"; cit. in RYKWERT, Joseph. Los primeros modernos,
trad. de Justo G. Beramendi, Ed. Gustavo Gili, Barcelona, 1982, p. 137.
-Cubismo refere-se aqui ao emprego da forma geométrica do cubo como unidade composi-
tiva.

128
Ante as limitações características do classicismo de Wren, embora tri
butária de todo seu arcabouço teórico, a obra de Robert Morris dará novo sen
tido para as "experimentações" compositivas em curso. Morris elabora um mé
todo de estudo das qualidades da arquitetura tendo em vista a compreensão
dos princípios compositivos reguladores através da combinação de cubos, ho
rizontal e verticalmente. O conceito de cubo como unidade-célula do conjun
to tem para Morris, como observa Kaufmann, a força de evidenciar "a idéia
compositiva que se esconde atrás das fachadas convencionais" (p.25); caráter
mental que adquire um particular interesse para os nossos estudos.
Diferentemente úoocchio mentale da estética clássica, voltado para uma re
gularidadeobjetiva, deslocamo-nos agora lentamentepara uma valoração da re
gularidade geométrica como condição de entendimento, vale dizer, subjetivada.
Se a perspectiva pressupunlia um "modo correto de ver" e remetia-se para uma
ordem regular no domínio do espaço empírico, a estética que aqui se anuncia con
sidera a regularidade como possibilidade da visão. Por sua vez, insinua-se uma
nova formatividade cujo desafio será exatamente assegurar a "idéia compositiva"
no domínio do espaço fenomênico; Gestaltung que enfrentará diretamente, e pela
primeira vez, o problema da estética da forma piira.^ Este projeto, porém, esteve
longe de ser levado, por Morris, às suas últimas conseqüências.''
Nas Luzes, a expressão mais acabada do novo tópos da regularidade pro
vavelmente encontra-se no Arquitetura: ensaio sobre a arte de Etienne-Louis
Boullée:

•'A mudança dc perspectiva em relação à regularidade originou-se na própria obra teórica de


Chri.stopher Wren, que reinterpretou a distinção perraultiana dos dois princípios fundamen
tais da arquitetura à luz do método empírico de Locke, deslocando, assim, para a esfera do
sujeito a atenção dirigida às belezas positivas: "as figuras geométricas são naturalmente mais
belas que quaisquer outras irregulares; nisto consentem todos, como ante a uma lei da natu
reza". Mas a emergência de uma "estética das formas pura.s" colocou-se, aí, apenas como
possibilidade, e o mesmo com Morris. Como expõe Hugh Honour, "para estes homens, a
geometria era um meio, não um fim cm si mesma", o que exemplifica contrapondo a lâmina
dos sólidos geométricos adornando um Jardim, apresentada por Joshua Kirby no seu manual
sobre perspectiva, publicado em 1745, "para sugerir que o desenhista que houvesse domina
do a representaçãode formas puras poderia avançar para as mais complicadas e irregulares",
ao Altar da Boa Fortuna desenhado por Goethe em 1777 para seu jardim de Weimar, no qual
uma esfera sobre um cubo "tem sido despojados de todas suas adercncias alegóricas renas
centistas e barrocas para reluzircm como formas puras, como essências platônicas situadas
muito apropriadamente em uma paisagem natural idealizada" (p. 127-30). Segundo o histo
riador, esta transformação alcançará plenitude na arquitetura de Ledoux (p. 130); In.* HO
NOUR, Hugh. Neo-classicisnt. England: Pcnguin Books, 1968.
••"Morris queria que o cubo fosse a característica definidora do edifício, mas não pretendeu
convertê-lo em uma realidade sem disfarces" (p. 28): Kaufmann comenta a transformação
radical que este procedimento opera nos esquemas compositivos: "Em lugarde um esquema
llnilo —o uno iníiero, e bemfmito corpo de Palladio —(Robert Morris)aceita uma composi
ção ad infiniium que eqüivale a justapor e desdenhar a sacrossanta hierarquia barroca" (p.
25). Sobre esta assertiva de um caráter "proto-racionalista" da Arquitetura da Ilustração, v. à
frente nossas considerações finais.

129
Tive que reconhecer que somente a regularidade poderia dar às pessoas idéias
nítidas acerca da figura dos corpos e determinar sua denominação [...]. Com
posta por uma multitude de faces, todas diferentes, a figura dos corpos irregu
lares [...] escapa a nosso entendimento. (1985, p.56)

Mas para que o cubismo - ou, numa expressão mais usual, a retícula -
ganhasse autonomia e condicionasse uma autêntica investigação estética so
bre suas possibilidades formais (Durand), interpunha-se um outro percurso,
que conduzia da sintaxe ao léxico. De fato, era para as questões de lingüísti
ca, para as "formas de expressão" ou para os "costumes" que se voltavam as
atenções. O neo-estoicismo ilustrado orientava-se, sobretudo, para esta divisa
entre a naturalidade e a artifícialidade: daí advinha um interesse crescente pela
exposição de Vitrúvio sobre a cabana primitiva, e aí far-se-ia imperativo que o
esprit geométrique sancionasse sua "arquitetura de formas puras".
Em um estudo hoje clássico, Rykwert comparou o formalismo geométrico
de Boullée ao de William Chambers, possivelmente seu conhecido, para ressaltar
a preeminência adquirida pelos problemas epistemológicos na interpretação do
mito da primeira cabana: Que a cabana primitiva foi de figura cônica - expõe
Chambers - é uma conjectura razoável, pois, das formas sólidas, esta é a mais sim
ples e fácil de constmir. Sempre que encontraram madeira, provavelmente cons
truíram da maneira descrita; porém, tão logo os habitantes descobriram os incon
venientes dos lados inclinados e a necessidade de um espaço vertical dentro do
cone, substituíram-no porumcubo. Supõe-se que procederam dessa maneira. "É
notávela ênfase sobre a forma geométricada cabana", concluía Rykwert (1974,
p.88)- tecendo, em seguida, um rápido comentário ao cubismo de Morris.
Ocupando, na ordem de interesses, o lugar anteriormente reservado ao
princípio daproporzionalità, este tópos radicalmente novo da regularidade co
brava vigor, portanto, em um domínio hoje inóspito. As interpretações que
Chambers e Boullée deram sobre o mito da cabana primitiva, voltadas à con
cepção da forma regular (e à estética das formas geométricas), consumavam
uma mudança de atitude que trazia consigo uma longa história.
Remonta à distinção de Perrault entre os fundamentos positivo e arbi
trário da arquitetura o incremento de interesse pela exposição de Vitrúvio so
bre a história dos homens primitivos e a origem da arquitetura.'* Ao propalado

^Ao capítulo primeiro do LivroSegundo do De architectiira acrescentam-se também os pri


meiros capítulos do Livro Quarto. No Renascimento, a narraçãode Vitrúvio adquire um sig
nificado distinto. Na Carta a Leão X, lemos: "A arquitetura (da maniera tedesca; ou seja,
gótica) teve alguma razão (de ser). Já que nasceu das árvores ainda sem cortar, cujos ramos,
dobrados e atados conjuntamente, formaram seus arcos pontiagudos. E embora não se deva
depreciar totalmente esta origem, conduz, sem dúvida, a [uma arquitetura] débil, porque re
sistiriam muito mais as cabanas feitas de travamentos encadeados, dispostos a partir de co
lunas com suas arquitraves e coberturas - como descreve Vitrúvio na origem da obra dórica
-, que os arcos pontiagudos, os quais tem dois centros. [...] (A arquitetura gótica) carece de
graça à nossa vista, pois esta se compraz na perfeição do círculo: e vê-se que a natureza qua
se não busca outra forma. Porém, não é necessário falar da arquitetura romana para compa-

130
convencionalismo das cinco ordens arquitetônicas, os teóricos recorriam, com
afinco, à autoridade do tratado antigo, procurando informações sobre a histó
ria (e o porquê) de cada ornamento e proporção - e, na maioria das vezes, bus
cando uma contraprova, se possível.
Entretanto, ao imbricar-se com as reflexões sobre a origem da arquitetu
ra, podemos facilmente identificar a questão da regularidade, tal como aqui
se apresentava, com a definição á^symmétrie moderna proposta por Perrault;^'
isto obscurece, porém, a enérgica reação do iluminismo ao princípio perraul-
tiano &àaiictoritédas ordens arquitetônicas. Neste "termo de relação" se con
densavam os elementos da ruptura.
De fato, o regresso às fontes orientou de modo singular a polêmica sobre
os princípios da arquitetura. Vitrúvio(1914, p.103-104) informava que os gre
gos, "havendo descoberto que o pé era a sexta parte do corpo, transferiram esta
relação à coluna dórica, dando-lhe a altura de seis diâmetros de base, incluindo
o capitei"; entretanto, "os arquitetos que lhes seguiram, havendo feito progres
sos em elegância e refinamento de gosto, e guiando-se pelo encanto das propor
ções mais finas, estatuíram como altura para a coluna dórica sete vezes seu diâ
metro, e para a jõnica [...] nove diâmetros". Esta exposição veio a adquirir um
papel importante na argumentação da prioridade ou não da arquitetura romana
sobre a grega (p. ex., presente em Winckelmann e Piranese, entre outros); por
sua vez, colocava em destaque o princípio da mímesis antropomórfica, da pro
porcionalidade.Também em relação às descobertas arqueológicas - que aumen
taram ainda mais o calor das polêmicas -, adquiria importância a descrição de
Vitrúviosobre a ornamentação e o emprego da pedra na arquitetura grega: "Imi
tando a reunião das várias peças de madeira, com as quais os carpinteiros cons
tróem as casas, os arquitetos têm inventado a disposição de todas as partes que
compõem os grandes edifícios de pedra e mármore" (p.l07). As filiações bus
cadas entre as arquiteturas egípcia, etrusca e romana (claramente comprometi
das com as reflexões de Lodoli) acenavam para o emprego do material em fun
ção de suas qualidades-"funcionalidade" que também se impunha, obviamen
te, pela coerência entre o ornamento e o material.

rá-la com a bárbara, a clilcrcnça c patcntíssima; nem lampouco para descrever suas ordens,
já que sobre isso muilo e excelente foi o escrito por Vitrúvio"; In; RAFAEL, e CASTIGLIO-
NE, Baldassare. Carta a León X (1519), In: Fuentes y documentos para Ia história dei arte,
V. IV, p. 220-229 - especificamente, p. 228-229. Arquindo sobre a fundamentação teórica da
tratadística da arquitetura do Renascimento através de uma geschichtskonstruktion, Pano-
fsky comenta: "Substituindo o homem primitivo pelos bárbaros invasores e "as vigas de ma
deiras entrelaçadas com ramos" por "árvoresvivas,com ramosdobradose reunidos no topo",
o autor ou autores da Carta a Leão X forneciam uma explicação plausível da mais controver
sa e mais extraordinária característica do estilo gótico que c o arco ogival, por eles conside
rado inferior ao arco semicircular"; In; Renascimento e renascimentos na arte ocidental, op.
cit, p. 47.
'"Sobre a definição de Symmétrie moderna, em Perrault, contraposta à Symmetria dos Anti
gos; cf. nosso artigo "A Linha do Horizonte - Reflexõessobre a Crítica da Simetria Clássi
ca". Revista Ócttltim, n.3, p. 56-57, Campinas, 1993.

131
Mas as disputas em torno dessas questões, e outras similares, perdem
intensidade quando comparadas às sofisticadas reflexões sobre a descrição vi-
truviana da história primitiva dos homens. Com oEssai de Laugier, a cabana
primitiva adquiriu autoridade exclusiva, conforme a expressão empregada por
Rykwert em A casa de Adão no paraíso.
A importância dada à cabana primitiva, nas teorizações de arquitetu
ra empreendidas na ilustração, não estava propriamente no fato de ser a
primeira na ordem temporal. Para Laugier, a cabana primitiva cobrava au
toridade pelo fato de, nela, o homem encontrar-se absolutamente livre de
condicionamentos exteriores ao da necessidade primária que o havia im
pelido à construção; nela, o homem era guiado "apenas pelo instinto natu
ral de suas necessidades". Este comportamento natural, "instintivo", sub
traía da construção todas as possíveis arbitrariedades ou convencionalis-
mos de gosto.'
Se devêssemos definir em uma palavra o ideal que aqui se estabelecia, tal
vez o mais correto fosse dizer: objetividade, posse de critérios valorativos que to
cam necessariamente a realidade das coisas porque dão acesso às condições in
dispensáveis de sua própria realidade. Usar a razão para apreender o que Gmabso-
lutamente necessário (e isto vale também para o domínio da subjetividade) reve
lou-sea principal arma contra a arbitrariedade dos elementos da arquitetura.
Portanto, esta leitura se desviava do significado que a questão da si
metria tinha na narração vitruviana.** O valor da natureza, mais do que re
meter à onto divina (e ao pressuposto da homologia entre as leis da natu
reza e as da beleza), resultava, por assim dizer, subjetivado pelo domínio
comportamental. E aqui retomamos ao nosso objeto de estudo.Temos visto
como este deslocamento de interesse para o sujeito'' veio a corroborar uma

^LAUGIER, M.-A. Essai sur l'arcltilecture, op. cit., capítulo primeiro, p. 8-12. Sobre as dife
renças entre as abordagens teóricas de Laugier e Rousseau,cf. RYKWERT, J. La casa dcAdán
en et Paraíso, op. cit., p. 51-59.
Sobre o significado da Symmetria na exposição de Vitrúvio, novamente remetemos o leitor
às nossas considerações cm "A linha do horizonte", op. cit., p. 55-56.
''Certamente, o fortalecimento da orientação para o sujeito trouxe consigo profundas impli
cações e redirecionamentos neste ideal de objetividade. No A norma do Gosh, David Hume
dirá: "A diferença, dizem, entre o juízo e o sentimento é muito grande. Todo sentimento é
correto, porque o sentimento não tem referência a nada fora de si [...]. Um milhar de senti
mentos diferentes, motivados pelo mesmo objeto, serão todos eles corretos, porque nenhum
dos sentimentos repre.senta o que realmente há no objeto. Somente assinala certa conformi
dade ou relação entre o objeto e os órgãos ou faculdades da mente", (p.27) A partir desta
concepção, Hume argüirá sobre a "norma do gosto", a existência de "princípios gerais de
aprovação ou cen.sura" (p.32). Uma meticulosa ponderação conduz ao arrazoado de que "em
realidade, a dificuldade de encontrar a norma do gosto [...] não é tão grande como parece.
Ainda que a nível teórico possamos admitir de bom grado a existência de um critério deter
minado na ciência e negá-lo com respeito ao sentimento, na prática vê-se que c muito
mais difícil re.solvcr a questão no primeiro caso que no .segundo. Durante uma época pre
dominam certas teorias filosóficas abstratas e certos sistemas de teologia profunda. No
período subseqüente, tem sido universalmente desacreditadas, advertendo-se seu cará-

13P
"subjetivação da regularidade" e, conseqüentemente, uma "estética das
formas puras". Naturalizando a apreensão da regularidade, Boulée inau
gurou uma investigação formal de maior amplitude, desviando a preocu
pação anteriormente dada à cabana primitiva."'
E difícil não pensarmos em Kant - e, por conseguinte, no espaço en
quanto forma a príori da intuição - quando temos em vista tais transfor
mações. Por um lado, a "neutralidade" que o espaço métrico da Renascença
passou a adquirir na ilustração - despojando-se, como vimos, do simbo-
lismo dos números harmônicos e das relações de proporcionalidade; por
outro, a subjetivação supra-referida. Uma disposição espiritual de tal or
dem, direcionada a liberar a arte dos artificialismos e arbitrariedades, a con
quistar algo de absoluto, orienta-nos, quase que naturalmente, às reflexões
filosóficas kantianas." Todavia, há que se ter cautela nesta aproximação.
Ao insistirmos no formalismo geométrico da arquitetura da ilustração, pro
curamos marcar sua natureza profundamente distinta daquela ordenação
espacial geométrico-matemática própria à perspectiva. E assim como não
podemos concluir que pelo fato do espaço newtoniano permanecer - ou,
ainda mais, assumir um papel capital - no sistema filosófico kantiano tra
ta-se aí de uma mesma concepção do espaço, também em relação à arqui
tetura convém apreender as especificidades da "questão da regularidade"
tal como se colocou.

ter absurdo, c outras teorias passam a ocupar o seu lugar para dar a vez, novamente, a outras
que vêm substituí-las; e a experiência mostra que nada está mais sujeito às revoluções do
acaso e da novidade que estas supostas decisões da ciência. Não ocorre o mesmo com as
belezas..." (p. 44-45, grilos nossos). Reencontramos, portanto, no centro destas reflexões um
eco dos problemas levantados no Investigação sobre o conhecimento humano (convém re
memorar: "(5//C' o sol não sairá amanhã não c uma proposição menos inteligível nem impli
ca maior contradição que a afirmação sairá amanhã"•, Investigación sobre el conocimiento
humano, Alianza Ed., 1984, Seção 4, p. 48); In: HUME, David. La norma dei gusto y otros
ensaios, trad. de Maria Teresa Beguiristáin, Ed. Península, Barcelona, 1989. Sobre o papel
revolucionário do empirismo inglês (Locke, Berkeleye, sobretudo, Hume) cf. WITTKOWER,
R. "Teoria Classica e .sensibilità settecenlesca", In." Palladio e palladianesimo, op. cit., p.
310-312.
"'Rykwert assim resume o Arquitetura: ensaio sobre a arte: "L.-E. Boulice [...] escreveu seu
Essai em 1780. Ao princípio rechaçava a afirmação de Perrault sobre a arbitrariedade do gosto
e também a analogia de Blondel com a música. E buscava fundamentar sua teoria na 'natu
reza', com o que parece significar uma compreensão a priori dos corpos regulares"; In; Los
primeros modernos, op. cit.. p. 483.
" Aqui valem as ob.servações feitas por Hubert Damisch no Prólogo do De Ledoux a Le Cor-
busier. "Se devemos pensar em Ledoux com Rous.scau, se não com Kant, é na medida em
que esta outra aproximação permite compreender quanto o rechaço das regras transmitidas
pela tradição podia, nele, ir a par com a afirmação de uma legalidade imperativa, incondici-
onada"; DAMISCH, Hubert. Ledoux con Kant, in KAUFMANN, E. De Ledoux a Le Corbusier,
trad. de Reinald Bernet, Ed. Gustavo Gili, Barcelona, 1982, p. 14 (cf., na seqüência, o estu
do sobre o papel da retícula nos Précis d'architecture de Durand e na arquitetura moderna,
p. 14-16).

133
FORMALISMO GEOMÉTRICO E "DECOMPOSIÇÃO DO ESPAÇO"

Em 1753, William Chambers publica sua obra Designs ofchinese buil-


dings, furnitui ., machines and uíensiles, comparando a "pureza formal" da ar
quitetura chinesa com a arquitetura clássica.'- Com isto, e como ele mesmo
dizia, não almejava equiparar a arquitetura chinesa à antiga, o que significaria
dar legitimidade máxima a um "estilo" então em moda;'^ pelo contrário, o in
teresse de Chambers estava em evidenciar o valor subjetivo e o caráter univer
sal ou, por assim dizer, "apriorístico" da regularidade. Sua ênfase no forma-
lismo geométrico encontrou, no transcurso da segunda metade do século, um
aliado de importância decisiva.
De fato, para a maturidade da estética então prenunciada conviria a ex
pressa afirmação da amplitude e preeminência das condicionantes percepti-
vas (ou melhor, cognitivas) na definição dos valores artísticos. Nesta direção
se orientaram as reflexões de Winckelmann sobre a arte grega. Na História da
arte na antigüidade, o historiador expunha, com uma escrita demasiado apai
xonada para a ambiência estóica da narrativa, as razões profundas que se coa
dunavam aos princípios artísticos clássicos. Assim, da prossecução áa harmo
nia emergiam os ideais de "simplicidade e tranqüilidade"; unidade harmôni
ca responsável, segundo o autor, pela "indefinição" das obras de arte clássicas
- posto que, nelas, a unidade e concordância entre as partes não permite que
nenhuma se destaque em relação às demais - e à qual dedicava estas signifi
cativas palavras:

A harmonia que cativa nosso espírito não se compõe de uma multitude de fa


cetas que desfilam à vista, mas de amplos e singelos traços. [...] a magnificên
cia de uma casa será tanto maior quanto mais simples forem suas linhas. Da
unidade surge outra qualidade da alta beleza: a indefinição da mesma.'"'

'-"Existe um notável paralelismo entre ela (arquitetura chinesa) e a arquitetura dos antigos,
sem que, por sua vez, exista a menor probabilidade de que uma tenha copiado algo da outra.
Em ambas [...] a composição formal tende a figura piramidal. Em ambas, também, as colu
nas se empregam como suportes, diminuem na parte superior e têm bases CHAMBERS,
William. Dibujos sobre Ia arquitectura, muebles, máquinas y utensílios chinos (1753); In:
Fueníes y documentos para Ia historia dei arte. Barcelona: Ed. Gustavo Gili, v. 5, 1983, p.
427.
Sobre o teor das palavras com que Chambers se dirigiu ao ecletismo em voga, cf. PEVS-
NER, N. & LANG, S. "El Resurgir dei Dórico" [título orig.: Apollo or Barboon], In: PEVS-
NER, \^'\V.o\di\xs. Estúdios sobre arte, arquitectura y diseíio. Barcelona: Ed. Gustavo Gili, 1983,
p. 158-177 (sobretudo p. 169-170) (tradutor Esteve Riambau i SaurQ; cf. também CHAM
BERS, W. op. cit., p. 426 e 428.
" Interessante notar que, antes de responder a um princípio ético, o ideal de simplicidade e
tranqüilidade comparece como uma exigência do próprio ideal de Harmonia (ou, podería
mos dizes, da Symmetria). Winckelmann conclui: "Segundo este conceito, a beleza deve
as.semelhar-.se à mais límpidaágua de um manancial,que mais.sã se considerará quanto menos
sabor tiver, já que isto demonstra sua pureza". In: WINCKELMANN, J.J. Historia dei arte
en Ia antif^Uedad (1764), irad. de Herminia Dauer, Ed. Ibéria, Barcelona, 1984, Livro IV, cap.
4, p. 119 [cf. a citação de Bouliée, p.l30].

134
Tomando a expressãoda beleza como a"forma alegórica" da figuraçãodo
divino,'*' Winckelmann enaltecia uma arte que primava pela"pureza formal" e,
conseqüentemente, pelo valor intelectivo da forma.Por fim, comprometendo
o ideal de harmonia com as prerrogativas éticas, sua "máxima" da nobre sim
plicidade e tranqüila grandeza visava a um idealde vida e um projetode orga
nização política." Na arquitetura, os escritosde Miliziadivulgaram (e, em cer
to sentido, vulgarizaram) essas idéias, estabelecendo as condições para a asso
ciação do "rigorismo" à percepção clara da forma, com o que se ampliou subs
tancialmente a abordagem laugieriana da "cabana rústica".
Exigência de clareza na percepção da forma e preeminência fenomeno-
lógica das formas "puras" não devem ser assimiladas a expedientes de van
guarda da "arte abstrata". Nada há, aqui, que autorize a pensar a forma pura
independentemente de referências "semânticas" ou "figurativas" - sob uma
perspectiva artística, portanto, essencialmente "constructiva". Ressaltando os
estreitos vínculos que estes princípios mantêm com a lexicologia, somos in
duzidos a duvidar das equiparações, freqüentes na mais recente historiografia
da arte sobre a ilustração, entre purismo e abstracionismo formal. Questão não
de pouca valia quando indagamos qual sentido precisamente possui o espaço
fenomênico das formas regulares aqui constituído.
Obviamente, uma resposta satisfatória a esta indagação deve ter em
conta, por uma parte, os princípios artísticos asseverados na própria ilus
tração, sob o singular patrocínio da crítica à arte Barroca. Neste sentido,
vimos como a valoração artística da regularidade divisou-se pela expressa
reação à arte "composta por uma multitudede caras, todas diferentes" (Bou-
llée). Mas o estudo dos princípios compositivo-espaciais da arquitetura não
se atém exclusivamente a tais diretrizes, procurando liberar-se das pers
pectivas e limitações históricas, de modo que possa apreender a estrutura
e a totalidade das implicações presentes (ou latentes) na nova concepção
espacial. Argan alertou sobre a importância do ocaso do princípio clássi
co da proporzionalità para a consubstanciação de um domínio formal (e

'^Este c o sentido da cilada pas.sagcm sobre a juventude ideal masculina de Apoio (cf., op.
cit., p. 124).Temos aqui uma referencia neoplatônicasobre a importância áa imaginação como
forma de cognição.
"'Não devemos restringir o enaltecimento do "valor intelectivo da tbrma" às referências fei
tas ate aqui (vale dizer, onde o mínimo de linhas expressa o máximo de sentido). As palavras
de Winckelmann são precisas: "A cor contribui para a beleza, mas não é em si a beleza, ape
nas a realça. Dado que a cor branca c a que mais raios de luz devolve, ou seja, a que mais
aparece, veremos que um corpo resulta mais belo quanto mais branco. [...] Um negro poderá
ser belo se seus traços da face o são. [...] Tampouco nas antigascabeças metálicasou de ba-
salto negro ou esverdeado nos molesta a cor. [...] Tudo isto nos demonstra que também den
tro de uma apresentação desacostumada e em uma cor pouco grata pode encontrar-se a bele
za, e que esta nada tem a ver com a condescendência."; In.* op. cit., p. 117.
"Cf. Livro V, cap. 3, p. 171-75; Winckelmann emparelha a Vênus Celeste, nascida de Har
monia, c a Vênus Terrena, sua companheira e filha do Tempo - vale dizer, as deidades lumi
nares da Tradição Neoplatônica -, às Graças Celeste e Terrena.

135
visual) radicalmente novo - contrapondo, aos valores numérico-proporci-
onais da Ordo clássica, o cubo como unidade espacial modular reprodutí-
vel ad infiniíum; e ao módulo regulador do organismo harmônico, o stan
dard como princípio "constructivo" racionalizador.'" Mas foram, sobretu
do, os estudos de Kaufmann que abordaram, de forma sistemática, as trans
formações ou a metamorfose em curso. Prosseguindo os estudos pionei
ros de Giedion,''' Kaufmann argüiu como princípio fundante da arquitetu
ra na Idade da Razão a desintegração da unidade hierárquica barroca, ven
do em Piranesi a figura emblemática do ápice deste processo; "(Nas Car-
cen) Os elementos se contrapõem uns aos outros; cada um é uma ameaça
para todos os demais. Aquilo é umpandemonium de forças hostis; reinam
a desordem e o estrépito. Deste modo se visualizam os objetos e se de
compõe ao mesmo tempo o espaço. O conceito de espaço integral e unifi
cado tem desaparecido juntamente com os elementos tradicionais".-" Nesta
última frase radica, para o historiador, a profunda diferença da moderna
"síntese compositiva" da forma.
Sabemos que, desde o Maneirismo, o papel determinante que o espaço
unificado, geométrico-matemático, havia adquirido no Renascimento cedeu
posto para uma poética de "espaços ilusórios", de jogos de anamorfose, etc.;
poética cujo valor imagético dialogava, por um lado, com a concepção da re
latividadedo espaço e, por outro, com uma arte voltadaaos efeitos psicológi-

'"Cf. ARCAN, G.C. Projecío y destino.


''^Teyssol tem ressaltado a influencia dos estudosde Sigfried Giedion naobra de Kaufmann,
particularmente os desenvolvidos em um de seus primeiros trabalhos, Spâtbarocker und
Romantischer Kiasüzi.sntus, onde analisa o significado do espaço no ciassicismo tardobar-
roco e no ciassicismo romântico ["o ciassicismo romântico se manifesta da maneira mais
pura onde pode expressar-se livremente de modo plásticoe constituir não espaço, mas vo
lume". (cap. II); "não existe já nas plantas românticas o ritmo cerrado dos espaços barro
cos, mas aparece algo moderado: cada uma das partes se converte em uma individualidade
independente alinhada com as outras, c pode-se alterarsua ordem sem produzir mudanças
decisivas" (cap. III) - cit. por Tcyssot); cf. TEYSSOT, Georges. "Ilustración y arquitectura.
intento de historiografia", In; AA. VV. Arte, arquitectura y estética en el siglo XVIII. Bar
celona: Ed. Akal, 1987, p.l 11-114.
^'KAUFIVIANN, Emil. La arquitecturade ia ilustración, op. cit., p. 126. Contrapondo-se a Kauf
mann,Tafuri não vê as Carceri de Piranesi como o prelúdio do racionalismo moderno, mas o
prenuncio de seu destino: "A destruição do próprio conceito de espaço realiza-se nos Carceri,
funde-se com a alusão simbólica à condição nova que se perfila no horizonte da sociedade que
estáa realizar um salto radical [...]. O espaço do constrangimento - o cárcere - c, nas gravuras
piranesianas, um espaço infinito. O que é destruído é o 'centro' desse espaço: istoc, ao arruinar
dosantigos valores daordem antiga corresponde a 'totalidade' da desordem. A raison, quepro
duz aquela destruição,sentida de resto como fatal pelo gravadorsetecentista, traduz-seem irraci
onalidade. MasosCarceri, precisamente porque infinitos, coincidem como espaçoda existência
humana. As cenas herméticas desenhadas por Piranesi, nas malhas das suascomposições 'im
possíveis', mostram-no com uma clareza extrema. Oque significa quenosCorem só poderemos
vera nova condição existencial da coletividade, libertada e amaldiçoada, simultaneamente, pela
sua própria razão."; In; TAFURI, M. Projecto e utopia, trad. de Conceição Jardim e Eduardo No
gueira, Ed. Presença, Li.sboa, 1985, p. 22.

136
COS e ao "valor subjetivo" dos princípios artísticos.-' Ora, é muito significati
vo ter sido neste domínio da subjetividade que a questão da regularidade co
brou vigor na ilustração - quase um paradoxo, se lembrarmos, de relance, as
palavras de Boullée supracitadas. A complexidade deste processo escapa, ainda,
a muitos historiadores.
Detenhamo-nos brevementeem Piranesi.Vários estudos de iconografia têm
ressaltado a imago miindi secretada nas Carceri. A decifração do significado das
inscrições em latim presentes nas Lâminas números 2 e 16, como apareceram
na segunda edição, desvela uma simbólica na qual se opõem "as virtudes cívi
cas, a eqüidade e a intransigência no cumprimento das leis" (Calvesi) dos ro
manos primitivos, e a Roma da "corrupção helenística", das cmeldades do im
perador Nero. A Roma Republicana, onde o cumprimento da lei se divisa pelo
Direito de Liberdade, Piranesi contrapõe o "legalismo tirânico" da Roma Impe
rial, instauradora de um mundo onde a lex converteu-se em um puro instrumen
to de controle e dominação. Estudos estes que adquirem importância maior quan
do considerados pelo paralelismo, freqüente nos escritos de Piranesi, entre o
declínio da grandeza de Roma e a condição moderna.
No Parere suirarchitettura, o diálogo entre Protopiro e Didascalo repõe
e atualiza a polêmica exposição de Vitrúvio sobre a relação entre a arquitetura
grega e a romana: "(Protopiro:) Não digo que se devam utilizar somente as
primeiras normas; não reprovo o desejo dos sucessores daqueles primeiros ar
quitetos de mostrar-nosnovidades; reprovo a qualidadedessas novidades [...].
(Didascalo:) [...] Reprovais o mesmo espírito que vislumbrou o que elogiais,
e que, ao advertir que com isto não havia satisfeito ao mundo, se viu e se vê
obrigadoa variar nesse aspectoe nessemodoque lhes desagrada." (1982, p.32).
A varietà empreendida pelos antigos arquitetosromanos(em reação à fixidez
normativa da arquitetura grega) emparelha-se, aqui, com a defesa moderna "da
liberdade de que cada um varie a seu bel-prazer os ornamentos" (p.34) - defe
sa que, contrapondo-se ao axioma de Montesquieu, "um edifício carregado
de ornamentos é um enigma para os olhos, como um poema confuso o é para
a mente", antecipava as reflexões de Lessing sobre a diferença entre os meios
e os objetos próprios à poesia e às artes visuais (p.34 e ss.).
O vigor com que Piranesi encaminha a refutação dos argumentos le
vantados pelos rigoristas sobre a coerência e a absoluta justificação dos
elementos da arquitetura - culminando na... Edifícios sem muros, sem co
lunas, sem pilares, sem frisos, sem cornijas, sem abóbadas, sem tetos: tudo
liso, liso, um campo vazio —traz como marca o fato de ser a própria razão
quem põe abaixo o sonho holístico do racionalismo arquitetônico: "(o ri-
gorista) somente poderá conceber um edifício sem irregularidades quan-

A csle respeito, cf. PANOFSKY, Erwin. "El Manlerismo", In: Idea, op. cit., p. 67-92; KLEIN,
Robcrl. "Estúdios sobre íu perspectiva en ei Renascimiento", sobretudo itens II e III: "Pers
pectiva hifocal, visión binocidar y método dei punto de distancia " e "La perspectiva curvilí-
nea y ia anamorfosis", in La Forma y Io Intelieible, op. cit., p. 255-268.

137
do quatro paus retos com uma cobertura sobreposta, que é todo o protóti
po da arquitetura, [...] puderem subsistir inteiros e unidos" (p.31-32). Este
inexorável expediente de "irregularidade" que perturba a lexicologia não
conduz, porém, à irracionalidade absoluta.-- E daí a dificuldade para ler
as Carceri de Piranesi à luz da crítica do espaço consolidada na ilustra
ção.--^
Convém, portanto, retomar a indagação diretriz dos nossos estudos,
ressaltando o que até então permanecera como subtexto. Substancialmen-

—Rykwert argumenta que a defesa da "liberdade de ornamentação" não é contraditória à pas


sagem do Delia magnificenzaed architettura de'romaní (1761) onde Piranesi expunha que a
varietà, como um "acompanhamento" ornamental (e antídoto à monotonia), jamais poderia
violar "isto que c próprio à ligura principal". Wittkovver contrapôs a postura aqui apresenta
da sobre a relação entre a "figura principal" e o "acompanhamento ornamental" à desenvol
vida nos Parare (cf. WITTKOWER, R. "La Doctrina Arquitectónica de Piranesi", In; Sobre
Ia arquiteclura en Ia Edad dei Humanismo, op. cit., p. 242). Por sua vez, Emil Kaufmann
interpretou esta passagem do Magnificenza como "enaltecimento, ate o último momento, da
ordem hierárquica do Barroco" (cf. La arquiteclura de Ia ilustración, op. cit., p. 128). Rykwerl
propõe uma interpretação distinta para o princípio piranesiano da varietà, no seu entender
unicamente condicionado - porém, nem por isso menos livre - pelo expediente funcional de
que "o ornamento nunca deve cobrir ou ocultar a estrutura do edifício, somente marcá-la"
(cf. Los primeros modernos, op. cit., p. 287); posicionamento que se alinha às recomenda
ções estabelecidas por Lodoli ou ao tipo de ornamentação então praticada na villa Albani -
sem excluir, com isto, o sentido radicalmente novo que Piranesi lhe atribuía. Referindo-se
ao significado das .seis lâminas que terminam as Osservazioni e fazem abertura aos Parere, o
autorobserva: "a imaginária das últimas lâminas c muito mais complexa e enigmática que a
'rococo' das primeiras. Piranesi queria para os edifícios futuros um ornamento misterioso e
desconcertante"; p. 287. Sobre o caráter precursor da estética do sublime na arte de Piranesi,
cf. WITTKOWER, R. "Piranesi y Ia Egiplomania", op. cit., p. 257.
^ Em relação a esta crítica do espaço geométrico-matemático, Diderot oferece significativas
imagens. No Da interpretação da natureza lemos: "Estamos quase chegando ao momento
de uma grande revolução nas ciências. Pela tendência que os espíritos me parecem ter para a
moral, para as bclas-letras, para a história da natureza e para a física experimental, eu quase
ousaria assegurar que antes de cem anosnãoconstará trêsgrandes geõmetras da Europa. Esta
ciência acabará sem mais ninguém [...]. Suas obras subsistirão nos séculos por vir como as
pirâmides do Egito, cujas massas carregadas de hieróglifos despertam em nós uma idéia as
sustadora da potência e dos recursos dos homens que as elevaram.". Essas palavras ecoam
n'0 sonho de Mangogul: "Comecei a adormecer e dar asas à minha imaginação quando vi
um animal singular pousar ao meu lado. Ele tinha a cabeça deuma águia, os pés de um grifo,
o corpo de um cavalo e a cauda de um leão. Agarrei-o, apesar doseu curvetear e, prendendo-
me àsua crina, sentei-me rapidamente sobre seu dorso. [...] Nosso percurso jáera longo quando
percebi, no vazio doespaço, um edifício suspenso como que por encanto. De modo algum
eu diria que ele pecava pelos fundamentos, pois não estava sobre nenhum. Suas colunas, que
não chegavam a ter meio pé de diâmetro, perdiam-se de vista, e sustentavam abóbadas que
só se distinguiam a favor da luz" pela qual eram simetricamente atravessadas. Minha monta
ria parou na entrada dcs.sc edifício. [...] encorajado pela multidão que aí morava e pela notá
vel segurança que reinava em todas as faces, desço [...]. Eram velhos, inchados e franzinos,
sem robustez nem força, e quase todos eram disformes. Um tinha a cabeça demasiadamente
pequena, o outro, braços excessivamente curtos. Esse pecava pelo tronco, àquele faltavam as
pernas. Amaior parte não tinha pes e so andava de muletas. [...] Estavam quase nus, pois sua
vestes consistiam num trapinho de tecido... . In; DIDEROT. Da interpretação da natureza e

138
te, o novo topos da regularidade foliou as condições para uma valoração
artística onde o sentido de ordem veio a distanciar-se do componente clás
sico da ordenação espacial, perspéctica.-" Talvez devêssemos afirmar que
a propalada "decomposição do espaço", impondo-se no domínio das artes
visuais - ou da estética -, imprescindiu do espaço como "forma a priori
da intuição". Ou melhor, que a nova ordem geométrica, ao receber dele
seu locus standi, desobrigou-se, por sua vez, daquele "contatto con Io spa-
zio" que um historiador definiu como a experiência estética fundamental

outros escritos. Iluminuras Ed., 1989, p. 32 e 163-164, (tradulora Magnólla Costa Santos).
Didcrot não se opunha ao recurso das matemáticas, mas a uma ciência que desumanizava o
mundo, perdendo de vista sua finalidade ou destinação; uma ciência que desconsiderava o
"ser vivo" (Nas palavras de dois eminentes cientistas da atualidade, "Diderot via nesse estu
do do ser vivo o futuro das ciências racionais e experimentais, cujo desenvolvimento apenas
começava"; PRIGOGINI, I e STENGERS, I./\ nova aliança. Brasília: Ed. UnB, 1991, p. 66).
Quanto à relação entre as Carceri e a reflexão teórico-filosófica do espaço no Iluminismo,
há controvérsias entre os historiadores. Tafuri vê na obra de Piranesi "uma crítica sistemáti
ca do conceito de lugar, realizada com os instrumentos da comunicação visual" (p. 34), e
conclui: "a crítica do conceito de espaço ou, melhor dizendo, do valor de definição atribuído
ao espaço, levada a cabo por Hume ou por Hobbss, agora fica ancorada na experiência do
"espaço construído" por excelência, na arquitetura"; "El Arquitecto Loco", In.' La esfera y ei
laberinto, op. cit., p. 36 (não consultamos a Introdução de Calvcsi).
Vislumbrar a engrenagem cósmica pela absurdidade e silêncio que assistem à razão não foi
apanágio exclusivo do Iluminismo. Desde Descartes, o "lado oculto" da razão assombra a
humanidade. Ao projeto de um saber universal e certo, o filósofo antevia seu preço: a varie
dade do ser ou, nas palavras de Ferdinand Alquié, o despojamento da Natureza de todo ser
próprio. Mas se aqui o espaço, como o Outro do vazio interior. Já se erige como Labirinto,
ele não comporta, porem, o sentimento da "aleatoriedade" do mecanismo cósmico denun
ciada por Hume. Por sua vez, o elemento de tortura próprio às Carceri, de Piranesi, confe
re ao seu espaço uma atmosfera algo similar à do pesadelo. Qualquer que tenha sido o ver
dadeiro sentido desta imagem do espaço infinito, parece certo que seu significado corres
ponde ao que a história se encarregou de preservar na forma da lenda. Margerite Yource-
nar comenta: "Há que pôr-sc de acordo sobre o que significa a palavra delírio. De supor
autêntica sua lendária malária de 1742, a febre não lhe abriu a Piranesi as portas de um
mundo de confusão mental, senão as de um reino interior perigosamente mais amplo e
complexo do até então vivido pelo Jovem gravador, ainda que composto, em suma, de ma
teriais idênticos". In.' YOURCENAR, Margerite. Ei negro cerebro de Piranesi. Rev. El Pa-
seante n.5, Madrid: Ed. Siruela, 1987, p. 99. Difícil não experimentarmos com as Carceri
o assedio a recônditas regiões, onde compartilhamos uma espacialidade estranha, difusa
mente atravessada por inesperadas tensionalidades; onde o silêncio das pedras como que
sussurra um enigma inaudívcl e fatal, onde tudo c misterioso e todo mistério a ser decifra
do, uma porta de regresso à vida, de decifração da própria existência. O universo onírico
de Piranesi é, com certeza, seu universo. Um universo que é, igualmente, universal.
-^Trata-se aqui da emergência de uma nova concepção espacial que se distancia tanto da res
extensa latente na perspectiva do Renascimento quanto do próprio espaço infinito (ao qual
poderíamos reportar aquele processo conceituai que Wõlfflin esquematizou como "passa
gem da forma fechada para a forma aberta"). Sobre a revolução nos procedimentos compo-
sitivos clássicos- em particular, quanto à representação perspéctica - e a importância da po
ética do sublime, relacionada com a Weltanschauung moderna, cf. as análises de Hugh Ho-
nour in El Romanticismo, op. cit.

139
da arte do Renascimento.^ Nesta ótica, de natureza essencialmente for-
matista, caberia perguntar, porém, se fazem ainda algum sentido aqueles
termos opostos que inauguraram a reflexão estética da Ilustração; de fato,
este "novo sentido de ordem", alcançado através de formas regulares, já
não traz necessariamente implícita uma regularidade unitária da "compo
sição". Todavia, ainda aqui a Ilustração não deixará de enaltecer dLsymmé-
trie das formas regulares e a bizarrerie da composição. E nada mais para
doxal, embora quase inevitável em uma análise puramente formal, do que
suprimir o primeiro termo "sob os auspícios da nova ordem".
Por ironia, a symmétrie moderna, tão cara a Perrault, ocupou lugar cen
tral no revide da Ilustração aos seus influentes juízos sobre os fundamentos
da arquitetura.Assim, onde Perrault afirmavaa incomunicabilidadeentre, por
um lado, o princípio racional da conveniência que o edifício deveria ter com
sua utilização e seu objetivo útil e necessário, e, por outro, o princípio respon
sável pela beleza positiva da edificação (a simetria modema), a Ilustração con
traditou uma nova ordem de concordância. Não, certamente, o alvorecer da
Sachlichkeit do racionalismo moderno, que equacionou as relações entre téc
nica e estética com um nível de comprometimento mais sutil entre forma e
função. Porém, um acordo que via na "forma regular" o fundamento positivo
e a mais reluzente expressão figurativa do eras da Razão:

[...] a proporção e a harmonia dos corpos se estabelece por meio da natureza,


e, pela analogia que tem com nossa organização social, as propriedades que
se deduzem dos corpos tem poder sobre nossos sentidos. A simetria agrada -
nos diz o grande Montesquieu -porque representa a evidência eporque a alma,
que busca incessantemente conhecer, abraça e se aquinhoa sem esforço de to
dos os seus objetos. Eu acrescento que nos agrada porque é a imagem da or
dem e da perfeição. (Boullée, p.58)

Montesquieu já havia ressaltado que o prazer estético exercido pela si


metria não se limitava àquele decorrente do puro ato de cognição de sua ratio
- como afirmara Perrault, vendo-se por isso obrigado a rebaixar seu valor, sob
risco de afirmaro belo artístico como próprioa toda atividade cognitiva. Um
tal prazer acolhia, verdadeiramente, o reconhecimento de seu valor simbóli
co, no qual "a simetria representa a evidência". Porém, Boullée precisava: sím
bolo do racional mas, sobretudo, símbolo da Ordem Racional.

