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Ulpiano T.

Bezer ra de Meneses

a c i o n a l
r epovoar

n
o patrimônio ambiental Urbano

r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
A premissa destas reflexões é o valor Segue-se listagem em que encontramos,
cultural entendido como o potencial de derivados da mesmíssima matriz, espaços,
qualificar (diferencialmente) qualquer tempo objetos, estruturas, práticas, saberes

P
ou segmento da vida humana integral e corporificados, mediações sensoriais e outras

d o
e v i s t a
seus processos de socialização pela interação formas de objetivação da vida.
recíproca com espaços, coisas, práticas. Não A redação e a estrutura dos incisos e pa-

r
se justificam, assim, polaridades excludentes rágrafos, assim como os artigos correlatos,
entre sujeito e objeto, utensílios e usuários, apresentam certas estranhezas e alguma ambi-
hábitat e habitante, patrimônio material guidade. Por exemplo, o inciso V do mesmo
e imaterial. No entanto, a intervenção artigo retoma valores (históricos, artísticos,
do Estado institucionalizando a esfera da arqueológicos etc.), que parecem inerentes
preservação tem favorecido, no campo do aos bens (conjuntos urbanos e sítios). Apesar
patrimônio ambiental urbano, a concepção disso, as inovações introduzidas são preciosas. 39
de cidade como essencialmente artefato. Antes de mais nada, a matriz do valor cultural
Serão apresentados, porém, alguns caminhos passa do Estado para a sociedade, substituin-
do conhecimento para superar uma presença do o Decreto-lei no 25/1937, segundo o qual
apenas fantasmagórica do habitante. o tombamento é que instituía o patrimônio
A Constituição Federal de 1988, ao nacional; agora, instituinte é a sociedade,
conceituar o patrimônio cultural brasileiro, ou melhor, seus “grupos formadores”, cuja
armou uma bomba-relógio que está longe de identidade, ação e memória são alimentados
ser desativada. Diz seu artigo 216: e alimentam determinados bens materiais ou
imateriais, indistintamente. Deve-se reco-
Constituem patrimônio cultural brasileiro os
nhecer a interação de bens e sujeitos como
bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores característica do patrimônio. O poder público
de referência à identidade, à ação, à memória pode ter função declaratória e protetora – e,
dos diferentes grupos formadores da sociedade mesmo assim “com a colaboração da comuni- Salvador
Acervo: Copedoc/Iphan/
brasileira, nos quais se incluem (...). dade” (art. 216, parágrafo 1º). Marcel Gautherot.
Judiciosamente, Antônio A. Arantes (2009) locais e os especialistas. Os próprios
Repovoar o patr imônio ambiental urbano

tem insistido em que a atribuição de valor na organismos internacionais têm se preocupado


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esfera pública e a interveniência da proteção com esse “despovoamento” do patrimônio.


criam dinâmicas diferentes e especificidades O International Centre for the Study of the
consideráveis que colocariam o patrimônio Preservation and Restoration of Cultural
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cultural distante das simples mediações cultu- Property – Iccrom montou um projeto de
rais de objetos e práticas. Quero crer, todavia, formação denominado The People-Centred
a

que há porosidade e interpenetrações poten- Approach (abordagem centrada em pessoas).


e

ciais ou efetivas e inserções que criam tanto A chamada conservação integrada, surgida
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continuidades quanto divergências. nos anos 1960/1970 numa Itália que ainda
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Seja como for, ocorre que, na maioria procurava cicatrizar suas feridas de guerra,
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das agências de proteção, procedeu-se a um colocou o habitante como protagonista


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peculiar juízo de Salomão: o patrimônio das (destinatário e agente) dos planos de


pessoas ficou com o caput do artigo 216, urbanização e desenvolvimento. Ao mesmo
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que define o patrimônio brasileiro, todo tempo em que se priorizava o favorecimento


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o patrimônio brasileiro, sem fraturas; já das classes mais desguarnecidas, introduziu-se


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no patrimônio de pedra e cal optou-se por a necessidade de integrar, no planejamento