^ Exatamente a isto se remete a "prevalência do volume" em detrimento da "experiência do


espaço", observada por Giedion a respeito da arquitetura da Ilustração. Todo o novo univer
so de possibilidades "compositivas" que aqui se abre imprescinde, certamente, do "porto se
guro" que o "espaço kantiano" reservará à geometria ("Geometria é uma ciência que deter
mina sinteticamente c mesmo assim apriori aspropriedades doespaço. [...]"; Crítica da razão
pura, p. 41-2; v. nosso próximo capítulo). Sobre a experiência perspcctica do "contatto con
Io spazio", cf. PARRONCHI, Alessandro. "Le due tavole prospettiche dei Brunelleschi". In."
La 'dolce'prospettiva. Milano: Aldo Martello Editore, 1964, p. 289.

140
Se a regularidade é a "primeira lei, ou seja, aquela que estabelece os princí
pios constitutivos da arquitetura", entretanto, o verdadeiro valor artístico dos cor
pos regulares deve-se a que "sua regularidade e simetria são a imagem da ordem"
(p. 57). A simetria readquire importância central para Boullée - importância en
tão rebaixada pela"Beleza Arbitrária" perraultiana- exatamentepor saltar de seu
lugar de direito(i.e., fundamentopositivo) revelando-se obra áedélicatesse, "ima
gem poética"; não um princípio racionalde beleza que apenas"se avizinha" àquele
princípio da concordância, mas a expressão poética do princípio racional, que se
impõe, um e mesmo, a todos os domínios da atividade humana. E acima de tudo,
como o sol platônico na Cidade das Luzes, ela é a imagem da Ordem Social.
Esta a razão por que, noEssai, Boullée solicitará, já sem nenhuma re
ferência à simetria dos Antigos, que se distingam novamente duas noções.
A primeira deve ser corretamente chamada de uniformidade, embora "o ho
mem vulgar com freqüência a confunda com a simetria", e é a "imagem da
similitude". A verdadeira simetria, porém, não se identifica com ela, cuja
"imagem estéril e pouco interessante" deve-se ao fato de estar "despida de
tudo o que serve para reanimar nossa alma, ou seja, a variedade". O topos
laugieriano fica assim sutilmente alterado; a simetria abraça a uniformida
de e a variedade, e se impõe como o único e verdadeiro ideal, nada podendo
admitir que comprometa a imagem de ordem. Boullée conclui: "a simetria,
ao sempre nos oferecer somente objetos agradáveis e ao acrescentar sua or
dem ao prazer que estes nos causam, impõe que sua analogia, sua variedade
e sua harmonia devam ser necessariamente supostas como deduzidas da
imagem de ordem e, ainda, que o domínio da simetria deva comportar tudo
o que compraz a nossos sentidos"(p.l46).
Como Imagem de Ordem, a simetria é o princípio capital da "política"
arquitetônica e imagética da Cidade Racional.-^'Talvez aí resida também a ra
zão dos regimes totalitários manifestarem, em nossos tempos, um profundo
interesse e admiração pelaArquiteturae UrbanísticaNeoclássica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOULÉE, E-L. Arquítectura. Ensayo sobre el arte. Barcelona: Ed. Gustavo Gili,
1985, p.56. (Tradutor Carlos Manuel Fuentes).
KAUFMANN, Emil. La arquitectiira de Ia ilustracíón. Barcelona: Ed. Gustavo Gi-
lli, 1974, p.21. (Tradutor Justo G. Beramendi).

^'Nas Considerações sobre a importância e utilidade da arquitetura, seguidasde intenções


voltadas ao progresso das BelasArtes, lemos: "O plano do universo formado pelo Criadoré
a imagem da ordem e da perfeição. Se todos os homens se tomassem suficientemente sábios
para formar entre si uma só e única família, estaríamos tentados a acreditar que a divindade,
para dar lugar ao assentamento dos homens sobre a terra, tem lhes dado a arquitetura, cujos
princípios constitutivos estão fundados na simetria, que por sua vez é a imagem da ordem o
da perfeição."; ibidem, p.33.

141
LAUGIER, Marc-Antoinc. Essai sur 1'architectiire. Cap. 5, Artigo 2. Liège: Pierre
Mardaga Ed. (edição fac-similar), 1979, p.222.
PIRANESI, Giambattista. Opiniones sobre Ia arquitectura (tít. orig.: Parere sulTAr-
chitettura), In: Fuentes y documentos para Ia historia dei arte, v. VII, Barcelo
na: Ed. Gustavo Gili, 1982, p.32.
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1974, p.88. (Tradutor Justo G. Beramendi).
VITRÚVIUS. Tlie tem hooks on architecture. L. 4, cap. 1. New York: Dover Publi-
cations, 1914, p. 103-04. (Tradutor Morris Hicky Morgan).

142
m
Cláudia pllla damaslo
a construção e a imagem
cidade-progresso em porto alegre
na virada do século

Nasprimeiras décadas deste século, PortoAlegre sofre, comomuitas ou


tras cidades brasileiras, modificações estruturais marcantes na sua paisagem.
Uma imagem de cidade foi idealizada, produzida e inaugurada através da ar
ticulação de diversos saberes.
Diante deste novo cenário, da prosperidade, da ordem e da limpeza, a
abertura da Avenida Borges de Medeiros, artéria de ligação norte-sul no cen
tro histórico da cidade, ficou registrada como a obra de maior impacto e im
portância para a população porto-alegrense. Mais do que isso, marcou o iní
cio de um caminho que orientou os especialistas da época a uma nova con
cepção de cidade.
Apresentamos aqui então esta verdadeira obra de"renovação urbana" como
o resultado da interação dos três elementos fundamentais que, com uma certa
liberdade deexpressão, chamaremos dediscursos técnico, político eprático.
Pretende-se, finalmente, apresentar a construção da imagem cidade-pro
gresso, elaborada atravésdas renovações urbanas que têm na aberturada Bor
ges seu momento mais expressivo, e contrapô-la à atual imagem cidade-crise
da virada para o século 21.
A problemática emergente nas cidades no início deste século, fruto das
transformações econômicas e dasdecorrentes modificações sociais e culturais
advindas do início do processo de industrialização, propiciou novas elabora
ções sobre o urbano.
A industrialização trouxe direta ou indiretamente às cidadesum enorme
contingente populacionale, com ele, uma série de problemasde ordem higiêni-

Trabalho vinculado ao projeto de uma dissertação de mestrado a ser desenvolvida, cujo títu
lo provisório c "O urbanismo eslético-viário-higienizante do Início do século - uma nova
concepção de cidade".
Cláudia Filia Damasio é arquiteta. Mestranda do PROPUR - Programa de Pós-Graduação
em Planejamento Urbano e Regional. Bolsista CNPq.

147
co-sanitária. A cidade, aquele novo cenário que se apresentava às populações já
tão castigadas pelas dificuldades da vida rural, como o locus da prosperidade,
não estava preparada para recebê-los. O processo de industrialização, ao mes
mo tempo que exigia uma massa de trabalhadores para sustentá-lo, não provia
ao ambiente urbano, evidentemente, uma infra-estrutura adequada.
Os imigrantes recém-chegados instalavam-se nas periferias imediatas,
mas também penetravam principalmente nas áreas centrais, residindo de for
ma insalubre em altíssimas densidades. Isto acarretou uma intensa degrada
ção dos centros das cidades, território esse que as classes mais altas, eviden
temente, não estavam dispostas a abrir mão em favor dessa população "inva
sora". Uma situação marcadamente instável foi gerada, em razão da justa re
voltado proletariado pelas péssimas condições demoradia - o estado de ameaça
à ordem e à estabilidade burguesa ficou então estabelecido.
Com relação à estrutura física, exigia-se uma adaptação do urbano às no
vas funções que agora ali se instalariam. Além dos problemas de ordem higiê
nica, falta de luz, ventilação e infra-estrutura, o sistema viário não mais servia
ao trânsito dos bondes elétricos e dos veículos automotores - enfim, sua condi
ção colonial passara a ser inadequada ao novo status urbano que se implantara.
Denominamos de higienista o período caracterizado pelas ações tomadas
pelos técnicos governamentais, no início deste século, no intuito de resolver es
ses problemas urbanos.' Em nome de uma sanidade física, a estrutura colonial,
ainda renitente, foi implodida para dar lugar a uma nova, moderna, higiênica e
ordenada. Os becos, outrora foco das doenças e locus do crime e da prostitui
ção, assim como seus cortiços, habitação onde reinava a superaglomeração hu
mana, deram lugar a grandes avenidas, ordenadas, iluminadas, calçadas e "lim-
pas".
E importante notar que a importância das ações sobre o urbano que marca
ram este período não está apenasno fatode teremsido obrasextremamente gran
diosas e renovadoras, mas tambémpor marcaremo iníciode um novotipo úqolhar
sobre a cidade —esta a partir de então passa a ser encarada como um meio de re
solver os problemas que afligiam à sociedade; passa a ser tomada como parte ati
va nos processos que nela se desenrolam: o saneamento de seus espaços públicos
e a destruiçãodos becose dos cortiços, tratava-se, na verdade, de estratégias higi-
enizantes e segregacionistas também da população que nela habitava.
Neste sentido, na Europa, já a partir de meados do século 19, se dão as
primeiras grandes intervenções urbanísticas: a criação do Ring deViena (1857),
as obras de saneamento da Grande Londres (1848-1865) e, finalmente, as obras

' No Brasil, as Idéias higicnistas foram defendidas e aplicadas principalmente pelo mestre
Saturnino de Brito. Apresentando uma influência nítida de Camilo Sitte, Saturnino fez a união
entre seus princípios estéticos e as questões sanitárias que defendia, realizando uma série de
pianos para o saneamento de cidades brasileiras e escrevendo livros relatando suasexperi
ências e divulgando suas idéias.
^Sobre es.se assunto, ler RAGON, M\c[\c\.Historia mondiaie de 1'architecture et de 1'urbanisme
modernes. Bélgica; Castrmen, 1971.

148
do Barão de Haussmann em Paris(1853-1869).-
Os trabalhos que Haussmann realizou na capital francesa destacaram-se
pelasua grandiosidade e pela influência queseusprincípios ordenadores exer
ceram em todo o mundo. Em pouco tempo, Paris transformou-se no símbolo
da era moderna que ora iniciava; as transformações que urgiam nas cidades
da industrialização necessitavam de um modelo contraposto à realidade den
sa, desorganizada e orgânica. Seus bulevares, com amplas calçadas, seus ca
fés e sua "limpeza", tornaram-se então o ícone do progresso na época.
E assim se deu também em PortoAlegre. Em função da configuração de
seu sítio, desde o iníciode sua formação, aterros sucessivos foram feitos so
bre o rio que a margeia. Estesque eramfeitos para resolver os problemascom
relação às limitações de espaço físico foram também causadores de outros,
masde ordem sanitária: graças à suacotareduzida, constantes inundações mar
caram a história deste trecho da cidade (Souza; Damasio, 1993, p.133-145).
O núcleo inicial de Porto Alegre, implantado em um sítio definido como
um promontório e às margens do GuaflDa, tinha topografia muito acidentada. A
expansão da área inicial de ocupação, que se caracterizou originalmente pela
utilizaçãoda faixa norte paralelaao rio, faziacom que vias no sentido norte-sul
(transversais à faixa original de ocupação) fossem também abertas, apesar das
lógicas dificuldades que o terreno apresentava para isso. O resultadoeram ruas
estreitas muito pouco utilizáveis que se tornavam logo becos escuros, úmidos,
imundos e, conseqüentemente, mal freqüentados, local do crime, das doenças e
da prostituição. A estmtura física da cidade passara a ser, portanto, dividida em
locais "limpos" e "não limpos", "ordenados" e "desordenados" - os focos dos
problemas da cidade passam a ser então plenamente identificáveis (Damasio,
1994).
Dentre estes locais definidos como "intransitáveis" pela burguesia porto-
alegrense, encontrava-se o beco da General Paranhos, onde posteriormente foi
aberta a Av. Borges de Medeiros. Os problemas higiênicos e as dificuldades de
trânsito nesta rua eram tantos que, desde a última década do século 19, pensa
va-se em saneá-la e alargá-la.Sua localizaçãoera estratégica,seu prolongamento
poderia ligar a antiga Av. do Porto à zona sul da cidade, ou seja, aos arrabaldes
do MeninoDeus, Glória,Teresópolis e Partenon. Seusproblemassanitárioseram
preocupantes, ainda mais por situar-se em uma área tão central, próxima à glo
riosa Rua da Praia, passarela da burguesia porto-alegrense.
A partir do relatado pudemos supor que, por motivos não só higiênicos,
mas também para a circulação urbana na Porto Alegre do início do século, eram
extremamente necessárias obras de remodelação do antigo Beco General Pa
ranhos.
Sem desconsiderar as dificuldades técnicas para tal obra - desapropri
ações teriam que ser feitas e seria necessário um grande aterro para romper
com as diferenças de cota entre seu início, junto ao largo da prefeitura, e a
Rua Duque de Caxias, trecho mais alto -, e as exigências financeiras conse
qüentes, torna-se claro que não só a abertura da Borges como as outras obras

149
de saneamento, de que tanto necessitava a capital gaúcha, estavam aguar
dando uma decisão política que as pusessem em prática.
E a vontade política só veio praticamente a partir de meados da década
de 1920,apesarda precariedade do espaçofísicode PortoAlegreatestadodesde
as últimas décadas do século anterior. Na verdade, as práticas urbanísticas re
alizadas neste período estão estreitamente relacionadas com as estratégias de
controle e à política continuísta do Partido Republicano Riograndense, que
esteve no poder municipal em Porto Alegre por 40 anos ininterruptos.^
De orientação francamente positivista, o PRRtinha na figura de Júlio de
Castilhos seu líder máximo. Castilhos era um líder extremamente respeitado
pelos seus partidários e suas idéias marcaram a política rio-grandense com o
que passou a denominar-se de castilhismo; a busca da ordem e do progresso,
o cientificismo e principalmente, sua estratégia de detenção do poder, deixa
ram marcas também no urbano e nas práticas que ali se materializaram.
José Montaury de Aguiar Leitão, indicado por Júlio de Castilhos à inten-
dência de Porto Alegre em 1896, foi o primeiro administrador municipal do perí
odo castilhista. A cidade neste período, como bem coloca Borges de Medeiros,
sucessor de Castilhos no governo estadual, não passava "de uma cidade aldeia",
com todas as deficiências de infra-estmtura que se pode imaginar. Seu período
administrativo foi longo (1896-1924), e nele muitas obras foram feitas, principal
mente no que diz respeito a instalações de água, esgoto e transporte coletivo.
Dois momentos se destacam na administração José Montaury: primeira
mente a construção do porto de Porto Alegre (1910-1920) e, posteriormente, a
elaboração de um plano geral para a cidade em 1914 pelo engenheiro João Mo
reira Maciel. E aí se encontra a outra peça-chave para o perfeito entendimento
do processo de execução das obras de renovação urbana do início do século em
Porto Alegre, especialmente a Av. Borges de Medeiros. O Plano Geral de Me
lhoramentos, como foi chamado, estava perfeitamente inserido na época no que
tange aos seus embasamentos técnicos - embelezar, circular e sanear - e teóri
cos: tratava-se de um projeto para toda cidade que a preparava para o futuro cres
cimento - aí estava, na essência, seu conteúdo extremamente modemo.
Contemporâneo de Satumino de Brito, pouco se sabe do engenheiro Ma
ciel, mas é de supor-se que tenha recebido grande influência deste mestre. Em
1905 Satumino realizava sua grande obra na cidade de Santos, servindo-a de
rede de esgotos, higienizando-a, embelezando-a e preparando-a para o futuro.^
Em 1914, no sul do país, um engenheiro que não se sabe bem da onde saiu, fa-

^Sobrc a continuidade administrativa do Partido Republicano Riograndense ver: BAKOS, Mar-


garet Marchiori. A continuidade administrativa no governo municipal de Porto Alegre -1897-
7957.(1986)Tese de doutorado- Curso de Pós-Graduaçãoem História Econômica,São Paulo,
USP.
•* Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Porto Alegre pelo engenheiroJosé Mon
taury de Aguiar Leitãoem outubro de 1916. PortoAlegre,/! Federação, p. 46.
^Sobre Saturnino de Brito, ler seus trabalhos publicados e os artigos de ANDRADE, Carlos
Roberto Monteiro de.

150
zia o mesmo para Porto Alegre.
Se analisarmos com cuidado perceberemos que os princípios contidos no
Plano Maciel, tão em voga no início do século e que apresentamos aqui como
advindos da influência da escola haussmanniana, de circulação-estética-sanea-
mento, estavam relacionados com o ideário positivista gaúcho de forma bastan
te intrínseca. A ordenação dos espaços físicos exigida por Haussmann tinha um
caráter eminente de controle social: as cirurgias urbanas, a abertura das artérias,
o fim dos cortiços, a busca pela aeração e iluminação, enfim, tratava-se da orga
nização do ambiente urbano para a população limpa e higiênica; aos pobres,
infectos e malcheirosos, a periferia. A ordem acima de tudo; a busca pelo pro
gresso se traduzia nos novos espaços organizados e modernos; uma nova ima
gem de cidade estava-se formando-uma nova forma de solução dos problemas
sociais através da configuração urbanística acabara de estabelecer-se.
Analisando-se hoje a história das práticas urbanísticas em Porto Alegre,
nos deparamos com uma aparentecontradição: se o Plano Maciel continha pro
postas tão bem inseridas na época, por que razão estas somente foram postas
em prática basicamente após 10 anos de sua elaboração?
Bakos em seu trabalho faz uma análise bastante interessante sobre as es
tratégias do PRR, em Porto Alegre, de manutenção de sua hegemonia político-
partidária. Segundo a autora, era também através do oferecimento de serviços
de primeira necessidadeà populaçãoque isso se garantia.A situação urbana era
realmente caótica e é de supor-se que melhorias no espaço público eram bási
cas para a vSobrevivência, e mais, eram exigências da burguesiaurbana, que não
admitiria viver mais naquelasituação precáriae de ameaça permanente.Ante a
esses problemas, José Montaury contrataMacielpara elaborar as diretrizes bá
sicas necessárias à remodelação. Mas cabe a Otávio Rocha, independente das
dificuldades econômicasque apresenta a municipalidade, começar a executá-la
dez anos após. Esse intendente, segundo Bakos, "deve realizá-la, pois após a
revoluçãode 1923,'* o PRR precisaapresentarnovosprojetosde governo na bus
ca de recuperara hegemonia políticano Estado"(1986, p. 254).
Partindo-se desta idéia,é possível se supor que o fato das propostas urba
nísticas contidas no Plano Maciel serem efetivamente executadas praticamente
somente em fins da década de 1920 fazia parte das estratégias de manutenção
do poder do PRR. Éevidente que não estamos desconsiderando asdificuldades
econômicas e o tempo necessáriopara colocá-lasem prática. Na administração
José Montaury muitas obras básicas necessárias de infra-estrutura eram feitas,
certamente já preparando o terreno para que Otávio Rocha, que se tornou figu-
ra-síntese de todo aparato político-administrativo do partido (Bakos), pudesse
causar impacto com suas grandes obras. Foi nessa administração que as aveni
das foram abertas, áreas saneadas, viaduto e praças foram construídos a fim de

"Revolução ocorrida no Rio Grande do Sul liderada por Assis Brasil, que linha como otnjeíi-
vo derrubar o governo da Borges de Medeiros que permanecia no poder graças a eleições
nitidamente fraudulentas.

151
que a nova imagem de Porto Alegre finalmente pudesse começar a formar-se.
A questão financeira, utilizada como motivo para o não-empreendimento
das obras anteriormente, não foi resolvida tampouco na administração Otávio
Rocha. Porém, como fazia parte do programa desta administração, mais do que
nunca, a remodelação da cidade e atestar através desta o desenvolvimento capi
talista de Porto Alegre, com o qual o PRR estava firmemente comprometido
(Bakos), a política de tomar empréstimos externos foi posta em prática. Muito
dinheiro Porto Alegre teve que trazer do exterior para ter essa "cara" modema.
Neste cenário abriu-se e construiu-se aAv. Borges de Medeiros. Seu tra
çado da RuaAndrade Nevesaté a Praça XV de Novembro,cortando a tão pres
tigiada Rua da Praia, já tinha sido definido no Plano Geral de Melhoramen
tos de 1914.A execuçãode tais obras ocorreu efetivamenteno período da ad
ministração Otávio Rocha e de seu sucessor, Alberto Bins.
No seu relatório de 1925, Otávio Rocha apresenta a abertura daAv. Bor
ges de Medeiros como "uma das obras mais urgentes e mais importantes" do
seu governo. Ele a considerava fundamental para o sistema viário da cidade e
para o saneamento daquela área tão degradada, tanto que seu traçado, largura
e declividade, por questões estéticas e funcionais, foram alvo de diversos es
tudos. Várias desapropriações foram feitas, e grandes obras de escavação rea
lizadas pela iniciativa privada, foram necessárias para resolver o problema da
acentuada declividade apresentada pelo seu leito.
Na verdade a questão da declividade era estratégica para que a nova aveni
da funcionasse realmente como um elemento estruturador do sistema circulató
rio de PortoAlegre. Da forma como ela se apresentava, era impossível a passa
gem dos bondes que ligariam o centro da cidade aos bairros situados ao sul da
península. A partir desta constatação, a solução adotada foi a construção de um
viaduto junto da Rua Duque de Caxias - o Viaduto Otávio Rocha.'
Ao analisarmos hoje o Viaduto Otávio Rocha, sua imponência, sua es
trutura, suas características arquitetônicas, podemos imaginar o impacto de
sua construção na época. Seu projeto, idealizado pelo engenheiro Manoel Ita-
quy, um conjunto arquitetônico formado por rampas, escadas e colunatas, foi
aprovado pelo urbanista francês Alfredo Agache, que se encontrava no Brasil
dirigindo as obras de embelezamentodo Rio de Janeiro. Sua construção, ini
ciada em 1929, levou três anos aproximadamente para ser concluída.
E aAvenida Borges de Medeiros foi sendo constmída aospoucos, conforme
os empréstimos conseguidos, o andamento das obras de escavação e as desapro
priações. Seu traçado foi sendoprolongado, atéchegar na suaconfiguração atual,
que transpassa e muito o idealizado no início doséculo. Porém é certo quefoinas
administrações Otávio Rocha eAlberto Bins que se deu de forma mais intensa sua

'Segundo Bakos (op. cit.), o culto a personagens representativas também fazia parte das estra
tégias do PRR. Assim nomearam-se as ruas Borges de Medeiros, Júlio de Castilhos, Pinheiro
Machado,José Montaury, Alberto Bins e Otávio Rocha, que também se tornou o nome do via
duto.

152
construção, no trecho entre a Rua Cel. Genuíno e a Praça Montevidéu.
E foi neste período que se deu a grande ruptura cuja análise recai sobre
esta abordagem: a nova Borges de Medeiros com seu aspecto moderno, pro
gressista, organizado e limpo, trouxe a Porto Alegre um novo status urbano.
A população pobre, os moradores dos cortiços, os imundos na categorização
higienista, não foram dizimados com a renovação desses espaços, mas foram
expulsos para a periferia - o certo é que o território da burguesia havia sido
assegurado e o cenário para o seu apogeu fora erguido. E a imagem cidade-
progresso fora construída e assimilada.

Apresentamos aqui o quadro da cidade de PortoAlegre nas primeiras dé


cadas desteséculo e as reformulações físicas realizadas que objetivaram adaptar
o urbano às novas necessidades da sociedade industrial. Acreditamos que atra
vés da ação interagente dos três aspectos expostos, técnico, político e prático,
constituiu-se uma nova imagem de cidade - demolindo-se a velha estrutura
colonial, a idéia de progresso e modernidade que se pretendia foi embutida
no imaginário da população urbana.
Sob o ponto de vista técnico, ficaram bastante evidentes as precárias con
dições sanitárias da cidade que apresentava ainda uma estrutura colonial que
evidentemente não condiziacom a emergente industrialização." A questão do
sanitarismo e a preocupação com a estética e com os problemas viários, com
punham o corpo teórico das intervenções. A grande artéria urbana, a Avenida
Borges de Medeiros, se não correspondia exatamente aos bulevares parisien
ses, continha em si os mesmos princípios ordenadores e trazia embutida na
sua proposta morfológica uma imagem de cidade moderna e progressista.
Politicamente os princípios técnicos em voga na época condiziam mui
to com o ideário positivista do Partido Republicano Riograndense. A máxima
republicana de atingir o progresso atravésda ordem representava-semuito cla
ramente nas obras de remodelação da cidade. A continuidade administrativa
no governo de Porto Alegre pelos castilhistas garantiu e ao mesmo tempo foi
garantida pela oferta de melhores espaços para a burguesia.
E quando os princípios técnicos aliam-se à vontade política, elabora-se
o Plano Geral de ís4elhoramentos. Mais do que um simples programa de em
belezamento, o Plano Maciel como foi alcunhado, foi a primeira prática de
planejamento urbano moderno para PortoAlegre, pois tratava-se de uma pro
posta global que tinha a preocupação de preparar a cidade para o futuro de
senvolvimento. Com uma certa liberdade de expressão, o classificamos como
''discurso prático" - seu texto trazia embutidas em si as idéias políticas e téc
nicas sintetizadas em propostas urbanísticas concretas (abertura de vias, sa-

"Em 1927, Porto Alegre já dispunha de 621 estabelecimentos industriais e em 1937, 1082.
(Bakos, 1986, p.27)

153
neamento de áreas, construção de praças). Seu conteúdo era prático, porém
tratava-se também de um documento de divulgação dos princípios de ordena
ção e saneamento urbano.
Certamente a Av. Borges de Medeiros, com seu imponente viaduto, lo
calizada em uma área anteriormente tão deteriorada, entrou no imaginário da
população da época com toda a carga ordenadora, progressista e higiênica que
se pretendia. Certamente também Porto Alegre, após as ações sanitaristas so
fridas, atingiu, ao menos nas áreas mais centrais, um nível de salubridade bem
superior ao atestado por José Montaury quando contratou João Maciel para
fazer o Plano Geral de Melhoramentos em 1914, pois, conforme Weimer:

Quando Vargas assumiu o governo estadual em 1928, Porto Alegre (já) apre
sentava uma invejável qualidade de vida o que se torna ainda mais surpreen
dente se levarmos em consideração o notório atraso em que a cidade se en
contrava no ocaso do Império. Em termos de arquitetura os republicanos re
ceberam uma cidade constituída de um amontoado de casas de porta e janela
com suas infectas alcovas e entregaram uma cidade asseada e com muitas obras
de notáveis qualidades arquitetônicas. (Weimer, 1993 p. 131-32).

E como ela se apresenta hoje? A grande obra de Otávio Rocha, pratica


mente 65 anos após a sua construção, não cumpre mais exatamente os princí
pios para que foi erguida. Sua ligação com a faixa norte da península foi in
terrompida, pela proibição de circulação de veículos nas últimas quadras. Seus
edifícios, muitos deles ainda da primeira metade do século, estão deteriora
dos e representam, ao contrário do progressismo a que foram propostos, a de
cadência de uma sociedade em crise. O Viaduto Otávio Rocha, outrora obra
de grande valor estético e, portanto, símbolo da burguesiaporto-alegrense,hoje
é o locus do comércio de baixo nível, dos mendigos e da desorganização.
Analisando-se esta contraposição, entre a cidade idealizada e produzida
no início do século e a metrópole atual, algumas observações podem ser feitas.
Após o desenvolvimento do capitalismo e a instalação da crise econô
mica que assola nosso país, o questionamento sobre o urbano volta à tona.
Hoje as cidades, em especial, novamente se apresentam como o lugar onde
o problema social tem seu apogeu. E interessante perceber que, em dois mo
mentos diferentes, em duas viradas de século, o urbano apresenta-se como
o símbolo de uma situação conturbada: primeiramente, com a invasão de um
enorme contingente de imigrantes que vinham em busca de uma vida me
lhor, que nem a cidade e nem o próprio sistema produtivo que estava se fun
dando poderiam assimilar; e àgora, quando o país se apresenta mergulhado
neste tremendo caos. É evidente que isso nãoé uma novidade; ao contrário,
esta é uma crise urbana que vem acompanhando paulatinamente a proble
mática econômica. Porém, o que parece é que - e esta é uma característica
bastante atual -, pelo menos nas maiores cidades, assim como no início do
século, os territórios da marginalidade estão cada vez mais identificáveis.
Circulando em uma cidade como o Rio de Janeiro, por exemplo, onde os

154
níveis de violência atingiram parâmetros bastante preocupantes, temos a
nítida impressão da cidade sitiada pelo terror. Conforme Pechman,

A imagem que transparece desse processo c a da cidade miserável, 'ilegal' estar


construindo um cerco em torno da cidade estabelecida (Pechman, 1993, p. 25).

A partir deste quadro, e analisando o que se tem discutido sobre o ur


bano e o que se tem feito concretamente, atestamos um retorno às políticas
de destruição das áreas problemáticas das cidades. Agora sob a égide da pre
servação do patrimônio cultural urbano, velhas áreas deterioradas sofrem re
formulações, recebem novos usos, cumprem novas funções. O tema "Reno
vação Urbana" é constante em exposições, palestras, workshops e concur
sos. Temos presentemente um caso notório no Brasil, a reciclagem do Pe
lourinho; em Porto Alegre, a área da Usina do Gasômetro e os projetos para
o Largo do Mercado Público, para a Avenida Ipiranga e, vejam só, até para
o Viaduto Otávio Rocha.
Muita coisa tem-se a pensar sobre essa questão no que tange aos proces
sos de segregação social, de valorização do solo, de estratégias de desenvolvi
mento urbano e de políticas de embelezamento da cidade. Porém, o que esta
mos tentando buscar é a relação entre a imagem da cidade e a ordem urbana.''
Acreditamos que, assim como nos mostra a história, busca-se hoje novamente a
apaziguação dos problemas sociais também através da criação de cenários de
prosperidade e de limpeza dentro da cidade desordenada e caótica.
Pois o urbano hoje não expressa mais o ideário da cidade da burguesia,
que define seus territórios dentro dos condomínios fechados e dos bairros afas
tados das áreas centrais, mas tampouco da população de baixo nível econô
mico, completamente segregada nos processos de urbanização, ao contrário,
ele se apresenta como o reflexão da crise econômica do país.
Como se construiu a cidade-progresso? Como se está formando e como
tem-se tentado derrubar a idéia da cidade-crisel
As imagens são reveladoras, a situação é preocupante e tem evocado a
retomada de velhas soluções.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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'Sobre esse assunto, ler PECHMAN, Robcrt. (1993) A cidade dilacerada: ordem e urbanis
mo. Belo Horizonte, V Encontro Nacional da ANPUR.

155
fernanda ester sánchez garcía
Curitiba anos 90:
a imagem urbana revisitada

Este trabalho adota como objeto de reflexão crítica a organização do dis


curso dominante e da imagem síntese de Curitiba que codificam as represen
tações acerca davida urbana bem como as práticas cotidianas de apropriação
social do espaço. O início da década de 1970 é o marco temporal que funda
uma etapa de grandes transformações urbanas pautadas no Plano Diretor de
1966e nas diretrizes de planejamento do Instituto de Pesquisa e Planejamen
to Urbano de Curitiba-IPPUC.
A repercussão das experiências de planejamento urbano coma implan
tação de propostas contidas no Plano Diretor de Curitiba, nos anos 70, permi
tiramuma base de sustentação bastante sólidapara as novasintervençõesque
marcaram a fase atual da prática urbanística, correspondente à última gestão
do prefeito Jaime Lerner, no período 1989-1992, e sua continuidade com a
eleição do prefeito Rafael Greca de Macedo para a gestão 1993-1996.
O recorte adotado objetiva destacar os dados da nova materialidade ur
bana que, dentre outros, sãoselecionados pela mídia para compor a imagem
sintética da cidade-modelo dos anos 90. Ao mesmo tempo busca-se identifi
car os valores associados às novas intervenções e políticas urbanas e suas re
laçõescom as práticas cotidianas de uso dos espaços.
Nosso trajeto é movido pela permanente inquietação comque verifica-

Fernanda Ester SánchezGarcía é arquiteta, especialista emAntropologia Urbana pelaUFPR


e Mestre em Planejamento Urbano e Regional IPPUR-UFRJ. Pesquisadora do Grupo de His
tória Urbana - UFPR.
*O artigo estabelece a relação entre planejamento urbano, processos de construção da ima
gem da cidade c apropriação social dos espaços de Curitiba. Os processos analisados suge
rem a presença de uma imagem dominante de uma cidade moderna e planejada, intensamente
estimulada pela mídia, pelo marketing urbanístico e pelas estratégias do poder local. Isto nos
conduz ao reconhecimento de alguns elos entre comportamentos sociais, usos cotidianos dos
espaços, símbolos c mitos da vida urbana, construídos ao longo de duas décadas como ele
mentos essenciais do projeto de modernização urbana.

161
mos, no caso de Curitiba, a crescente incorporação de novos processos técni
cos de comunicação que, do nosso ponto de vista, tornam-se, cada vez mais,
parte constitutiva essencial das estratégias da política urbana local.
Ao apontar os elos entre comunicação, cultura e política urbana procu
ramos avaliar o grau de influência do marketing moderno no processo de cons
trução da positividade da imagem da cidade. De fato, a identificação da força
desses vínculos permite-nos situar a imagem, já consagrada, como um bem-
sucedido fenômeno de marketing.

Curitiba: cidade - espetáculo


A cidade de Curitiba, que se prepara para comemorar em 1993 seus 300 anos
de fundação, é dona de uma lisonjeira unanimidade nacional. Tida e havida
como a capital brasileira de melhor qualidade de vida, é hoje indicada por ur
banistas da Organização das Nações Unidas, a ONU, como uma das três me
lhores cidades do planeta para se viver, ao lado de Roma e da americana San
Francisco. {Veja, 8/3/1990)

O arquiteto americanoAlan Jacobs- Universidade de Berkeley, Califór


nia - em sua passagem pelo Brasil em março de 1989 reafirmou a indicação,
dizendo que "Curitiba é não apenas a melhor cidade para se viver na América
Latina como uma das poucas cidades do mundo que fizeram grande esforço
para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes" {Estado de São Paulo,
14/3/1989).
Por outro lado, Jaime Lemer, prefeito em sua terceira gestão, 1989-1992,
afirma que a cidade tem um bom nível de vida porque "tomou decisões certas
na hora certa. Curitiba implantou com criatividade e determinação seu Plano
Diretor" {Estado de S. Paulo, 14/3/1989).
Os aspectos selecionados pela mídia para assegurar a qualidade de vida
tão elogiada, aspectos estes recorrentes em considerável número de artigos e
que compõem as sínteses veiculadas sobre o lugar, são: área verde invejável,
de 50 m- por habitante, tráfego rápido, opções alternativas de tráfego, vias ex
pressas para transporte coletivo e redes de ciclovias, bem organizada no que
se refere ao fluxo de veículos, áreas para pedestres no centro urbano, plurali
dade de espaços de lazer e cultura {Veja, 28/3/1990; Estado de São Paulo,
14/3/1989; Fo//ia de São Paulo, 5/11/1989;8/4/1992; Visão, 10/7/1991).
Diante das sínteses anteriores, deve ser reconhecido, de início, que a ci
dade de Curitiba constitui um lugar onde se instaurou plenamente nos anos
90 um processo de consolidação de uma identidade social-espacial positiva
ante o país e a escala internacional. Esta identidade encontra-se fortemente
associada ao processo de constmção da imagem de cidade-modelo, cujo mar
co inicial é a década de 1970.
A análise das mediações na construção da imagem de Curitiba permite
identificar aquilo que Ribeiro (1992) caracteriza como "cidade espetáculo",
lugar aberto às inovações urbanas - uma das características básicas da histó
ria recente de Curitiba. A interpretação desta espetacularização das interven-

162
ções na cidade remete aos elos entre as práticas contemporâneas de comuni
cação, a modernização urbanística e os interesses políticos em cena.
A noção de espetáculo urbano procura apontar também para o desenrai-
zamento do tecido social e espacial que expressa a possibilidade de grandes
intervenções, mediadas pelos processos de comunicação.Tal desenraizamen-
to corresponde à influência crescente da imagem urbana como linguagem sin
tética, isto é, aquela linguagem que consegue exprimir, de forma convincen
te, aspectos selecionados da vida urbana e da materialidade da cidade dispu
tando as condições para a sua penetração social mediante articulação de dife
rentes processos técnicos de difusão desta imagem.
Os elementos que compõem a imagem sintética de Curitiba, ampla
mente veiculados, sobretudo nos últimos anos, propiciam que a cidade sur
ja como um íocus altamente "imaginável" (Lynch, 1982). Entretanto, ao
nosso ver, no caso analisado, esta "imaginabilidade" da cidade transcende a
capacidade de os espaços serem facilmente apreendidos por suas qualida
des intrínsecas e expressa, sobretudo, o elevado nível de controle social exer
cido pela imagem-síntese, capaz de agregar valores culturais a cada nova
intervenção.
Na Curitiba, cidade espetáculo, as atuais operações de promoção de sua
imagem encontram-se articuladas a mudanças de leitura do espaço urbano, re
novando os atributos mais típicos da identidade de 1970; cidade humana, ci
dade planejada, cidade funcional, mediante a colagem destes atributos em sím
bolos que expressam a esfera cultural contemporânea; cidade ecológica, cida
de de Primeiro Mundo.

AS REPRESENTAÇÕES
ACERCA DAS RECENTES INTERVENÇÕES URBANAS

Ao recorrer à imagem positiva que a cidade desfruta em níveis nacional'


e internacional, a Prefeitura de Curitiba atualmente alavanca um processo
abrangente de promoçãodas últimassoluçõesurbanísticas. Manifesta-se,quan
to à cidade, a pretensão de "virar o século mantendo a posição de capital com
melhor qualidade de vida". A "receita para Curitiba", hoje com quase 1 milhão
e setescentos mil habitantes, é, segundo o prefeito Jaime Lerner, "novamente
inovar e ousar nas soluções urbanas" (Veja, 28/3/1990).
Inovação e ousadia são, de fato, as duas palavras mágicas com recorrên
cia no discurso acerca dos novos programas, projetos e intervenções. O per
manente recurso à criatividade dos urbanistas para qualificar cada nova inter
venção acaba tornando-se um redundante artifício que subordina e obscurece
toda a gama de condicionantes institucionais, econômicos, políticos e cultu
rais que, com efeito, fazem possível a realização desses projetos.

Hoje cada rua de Curitiba tem alguma marca da criatividade do Jaime e de


sua capacidade de reunir as pessoas em torno de seus projetos. Em Curitiba

1B3
muitos dizem que aquilo que o Jaime toca não vira ouro, vira qualidade de
vida. (Rischbieter, ex-ministro da Fazenda. Isto É, 8/4/1992.)
Arte na crise. Uma idéia rabiscada na mesa de um bar deu origem à Opera de
Arame. A história da maior parte das criações da griffe Lerner segue roteiro
semelhante e muitas vezes pode estar relacionada à maneira de o prefeito vi
ver. O teatro surgiu assim numa mesa de bar. Lerner lançou mão de um blo-
quinho e rascunhou uma espécie degrande gaiola metálica. {Isto É, 8/4/1992.)
Luz do criador. Para fazer jus à cidade administrada por um prefeito insone, a
Rua24 horas alimenta um centro de comércio que não dorme jamais. (Isto É,
8/4/1992.)

As "idéias criativas", ao se tornarem "rotina na cidade", passam a fazer


parte do imaginário dos curitibanos, como componentes da linguagem sinté
tica da imagem-mito. Através desta linguagem-síntese, destaca-se que a po
pulação aguarda com ansiedade e recebe com curiosidade as múltiplas inova
ções na cidade, buscando evidenciar uma aparente aprovação consensual das
soluções adotadas.
Observamos que, entre os setores médios da população, é bastante comum
as pessoas se perguntarem: "quais serão os últimos planos de Jaime?", "qual
será a próxima novidade que vai ser mostrada?" As "novidades" fazem parte de
uma "caixinha de surpresas" que vai-se revelando gradativamente de acordo com
um campo de expectativas pautadas em anseios e valores contemporâneos.
Com efeito, é como se cada inovação urbana fosse um novo produto lan
çado ao mercado consumidor. Indo além, a própria noção de "qualidade de
vida" que perpassa o discurso urbanístico, é "vendida" aos "cidadãos consu
midores" (Santos, 1987): "Vamos oferecer nosso melhor produto que é a qua
lidade de vida" . (Rabinovich, Veja, 28/3/1990.)
O projeto de "lançamento" de cada novo "produto" costuma ser minuci
osamente planifícado. O objetivo a ser alcançado é diferenciá-lo, de forma re
volucionária, dos outros produtos em circulação e conquistar ampla adesão
social. Como aponta Santos (op. cit.) em sua análise das vinculações entre so
ciedade de consumo, cidadania e estratégias de poder, confunde-se cidadão
com consumidor e cidade com mercado.
Por exemplo, Lerner e sua equipe projetaram um novo sistema de trans
porte. O projeto, que passou a ser veiculado à população no início de 1991, já
surgiu com uma marca definida para conquistar a aceitação - o "ligeirinho" e
.seu correspondente slogan: "pego o ligeirinho e chego, chego rapidinho". As
estações-tubo, os mais recentes elementos do mobiliário urbano, são apresen
tadas como mais uma expressão simbólica da modernidade. Comunicam uma
intençãode "conferira Curitibaum ar futurístico de quemse preparapara entrar
no ano 2000". {Projeto, 152, maio, 1992.)
No mesmo sentido, o "biarticulado", outra solução de transporte recen
temente exposta e lançada, pode ser interpretado não apenas enquanto novo
elemento da realidade urbana, mas também enquanto"realidade sígnica" (Fer
rara, 1975), pois, transcendendo a materialidade, assume uma função semió-

164
tica pela potencialidade que tem de redimensionar o sistema de comunicação
urbano. Pela própria maneira como se apresenta e se oferece ao uso, com lon
go período de exibição, comunica o seu caráter: está ali como marco repre
sentativo, espetacularizado, da "cidade que não pára de inovar".
As intervenções recentes na área de transporte são situadas num "conti-
nuum" passado-presente-futuro. A colagem no tempo obedece ao estabele
cimento de uma necessária relação tempo-espaço para reforçar significados
sociais: não é possível referir-se à construção dos significados do espaço sem
contar o tempo de sua apropriação pela sociedade, como não é possível consi
derar a percepção do tempo sem menção ao espaço sobre o qual adquire con-
cretude. Tempo e espaço são construídos em relação a uma série de interven
ções às quais estão referidos.
Uma linha experimental do ligeirinho e as estações-tubo foram implan
tadas - em abril de 1992 - em Manhattan, New York. Este fato foi exaustiva
mente veiculado pela mídia, sendo que o tom da mensagem destacava que, a
partir de então, Curitiba não era apenas uma cidade semelhante às.de Primei
ro Mundo, como também, e justamente este era o fato destacado comp trans-.
cendente, era agora o Primeiro Mundo que "copiava" e incorporava soluções
curitibanas: "Ligeirinho nos Estados Unidos. É Curitiba agora lançando idéi
as para o mundo". O sentido de pertencimento à cidade-modelo, o "orgulho
de ser curitibano" era subjacentemente destacado por esta mensagem.
No contexto atual, a imagem da "cidade que deu certo" torna-se síntese'
oportunae necessária. A adoção do modelo de Curitiba como referencial po
sitivo no contexto brasileiro a coloca, novamente, como realidade "singular
em meio ao caos"; como contraponto, como "prova do que pode dar certo".
Ao situá-la como contraponto, o discurso dominante aciona tambçm a atual
imagem-síntese "Curitiba - capital ecológica" como sendo capaz de contri
buir para que seja exorcizada a imagem negativa do Brasil no exterior:

Uma rara história dc sucesso ecológico em um país mais freqüentemente vis


to como um fracasso ambiental. {Financial Times, 30/8/1991.)

Os programasde separaçãodo lixo foram lançados pela mídia acompa


nhados de programas de educação ambiental nas escolas. Algumas iscas pu
blicitárias marcaram a campanha "lixo que não é lixo": "cada criança um fis
cal da ecologia", "o lixeiro é hoje nosso herói" assim como, mais uma vez,
utilizou-se a presença didática da figura emblemática do prefeito. Este, du
rante alguns dias no lançamento da campanha,saiu percorrendo as ruas, como
lixeiro, nos novos caminhões.
Curitiba, nos líltimos dois anos, 1991-1992, tem sido referenciada como
"meca" para planejadores urbanos, ambientalistas e líderes municipais, que
visitam a cidade para conhecer as soluções para alguns males urbanos consi
derados universais. O exemplo de Curitiba surge no plano nacional e interna
cional dentro de uma perspectivaevolucionista- "se Curitiba pôde, qualquer

165
cidade poderá fazê-lo". Desde que se adotem as soluções aqui implantadas,
"toda cidade poderá chegar a ser uma Curitiba um dia". (Jaime Lerner, Word
Monitor, março, 1992.) A imprensa internacional endossa esta perspectiva: "Se
houver uma cidade modelo no futuro, ela fará as coisas que Curitiba está fa
zendo". {LatinAmerican Newsletter, 13/2/1992.)