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manter a ideologia e os critérios do Decreto- urbano, todos os mais diversos componentes


lei n 25/1937.
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e atores presentes no território urbano –
A tendência de base é universal, mas capitalizados pela expressão de patrimônio
essa linha esquizofrênica vem provocando ambiental urbano. Sem dúvida, a difusão
pesadas críticas e apelos à paz entre o tangível do imperativo de conservação integrada
e o intangível, sem afetar as especificidades. produziu uma verdadeira revascularização do
A palavra de ordem, no repúdio, é a sigla pensamento patrimonial, internacionalmente,
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AHD (Authoritative Heritage Discourse), e abriu perspectivas para aceitação da
que caracteriza um discurso autoritário e natureza social do patrimônio e de suas
excludente (Ludwig, 2016). Chega-se a funções como tal, reforçadas com a
declarar que já é tempo de reconhecer que obrigação da sustentabilidade. Hoje há
as pessoas e suas ações não podem mais ser pouca discordância quanto à prioridade dos
consideradas uma perturbação e um perigo à usos sociais do patrimônio. Todavia, como
conservação do patrimônio (Craith e Kockel, falar de usos sociais quando, mesmo que a
2016). Também se nega que a diversidade escala permita, se desconhece ou se conhece
cultural seja atributo apenas dos valores pouquíssimo o habitante, ou quando ele
sociais, em contraposição aos valores técnicos, é um ente estatístico em levantamentos
supostamente em harmonia com categorias socioeconômicos e fator abstrato nos
universais. Por isso, muitas pesquisas estudos urbanos? Há tempos que, dentro da
demonstram, como indicam Spennemann, mencionada revascularização de critérios,
Lockwood e Harris (2001), a divergência a arquitetura vernacular ganhou status de
entre valores professados pelas comunidades cidadania; seu parente próximo, o habitante
vernacular, apenas dispõe da condição de O turismo cultural, tema conexo,

Repovoar o patr imônio ambiental urbano


residente permanente. também tem despertado vasta bibliografia,

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Impõe-se, portanto, repovoar o que alerta contra danos e incômodos trazidos
patrimônio urbano, nele reintroduzir o seu ao habitante por essa indústria de massa. É
protagonista. Se examinarmos a bibliografia

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raro, porém, que o habitante seja mais que

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nacional disponível, veremos que nossos uma atração passiva ou parceiro de interesses.
estudiosos produziram um vasto rol de dados Contudo, uma categoria especial de tu-

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e análises sobre o papel do Estado, da política, rismo cultural oferece condições propícias à

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dos intelectuais, dos interesses econômicos, emergência do habitante concreto, nas suas

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das ideologias, da trajetória dos órgãos de singularidades e interações: refiro-me ao

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preservação, dos aspectos técnicos e sociais chamado dark tourism (turismo em lugares

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da preservação e conservação, da reabilitação

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emblemáticos de pobreza, tragédias humanas
urbana e temas conexos. Há também ou naturais, ou sofrimento em geral), fenô-
numerosos estudos de muita qualidade sobre meno das últimas décadas e que tem incen-

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cidade e cultura, cidade e patrimônio, cultura tivado a atenção de estudiosos, sem excluir o

d o
urbana. Conviria, agora, dar ao habitante, tratamento específico do patrimônio cultural

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no universo do patrimônio cultural, uma (Convey, Consane e Davis, 2014). No Brasil,

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presença menos etérea. a favela vem despertando um interesse cada
As referências que a seguir apresento vez maior de turistas e pesquisadores. Não
não têm qualquer pretensão de revisão por acaso, já que, nesses contextos, subjetivi-
bibliográfica ou seleção de obras exemplares. dade e destinos humanos são componentes
Destinam-se essencialmente a atrair a atenção fortes. Aí são mais frequentes as abordagens
para temas ou abordagens com potencial de que melhor põem em cena o visitado – e o
incentivar pesquisas que contemplem um visitante. Um bom exemplo vem da favela 41
perfil mais definido do habitante. da Rocinha, no Rio de Janeiro, que conta até
Uma oportunidade está nos estudos
com um museu comunitário em que o habi-
de impactos da consagração de cidades
tante autorrepresenta. A pesquisa de Bianca
como patrimônio mundial, gerando efeitos
Freire-Medeiros (2010) demonstra como se
negativos sobre a população. Há muitos
pode trabalhar a interação entre os habitantes
trabalhos sobre tais “efeitos perversos” de uma
e os demais agentes envolvidos, quando “as
“tragédia do patrimônio” ou a “alienação dos
identidades são constituídas, observadas e
sujeitos” e assim por diante. Rogério Proença
julgadas, não apenas exibidas”. Assim,
Leite (2004), que tem se dedicado ao tema
do enobrecimento urbano (gentrification)
(...) moradores, turistas, guias, pesquisadores
em Pernambuco (2004) e alhures, e outros mais estamos todos constantemente
também formulou um arcabouço teórico- negociando e renegociando uma nova gramática
metodológico que pode abrir caminhos para cuja pretensão é acomodar, no território da favela
analisar o comportamento do habitante na turística, lazer e pobreza, diversão e comiseração
esfera pública e na ação política. (Freire-Medeiros, 2010:49).
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U l p i a n o T. B e z e r r a d e M e n e s e s Repovoar o patr imônio ambiental urbano
Rio de Janeiro
Acervo: Iphan/Iluchar Desmons.
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Uma vertente que ainda tem pouca populações e com a qualidade e eficácia
Repovoar o patr imônio ambiental urbano

expressão entre nós, mas grande potencial dos serviços que lhes são prestados. Assim,
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para explicar características mais ricas no segmento do patrimônio, aplica-se


e diversificadas dos habitantes, é a dos aos critérios, objetivos e procedimentos
movimentos sociais, pois enseja vê-los em para dialogar com um interlocutor mais
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ação e desvelando seus compromissos e subjetivo e com múltiplas possibilidades de


representações. Uma amostra da viabilidade interagir. Razão técnica e razão social não são
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de desfazer a polaridade entre o patrimônio excludentes. Em 2006, em Londres, mais de


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material e o imaterial, contribuindo para quatrocentos profissionais do movimento


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“repovoar” o patrimônio cultural, é um se reuniram (Clark, 2006) para revisar


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estudo sem maiores pretensões, mas bem critérios e instrumentos de ação: debates
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encaminhado, que analisa a mobilização obrigatórios, audiências públicas, consultas


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popular ocorrida em Belo Horizonte quando e referendos (inclusive de grande escala),


a municipalidade pretendeu esvaziar o canais diretos de participação e comunicação,
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Mercado Distrital de Santa Tereza de suas compromissos de transparência absoluta nos


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funções (Araújo e Castriota, 2007). Os procedimentos administrativos, disseminação


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ingredientes estão completos e imbricados: de informação, vários canais de inserção


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o bem material, na plenitude de seu do habitante nas avaliações contínuas,


funcionamento e significações, nas referências preocupações educacionais etc. Como se
de identidade e memória, na multiplicidade vê, não são novidades extraordinárias, mas
de atores interagindo, nos conflitos, na ação o que conta é a vontade política de integrar
política, com projeção de futuro e, mais o habitante e fazê-lo participar da formação
ainda, na explicitação de valores, motivações de uma filosofia das preferências do órgão,
e interesses. que admite, solicita, discute e incorpora
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Vale a pena também incluir como criticamente aquilo que é apresentado, passo
movimento social um exemplo inglês eficaz para se beneficiar do conhecimento
sui generis, pois aglutina, com caráter do habitante na produção e operação de
marcadamente político, membros da significados, valores e representações do
administração pública. Trata-se do “Public patrimônio como experiência vivida.
Value Governance”. A fim de superar a Tema que, no contexto do patrimônio,
noção de público consumidor, alvo das parece convidar a presença do habitante é
pesquisas de mercado ou, na melhor das a habitação, já que é ele quem, ao habitar,
hipóteses, das pesquisas de opinião, gosto produz empiricamente a habitação.
ou preferências, esse movimento surgiu no Entretanto, ainda aqui, até mesmo em obras
quadro das políticas culturais, definindo de bom nível e interesse (como em Lima e
como bandeira privilegiar o valor público. Maleque, 2004) essa figura costuma aparecer
Public Value, nesse contexto, pressupõe mais por procuração – como “usuário”,
administração pública compromissada “beneficiário”, destinatário de projetos para
com as necessidades e demandas das prover “condições dignas de morar”, parceiros
com os quais se dialoga para “incentivar o Valor histórico e valor estético são dois