A ESTETICA DO LAZER

Ao elencar e ordenar o conjunto de intervenções urbanas mais recentes,


correspondentes ao período 1991-1992, verificamos um grupo significativo
de obras que imprimiram novas marcas à materialidade urbana. Estes novos
espaços relacionam-se com as atividades de lazer e cultura. De fato, o projeto
de modernização do espaço incorpora como valor a ética e a estética do lazer
na cidade. Para ilustrar o tema, assinalamos os projetos que, no período re
cente, foram os mais veiculados pela mídia ao nível nacional: a Rua 24 Ho
ras, a Ópera deArame e o Jardim Botânico.
Chamamos a atenção para a estreita vinculação entre espaço e cultura
ao analisarmos os principais conteúdos simbólicos e valores projetuais que ori
entam as soluções espaciais adotadas e a apropriação social. Verificou-se que
os principais espaços que se constituem em lugares da sociabilidade - apre
sentados enquanto espaços-síntese da vida coletiva dos curitibanos - são apro
priados sob a égide do lazer, do usufruto circunstancial e do consumo.
A Rua 24 Horas reúne serviço e comércio em permanente funcionamento.
Possui programação cultural adicional com o fim de conferir vitalidade ao "lu
gar" enquanto ponto de encontro. Na valoração deste novo espaço pelo dis
curso dominante percebemos uma recuperação e reinterpretação dos valores
que pautaram o projeto do calçadão da Rua das Flores na década de 1970: es
paço de encontro, do lazer associado ao consumo, nova sala de visitas para o
curitibano que "estava precisando de uma nova opção". {Success n.l3, p.92.)
Esta última observação nos sugere uma característica: comunica que o
"curitibano" esperava por este espaço, necessitava deste espaço. De fato, o mar
keting que acompanha a Rua 24 Horas, a "rua que não pára", é capaz de ma
nipular a opinião pública de tal forma que antes mesmo da inauguração do
novo espaço, ele já é indicado como uma verdadeira necessidade, impreterí-
vel, da vida metropolitana moderna. A maneira como, neste caso, mais uma
nova "necessidade" urbana é criada nos remete, obrigatoriamente, a Heller
(1982, p. 106) que, ao tratar da administração das carências coletivas na so
ciedade contemporânea indica: "as carências podem predominar unicamente
como ausências e não como projetos. A demanda é manipulada por meio da
oferta e das ideologias do condicionamento, por meio da publicidade e da
imitação [...] A ditadura sobre as carências, de qualquer modo, significa que
as carências da comunidade são definidas com base em instâncias centrais...".
Esta administração centralizada das necessidades e demandas coletivas

166
de que a autora trata parece caracterizar, do nosso ponto de vista, um dos me
canismos marcantes acionados pelo poder público municipal para criar o campo
favorável ao "lançamento" das novas propostas urbanísticas.
Junto com a Rua 24 Horas, entre as intervenções que marcam este últi
mo período, está a Opera de Arame. Trata-se de um espaço para espetáculos
construído na cratera de uma pedreira desativada, transformada pela prefeitu
ra em parque. A Ópera, um teatro para 2.400 pessoas, estabelece em sua im
plantação, segundo os autores do projeto, "um diálogo com a paisagem do
entorno" que contribui para a produção de impacto informacional quando o
edifício é visualizado. A principal característica projetual do teatro, do nosso
ponto de vista, é a sua espetacularização cênica, pois o projeto é capaz de fa
bricar um hiper-real espetacular.
A nossa breve leitura deste novo espaço cultural nos permite, em certos
sentidos, associá-lo aos ambientes pós-modemos da arquitetura contemporânea.
Como alguns autoresindicam (Santos, 1986; Berman, 1989), uma característi
ca da essência da pós-modernidade é a supremacia da imagem sobre o objeto,
do simulacro sobre o edifício. "A estetização e intensificação do real produzem
o fascínio dos ambientes pós-modernos. Entre as pessoas e o espaço estão os
meios tecnológicos de simulação. Eles não nos informamsobre o espaço; eles
o refazemà sua maneira, hiper-realizam o espaço, transformando-o num espe
táculo." (Santos, J.F., op. cit. p. 13.)Assim, problemas gravesde uso do espaço
- neste caso acústicos e térmicos - são anulados pelo impacto da imagem.
O Jardim Botânico Municipal foi inaugurado em fins de 1991. O princi
pal objetivo de criação desta área, segundo os técnicos, é "dotar a cidade de
mais uma opção de lazer e recreação." {Revista Projeto n. 152, maio, 1992.)
As diretrizes projetuais da nova área incorporam, por um lado, um dos valo
res dominantes deste período - o "lazer verde" e, por outro lado, os elemen
tos característicos da linguagem arquitetônica das duas obras analisadas - a
Rua 24 Horas e a Ópera deArame.

OS NOVOS ESPAÇOS DE LAZER-A RECONSTITUIÇÃO DA UNIDADE


Rua 24 Horas, Ópera de Arame e Jardim Botânico. Os três equipamen
tos culturais e de lazer apresentados passaram a ocupar particular atenção da
mídia e foram incorporados à imagem sintética da Curitiba anos 90. Hoje eles
são parte do roteiro turístico obrigatório associado à nova identidade da me
trópole. Idealizados para se constituírem em novos marcos simbólicos no te
cido da cidade, apresentam, segundo o olhar interpretativo deste trabalho, im
portantes elos por nós elencados:
-A construção destes três novos marcos da identidade de Curitiba e sua
incorporação à positividade da metrópole indicam a canalização de esforços
de renovação urbana mediante aplicação de investimentos no lazer, na cultura
e na celebração de eventos.

167
—A coerência da linguagem arquitetônica para os três casos constitui-se
em premissa básica para o alcance da unidade de significados necessária à nova
imagem sintética. Aqui assinalamos a arquitetura enquanto um dos campos
de saber especializados que contribui, junto com investimentos de outros cam
pos de saber, para a construção da imagem sintética.
—A associação da modernidade com o tempo - o ritmo frenético com
que as novas opções vão surgindo sugere a sua leitura enquanto produtos de
consumo descartáveis, ao contrário de espaços públicos sedimentados enquanto
"lugares". Mal é inaugurado e apropriado um novo espaço cultural, outros co
meçam a ser anunciados. A velocidade na construção e inauguração de cada
obra torna-se, também, um recurso recorrente utilizado na elaboração da nova
imagem. As noções de tempo e velocidade, enquanto valores da metrópole
moderna, estão contidas na "rua que nunca pára", assim como na possibilida
de de transformar uma "idéia rabiscada em mesa de bar" em "principal espa
ço cultural da cidade" executado em tempo recorde de 75 dias.
-A Rua 24 Horas como espaço de galeria "relembra as antigas galerias
francesas do século 19", o Jardim Botânico remete aos "antigos palácios de
cristal ingleses", a Ópera deArame é uma reinterpretação dasedificações clás
sicas "como a Ópera de Paris". A referência às matrizes européias, como se
pode verificar, também constitui-se em elo entre os três casos. A colagem dessas
referências torna-se importante como recurso para a construção da nova ima
gem da "cidade de Primeiro Mundo".
- Finalmente, as formas de apropriação dos três espaços culturais, en
quanto sínteses do novo padrão de vida coletiva veiculada pelo marketing, res
pondem, dentro da nossa perspectiva, a valores culturais fortemente associa
dos ao estilo de vida das camadas médias. A capacidade de "capturar" este
setor da sociedade reside na evidente adequação entre as significações dos
novos espaços e o sistema de representações dos cidadãos - seus consumido
res. Com efeito, o discurso acerca dos novos espaços culturais produz maior
ressonância junto àqueles aos quais implicitamente se dirige. As camadas
médias nele se identificam, se refletem. Recorremos a Barthes (1972) quando
diz que "o discurso se projeta sobre o outro que lhe serve de espelho e se iden
tifica com ele" (p. 66). As camadas médias querem espetáculos e bons servi
ços. Buscam a constante elevação do nível de vida pelo consumo acelerado
de bens e serviços. Os cidadãos de classe média, no usufruto dos novos espa
ços, parecem encontrar-se a si mesmos, parecem dizer "algo de si mesmos para
si mesmos". (Geertz, 1978.)

JAIME LERNER E CURITIBA - A IMAGEM DE ESPELHO

Em mensagem à população curitibana durante campanha para a Pre


feitura Municipal, Lerner afirmou: "foi a luta do prefeito da cidade contra o
prefeito de um partido"{Folha deLondrina, 28/11/1985). A introdução desta

168
breve afirmação neste ponto do trabalho parece interessante na medida em
que indica alguns elos entre a autovaloração explicitada e a imagem sintéti
ca de Curitiba,
"Oprefeito da cidade" versas aquele identificado como o prefeito "de
umpartido " buscavaconferir-lheuma franca superioridade. O subjacente"dis
curso competente" (Chauí, 1981) acionado reiterativamente também em ou
tras ocasiões, o situa - ornado pelo recurso à sua genialidade enquanto técni
co urbanista - em plano superior ao de qualquer facção política ou setor da
sociedade. A cidade que ele abraça, a cidade da gente remete a uma leitura
que esconde os processos sociais e as contradições existentes naquele espaço.
Busca-se uniformizar a cidade debaixo de alguns símbolos que levam à ho
mogeneização do tecido social, o que se constitui em fio condutor e meta de
campanha. O mito da racionalidade científica da tecnocracia pressupõe uma
situação social sob a qual a regra é o consenso.A associaçãoprefeito-cidade
encontra o limite da imagem de espelho; "Curitiba era Lerner e Lerner era
Curitiba". (Paulo Botas, Folha de Londrina^ 28/11/1985.)
O "brilho visionário, energia e ambição" de Jaime Lerner são atribu
tos associados à identidade do prefeito, que o capacitaram a erigir, através
dos anos, uma reputação quase mitológica. As determinações históricas da
obra de Lerner acabam por surgir como fundamentadas na natureza, subli
madas sob a designação do gênio, do inexprimível. Neste caso, a despoliti-
zação é evidente, denuncia claramente o mito. Por outro lado, o mito "Jai
me Lerner - genialidade - panacéia para as grandes cidades", "desmancha-
se no ar" ao analisarmos os precários resultados e, em muitos casos, até
mesmo o completo fracasso de seus planos urbanísticos em outras cidades e
metrópoles brasileiras. Entretanto, estes são fatos velados, obscurecidos pela
mídia em níveis local e nacional.
A missão histórica do projeto de modernização urbana de Curitiba é ter
criado uma nova imagem de vida urbana que se tornou hegemônica, frente às
demais imagens do seu tempo. Jaime Lerner, principal liderança deste proje
to, conquistou, com efeito, poder e adesão, inaugurando novas formas, mas
sobretudonovos meios,em que"a modernidade podiaser experimentada como
uma aventura irresistível". (Berman, 1989,p. 292.) O contexto histórico, téc-
nico-político e econômico, dentro do qual o mito do urbanista visionário foi
construído e ornado, possibilitou a Lerner lançar mão do poder e popularida
de conquistados para institucionalizar a modernidade curitibana num sistema
de necessidades construídas e recicladas a cada novo momento.

O USO PEDAGÓGICO DO ESPAÇO-A APROPRIAÇÃO DIRIGIDA


O turista saiu espantado. Foi ao teatro e lá estava ele. Na fila do cinema, na
mesa do restaurante, estava lá de novo. Na exposição, no Passeio Público, an
dando sem rumo na rua, era ele novamente. Impressionante é que foi ao bar
beiro, deu uma volta no parque, encostou no balcão do boteco, ouviu a banda

169
tocar e cncontraram-sc mais uma vez. "Esse Jaime Lerner está por tudo - a
cidade tem a cara dele" concluiu. "Não é isso" explicaram; "ele é que tem a
cara de Curitiba". (Veja, 22/11/1989.)

A população curitibana, defato, encontra-se combastante freqüência com


Jaime Lerner. As suas aparições em público, embora cuidadosamente estuda
das enquanto tática publicitária - lugares, horários, eventos - têm um conteú
do que merece ser indicado: raramente, nessas ocasiões, o prefeito se apre
sentava como prefeito. Pelo contrário, a suapresença procurou sempre terum
tom de naturalidade e casualidade; ele freqüenta os lugares como "mais um
personagem da cidade", como um "cidadão curitibano qualquer". (Veja, 22/
11/1989.) Depoimentos dopróprio J. Lerner destacam como seuprograma pre
dileto andar na cidade e mostrá-la aos visitantes:

Recebo como bom antltrião em minha casa no sentido mais amplo - a cidade
- onde mostro mil atrativos para quem chega.
Freqüento a cidade, estou na cidade. Ando sozinho pelas ruas. Conheço tudo
de Curitiba: as ruas, os cheiros, as árvores, os pisos.

Este conhecimento detalhado da cidade e do dia-a-dia das pessoas tor


na-se argumentação poderosa que contribui na conquista de maior legitimi
dade e do apoio incondicional às novas ações do poder público. "Vantagem
leva a população por ter um prefeito que mostra o prazer de viver a cidade".
A atuação de Lerner como urbanista e político não pode ser dissociada
de sua atitude pedagógica de expor-se, a sós, ou com pessoas de sua família,
nos mais variados espaços públicos, assinalando, como se fossem modelos
vivos, a maneira adequada de fruir-se com elegância e civilidade ambientes,
lugares e serviços da cidade modernizada. Tais apresentações, às vezes pro
priamente desfiles, constituem o que Sevcenko (1992, p. 121) assinala como
"ritual de efeito mesmérico sobre a população", tão notável é o prestígio, o
poder pessoal e a força simbólica concentrados na figura de Lerner.
Dezenas de depoimentos identificam, como maior qualidade do prefei
to, a capacidade de reunir as pessoas em torno de seus projetos, como exem
plifica o seguinte trecho:

Ele conseguiu ser um pouco pai de todos os curitibanos, estabelecer um rela


cionamento de responsabilidade e respeito recíproco com cada um. A maior
realização do prefeito foi vender uma idéia ao seu público interno. É raro, na
capital encontrar quem hão acredite que vive em um lugar especial; já há uma
certeza enraizada quanto ao privilegio de tê-lo como prefeito. (Rischbieter,
ex-Ministro da Fazenda, Isto É, 8/4/1992.)

Lernerdispõe desse seu prestígio tanto para introduzir novos projetos e


realizações nacidade comoparailustrar o gostoe a atitude apropriados paraa
fruição e o uso dos espaços criados, ou para instruir, por exemplo, sobre as

170
delícias do"footing" nos novos parques, dos encontros no calçadão e das emo
ções nos recentes espaços culturais.
Afinal, investir na criação de uma urbe modema de padrão de Primeiro
Mundo implica, também, como contrapartida, instigar a população a ocupá-
la convenientemente e aprender a desfmtar de suas amenidades,"fazendo cada
um da cidade uma extensão significativa de sua vida".

ALGUNS ELOS NECESSÁRIOS À COMPREENSÃO


DA APROPRIAÇÃO DIRIGIDA DO ESPAÇO

Curitiba foi pensada paraser a cidade da classe média, por excelência. Sem con
tradições, um belo jardim comcrianças robustas, a cidade da gente. (Paulo Botas)

Aquilo que chamamos de apropriação dirigida do espaço, onde a figura


de Jaime Lerner é emblemática, encontra-se associado a um projeto maior de
difusão de imagem da cidade. Esta ampla difusão depende de sua articulação
aos códigos de marketing e obedecea processos técnicos contemporâneos de
divulgação de mensagens.
As operações realizadas pelos meios modernos de comunicação apon
tam, do nossoponto de vista, paraumapermanente atualização e superfíciali-
zação das formas de perceber e apropriar-se do espaço da cidade. Possivel
mente um dos principais efeitos da veiculação da imagem de Curitiba pode
ser identificadonos elos entre mensagens, ideologia e ação- apropriação so
cial do espaço.
O caso de Curitiba torna-se singularmente rico na identificação destes
elos, pois a ampla adesãoa determinadas idéias-chave, associadas aos princi
pais símbolos urbanos sustentadores do mito, norteiam a percepção coletiva
do espaço e conduzem ao uso e apropriação dirigida dos novos lugares.
Identificamos uma clara articulaçãoentre o conjunto de valores que com
põem a linguagem mítica acerca de Curitiba e o espaço urbano condensado
em algunssímbolosurbanísticos. Estaarticulação produzdiretamente impacto
no comportamento coletivo e nas formas de apropriação das novas ofertasda
metrópole. Poderíamos, na direção de Certeau (1985, p. 110), falar de uma
"codificaçãoda vida cotidiana através de um discurso organizador das práti
cas de apropriação do espaço".
O discurso dominante manipula, intensamente, a associação entre a po-
sitividade do lugar e a positividade da identidade socialcoletiva. A exacerba
ção da positividade permite a defesa da identidade da cidade frente ao olhar
externo, mesmo quando a realidade cotidiana da cidade existente, com suas
contradições e conflitos sociais noespaço, encontra-se emfranco contraste com
qualidades presentes na imagem construída.
Observamos uma verdadeira reciclagem da imagem onde são reorde-
nados hierarquicamente os símbolos da cidade-modelo de 1970 conferindo
legitimidade histórica aos novos símbolos. Este processo de resgate trans-

171
forma odiscurso urbanístico original em suas intenções ehierarquizações,
sendo a"ora estabelecidos novos critérios de seletividade e originalidade.
Estes critérios, que agregam novos conteúdos àimagem, não implicam, no
entanto, rupturas incisivas na estrutura que organiza ofundo comum de per
cepções compartilhadas, pois Curitiba, nos anos 70, já era vanguarda. A
imagem de cidade-modelojá estava posta eoespectro do mito urbano ja então
se configurava. . j-
Asérie de elementos positivos alocados à identidade cuntibana mediante
aimagem urbana - recriada nos anos 90 - contribui para aformação do eí/ios
metropolitano. (Cardoso, 1973.) Aarticulação de um conjunto de característi
cas constrói osentido de pertencimento ao coletivo. Onovo discurso interpreta
as características supostamente compartilhadas do "ser curitibano" e constroí
uma estreita associação entre identidade social e identidade espacial.
Por exemplo, o autêntico curitibano é o que freqüenta osparques, usa as
ciclovias, adere aos projetos culturais sendo assíduo usuário dos novos espa
ços de lazer, freqüenta os bares e"pubs" localizados no Centro Histórico, par
ticipa das festas efeiras tradicionais, circula confortavelmente nos novos li-
geirinhos, desfruta da caminhada pelo calçadão onde leva os filhos nas ma
nhãs de sábado para a tradicional pintura de rua e aprecia o privilégio de po
der recorrer aos serviços urbanos futurísticos da metrópole como ter àsua dis
posição os atrativos da Rua 24 Horas aqualquer hora da madrugada.
Em síntese, "ser curitibano" enquanto identidade social construída no
interior do próprio discurso oficial significa, portanto, estar em verdadeira sin
tonia com o projeto de metrópole moderna indicado pela imagem construída
e veiculada sobre a cidade. Por outro lado, a força atual do olhar externo com
relação à "cidade-modelo", antes praticamente inexistente, contribui para a
consolidação da identidade coletiva dos curitibanos associada à imagem do
minante. Como aponta Szmrecsanyi (1985, p. 100), "uma vez que as ações
cotidianas sãoresponsáveis pelareprodução davidasocial, elassãodecisivas
para o destino da sociedade e da ordem urbana historicamente constituída".
A sintonia entre a população e a imagem dominante da cidade é subli
mada e aplaudida em suas múltiplas manifestações: na reprodução do discur
so oficial pelaclasse média - "cada curitibano se transformou emverdadeiro
urbanista a recitar e defender a série de projetos que resultaram no nosso su
cesso" {IstoÉ, 8/4/1992); na aprovação incondicional das novas propostas -
"os curitibanos são altamente receptivos a cada inovação urbana respondendo
positivamente, e sobretudo usando adequadamente os espaços". E a esta últi
ma característica que são recorrentemente associados os valores que, do nos
so ponto de vista, são os mais perversos e excludentes.
Encontramos alguns lugarescomuns e estereótiposnas representaçõesacerca
do uso "correto" dos espaços: entre as características explicativasdo sucesso elen-
cadas podemoscitar"povocivilizado, povopreparadoparaa disciplina com a qual
se identificou", "cidade européia e branca - população constituída por etnias eu
ropéias", "população rica". Estas representações identificadas no senso comum

172
são, porém, sutilmente reforçadas e intensificadas na própria constmção oficial
da imagemde Curitiba e no discurso explicativo dosucesso da experiência de pla
nejamento implantado como, por exemplo, a exaltação da presença de etnias eu
ropéias na composição social da cidade civilizada, onde sempre houve, através
delas, tradição de trabalho, ordem e progresso social.
O conjuntode representações acimaexpostas, a efetiva utilização dos es
paços planejados, bemcomoa sustentação ideológica do projeto moderniza
ção, relacionam-se a frações definidas do tecido social. Observamos que as
camadas médias curitibanas incorporam umconjunto devalores profundamen
te associados à identidade almejada pelo discurso dominante. Por sua vez a
produção e a reprodução do discurso alimentam-se e instruem-se dos valores
e hábitos dominantes na classe média.
Destacamos que, nocaso de Curitiba, o projeto modemizador está volta
do para a satisfação dos anseios de consumo material e simbólico das classes
médias, relativos até mesmo aos padrões de vida extemos ao País. Esta busca
nos remete às atuais imagens sintéticas de"cidade européia" e "cidade de Pri
meiro Mundo". Importante esclarecer que estes anseios não sãomeramente cul
turais, mas sim intrinsecamente articulados e necessários à modernizaçãocapi
talista doespaço.A transformação contemporânea das relações sociais e econô
micas no espaço metropolitano encontra, nas camadas médias, mercado privi
legiado para a ampliação dos circuitos modemos de consumo nametrópole.
Embora seja identificada a participação e a influência marcantes das ca
madas médias na cultura urbana predominante, observa-se que esta cultura do
minante não é abordada por nós como uma entidade separada. Pelo contrário,
acreditamos que no fenômeno aqui estudado háforte associação entre cultura
dominante e senso comum, opinião pública e massificação cultural. Nesta di
reção, nossa abordagem identifica a associação do processo de reconstrução
da imagem à necessidade de manutenção do mito urbano. O mito constitui-
se, assim, em elemento estruturante de um conjunto de estereótipos relevan
tes não apenas ao nível da cultura dominante, mas, sobretudo, fundamental
para organização do senso comum.
Jáfoi apontada, como característica essencial do processo estudado, acons
trução de diferentes imagens sintéticas da cidade acada período.Anos 70: cida
de funcional, cidade humana, cidade laboratório. Anos 90: capital ecológica,
cidade-modelo, cidade com melhor qualidade de vida do País, capital brasileira
de Primeiro Mundo. Pensamos que o aspecto mais marcante deste fenômeno é
a agilidade com que são construídas e reconstruídas essassínteses.
Verificamos que opadrão de vida metropolitano veiculado encontra-se for
temente associado ao modo de vida das camadas médias. Expandindo as suas
representações através de todo um catálogo de imagens coletivas para uso ge
neralizado, o discurso dominante consagra a indiferenciação ilusória das clas
ses sociais. Na direção que aponta Barthes (1989), é a partir do momento em
que qualquer cidadão se reconhece na grande imagem construída que a omis
são das diferenças sociais na apropriação dacidade atinge o auge de seu êxito.

173
Na propalada "cidade humana", o apagamento das diferenças sociais não
é, portanto, um fenômeno acidental, acessório ou insignificante. Trata-se de
parte constitutiva da própria ideologia dominante pela qual "transforma-se a
realidade do mundo em imagem do mundo, a História em Natureza". (Bar-
thes, 1989, p. 162.)
Observamos que as imagens-síntese são produzidas, sobretudo, pela se
leção simbólica de partes do espaço urbano que, no entanto, são tornadas re
ferências expressivas da totalidade urbana. Ocorrem, desta maneira, proces
sos de exemplificação, seleção, inclusão e omissão de espaços e de ângulos
das práticas sociais e culturais de apropriação.
Na difusão das imagens do lugar, associada às sínteses da vida coletiva
na metrópole, são veiculados estilos de vida e, sobretudo, hábitos de apropri
ação do espaço e de consumo de bens e serviços urbanos que pertencem, cla
ramente, a segmentos da classe média. A veiculação destes hábitos constitui-
se em estímulo que amplia o poder de penetração das imagens sintéticas no
imaginário popular. O conteúdo simbólico das imagens da cidade reelabora e
reproduz, em todos os níveis da vida social, as relações de dominação exis
tentes baseando-se no fato de que reproduz um imaginário subjacente.
A intensidade da exclusão social nos circuitos, em ascensão, de consu
mo e a articulação desta exclusão ao acesso imaginário a estes circuitos con
tribuem para que as carências dos setores populares dificilmente possam romper
estas barreiras para serem portadoras de valores novos para a vida coletiva.
Os processos críticos diluem-se contra a força do paradigma, da imagem he
gemônica que ordena a vida social.
A experiência curitibana apresenta muitos elementos capazes de conquis
tar o entusiasmo e a veneração em escalas sempre mas amplas. Como assinala
C. N. F. dos Santos (1986, p. 35), "corporifica a oposição ao presente passado,
ao nosso atraso sempre tão exorcizado, à nossa mistura racial mal-assimilada, à
nossa desordem, à nossa maneira predominante de ser. Viabiliza nossa imagem
de palco. Nada mais utópico, portanto, nem mais modelar". O Estado central e
autoritário foi capaz de percebê-lo já desde o início da década de 1970. Medi
ante expressivas e múltiplas linhas de financiamento federais e internacionais,
em Curitiba se realizou o "milagre" em sua versão curitibana; podendo, efetiva
mente, ser implantada a totalidade das propostas urbanísticas.
No nível das lógicas pretendidas para o Brasil, Curitiba, enquanto mo
delo, é também hoje bem-vinda, "ali está o exemplo do que deverá ser o País
no dia em que se embranqueça e se civilize. No dia em que acumule o sufici
ente para ser rico e ordeiro". (Santos, op. cit. p. 35.) A idéia de cidade do futu
ro foi, também, destacada recentemente pelo então presidente Fernando Co-
llor. Em discurso para empresários e diplomatas japoneses identificou Curiti
ba como "a cidade que anuncia o Brasil moderno". Curitiba, na década de 1990,
passa a ser a vitrina urbana e moderna da imagem do Brasil no exterior.
As possibilidades concretas de tornar hegemônica a imagem da cidade
deram-se em momento histórico preciso —década de 1970. Esta imagem, po-

174
rém, parece tomar-se ainda mais sólida nos anos 90e atingir canais de veicu-
lação e dominação ideológica bem mais amplos que os utilizados vinte anos
atrás. No entanto, um dos pressupostos da modernidade —"tudo que é sólido
desmancha no ar" - nos estimula a buscar o lugar histórico do mito, que um
dia foi constmído como se fosse para sempre.

CONCLUSÕES- POSSÍVEIS IMPACTOS


DA IMAGEM URBANA NO COTIDIANO

VeriiScamos que aconstrução de uma nova imagem dacidade constituiu-


se numa das bases do projeto de modernização urbana de Curitiba, impres
cindível a sua implementação aolongo dos últimos vinte anos. A imagem ex
pressa numa nova paisagem urbana de espaços-símbolo (calçadões, vias ex
pressas, parques urbanos, espaços culturais) e aimagem.representação, cons
trução de um novo imaginário.
O conjunto de processos analisados sugere a presença deelementos de
uma imagem dominante de cidade modema e planejada, intensámente esti
mulada pelos meios de comunicação, pelo marketing e pelas estratégias de
afirmação de seus gestores. Isto nos conduz ao reconhecimento de vínculos
entre comportamentos sociais, apropriações cotidianas dos espaços-símbolo
e asredes de influência e poder que sustentam, atualmente, aspráticas depla
nejamento e gestão da cidade.
Ao atribuir relevância à relação planejamento versus imagem versus
cotidiano o estudo aponta para a provável presença de uma nova natureza
do poder inscrita entre a política e a cultura. Neste contexto destaca-se so
bretudo o papel exercido pelos processos modernos de comunicação capa
zes de intervir no cerne do tecido social mediante emissão de valores, fixa
ção de novas formas desociabilidade, agilização demecanismos de consti
tuição da identidade coletiva e afirmação de determinadas práticas sociáis
de uso dos espaços.
Os elos identificados recolocam a questão da ação cotidiana que, não
obedecendo apenas auma lógica própria, parece ser influenciada, alterada, mo
dificada pelas práticas políticas. Nesta direção, "reações sociais manifestam-
se em rápidos processos de aceitação de idéias, valores e mitos; expressando
tentativas de adaptações aestímulos numa sociedade intensamente modifica
da". (Ribeiro, 1991.)
Com efeito, o estudo verifica a ampla adesão social conquistada emtor
no da imagem de "cidade que deu certo". Esta adesão pode ser observada em
grande parte das representações acerca da cidade que associam apositividáde
do lugar à positividáde da identidade coletiva, "oorgulho de ser curitibano",
de pertencer à "capital de Primeiro Mundo".
Os processos de recepção de mensagens-síntese eareprodução acrítica do
discurso dominante têm efeitos marcantes nos hábitos cotidianos da população,
principalmente das camadas médias curitibanas com uma forte adesão aos no-
175
vos padrões de vida coletiva que lhes são apresentados. Pensamos, por outro lado,
que para grandes parcelas da população urbana o usufruto dos espaços-símbo-
lo, embora não efetivo, opera-se, entretanto, no plano do imaginário, contribu
indo também desta forma para a afirmação da cultura urbana dominante.
A observação de alguns hábitos já consagrados, constituídos em traços da
identidade coletiva, permite-nos analisá-los enquanto preciosos elementos que
trazem legitimidade ao discurso técnico-urbanístico pois tornam mais verossí
meis as representações sobre o modo de vida curitibano veiculadas pela mídia.
Assim sendo, a mídia adquire força pelo papel agregador, articulador de
partes pinçadas da paisagem urbana e de aspectos selecionados do cotidiano
capazes de construir o campo das representações sobre a vida urbana e suge
rir a cada momento novas formas de fruição dos espaços.
As recentes realizações urbanísticas - Rua 24Horas, Ópera de Arame,
Jardim Botânico, ônibus biarticulado - tornam-se produtos, "novidades" que
acompanham um ritmo frenético de "renovação de idéias", caracterizando a
crescente espetacularização da vida urbana.
Cada novo espaço constitui-se também em ação e comunicação simbó
lica, pois Curitiba hoje fixou-se nacionalmente como espaço condensado, por
excelência, dos anseios das classes dominantes relacionados com o modo de
vida e usufruto da cidade. A absorção acrílica dos novos "produtos" urbanís
ticos e os rápidos processos de adesão social a idéias, valores e mitos associa
dos à cidade moderna são indicadores da cristalização da imagem urbana do
minante. A obtenção e manutenção deste padrão dominante expressa, por sua
vez, a agilização dos elos entre meios técnicos de comunicação, esfera cultu
ral e aparelho de poder.
A reflexão acerca das tendências antes referidas procura chamar a aten
ção acerca dos possíveis impactos de uma imagem filtrada da realidade urba
na com fortes incentivos de uniformização. Constituiria, no entanto, uma sim
plificação analítica pensar em imposição de um determinado modo de vida.
Parece-nos que a imagem urbana construída e veiculada cria um campo den
tro do qual é preciso mover-se. Entender como as pessoas se movem neste
campo, como criam e recriam seus sistemas de representação constitui-se em
desafio que, certamente, poderá contribuirpara a emergênciada desejávelplu
ralidade de leituras do lugar vivido.

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que formou sua imagem*

Os transportes são reconhecidamente agentes do desenvolvimento urba


no. As facilidades de ligação entre dois pontos possibilitam que as cidades
atinjam cada vez áreas mais afastadas para sua expansão, uma vez que as difi
culdades impostas pelas grandes distâncias e pelo tempo de locomoção ficam
sensivelmente reduzidas. Geralmente um novo meio de transporte é implan
tado diante da necessidade de uma determinada região em melhorar suas liga
ções com o centro urbano ou com áreas já mais desenvolvidas, ou seja, a par
tir de uma demanda já existente. Por sua vez a melhoria da acessibilidade in
centiva que novos usuários passem a procurar tal região, estimulando assim a
melhoria dos serviços públicos prestados, da infra-estrutura existente e possi
bilitando que o comércio e serviços se desenvolvam mais rapidamente.

Essa lógica c a da acessibilidade oferecida nos pontos de embarque e desem


barque, que exige à sua volta concentração de atividades para aproveitar me
lhor os investimentos realizados nos sistemas de transportes que a produzem.
(Campos Filho, 1989, p.96)

A análise do crescimento de Porto Alegre demonstra em diversos casos


esta influênciados transportes no desenvolvimento ou surgimento de novasáreas
de ocupação. Entretanto, o caso do crescimento e desenvolvimento do bairro
Tristeza atraiu nossa atenção, visto que nele não havia uma demanda de trans
porte preexistenteou a necessidadede integrara área a outrasjá ocupadas. En
tretanto, a introdução pela municipalidade de uma linha de trem para o trans-

Artur do Canto Wilkoszynski é arquitetoe urbanista - FAU/UFRGS, bolsista de aperfei


çoamento CNPq.
Célia Ferraz de Souza c arquiteta, professora do PROPUR, Programa de Pós-Graduação em
Planejamento Urbano c Regional e do Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arqui
tetura e Urbanismo - UFRGS.
' Vinculado à pesquisa Tristeza: do campo ao bairro, CNPq - Orient. Célia Ferraz de Souza.

181
porte dos dejetos do asseio público levou a pequena população a reivindicar o
uso desta ligação pará o transporte de passageiros, o que melhoraria sensivel
mente as condições de acessibilidade à região. Embora o governo local não in
centivasse a ocupação da área, pode-se dizer que houve, com o aproveitamento
desta ligação já existente, um "processo natural" de ocupação, o que distingue
este de outros casos. As condições que motivaram esta ocupação, bem como as
características peculiares a ela, são os objetos deste estudo.
Durante o período que ficou conhecido como "República Velha" (1889-
1930), a cidade de Porto Alegre, que atravessava sua "fase de industrializa
ção" (Souza; Müller, 1978), viveu um período de grandes e importantes trans
formações. O governo local, de acordo com sua ideologia positivista, pas
saria a realizar obras de caráter claramente sanitarista, a fim de adequar a
cidade ao modelo por ele defendido. Aliada a esta política dos dirigentes
locais estava a vontade de uma burguesia emergente de trazer a Porto Ale
gre todas as modernidades do Primeiro Mundo, dando à cidade um aspecto
mais cosmopolita.
Dentro desta política sanitarista-higienista, um dos primeiros empreen
dimentos realizados, ainda em 1894, foi a construção da Estrada de Ferro do
Riacho, ou simplesmente "Trenzinho daTristeza", como ficou conhecida pos
teriormente, responsável pelo transporte dos dejetos. Somando-se a este, ou
tros tantos empreendimentos foram sendo realizados, tais cOmo a ampliação
de capacidade no fornecimento de energia elétrica (1888), o projeto de cana
lização da rede de esgotos (1899), o tratamento da água com a utilização de
filtros (1908), a inauguração da rede de bondes elétricos (1908) e ainda várias
obras de modernização, pavimentação e alargamento de ruas e becos.
Éevidente que essas realizações estavam fortemente associadas às progres
sivas transformações socioeconômicas pelas quais o País vinha passando.

Consolidava-sc uma ordem urbano-industrial, onde a cidade era o centro de


irradiação de padrões e valores burgueses, assim como era o centro das opera
ções comerciais e financeiras e também o espaço onde se concentravam as fá
bricas e a massa operária. (Pesavento, 1991, p.42)

Esta burguesia emergente com suas aspirações e necessidades exigia uma


cidade melhor, uma cidade que demonstrasse tais transformações, uma cida
de em sintonia com esta nova ordem. Isto implicava transformações básicas,
oferecendo novos serviços, melhorando os já existentes, adequando a estrutu
ra da cidade a esta "sonhada" modernidade.

Um novo imaginário urbano se construiu em torno da busca de uma cidade


limpa, bonita e ordenada, (p.42)

Os trens para a população desta época não significavam apenas mais um


meio de transporte; traziam consigo uma forte imagem de desenvolvimento.
O Brasil atravessava uma fase de modernização de suas estruturas coloniais,

1BP
adaptando-se à nova ordem econômica e social da burguesia emergente. A
República recentemente proclamada tinha como lema "Ordem e Progresso",
e isso em si já demonstrava claramente a visão e o modo de pensar que se ins
talaria no País nas décadas seguintes. A industrialização, aliada à mecaniza
ção e às novas tecnologias que surgiam, conferia um caráter de progresso, um
"caráter de modernidade" à sociedade de uma forma geral, colocando o Bra
sil em sintonia com o resto do mundo desenvolvido. Neste sentido os trens
importados da Europa ou dos Estados Unidos significavam, além de rapidez,
eficiência e praticidade, principalmente modernidade, qualidade agora indis
pensável para os padrões desta sociedade.
Porto Alegre sofria com a precariedade dos serviços prestados, isso sem
falar na estrutura urbana ainda colonial que dificultava enormemente seu pro
gresso. Ruas estreitas, becos, esgotos a céu aberto, redes elétrica e de água
insuficientes, bondes puxados a burro de forma alguma correspondiam à ima
gem de uma cidade ordenada, progressista e moderna. Havia, portanto, ne
cessidade urgente de alterar esta realidade, promovendo a melhoria dos servi
ços e a reestruturação da cidade, permitindo seu desenvolvimento, crescimento
e expansão.
No entanto, tais transformações não poderiam acontecer da noite para o
dia. A cidade deveria passar por uma reestruturação geral, o que certamente
seria altamente oneroso para a municipalidade. A população, buscando por si
própria soluções para o desconforto e insalubridade, procurava afastar-se da
cidade durante o verão, época em que a situação se agravava. As praias de mar
eram de difícil acesso, e a viagem muitas vezes tomava vários dias. As cháca
ras e as praias do rio Guaíba, próximas à cidade, mas suficientemente afasta
das dos "problemas urbanos", tomaram-se uma boa alternativa, logicamente
para uma população mais abastada que poderia manter duas residências.
Além desta situação de desconforto e insalubridade também começava
a surgir um sentimento de valorização das atividades de lazer, o que motivava
a população a buscar as praias como local de recreio.

Nesse processo de transformação a família privilegiou o consumo do lazer,


produzindo uma atmosfera cosmopolita pluricultural, marcada por uma voca
ção singular para o culto do prazer e da alegria, características reconhecidas
da cultura urbana carioca. (Araújo, 1993, p.25.)

A exemplo de outras cidades brasileiras, como o Rio de Janeiro, algu


mas dessas"transformaçõesde comportamento" tambémpuderamser obser
vadas em Porto Alegre; isso pode ser em parte confirmado quando se observa
nesta época o surgimento de alguns equipamentos voltados exclusivamente
às atividades de lazer, tais como o velódromo da Redenção (1899), o Grêmio
Football Portoalegrense (1903), o primeiro cinema - Recreio Ideal - (1907),
o Sport Club Internacional (1909). Somados a estes já havia quatro prados em
funcionamento há alguns anos.

183
No sentido do saneamento básico, um dos primeiros empreendimentos
promovidos pela municipalidade, buscando alterar este quadro, foi a implan
tação da Estrada de Ferro do Riacho, criada para atender o serviço de asseio
público transportando os dejetos cloacais para um ponto afastado do centro
urbano. A linha de trem teria início na ponte do riacho, a "Ponte de Pedra", e
seguiria margeando o rio até a Ponta do Dionísio, hoje Vila Assunção.
Em 1894 as obras para sua implantação tiveram início. Por contingênci
as diversas, seus serviços somente começaram a ser prestados cinco anos mais
tarde após uma modificação em seu percurso inicialmente projetado, devido
a contendas com José JoaquimAssunção, proprietário das terras por onde pas
sava o trem. Por ocasião desta modificação o ponto de despejos no rio foi trans
ferido da Ponta do Dionísio, mais ao sul, para a Ponta do Mello, no meio do
caminho (entre aquela e o centro da cidade); sendo assim, o trecho desativado
foi reassentado, através de um pequeno desvio, em direção àTristeza. A partir
deste momento a ferrovia passou a oferecer serviços de transporte de passa
geiros e cargas, além de manter sua função original de transportar os dejetos
para o serviço de asseio de Porto Alegre. O percurso da estrada passou a ter
sua última estação no arraial daTristeza, sendo por isto rebatizada como "Es
trada de Ferro do Riacho à Tristeza".
A alteração do traçado da Estrada de Ferro do Riacho foi concluída no
ano de 1900. Esta alteração foi feita, em grande parte, devido às solicitações
dos agricultores residentes na região daTristeza' que necessitavam de um meio
para transportar sua produção até o centro da cidade. Neste sentido o inten
dente José Montauri declarou em seu relatório daquele ano:

A instância dos laboriosos moradores do arraial da Tristeza procurei aprovei


tar a via férrea da Ponta do Dionísio até o quilômetro 8+800, e com o material
levantado deste ponto em diante, por não ser mais necessário para o serviço
do asseio público, utilizá-lo no prolongamento da linha para satisfazer a aspi
ração dos habitantes daquele bairro,-

As ligaçõesexistentes até entãoeramfeitas viaTeresópolis ou pelo rio Gua-


íba, o que tornava o transporte difícil e mais demorado. Foi esta nova função
que teve papel fundamental para a continuação de suas atividades, e não menor
importância parao desenvolvimento e crescimento da região que passoua aten
der. A renda obtidacomos serviços prestados atéentão erainsuficiente paracobrir
as dívidas feitas por ocasião da construção da ferrovia; entretanto, com o trans
porte de cargas e passageiros a ferrovia passou a ter uma receita suplementar
que contribuía para minimizar os altos custos de sua manutenção.

' A Tristeza, no período aqui estudado, compreendia uma região bem maior do que hoje é
denominado bairro Tristeza. Faziam ainda parte desta região as áreas dos atuais bairros Vila
Assunção, Vila Conceição e parte dos bairros Camaquã e Pedra Redonda.
^Relatório apresentado aoConselho Municipal pelo Intendente José Montauri de Aguiar Leitão
na sessão ordinária do ano de 1900.

184
A região da Tristeza era de grande beleza natural e havia terras disponí
veis à ocupação. Até então havia sido fracamente povoada. Inicialmente as
terras estavam nas mãos dos sesmeiros de Diom'sio Rodrigues Mendes e, após
o primeiro parcelamento de solo feito por um de seus descendentes no ano de
1876, passou a ser ocupada, em grande parte, por imigrantes europeus. Os
imigrantes chegavam ao Rio Grande do Sul a fim de colonizar a região da ser
ra, mas alguns, não sendo de imediato assentados, terminavam por estabele
cer-se nas proximidades da Hospedaria do Imigrante situada no Cristal, onde
passavam a trabalhar na agricultura, atividade predominante na região desde
seus primórdios. A região permaneceu meramente agrícola e com baixíssimas
densidades de ocupação até a chegada do trem.
A Tristeza enquadrava-se perfeitamente no perfil de região buscado pela
burguesia porto-alegrense como uma segunda opção às condições da vida ofe
recida pela cidade. Estava próxima ao Centro, contava com uma beleza natural
rara, praias com águas despoluídas, disponibilidade de terras e, principalmente,
passou a ser servida por um meio de transporte modemo, rápido e eficiente. Esses
fatores, somados à questão da acessibilidade, foram decisivos para que parte da
elite de Porto Alegre (composta inclusive por imigrantes dedicados à indústria
ou ao comércio) elegesse a Tristeza como um de seus novos refúgios.
Proliferaram então as construções na região. Além dos chalés dos mora
dores que foram-se transferindo para a Tristeza, novas residências burguesas
de verão e fins de semana foram sendo construídas próximas ao rio. Com a
chegada dos veranistas aprimoraram-se os serviços e o comércio, atividades
indispensáveis à sua permanência. Surgiram então hotéis, restaurantes, cine
mas, clubes, sociedade beneficente, ou seja, uma grande diversidade de ativi
dades que proporcionavam a esta crescente população maior comodidade. As
sistindo a todo este progresso, os proprietários de terra na região passaram a
promover grandes loteamentos, e não apenas a venda de pequenas frações de
suas propriedades. Os primeiros loteamentos foram feitos apenas alguns anos
após o início das atividades da ferrovia, sendo o primeiro o Loteamento da
Praia Nova (1905) na Pedra Redonda, seguido pelos loteamentos dos terrenos
de H. Punder (1909) e Wenceslau Escobar (1910). A facilidade para a compra
de lotes atraiu ainda maior número de porto-alegrenses para a região. Durante
os meses de verão aTristeza estava repleta de gente; moradores, veranistas ou
simplesmente pessoas que chegavam de trem para passar o dia ou o fim de
semana nos hotéis.
Uma vez que já haviainfra-estrutura suficiente, algunsveranistas passa
ram a prolongar suas estadaspara alémdos meses de verão. Outrosacabaram
por transferir definitivamente suas residências para a região. O crescimento
era contínuo, houve um prolongamento da via férrea até a praia da Pedra Re
donda (1913), foram construídas novas escolas e surgiu umposto policial para
atender aos moradores quese multiplicavam anoa ano.ATristeza, então, além
de ser um local de veraneio, vai-se consolidando como uma área residencial,
ou como um bairro propriamente dito.

185
Aquestão do uso do solo demonstra outro dado interessante: ouso agrí
colanão deixou de existir, mas passou a conviver e principalmente a ser esti
mulado pelos novos usos que se estabeleciam, dada a crescente demanda de
produtos para o comércio local e até mesmo para Porto Alegre, já que os ser
viços do trem passaram a ser maisfreqüentes e eficientes.
A análise da ocupação da região sugere que havia uma clara divisão es
pacial de acordo com os diferentes usos. Enquanto asáreas residenciais de elite,
definidas por construções de melhor qualidade, ocupavamuma faixa de terras
ao longo da orla, as populações menos privilegiadas permaneciam do outro
lado da ferrovia, no interior da região, desenvolvendo atividades agrícolas.
Assim, as atividades institucionais, de comércio, serviços e lazer estabeleci
am-se estrategicamente entre estas duas regiões,próximas à estação do trem e
ao longo da linha que havia sido prolongada até a praia da Pedra Redonda.
Com o desenvolvimento da praia percebe-se que o uso da regiãopara ativida
des de lazer foi-se consolidando.
O desenvolvimento da região era contínuo, de tal forma que no ano de
1932, de acordo com o plano de pavimentação das vias radiais, foi concluída
a construção da Avenida Onze de Setembro, hoje Wenceslau Escobar, que era
a principal via de circulação da região. Com a conclusão do primeiro acesso
pavimentado à região, as ligações com o Centro da cidade ficaram bem mais
fáceis. É importante lembrar que nesta época o automóvel e o ônibus já não
eram mais uma novidade; eram meios de transporte consolidados na cidade,
haja vista as obras de pavimentação das principais avenidas como forma de
melhorar as condições de tráfego. Com horários preestabelecidos e com um
tempo de viagem bem superior, o trem, diante da rapidez, conforto e moder
nidade oferecidos pelos ônibus e automóveis, deixava de ser atrativo como meio
de transporte.
Alguns anos mais tarde, em 31 de março de 1936, o fraco movimento
de passageiros e cargas forçou a desativação dos serviços da ferrovia, três
anos após a linha ter sido encampada pela Viação Férrea do Rio Grande do
Sul, como uma tentativa de manter seus serviços,já que a prefeitura não podia
mais sustentá-los.
Mais uma vez a modemidadeimpulsionava o desenvolvimento da região.
Com a pavimentação das avenidas durante a gestão de Alberto Bins, os ôni
bus se consolidaram como meio de transporte. O crescimento tomou novo
fôlego, e novos loteamentos, agora de um padrão mais elevado, foram feitos
para atrair mais habitantesà região. No ano de 1932foi aprovadoo loteamen-
to da VilaConceição (primeira fase), em 1938aVilaAssunção e o JardimYa-
cht Club e finalmente, em 1939, a segunda fase daVila Conceição. Com a in
trodução destes loteamentos a região ficou praticamente toda loteada, sendo
que a partir daísó ocorreram pequenos fracionamentos e a ocupação de lotes
ainda vazios, caracterizando, portanto, uma fase de densificação e não mais
de expansão.
E interessante observar que quanto ao uso do solo ainda existem evidên-

18B
cias da situação de separação conforme as atividades e padrões. A Avenida Wen-
ceslau Escobar transformou-se numa verdadeira interface caracterizada por um
corredor de comércio e serviços que serve a ambas regiões e reforça esta assi
metria espacial, social e econômica. A região mais interna tem construções
que, salvo obras mais atuais, apresentam um padrão mais baixo. A região pró
xima à orla é praticamente toda ocupada e nela ainda permanecem muitas das
construções antigas de padrão elevado. Assim sendo, é possível observar que
a estrutura urbana inicial, apesar das recentes transformações devido à valori
zação do solo, consolidou-se, deixando marcas e mantendo por muito tempo
os mais pobres de um lado e os mais ricos de outro.
Outra questão interessante a ser observada é que a "vocação para o la
zer", que atraiu a população para o desenvolvimento do bairro, também se
manteve. A região, que se estruturou como balneário e zona de veraneio, ain
da mantém essas características. A Tristeza e seus arredores são dos raros lo
cais da cidade onde até hoje é possível manter um estreito contato com o Gua-
íba. Aqui pão há muros ou diques tampouco é necessário buscar um ponto alto
para poder enxergar o rio, já que ele está ao alcance dos olhos a partir de qual
quer rua que se dirija até a orla ou que a acompanhe.
O rio poluído não permite mais os banhos e a pesca; no entanto, é nesta
região que existem importantes clubes náuticos onde as pessoas ainda desfru
tam a beleza do rio. Com a proibição dos banhos, as praias foram perdendo
importância, sendoquealgumas foramtendosuafaixade areiaapropriada pelas
casas ao longo da orla; entretanto, em alguns lugares, como no calçadão da
praia de Ipanema, ainda é possível ver gente caminhando à beira do rio, ou
até mesmo arriscando um banho. As casas não são mais os chalés do início do
século, mas as novas construções ao longo de ruas fartamente arborizadas ainda
conferem ao bairro uma imagem de tranqüilidade tão comum em nossos bal
neários.
Todo o processo de desenvolvimento do bairro da Tristeza foi desenca
deado por uma idéia de modernidade, conforto e melhor qualidade de vida,
concretizada a partir da implantação da ferrovia. Esse processo, no entanto,
expressa mais que a decisiva e inegável influência dos meios de transporte para
o crescimento e desenvolvimento de uma região. Expressa também que a ima
gem de progresso e modernidade representada pelo trem teve papel decisivo
para a construção da imagem do bairro que se formou. Imagem de avanço e
desenvolvimento ímpar, evidenciada pela presença de equipamentos e servi
ços, naquela época ainda inexistentes em outros bairros da cidade; pelas ati
vidades de lazer em suas praias, clubes, associações e até cinemas; pela pre
sença de uma população elitizada que promoveu um forte desenvolvimento
sociocultural e como decorrência o desenvolvimento econômico. Tudo isso
faz com que a regiãoTristeza, até hoje, seja vista como uma área desenvolvi
da que ofereceumavida tranqüila e descontraída parasuapopulação, em grande
parte composta pelas classes média e alta da sociedade porto-alegrense.

187
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p.25.
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caos: o que os cidadãos brasileiros devem fazer para a humanização das cida
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rativa e perspectiva da evolução urbana - caso PortoAlegre. Subprojeto; A/íd-
lise do percurso do trem da Tristeza. Porto Alegre: FAPERGS, 1991.

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cidade: Imagem e imaginário'

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é criar ou propor uma inteligibilidade da ima


gem urbana, ou seja, em lugar de constatar sua ocorrência ou descrever as par
ticularidades das suas várias manifestações, parece-me ser necessário enten
der o seu significado, as possibilidades de suas ocorrências, suas semelhan
ças e diferenças.
Em outras palavras, afirma-se que é indiscutível que a cidade se faz re
presentar através das suas imagens e é através delas que se dá a conhecer con-
cretamente; as imagens urbanas são signos da cidade e atuam como mediado
res do seu conhecimento.
Porém, essa afirmação carece de rigor por ser excessivamente óbvia.
Logo, é necessário, além de ver a imagem urbana, discriminar suas caracte
rísticas para tentar chegar a uma generalização que a revela como uma outra
face da cidade enquanto objetode conhecimento. Além de ver, urge discrimi
nar e generalizar: produzir uma inteligibilidade.'--
Enquanto ver, faço um apelo à lembrança dasimagens dacidade ou, se pos-

Lucrécia D'AIessio Ferrara é professora no Departamento de Projeto, FAUAJSP.


'Trabalho apresentado sob a forma de conferência no Seminário "Imagem da Cidade" (UFRGS,
abril de1994), continua, amplia e revê questões jáenfocadas em outros trabalhos como' Amudeze
a fala de um signo" {VerA cidade, São Paulo: Nobel, 1988), "As máscaras da cidade' e Imagem da
cidade e representação urbana" em Olharperiférico. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 93.
' Esta postura cientílica c proposta por Peirce {Collectedpapers —Cambridge: Harvard Uni-
verst y Press, 4. ed., 1978, 5.42) para distinguir o traço epistemológico essencial da Feno-
menologia Semiótica onde este artigo foi buscar sua inspiração primeira.
^No mesmo sentido e para ampliar o estudo dessa questão, aconselha-se a leitura de Ibri, Ivo
Assad —Kósmos Noetós —São Paulo: Perspectiva, 1992 e dois outros trabalhos da minha auto
ria publicados em Olhar periférico, São Paulo: EDUSP/FAPESP 1993, intitulados, respectiva
mente, "A ciência do olhar atento" e "Um olhar entre vizinhos —espaço social: linguagem e
interpretação".

193
sível, dascidades quepovoam o cotidiano de todos nós, seres urbanos. Enquanto
discriminar, solicito umaobservação analítica para distinguir imagens dentro de
imagens e, para generalizar, exige-se uma abstração que se descola da concreta
imagem paraproduzir umconhecimento. Emoutras palavras, é possível transfor
mar a imagem numa outra categoria de análise do fenômeno urbano.

IMAGEM E IMAGINÁRIO DA CIDADE

Aquela postura apenas constatativa da imagem nacidade leva, freqüen


temente, a confundirimageme imaginário tonando-os sinônimos, indistintos
nas suas manifestações esignificados. Em nosso ponto devista, para oestudo
daimagem, como categoria de análise da cidade, é necessário distinguí-la do
imaginário.
Em primeiro lugar, há que salientar dois aspectos que, de modo si
milar, aproximariam a imagem do imaginário urbano: de um lado corres
pondem a desafios perceptivos, de outro, e enquanto categorias de análise
urbana, não têm, na cidade, apenas um locativo de manifestação, ao con
trário, eles a qualificam, ou seja, não se trata, apenas, de imagem ou ima
ginário na cidade, mas de imagem ouimaginário da cidade. Enquanto qua
lificativos são informação, são significados urbanos produzidos na cidade
como espaço que agasalha uma relação social. Portanto, imagem e imagi
nário urbanos são manifestações de dupla mão: a cidade como espaço fí
sico e construído e como lugar que se individualiza naquele espaço; nas
duas situações ela é cenário e ator de uma relação social que contracena
com o homem, usuário ou cidadão urbano. Imagem e imaginário corres
pondem à capacidade cognitiva do homem de produzir informação em to
das as suas relaçõessociais; nos dois casos, produzem-se informações, mas
de modo diverso.
A imagem corresponde à informação solidamente relacionada com um
significado que se constrói numa síntese de contornosclaros que a faz única e
intransferível. A imagem tem um e apenas um significado, corresponde a um
dado solidamente codificado no modo de ser daquela sintaxe. É um código
urbano e impõe uma leitura e fruição que estão claramente inscritos na cidade
como espaço construído.
Ao contrário, o imaginário corresponde à necessidade do homem depro
duzirconhecimento pela multiplicação do significado, atribuir significados a
significados; suas produções não são únicas, mas seacumulam e passam asig
nificar mais porum processo associativo onde um significado dáorigem a um
segundo ou terceiro e, assim, sucessivamente. Pelo imaginário, a imagem ur
bana - locais, monumentos, emblemas, espaços públicos ou privados - passa
a significar mais pela incorporação de significados extras e autônomos em
relação à imagem básica que lhes deu origem.
A imagem é um dado e corresponde a uma concreta intervenção cons-

194
truída na cidade, o imaginário é um processo que acumula imagens e é esti
mulado ou desencadeado por um elemento, construído ou não, porém clara
mente identificado com o meio e o cotidiano urbanos. Nos dois casos, encon
tramos traços qualificativos ou predicativos da cidade e são eles que nos pos
sibilitam distinguir a imagem do imaginário e, sobretudo, criar uma relação
entre eles, ou seja, um padrão que, ao distingui-los, os identifica.
Assim, é possível falar de um padrão da imagem da cidade e outro rela
tivo ao imaginário; estes padrões são invariáveis que possibilitam comparar,
interpretar e distinguir manifestações aparentemente iguais. Estas operações
de comparar e distinguir, aliadas a sua interpretação, transformam o estudo
da imagem e do imaginário urbanos num fértil campo de pesquisa semiótica.
Enquanto dado ou processo, imagem e imaginário sugerem uma distinção que
se apóia nas sintaxes das suas respectivas manifestações e que possibilitam a
leitura que os discrimina.

A SINTAXE DA IMAGEM URBANA

A sintaxe da imagem urbana é um desafio visual da percepção que a re


gistra, flagrando-a nos seus elementos distintivos: cores, formas, texturas,
volumes, localização, tempo histórico.
Esta visibilidade é proporcional à familiaridade com que se desenvolve
a relação diária do usuário urbano com aqueles elementos, ou seja, é mais ou
menos distinta e percebida quanto mais se mostra ao olhar habituado ao coti
diano das suas características visuais. Percebe-se a imagem na própria medi
da em que é reconhecida, identificada.
Ao lado dessa percepção visual, e enquanto característica que qualifica a
cidade, a imagem manifesta, na sua sintaxe, um encadeamento de qualificações
e, ao mesmo tempo em que os ordena, vai tomando-se mais complexa.
Edificada, a imagem urbana quase nunca emerge do seu entomo ou con
texto porque com ele não dialoga, ao contrário, surge isolada na auto-sufici-
ência do edifício onde a arquitetura fala por si mesma; é desse isolamento e
quase conflito que ela se destaca e se consagra.
Escultórica, a imagem exibe formas, materiais, volumes, cores criando
o seu próprio espaço de modo que, como um monumento, pode ser transpos
ta para vários contextos sem perder sua eficiência visual e sua iconicidade.
Emblemática, a imagem é o resgate físico e visual de marcas memorá
veis da cidade que, através dela, escreve a sua história documental de episódi
os, datas, estéticas e personagens. Na realidade, a imagem é uma reconstru
ção simbólica da história documental de uma cidade.
Renovada, a iconicidade da imagem é o recurso utilizado para resgatar a
aparência urbana e é responsável pela tentativa de fazer a cidade, sobretudo a
moderna, apresentar um visual sempre novo, saneado e adequado.
Referencial, a imagem urbana cumpre a tarefa funcional de demarcar e

195
assinalar o espaço, seus roteiros, lugares e geografia; bússola icônica da cida
de é responsável pela orientação e economia dos seus caminhos. Desse modo,
ela é pontual e traça o percurso da cidade com marcas descontínuas.
Estática, ela é descritiva e corresponde aos instantâneos visuais de am
plo enfoque das imagens de topo e dos grandes planos: são os panoramas, os
sky Unes que identificam, à distância, o específico de uma cidade.
Segura, a imagem urbana não sugere dúvidas sobre a informação que vei
cula; de alta definição, não oferece alternativas à sua decodificação, é una e
única. A imagem organiza a cidade, torna-a simbólica e representativamente
eficiente.
Apelativa, a imagem urbana é um cartão postal, é uma espécie de publi
cidade que concretiza o modo de reconhecer e avaliar uma cidade; é o registro
temático preferido dos cartões e mapas turísticos e faz as delícias de qualquer
viajante mais desavisado.
Pública, a imagem urbana só se revela nos espaços institucionais e o seu
reconhecimento supõe a percepção coletiva que consagra e faz circular valo
res, marcas, referências e identidades urbanas: aí estão o Cristo Redentor ou a
Estátua da Liberdade.
Em síntese, a imagem urbana é a chancela do hábito, do cotidiano des-
compromissado e, por isso mesmo, fortemente enraizado na cumplicidade das
crenças e valores constatados pela visão e registrados coletivamente. Uma sim
ples fruição.

A SINTAXE DO IMAGINÁRIO URBANO

A imagem urbana é um dado perceptivo, o imaginário desenvolve um


processo em tudo mais complexo, enquanto percepção e enquanto recepção.
Enquanto percepção, a imagem é uma constatação, um hábito de ver, e en
quanto recepção é uma fruição. Enquanto percepção, o imaginário exige um
juízo perceptivo e, enquanto recepção supõe a participação, o compromisso
marcado pela experiência que permite a comparação entre cidades e, sobretu
do, desenvolver a informação quea vivência urbana permite e estimula. É exa
tamente essa matriz receptiva agenciada pelo imaginário que faz da experiên
cia urbana uma revolução no repertório de informação de um indivíduo e am
plia a percepção visual até a dimensão informacional.
A imagem é concretamente construída; o imaginário é estimulado ou de
sencadeado pelas características urbanas. Assim sendo, a sintaxe do imaginá
rio está diretamente vinculada à identificação desses estímulos,
Se a imagem urbana é uma fruição coletiva, o imaginário é desencadea
do pela solidão agasalhada na imobilidade da reclusão doméstica onde o ver
não é constatar, mas produzir/criar a informação urbana e, com ela, a própria
experiência. Esse ver é um pensar, refletir.
Nessa ação, a cidade é um cenário, um pano de fundo, um recorte que

196
sustenta uma caudal de sentimentos e reflexões. Conhece-se a cidade ao ela
borar sobre e a partir dela. É essa modalidade de estímulo que dá origem a
uma poética urbana identificada com a modernidade.
É esse imaginário que inspira a poesia de Baudelaire dos "Tableaux pa-
risiens" ou, entre nós, de João Cabral de Melo Neto de "Paisagens com figu
ras" patrocinadas por um imaginário pernambucano ou de Sevilla responsá
vel, segundo o poeta, por uma urbanização do regaço que pode ser exemplifi
cada pelos versos inseridos em Educação pela pedra (1966).

Com ruas medindo corredores de casa,


onde um balcão toca o do outro lado,
com ruas arruelando mais, em becos,
ou alargando, mas cm mínimos largos,
os bairros mais antigos de Sevilla
criam o gosto pelo regaço urbanizado.
Eles tem o aconchego que a um corpo
dá estar noutro, interno ou aninhado,
para quem torce a avenida devassada
e ent1a o embainhamento de um atalho,
para quem quer, quando fora de casa,
seus dentros e resguardos de quarto.^

A esse imaginário recluso que parece retirar-se da cidade para poder


vivê-la/senti-la, se opõe um outro, solitário e clássico - oflãneur-, o anda
rilho que se expõe e percorre a cidade a esmo e a pé e usa a lentidão do pas
sear como desencadeadora de associações. O flãneur e aflãnerie conferem
a cidade, comparam a experiência urbana de hoje com a de ontem à procura
do seu avesso ou sua raiz profunda. Essaflânerie se opõe ao passeio turísti
co, porque este constata, registra, mas ela penetra mais profundamente na
natureza da experiência urbana enquanto informação capaz de transformar
o conhecimento. Daí conhece-se uma cidade através de outra, conhecemos
melhor São Paulo ao flanar em Paris, porque colhemos sugestões possíveis
de serem comparadas. Esta oposição ao passeio turístico está diretamente
vinculada ao caráter sugestivo do imaginário/flãneur porque, se o primeiro
exige a concreção da imagem/monumento para ser fixada, podemos dizer
que quanto mais tênue for o roteiro de imagens, mais dinâmica e eficiente
será a sugestão imaginária.
O flanar urbano supõe um estranhamento pouco à vontade, em tudo opos
to ao hábito coletivo da imagem. Esse estranhamento solitário e anônimo é o
responsável pela dinâmica narrativa do imaginário que fixa e relaciona con-

^No âmbito da literatura brasileira, João Cabral de Melo Neto desenhou a cidade ou a percep
ção do urbano em inúmeros poemas concentrados, sobretudo, nas obras Paisagens com figu
ras, QuadcrnacA educaçãopela pedra, respectivamente de 1956,1960e 1966,e reunidosem
Poesias completas. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968.

197
textos, situações e, sobretudo, figuras, os tipos característicos das cidades de
todos os tempos e lugares do planeta.
Além do próprio flâneur, criado magistralmente por Walter Benjamin,'*
esse tipo de imaginário inspirou todos os grandes romancistas da cidade da
primeira Revolução Industrial de Flaubert a Dostoiewsky,^ sem esquecer Ma
chado de Assis, ao recriar, através dos seus tipos urbanos, a complexidade cul
tural do Rio de Janeiro do final do século passado.
Ao lado dessas duas modalidades da sintaxe do imaginário que parecem
ser dominadas pelo indivíduo que desconstrói a imagem urbana no anonima
to da multidão, surge uma outra, dominada pela própria cidade nos paroxis-
mos da velocidade e da mudança. Este imaginário é tão sugestivo e desafia
dor que inspirou, no início do século, o futurismo com todas as suas caracte
rísticas de vanguarda estética e cultural na antropofagia de um passado antiur-
bano, artesanal e rural. Este é o espírito áoManifesto antropofágico de Oswald
de Andrade que, através do imaginário inspirado na dinâmica urbana, associa
a cidade a tudo o que é avançado e independente. Através do imaginário, a
velocidade da máquina e as transformações tecnológicas passam a ser signos,
passam a representar o próprio modo de vida urbano e moderno. Por essa via,
modernidade, industrialização e cidade se confundem, atingem o indivíduo e,
através dele, caracterizam uma cultura.
Se a imagem urbana era, sobretudo, visual e icônica, o imaginário é polis-
sensorial e resgata índices, marcas, signos para, com esses fragmentos, produ
zir uma constelação, uma unidade que atua como metáfora da cidade: a solidão
que se concretiza na multidão, o flâneur, a prostituta, o burguês, a velocidade
são metáforas da modemidade e temas constantes do imaginário urbano.
Assim, o imaginário sobre uma cidade não a reproduz, mas, estimulado
pelos seus fragmentos/índices, produz discursos que com ela interagem. Uma
espécie de diálogo insólito porque, no primeiro momento, o usuário é emis
sor e receptor ao mesmo tempo e, apenas com o registro da memória, esses
discursos se transformam em arquétipos culturais. Assim sendo, o imaginário
dialoga, em última instância, com a história urbana.
Por outro lado e paradoxalmente, o caráter apelativo da imagem urbana
visto anteriormente dirige-se ao próprio imaginário que, sem ele, permanece
ria diluído no cotidiano, no hábito da cidade enquanto ambiente construído.
É ao imaginário que a arquitetura da imagem urbana se dirige, porque depen
de dele para a caracterização do seu plano ideológico.

•'A figura doflâneur é a metáfora central da capital francesa, tal como a apreende Walter Ben-
jamin em Parigi Capitule deiXIXSecolo. Turim: Einaudi, 1986.
®Em Mme. Bovary, Flaubert recorta os traços básicos da burguesia urbana que se multiplica
pelas cidades francesas: "Ma pauvre Bovary souffre et pleure dans vingt viliages de France"
afirma o autor ao tipificar na personagem Emma aquela tendência que ficaria conhecida como
bovarysmo. Da cidade burguesa e industrial, cenário comum da leitura ocidental nos séculos
18, 19 e 20, Dostoiewsky cria um herói que se problematiza pela^tensão com as degradadas
estruturas urbano-sociais vigentes.

198
A IMAGEM DE UMA IDEIA URBANA

Como foi dito antes, a imagem da cidade e o imaginário urbano distin-


guem-se no plano sintático, o que supõe que se distingam, também, no plano
ideológico. Resta saber como se delineia essa última distinção.
Se o imaginário supõe uma associação de fragmentos que, montados,
constróem um retrato metafórico da cidade, a imagem é o retrato de um ima
ginário. Imaginários distintos porque, no primeiro caso, a cidade é um estí
mulo para a associação imaginária, no segundo, ela constrói concretamente,
solidifica um imaginário.
A imagem da cidade constrói, pela hierarquia dos seus predicativos, um
sistema de ordem que comunica um código, um modo de entender, avaliar e va
lorizar a cidade. É institucional e, nonível simbólico, corresponde a uma didá
tica que ensina o que é e quem é quem na cidade.A imagem hierarquiza o espa
ço urbano na medida em que é sua referência: a praça central, o edifício pós-
modemo, o monumento histórico, a rua que se dimensiona na imagem de uma
avenida ou de um beco. Pela percepção coletiva da imagem, ensina-se a identi
ficar o poder que organiza a cidade e dela se utiliza para perpetuar-se.
São os monumentos babilônicos relacionados com Nabucodonosor, o Co
liseu, iniciado por Vespasiano, concluído por Tito e decorado por Dioclecia-
no, o Versalhes de Luís XIV, os bulevares do prefeito Haussmann, a Brasília
de Kubitschek, a Pampulha de Niemeyer, a Paris de Mitterand. Não raro, a
imagem urbana é pretexto para a união entre a competência técnica e o poder
público a fim de criarem a tessitura do mesmo discurso autoritário.
Institucionalizada, a imagem corresponde à assinatura do poder público
sobre a cidade e, coletiva, garante a estabilidade desse poder que se acredita
eficiente porque permanece. A imagem da cidade garante a permanência e, nela,
a eficiência. Nesse sentido, a imagem é o retrato daquele imaginário do poder
que usa a cidade como resposta do seu devaneio. A ideologia da imagem ur
bana está na assinatura dos poderes público e técnico e é apreendida na medi
da em que se circunscrevem seus limites e justificativas.
Ao contrário da imagem, a escala de valores que fundamenta o imaginá
rio urbano é particular e se monta nos meandros do indivíduo, no emaranha
do dos seus sentimentos, memória, experiências e informações urbanas. Pri
vado, o imaginário não condiz com a ordem e a segurança do código, mas é
tênue, instável e, sobretudo, contínuo e indeterminado, por isso não se cons
trói fisicamente, mas é apenas indiretamente sugerido. Essas sugestões, esses
discursos não-verbais que metaforizam a cidade assinalam o caráter de repre
sentação, ou seja, salientam a dimensão sígnica, de mediação pela qual a ci
dade se faz conhecida.
Sem dúvida a imagem da cidade também é signo, ícone, representação,
porém, agasalhada no hábito perceptivo do cotidiano; esse caráter passa des
percebido, e o que é mediação passa a valer pelo próprio objeto mediado, a
cidade. Ao contrário, a cidade imaginária exige uma percepção difícil, que es-

199
tranha, indaga e se surpreende com o cotidiano: ao estranhar, desconstrói a
imagem habitual, o hábito de ver e produz/cria uma contra imagem que não
faz parte da cidade enquanto ambiente construído, mas que é texto verbal ou
não-verbal que produz o saber urbano: um saber prazeroso/'
Estas representações imaginárias que atuam como metáforas da cidade
não podem ser determinadas a priori por alguma maneira específica do fenô
meno urbano, mas, sendo indeterminadas, são contínuas porque diretamente
aliadas a uma tomada de consciência do sentido lógico mais profundo da ex
periência cotidiana que tem a cidade e seu modo de vida como pano de fundo.
Enquanto representação contínua, o imaginário se opõe à imagem pontual e
descontínua que referencializa a cidade.
Por outro lado, e como saber urbano, o imaginário corresponde a um sen
tido mais íntimo de participação, afastando-se de qualquer preocupação prag
mática, politicamente utilitária e instrumental com que tem sido entendida essa
questão. E aqui se abre um outro ponto que pode expandir o plano ideológico
que tece a distinção entre imagem e imaginário urbanos.
Sem dúvida alguma, nos dias de hoje, a questão da participação tem sido
apontada como o grande elemento que viria minimizar o problema urbano e,
talvez, solucionar a questão da qualidade de vida nas grandes cidades.
Participe! Decida você mesmo! Faça a coisa correta! Estes são os motes
que os veículos de comunicação utilizam para estimular aquela participação
instrumental que pode agenciar uma atuação comandada por um irracionalis-
mo de massa, responsável pelos nacionalismos locais e globais. Transforma-
se a reflexão imaginária na ação mecânica dos comportamentos e reações pro
gramados por uma imagem construída física e/ou psicologicamente.
De certa forma, a cidade dos nossos dias vive o impacto crescente dos
veículos de comunicação e informação que, se de um lado são responsáveis
por uma civilização que se globaliza pela possibilidade de criar e propagar
a informação, minimizando tempos e diferenças, de outro transformam a vida
urbana na imagem standard que unifica todos os espaços públicos e priva
dos. Ao informar, os veículos de comunicação de massa transformam o par
ticular em geral, a diferença no cenário homogêneo que globaliza todos os
lugares que passam a viver sob a égide da metrópole internacional: o imagi
nário possível transforma-se na imagem que corrige o particular indetermi
nado pelo comum e geral.
Realmente, sob o impacto da informatização e da eletrônica, os veícu
los de comunicação de massa transformam-se nos grandes agenciadores do

'"Mássimo Cancvacci (A cidade polifôníca. São Paulo: Nobcl, 1993, p. 20) aponta a "máxima
internidade c máxima distância" como a estrutura metodológica básica da moderna antropolo
gia urbana. Por outro lado, deve-se apontar que o "estranhamento" proposto por Chklóvski
(1916) no panorama teórico do formalismo russo e, depois, por Brecht (1936) sob a caracteri
zação do afastamento dramático, já propunham esse olhar atento e sem envolvimento como
recurso metodológico adequado para o estudo e descoberta de realidade não sujeita ao estatuto
da mercadoria e do consumo.

200
poder e da imagem urbana. A imagem urbana já não é local, mas global, e as
cidades, com isso, se mimetizam, se reproduzem.
Esse é o último paradoxo que, a nosso ver, parece atingir a imagem e o
imaginário urbanos. Porém, ao contrário do que vaticinavam velhas teses da
Escola de Frankfurt a respeito de informação massificante, a imagem urbana
se globaliza e todas as cidades se assemelham, porém o imaginário ainda é a
válvula capaz de transformar a mercadoria e o consumo em conhecimento que
se amplia e se torna mais complexo.
Assim como, no passado, as manifestações do imaginárioflâneur ou da
velocidade permitiram uma compreensão da cidade que se desenvolvia sob o
impacto da Revolução Industrial, na cidade que se globaliza ao metropolizar-
se o imaginário supõe uma parada tática da imagem global, a fim de ser pos
sível compreender-lhe osentido. Énecessário ver globalmente para descobrir-
se localmente: sem dúvida uma estranha estratégia, mas altamente informati
va. Ou seja, exige-se a incrível, mas possível tarefa de criar um outro cidadão
global inserido na cidade dos nossos dias que, ao transformar-se vertiginosa
mente, desperta o imaginário como prontidão perceptiva e participativa para
desvendar, nas imagens locais, suas correlações mundiais.

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robert moses pechman
a cidade dilacerada

Alguma coisa aconteceu nas grandes cidades, especialmente as brasilei


ras, que presentemente nos recoloca a questão do bem e do mal, da legalidade
e da ilegalidade e, por conseqüência, os dilemas da "ordem" e da "desordem".
Ali na grande cidade a dramatização da violência e as "facilidades" da
ilegalidade levaram à banalização do mal e ao culto de uma razão cínica, uma
mistura explosiva que ameaça mandar pelos ares o constructo social, nascido
se não do lema "Liberdade, Igualdade, Fraternidade", pelo menos do dilema
da "Ordem e Progresso". Um cenário de insuportáveis transgressões desenha-
se a nossa vista, desfazendo um sistema de ordem longa e solidamente orga
nizado, tendo por base a cidade e por objetivo a cidadania.
Os limites da transgressão, ante a superação da interdição mais primiti
va -"Não matarás" - que permitiu a construção da sociabilidade, parecem fa
cilmente ultrapassáveis diante das evidências do aumento da criminalidade/
ilegalidade e, principalmente, frente às novas modalidades de violência que
traduzem a pouca valia da vida nos grandes aglomerados urbanos.
A dialética da vida/morte fica em suspenso diante da facilidade com que
nas nossas cidades o espaço que limita a convivência é violado. A sacralidade
do corpo e da "cultura da vida" com que a civilização revestiu o ser é anulada,
tornada inútil frente a uma cultura da violência que não se deixa limitar por
qualquer norma de urbanidade. Um outro padrão de civilidade talvez esteja
sendo gestado, dando um novo significado àquela velha dialética.
No entanto, foi na cidade que se perpetuou o enorme esforço de deter o
fluxo da morte a partir da compreensão de suas causas. E isso desde os séculos
17/18, com as grandes pestes e seus tenebrosos efeitos. A obsessão com tudo
aquilo que levava à morte fará a glória das teorias higienistas e estará na base
do urbanismo modernoa partir do ideárioda higienização urbana.

Robert Moses Pecliniuii c liisioriador c professor no Instituto de Pesquisa Urbana e Regio


nal - IPPUR da UFRJ.

205
É na cidade, também, e somente neste ambiente, que a noção de indiví
duo é inventada, acrescentando mais valor ainda ao corpo físico. E é dessa in
dividualidade, corpo/sujeito, que o contrato socialquer dar conta,para fundar
o convívio na sociedade/cidade moderna.
A longa tradição de cultivo da vida a partirde uma sociabilidade acor
dada entre os que se puseram conformes e em convívio na cidade denota estar
seriamente abalada diante da perda de significados atribuídos à vida. Suspei
to que devamos nos interrogar sobre dois pares de questões- cidade/urbani
dade e cultura tradicional/cultura moderna - para compreender como os elos
dessa tradição estãose perdendo. Essasuspeita funda-se na hipótese de que a
cidade vai deixando de produzir as imagens cruciais de uma ordem que tem
como suportes a urbanidade e a cultura urbana. A não-internalização dessas
imagens ou a sua substituição por outras é o que talvez permitiria çompreenr
der o desbloqueio da ordem urbana e a "irruação" não só de uma violência
inaudita na cidade, mas de uma nova percepção de que a urbanidade não é mais
referência de comportamento, paradigma da ordem.
Não me interessa, no entanto, discutir de onde vem o mal ou fazer uma
sociologia da violência nas metrópoles modernas. O que gostaria de analisar
é a hipótese de que a cidade é o palco da construção da ordem moderna e que
esta ordem é regulada, fundamentalmente, pelas normas fundantes do processo
de urbanização tanto na sua dimensão material - processos de regulamenta
ção do uso do solo - quanto na sua dimensão cultural - processo de constru
ção de representações sobre a cidade (urbanidade).
Mas, se admito que a ordem vem da cidade^ devo reconhecer também
que nas últimas décadas essa relação entre ordem e cidade foi quebrada e
que a ordem nas cidades atuais está deixando de ser implícita, inscrita numa
suposta urbanidade imaginária, para estabelecer-se como elemento da pura
violência ou simples desordem.
Para enfrentar e.ssa discussão, sugiro uma visita à história na tentativa
de recuperar especificidades dos diferentes momentos históricos de constitui
ção da ordem na cidade com o objetivo de observar em que momento a cidade
se transformou na base do processo de regulamentação da sociabilidade e quan
do esse processo começou a desfazer-se.
Tomemos como objeto de análise o caso das cidades brasileiras, mais
especificamente o Rio de Janeiro, que, como capital da Colônia, do Reinado,
do Império e da República, guarda a memória tanto do traço da ordem quanto
das marcas do urbano.
Antes de ir adentrando a cidade, porém, vou dizendo que da ordem não
me interessa tudo saber. Vou recortar ali onde quero estabelecer como se dá o
processo de sua internalização a partir não da violência explícita, mas da ade
são à cidade. Isto é, quero ver a ordem não pelo seu lado repressivo, mas por
seu viés integrador, sedutor, legitimador, civilizatório, e que é dado pela in
ternalização das representações que são formuladas sobre a cidade. Sendo as
sim, o que nos interessa conhecer é como historicamente a cidade se torna

206
objeto das representações formuladas sobre a ordem e como nas últimas dé
cadas vai deixando de sê-lo.
Portanto, em qualquer época, em qualquer organização social e política,
em qualquer formação urbana, o sistema de ordem está sempre e incessante
mente produzindo imagens, mas é somente dentro de certa configuração his
tórica que ele produz uma imagem que é eminentemente urbana, normativa,
disciplinadora.
É certo que em muitas situações históricas asimagens daordem se mate
rializam e caem como uma espada sobre a cabeça, esticam como uma corda no
pescoço ou silvam como uma chibata no lombo do transgressor. De resto, as
imagensfuncionam constantemente comolembrança, a reavivar a memóriacons
ciente e mesmo no inconsciente que "recordar é viver" e esquecer, morrer.
Observemos, pois,como historicamente as imagensda ordemforam pro
duzidas e como se deu o processo de sua introjeção. Uma internalização feita
na base da legitimidade, da sedução ou por ferro e fogo. Cada modalidade de
introjeção atingindo uma parte do corpo. A primeira a mente, a segunda o co
ração e a última o já citado lombo.

A ORDEM APESAR DA CIDADE

No Brasil-colônia a ordem vinha do rei! Sua decifração era rápida, fácil


e limitada. De um lado pelo pelourinho, do outro pela forca. O castigo e a morte
enfeixados nas mãos do soberano traduziam eficientemente os limites entre
ordem e desordem, numa colônia tão marcadamente dividida entre proprietá
rios e escravos.
Mas, num país tão grande e tão distante do olhar real, a fúria da justiça
do soberano, a distribuição de malefícios e benefícios, chegava filtrada e tro
cava de mãos. Certo que existissem instituições policiais e paramilitares,' as
sim como seus oficiais e soldados a zelarem para que as distantes ordens ema
nadas de além-mar se inscrevessem com clareza seja nas costas dos recalci-
trantes, seja na vida dos transgressores. Mais certo ainda é que existia um pa-
triciado rural que, escorado em gordas propriedades e amparado pela riqueza
produzida por seu poviléu de negros, distribuía ordem e justiça, como se fora
rei. Na sua propriedade, pelo menos, ele o era, e, às vezes, até no arraial, na
pequena vila. Poder haurido de tudo ser dono: dos escravos, das terras, da na
tureza, dos animais e da própria família.
E assim como dono e rei muitas vezes estavam aliados na consecução da
ordem, em outras estavaminimigose mediamforças.Apesardisso a ordem co
lonial, na sua vertente punitiva e repressiva, mantinha-se incólume na proteção

' Ver Estudo das características histórico-socíaís das instituições policiais, militares e pa
ramilitares, de suas origens até 1930. Vários autores, 3 v. Departamento de História, Centro
de Ciências Sociais, PUC, DIE, RJ, 1981.

207
da vida e das propriedades do Senhor e daquilo que era devido ao rei.
Se havia uma diferença entre a versão original da ordem vinda da me
trópole e sua tradução tropical, isso não a fazia menos ordenadora. Talvez a
fizesse mais! Se a monarquia tinha a perder seus ouros, seus açúcares, seus
sais, seus impostos, perdia muito mais o Senhor com o afrouxamento da or
dem. Perdia sua posição econômica, seu poder político, sua hegemonia social
e também sua rede, seu conforto, sua mucama...
Se a desordem deitava tudo a perder tanto para reis quanto para súditos,
reis e súditos haveriam de estar de acordo para assegurar o que cada qual achava
de seu direito.
Estamos a falar de uma ordem que brota, seja das mãos do rei, dos seus
prepostos ou do senhor, mas não dissemos ainda de onde ela vem.
A do rei e seus prepostos sabemos que vem da Metrópole, a do Senhor
se respalda na casa-grande.
Até pelo menos o século 18, a primazia incontestável da vida rural no
Brasil nos leva a pensar que todo o esforço de ordenar a natureza e os homens,
transformá-los em mercadoria e moldar as relações sociais começa no cam
po, às portas da casa-grande. Cidades havia no Brasil, mas eram cidades sem
poder; não ditavam ordens. A maioria era de vilarejos patriarcais, sem vida
própria, dependentes da seiva que os senhores pudessem lhes injetar.
Funcionando como centros de controle regional, cidades como São Vi
cente (1532), Salvador (1549), Rio de Janeiro (1565), São Luís e Belém (séc.
18), existiam basicamente como vanguarda do mundo rural, no sentido de ex
portadoras das mercadorias produzidas no campo. Conjugando as atividades
exportadoras com a de núcleos político-administrativos, esses centros urba
nos não passam, no entanto, de centros de grandes áreas de agricultura comer
cial, sem nenhuma vida própria. Segundo Sérgio Buarque, Qxn Raízes do Bra
sil, isso estava de acordo com "o espírito de dominação portuguesa, que re
nunciou a trazer normas imperativas e absolutas... que cuidou menos em cons
truir, planejar ou plantar alicerces, do que em feitorizar uma riqueza fácil e
quase ao alcance das mãos" (Holanda, 1973, p.61).
No mundo rural que Portugal construíra na .sua colônia brasileira não
cabia a cidade. Ou melhor, diferentemente do papel que a con.strução de cida
des teve, como decisivo instrumento de dominação para muitas nações con-
quistadoras (p.61), para Portugal, vilas e cidades não passavam de um ponto
no espaço a partir do qual se feitorizava a riqueza produzida no campo.
Até o século 18 as cidades brasileiras não representaram nem uma fron
teira econômica, nem uma fronteira política. Por is.so mesmo, os mecanismos
que faziam e refaziam o processo de acumulação começavam na casa-grande
e terminavam no além-mar, sem que a cidade, pelo menos nesse momento,
tivesse papel maior que de ponto de embarque de mercadorias. Mas, para além
de assegurar a recomposição do ciclo econômico, a casa-grande garantia a
dominação nos seus dois extremos, a externa e a interna, aquela da metrópole
sobre a colônia e a dos proprietários sobre os despossuídos.

208
Tal dominação iria fundar-se num sistema de ordens, dado pelas repre
sentações que uns e outros —reis e súditos —faziam da sociedade, inventada
para tirar dos homens e da natureza aquilo que engordaria a bolsa e barriga de
reis e senhores.
A justificar tal dominação, a teoria disponível na época, baseada nas prá
ticas mercantilistas, "rezava uma missa para Deus e outra para o Diabo". Isto
porque na Metrópole o ideário da balança favorável de comércio possibilita
va a "comunidade de interesses entre o Estado e os principais agentes do de
senvolvimento econômico" [o que] "constituiu um poderoso fator de unifica
ção nacional" [e deu] "à coisa pública e à razão de Estado uma dimensão su
plementar".- Na Colônia, o seu inverso. Das trocas desfavoráveis não nasceu
nem a coisa pública nem uma razão de Estado que transcendesse a razão in
dividual. O que vige para a Colônia é mesmo uma razão da ordem que visa
exclusivamente assegurar a transferência do excedente de um lado, e de outro
a prosperidade daqueles que fizeram da terra um bem de exportação.
Manter a ordem, garantir os lucros. Ordem e lucros estarão profunda
mente imbricados no processo colonial, fazendo com que toda a concepção
formulada sobre a sociedade tivesse que se espremer entre esses dois limites.
Inventar uma sociedade que coubesse nesses limites foi a tarefa funda
mental daquele que será o principal beneficiário da ordem e do lucro: o se
nhor da casa-grande, Para suas mãos eram drenados os dispositivos que, im
pondo a ordem de um lado, permitiam a extração do lucro de outro. Essa lógi
ca de ferro era conseguida graças a "um poder essencialmente punitivo, coer
citivo, que age excluindo, impondo barreiras. Seu mecanismo fundamental é
a repressão" (Costa, 1989, p.50). Dessa maneira o senhor não era só o porta
dor da ordem (cunhada na metrópole na forma de leis), nesse país de exten
sões tão vastas e por isso tão difícil de ordenar; ele era a própria encarnação
da ordem e, lógico, o seu maior beneficiário.
A sociedade colonial, apesar da metrópole, do Estado português e seus
representantes locais, era derradeiramente uma sociedade de senhores. Insis
to nisso porque essa parece ser a chave que explica o não-surgimento de uma
esfera pública onde, pela política, a vida, em todas as suas dimensões, pudes
se ser negociada. Negócio que, nesse país tão colonial, era entendido como
só aquilo que arrancava à natureza sua qualidade de mercadoria ou então no
sentido literal da palavra, áenegar-o-ócio (negócio), imagem fundamental para
manter o escravo amarrado à lida.
E por isso mesmo que essa sociedade começa e acaba no senhoriato e
não se afasta dele. Quando o faz ela vira outra coisa, vira sociedade urbana,
vira cidade.
Entende-se, assim, por que no Brasil, até o século 19, opoder local teve
tanta importância na manutenção da ordem, apesar das cidades.

"Ver HECKSCHER, E. F. - O mercantilismo, citado por DEYON, Picrre. O mercantilismo.


São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 11.