Repovoar o patr imônio ambiental urbano


cidadão a preservar a identidade cultural e critérios fundamentais da prática cotidiana do

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artística de cada época” e assim por diante profissional de patrimônio. Paradoxalmente,
–, mas não como sujeito ativo, que tenha pouco se conhece das percepções do
definido, nas suas práticas e representações, habitante urbano. Grande parte dos estudos

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seus valores e expectativas e formas do imaginário, das representações sociais,
diferenciadas de se apropriar do que lhe é da iconografia etc. dedica-se à legibilidade

a
oferecido. De notar que certos recortes, como da cidade e suas projeções – opção legítima

e
os usos da rua (Frehse, 2009) são sempre –, mas tem deixado à sombra o “leitor”

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férteis de possibilidades, quando há interesse concreto, contextualizado e histórico dessa

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nas sociabilidades. mesma cidade-imagem (Meneses, 1996).

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É na França que a difusão da pesquisa de A história acadêmica começa a esboçar

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campo de tipo etnográfico, para investigar o caminhos para desfazer essa sombra,
processo do habitar ao vivo, tem produzido principalmente na Inglaterra e nos Estados

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algumas obras que definem o habitante na Unidos. David Carr (2014) acredita numa

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experiência cultural. A coletânea La ville abordagem fenomenológica, em que, em vez

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patrimoine (Saint-Pierre, 2014) põe em de perguntar o que é história ou como se

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cena o caráter performático do patrimônio conhece história – para nós: o que é histórico
habitado. Habiter le patrimoine (Gravari- no patrimônio? –, procura saber como as
Barbas, 2005) tem, como denominador pessoas vivem a história na dimensão de
comum das diversificadas contribuições, fenômeno. O que se privilegia é a experiência
a importância das apropriações de tempo do histórico, como a história se apresenta,
e espaço, que vão interferir nos modos de entra na vida das pessoas, quais as formas
habitar, salientando-se que o ato de “habitar de existir que ela configura. Para tanto,
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um patrimônio” não é neutro. Os quinze trabalha com o espaço vivido, o tempo
ensaios de Les monuments sont habités (Fabre vivido, inclusive o “tempo cultural”. Carr
e Iuso, 2009), fruto de pesquisa franco- trata tais questões como matéria de teoria
italiana, acentuam a historicidade dos padrões da história e não se preocupa com estudos
de viver em espaços patrimonializados ou empíricos. Interesses comparáveis dominam
nas imediações, o que torna inteligíveis no campo conhecido como da história
as heterogeneidades, contradições e pública, basicamente história não acadêmica,
mutabilidade. A pesquisa canadense, expressa cuja ambição é socializar o mais possível o
na coletânea La patrimonialisation de conhecimento histórico e cujo efeito constitui
l’urbain (Bernier, Dormaels e Le Fur, 2012) também objeto de pesquisa (Beck, 2012).
demonstra a fecundidade desses estudos, ao O que mais nos interessa da história pública
diversificar as situações: apropriações de elite são os estudos de consumo da história, como
versus apropriações do habitante, mudanças ocorre na obra de Jerome de Groot (2009)
de função, intervenção de agentes sociais, o apoiada em experiências no Reino Unido,
banal e o excepcional, reações identitárias. EUA, França e Alemanha. Aqui, o objetivo
é examinar como a sociedade incorpora estética por hierarquias de cânone ou estilo
Repovoar o patr imônio ambiental urbano

a história, possibilitando um melhor restringe muito seu sentido.