209
Fazendo tudo curvar-se perante os interesses privados, o senhoriato da
casa-grande passou a ordenar o mundo à imagem e semelhança das suas con
cepções privativistas.
Segundo Paul Singer (1976, p.99), "os portugueses não encontraram uma
civilização urbana preexistente e por isso tiveram menos urgência em organi
zar a exploração colonial a partir de bases urbanas". Diferentemente dos es
panhóis que herdaram das civilizações indígenas uma organização urbana e
que trataram de utilizá-la para seus fíns de dominação e enriquecimento, os
portugueses fundaram seu poder, não a partir dos núcleos urbanos que criam
a capacidade de subjugar o que lhes vai em volta, mas desde microcélulas dis
persas pelo espaço, que povoaram o Brasil de minúsculos, mas poderosos reis
locais.
Essa coisa portuguesa de tirar seu poder da terra, do particular, do local,
da descentralização e mesmo de ir contra a centralidade que a cidade permite
assentava-se numa concepção de mundo e numa prática onde público e priva
do não estão separados, ou melhor, onde tudo é remetido à esfera privada.
Ancorado na família patriarcal, o privativismo penetrou em toda socie
dade colonial e fez do senhor da casa-grande o dono de tudo: da vida e da morte
dos escravos, do seu tempo, das terras, dos rebanhos, das fontes de água, da
política, da vida dos agregados, dos destinos da família, mas também da ca
pela, do capelão, dos instrumentos de culto. O céu e a terra a seus pés! Assim
sendo, o mundo era visto como que dividido entre proprietários e coisas a se
rem possuídas. Proprietários e coisas que circulam no mundo cumprindo uni
camente os papéis de possuidores e possuídos, numa vida feita para durar o
tempo da espoliação e do consumo dos frutos dessa expropriação. São, por
tanto, proprietários de um mundo imediato, raso, sem transcendência.
Nesse mundo particular e fínito duas coisas, entretanto, não cabiam, a
ação (práxis de negociação) e o discurso (fala da negociação), o que, segundo
Hanna Arendt (1981, p.34), faz surgir o mundo dos negócios humanos, a po
lítica, a esfera pública.
Para Arendt "só a existência de uma esfera pública e a subseqüente trans
formação do mundo em uma comunidade de coisas que reúne os homens e
estabelece uma relação entre eles, depende inteiramente da permanência. Se
o mundo deve conter um espaço público, não pode ser construído apenas para
uma geração e planejado para os que estão vivos: deve transcender a duração
da vida dos homens mortais. Sem essa transcendência para uma potencial
imortalidade terrena, nenhuma política, no sentido restrito do termo, nenhum
mundo comum e nenhuma esfera pública são possíveis" (p.64).
Arendt não está falando, aqui, do Brasil, mas dapólis grega. Seu argu
mento, porém, nos ajuda a pensar por que não vingou entre nós a noção de
vida pública, o que se pode explicar pela hegemonia da família patriarcal e
seus interesses particularistas frente a qualquer outro interesse. E também pelo
imediatismo/fínitude do lucro que fundamentou o modo de produção escra
vista e pela imposição de uma ordem repressiva que tolheu qualquer veleida-

210
de de contestação, impondo à política a repressão.
Essa ordem, resultado da pura violência, prescindiu da palavra, danou-
se para o debate, impôs o silêncio. A loquacidade da política não pôde, pois,
manifestar-se diante da mudez imposta pelo silvado do chicote.
No Brasil da Colônia, política e cidade emudeceram.

CONSTRUINDO A ORDEM NA CIDADE

Só no século 18, ensina Gilberto Freyre, com a descoberta do ouro das


Minas Gerais, é que o patriarcado rural começou a perder a majestade de que
gozava desde o início dos tempos coloniais.
A vigilância maior que Portugal começou a exercer sobre sua colônia
tropical repercutiudiretamentesobre os arroubosde independênciados senho
res de terra, tolhendo-lhes esboços de autonomias regionais.
O avigoramento do poder real e o desenvolvimento econômico e urbano
de algumas cidades preparará o ambiente para maior centralização do gover
no e maior influência do rei sobre seus governados. Aos poucos a realeza vai
prestigiando os "burgueses" da cidade que se opõem à arrogância dos grandes
proprietários (Freyre, 1977, p.3).
Freyre atesta que as cidades começam a diversifícar-se e a atrair forne
cedores de gêneros, intermediários de negócios, comerciantes, técnicos, bu
rocratas, mecânicos, artesãos e a dar lugar a donos de casarões, uns "verda
deiros patriarcas urbanos" (p. 5 e 7). De intermediários nos negócios dos se
nhores de engenhos, os "burgueses" urbanos se transformam em aristocratas
da cidade, que se enriquecem à custa das necessidades dos fazendeiros, de ca
pital e braço escravo. Esses novos personagens da cidade são investidos de um
poder que lentamente vai sendo arrancado das mãos dos senhores rurais, ao
mesmo tempo em que as cidades vão se dobrando à autoridade de capitães-
generais, ouvidores, intendentes, bispos e vice-reis e onde as câmaras deixam
de ser um privilégio dos grandes proprietários de terras (p.7 e 8).
No entanto, e isso é Freyre quem afirma de novo, "o drama da desinte
gração do poder áospater-famílias rurais no Brasil não foi tão simples, nem a
ascensão da burguesia tão rápida" (p. 11,14,15 e 17). Principalmente porque
nessa transição o patriarcalismo urbanizou-se, embora mantendo-se apegado
à sua tradição rural. E indo para a cidade levou consigo suas manias privati-
vistas, suas concepções exclusivistas, suas imagens de um mundo centrado
no poder do patriarca.
Com a descoberta do ouro dos Gerais, pela primeira vez Portugal pas
sou a preocupar-se com o povoamento e a urbanização no sentido de definir
uma política que atendesse ambas as necessidades. Em 1763 a capital da co
lônia é transferida de Salvador para o Rio e esta cidade se transformará numa
espécie de laboratório das experiênciasde controledo espaço e da população
(p.l9), seja para garantirque o fluxo de ouro chegasse à Metrópole, seja para

211
zelar pela ordem, num espaço propício à contestação e à insurreição. Segun
do Jurandir Freire,"... essas tentativas de controle orientavam-se pela percep
ção colonial do que era ordem, lei,justiça, transgressão e punição. Os gover
nantes procuravam dominar a cidade através da legalidade inscrita nas orde
nações. As infrações eram punidas pela justiça e pela polícia com a truculên
cia característica da época: enforcamento, exílio, açoite, etc., os instrumentos
homeostáticos da lei colonial restringiam-se ao aparelho jurídico-policial. Ora,
esse aparelho, pouco a pouco, tornou-se incapaz de conter o caos urbano. A
estratégia punitiva da Colônia esgotou suas possibilidades de ação, sem mo
dificar o perfil insurreto da população citadina" (Costa, p.20).
Apesar desse quadro traçado, essas cidades do século 18 não constitu
em, todavia, uma dicotomia em relação ao campo, na medida em que suas "so
luções" continuam inspiradas na tradição rural e no seu poder de imposição
do privado sobre o público. Essa era, aliás, a paisagem da cidade do século
18: um pouco burguesa, meio patriarcal, muito tradicional. É só observar as
relações extremamente limitadas e parcimoniosas entre o povo encerrado dos
sobrados e a gente das ruas para concluir-se que entre uma e outra estava co
meçando a insinuar-se algo que não era mais inteiramente privado, mas que
também não era ainda público.
Assim, a distância que ia do sobrado à rua era a mesma que distanciava
a casa-grande da senzala. No entanto, é nesse universo, que já é citadino mas
que ainda é familiar, que a simbiose entre as necessidades da família patriar
cal e as vicissitudes da vida urbana irá produzir imagens de uma ordem, onde,
pretensamente, a representação dos direitos, deveres e finalidades não deveria
admitir contestações (p.20).
Segundo Jurandir Freire, foi alimentando-se da estrutura familiar e de
suas ramificações que o poder privado montou na cidade uma estrutura de do
minação baseada na corrupção, na vingança, no suborno e no mandonismo,
que visava não à constituição do outro, do cidadão, mas do mesmo, do paren
te (p.37). É o que o autor chama de "cidade familiar" (p.42).
O monopólio das famílias rurais sobre o governo das municipalidades
irá levar a um constante confronto com o poder do Estado que tenta "restrin
gir o poder senhorial à área econômica e administrativa, temendo as conseqü
ências da autonomia política dos município.s" (p.35).
Édesse confronto que nasce nacidade a possibilidade do"outro", aque
le que difere do familiar, de aparecer. E, em aparecendo, fundar uma "política
urbana", ali onde só se reproduzia o "mesmo".
Está em cocção um processo histórico de purificação que destilará des
de a cidade uma nova ordem que aos poucos vai-se insinuando à tradição pu
nitiva da legalidade colonial. Nessa nova cosmogonia a cidade se imporá como
o lugar á-à norma que vai sendo desenhadapelas práticasda urbanizaçãoe pe
las vivências da urbanidade.
Da lei à norma, da punição à sujeição, da esferaprivada à esfera pública
(mesmo que incompleta), da casa-grande ao sobrado-urbano, a sociedade pa-

212
triarcalista brasileira iria transformar-se, pois provara do veneno que ela mes
mo cozinhara; o poder urbano!

A ORDEM VEM DA CIDADE

Com a transferência da capital para o Rio de Janeiro é que esta cidade


se tornou um ponto de convergência das autoridades metropolitanas. Trans
formando-se no epicentro do poder colonial, a capital passou a centralizar o
comércio com as Minas Gerais e com a Metrópole, além do comércio es
cravista com a África. A cidade, que tinha 12mil habitantes em 1710, pulou
para 30 mil em 1763, que se transformariam em 50 mil quando da chegada
da Corte.
Para adaptar-se a essas mudanças, a velha cidade de pântanos, charcos,
becos e ruelas, teve que "correr atrás do tempo". Medidas administrativas,
políticas de melhoramentos urbanos e a reestruturação do aparato mantene
dor da ordem e da segurança garantiram ao Rio a sua condição de capital.
A complexificação e diversificação da vida urbana obrigou a que o apa
rato da ordem se sofisticasse, no sentido de obter da sociedade os mesmos efei
tos de obediência e submissão. Para tanto coexistiam no Rio várias institui
ções de caráter policial, militar e paramilitar que se encarregavam da "... re
pressão/prevenção dos escravos e dos homens livres e pobres e da vigília da
vida e da propriedade das pessoas nobres e daí para cima" (p.41).
Esta atenção com o cumprimento preventivo e repressivo da lei na rua
expressou-se por uma organização "policial" baseada em "... quadrilheiros,
capitães-do-mato, milicianos dos terços e das ordenanças, alcaides, pedestres
ou até a tropa regular" (Silva, 1981, p.lO). Independentemente de suas atri
buições originárias, essas instituições tinham a cidade como objeto de sua ação.
Enquanto tratou de assegurar a ordem que fazia funcionar na colônia a
lógica da dominação do colonizador sobre o colonizado, a metrópole não pre
cisou recorrer a outros instrumentos ordenatórios além daqueles tradicionais
da repressão e da punição.
Mas quando essa lógica não pôde mais conter as vicissitudes de uma so
ciedade que se urbanizava e, por isso mesmo, fazia-se inesperadamente des
conhecida e incontrolável, ela subverteu-se e teve que se recompor. Sem abrir
mão de seu potencial repressivo, o monarca português transformou a lógica
da violência numa estratégia tão ou mais eficiente que a simples brutalidade,
e que tinha como fundamento a cidade.
Temerário seria pensar que o nosso primeiro rei trouxesse Junto com sua
real bagagem os ingredientes que serviriam para adoçar nosso amargo açúcar
ou o áspero café que brotava do suor do negro no trabalho. Não trouxe, o mo
narca, nem doces, nem afetos, mas à sombra da Corte pôde-se abrir o cami
nho que ia da punição à sujeição. Éque a chegada da Corte trouxe consigo a
urbanização, o que, para os padrões da época, Gilberto Freire, identificou como

213
"reeuropeização" dos costumes e mentalidades. O que é novíssimo aí é a im
portância que uma cidade como o Rio de Janeiro passou a ter na redefinição
da dominação colonial, já que na prática o Estado Português (ou Corte)se trans
lada para esta cidade.
A reterritorialização do poder em terras cariocas, numa cidade que en
saiava seus primeiros passos como urbe, recoloca a questão de onde emana a
ordem e das característicasdessa ordem,umavez que a simples presençafísi
ca do rei aciona o poder do soberano frente ao poderio das famílias locais.
Será na cidade que o poder irá experimentar novas modalidades de domi
nação, que não apenas impõem a ordem, masque atraem também pela adesão.
A adesão à cidade e ao processo civilizatório gerado pela urbanização darão a
base de uma nova ordem caracterizada por um perfil nitidamente urbano.
A política urbanizadora, num sentido mais amplo que a simples materi
alidade dos melhoramentos que se implantavam na cidade, será o meio atra
vés do qual o novosistema ideológicode base urbana atualizaráo imaginário
da população em relação à ordem.
Lentamente, ao longo de todo o século 19, a cidade vai-se transforman
do no novo objeto da ordem e no lugar a partir do qual um pacto social come
ça ser costurado, a fim de garantir a integridade dasociedade. É assim que o
corpo castigado, enforcado, exilado, onde a ordem procurava paralisar toda a
desordem - através da promessa de morte -, vai cedendo lugar a um outro ob
jeto da intervenção disciplinadora: o organismo urbano.
O deslocamento do objeto da ação da ordem, do corpo humano para o
corpo urbano, retira da dor e da morte os limites da obediência e confere à
cidade - como novo sujeito histórico - o lugar de objeto de intervenção. Co
meça a nascer uma ordem urbana.
Falemos disso!
Desde o século 18, especialmente na Europa, físicos e químicos identi
ficaram na desordem urbana a causa dos perigos sanitários que assolavam as
principais capitais do continente. Apoiados nas teorias dos miasmas, esses
cientistas, viram nas precárias condições de infra-estrutura, no amontoamen-
to da populaçãono espaçoe na faltade circulação de coisase pessoas,os prin
cipais fatores de envenenamento da atmosfera da urbe.
Desconhecendo a microbiologia, o saber científico só fez estimular, du
rante todo o século 19, o desenvolvimento das concepções de que todos os
males derivavam da herança de cidades envenenadas, de cidades mal constru
ídas e mal traçadas. Por esse motivo, a boa cidade deveria corresponder à ci
dade que tivesse resolvido os problemas do seu corpo urbano, que se resumi
am às questões da confusão e da imobilidade. Convinha, portanto, diferenci
ar o indistinto e fazer circular o estagnante (Silva, p.l4).
Esses dois preceitos maiores do higienismo, a diferenciação e a circula
ção inscreveram-se na paisagem urbana e se transformaram num verdadeiro
paradigma de explicação da desordem urbana.
Assim, se o corpo da cidade - sua estrutura física - estava doente, sua

214
alma - a urbanidade - também estava. Essa contaminação generalizada, essa
septicemia, ameaçava perigosamente espalhar-se por todos os desvãos soci
ais, uma vez que a cidade doente produzia cidadãos doentes. E doença aí no
sentido físico e moral.
Curar, sanear, higienizar e intervir, reformar, embelezar, transformaram-se
num verdadeiroprograma de políticaurbana, numa nova modalidadede ordem a
permear as relações sociais entre pessoas, coisas e grupos no espaço urbano.
Esse esforço de disciplinarização das práticas urbanas deve ser entendido,
no entanto, não apenas a partir de seus princípios higienistas ou estéticos. Como
sugere Didier Gille, pensava-se tratar de problemas da saúde e da organização do
espaço urbano, mas o resultado dessa intervençãonão foi bem uma cidade curada
ou uma paisagem renovada. O que surgiu aos olhos foi uma cidade ordenada! O
modelo de todas as cidades, o que unicamente pode ser uma cidade (Costa, p.56).
Descobrimos, então, com Gille, que higienismo e ordenação espacial são
discursos, através dos quais os enunciados de uma ordem urbana que se im
põe devem fluir. São formas estilísticas (imagens dramáticas) que permitem
que os discursos sejam compreendidos e, principalmente, que pela sua legiti
midade se concretizem em operações urbanísticas (1988, p.22).
A inscrição das imagens da ordem no espaço, a partir de uma nova ra
cionalidade, irá levar à quebra da densidade histórica da cidade e sua redução
a seus elementos técnicos, forçando uma banalização do urbano à dimensão
de cálculos, dados estatísticos, cifras e diagnósticos (p.29).
A cidade que se estrutura o faz não pelos arranjos espaciais, culturais,
sociais e políticos, disputados e possíveis entre os grupos urbanos, mas a par
tir de uma razão única, a "razão técnico-científica".
Essa dissolução da cidade viva, polifônica e polissêmica tem como con
trapartida o nascimento da cidade regulada e ordenada da urbanística.
Na cidade do urbanismo,qpoder se encontram, formando um 5/5-
tema (p.30) que pretende regular e dar coerência à fragmentação desesperada
da vida urbana. Um sistema que, politizando o saber e cientificizando o po
der, aproxima, perigosamente, urbanismo e política, fazendo com que refor
ma urbana e reforma social se entrecruzem insistentemente, produzindo o am
biente onde o pacto social será reescrito.

A ORDEM ALEM DA CIDADE

No Brasil o urbanismo produziu a cidade, mas não o cidadão! O citadi-


no em nosso país não é sempre cidadão. Por isso, mesmo sendo a cidade o
lugar onde o pacto social é estabelecido - esta não absorveu todos os grupos
que dela fazem o seu viver.
Embora a cidade não os tenha absorvido, esses grupos "conquistaram"
a cidade, isto é, fizeram-se da cidade.
O Rio de Janeiro, capital da República que se instaurou em 1889, é um

215
bom exemplo desse processo de cidadanização sem cidadania. Como bem ob
serva José Murillo de Carvalho em Os bestalizados (Beguim, 1977, p.l64),
"havia constituição, direitos civis e políticos, eleições parlamentares, só fal
tavam os cidadãos".
O povo do Rio, quando participava politicamente, argumenta Carvalho,
o fazia fora dos canais oficiais, através de greves políticas, arruaças, quebra-
quebras, revoltas. Embora apático à participação política, as freqüentes mani
festações populares revelam uma população profundamente vigilante ao exer
cício do poder que lhe afetava a vida cotidiana (Topalov, 1988).
E foi por e.sse viés citadino de pertença à vida urbana, mesmo fora da es
fera da participação política, que a população encontrou o caminho para fazer
valer seus interesses pela cidade. Tecendo uma rede de auto-ajuda e formas de
sobrevivência nos poros da cidade, a população excluída fez, do que lhe restou
da cidade, um mundo de arrimo às suas necessidades, uma referência de suas
práticas, onde cabia até mesmo o devaneio, o sonho de uma feliz-cidade. É pos
sível mesmo assinalar, como argumenta Carvalho (1987), que o Rio dos não-
cidadãos era pleno de organizações e festas de natureza não-política e de mani
festações do espírito associativo, baseadas em sociedades religiosas e de auxí
lio mútuo, que se alimentavam dos grupos comunitários de pertença local.
O Rio de Janeiro era, portanto, não somente uma cidade-capital, o "co
ração do organismo nacional", mas também a cidadela popular, ambas, cida
de e cidadela, se superpondo, fazendo trocas, .se articulando, se excluindo, se
incorporando, se anulando.
Apesar de todas as barreiras que limitavam as fronteiras entre essas duas
cidades, elas eram filhas de uma mesma matriz histórica. Eram ambas herdei
ras de uma tradição cultural "cristã-medieval da pré-reforma, da cultura fami-
lista, religiosa, integrativa, hierarquizada, profundamente penetrada pelo pro
cesso da colonização" (p.91). Eram também cidades que viam seus destinos ine
xoravelmente ligados a uma urbanidade forjada pela cultura urbana, que mes
mo excludente e perversa pode estabelecer uma identidade coletiva da cidade
para todos. Uma identidade mais do imaginário do que do concreto, muitas ve
zes imposta pela persuasão demagógicaou mesmo por fortes doses de porrete,
mas, assim mesmo, uma referência fundamental para a vida na cidade.
Havia uma cidade, mesmo que dividida, uma sociedade urbana em for
mação, um "projeto coletivo" mínimo de urbanidade, e a envolver tudo i.sso a
representação de uma ordem fundada na cultura urbana, que fazia da capital
uma exemplaridade nacional. No dizer de José Murilo de Carvalho, "a Repú
blica fez da cidade-capital o exemplo de seu poder, o símbolo de .seus foros de
civilização e progresso" (p.l41).
Para tanto, continua Carvalho, "a República teve que carnavalizar o po
der, desenvolvendo táticas de convivência com a desordem, ou com a ordem
distinta daprevista. Mais que qualquer cidade, o Rio acumulou forças contra
ditórias da ordem e da de.sordem" (p.l54).
Mas, com todas e.ssas contradições, divisões, limitações, incompletudes

216
- numa cidade em que desmoronava a ordem antiga sem que uma ordem bur
guesa se implantasse completamente (p.l62) - o Rio era uma cidade que co
meçava a enquadrar-se num esquema disciplinar, e onde os vazios da ordem
tendiam a preencher-se por normas de urbanidade. Ou melhor, ali, onde a or
dem falhava, a norma urbana se expandia. Assim, entre a ordem e a norma -
durante um bom período da nossa história urbana - os grupos que disputavam
a cidade enquadraram-se e selaram, no meio urbano, os seus destinos.
Para o bem ou para o mal, a adesão à cidade produziu uma ética, que fun
cionou como severo limite, interdição mesmo, entre os grupos e as pessoas.
Podemos concluir, então, que, mesmo sem ter produzido cidadãos, o ur
banismo produziu urbanidades ou, melhor, uma ordem urbana que foi refe
rência para as práticas dos moradores da cidade.
Constatamos, contudo, que se essa ética teve força para cimentar um pacto
urbano até, talvez, as últimas duas décadas atuais, de lá para cá ela parece que
está deixando de ser referência para a internalização da ordem.
Algo aconteceu nesses últimos anos que indica que a ordem está deixando
de vir da cidade, está escapulindo à urbanidade. Ou, melhor, parece que as re
presentações da ordem, oriundas de uma histórica urbanidade, não servem mais
para cimentar os conflitos entre grupos sociais e pessoas.
Dois fenômenos chamam atenção e apontam para essa questão; o "sitia-
mento" da cidade legal pela cidade ilegal e a violência. Percebemos nos últi
mos anos, com o aumento da inflação, a perda do poder aquisitivo e a misé
ria, a instituição de uma prática de apropriação da cidade, ou, melhor, daquilo
que dela restou, depois da "cidade legal" legitimar-se. Invasões de terrenos,
loteamentos clandestinos, ocupação das encostas, utilização das praças públi
cas, ocupação das ruas (pelos camelôs), etc. A imagem que transparece desse
processo é a da cidade miserável, "ilegal" estar construindo um cerco em tor
no da cidade "estabelecida".
A outra face dessa questão é a da explosão de uma violência que não
espanta pela sua proporção, mas pela sua qualidade: seqüestros, tráfico, gru
pos de extermínio, assassinato de menores, arrastões, assaltos em transportes
públicos, etc.
É verdade que nem a violência, nem a informalidade/ilegalidade são
coisas novas ou desconhecidas na história do Rio de Janeiro. O que parece ser
novidade é o estilo dessas práticas, sua ousadia.
Estou sugerindo que as características atuais da violência e da invasão
dos espaços públicos são sinais que revelam uma séria mudança que estaria
ocorrendo na concepção de ordem, uma vez que essa concepção não produz
mais os efeitos de "civilidade" dela esperados; é a idéia de cidade (espaço
público, coletividade) que se desfaz e vai cedendo lugar à noção de territórios
particularizados.
Não estou afirmando que, em qualquer época, os valores éticos da so
ciedade tenham sido suficientes para conter a transgressão. Apenas consta
to que a cidade produziu um conjunto de normas que empurravam para o

217
campo da marginalidade os transgressores. Não que isso não aconteça ago
ra, que a fronteira entre a norma e a transgressão tenha-se manchado. Essa
fronteira ainda é clara. O que é obscuro é que aquilo que continha, interdita
va a exacerbação do privado no público - seja sob a forma de violência ou
da apropriação - e que era dado por uma "ética urbana" está-se quebrando.
Por isso mesmo, os muros simbólicos que separavam e protegiam cidadãos
ou citadinos de outros citadinos ou cidadãos estão-se transformando em
muros de concreto, muralhas, grades, sistemas eletrônicos de segurança, cães,
guardas, etc., a separar drasticamente o privado do resto.
Mas, se os muros de concreto são pouco estéticos, o que é assustador, é
que a fronteira imaginária que dá acesso ao outro está aberta, defenestrada. E é
aí que mora o perigo. Suspensa a interdição da lei, suspensa a moralidade da
ordem, a imposição pela violência se institui: o mal se torna uma banalidade.
A violência e a ilegalidade tornam-se recursos ao alcance de todos dian
te do vazio de uma ordem que não produz mais significados.
O velho imaginário de uma civilização urbana que cantou a Ordem e o
Progresso vai silenciando... diante do matraquear dos tiros.
É a cidade dilacerada quese impõe!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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218
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(xerox)

219
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cidade e o poder
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O tema que nos foi dado para desenvolver neste Encontro é o da relação
da imagem da cidade com o poder. Neste termos, pretendemos examinar, ao
longo da história, como evoluíram os dois parâmetros que delimitam a nossa
temática: por um lado queremos examinar a evolução da concepção do poder
e, por outro, a evolução da imagem da cidade, para, então, tentar examinar se
existe alguma relação entre estas duas dimensões.
No sentido de objetivar as nossas considerações, vamos utilizar a cidade
de Porto Alegre para modelo de nossas reflexões e transformá-la numa espé
cie de "cavalo de santo" na materialização dos conceitos.
Para bem implantar a questão vamos começar pelo começo (com o per
dão da redundância). A época da ocupação do território rio-grandense pelos
conquistadores lusitanos, a concepção do poder estava sofrendo uma profun
da revisão na Europa. Esta época corresponde ao período que fícou conheci
do como o da eclosão &áRevolução Industrial^ quando os métodos artesanais
de produção de bens foram substituídos por formas mais racionais nas quais
o fracionamento dos processos de produção e a mecanização permitiram al
cançar patamares bem mais elevados de produtividade.
Essa transformação não teriasido possível se não tivesse sido acompanhada
por uma igualmente profunda mudança na concepção do poder. A concepção
anterior, a que estava sendo substituída,era a do poder monárquicocentraliza
dor em um Estado sustentado por uma hierarquia militar - a dos nobres - que
se legitimava por relações de lealdade dentro de uma complexa rede de depen
dência entre suseranos e vassalos. Cada posto dentro desta rede era legitimado

Günter Weimer c professor titular no Departamento cie Expressão Gráfica da Faculdade de


Arquitetura da UFRGS, regente das disciplinas de história da Arquitetura Brasileira e do Rio
Grande do Sul, especialista em Desenho Industrial pela Mochschulc Für Gestaltung (Ale
manha), Mestre em História da Cultura pela PUC-RS e Doutor em Teoria e História da Ar
quitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo-USP.

223
por direitos e sangue, istoé, por herança e cujaorigem repousava na graçadivi
na. O mais alto posto dentro desta hierarquia era ocupado pelo monarca que se
caracterizava por sua coragem, justiça, magnanimidade, bondade e generosida
de. Como todo o poder de que dispunha lhe foi concedido por bondade de Deus,
ele deveria também ser generoso no compartilhamento deste poder e repassá-lo
aos súditos por critérios de justiça e merecimento.
A outra concepção, a que estava tomando o lugar da anterior, é aquela
em que o monarca não mais se legitima por seu legado de sangue, mas através
de sua eficiência na promoção da felicidade de seus súditos. Neste caso, a idéia
de "rei justo" é substituída pela de "rei capaz", isto é, aquele que detém a qua
lidade de poder providenciar o enriquecimento e o desenvolvimento de seu
país. Esta fase corresponde à redescoberta das teorias de Maquiavel nas quais
a ética cede lugar à concepção de que a obrigação mais imediata do governan
te é a de promover o fortalecimento do Estado, o que vem a identifícar-se com
o de sua própria pessoa. Nestas condições, o exercício do poder legitima qual
quer procedimento que visa a sua manutenção ou a sua ampliação, mesmo que,
por este meio, sejam cometidas até injustiças ou maldades.
Quando essas discussões estavam sendo travadas na Europa central, Por
tugal permanecia, em certa medida, à margem dessas confrontações, o que não
quer dizer que não estivesse tratando do fortalecimento e da expansão de seus
domínios. A anexação da região que viria a ser conhecida como Rio Grande do
Sul decorreu da exploração das minas de ouro e diamantes e da forma de con
duzi-la por parte das autoridades lusas ao fim da primeira metade do século 18.
Sob a alegação de que as forças de trabalho deveriam-se dedicar exclusivamen
te ao garimpo, a produção da alimentação foi relaxada ou até mesmo suprimi
da, o que forçou a mesma a ser trazida de longe. O alimento mais fácil de ser
trazido para a região foi o gado. Como os rebanhos existentes na bacia do São
Francisco se esgotaram rapidamente, os govemantes viram-se forçados a provi
denciar outras fontes de abastecimento. Dentre estas, uma das mais viáveis era
a do gado chimarrão dos "campos de cima da serra" e da campanha platina, em
pleno território espanhol. Através de uma política conjunta de expansão civil e
militar, a Coroa ordenou o avanço dos mamelucos paulistas e lagunenses em
direção aos campos doTramandaí, que chegariam até a foz da lagoa dos Patos,
e a constituição de uma esquadra que, dentre outros encargos, deveria garantir a
posse militar daquele canal.
E exatamente dentro desse contexto que acontece a concessão da sesmaria
a Jerônimo Dornelles de Meneses. O simples repasse da posse legitimada por
uma incipiente exploração do território pelo seu ocupante remete diretamente
à concepção medieval do "rei magnânimo e justo".
O fato de remeter-se essa concessão à fundação de cidade é resultado de
uma série de equívocos que tem a sua explicação política mas que nada tem a
ver com a realidade dos fatos. Tanto isto é verdade que Dornelles estabeleceu
a sede de sua propriedade no extremo mais próximo de "vila" mais imediata
(Viamão), e o estabelecimento dos legendários trinta casais de açorianos, no

224
extremo oposto da propriedade - onde haveria de ser fundada a cidade-, tam
bém nada tem a ver com sua fundação. Abandonados a meio caminho, quan
do haviam sido convocados para ocupar a região das Missões, após a denún
cia e o fracasso do Tratado de Madri, estes imigrantes viram-se compelidos a
sobreviver em território cuja posse não era a sua. Foi desta forma que se esta
beleceu um conflito que haveria de ter um fim trágico, na medida em que os
Dornelles procuram expulsar os intrusos de seu território legitimado por re
passe dos poderes divinos do rei. Os interesses conflitantes, estabelecidos en
tre um grande número de ocupantes "ilegítimos" contra um pequeno número
de moradores "legítimos", levaram à tática de guerrilhas por parte dos Dorne
lles que, por azar da casualidade, na primeira tocaia armada, mataram o ses-
meiro vizinho em lugar de algum açoriano sem-terra. Devido a este equívoco,
Dornelles procurou fugir das responsabilidades que lhe competiam vendendo
sua propriedade e refugiando-se em terras de filhos seus, primeiro em Triunfo
e depois, em Santo Amaro.
Esse desfecho, no entanto, não legitima o estabelecimento dos açoria-
nos em terras alheias. Para resolver este conflito, que tem sido apresentado
como sendo superior à capacidade de iniciativa dos litigantes, foi necessária a
intervenção do poder real que se manifestaria novamente em toda a sua juste
za e magnanimidade fazendo doações de terras no atual município de Taqua-
ri, onde, além de fundar-se uma vila, provida de uma igreja curada, os novos
moradores respondem à "graça" real com a construção e manutenção de um
forte.
As ações da magnanimidade do rei foram intermediadas pelo governa
dor José Custódio de Sá e Faria que, em realidade, já era representante da nova
ordem caracterizada pela eficiência e pela objetividade de suas iniciativas.
Formado na Real Academia Militar de Fortificações, deixou numerosos es
critos que atestam estas qualidades, entre as quais o projeto da cidade de Ta-
quari é um dos testemunhos. Como estudioso dos mestres clássicos da arqui
tetura e do urbanismo, escolheu um terreno plano, elevado e salubre para ins
talar uma cidade de ruas ortogonais cujo traçado em muito se aproxima dos
postulados das Ordenações Felipinas, mas, provavelmente, seus conhecimentos
foram adquiridos nos estudos dos mestres clássicos cujos conhecimentos vie
ram diretamente dos "castra" romanos. E assinale-se aqui que estes postula
dos haveriam de orientar o traçado de praticamente todas as cidades rio-gran-
denses que viriam a ser construídas a partir de então. Este procedimento aca
bou por imprimir caraterísticas peculiares às cidades gaúchas e que as distin-
guiriam das demais cidades brasileiras.
Na passagem do terceiro para o quarto quartel do século 18 seria funda
da a cidade de Porto Alegre cujo traçado é atribuído, por tradição, ao capitão
Alexandre José Montanha. Cumpre aqui ressaltar que até agora não foi en
contrada nenhuma fonte primária que confirme este dado, apesar da realiza
ção de exaustivas investigações.
O fato de as terras destinadas à nova capital terem sido desapropriadas

225
mostra que a concepção medieval de poder já havia sido aposentada, posto
que quem de graça dá também pode de graça tirar, desde que atenda os requi
sitos de justiça e os interesses transcendentais da realeza. Neste contexto, a
prática da desapropriação é um testemunho claro de que o poder já havia se
dessacralizado em larga escala e de que os súditos já haviam adquirido direi
tos inadmissíveis num regime feudal.
A escolha do local em que seria implantada a cidade demonstra a evolu
ção da ocupação do território e a razão casual pela qual o local havia adquirido
uma importância estratégica. A fixação da população pelo lado oriental da la
goa dos Patos e pelo lado setentrional do rio Jacuí é a demonstração mais clara
dos receios de um contra-ataque espanhol, fazendo com que a região que havia,
por esta via, se tomado o centro geográfico do território ocupado, uma vez que
era o ponto de encontro da via terrestre que ligava Laguna e São Paulo com o
caminho fluvial da via Rio Grande-Rio Pardo, os extremos do território até en
tão conquistado. Como estamos tratando das relações entre o poder e a cidade,
cumpre aqui sublinhar que o surgimento da cidade neste local não foi fmto de
um acaso mas de uma intenção estratégico-militar muito bem definida.
Para implantar a Vila foi escolhido um promontório. É evidente que na
região havia uma grande variedade de terrenos planos e acidentados, altos e
baixos, mais ou menos ondulados. Foi escolhido exatamente aquele local por
que ele atendia a critérios desejados que outros não apresentavam.
Mesmo não se sabendo qual foi o traçado original da cidade, a rede viária
que foi preservada fornece indícios muito claros sobre o tipo de cidade que es
tava sendo implantada.A localização da Vila no alto de uma colina remete à mi
lenar tradição trazida da península ibérica pelos celtas, que havia de marcar da
forma mais pregnante a rede urbana daquele território europeu e que está plena
mente preservada até em nossos dias. A existência de uma via implantada por
sobre o cume do promontório, associado a vias transversais que a cortavam nos
pontos mais baixos da via principal, leva diretamente à concepção de um Stras-
sendorf ou seja, uma aldeia-rua, tradição trazida da península pelos invasores
germânicos que dominaram a região por trezentos anos.
A conformação desta rua como "direita" (que aqui deve ser entendida
com o significado de "rua direta", isto é, que levava diretamente do exterior
ao centro urbano) que, em seu centro geográfico, no ponto culminante do pro
montório, dava num largo onde foram implantados os prédios mais significa
tivos dos poderes religioso, executivo e legislativo, indica que estamos diante
de uma revivificação das velhas aldeias medievais lusitanas. Esta hipótese en
contra apoio em outras justificativas que não podem ser aqui desenvolvidas.
Por estas razões, é muito difícil imaginar que o capitão Alexandre José
Montanha tivesse sido ao autor do plano de Porto Alegre. Na qualidade de
oficial do exército português, muito provavelmente deve ter-se formado na Real
Academia Militar de Fortificações e, com certeza, estava a par dos novos pos
tulados então em voga, como, aliás, bem o demonstrou ao fazer o plano da
cidade de Santo Amaro.

226
Seja lá quem for o autor do projeto, a questão central é examinarmos que
tipo de cidade resultou deste projeto pioneiro em matéria de transferências de
capitais para um local desabitado (que, para o espanto dos europeus, acaba
ram por se tornar tão corriqueiras no novo mundo). Segundo a tradição, os
prédios mais importantes, o palácio governamental - o chamado Palácio de
Barro - e a Assembléia Legislativa teriam sido projetados pelo mesmo capi
tão Montanha, e o projeto da Matriz teria vindo do Rio de Janeiro, tudo indi
cando que o seu autor foi o ex-governador da Província José Custódio de Sá e
Faria. Destes três prédios, o mais suntuoso e de maior presença era o da Ma
triz que ficava ao lado do Palácio de Barro, em forma de sobrado e, pouco mais
afastado, do prédio de um só piso que abrigava a Assembléia. Para quem che
gasse à cidade por via fluvial - que era a forma mais usual -, estes prédios,
implantados no ponto mais alto do promontório, transmitiam a imagem de uma
espécie de galinha choca que abrigava sob suas asas todas as demais constru
ções, que talvez tenham sido um amontoado de pequenas casas de "porta e
janela", umas exprimidas contra as outras. A proeminência da massa constru
ída, formada pela matriz e o palácio, é altamente significativa na medida em
que bem exprime a unidade administrativa portuguesa simbolizada na cruz e
na espada usada como símbolo de sua expansão pelo mundo a fora. Num cer
to sentido, poderíamos afirmar que esta imagem já não era mais a da cidade
medieval, mas a do Portugal dopadroado régio de D. João III, no qual trans
parece um Estado pouco estruturado burocraticamente e que se organiza atra
vés de uma Igreja altamente hierarquizada e largamente independente do Va
ticano, que desempenhava a função do mais eficiente órgão de coerção ideo
lógico e repressivo do aparato governamental. Não devemos esquecer que, a
este tempo, a presença da Igreja se fazia sentir de modo marcante através da
Santa Inquisição que, se não teve presença mais significativa no Brasil, não
deixava de ser o referencial de um poder discricionário, colocado acima do
bem e do mal, que encontra sua expressão na localização da Matriz dentro do
contexto urbano da cidade de então.
Com a fuga da família reinante para o Rio de Janeiro e a conseqüente in
ternacionalização da colônia, a mesma logo se tornaria independente desde que
pagasse o alto preço de levar, por herança, a corrompida e decadente Casa de
Bragança. A verdade é que, apesar dos problemas internos da família real e da
corte que a acompanhava, dos novos ares democratizantes emanentes da Revo
lução Industrial e que se concretizaram na ação política a partir da Revolução
Francesa, a Coroa ainda teve a capacidade de monopolizar o poder no País, na
medida em que se utilizou da forma do poder burguês, dividido entre um exe
cutivo, um legislativo e um judiciário, sobrepondo uma excrescênciachamada
poder moderador, que nada mais significava do que, sob a aparência de uma
pseudomodernização, manter a velha e caduca forma de poder centralizado na
figura de um Imperador(em lugar de um Rei) folhetinesco e bombástico. Mui
to rapidamente, o incipiente baronato nativo percebeu que, em defesa de seus
interesses hegemônicos, seria necessário atenuar a excessiva centralização do

227
poder nas mãos do monarcaa favorde maiorpermeabilidade das classesdomi
nantes provinciais. Isto foi conquistadocom a revisãoda constituiçãoe pela subs
tituição de um Imperador bufão por outro ornado duma aura de sábio e culto.
Mais uma vez, procedeu-se ao antigo expediente de mudar para manter tudo no
mesmo lugar.
No plano da realidade urbana, verifica-se que pouca coisa mudou na ci
dade e na imagem dela decorrente. Com a proclamação da independência, a
cidade recebeu um considerável melhoramento quando foi construído, extra-
muros, o primeiro hospital da província em lugar de destaque, sobre uma ele
vação na extremidade oriental da cidade. O crescimento populacional da ci
dade fez com que as irmandades, que começavam a acotovelar-se dentro da
matriz, passassem a providenciar a construção de novos templos, inicialmen
te uma para os pretos e, mais tarde, outra para os brancos. Depois surgiria ainda
uma terceira para os mestiços.
Esta é a imagem que o mercenário Hermann RudolfWendroth deixou em
meados do século passado. De suas aquarelas depreende-se que junto ao porto
já haviam surgido alguns sobrados, dentre os quais se destaca o da Alfândega.
Pelo lado sul da cidade, percebe-se que a encosta mais íngreme do promontório
ainda não havia sido ocupada e a conurbação apenas ensaiava seus primeiros
avanços, contornando aquilo que viria a ser conhecido como a "Volta do Gasô-
metro" e descendo a ladeira do Oitavo Batalhão, junto da Santa Casa.
Logo a seguir haveriam de ser feitos novos melhoramentos. Os mais
significativos foram a ampliação de mais um piso no prédio da Assembléia
Legislativa, a construção de um presídio na extremidade ocidental da cidade,
literalmente, dentro do rio, sobre o primeiro de um grande número de aterros
que haveriam de ser realizados ao longo de toda a história da cidade. Além
disso, a vida urbana seria enriquecida com a construção de um teatro e de um
palácio para a municipalidade e que também serviria para a justiça. Estes pré
dios haveriam de formar um conjunto muito harmonioso e valorizariam plas-
ticamente a "acrópole" da cidade. No sentido da valorização da cultura local,
é necessário citar a criação da primeira escola normal na província. Como se
percebe, a construção desses prédios se sobrepõe, ipsis litteris, à matriz do
poder antes esboçado.
Paralelamente a isso, ao longo do tempo, foram sendo agregados ao te
cido urbano alguns sobrados pertencentes à nobreza crioula que ia compran
do os seus títulos por graça das benesses dos cargos governamentais ou mili
tares que desempenhavam, dos quais o mais significativo foi o que constitui
atualmente as ruínas da residência do conde de Porto Alegre.
Em fins da década de 1850 começaram a ser calçadas as ruas da cidade, o
que se constitui num feito bastante significativo se levarmos em consideração
que em 1820 eram raras as mas de Paris que apresentassem esta melhoria.
A partir do desencadeamento da Guerra do Paraguai, este ímpeto trans
formista foi consideravelmente refreado e, dos últimos anos do Império, vale
a pena citar somente a política de melhoramento da cidade que consistia basi-

228
camente na substituição dos largos beirais coloniais por platibandas, o que
motivava, em larga escala, a reforma das fachadas dos prédios que, no entan
to, em seu interior se resumiam na existência de uma pequena sala na frente,
uma varanda atrás e, entre estes dois espaços, uma ou, eventualmente, duas
alcovas sem iluminação ou ventilação.
Enumeradas desta forma, as melhorias que a cidade sofreu ao longo do
Império poderão parecer, ao menos avisado, substanciais. Se, no entanto, exa
minarmos a questão sob o ponto de vista analítico, veremos que as transfor
mações foram mais no sentido quantitativo do que qualitativo, significando
que, apesar dos melhoramentos introduzidos, a imagem da cidade continuou
a ser praticamente a mesma. Melhoraram-se os serviços junto à Praça da Ma
triz (que, nesta época, foi ajardinada), mas não se tocou no papel que ela de
sempenhou no período colonial. Éverdade que aconstrução de um teatro criou
um centro referencial da cultura da cidade e que a ampliação do prédio da
Assembléia, a construção do presídio e do Palácio da Justiça/Municipalidade
ocorreu em proveito do coronelato da campanha e da burguesia mercantil ur
bana, mas a cidade ainda continuou a abrigar-se sob as asas matriarcais da Santa
Madre, representada na imagem urbana por sua Matriz associada com o palá
cio governamental. Isso se harmonizava com outros pontos marcantes da ima
gem da cidade como a Santa Casa, o Mercado Público e, quem sabe, o orfa
nato de Santa Tereza, que se constituem em programas arquitetônicos que in
duzem à antiga concepção de um Imperador benevolente e justo que sabe re
compensar a lealdade de seus súditos, concepção esta que se consubstanciou
de forma magistral no título dado pelo Imperador à cidade como "mui leal e
valorosa".
Com o fim da escravidão, a economia charqueadora entrou em colapso
e o estamento latifundiário-pecuarista perdeu boa parte de sua representativi-
dade. A falência do sistema pecuarista levou ao incentivo de fontes alternati
vas de produção, que encontraram a melhor resposta na agricultura, através
da qual os centros de decisão puderam ser deslocados para as cidades da en
costa da serra e, posteriormente, para a capital que, em conseqüência, seria
submetida a um precoce processo de metropolização.
O sucesso do modelo de desenvolvimento agrícola favoreceu o rápido
acúmulo de capitais que, por sua vez, serviu de base para a criação de uma
diversificada rede de fábricas.
A Proclamação da República acabou de vez com a já claudicante con
cepção do poder benevolentee justo. O novo regimeconsagrou a legitimação
do poder por via da eficiência, pelo viés da concepção positivista, especial
mente a de Auguste Comte. A nova Constituição federal consagrou uma re
partição feudal do poder entre os diversos estamentos regionais, enquanto o
poder central se contentava com um número muito limitado de atribuições,
como a representação diplomática, a salvaguarda e defesa do território, a ma
nutenção e estruturação das vias de comunicação. Virtualmente, todas as de
mais atribuições estatais foram delegadas aos governos estaduais. Isto signi-

229
ficava que cada unidade da federação tinha o direito de formalizar a sua pró
pria estrutura de poder.
No caso do Rio Grande do Sul, resultou na imposição de um sistema ex
tremamente autoritário de poder que chegava aos umbrais do totalitarismo. A
Constituição estadual- em largamedida conflitante com a do governo central-
colocava todo o poder nas mãos do executivo. O poder legislativo foi virtual
mente abolido, uma vez que as atribuições da assim chamada "Assembléia de
Representantes" restringiam-se à apreciaçãodo orçamentoe, em seu funciona
mento, mecanismos regimentais colocavam nas mãos do presidente o perfeito
domínio das votações. O poder judiciário dependia de nomeação do presidente,
o que, por conseqüência, o transformou num jogo de marionetes nas mãos do
executivo. Além disso, o último ainda detinha em suas mãos o domínio de um
exército próprio e totalmente despersonificado, que estava disposto a cometer
as maiores atrocidades, uma vez que tinha a garantia da impunidade, já que os
atos de seus integrantes seriam julgados por um tribunal próprio e constituído
exclusivamente por componentes da própria corporação.
A concepção de poder que passou a vigorar seria o de um abrandamento
do significado de um "rei" distante a favor de um "rei" presente, mais eficien
te, portanto, e que se legitimava através de uma conduta ética ilibada.
No tocante à imagem, a cidade haveria de submeter-se, neste período, a
uma drástica transformação. Na "acrópole", tanto o Palácio governamental
como a Matriz seriam demolidos para dar lugar a prédios monumentais e ri
camente ornados, enquanto a esvaziada Assembléia teria de contentar-se em
permanecer no '^miicufo" do século 18. O corajoso empreendimento da cons
trução de um porto moderno em meio ao rio acompanhado de um pretensioso
aterro permitiram que fossem criados locais onde seria implantada uma série
de prédios administrativos das secretarias estaduais. Em oposição à centrali
zação das decisões na "acrópole", foi criado um espaço para o exercício da
cidadania que .se configurou numa "ágora" (Praça da Alfândega) ao redor da
qual haveriam de aninhar-se - o que é bastante significativo - as repartições
do governo central (Delegacia da Receita Federal, Correios e Telégrafos e a
nova Alfândega). Complementado por prédios monumentais de inspiração re
nascentista, este conjunto haveria de alojar-se junto à primeira avenida monu
mental da cidade (Sepúlveda). A arquitetura se sofisticou ao máximo na me
dida em que ela se tornaria a sustentação de obras de escultura e de refinadas
pinturas, executadas por mestres recrutados nos mais tradicionais centros eu
ropeus de arte.
Ao receber uma população constituída de cerca de 70% de analfabetos, o
regime positivista tratou de proceder a um exten.so programa de educação bási
ca, ampliou a incipiente instrução de nível médio com a criação de um eficiente
sistema de escolas profissionais baseadas no sistema das escolas de artes e ofí
cios e criou a primeira rede de instituições de ensino superior, baseado no mo
delo do sistema anglo-saxão. Dados os altos investimentos destinados a estes
prédios, o si.stema acabou por ser prejudicado em suas boas intenções.

230
o rápido crescimento da cidade levou a um incipiente zoneamento das
funções urbanas. Assim surgiu um centro de ensino no antigo Campo da Re
denção, um centro industrial ao longo da Voluntários da Pátria, um centro ban
cário e comercial nas proximidades da Praça da Alfândega, um distrito de re
sidências burguesas ao longo do espigão da Independência, um bairro para a
classe média, na cidade baixa, uma cidade operária entre a Cristóvão Colom
bo e a Voluntários da Pátria, e assim por diante.
Talvez a forma mais expressiva deste modo de vida possa ser encontra
do na arquitetura da época. Por um lado, os prédios governamentais que iam
surgindo em grande número, ávidos em demonstrar a grandiosidade das auto
ridades estatais, apresentavam pés-direitos descomunais (de 12m no palácio
do governo; 6,6m em escolas de primeiras letras), uma rica ornamentação es-
cultórica de caráter didático no sentido do proselitismo da filosofia que sus
tentava a idéia de Estado em vigor. Por outro lado, a arquitetura civil se reves
tia de uma decoração muito próxima ao novo-rico como que para ostentar uma
riqueza da qual até então não se tivera notícia.
Apesar desse desenvolvimento e das pretensões de cosmopolitismo, na
realidade, a cidade não conseguia esconder sua origem provinciana: os prédi
os de mais de dois pisos podiam ser contados nos dedos, a Rua da Praia, que
congregava a vida social da cidade, era o local onde todos se conheciam e onde
circulavam as fofocas mais candentes.
Dificilmente poderá ser encontrada uma relação tão direta entre o poder
e a imagem urbana como naquela cidade da década de 1920 que se embalava
ao som de valsas e chorinhos em retretas semanais, em animados cafés-con-
certo e cabarés onde a população encontrava alívio para o desconforto de um
Estado autoritário e prepotente.
Este estado de coisas mudou bruscamente no fim da década com a crise
do capitalismo a partir da quebra da bolsa de Nova Iorque e que descambou
na institucionalização de regimes totalitários nos países centrais. O Brasil tam
bém foi tomado por esta onda de instabilidades na medida em que ocorreram
uma série de acontecimentos que constantemente reorientaram os rumos da
vida nacional. A década de 1930 começou com a tomada do poder por Vargas
apoiado pela milícia gaúcha. Em 1932 aconteceu a assim chamada "Revolu
ção Constitucionalista". No ano seguinte, houve a movimentação em torno
da nova constituição, processo que se concluiu com as eleições gerais. Em 1937
aconteceu o golpe do "Estado Novo" e em 1939 começou a II Guerra Mundi
al que só terminaria na metade da década seguinte.
Com tantas precipitações, é fácil entender os percalços existentes para o
entendimento de tantos descaminhos, o que se agrava ainda mais com a in
tencional recusa que os envolvidos têm em ocupar-se com o estudo desta épo
ca qualificada de "a década maldita" do século.
Em relação à concepção do poder, a transferência do autoritarismo gaú
cho para a esfera federal foi acompanhada de considerável incremento à con
cepção de um Estado forte que se consubstanciou na criação de um exército

231
eficiente e no aparelhamento dos órgão de repressão, à imagem da brigada
gaúcha. Da mesma forma, foram realizadas intervenções indevidas tanto no
poder judiciário como no legislativo. Neste sentido, a concepção de poder não
teve alterações em relação àquela que foi institucionalizada por Júlio de Cas-
tilhos. Todavia, a derrocada da política de proteção ao café, dentre outros
motivos, imprimiu uma diretriz política de incentivo ao desenvolvimento in
dustrial em substituição ao de apoio à agricultura, e a assim chamada "políti
ca de blocos" extirpou as limitações provincianas da política nacional para jogá-
la no redemoinho das confrontações internacionais. Disso resultou uma polí
tica de culto à personalidade do ditador travestido de defensor dos grandes
interesses nacionais que repousavam numa concepção messiânica do começo
de um milenarismo.
Em nível de desenvolvimento da cidade, a crise de 1930 teve efeitos sig
nificativos. Embora causasse um leve arrefecimento no setor imobiliário e a subs
tituição de algumas lideranças por outras mais identificadas com os partidos de
extrema direita, a febre transformista, que já havia dado seus primeiros passos
no fim da década anterior, seguiu a passos largos.A abertura daAvenida Borges
de Medeiros com seu viaduto foi apenas o primeiro ensaio de outros empreen
dimentos ainda mais ousados, como a abertura da Avenida Otávio Rocha, Ave
nida Farrapos e Avenida Salgado Filho, alargamento da Avenida João Pessoa,
retificação doArroio Dilúvio complementada com a constmção de diversaspon
tes.O grande acontecimento arquitetônico da cidade foia realização da Exposi
ção no Centenário Farroupilha, no antigo Campo da Redenção, para a qual fo
ram convidados a participar todos os Estados da Federação e as principais ins
tituições paraestatais com a construção de pavilhões onde exporiam exempla
res de sua produção. Em termos arquitetônicos, a exposição apresentou, de for
ma muito clara, os dilemas da teoria naquele momento, na medida em que fo
ram realizados prédios das mais variadas tendências estilísticas, dentre as quais
se sobressaíam as que seguiam a orientação nazifascista. Certamente influenci
ados pelo frio tecnicismo que caracterizava a política dos países do Eixo, os or
ganizadores se orgulhavam da "feérica" iluminaçãoelétrica do parque, onde era
consumida mais energia por unidade de tempo de que em todo o resto da cida
de. Um grande pórtico servia de entrada para uma avenida monumental onde se
encontrava o pavilhão do Rio Grande do Sul, de gigantescas proporções, diante
do qual os demais pavilhões careciam de importância.
A própria configuração das massas arquitetônicas expressa muito bem as
intenções do governador Floresda Cunhaem aspirarao postodeVargas na legis
latura subseqüente. O tiro, no entanto, saiu pela culatra, posto que o presidente
não admitia a simples menção de sua substituição no cargo de primeiro mandatá
rio, o que mostra que já naquela época estava sendo tramado o golpe de 1937.
Com a substituição do prefeitoAlberto Bins por Loureiro da Silva, a me
galomania política adquire contornos mais definidos. Foi no governo do últi
mo que a Divisão de Obras foi tomada por uma verdadeira febre de realização
de projetos dos quais a absoluta maioria, felizmente, nunca chegou a ser rea-

232
lizada. O conjunto mais significativo foi o projeto da Feira de Amostras que
deveria ser construída no fim da Avenida Santana, que, obviamente, se inspi
rava no grande plano de reformulação de Berlim, de autoria de Albert Speer.
A área da Praça da Matriz deveria ser consideravelmente ampliada para rece
ber diversos prédios, igualmente inspirados nos concursos para os grandes
prédios governamentais de Berlim. Aqui poderiam ser enumerados muitos
outros projetos, mas os mais importantes são aAssociação Comercial, de Lut-
zenberger, e o Edifício José Montauri (Prefeitura Nova), de Christiano Gel-
bert. No início da Guerra, foi contratado o arquitetoArnaldo Gladosch, do Rio
de Janeiro, para fazer o planejamento físico da cidade. De seu plano, muito
pouco foi realizado, porém sua vinda ao sul propiciou a realização dos pri
meiros arranha-céus, como os edifícios União, Sulacap e Sul América, na
Avenida Borges de Medeiros (além de outros), todos de direta inspiração na
arquitetura totalitária.
Para não deixar apenas por conta de arquitetos forasteiros as realizações
arquitetônicas monumentais, compete citar pelo menos os edifícios Vera Cruz
(de autoria de Monteiro Neto), Frederico Mentz (mais conhecido como Novo
Hotel Jung) e Previdência do Sul (mais conhecido como Cinema Imperial),
ambos de autoria dos irmãos Agnello. Com estes megaempreendimentos, a
imagem da cidade foi violada em sua unidade e coerência.A abertura das gran
des avenidas pode ter desafogado a circulação de veículos, mas deixou atrás
de si cicatrizes de inúmeras demolições que só o tempo haveria de sanar. A
idéia de começo de um novo milênio justificava a indiscriminada demolição
de prédios da mais alta qualidade ou o acréscimo de mais alguns andares, o
que deformava completamente suas proporções.
Na superposição dos conceitos, o endeusamento do ditador e da ditadura
encontram seu paralelo perfeito na construção dos arranha-céus que entram no
mais total conflito com a parte já edificada da cidade que passa a ser vista com
menosprezo, como símbolo de atraso e provincianismo. Se ao fim da Guerra
grande parte da Europa ficou completamente arrasada, a abertura das grandes
avenidas não deixou um saldo tão trágico, mas nem por isso o tecido urbano foi
ferrado por profundas cicatrizes. Felizmente, o ativismo febril que caracterizou
o período ficou muito aquém dos propósitos traçados e, por outro lado, apesar
das baixas, deixou algumas realizações de mérito, como a abertura das aveni
das que, pelo menos, permitiram uma circulação mais franca de veículos.
Com o fim da Guerra e a vitória dos aliados, o mundo parecia que have
ria de encaminhar-se para uma fase de paz e prosperidade, entretanto acordou
num terrível pesadelo que pôs a nu os hediondos crimes contra a humanidade
cometidos em nome da superioridade da raça ariana. No entanto, o desvario
não terminou, posto que, mal haviam acabado de cair as últimas bombas, o
mundo mergulhava numa nova guerra não declarada e que foi apelidada de
"fria". Um muro, que passou a dividir a antiga capital alemã, passou a servir
de símbolo de um mundo que era apresentado dividido em duas partes anta
gônicas uma empenhada em solapar a existência da outra. No entanto, a reali-

233
dade era muito mais séria, posto que esta imagem obscurecia a verdadeira si
tuação que esta polaridade escondia: realidade ainda mais cruel de um mundo
dividido entre países ricos e pobres. E dentro dos países pobres, como o Bra
sil, havia regiões ricas e pobres. Em nível individual, a situação ainda era mais
grave na medida em que havia aqueles que eram extremamente ricos e uma
enorme legião de miseráveis.
Em termos de poder, a concepção que passou a ser oficialmente defen
dida foi a da livre empresa numa economia de mercado, o que entrava em franco
conflito com a herança deixada pelo Estado autoritário deixado pela ditadura
estadonovista. A transição para a nova fase haveria de ser conduzida pelo mi
nistro da Guerra do regime destronado, e este, pouco depois, seria substituí
do, por via democrática, pelo antigo ditador então travestido de "pai dos po
bres", o que bem demonstra que ao nível popular a nação ainda ansiava por
um messias que a conduziria ao reino da bem-aventurança. A trágica morte
deste líder carismático pareceu que teria acordado a nação para a necessidade
de realizar as reformas básicas para atenuar a violência destes contrastes. Po
rém, a estrutura do poder permaneceu intocada, o que fez com que o primado
do capital fosse garantido por novo período discricionário, que nada mais fez
do que centralizar ainda mais o poder político e econômico e, desta forma,
acentuar ainda mais os contrastes, na medida em que qualquer oposição era
neutralizada manu militari, a corrupção se expandia como um câncer pelas
entranhas do tecido social, tomando conta até dos mais altos escalões da ad
ministração, conforme pode ser visto em fundamentadas matérias de jornais
e revistas. Para agravar ainda mais a situação, uma crise econômica sem pre
cedentes se abate sobre o País, fazendo com que um pessimismo nunca dan
tes sonhado tome conta da nação.
Em termos de imagem da cidade, o capitalismo selvagem dispunha da
mais ampla liberdade para manipular tanto o mercado imobiliário como os
espaços públicos. A cidade foi-se verticalizando sem que houvesse um con
veniente controle. Um planejamento através de índices numéricos comprome
teu profundamente o aspecto plástico das construções como um todo, e o ônus
da infra-estrutura foi deixado ao cargo da municipalidade cada vez mais des
capitalizada. Na medida em que os centros urbanos se verticalizavam em for
mas cada vez mais despersonalizadas e uniformes, à custa de obras do passa
do de inestimável valor, na periferia foi-se acumulando uma população cada
vez mais numerosa em barracos insalubres e que, fatalmente, haveria de re
sultar em revolta e insubmissão. Desta forma foi declarada uma guerra surda
e anônima que resultou numa inesperada (mas perfeitamente explicável) vio
lência social que vem assumindo índices que, por vezes, superam os das guerras
declaradas. Nestas condições, a imagem da cidade assume aspectos anárqui
cos, quando não de desolação ou temor. E não é por acaso que, em recente
pesquisa de opinião pública, a imagem da cidade preferida foi o "pôr-do-sol",
isto é, a da natureza externa a ela, ou seja ainda, a não-cidade.
Não gostaríamos, no entanto, de encerrar este artigo deixando uma im-

234
pressão derrotista. Por mais escuras que sejam as nuvens que cobrem nosso
horizonte, estamos convencidos de que nos encontramos diante de uma pro
funda revisão dos valores e dos procedimentos da nação. Nunca se ouviu tan
to falar em direitos de cidadania, nunca a indignação diante da corrupção foi
tão explícita, nunca a consciência diante das responsabilidades sociais foi tão
discutida. Tudo isto está a indicar que, apesar dos pesares, a nação não se aba
teu diante das adversidades. E isso é um indício de que muitas mudanças es
tão para vir. E para melhor.

235
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maria angela faggin pereira leite
natureza e participação social:
uma nova estética
para o desenho urbano

INTRODUÇÃO

A paisagem, reflexo da relação circunstancial entre o homem e a nature


za, resulta da ordenação do entorno a partir de uma imagem idealizada. Si
multaneamente reflexo da estrutura da sociedade e objeto de intervenção, a
paisagem é projetada e construída a partir de elaborações filosóficas e cultu
rais que resultam tanto da observação objetiva do ambiente quanto da experi
ência individual ou coletiva em relação a ele.
Como reflexo da estrutura da sociedade, a paisagem mostra uma perma
nente procura de formas que expressem graus de integração e compatibilida
de entre as manifestações políticas, técnicas, científicas e artísticas dessa so
ciedade. A observação atenta dessas manifestações sociais nos permite captar
a realidade em transformação e exprimi-la em obras específicas que são os pro
jetos paisagísticos.
Como objeto de intervenção desses projetos, a paisagem revela o pro
cesso dinâmico de expressão do imaginário social e de seus padrões estéticos
e culturais, cuja origem dificilmente pode situar-se em um único campo espe
cífico de conhecimento.
Na antigüidade, os jardins eram obras da reflexão dos filósofos, poetas,
monges e pintores, fechados para o mundo exterior e intimamente relaciona
dos com a contemplação e a meditação.
Na atualidade, são obras de arquitetura e devem procurar, também nos
processos econômicos, políticos e históricos da sociedade, os fatos que expli
cam e justificam sua forma e seu caráter.
A fusão entre esses dois modos de expressão da realidade exige o esta
belecimento de uma relação mais concreta entre a compreensão filosófica
do espaço e do tempo absolutos - a reflexão sobre a paisagem - e a apreen-

Muria Anseia Fa^^ín Pereira Leite c professora no Departamento de Projeto da FAU/USP.

239
são empírica do espaço e do tempo limitados - o projeto de paisagismo. O
longo processo de transição entre a visão rural da paisagem como natureza
contemplativa e a compreensão de seu potencial de expressão de conflitos e
desigualdades sociais, geradas pelo processo de urbanização, envolveu o
abandono de crenças e dogmas e sua progressiva substituição por propostas
e projetos que melhor atendessem as questões originadas pela transforma
ção da sociedade, ampliando tanto o referencial teórico quanto a atuação
formal do paisagismo.

A INDUSTRIALIZAÇÃO, A URBANIZAÇÃO
E O MUNDO DA PRODUÇÃO DE MASSA

O paisagismo entrou no século 20 marcado por um legado teórico de es


pírito essencialmente agrário. Essa abordagem adaptou-se muito mal às no
vas paisagens de subúrbio da cidade industrial e revelou-se absolutamente ina
dequada para responder às questões, então emergentes, como a pobreza, a fome,
as desigualdades e o excesso de população.
A associação, nos projetos paisagísticos, entre os aspectos naturais e cons
truídos de cada lugar e a conseqüente concepção da paisagem como uma se
qüência fluente de articulações entre funções urbanas e rurais, foi o primeiro
passo em direção à visão do espaço público como ponto de convergência en
tre cidade e campo, convergência que tem um significado econômico histori
camente datado. De fato, o violento processo de industrialização/urbanização
das cidades européias no século 19 e das cidades americanas no início do sé
culo 20 exigiu a mudança das condições de reprodução de uma classe traba
lhadora numerosa, desumanizada e despersonalizada, porque culturalmente
ligada às práticas e tradições rurais.' O surgimento dos grandes parques urba
nos foi uma resposta a essa exigência.
As posteriores mudanças nas relações internacionais, o colapso e a trans
formação dos antigos imperialismos e o reajustamento das relações entre os
povos marcaram um momento de tendências confusas e incertas, cujo aspec
to mais significativo foi seu caráter mundial, conseqüência da industrializa
ção, da vida urbana, da produção de massa, das novas formas de comunica
ção e transporte.
A arquitetura funcional moderna tinha um projeto estático e político de
combate à frivolidade superficial e ao ecletismo do final do século 19. A bele
za que resultava da função, dentro de uma estética severa, a idéia de que da
fusão da arte com a indústria resultaria o progresso social ou de que bastava
produzir um novo espaço urbano para que surgisse uma nova ordem social,
aliada ao carisma dos grandes arquitetos modernistas, levou a arquitetura mo-

' Considera-sc aqui cnlrc as condições de reprodução da classe trabalhadora, não apenas
o direito à moradia, à alimentação e à saúde, mas também ao lazer cm seus inúmeros
aspectos.

240
derna a uma codificação, a uma gramática uniforme, que passou a ser pratica
da em todos os lugares do mundo.
A afirmação do edifício como monumento e como obra auto-referencial
estava inserida numa forma de produção da cidade que prescindia de reflexões
sobre especifícidades locais: a ruptura com a tradição exigia que a moderni
dade fosse buscar em si mesma suas coordenadas e suas normas, fazendo far
to uso da razão para explicar a rejeição às instâncias transcendentes.
A destruição da organização social em todos os seus aspectos - inclusi
ve a destruição do tecido urbano - também correspondia ao espírito da mo
dernidade, porque sua proposta racional se adequava melhor a um espaço to
talmente construído ou reconstruído de acordo com o rigor da boa forma. Di
vidir o espaço, romper os limites existentes, estabelecer fronteiras, criar uni
dades, tudo era parte do processo de reconstrução de um mundo previamente
despojado de suas garantias institucionais.-
Todas essas questões passaram a preocupar os envolvidos nas discussões
do urbanismo e a exigir outra forma de atuação do paisagismo, cujas inter
venções limitadas a jardins e parques públicos iam progressivamente perden
do significado.
A partir da década de 1930, especialmente nos Estados Unidos, o aden
samento das cidades e a generalização do uso do automóvel como meio de
transporte provocaram mudanças mais intensas na relação entre espaços livres
e edifícados, tornando necessária a busca de alternativas de projetos que en
frentassem essas questões. A medida que o aumento da população, a veloci
dade dos meios de transporte e a eficiência das comunicações tornavam a vida
mais complexa, emergia também a consciência de que o paisagismo podia res
ponder aos interesses dos diversos grupos sociais através de projetos de cará
ter mais urbano, e que os valores, os hábitos e os objetivos dos usuários podi
am sugerir os critérios desses projetos.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, o declínio do colonialismo, sua
substituição por novas relações de dependência e a ampliação dos mercados e
relações econômicas internacionais tornaram global o processo de urbaniza
ção já acentuado nos países de capitalismo consolidado, levando o paisagis
mo tanto na prática de projeto como no campo teórico a procurar alternativas
para as questões originadas por essa nova ordem mundial.
Embora esboçando os primeiros passos em direção a intervenções essen
cialmente urbanas, o paisagismo manteve ainda por longo tempo uma atuação
especificamente ligada à discussão de aspectos estéticos, sem questionar a qua
lidade da paisagem produzida pela interação entre as forças estruturais, impos
tas pelos planos de desenvolvimento propostos em escala mundial, e a rotina
das práticas locais dos cidadãos submetidos a essas determinações.
Na década de 1950, Garret Eckbo revolucionou o pensamento paisagís-

- Uma discussão mais ampla dessa qucslâo consla do capítulo 5, da tese "Novos valores: des
truição ou desconstrução".

241
tico ao afirmar que os projetos de intervenção na paisagem destinam-se a re
solver contradições entre a natureza e a sociedade, que suas linhas emergem
do exame atento das manifestações técnicas, econômicas e culturais da socie
dade juntamente com a observação das condições específicas de organização
de cada lugar e que esses dois conjuntos de conhecimento jamais podem ser
utilizados separadamente.^
O paisagismo ingressou então num período de participação na vida ur
bana com o surgimento de numerosas frentes de avanço que buscavam a iden
tificação e a humanização da paisagem do mundo da produção de massa.

DO VISUAL AO AMBIENTAL

Nesse contexto, as revoluções científicas, sociais, políticas e de comu


nicações da década de 1960- a conquista da Lua, os movimentos estudantis e
pacifistas, as lutas políticas no leste europeu, o desenvolvimento das teleco
municações - contribuíram para ampliar os referenciais que apoiavam as pro
postas de intervenção na paisagem. A passagem do projeto de pequeno porte
para o projeto de sistemas de espaços livres urbanos e regionais começou a
tomar forma como decorrência de questões relevantes para a estruturação do
território em suas diversas escalas, e a compreensão dos processos que deter
minavam essa estruturação tomou os projetos mais socializados e, simultane
amente, mais integrados com as questões naturais de cada lugar.
Por outro lado, o florescimento das teorias sociais de reivindicação e par
ticipação popular encontrou nos espaços públicos urbanos o veículo ideal para
sua manifestação. Os projetos de paisagismo procuravam atender às necessi
dades sociais de concentração e manifestação pública, organizando espaços
de caráter cívico. Os reflexos estéticos dessas inovações puderam ser obser
vados principalmente na alteração das relações dimensionais, na introdução
de elementos lúdicos e nas propostas que contemplavam a participação dos
usuários na configuração final do projeto: praças e parques não eram mais
construídos para a contemplação, mas para uma saudável, enriquecedora e
efetiva utilização coletiva.
A imagem e a interpretação da paisagem começam a ser utilizadas como
forma de introduzir a questão da contextualização do projeto, posteriormente
ampliada pela incorporação de conhecimentos relativos à administração, uti
lização e conservação dos recursos naturais. Como reflexo imediato das aca
loradas discussões ecológicas de 1968 e 1972, o paisagismo ampliou as di
mensões de sua atuação, defendendo que a elaboração local de um projeto con-
textualizado dependia da compreensão dos processos econômicos, sociais e

'As idéias c propostas de Eckbo tiveram forte influência no desenvolvimento da cliamada


Escola Paulista de Paisagismo no Brasil, trazidas por Roberto Coelho Cardozo, pioneiro na
implantação da di.sciplina de Paisagismo na FAU/USP.

242
naturais em escala mundial, nacional e regional. lan McHarg, pioneiro na pro
posição metodológica e na elaboração de projetos que obedeciam a essa linha
de pensamento, destacou a necessidade de compatibilizar processos naturais
e sociais com a finalidade de solucionar os conflitos que o modelo de desen
volvimento econômico delineava para a década de 1970.
A crise do Estado autoritário, com a extinção de algumas das mais for
tes e prolongadas ditaduras mundiais - Portugal, Espanha, Grécia, Nicarágua
- associada ao fim do colonialismo, que pode considerar-se extinto do mundo
a partir de 1979, e à revolução das comunicações, teve um papel importante
na redefinição do público e do privado, alterando padrões culturais e artísti
cos vigentes e envolvendo a construção de paisagens mais identificadas com
as questões do cotidiano das comunidades. A pressão demográfica, por sua
vez, pedia soluções habitacionais urbanas homogêneas e de dimensões redu
zidas, com amplos espaços livres coletivos, facilmente identificáveis na pro
dução do paisagismo da década de 1970.
A face cosmopolita das novas relações mundiais incorporou ao projeto pai
sagístico tanto o caráter simbólico/representativo - pela utilização de elemen
tos com significado cultural local - quanto o caráter de arte em escala monu
mental - presente, por exemplo nas intervenções e instalações do escultor Christo
-justificado pela possibilidade de apreender grandes porções do território atra
vés de vôos, fotografias aéreas e imagens de satélites. Mas levou também à adoção
de um partido de projeto lógico, neutro e apolítico que procurava distanciar-se
dos conflitos e interesses contraditórios entre grupos sociais, surgidos a partir
da década de 1960, sem nenhuma perspectiva concreta de solução.
O caráter profundamente recessivo e neoconservador da política dos anos
80 agravou ainda mais esse quadro pela ampliação do leque de questões sociais
originadas na esfera econômica (prosperidade da economia européia, desafio, pelo
Japão, do parque industrial americano, falência do modelo intervencionista esta
tal, surgimento dos tigres asiáticos), na esfera política (guerras sangrentas e inva
sões localizadas, atentados terroristas, queda de praticamente todos os regimes
políticos fechados, extinção da URSS) e na esfera da saúde pública (fome, pela
incapacidade de distribuição de alimentos, epidemias, disseminação daAIDS).
Os estudiosos das teorias de urbanização foram levados a formular pro
postas tão variadas e desvinculadas entre si quanto essas questões que, naquele
momento, exigiam respostas urgentes, porém inexistentes.
A censura, a pregação da moralidade e a corrida armamentista provoca
ram uma onda de ataques às teorias sociais democráticas de participação e rei
vindicação popular, dando lugar a um liberalismo que não conseguia ocultar
a impossibilidade de convivência entre grupos sociais tão diferentes em seus
interesses e formas de manifestação. Dilemas e conflitos mundiais de caráter
ecológico (desenvolvimento versus conservação de recursos naturais), catás
trofes atômicas (Chernobyl, Three Miles Island, Goiânia), problemas urba
nos incontroláveis (aumento da violência e do desemprego, surgimento e as
censão de seitas de caráter racista e discriminatório), indicaram a retomada

243
de padrões clássicos de projeto de espaços públicos segregacionistas e intimi-
datórios, como forma de tentar manter sob controle situações originárias da
estrutura de um mundo politicamente conflitante e economicamente injusto.
"As cidades e as regiões não cresciam mais como uma miríade de tensões pú-
blico-privadas, mas como mutações deliberadas, engendradas por um Estado
burocrático e uma sociedade civil corporativa, ambas as esferas guiadas pelo
retorno financeiro." (Dear, 1988, p.26.)
Se a paisagem revelava, de forma evidente, os temores e preconceitos re
sultantes desses conflitos sociais, do ponto de vista estético, os projetos de pai
sagismo configuravam-se com verdadeiras exibições do poder e da riqueza acu
mulados pelos países e lugares-centro desses acontecimentos. O Brasil não es
capou a essa influência e, se por um lado, a falência do Estado não permitiu o
patrocínio de espaços públicos de caráter segregacionista, o projeto paisagísti
co dos espaços privados - condomínios fechados, áreas de lazer dirigido, shop
ping centers - foi tão violentamente marcado por essas arbitrariedades como em
qualquer outro lugar do mundo. A simetria rigorosa e a organização ortodoxa
dos projetos, aliadas à fragmentação característica do período, resultaram em
intervenções não mais integradas ao contexto, mas, na maioria das vezes, em
visível choque com ele, deixando a desagradável impressão de um cenário sem
nenhuma relação com as reais atividades que se desenvolviam nas cidades, numa
profusão de cores e formas sem significado social relevante.
A coesão, tão fortemente defendida pela modernidade, esfacelou-se di
ante de nossos olhares atônitos, e as totalidades homogêneas que embasaram
as práticas do moderno deram lugar a uma dispersão plural onde cada coisa
procurava seu próprio sentido, exigindo a criação de referenciais próprios.
A desmistificação da razão; a rejeição da unidade, a falta de credibilida
de em relação aos grandes discursos de emancipação e às explicações racio
nais que correlacionavam os âmbitos teórico, prático, político, ético e os arti
culavam global e unitariamente foram responsáveis pelo surgimento de novas
formas de estruturação do cotidiano.
A mundialização da informação e da comunicação tornou a velocidade
das mudanças sociais, econômicas e políticas muito intensa, impedindo o con
trole das variáveis que incidem sobre a estruturação e a configuração da pai
sagem. A organização dos espaços passa a ser feita pelo estabelecimento de
relações qualitativas entre seus componentes, e as formas arquitetônicas pre
cisam, necessariamente, identificar-se com o contexto.
Esse processo multidimensional de qualificaçãoe identificação envolveo
estabelecimento de relações com o conjunto de elementos físicos, naturais e
culturais que caracterizam esse contexto e confere à paisagem uma dimensão
ambiental, uma visão crítica, quedecorre daintegração perceptiva - integração
entre todos os sentidos - e que é inerente à própria dimensão ambiental. É da
própria qualidade dessa dimensão, onde se entrelaçam signos pertencentes a
diversos meios de comunicação - sonoro, olfativo, visual, térmico, informacio-
nal —a transformaçãocontínua das estruturas da paisagem no tempo e no espa-
ço, acompanhando a velocidade vertiginosa de transformação do contexto.
O paisagismo é forçado a deslocar-se do campo visual - onde tinha o
papel de organizar espaços - para o campo ambiental - onde tem o papel de
qualificar espaços - alterando radicalmente a reflexão sobre a paisagem e, con
seqüentemente, os padrões estéticos do projeto.

A NOVA ESTETlCA

Esses padrões estéticos emergem sempre de questões determinadas pe


los princípios econômicos, políticos, científicos, filosóficos e artísticos que
refletem o momento e necessitam de um referencial que os sustente, aglutine
e explique, conferindo-lhes uma validade capaz de diferenciá-los dos modis
mos e das soluções meramente formais.
Se é verdade que as modificações culturais e comportamentais podem in
duzir uma saudável renovação da metodologia e das práticas de projeto, é igual
mente verdadeiro que essas modificações podem provocar perdas, sob certos
aspectos, na interação entre a obra e o usuário. O desmoronamento de princípi
os, dogmas e crenças exige a construção de novos paradigmas, tarefa nem sem
pre simples e imediata. O estranhamento, a obra difícil, manifestações da refle
xão e da procura desses paradigmas correm sempre o risco de não serem com
preendidos, de provocarem desinteresse ou, o que é pior, rejeição.
Diferentemente da modernidade, que efetuava sua reflexão a partir dos
princípios filosóficos que a explicavam e não a partir do confronto com a re
alidade ou com a materialidade do cotidiano, o momento atual utiliza esse con
fronto, ou melhor, toma esse confronto como ponto de partida para elaborar
sua reflexão. As normas inflexíveis da modernidade convidavam à crítica e à
ridicularização como caminho para a reação e a mudança. Na atualidade, a
ausência de normas rigorosas resulta no pastiche, na imitação, na cópia, no
fake reciclado como proposta de mudança. Essa atitude crítica é, porém, alta
mente intelectualizada, seletiva e elitista porque o humor e a sátira que lhe são
inerentes se perdem ou se transformam em simples as.sociações formais quando
suas referências não podem ser entendidas.
A prática de uma gestão territorial democrática, que parece delinear-se
no período atual, genericamente rotulado de pós-moderno, supõe a constitui
ção de um novo corpiis, de novas referências, reconhecidas por todos os cida
dãos e não apenas por um pequeno grupo de iniciados. Nesse sentido, a arqui
tetura e o urbanismo reclamam uma nova concepção de arte, uma abertura do
sistema de referências e de escolha de materiais e técnicas, a aceitação da exis
tência de atividades humanas pluralistas e contraditórias, conduzidas também
pela imaginação e não somente pela razão (Glusberg, 1987, p.81).
A inclusão de e.spaços livres públicos nas várias concepções urbanas ao
longo da história comprova a crença de que o contato com a natureza é sim
bólico e significativo na vida das pessoas e que a cidade não é uma entidade

245
independente dos processos naturais (Laurie, 1989, p.48).
Mudanças profundas no modo de vida e nas necessidades sociais nos
levam a reconsiderar a forma e o conteúdo desses espaços como parte de um
ambiente urbano em evolução, visando protegê-lo e assegurar sua continui
dade. A explosão demográfica, a natureza pluralística da sociedade, o amplo
espectro de interesses e conflitos emergentes entre classes sociais e as diver
sas necessidades de cada comunidade são considerações importantes na re
flexão sobre a paisagem e vão manifestar-se, no âmbito do projeto de paisa
gismo, através de novos valores e critérios.
A citação é uma forma de seleção e utilização de elementos extraídos
de fatos culturalmente significativos ou marcantes. A ação de qualificar os es
paços decorre da possibilidade de relacionar imagens que nos são oferecidas
pela observação direta do mundo real e imagens abstratas e interiorizadas que
nos são transmitidas pela cultura.
A consciência de que o projeto não tem a capacidade de alterar a reali
dade trouxe consigo a liberdade de trabalhar com o simbólico, com a riqueza
de significados, mesmo que nem sempre claros, conectando fatos pertencen
tes a diferentes planos de percepção, ampliando as possibilidades de interpre
tação, de compreensão do ritmo, da história, das contradições, das discrimi
nações, permitindo ver a realidade e alterá-la, não por meio do projeto, mas
pela modificação das relações sociais.
A outra face do simbólico é a referência do lugar, fundamental para
impedir a destruição completa das raízes e valores coletivos. A atual acelera
ção das mudanças apaga rapidamente a história, instalando uma espécie de
processo de amnésia coletiva. O sentido do lugar, a expressão dos processos
naturais originais anteriores à urbanização podem ser revividos em segmen
tos simbólicos do projeto, que nos relembrem onde estamos. Identificar ca
racterísticas e processos naturais e criar formas urbanas relacionadas com eles
pode resultar em espaços livres públicos estreitamente associados com cur
sos de água, planícies de inundação, terrenos frágeis, espaços que ressaltem a
interdependência entre processos urbanos e naturais.
A integraçãocomo entorno, possível apenas quando existe a disposição
prévia de entender como uma determinada porção da paisagem foi construída,
tem a importância fundamental de revelar aspectos da razão da intervenção. É
inerentea esse processo a escolha de um referencial, um elemento que, naquele
contexto, aglutine, explique e confiravalidade ao projeto. Esse referencial, que
não é meramente formal, mas estrutural, porque sua seleção decorre da leitura
do lugar, pode ser identificado pela observação atentada forma departicipação
do usuário e da comunidade. Espaços públicos urbanos rejeitados ou abando
nados, freqüentemente resultamda incapacidade de seu projeto de estimular o
interesse do usuário, manter sua atenção, permitir interações sociais e adaptar-
se a mudanças contínuas. O projeto não deve jamais impor, mas apenas sugerir
comportamentos. "E o intérprete que, no próprio momento em que se abando
na ao jogo das livres relações sugeridas, volta continuamente ao objeto para nele

246
encontrar as razões da sugestão, a mestria da provocação, a esta altura não des
fruta mais unicamente de sua própria aventura pessoal, mas desfruta da quali
dade própria da obra, sua qualidade estética" (Eco, 1991, p.l75).
Espaços livres públicos projetados para atender a um único propósito não
são apenas enfadonhose desagradáveis; são também incapazes de auto-enrique-
cimento, uma vez que excluem de sua utilização uma parte da sociedade. Espa
ços públicosflexíveis e menos rigorosamente definidos, adaptáveis a atividades
e propósitos sociais que possam vir a surgir futuramente, podem ser as soluções
mais sensíveis nas atuais condições de diversidade social e cultural.
A concretização, sob forma de objetos paisagísticos, dos valores e critérios
de um novo período histórico ocorre por meio da utilização de técnicas construti
vas e materiais que pertencem ainda ao período anterior.Assim, as formas arqui
tetônicas decorrentes da adoção de novos paradigmas são obtidas a partir de adap
tações dos materiais existentes, aí incluídas, no caso específico do momento atu
al, adaptações à velocidade de mudança das necessidades sociais.Talvez seja essa
dificuldade que leve os trabalhos de vanguarda a adotarem, na qualificação dos
espaços públicos, soluções provisórias, objetos removíveis, painéis e reformas de
fachada, numa tentativa de testar possibilidades de resposta às peculiaridades do
período. E possível que, a partir do momento em que os novos paradigmas en
contrem os materiais adequados à sua expressão, a estética que atualmente se in
sinua na fronteira entre a realidade e a imaginação revele sua verdadeira face.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Garzanti, 1988.
DEAR, Michacl. State, tcrritory and reproduction: planning in a post-modern era.
In: Tecnologia e gestão do território. Rio de Janeiro: UFRJ, 1988.
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Estética, Buenos Aires, n.5 e 6, p. 79-85, 1987.
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LEITE, Maria Angela Pereira. ^0^05 valores: destruição ou desconstrução. São Pau
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RAVERA, Rosa Maria. Estética y semiótica. Rosário: Fundacion Ross, 1988.

247
ana angélica dantas alves mayr
um olhar nas áreas
de Imigração germânica:
algumas considerações

Este trabalho é fruto de uma experiência na área de preservação de bens


culturais, mais especificamente no campo da arquitetura teuto-brasileira em
Santa Catarina.
A partir de 1985, quando comecei a pesquisar sobre a questão do patri
mônio histórico em áreas remanescentes da imigração germânica no Vale do
Itajaí, deparei-me com situações interessantes que aguçaram a minha curiosi
dade em relação a algumas questões; a quem afinal estava interessando a pre
servação das edificações teuto-brasileiras? Estava o processo de industrializa
ção afetando de maneira acentuada a rejeição à tradição ou haveria causas
menos visíveis em um primeiro olhar?
E partir desse questionamento que a nossa reflexão irá procurar desven
dar um pouco a maneira pela qual forma-se em uma comunidade de descen
dentes de imigrantes a imagem do seu espaço e do seu cotidiano.

ALGUNS ANTECEDENTES

A preservação de bens culturais no Brasil tem suscitado constantes po


lêmicas. De uma maneira geral, as iniciativas nesse setor ficam aquém da ex
pectativa e do esforço nelas depositado, o que gera preconceitos contra o cha
mado trabalho de preservação cultural. A associação desse tipo de empreen
dimento a um público consumidor de elite, capaz de desfrutar dos benefícios
intelectuais que esses trabalhos podem proporcionar, é um dos obstáculos en
contrados nessas tarefas.
Se procurarmos a raiz desse fato veremos que o mesmo remonta ao sé
culo 19. O afastamento entre a arte nobre e a arte popular, ocorrido a partir da

Ana Angélica Dantas Alves Mayrc arquiteta, Mestre em Ciências Sociais pela Universida
de Federal de Santa Catarina.

251
vinda da missão francesa para o Brasil, parece ter sido o ponto desencadeador
desse processo.
A orientação neociássica que marcou as atividades da missão chocou-se
com a tradição do barroco que predominava na arte brasileira daquela época.'
Este afastamento da arte popular e a elitização da mesma foram responsáveis
pelo pensamento de que arte e cultura são acessórios para poucos, coisa su
pérflua e de intelectuais.
E.ssa conseqüente elitização da arte aparenta ter-se mantido quando se tra
ta de preservar o legado cultural não só das minorias, como também de todos os
grupos que historicamente vêm sendo excluídos do processo de desenvolvimento
do País. Es.se fato permanece a contribuir para o pensamento de que arte e cul
tura são acessórios para poucos, coisa supérflua e de intelectuais.
Assim, sempre foi muito difícil a elaboração de conceitos abrangentes
que pudessem caracterizar nossa cultura. O que seria, afinal, a cultura nacio
nal? Quais os elementos culturais que possuiriam uma identidade nacional?
Quais seriam os bens culturais nacionais dignos de preservação, e quais seri
am os representativos da cultura brasileira?
O sentido vigente de patrimônio histórico aponta para a continuidade
desse descolamento entre o nacional e o popular que já estava na origem do
próprio trabalho de preservação no Brasil. Enquanto projeto, o que viria a ser
o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional refletiu o pensamento
de Mário de Andrade que nele procurou englobar todas as categorias de arte,
os artesãos, o folclore e a arquitetura, sem que uma se sobrepusesse à outra.
No entanto, o Decreto-lei n- 25, promulgado em 1937, não acompa
nhou o projeto de Mário de Andrade, deixando muitos pontos para uma
futura regulamentação nunca realizada, além de restringir-se a apenas aos
bens móveis e imóveis. Com o decorrer dos anos, a ênfase dada à preser
vação dos monumentos de pedra e cal aumentou. Concorreu em muito para
essa distorção o perigo de completa destruição que corria o acervo arqui
tetônico de diversas cidades brasileiras. A urbanização acelerada, o incha-
mento das cidades, a especulação decorrente do solo urbano e a própria

'"As decorações públicas para as festas oficiais que começaram a ser feitas pelos mestres
franceses, estavam em violento contraste com as características ingênuas das decorações bar
roco rococõ difundidas na época. Aqui chegando, a Missão Francesa já encontrou uma arte
distinta dos originários modelos portugueses e uma obra de artistas humildes. Enfim, uma
arte de traços originais que podemos designar como barroco brasileiro. No.ssos artistas, to
dos de origem popular, mestiços em sua maioria, eram vistos como simples artesãos, mas
não só quebraram a uniformidade do barroco de importação, jesuítico, apresentando contri
buição renovadora, como realizaram uma arte que já poderíamos considerar brasileira. As
novas manifestações neoclássicas, implantadas como que por decreto, iriam encontrar eco
apenas na pequena burguesia, camada intermediária entre a classe dominante e a popular, e
que via na aliança com um grupo de artistas da importância dos franceses, operando por for
ça do aparelho oficial de transmi.ssão sistemática da cultura, uma forma de ascensão, de clas
sificação. O neoclá.ssico,que na França era a arte da burguesia antiaristocratizante foi no Brasil
arte da burguesia a .serviçodos ideais da aristocracia, a .serviço do sistema monárquico" (Bar
bosa, 1978, p. 19).

252
questão da miséria- fizeram com que medidas de emergência fossem to
madas. A lenta e gradativa preponderância do trabalho dos arquitetos den
tro da atividade de preservação passou a uma completa dominação destes
em um cenário multidisciplinar em sua concepção.
Ainda dentro da limitação de atuação do referido órgão devemos ob
servar que a alocação de recursos e mesmo o interesse de pesquisa deram
prioridade às regiões remanescentes dos grande ciclos econômicos da nossa
história. Tanto assim que somente na década de 1970, quando foi criado o
CNRC (Centro Nacional de Referência Cultural), tendo à frente Aluísio
Magalhães, é que se propôs um projeto de pesquisa sobre as indústrias fa
miliares de imigrantes em Orleans, SC, o que significou uma abertura de
vista para a questão da produção cultural do imigrante no sul do País. Vale a
pena ressaltar que o CNRC foi uma iniciativa que partiu do antigo Ministé
rio da Indústria e Comércio e não do Ministério da Educação, o que é um
indicativo de que os meios disponíveis para a elaboração de pesquisas mais
abrangentes e de resultados mais efetivos permaneciam sem a agilidade ne
cessária para um trabalho de preservação mais amplo. Procurava-se liberar
a cultura de sua condição instrumental para a efetivação de outras políticas
setoriais consideradas prioritárias.
Dessa forma, os motivos emergenciais em um primeiro momento, e vá
rios outros na continuidade da atuação do órgão federal, responsável pelos ser
viços de preservação (atual IBPC), fizeram com que patrimônio histórico e
preservação de arquitetura fossem entendidos com o mesmo significado e, de
corrente dessa situação, deixou-se de preservar, valorizar e, porque não, revi
talizar, uma série de usos, hábitos e mesmo conceitos, podendo-se mesmo di
zer que a ausência dessas medidas acarretou uma amnésia coletiva em relação
aos símbolos de várias comunidades.
Na Região Sul, em especial as antigas colônias de imigrantes tanto ger
mânicos quanto italianos, deparamo-nos com uma realidade cultural distinta.
As suas construções fogem completamente do tradicional monumentalismo
dos edifícios de pedra e cal da arquitetura luso-brasileira e da história das eli
tes dominantes.
As cidades localizam-se em sua maior parte em regiões que, apesar do
processo de industrialização, guardam ainda uma forte ligação com a ativida
de agrícola. É comum a situação dos colonos-operários que convivem diaria-
-O c.siudo da.s baixas condições de vida cm áreas urbanas lem concluído que enquanto o pa
drão da habitação não for melhorado, medidas para a preservação ambiental ou mesmo ar
quitetônica surtem pouco efeito, já que o modelo de suces.so adotado por essas populações
marginais é o que se apresenta como moderno, porem com todos os vícios que esta moderni
dade acarreta. Dessa maneira modillcam-.se fachadas de casarios antigos, cimentam-se páti
os e jardins dentre outras reformas habituai.s, no sentido de dar um aspecto de contcmpora-
neidade às moradias e dentro do orçamento que lhes é permitido. Assim sendo, caberia ao
poder público alocar recursos no .sentido de prover uma melhoria destas zonas passíveis de
sofrer um trabalho de preservação de modo a manter o que for considerado de interesse pú
blico .sem provocar a saída dos moradores da área pela sua conseqüente valorização.

253
mente com a avançada tecnologia industrial, mas cujo cotidiano ainda lembra
muito os tempos dos pioneiros. Utilizam ainda ferramentas rudimentares, con
servam o regime de pequenas propriedades cultivando a roça de mandioca, ba
tata, milho e outros; possuem pequenas criações de aves e porcos que contri
buem para o sustento da família. Os ranchos guardam a disposição original
sempre próximos às casas.

A CASA DOS COLONOS

Durante a minha pesquisa constatei que a moradia foi uma das princi
pais mudanças que os pioneiros sofreram para adaptar-se ao seu novo modo
de vida. Os recursos para viver que os colonos dispunham quando aqui che
garam não lhes davam a possibilidade de usar seus conhecimentos anteriores
sobre construção de edificações, principalmente moradias. Porém, com o passar
dos anos, estes conhecimentos foram adaptados às condições que lhes foram
dadas nas colônias onde foram assentados.
A casa para o elemento teuto-brasileiro assumiu desde os primórdios da
colonização um grande valor simbólico. Ela representava o sucesso sobre a
mata virgem, transformada então no local onde a família se instalava após longa
viagem e grandes sacrifícios. Assumia quase as proporções do sagrado. Re-
portavam-se sempre a suas casas com respeito e veneração, pois ali seus pais
viveram, aprenderam o código de ética, de disciplina e todos os valores hu
manos e religiosos do seu grupo (Rambo, 1989).
Inicialmente construíram simples choupanas com os materiais disponí
veis no local. Erguida com quatro apoios verticais, formados por troncos de
árvores grossas, a estrutura de sua cobertura compunha-se de troncos roliços
que serviam tanto como caibros como vigas de sustentação. O telhado era
recoberto com folhas de samambaias ou de palmeiras, abundantes na região.
É importante ressaltar a quase inexistência de pregos; toda a construção era
amarrada com cipós. Cozinhava-se ao ar livre, pois havia sempre o perigo de
incêndio. A partir daí começava a derrubada do mato para a construção da casa
propriamente dita. A família, nesse período, ficava recolhida no barracão de
imigrantes (Weimer, 1983).
A partir dessas choupanas, eram erguidas as casas primitivas ou ranchos,
que mediam em torno de 40 metros, e, em sua seqüência, as casas definitivas
em enxaimel que formaram a expressão da arquitetura da imigração germâni
ca no Vale do Itajaí.
É importante observar que a maneira como a colonização sedeu levava o
imigrante a construir uma forma de moradia visivelmente inferior à que pos
suía em sua terra natal. Sua jornada de trabalho consumia-lhe de 12 a 14 horas
por dia, com toda a família trabalhando no terreno que lhe fora destinado. As
sim, essa casa primitiva deveria servir apenas como ponto de parada para a la-
buta diária, característica dos tempos pioneiros. Sua função era abrigar a famí-

254
lia contra a chuva ou o sol, guardar os mantimentos e servir como local para
dormir. Outras causas apontadas para a precariedade dessas casas eram a ausên
cia de mão-de-obra especializada em construção e a insuficiência de recursos
financeiros para edificações mais elaboradas nestes primeiros tempos. Eram cons
truções formadas por painéis estruturais de madeira, previamente falquejadas, e
montadas segundo sistema próprio de encaixe. Peças inclinadas faziam o con-
traventamento das paredes, dando estabilidade às construções.As paredes eram
vedadas com tijolos assentados com argamassa de barro e areia. Na verdade,
formavam modelos de casas "pré-fabricadas", pois podiam ser desmontadas e
transportadas para outros lugares, mostrando que apesar da simplicidade cons
trutiva tratavam-se de um engenhoso processo técnico, que muito bem se adap
tou às condições e às necessidades dos colonos na região.
Apesar do conhecimento da técnica pelos imigrantes, podemos afirmar
que certamente esta não era dominada por completo. Isso ficou evidenciado
pelo superdimensionamento da madeira utilizada nos painéis estruturais e pelo
uso da taipa de mão para o fechamento das paredes em algumas casas. Com a
evolução das edificações observou-se a gradativa supressão das peças de ma
deira até sua completa extinção nas casas de alvenaria autoportante. As casas
enxaimel trouxeram consigo muitas melhorias no padrão de moradia do colo
no. O piso de madeira apoiado em baldrames passou a ser suspenso do chão,
fazendo com que a casa fosse ventilada por baixo, garantindo durabilidade para
sua estrutura de madeira. As casas passaram também a ser divididas em cô
modos, geralmente quatro, cujas paredes não iam até o telhado, ficando um
espaço superior livre. Este, na medida em que se começou a utilizar forro de
madeira, passou a servir como sótão, depósito ou mesmo como um quarto extra.
A sala era a parte principal da casa, constituindo o maior cômodo. Os quartos
eram pequenos e inexistia o corredor como elo de ligação. As portas muitas
vezes eram ainda simples cortinas, exceção feita à porta principal, que com o
tempo ganhou cada vez mais importância.
As janelas eram de madeira e em seu desenvolvimento passaram a ter duas
folhas com três partes de vidro cada. Eram pintadas invariavelmente de branco
ou verde. O telhado de duas águas foi em sua maior parte prolongado para fren
te, formando uma varanda (o que foi uma assimilação das construções brasilei
ras e adaptação às condições climáticas) que posteriormente era parcialmente
fechada, originando mais um cômodo. Também muitas vezes foi prolongado
para trás, a fim de abrigar a cozinha, que mantinha ligação com o jardim e o
quintal. As telhas utilizadas eram as do tipo "rabo de castor", chatas e planas,
colocadas como"escamas de peixe", e substituíram as tabuinhas da fase anteri
or. Esse tipo de telhado exigia uma forte inclinação, o que gerou telhados bas
tante pontiagudos, de baixos beirais. Por isso, não era incomum que os pisos
das cozinhas, localizadas na parte posterior da casa, fossem rebaixados a fim de
permitir a utilização daquele espaço. Externamente, localizavam-se o banheiro
e o forno de tijolos. A primeira casa, ou casa primitiva, passou com isso a ser
utilizada como despen.sa ou cozinha. Algumas dessas casas apresentam a cozi-

255
nha como uma pequena casa enxaimel ao lado da casa principal, sendo interli
gadas por um corredor. No caso, a famíliajá previa a construção dessa maneira,
erguendo primeiro a casa menor e nela habitando até a outra ficar pronta.
É interessante observar queo fechamento com tijolos acabou portornar-
se uma verdadeira obra de arte. Aproveitando a diferença de tonalidade da quei
ma, eram feitos com eles os mais diversos desenhos geométricos, nas paredes
frontais e laterais. As paredes, no caso deTimbó, raramente foram rebocadas,
e esses desenhos passaram a fazer parte da arquitetura das casas.
Por último, em uma fase final as casas ganham mais conforto e requin
te. O desenvolvimento das cidades, a necessidade de maiores espaços para a
instalação de casas comerciais e, conseqüentemente, o aumento de status de
alguns habitantes fazem com que novos modelos de construções sejam pro
curados. Podem-se distinguir três tipos de casas dentro dessa fase: casas co
loniais das cidades, casas do tipo "senhor feudal" e casas tipo mansarda.
As casas coloniais das cidades eram pequenas, com uma planta semelhante
à das casas enxaimel. As paredes eram rebocadas, e quando necessária a utiliza
ção de pilares, eram estes de tijolos e ficavam embutidos na alvenaria. Eram ainda
utilizados adomos de estuque nas fachadas, e a pintura de fundo geralmente era
de cor forte, contrastando com as cores claras com que eram pintados os frisos e
outros elementos decorativos. Seu uso foi estritamente residencial.
As casas do segundo tipo possuíam forma retangular e grandes dimen
sões. Sua utilização era mista: prédios escolares, hotéis, câmara municipal e
até fábricas. Possuíam dois pisos e telhados de duas águas, formando uma cons
trução imponente e isolada.
As casas do tipo mansarda foram as que mais se difundiram. Possivel
mente trazidas pelos alemães emigrados após a Primeira Guerra Mundial, sua
especificidade é basicamente dada pela forma do telhado que amplia a utili
zação ao sótão. São casas de grandes dimensões situadas em meio a jardins.
Esse tipo de casa espalhou-se tanto na cidade quanto no campo.
Com essa tipologia de moradia as cidades da região passaram a ter um
aspecto de urbanidade em relação aos adensamentos, mas também pelas mo
dificações que o novo modo de vida industrial gerou em relação às expectati
vas da moradia. Considero que a partir desse momento esses núcleos engaja
ram-se a propagar uma imagem de prosperidade e desenvolvimento que se
mantém até os nossos dias. Tanto assim que data desse período o início do
acobertamento das construções enxaimel com reboco, ainda que as casas se
situassem em áreas rurais, em uma tentativa de mudar-lhes a "feição" de casa
de colono, para uma casa modelo da cidade.
O enxaimel, sem sombra de dúvida, representou a fase de maior elabora
ção e criatividade construtiva deste período, se considerarmos a engenhosidade
necessária para fazer tais casas dentro de condições completamente adversas,
além de ser um marco no processo de aculturaçãodos colonos.As construções
enxaimel são consideradas hoje como típicas da colonização germânica no nor
deste de Santa Catarina. Se em um primeiro momento eram erguidas tanto na

256
cidade quanto no campo, com o desenvolvimento das relações socioeconômi-
cas, estas foram-se restringindo à área rural e até hoje são utilizadas. Formam,
portanto, a expressão arquitetônica da imigração nessa região.

MANUTENÇÃO DE COSTUMES: UMA RELAÇÃO CONFLITUOSA

Dentro de nossa análise cabe ainda ressaltar alguns pontos que dizem
respeito aos costumes da região.
Dentro da relação das casas com os colonos, o sistema de herança pelo
qual o último filho a casar herdava a terra, a casa e as benfeitorias ainda é
mantido por muitos na área rural devido ao tamanho reduzido dos lotes e à
escassez de terras disponíveis.
Devido ao estudo ter-se centralizado em uma área de imigração germâ
nica percebemos a existência de uma congruência entre a manutenção de há
bitos dos colonizadores germânicos e dos colonizadores italianos. A região
do Médio Vale do Itajaí também teve parte de sua colonização feita por italia
nos. Estes, predominantemente rurais, formaram um cinturão agrícola primei
ramente ao redor de áreas de colonização germânica, configurando depois novas
áreas de penetração.
Essa congruência confirma-se na medida em que alguns estudos que vêm
sendo também realizados nas áreas de imigração italiana detectam muitas se
melhanças quanto à manutenção de costumes (Lewgoy, 1992). Valores tais
como trabalho, terra e família, a abnegação para a estruturação da comunida
de e da atividade econômica local ainda são tidos como primordiais na vida
dos habitantes locais e exaltados na memória dos antepassados. Existe inclu
sive um certo fechamento da comunidade em relação à contratação de mão-
de-obra "brasileira", uma vez que os descendentes de italianos são considera
dos como mais trabalhadores. Esse fechamento também foi detectado nas re
giões de imigração germânica, sendo que o preconceito também se estendia
aos italianos (Hering, 1985).
Um outro hábito, o da comensalidade, que também parece ser comum
nessas áreas de imigração, chama a atenção de qualquer pessoa que visite essas
áreas.A mesa sempre é muito farta, com vários tipos de pratos servidos na mes
ma refeição (arroz, aipim, batatas, saladas, carnes, massas e outros pratos típi
cos). A refeição é observada quase que de forma ritual na vida dessas pessoas.
Os horários são obedecidos rigidamente e os visitantes devem ser servidos e co
mer com fartura. Como Lewgoy observa, a abundância de^omida acaba por
denotar uma negação por parte dos descendentes desses grupos da situação de
dificuldades, de penúria vivida nos primeiros tempos pelos colonizadores.
Outros costumes também continuam a ser observados tais cpmo a pre
ferência por casamentos dentro do mesmo grupo étnico (ainda que anualmen
te essa tendência venha diminuindo); a manutenção da comunidade religiosa
como o centro da vida comunitária, uma vez que a igreja é a base de coesão e

257
de reprodução das relações sociais; e a preservação da língua materna pelos
mais idosos.
Concomitante a esses hábitos, essas pessoas consideram-se brasileiros
quando perguntados sobre a sua nacionalidade, apesar de no dia-a-dia auto
denominarem-se alemães ou italianos. Essa duplicidade de imagem que pro
jetam de si próprios pode ser explicada a partir de dois elementos: a origem
(direito de sangue) e a cidadania brasileira (pela naturalização ou pelo direito
de solo). Duas esferas de ação assim se delimitam: a comunidade étnica, onde
devem comportar-se segundo as tradições de seu grupo, e a outra, mais abran
gente, onde devem agir como cidadãos brasileiros (Seyferth, 1989).
Dessa forma, apesar de preservar-se nesta região hábitos tidos como
tradicionais tais como a língua, comida e outros, constatamos uma grande
dificuldade, principalmente entre os membros mais jovens dessas comuni
dades, em conviver hoje com a dualidade que o seu dia-a-dia se lhes apre
senta, com o seu próprio legado cultural. Muitos se recusam a usar a língua
materna quando reunidos em grupos (e quando o fazem, é sempre em tom
de zombaria), restringindo o seu uso em casa ou à presença de pessoas de
mais idade. Aos termos colono e colônia são atribuídas imagens tais como
rudeza, ignorância, atraso e outras que são negativas quando confrontadas
com a imagem da modernidade que é amplamente difundida pelos meios de
comunicação.
Há, na verdade, uma luta para superar o estigma de ser "colono", estigma
esse imputado pelo próprio Estado. Devemos lembrar que durante o período de
Vargas (1937) a campanha de nacionalização levada a termo fez com que o pre
conceito em relação aos descendentes de imigrantes se intensificasse.
Dessa maneira, hoje esses grupos procuram espaço dentro do cenário
sociopolítico brasileiro. Para isso, muitas vezes rejeitam o que é tradicional
mente seu para aceitar o tradicionalmente dominante, convivem com dois tem
pos simultaneamente: o passado que está presente no seu cotidiano e a busca
pelo novo que está presente nos meios de comunicação e no processo indus
trial. Assim, em relação às edificações da imigração, são atribuídas lembran
ças da tradição, terra, família, coisa antiga, simplicidade e colônia, que re
metem à origem colonial dessas regiões. As casas modernas associam valores
como comodidade, perfeição, luxo, novo, ser mais gente, à representação de
um salto qualitativo no padrão de habitar.
O conceito de liahitus de Bourdieu (1987) foi aqui de grande valia. Se
gundo esse autor, não só as ações mas também os interesses, os gostos, a ética
e a estética são produtos das relações sociais e tendem a reproduzir-se dentro
destas mesmas relações. Este conceito também nos ajuda a melhor compre
ender a tendência que os mais jovens, e mesmo aqueles que adquiriram .s7í/ím.v
de cidadão urbano ne.ssas comunidades têm em seguir os comportamentos que
lhes são dados como exemplo dentro da sociedade da qual o indivíduo faz parte,
em assumir sua maneira de pensar e interiorizar todo o lado simbólico, tudo o
que manifestamente integra uma cultura.

258
CONCLUSÕES

Na formação da imagem que esses grupos têm de si próprios e do meio


em que vivem, algumas considerações podem ser tecidas. A primeira delas é
no que diz respeito à temporalidade.
A temporalidade desses grupos é específica. Não segue um ritmo linear
e sim conjuga-se com tempos diferenciados e simultâneos que interagem ao
longo dos anos. Para entendermos o sentido de desenvolvimento e o que vem
a ser hoje o sentido de preservação cultural e desenvolvimento urbano para
essas comunidades é importante que esse ponto seja levado em consideração.
Dessa forma muitas vezes a sua concepção de preservação de arquitetura e cons
trução de novos edifícios pode ser considerada equivocada por técnicos espe
cialistas no assunto. Muitos são os casos em que os descendentes de colonos
ao ter a sua condição material melhorada procuram reinterpretar as suas cons
truções tentando dar-lhes um aspecto "novo", "moderno" a partir da alteração
de alguns elementos de fachada, tais como reboco, empenas e outros.
Um segundo ponto que pude constatar é que somente há pouco tempo
as áreas de imigração no sul do Brasil passaram a ser alvo de pesquisas, em
sua maior parte empíricas (cadastramentos, tombamentos). As iniciativas fo
ram de caráter regional, ainda que amparadas pelo órgão oficial, e os estudos
se centralizaram na preservação da arquitetura das edificações, deixando de
considerar a interação dos habitantes com as mesmas. Talvez decorram daí
muitas das frustrações em relação às iniciativas de preservação que não con
seguem ler respostas positivas rápidas e imediatas por parte da população. Só
agora percebe-se a necessidade de um enfoque mais sociológico e antropoló
gico nas mesmas.
A política do IBPC, por sua vez, vem-se revelando ineficiente, na medida
em que continua a privilegiar apenas o aspecto formal das construções, exclu-
dente ao não valorizar de forma eqüitativa esse patrimônio diferenciado daque
le considerado como "oficial", e autoritária por centralizar as decisões na esfera
federal. Ao dar valor secundário ao legado dos imigrantes no sul do País, a polí
tica oficial não consegue fazer com que as próprias comunidades vejam a possi
bilidade de suas construções terem um sentido atual e de reconhecer a impor
tância das mesmas, e acaba por contribuir para o seu desaparecimento. Como
chamava atenção Santos (1986), parece que toda a iniciativa oficial não só no
campo da preservação como também em relação aos modelos de planejamento
urbano implantados no país foram carregadas de uma tentativa de promover os
espaços de nossas cidades a uma dignidade, como se essa lhes faltasse.
Com efeito, pode-se assim assistir à evolução de cidades como Blume
nau, onde se destrói o original, para construir o pastiche, valorizado em termos
imobiliários, que lembre uma falsa Alemanha; a Oktoberfest deixa de ser uma
festa regional, para transformar-se em uma festa de consumo nacional que ano
após ano gera imensos transtornos para a cidade sem infra-estrutura suficiente
para abrigar o acréscimo de população que ocorre na data do evento. Mas o im-

259
portante é manter a imagem do carnaval alemão no Brasil, ou seja, a ordem de
um primeiro mundo presente na desordem do Terceiro Mundo. Podem-se ver
ainda praças e outros logradouros públicos com pavimentação em pedra portu
guesa imitando as calçadas da praia de Copacabana no Rio de Janeiro, cidade
exportadora de modelos de modernidade para o resto do País.
Com efeito, o trabalho de preservação do legado histórico-cultural da imi
gração germânica e italiana no sul do Brasil deixa de ser assim apenas uma
tarefa de manutenção de antigas construções. O trabalho, na verdade, indica a
direção do estudo multidisciplinar, em especial à incorporação da etnologia
nas pesquisas, e da operacionalização das temporalidades locais com as ne
cessidades prementes, ainda que de ordem simbólica, que esses grupos sen
tem em relação aos seus espaços.
A questão fundamental a ser enfrentada é o direito ao reconhecimento
das minorias como parte efetiva da Nação, a fím de que esses cidadãos pos
sam considerar-se como tal na plenitude do termo e que os seus símbolos se
jam reconhecidos como parte constituinte de uma identidade nacional.
A dinâmica de memória coletiva não só se refere a um grupo, mas a uma
nação em sua totalidade. Somente assim podemos criar espaços para novos
patrimônios.
Uma última questão que considero importante é a mudança do eixo de
reflexão em cima da idéia de impactos do desenvolvimento. Pelo que pude
observar na minha pesquisa, impacto não parece ser o termo ideal quando se
trata de uma área como a estudada. Na verdade, existe uma aceitação muito
forte de toda essa modernidade que foi exportada pelos mais diversos veícu
los de comunicação. O que houve foi um processo de mutação social onde os
agentes do desenvolvimento também continuam sendo os agentes da preser
vação. Considero que o entendimento dessa ambigüidade é fundamental para
a elaboração de planos urbanos e regionais, de forma que haja uma superação
dos preconceitos, não só por parte da população em relação aos seus símbo
los e seus espaços, mas também por parte dos técnicos que planejam as inter
venções para essas áreas.

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261
Í'lV-\''í'>i^j;j/v'tó

u-v ly

ãm.

yiíií-
maria da penha smarzaro Siqueira
grande vitória:
crescimento e pobreza

O PROCESSO DE MODERNIZAÇÃO ECONÔMICA DO ESPIRITO SANTO


O Estado do Espírito Santo, embora situado na área geoeconômica con
siderada a mais desenvolvida do País (Região Sudeste), de cujo dinamismo
tem dependido o crescimento da economia nacional, por suas próprias carac
terísticas socioeconômicas, não acompanhou esse dinamismo regional, man
tendo suas tendências de região subdesenvolvida. Talvez pela sua inexpressi
va força política dentre as demais unidades do País, o Estado passava desper
cebido no grande mapa do Brasil e nas decisões da política nacional. Consti
tuía, entretanto, uma área crítica, cujos problemas econômicos e sociais ten
diam a agravar-se no decorrer do tempo.
Ficava em uma situação indefinida e desfavorável, entre a prosperidade
do Sul e a pobreza do Nordeste. O isolamento em que estava colocado e a au
sência de infra-estrutura disponível não lhe propiciavam condições de cresci
mento. A economia era estagnada e seus índices de crescimento eram peque
nos em relação às médias do País.
Até 1960, o Espírito Santo ainda tinha uma economia basicamente agrí
cola. Este setor gerava, direta e indiretamente, a maior parte da renda, sendo o
setor industrial responsável apenas por 5,9% da renda interna do Estado.
A base agrária que caracterizavaa economia capixaba não permitia am
pliar os limites excessivos que persistiam na tributação estadual. O Espírito
Santo dependia da economia cafeeira, que não só era geradora predominante
mente da renda estadual como também direcionava a estrutura econômica da
produção da lavoura ao beneficiamento, transporte, armazenagem e exporta
ção. Essa cultura determinava com suas oscilações de produção e mercado o
ritmo de crescimento da economia regional (Lopes Filho, 1969, p.20-21).
O grau de industrialização era insignificante e intimamente ligado à

Maria da Penha Sniarzan) Siqueira é professora adjunta no Depto. de História da Univer


sidade Federal do Espírito Santo c Doutora em História Econômica na USP,

265
transformação dc produtos primários. A inexpressividade do crescimento in
dustrial não se fundamentava apenas na estrutura econômica do Estado. Ali
adas à questão econômica estavam a precariedade das ligações viárias com
outras regiões geoeconômicas do país, a insuficiência da oferta de energia
elétrica e a própria limitação do mercado consumidor. Essa situação limita
va as perspectivas de recursos tributários do governo local, limitando tam
bém sua ação investidora.
Ne.ste contexto, vamos ver que o Espírito Santo, até esta época, não es
tava inserido nos programas desenvolvimentistas do governo federal, tendo
em vi.sta que concentravam-se os projetos de desenvolvimento nos centros mais
adiantados, caracterizados por elevados índices de emprego e renda. Enquan
to no Brasil, até o final da década de 1950, as relações de produção já eram
capitalistas, o E.spírito Santo, embora inserido na Região Sudeste e articulado
com o bloco cafeeiro que comandava as relações capitalistas em nível nacio
nal, continuava com relações de produção de predomínio familiar desenvol
vidas em pequenas propriedades. Com esta realidade, o Estado capixaba es
tava incluído na região considerada subdesenvolvida no quadro de desenvol
vimento desigual do capitalismo brasileiro imposto pela inserção dependente
da economia no mercado capitalista mundial.'
Este quadro se repetia nas demais regiões atrasadas do País e se agravou
no Espírito Santo devido à dependência em relação ã economia cafeeira.
Esse processo só vai ser alterado nos anos 60, quando a economia passa
por uma intensa transformação, provocando mudanças radicais no quadro so-
cioeconõmico estadual. Nesta fase, a crise do café, motivada pelo declínio dos
preços relativos e pelos programas de erradicação, vai ser decisiva no proces-
.so de mudança. Essa crise afetou profundamente a estrutura econômica esta
dual, até então dependente da monocultura cafeeira. Com isso, a economia
agroexportadora, que em nível nacional já vinha ficando em segundo plano
desde 1930, com as mudanças provocadas pela crise cafeeira nos anos 60 passa
definitivamente para segundo plano, cedendo ao capital industrial a posição
de centro da economia brasileira.
A nova política cafeeira fundamentou-.se nas diretrizes traçadas pelo plano
diretor do Grupo Executivo da Recuperação Econômica da Cafeicultura -
GERCA (1962), que teve três linhas básicas: promoção dos cafezais antieco
nômicos, diversificação das áreas erradicadas com outras culturas e remoção
de parcelas dos cafezais.
O plano GERCA foi implementado em duas fases e atingiu todas as áre
as produtivas do País, sendo que algumas delas tiveram um número proporci
onalmente maior de pés erradicados, como foi o caso do Espírito Santo. En
quanto em Minas Gerais, São Paulo e Paraná foram erradicados, respectiva
mente, 33,3%, 26,0% e 28,4%, no Espírito Santo foram erradicados 53,8%

' GOVERNO DO ESTADO DO ESPIRITO SANTO. Instituto dc Desenvolvimento Estadual.


Estudo ancdílico da economia capixaba. Vitória, 1080, p. 8.

26G
dos cafezais que ocupavam 71% da área cultivada com café.-
Os efeitos dos planos geraram conseqüências graves no Estado capi
xaba como, por exemplo, o empobrecimento econômico e um intenso pro
cesso de expulsão da população do campo para as áreas urbanas. Sabe-se
que a questão da estrutura fundiária está intrinsecamente relacionada com
os efeitos sociais negativos da erradicação, principalmente tratando-se do
Espírito Santo, onde predominavam pequenos e médios proprietários apoi
ados, principalmente, na mão-de-obra familiar. Foram estes os agricultores
mais atingidos pelo plano.
A diversificação das áreas erradicadas por outras culturas, que objetiva
va ocupar a força de trabalho desempregada e aumentar a produção de alimen
tos, foi pouco significativa em praticamente todos os estados produtores de
café, tendo sido relevante a ocupação das áreas liberadas por pastagem/pecu
ária. Principalmente nas regiões onde predominava a pequena produção fa
miliar, tornou-se mais expressiva a substituição do café pela pecuária.
A pecuária bovina passou a ganhar extraordinário dinamismo, ocupan
do 70% da área total liberada no Espírito Santo, o que provocou um grande
êxodo rural. As atividades agrárias que se expandiram após a crise da cafei-
cultura não foram suficientes para absorver toda mão-de-obra desempregada,
fato que agravou o processo migratório em direção à Grande Vitória, que pas
sou a receber um elevado contingente de mão-de-obra desqualificada.
Conforme pesquisas elaboradas pela Secretaria de Planejamento do Es
tado do Espírito Santo, o programa de erradicação liberou, de uma só vez, 50
mil trabalhadores rurais, o que correspondeu aproximadamente a 150 mil pes
soas. Trabalhadores rurais que se alojaram na cidade em busca de oportunida
des de trabalho.
Este processo é o marco inicial da implantação da modernização e das
relações caracteristicamente capitalistas no Espírito Santo, quando se dá a de-
sestruturação do modelo primário-exportador que vinha garantindo, há quase
um século, o dinamismo da economia estadual, em função de um novo pa
drão de acumulação - o padrão industrial.
Assim, de acordo com a nova lógica econômica, o Espírito Santo se inte
grava no mercado nacional através de um intenso processo de industrialização.^
O Estado passou a criar estratégias (crédito agrícola, isenção de impostos,
etc.) para a acumulação do capital apoiado em políticas mais amplas do modelo
econômico, buscando viabilizar a implantação do complexo agroindustrial.
Referindo-se a este processo e à sua ocorrência no Espírito Santo, res-

"A primeira fase da erradicação ocorreu no período de julho de 1962 a julho de 1966, duran-
le o tjual foram erradicados 723,5 milhões de pés de café. A segunda fase, enlre agosto de
1966 e maio de 1967 quando foram erradicados 656 milhões de pés. GOVERNO DO ESTA
DO DO ESPÍRITO SANTO. Instituto Jones dos Santos Neves. Articulaçãosócio-econômi-
ca do Estado do Espírito Santo. Vitória: 1987, v. 1, p. 15-16.
•'GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Secretaria de Planejamento. Migrações
internas no E-spirito Santo. Vitória: 1979, p. 2.

267
saltamos uma afirmação extraída de um trabalho elaborado pelo Instituto Jo-
nes dos Santos Neves:

Daquele momento em diante a agricultura muda o papel, passa a atuar como


fornecedora de alimentos e matérias-primas para a indústria e, ao mesmo tem
po, constitui-se como amplo mercado consumidor dos produtos primários in
dustriais. A esta nova articulação agricultura-indústria dá-se o nome de com
plexo agroindustrial, onde a agricultura, crescentemente, passa a atuar como
ramo da indústria, ou seja, a sua dinâmica passa a estar condicionada à acu
mulação de capital ao nível da indústria que agora submete, direta e indireta
mente, toda economia.**

No Espírito Santo, a primeira forma de integração da economia capixa


ba com a economia nacional deu-se através deste processo de modernização
da agricultura, empreendida majoritariamente por pequenos capitais locais e
favorecida pelos incentivos fiscais.
É importante destacar que em decorrência da própria estrutura produti
va agrária que predominava no Estado até o início dos anos 60, não se consti
tuiu no Espírito Santo um capital agrário significativo. A hegemonia aqui coube
ao capital comercial. O capital industrial, por outro lado, só adquiriu algum
peso a partir do final de 1960, mesmo assim, timidamente, até a entrada dos
capitais externos.^
Esse recente processo de modernização capitalista da agricultura brasileira
predominanteem regiõesconsideradasatrasadas, ligadoà expansãoda urbaniza
ção, é talvez o mais importante fator na transformação da estmtura agrária e o res
ponsável pelo agravamento das condições de vida nas cidades brasileiras (Cano,
1985, p.29).
Este modelo favoreceu uma grande concentração fundiária e alterou as
relações de trabalho no campo, passando-se ao predomínio da mão-de-obra
familiar para o predomínio do trabalho assalariado temporário.
Paralelamente a este processo de mudança da economia tradicional para
uma estrutura produtiva concentrada na indústria de transformação, ocorrem,
no Estado, investimentos públicos realizados na construção da infra-estrutura
(abastecimento energético, áreas de transportes e comunicação). Criaram-se
mecanismos objetivando agilizar o reaparelhamento administrativo do Esta
do, que chega em 1975 com uma infra-estrutura administrativa reaparelhada
e todo um sistema de incentivos fiscais e de financiamento em ação.
E nesta etapa que vái ocorrer a segunda forma de integração do Espírito
Santo ao sistema capitalista nacional. Trata-se da implantação, no território

^GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Instituto Joncs dos Santos Neves. Ar//-
culação sócio-econôinica no listado do Espírito Santo. Vitória: 1987, p. 12.
'UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO. Núcleo de Estudos e Pe.squisas.
Alfíuns aspectos do desenvolvimento econômico do Espírito Santo IQ3() - IQ70. Vitória:
198^4, p. 38.

268
capixaba, mais precisamente na Grande Vitória, de projetos de grande porte
voltados para os setores de transformação, principalmente de atividades in
dispensáveis à complementação e integração do parque produtivo nacional (mi
nerais de ferro, celulose, madeira, alimentos e, finalmente, siderurgia)/'
Esses projetos, caracterizados como "Grandes Projetos Industriais de Im
pacto", vão complementar o ciclo de inserção do Espírito Santo no processo
de modernização da economia nacional. Nesta fase vai predominar o grande
capital, que detém a hegemonia da expansão econômica, porque vai dominar,
praticamente, todos os setores da atividade econômica e imprimir a esses se
tores um ritmo acelerado de crescimento.
Assim, com a expansão ocorrida sob o comando do "grande capital",
composto em sua maioria de grandes grupos estatais e privados tanto nacio
nais como estrangeiros, consolida-se uma nova forma de articulação do Espí
rito Santo com o sistema produtivo nacional, com uma indústria competitiva
integrada à dinâmica da economia brasileira.
Não há dúvidas que se verificaram profundas transformações no siste
ma industrial estadual, que aumentaram significativamente a importância do
setor em termos de geração de renda e empregos. Da geração de 5,9% da ren
da interna em 1960, o setor passou a 26,4% em 1975 e 40% em 1984.
Entretanto, apesar da relevante contribuição do setor para formação da
renda interna, não podemos dizer que tenha ocorrido o mesmo efeito, tratan
do-se de empregos diretos, bem como a participação do setor, em termos de
geração de tributos para o setor público. Isso se deve às características especí
ficas do setor, que absorve tecnologias modernas e automatizadoras do pro
cesso produtivo, o que, aliás, apresenta-se como uma tendência irreversível.
Quanto à geração de tributos para o setor público, o setor, em decorrência de
sua especialização na produção de produtos para exportação, que ficam isen
tos de tributação, produz uma contribuição fiscal baixa, o que dificulta a rea
lização dos indispensáveis investimentos públicos nas áreas sociais (Rocha;
Buffon, 1986).
Aliada a esse modelo, a urbanização emerge, inicialmente como decor
rência e condição do processo de consolidação capitalista, para efetuar-se em
uma fase mais recente em um condicionador deste mesmo processo.
Assim, a nova ordem de crescimento econômico, para integração do mer
cado nacional, fundamentada na desestruturação agrária, implantação de in
dústrias pesadas, concentração de rendas, utilização de técnicas poupadoras
de força de trabalho nos diversos setores produtivos e na elevação dos desní
veis sociais, que se constituem, nesse espaço de tempo tão curto o que é hoje
o pólo urbano industrial da Grande Vitória.

'"ESPÍRITO SANTO SÉCULO 21. Extraíificação social e atomização social. Estrutura so


cial de classes sociais no EspíritoSanto. Vitória: UFES,GERES, BANDES, COPLANe Rede
Gazeta, s. d., p. 47.

269
A CIDADE EA POPULAÇÃO
NO NOVO CONTEXTO URBANO INDUSTRIAL

A caracterização da atual estrutura da rede urbana da Grande Vitória e a


distribuição da população nos aglomerados dos municípios metropolitanos es
tão intimamente vinculados ao processo de crescimento, que assumiu donii-
nância no Espírito Santo a partir do final dos anos 60, articulado diretamente
com a lógica de desenvolvimento inerente ao sistema capitalista nacional.
Resgatando um pouco a análise anterior que procura abordar tal temáti
ca, o que se apresenta como fundamental para compreender este processo é a
ruptura do sistema de acumulação que prcponderava na economia capixaba,
seguido da implantação de um novo padrão de acumulação, ou seja, a desarti
culação da rede urbana decorreu de mudanças no espaço rural. Neste sentido
o que .se con.solidou foi o espaço urbano-industrial centralizado na aglomera
ção da Grande Vitória (Geiger, 1 p . 126-130).
O vulto dos empreendimentos industriais altamente concentrados na re
gião da Grande Vitória elevou de modo considerável a economia do Espírito
Santo e da aglomeração urbana, não levando em consideração seus efeitos in
diretos. Apesar das características próprias da cidade e das vantagens locais
para instalação de grandes projetos industriais, eles se de.senvolveram sem que
ocorresse tanto em nível federal quanto estadual uma política urbana global e
eficiente.
A industrialização acelerou a migração aumentando rapidamente o nú
mero de trabalhadores que se fixaram na cidade em busca de novas oportuni
dades de emprego. A região da Grande Vitória não po.ssuía infra-estrutura para
receber o grande fluxo migratório de pe.ssoas do interior, e de outros estados,
que se deslocavam em sua direção, formando um elevado contingente de mão-
de-obra pouco qualificada.
A economia urbana, embora tenha-se expandido, não con.seguiu ampa
rar o êxodo rural que se intensificou com as modificações ocorridas na estru
tura agrária, colocando em evidencia o problema da miséria e do desemprego
rural. Este proces.so, apoiado na expansão industrial, transmutou-se na mi.sé-
ria e no de.semprego urbano, ampliando ainda mais o chamado "caos urbano"
verificado na Grande Vitória a partir da década de 1970.
Inicialmente, a mão-de-obra absorvida era de liaixaqualificação, proveni
ente do interior do Estado, e o nível de investimento na Grande Vitória não
contemplava a geração de uma oferta de empregos capaz de absorver a mão-
de-obra migrante em .sua totalidade. O máximo que ocorreu, a curto prazo,
foi o aproveitamento desta mão-de-obra na fase inicial da construção dos gran
des projetos.
O processo de migração em direção ã Grande Vitória se intensifica na
década de 1960, ganha força e se acelera nas décadas seguintes, quando o Es
pírito Santo transforma-se também em centro de migrações externas. A tabe
la 1 mostra o movimento da população capixaba durante o período de 1950 a
1990, onde podemos ob.servar a grande mudança que ocorre a partir de 1960.

270
Tabela 1
EVOLUÇÃO DA POPULAÇÃO RURAL E URBANA
DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO 1950-1990

Anos População População % População %


total urbana rural

Í95Õ 957.238 199.186 2^8 758.052 79^2


1960 1.418.384 403.461 28,4 1.041.923 71,6
1970 1.599.333 721.916 45,1 877.419 54,9
1980 2.033.340 1.324.701 65,4 733.978 36,5
1990 2.598.505 1.922.828 73,9 675.677 26,0

Fonte; IBGE. Censo demográfico do Espírito Santo. Rio de Janeiro: 1950 a 1980.
. Resultado preliminar do censo demográfico do Espírito Santo de 1990. Rio
de Janeiro: 1993. p. 2.

O panorama populacional nos dados apresentados na tabela 1 indica a


forte concentração da população capixaba na zona rural até 1960. Observa-se
que até esta época a distribuição rural/urbana da população mantinha-se equi
librada com o sistema de produção e comercialização do café.
É a partir da década de 1960 que o quadro demográfico do Estado co
meça a perder as características de predominância rural. As décadas de 1960 e
1970 marcaram o auge deste processo, e a população chega em 1980 concen
trada em 65,4 na área urbana, elevando este percentual para 73,9 em 1990.
Vitória, que até 1960 apresentava um quadro demográfico mais equili
brado em relação à população estadual e uma ocupação física do espaço urba
no mais lenta, inicia a partir desta década um processo gradativo de expansão
de sua malha urbana, que vai-se alargando e inchando até ocupar as áreas dos
cinco municípios denominados convencionalmente de "aglomerado urbano da
Vitória".'
Com a expansão acelerada desta malha urbana, o espaço físico foi natu
ralmente rechaçado por uma especulação imobiliária sempre crescente, rele
gando as áreas mais impróprias às populações de menor poder aquisitivo.
O processo de diferenciação espacial e social, aliado à inexistência de
uma política habitacional eficiente, voltada para a população de baixa ren
da, constituíram-se em instrumentos propulsores do rápido alargamento da
periferia daGrande Vitória que, sem qualquer infra-estrutura urbana ou con
dições mínimas de habitalidade, passou a abrigar considerável parcela da
população do Estado.
Através da tabela 2, podemos observar aevolução da população da Grande
Vitória em relação ao total da população do Estado.

'GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Instituto Joncs dosSantosUevcs. Estudospara


definição da política habitacional para o Espírito Santo. Caracterização dasituação habi
tacional do Estado, v. I, Tomo I, Vitória: 1987, p. 22.

P71
Tabela 2
EVOLUÇÃO DEMOGRÁFICA DO ESTADO
DO ESPÍRITO SANTO E DA GRANDE VITÓRIA - 1950-1990

Anos População Total % da Grande


Vitória na população
Espírito Santo Grande Vitória estadual

1950 957.238 110.931 11,6


1960 1.418.384 198.265 14,8
1970 1.599.333 385.998 24,5
1980 2.023.340 706.263 34,9
1990 2.598.505 1.063.295 40,9

Fonte: IBGE. Censo demográfico do Espírito Santo - 1950-1980. Op. cit.


. Resultado preliminar 1990. Op. cit.

A área polarizada pela capital até 1950 já experimentava um aumento po


pulacional pelo próprio tipo de atração que o centro político exerce; entretanto,
é a partir de 1960 que o poder polarizador faz-se sentir mais intensamente, quando
a Grande Vitória inicia um rápido aumento populacional, começando a confi
gurar-se como ponto central de um processo de atração migratória.
Mas é nas duas últimas décadas que o fenômeno concentrador ganha tra
ços definitivos, quando Vitória, juntamente com seus quatro municípios. Vila
Velha, Cariacica, Serra e Viana, passou a concentrar, em 1980, 34,9% da po
pulação estadual e 40,9% em 1990.
Esta notável transferência de contingentes demográficos, fundamentada
em um primeiro momento no esvaziamento do interior do Espírito Santo, se
guida, a partir de meados dos anos 70, pelo incremento de migrantes exter
nos, concorreu para a expansão urbana desequilibrada da Grande Vitória.
Esse processo resultou também da ação conjunta de fatores inerentes ao
modelo econômico nacional, ou seja, concentração na distribuição de rendas,
aumento das atividades estatais e a forma poupadora de mão-de-obra que apre
sentou não só a tecnologia agrícola como também a indústria urbana."
Neste contexto, a região metropolitana expandiu-se em consonância di
reta com as necessidades de reprodução da economia modernizada. O cresci
mento industrial concentrado trouxe uma idêntica concentração populacional
que mudou o perfil urbano da Grande Vitória.
A tabela 3 demonstra em números absolutos a evolução da população
por unidades urbanas da Grande Vitória, no período que vai de 1950 a 1990.

"GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. In.stituto JoncsdosSantosNeves. Ar//cu/oção


sócio-econômica do Estado do Espírito Santo. Op. cit., p. 108.

272
Tabela 3
POPULAÇÃO DAS UNIDADES URBANAS
DA GRANDE VITÓRIA - 1950-1990

Unidades
1950 1960 1970 1980 1990
urbanas

Vitória 50.922 85.242 133.019 207.747 258.243


V. Velha 23.127 56.445 123.742 203.401 265.251
Cariacica 21.741 40.002 101.422 189.099 274.455
Serra 9.245 9.729 17.286 82.568 221.510
Viana 5.896 6.847 10.529 23.448 43.836
Total 110.931 198.265 385.998 706.263 1.063.295

Fonte: IBGE. Censo demográfico do Espírito Santo. 1950 a 1980. Op. cit.
. Resultado preliminar 1990. Op. cit.

É rápido o crescimento populacional das unidades urbanas a partir de


1960. Entre 1960 e 1980, a população dessas unidades cresce de forma desor
denada, deixando claro que o processo de urbanização estava ultrapassando
os limites da municipalidade de Vitória, configurando, até 1990, a acelerada
metropolização da região.
A expansão urbana ocorrida nesses municípios foi resultado do cresci
mento migratório do interior do Espírito Santo, e de outros estados vizinhos,
em direção à Grande Vitória, e também da própria dispersão da população nas
unidades adjacentes.
Vitória e seus municípios vizinhos começam a enfrentar, a partir da dé
cada de 1960, a expansão desordenada de suas malhas urbanas, com o pro
cesso de ocupação rápido e violento, iniciando assim a transformação e des-
caracterização do espaço fisiográfico da cidade.
A zona fisiográfica de Vitória, conforme indicam os censos analisados a
partir de 1950, já se destacava como a região de maior concentração urbana
do Estado, destacando-se em seguida o município de Vila Velha.
Este fato encontra explicação nas características quase totalmente urba
nas desses municípios, que se destacam inicialmente como pólo de atração
migratória, enquanto nos demais (Cariacica, Serra e Viana) predominavam as
características agrícolas.
É a partir de 1960, e principalmente em 1970, que a urbanização come
ça a avançar mais intensamenteem Cariacica, estendendo-seainda nos muni
cípios periféricos de Serra e Viana.
Essa grande mobilidade espacial da população, apoiada no declínio do
setor agrícola e no rápido crescimento do setorindustrial, intensificou as con
tradiçõessociais no interiorda sociedadecapixaba. Deu-seo aceleradoincha-
mentoda GrandeVitória, expressivos contingentes populacionais fixam-se em
bolsõesde pobreza, com umaqualidade de vidadeteriorada, alijados de quais
quer serviços urbanos.

273
A elevada concentração de migrantes (45,5% da população total, em 1970,
e 64,98 em 1980) na Grande Vitória era constituída de trabalhadores de baixos
salários que, quase em sua totalidade, haviamsido expulsos do mercado de tra
balho com a finalização da fase de implantação dos grandes projetos.''
Na medida em que as empreiteiras foram liberando esta mão-de-obra, o
número de trabalhadores desempregados se avolumava. E esta população já
fixada no cidade não voltava às origens e permanecia em busca de trabalho,
sem perspectiva de reintegração.
Lojkine demonstra com clareza a função contraditóriado desenvolvimen
to industrial e a questão urbana. Para o autor, as relações de produção/capita
lismo, ao mesmo tempo que provocam, com a indústria moderna, uma ten
dência crescente à aglomeração urbana, imprimem um tríplice limite a qual
quer organização racional do planejamento urbano: a cidadedesempenha fun
damental papel econômico no desenvolvimento do capitalismo, mas, inversa
mente, a urbanização é moldada de acordo com as necessidades de acumula
ção capitalista (Lojkine, 1981, p.l63).
Neste caso, a organização social equilibrada transporta-se para a ação se
cundária e o desenvolvimento ocorre de forma desigual. Assim, os reais inte
resses da população ou os prejuízos que esta viesse a ter foram relegados a
segundo plano, em nome de um desenvolvimento cujo significativo ideológi
co apoiava-se em um elevado grau de desigualdade.
O grande fluxo de trabalhadores não-qualificados paraa Grande Vitória foi
necessário e muitodesejado. Essa mão-de-obra, de grandeimportância para aten
der a construção civil tanto dos Grandes Projetos quanto das demais empresas,
representava também uma reserva de trabalhadores, barateandoseu custo e con
tribuindo para a anulação da força de trabalho (Marx, 1985, p.210). E é nessa
anulação que se apóia a lógica da acumulação que comanda o desenvolvimento
brasileiro recente.
O desgaste de um trabalhador que vive em condições urbanas subnor-
mais torna-se realidade na medida em que a maior parte da mão-de-obra pode
ser prontamente substituída.
Na realidade, essa questão resulta de uma série de fatores ligados direta
ou indiretamente às formas de distribuição. E, de acordo com Kowarick, o elo
intermediário entre ambos é a estrutura de emprego, ou seja, a dinâmica das
relações de trabalho é o ponto primordial. Embora decisivo e primordial para
garantir o acesso dos trabalhadores aos bens de consumo, o emprego não é o
único veículo de garantia da qualidade de vida da população. A própria orga
nização do espaço urbano, da infra-estrutura e dos serviços da cidade também
determinam a qualidade de vida da população (Kowarick, 1979, p.26).

"FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo de


mográfico do Espírito Santo. IQ8(). Rio dc Janeiro: 1983, p. 102-105. Não foram computa
dos os dados referentes ao número dc migrantes para a década de 1980, porque os mesmos
ainda não foram divulgados pelo IBGE.

P74
Para a grande maioria da população da Grande Vitória, constituída de
trabalhadores assalariados, essas relações eram decisivas. O acesso aos bens
de serviço, principalmente aqueles ligados à educação, saúde e moradia, tor
navam-se difícil em função do desemprego e dos baixos salários, insuficien
tes para cobrir os custos da reprodução da força de trabalho.
As pequenase médias indústrias, apesar da expansão, possuíam caráter
desintegrado e não multiplicador, além de sofrer concorrênciade produtos de
áreas mais desenvolvidas. Assim, as atividades produtivas urbanas não per
mitiam absorver a mão-de-obra que a transformação capitalista estava propor
cionando e ampliar em maior escala as relações de trabalho que o novo pro
cesso exigia. O crescimento econômico da região estava intimamente ligado
às atividades cujo dinamismo apoiava-se no uso dos fatores capital e mão-de-
obra qualificada.
A desorganização do antigo sistema produtivo demandava reações di
recionadas no sentido da retomada do crescimento espacialmente distribuí
do e equilibrado, principalmente porque o desenvolvimento econômico im
plica mudança social, que essencialmente se constitui em uma divisão de
trabalho em todos os sentidos (Singer, 1977, p.lO). A ausência de uma ação
política voltada para a área social, o desemprego e os baixos salários contri
buíram para o agravamento dos problemas urbanos e afetaram a qualidade
de vida da população.
A partir de 1970, surgem e se expandem na Grande Vitória inúmeros
bairros periféricos que, juntamente com as favelas, alojam a classe trabalha
dora. É nessas áreas que se concentram tanto a pobreza dacidade como a de
seus habitantes. A ocupação de morros, mangues e baixadas no centro da ci
dade e na periferia da aglomeração, a formação de novas favelas e a expansão
de bairros carentes foram uma conseqüência desse processo que provocou o
maior empobrecimento na região da Grande Vitória.
Em 1980, a Secretaria de Planejamento divulga um documento demons
trando que 47,9% da população da Grande Vitória era considerada carente e de
mandava serviços urbanos de toda espécie, não acontecendo, em contrapartida,
uma oferta equilibrada dos mesmos por parte do Estado e dosmunicípios.'"
Em 1987, o Instituto Jones dos Santos Neves divulga uma pesquisa que
estima um número de 500 mil moradores aglomerados em assentamentos con
siderados subnormais, distribuídos em Vitória e seus municípios.
É na década de 1980 que o setor informal de trabalho e o fenômeno da
marginalidade ganham maior expressão. Naturalmente, esses componentes so
ciais não se restringem a uma análise de âmbito estadual. São reflexos das trans
formações econômicas e locais que vêm-se processando no Brasil como um
todo, inerentes ao modelo com que o capitalismo vêm-se desenvolvendo nas

'"GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Secretaria do Estado de Planejamento.


Pesquisa sócio-econômica do Espírito Santo. Dados básicos sobre educação, migração, em
prego, habitação e renda. Vitória: 1979. p. 181-185.

275
últimas décadas. Sua causa mais visível está intimamente ligada com a ques
tão do êxodo rural, à ausência de uma política coerente e equilibrada que pos
sa atender a população menos privilegiada em suas necessidades básicas e à
insuficiente criação de empregos urbanos."

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANO, Wilson. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil. 1930


- 1970. Campinas: Global, 1985, p.29.
GEIGER, Pedro Pinchas. Reorganização do espaço no Brasil. In: Políticas do de
senvolvimento urbano: aspectos metropolitanos e locais. Rio de Janeiro: IPEA,
1979. p. 126-130.
KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1979, p.26.
LOJKINE, Jean. O estado capitalista e a questão urbana. São Paulo: Martins Fon
tes, 1981. p.l63.
LOPES FILHO, Christiano. Um estado em marcha para o desenvolvimento. Vitó
ria: Imprensa Oficial, 1969, v. 2, p.20-21.
MARX, Karl. O capital: critica à economia política. 2. ed. São Paulo: Nova Cultu
ra, 1985. p.210.
ROCHA, Haroldo Corrêa; BUFFON, José Antônio. O boom industrial. Revista do
instituto.lones dos Santos Neves. Vitória: ano V, n. 3, p.l9, jul./set. 1986.
SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana. São Paulo: Nacio
nal, 1977. p.lO.

" GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. ln.stituto Jones dosSantos Neves. Estu
dos para definição dapolítica habitacional para o Espírito Santo. Vitória: 1987. p. 21 a 23.

276
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-i
ana maria mauad de sousa andrade essus

o espelho do poder:
fotografia, sociabiiidade urbana
e representação simbólica
do poder político no rio de janeiro
da belle époque

As imagens fotográficas produzidas ao longo das primeiras décadas do


século 20, na cidade do Rio de Janeiro, refletem o interesse da classe domi
nante em construir uma determinada sociabiiidade a partir do controle dos có
digos de comportamento e de representação social no espaço urbano.
Dentre as agências de produção da imagem fotográfica, o Estado, repre
sentado pelo poder federal e municipal, destaca-se tanto pelo montante signifi
cativo de sua produção como pela variedade de temáticas registradas. Fotogra
fa-se o que foi e o que será reformado, registra-se minuciosamente o processo
de modernização da cidade, captura-se o deleite da flânerie vespertina das fi
lhas e senhoras de comendadores abastados. A fotografia é o documento incon
testável do progresso nacional. Dessa forma, a imagem fotográfica elaborada
pelo Estado brasileiro, durante a Primeira República, recuperou a elite política
na sua ação, no seu envolvimento e movimento no espaço da cidade, compre
endida como palco de exercício do poder. Um poder que estende a sua hegemo
nia através da criação de códigos de comportamento e de representação social
que serve de guia para seus pares e de medida para o restante da população.
Ao mesmo tempo que a imagem fotográfica oficial reflete aquela que
por seus cronistas foi chamada de "Paris dosTrópicos", omite o espaço popu
lar, ladeiras estreitas, dos "freges imundos", dos cortiços e dos negros de pés
descalços. Neste sentido, a análise das fotografias produzidas pelo Estado re
vela tensões de uma sociabiiidade que se empenha por tornar-se hegemônica.
Portanto, duas perguntas devem ser feitas: a primeira, quais os elementos que
estruturam as representações sociais de comportamentos elaboradas pelo po
der? E a segunda, como tais mensagens são transmitidas e recebidas pelo con
junto da população, especialmente os grupos sociais em ascensão que com
petem com o Estado pelo controle deste poder?

Ana Maria Mauad de Sousa Andrade Essus é professora adjunta no Departamento de His
tória da UFF.

281
A busca da compreensão de como uma certa imagem de poder associa
da a determinados signos foi sendo ao longo do tempo criada e recriada pelo
devir histórico contribui para a compreensão de como a imagem fotográfica
influencia na formação e conformação de uma determinadaopção política por
parte da população. Compreendida desta maneira, a imagem é tanto a síntese
atualizada de uma expectativa geral, captada por uma "objetiva sagaz", como
agente que cria opiniões e molda comportamentos.
Ao longo da primeira metade do século 20, concorrendo com o Estado
na produção da imagem fotográfica, existiam mais duas agências: a família e
a imprensa ilustrada. Ambas representativas de duas dimensões constituintes
da sociedade burguesa, respectivamente, as esferas privada e pública. Neste
contexto, o Estado se coloca como uma agência que produz tanto imagens
privadas, que se tornam públicas para a produção simbólica do poder, e ima
gens públicasque se tornamprivadas à medidaque são apropriadas, como sig
nos de distinção e pertença social, pela classe que exerce o poder e controla
também os meios técnicos de produção cultural. Tal processo é evidenciado
numa análise mais acurada da forma e da expressão da mensagem fotográfica
produzida pelo poder de Estado, objetivo do projeto: Opoder emfoco - Foto
grafia e a representaçãopolítica republicana, na Capital Federal (1889-1960),
do qual retiro as reflexões expostas na presente comunicação.
O projeto O poder em foco possui duas vertentes. A primeira, denomi
nada"O espelho da cidade", divide-se emquatro momentos históricos; ospri
meiros três períodos são balizados pelas três grandes reformas urbanas pro
movidas pelo poder municipal e apoiadas pelo federal na cidade do Rio de
Janeiro: Pereira Passos (1902-1906), Carlos Sampaio (1920-1922) e Henri
que Dodsworth (1939-1944); e o quarto circunscreve o momento de transfe
rência da Capital Federal para Brasília. Nesta parte buscarei, através do mate
rial iconográfico, especialmente fotos e plantas, discutir a ingerência do po
der públicona construção/destruição do espaçourbano. Nesteconjunto estão
compreendidos os "espaços de memória" que desapareceram por estar vincu
lados a valores tradicionais e, portanto, incongruentes em relação à nova or
dem que se estabelecia, como aqueles criados ou preservados como ícone de
um tempo cuja marca fundamental era a modernidade.
A segunda vertente recebe o nome do próprio projeto, Opoder emfoco,
e tem como objetivo a análise histórico-semiótica das imagens fotográficas
produzidas pelo Estado, na Capital Federal, na primeira metade do século 20.
Em tais imagens, presidentes, prefeitos, deputados, entre outros integrantes
da elite política, são capturados pela objetiva fotográfica no exercício do po
der e na vivência de classe. Uma imagem que torna manifestas as diferencia
ções sociais, naturalizando os papéis de governantes e governados e ratifican
do a possedo exercício do poderpolítico, de fato, nas mãosda classeque con
trola a produção do poder simbólico.
Da mesma forma que na primeira vertente do projeto dividi esta segun
da em períodos, associados às temáticas de ação do Estado sobre o espaço da

282
Capital Federal.As três reformas anteriorménte assinaladas redimensionaram
o perfil da cidade, através da criação de novos espaços para usufruto da classe
dominante e para a produção de símbolos que atualizassem a sua cultura polí
tica. Completando o processo de ingerência do poder no espaço da Capital
Federal está a sua transferência para Brasília. Configura-se, a partir daí, um
novo conjunto de elementos que competem na construção do imaginário po
lítico, então referendado por uma nova forma urbana, completamente plane
jada para ser o palco para o exercício do poder.

UM CENÁRIO PARA O PODER

A dimensão espacial é de fundamental importância na análise dos pro


cessos de produção das imagens do poder, porque "cada 'reinado', mesmo re
publicano, marca de um modo novo um território, uma cidade, um espaço
público. Ele arranja, modifica e organiza segundo as exigências dos proveitos
econômicos e sociais de que é guardião, mas também para não ser esquecido
e para criar condições para suas comemorações futuras" (Balandier, 1982, p.
10). Dessa forma, ao reinventar o universo urbano, o poder político reafirma a
sua dominação a partir do controle espacial e da redefinição do universo de
signos que conferem significados à cultura política.
Atualmente encontro-me no primeiro período do projeto. Para esta etapa
duas coleções de fotografias estruturam o "corpus" de análise: a do arquivo Pe
reira Passos, que se encontra no Museu da República, no Rio de Janeiro, e a de
Augusto Malta, fotógrafo oficial da prefeitura do Rio de Janeiro, que está loca
lizada, entre outras instituições, no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
A coleção de fotografias do arquivo Pereira Passos é composta por 1.100
imagens de profissionais de grande importância, como Marc Ferrez e Augusto
Malta, e engloba um considerável elenco de temáticas, tais como reuniões do
Conselho Municipal, estradas de ferro, Exposição Nacional de 1908, edifícios
públicos (ministérios, igrejas, teatros, bancos, fábricas. Congresso Nacional,
escolas, estações), festas populares, homenagens a Pereira Passos, logradouros
públicos (Avenida Central, bairros, canal do Mangue, Ilha Fiscal, largos, Ou-
teiro da Glória, praças, praias, parques, ruas e túneis), monumentos e retratos
(Pereira Passos - individual e em grupo viagens, família Passos, residência
Passos, barão de Mangaratiba, funeral de Pereira Passos, entre outros).
A coleção do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro é composta
exclusivamente por fotografias de Augusto Malta, fotógrafo da prefeitura do
Distrito Federal, por mais de 30 anos, além de amigo próximo de prefeito
Pereira Passos. Malta foi o cronista das imagens da cidade. Sua coleção pos
sui um enorme elenco de temas, que vão desde a ação empreendedora do Es
tado até a visita dos marujos americanos aos prostíbulos da cidade. Malta em
suas fotos denunciou a vida insalubre dos cortiços, as ruas estreitas e os "fre
ges" imundos, fotografando o que devia ser reformado, criando assim a ne-

283
cessidade da reforma. Por outro lado, também fotografou o que já havia sido
reformado, como forma de atestar a eficiência da ação do Estado para o su
cesso do projeto de criação de um espaço reservado ao convívio comum da
classe dominante.
Ambas as coleções contribuíram para a construção de uma certa memó
ria da cidade que reifica a sua condição de "maravilhosa", deixando de fora
todo o resto que não foi eleito pela mensagem fotográfica veiculada pelo po
der e que não contribuía em nada para este padrão.
Ao mesmo tempo esta memória torna-se o "topos", por excelência, da
produção do poder simbólico. Uma memória que, por ser coletiva, conforme
os quadros de uma cultura política que, justamente, por não ter nada de ho
mogênea, atua como uma arena de conflitos, onde os grupos sociais se con
frontam pela hegemonia da imagem. Neste embate, a classe controladora dos
meios técnicos de produção cultural leva vantagem.

NASCE UMA METRÓPOLE

A cidade estreita e sinuosa, cujo recorte colonial entravava a circulação


tanto do ar como de mercadorias e capitais, não condizia, há muito, com a
posição de Capital Federal, à qual a cidade foi alçada com a Proclamação da
República. Esse estado de inadequação evidenciou-se a partir de 1898, com o
pnmQuo funding-loan. Através desta medida, o Brasil recuperaria a sua cre
dibilidade internacional. Crescia a necessidade de o País entrar na era do pro
gresso e da civilização.
A forma urbana da cidade era inadequada, pois impunha a convivência
do Brasil pobre, negro e cheio de moléstias com o Brasil civilizado, branco e
são. Por outro lado, era materialmente incapaz de suportar o crescente movi
mento comercial, devido à precariedade do porto e das vias de circulação no
interior da própria capital.
Urgia adequar a imagem da cidade à de legítima Capital Federal e, desta
forma, a de centro do poder político e econômico, estatuto adquirido no con
texto das transformações inseridas na lógica da expansão capitalista, de fins
do século 19, momento no qual as capitais tornam-se importantes centros con
sumidores, por centralizarem grande parte da riqueza do País, como também
por alocarem toda a estrutura de funcionamento da circulação desta riqueza,
tais como grandes escritórios.de exportação, firmas financeiras, bancos, além,
é claro, de todas as instituições públicas.
A primeira medida para tal adequação foi empreendida no governo do
presidente Rodrigues Alves que concedeu plenos poderes ao prefeito da Ca
pital Federal, Francisco Pereira Passos, para reformar a cidade, É Luiz Ed
mundo quem descreve a ação civilizadora do prefeito:

Passos vence a rotina. Declara guerra aos bacaihoeiros da rua do mercado, aos

284
tamanquciros do beco do Fisco, aos mestres de obra que controem no estilo
compoteira e outros autores do atraso nacional [...], cria posturas mandando
alargar as divisões das casas, manda rasgarjanelas nos aposentos de dormir,
enche a morada de luz e de ar, de vida e de saúde! Manda derrubar as constru
ções arcaicas [...], cria o serviço de assistência pública [...]; extingue a canga-
lha que vivia infestando as ruas da cidade; acaba com a gritaria dos pregões
coloniais, mete os mendigos no asilo, acaba com os ambulantes [...], alarga
ruas, cria praças, arboriza-as, calça-as, embeleza-as, termina com a imundice
dos quiosques e diminui a infâmia dos cortiços (Edmundo, 1957, p. 51).

Enquanto Luiz Edmundo elogia, as crianças na carrocinha cantam:


"Nesta jaula endiabrada, criação de um gênio atroz,vamos nós de cambu-
Ihada, como um bando de totós. Nesta terra de Avenidas, de conversão e café,
não nos são mais permitidas doces viagens a pé. Apenas anda na rua gente do
tom e da moda. O mais vai pra cafua, o mais num instante roda. Já se foram os
cachorros, agora cá vamos nós. Fugi vós para esses morros, pois amanhã ireis
vós" {Fon-Fon^ 15/4/1907). Na sua canção revelam o caráter discricionário das
medidas saneadoras. Augusto Malta, fotógrafo oficial da prefeitura, contratado
pelo prefeitoPereira Passos, registraminuciosamente todo o processode remo
delaçãoda cidade, através de imagens nítidas e claras, nas quaisficapatenteado
o nível de investimento do poder público. O curto espaço de tempo das obras, o
pessoalarregimentado paraos trabalhos e a maquinaria utilizada, registradonas
fotos, revelam o caráter de urgência de tais reformas.
A cidade reformada torna-se símbolo do Brasil regenerado, pronto para
reconstruir asua imagem na Europa. Um breve texto publicado na revistaÊbw-
Fon, em 1907, é um indicador preciso de tal situação. O título é: "Propaganda
do Brasil na Europa". Ilustrando estão um índio, um esfarrapado e um senhor
de terno, bengala, chapéu e monóculo e, sob cada um, respectivamente, os
seguintes dizeres: "Eu era assim, cheguei a ficar assim, agora sou assim". Além
disso, o restante do texto que acompanhava a ilustração enfatizava a impor
tância do reconhecimento europeu, "porque, se a Europa não nos souber no
mundo, nós não o estaremos de fato". Acompanhava o texto um convite ex
plícito: "Brasil, venham!" {Fon-Fon, 8/6/1907).
A Avenida Central, ponto de honra da reforma urbana, com quase dois
quilômetros de extensão e 33 metros de largura, custou aos cofres da união
cerca de 46.772 contos, e sua concepção foi uma exaltação ao progresso com
tudo o que este, na época, podia oferecer. As vésperas da sua inauguração, a
imprensa carioca festejava a sua chegada:
"Ah! Bem haja esse movimento forte e restaurador, esse hercúleo movi
mento de trabalho e progresso, que vai transformando o Rio de Janeiro, ou-
trora todo colonial [...], em ampla cidade de amplas avenidas [...] banhadas
de higiene, forradas de civilização! Visitamos ontem a magnífica avenida que
o governo federal vai apresentar à cidade, que há muito deve à iniciativa po
derosa e à clara visão de engenheiro de seu prefeito" {Jornal do Brasil, 14/11/
1905). Materializado através dos focos luminosos, o progresso se fez palpá-

285
vel e passível de admiração. Enquanto uns poucos puderam "fazer a aveni
da", de acordo com uma expressãode época, outros limitaram-sesimplesmente
a espreitá-la com olhar de admiração.
AAvenida Central, cartãopostal do Rio regenerado, significa muito mais
do quea vitória de uma demanda política. Apresentou-se, poucos anos depois
de sua inauguração, com lojas funcionando e a maioria dos prédios construí
dos, como signo porexcelência de um novo código de representação social. É
o espaço incorporando funções sígnicas; através da amplitude da nova aveni
da e de suas fachadas elegantes, representa um novo estilo de vida, a institui
ção de uma nova utopia. Destaforma, o espaço da avenida torna-se palco, lo
cal de ostentação e exibição.
Além da Avenida Central, a reforma municipal abriu a Avenida Beira-
mar, ampliou o porto, embelezou ruas, alargou outras, criou o pavilhão de re
gatas do Flamengo e do Mourisco, a Vista Chinesa, o Parque de São Cristó
vão, o Teatro Municipal e o teatrinho Guignol para crianças, localizado em
Botafogo. Enfim, a reforma urbana, presidida pelo poder e concebida inicial
mente como uma necessidade evidente da cidade, diante das novas funções
assumidas no contexto internacional, constrói espaços voltados para umanova
sociabilidade, excludente por princípio, ao mesmo tempo que cria novos es
paços de memória. Uma memória absoluta que, ao destruir todas as outras,
assume o seu papel fundamental: preservar para o futuro uma determinada
imagem do presente, plenamente associada aos signos da modernidade. Uma
modernidade, vale lembrar, de fachada, ou - por que não? - de beira-mar.

GEOGRAFIA DO SER MODERNO

A imagem que prevalece nos primeiros vinte anos do século 20, tanto
nas fontes escritas como fotográficas, é a cidade transformada emcartão pos
tal da modernidade carioca. O espaço dignificado atua comosigno de um es
tilo de vida civilizado.
Uma nova geografia do ser moderno se impôs sobre a cidade, elegendo,
como espaços de aparência, salões, confeitarias, cafés, cinemas, livrarias e a
própria rua.Tal como um cenário de pura fachada, estes espaços existem para
que novos grupos sociais em ascensão, ligados às atividades tipicamente ur
banas, tais como comércio e finanças, se identificassem no seu processo de
vir a ser, à medida que só passariam a existir, comoclasse, em função de uma
vivência social. São formas de um conteúdo, sendo, portanto, impossível dis
sociardestesespaços os comportamentos que lhes eram subjacentes.
A rua, neste conjunto, destaca-se, pois, como caracterizou João do Rio,
"nas grandes cidades a rua passa a criar seu tipo, a plasmar o moral de seus
habitantes, a inculcar-lhes gostos, costumes, hábitos, modos e opiniões" (cit.
Nosso Século, V. 2, p. 143). AAvenida Central é, ao longo daduas primeiras
décadas deste século, o exemplo clássico desta tendência. Nela passava quem

286
queria ser notado e quem era notado mesmo sem querer. Na época até se cu
nhou uma expressão - "fazer a avenida" - que significava fazer um passeio
pelaAvenida Centraldepois dojantar (Andrade, 1990,p. 34). Uma expressão
típica que traduzia um desejo próprio da época, pois fazer a avenida, como
explica Pedro Nava,"implicava até um grau moral. E todos se preparavam para
isso. Ninguém vinha sem a melhor roupa para a sala de visitas da cidade. Os
cavalheiros no maior prumo. As senhoras na maior elegância. E aquilo era
mesmo um boulevard parisiense cheio de palácios franceses" (Andrade, 1990,
p. 35). Um hábito que expressa o desejo de tornar-se a própria imagem que
supunha refletir a vontade da classe dominante de perceber-se como parte da
humanidade ocidental avançada.
Enquanto isso, em 1905, a revistaKosmos despedia-se da Rua do Ouvi
dor: "sobre o seu destino pesa a melancolia das dinastias que se extinguem. A
Avenidajá te ofusca". Ofuscava pelo brilho das vitrinas, pela farta publicidade,
pelos detalhes das fachadas e pela amplitude da rua. Diante dos 33 metros da
Avenida Central, a Ouvidor não passa de um "beco de luxo", entre tantos ou
tros becos da cidade colonial. Era o espaço capitalista que se impunha. Rapida
mente, o comércio de luxo para a Avenida se encaminhou, juntamente com os
representantes das firmas intemacionais que lá instalaram seus escritórios, nos
recém-construídos arranha-céus de seis andares. Complementando, os cinema-
tógrafos, que antes perambulavam pelas salas dos teatros e casas de diversão,
encontraram na Avenida Central o abrigo ideal para um endereço fixo.
Em tudo foram criadas condições para a fruição moderna do espaço refor
mado. "O Rio civiliza-se, e vai entrando pelas normas da vida carioca a exigên
cia natural de elegância e conforto", que passava pela reformulação dos estabe
lecimentos comerciais, pois na "República o comércio tomou maiores expan
sões, a capital perdeu o seu velho ar carrancista e começou a exigir conforto e
elegância na vida comercial" (Fon-Fon, 31/8/1907).Até a escolha em utilizar o
calçamento de macadame, permitindo o abandono dos antigos meios de trans
porte, foi feita em prol do símbolo máximo do novo século: o automóvel.
Odiado pelos pedestres, cultuado por desportistas, exibido pelas senho
ras ricas nas compras, o automóvel teve, na Avenida Central, o seu espaço por
excelência. Nesta via, não existiam trilhos de bonde, estes apenas a cortavam
à altura da Galeria Cruzeiro e, mais tarde, na década de 1920, na Praça Mare
chal Floriano. O espaço foi liberado ao automóvel, cujas marcas já denota
vam o poder desta recente indústria: Daimler, Packard, Peugeot, Renault,
Bayard-Clemente, entre outros. Em 1905, seis automóveis circulavam pelas
ruas da capital federal; três anos depois eram 35 fonfonando pela cidade.
As tentativas de excluir, polir, organizar o espaço da rua foram inúme
ras: a introdução de novos meios de transporte mais rápidos, como o bonde
elétrico e o carro, tirando de circulação os tradicionais meios de transporte
populares, como os "burro sem rabo", que faziam o transporte de carga; a per
seguição aos quiosques e freges, locais reservados à alimentação e recreio
popular, as reclamações contra os pregões dos comerciantes ambulantes e a

287
preocupação em introduzir novas formas publicitárias que sintetizassem, numa
só olhadela, o modo de vida correto a seguir. Tais medidas refletem a pers
pectiva de poder sobre o espaço urbano, expressa também na forma de repre
sentação geográfica da cidade. As plantas da época só apresentavam o arma
mento numa perspectiva de reforma; nestas as construções existentes, os es
paços de moradia e lazer tradicionais não eram sequer considerados.
Apesar das sucessivas tentativas de ordenamento e disciplinarização,
as ruas do Rio, mesmo as amplas avenidas, eram um panorana heterogêneo
de cores, tipos e temas de tantas crônicas ilustradas. "O Rio é uma cidade
cosmopolita - isto já é frase feita. Com efeito, há gente de todas as naciona
lidades, desde o inglês dos bancos até o chim que vende camalô e fuma ópio
na Rua da Música, passando pelo português comerciante, o turco - fofó ba
rato -, o italiano das verduras, o alemão das casas de chopp e o judeu dos
penhores" {Fon-Fon, 3/8/1907).
Mas do outro lado da calçada elegante passavam as chamadas maricoti-
nhas, que "usavam papilotes, liam folhetins de jornais, concorrem a todos os
concursos de beleza do Serpa Jr. e passam pela Gazeta, só para que o Figuei
redo Pimentel lhes descreva a toillete no O Binóculo" {Fon-Fon, 3/8/1907).
Cmzando a esquina nas imediações da Rua daAlfândega, reunidos nas portas
dos edifícios estão os "grupos que falam em libras, compram cambiais e ven
dem ações e apólices" {Fon-Fon, 6/7/1907). São os mesmos que se indignam
com a "abundância de mendigos que perambulam pelas ruas do centro, prin
cipalmente à tarde, a hora do aperitivo quando a gente se mete num canto do
terasse com uns amigos, para esquecer o resto e falar de coisas cá de dentro, e
eles vão chegando, vão parando um por um, com seus queixumes muito com
pridos e ladainhas infindáveis" {Fon-Fon, 30/5/1914). São os arautos deste tipo
de discurso que compõem o público para o qual as representações do espaço
urbano, produzidas pelo Estado, estão voltadas. Um público tanto assistente
como agente de uma nova ordem.

SOCIABILIDADE URBANA E REPRESENTAÇÃO DE CLASSE

A iconografia, especialmente fotos e plantas do Rio de Janeiro, produzi


das pelo poder de Estado, visa criar uma cidade virtual, deslocada das contradi
ções inerentes à construção do espaço urbano carioca na virada do século. Nes
te sentido, todo o planejamento e ação governamental incidiu sobre o ideal re
presentado nas imagens fotográficas e cartográficas, segundo os critérios do
controle social, desconsiderando, simplesmente, as injunções e demandas do
espaço vivido, pleno de significados sociais e referências culturais.
Espaços de memória que foram apagados para a imposição de uma úni
ca memória. Desta forma, ao construir para a posteridade uma imagem do pre
sente, como a melhor representação possível, o estado propõe um projeto utó
pico que descaracteriza a dinâmica social ao naturalizar as representações de

288
poder. Uma estratégia recorrente nas ideologias conservadoras, como carac
teriza Martin Hopenhayn na seguinte passagem: "ia identificación de \o natu
ral con Io presente, o de Io presente con ia mejor versión posible de Io natu
ral, ha sido uno de los mecanismos más recurrentes de discursos de justifíca-
ción e defensa dei orden vigente. En el otro extremo, quienes tradicionalmen
te promovieron el cambio radical de Ia sociedad han querido romper con esa
identificación" {EstúdiosPúblicos, n.33, verano/1989, p. 323).
Desta forma, ao incidir sobre o espaço urbano ordenando-o e, principal
mente, modernizando-o, o Estado promoveu a realização do "topos" ideal para
a viabilização do projeto burguês, sendo apoiado pelos setores em ascensão
da classe dominante: comerciantes, financistas e fazendeiros absenteístas e cos
mopolitas por verniz.

O ESPETÁCULO DO PODER

O estabelecimento do poder nunca se faz, exclusivamente, através da


força. Énecessário, para acriação de um "topos" político, aceito pelos gover
nados e reconhecido por seus pares, que os detentores do aparelho de Estado
produzam uma reserva de imagens, símbolos e modelos que se utilizam no
exercício do poder.
Os signosque compõemas representações do podersão estruturados pelo
código do espetáculo. Neste sentido, todas as escolhas realizadas na composi
ção da imagem fotográfica produzidapelo poder, desde a escolha da indumen
tária correta para um determinado evento até a organizaçãodo grupo em semi-
círculo, nasfotos coletivas, parafornecer uma idéiade unidade e centralização,
passampelo crivoda ideologia que homologa o código (Rossi-Landi, 1985).
O poder em cena necessita de atributos que o distingam das demais re
presentações sociais, posto que "as manifestações do poder não acomodam
bem com a simplicidade. A grandeza ou a ostentação, a decoração ou o faus
to, o cerimonial ou protocolo geralmente as caracterizam" (Balandier, 1982,
p. 10). Neste sentido, o próprio atode fotografar e se deixar fotografar envol
ve um cerimonial, com comportamentos definidos. O fotógrafo não está em
qualquer lugar; é chamado para atuar como "testemunha ocular", e seu teste
munho tem o valor de prova irrefutável.
No entanto, entre o sujeitoque olha e a imagem que elabora"existe muito
mais que os olhospodem ver". A ilusão da verdade fotográfica, amplamente di
fundida no século 19, reafirma o projeto burguês de identificar automaticamente
História e Natureza. Aoconsiderar a imagem fotográfica como"analogon" da re
alidade, a ideologia daverdade fotográfica escamoteia osrecursos deconstrução
discursiva, envolvidos na própria produção da fotografia como mensagem e, en
quanto tal, uma escolha realizada num conjunto deescolhas possíveis.
Por outro lado, o ato de deixar-sefotografar envolve também a escolha
do cenário ideal, de um eventoemblemático ou de uma situação em que fique

289
evidenciada a competência do poder na direção do futuro dasociedade. É aí
que a representaçãoultrapassa o âmbitodos iguaise ganha a coletividade, ali
mentando o imaginário político, com signos de segurança, garantia e estabili
dade. Neste caso, tanto as fotografias de eventos cívicos como as do acompa
nhamento de obras públicas, são exemplos típicos de tal mise-en-scène.
Nesta nova cultura política alimentada por recursos tecnológicos, até
então pouco utilizados para a composição do imaginário político, o aconteci
mento ganha força representacional, desconhecida nos períodos anteriores. A
possibilidade de produzir-se a imagem do fato no momento quase exato da
sua realização agiliza tais representações ampliando o universo de temáticas
e atributos do poder.
Não somente as solenidades com data marcada são oportunidades para o
registro. O "flagrante" caracterizadopor informaiscenas urbanas, dofooting na
Avenida Central ou do corso na Beira-Mar, permite captar autoridades dos mais
diversos escalões em pleno cenário do poder. O espaço da cidade passa a ser
dignificado por quem o freqüenta, ao mesmo tempo que este mesmo espaço le
gitima o poder de quem o exerce, à medida que, ao ser criado e recriado pelo
Estado, se constitui na cenografia ideal para o exercício do poder.
Por fim, as imagens técnicas produzidas pelo Estado atuam como um
contraponto em relação à crítica política produzida pelas caricaturas veicula
das nas revistas ilustradas como as d 'O Malho. Nestas o poder é realmente
achincalhado. Os traços geralmente exagerados do desenho deformam a rea
lidade, exagerando os aspectos negativos da representação. No caso específi
co de Pereira Passos, a sua imagem caricaturada ressaltava os defeitos de sua
figura: pernas enormes e um rosto, também desproporcional, marcado por um
olhar severo e um sorriso cínico.
Já na imagem fotográfica, devido à definição dos traços e ao controle do
contraste da foto, e também pelo recurso à pose, a representação tinha como
propósito realçar os aspectos positivos da figuração. Mais uma vez, tomando
como exemplo a figura de Pereira Passos, nas fotografias onde ele foi retrata
do, o cuidado na representação era evidente: sempre no centro da foto, com
temo impecável e bengala em punho, pose ereta e firme, sério, mas não seve
ro, e sempre esboçando um sorriso cordial.

A INTIMIDADE DO PODER

A produção do imaginário político de uma época não se limita às ex


pressões públicas do poder de Estado. A representação pública do universo
privado dos dignitários do poder político atua, para efeito de convencimento
político dos governados, como o atestadoda sua idoneidade morale, para re
ceber o apoio político da classe dominante, como prova da sua pertença ao
universo de signos da classe que os sustenta.
Neste processo a imagem fotográfica tem um papel fundamental que re-

290
vela a interpenetração do âmbito público e privado nas representações do poder
na capitalfederal. Retratos de membros das famílias dos dignitários do gover
no e fotos de eventos familiares, tais como festas de aniversário e casamento,
bodas,primeira comunhão de filhos e netos, passeios dominicais, idasao teatro
eram veiculados e propagandeados pelas revistas ilustradas da época, compon
do com isso um catálogo através do qual tanto se poderiam adquirir modelos e
padrões comportamentais para inserir-se na "boa sociedade" quanto certificar-
se de que a própria representação se tornava hegemônica.

CONCLUSÃO

Nos primeiros vinte anos do século 20, a República se institucionaliza,


apresentando-se, em tal contexto, como uma arena onde a ação política é in
separável da ação simbólica.
No final do século 19, símbolos em profusão são fabricados, no intuito
de fundar um imaginário republicano (Carvalho, 1992). Se tais tentativas de
monstraram ser insuficientes para mobilizar as camadas populares em defesa
da causa republicana, não desqualifica a ação simbólica para a tarefa de com
por umaestratégia política de convencimento bastante eficaz.
Neste sentido, a construção de uma determinada ordem e sua legitimi
dade se estrutura a partir de uma premissa básica: a inseparabilidade entre ação
política eação simbólica. Éjustamente através deste pressuposto que aRepú
blica vai assumindo, ao longo das primeiras décadas do século 20, as propos
tas e projetos dos grupos sociais em ascensão. Nestesentido, torna-se o regi
me, por excelência, do capitale do gerenciamento dos negócios públicos, como
a reunião pública de interesses privados.
A interpenetração das esferas públicas e privadas, no exercício do po
der, cria uma nova cultura política, pautada por um universo de significados
bastante próximos das ideologias liberais conservadoras, que lançam para o
futuro o melhor do tempo presente. A sociedade é um eterno vir-a-ser, cujos
componentes professam a modernidade comonova fé republicana, ondeo fu
turo identifica-se ao progresso e a liberdade individual deve ser garantida e
avalizada pelo Estado.
As novas representações são, por conseguinte, fundamentadas em um pro
jeto político noqual o futuro vale mais do que o passado, e a memória constmída
no presente é a garantia da hegemonia da classe dominante nofuturo da nação.
Neste contexto, o poder de Estado se engendra como agente de uma nova
ordem social à medida que se organiza como campo político (Bourdieu, 1989).
Esta nova ordem reeditou os antigos pilares do positivismo republicano - Or
dem e Progresso - sob nova roupagem - Civilização e Modernidade - com
ponentes de uma cultura política com forte apelo simbólico, e cujaparticipa
çãoé fundamental naconstrução de um novo imaginário republicano quesubs
titui a sobrecasaca pelo terno branco e que faz política nos meettings.

291
Patenteando este novo estado de coisas, encontra-se a imagem fundamen
tada na ilusão da "verdade fotográfica". Através da produção técnica de ima
gens, as representações republicanas perderam o seucaráter propriamente sim
bólico, muito fundamentado na representação pictórica, e ganharam a dimen
são de um texto icônico, aproximado à realidade pela objetiva fotográfica.
Uma nova forma de criar representações, pautada na produção técnica
de imagens, associada a uma nova cultura política, que elege a cidade como
espaço ideal de manifestação,são as condiçõeshistóricasque informam a cons
trução do imaginário político republicano. Neste sentido, a cultura política e
a construção da sociabilidade urbana a ela subjacente devem ser considerados
como parte do estudo dos processos de formação do Estado e construção da
Nação entendidos como dinâmica em operação e que contam com a análise
histórico-semiótica da imagem fotográfica para revelar os significados envol
vidos em tal processo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, A. M. M. S. Sob o signo da imagem: a produção da fotografia e o con


trole dos códigos de representação social da classe dominante, no Rio de Ja
neiro, na primeira metade do século XX. Niterói: UFF, ICHF, tese de doutora
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EDMUNDO, L. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Conquista, 1957,
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HOPENHAYN, M. La utopia contra Ia crisis o como despertar de un largo insom-
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ROSSI-LANDI, F. Ideologia como planejamento social. In: A linguagem como tra
balho e como mercado. São Paulo: Difel, 1985.

292
Fotolitos
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Impressão
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Fone (051) 472-5899
M

do curítibano. Do pensamento
antiurbano, centrado na noção
de vida artificial das metrópoles
aos discursos afírmadores
do progresso. Das noções
de confinamento espacial
ao controle policialesco e deste
à expansão da imagem
da mulher em Copacabana.
Das cidades dilaceradas pela
violência às cidades em cuja
arquitetura lê-se a história
do poder local. Dos arrabaldes
perdidos às áreas de imigração.
De como a urbs se presentifica
na poesia de Mário de Andrade
ou em um romance de Erico
Veríssimo.
Os vários ensaios iluminam
aspectos contraditórios
da modernidade citadina
e oferecem aos leitores, sejam
eles acadêmicos ou não,
um mergulho no mundo que,
de certa forma, Baudelaire
registrou e inventou.

SERGIUS GONZAGA
Célia Ferraz de Souza
Sandra Jatahy Pesavento
Maria Stella Bresciani
Lana Lavinas
Luiz César de Q. Ribeiro
José Augusto Avancini
Cláudia Mauch
Anderson Zaiewski Vargas
Carlos Roberto Monteiro de Andrade
Mário Henrique Simão CAgostino
Cláudia Pilia Damasio
Fernanda Ester Sánchez Garcia
Artur do Canto Wilkoszynski
Lucrécia CAIessio Ferrara
Robert Moses Pechman
Günter Weimer •
Maria Angela Faggin Pereira Leite'"•;
Ana Angélica Dantas Alves MayPj^.
Maria da Penha Smarzano Siqüeip^<ií%
Ana Maria Mauad de Sousa Andradfí^s^qs

OEdüora
da UnívorsIdMto

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