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entendimento da cultura popular. Para tanto, Quando se faz do habitante sujeito da


valem todos os suportes de representações: cidade, a estética urbana deveria incluí-lo
TV, “docudramas”, cinema, mídia impressa como produtor de experiências estéticas,
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e eletrônica, games, literatura (romances apto a estetizar seu ambiente. Para tanto,
históricos ou “de época”, livros para crianças), é a prática da cidade – antes de mais nada,
a

quadrinhos, museus, etc. No bojo da história a prática do espaço – que lhe fornece os
e

pública vem se desenvolvendo uma disciplina insumos, através dos quais ele procura
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que tem recebido o nome de história inteligibilidade e fruição no cotidiano. A


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popular, de que Roy Rosenzweig (2013) estética é condição seminal para a cidade
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é referência. Para ele, o que importa, mais significar, gerando subjetivação. Assim, numa
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que a interpretação popular dos conteúdos condição excessivamente utilitária do espaço


recebidos, como fazia uma insuficiente como a nossa, em prejuízo de conteúdos
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sociologia da recepção, é a própria produção perceptivos, simbólicos, axiológicos, dá-se


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nova de sentidos, na concretude dos aquela redução semântica, de que falava


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múltiplos contextos e nos efeitos da mútua Lepetit 200:144), com embaçamento da


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interação, na esteira de uma sociologia da possibilidade de significar fomentando a


apropriação cultural. alienação ou o stress.
Em relação à estética, é de notar que a “Produzir sentido, no mundo, envolve
expressão estética urbana presta-se a muitos interpretá-lo como sensível”, é ideia que
significados mal circunscritos. Tanto pode percorre o livro clássico de Mary Douglas
ser a cidade como obra de arte, componente (1996:49). Mais uma vez, porém, a estética
histórico da forma urbana, quanto a do citadino comum não despertou interesse,
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“ornamentação” da cidade (como nos antigos embora haja exceções: uma delas, de novo, é
planos de “embelezamento”), ou, mais a favela, na visão de Paola B. Jacques (2001),
adequadamente, nos modos de qualificação como ocasião de tomar a estética como um
ou requalificação de áreas da cidade sistema perceptivo próprio, com seus traços
(incluindo o paisagismo). Já a fluida categoria próprios, componente do mundo real que se
arte pública acentua conteúdos espaciais e quer conhecer e que organiza a apropriação
frequentemente assume sentidos políticos corporal do espaço, incluindo as múltiplas
como forma de apropriação do espaço urbano dimensões, valores e práticas do cotidiano,
em modalidades, tais como o grafite, o teatro, das contingências e das escolhas.
a dança e a música de rua etc. A expressão, Uma das consequências de acreditar
ainda, tem a ver com a morfologia urbana, num cânone hierarquizado é a falta de
com a paisagem urbana (categorias muitas critérios para encaminhar problemas estéticos
vezes superpostas); tem a vantagem de colocar nas intervenções urbanas. Deixo de lado
a forma como um problema crucial para a os problemas da «cidade multicultural»
vida urbana. Todavia, a contaminação da (Macagno, 2014), embora não me furte a
Acervo: Iphan.
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Cuias do baixo Amazonas


U l p i a n o T. B e z e r r a d e M e n e s e s Repovoar o patr imônio ambiental urbano
assinalar a existência, em vários países, de da cidade. Duas posturas são recorrentes,
Repovoar o patr imônio ambiental urbano

códigos estéticos oficiais, guias, padrões além da cobrança de estudiosos e órgãos


a c i o n a l

normativos – em suma, instrumentos de de planejamento e políticas urbanas, por


controle estético, inclusive jurídico. serem lentos em incorporar a crítica do
Nessa perspectiva, é preciso recuperar o reducionismo e centralidade da visão
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sentido presente na palavra estética originada (oculocentrismo), seja na espetacularização


no grego aísthesis, que significa percepção. da cidade, seja na limitação dos estudos;
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Restaurada no século XVIII, foi aos poucos se em decorrência, ganham destaque a


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acomodando no território artístico (lembre-se multissensorialidade/intersensorialidade.


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que a arte é apenas uma das manifestações Rapidamente começaram a surgir, nas
U l p i a n o T. B e z e r r a d e M e n e s e s

do estético). A estética concerne a mediação áreas de arquitetura e urbanismo, estudos


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do eu com o mundo externo, funcionando de diverso alcance e orientação. Poucos


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como a ponte fundamental que os sentidos têm caráter abrangente, como, em 1996, o
fornecem para sairmos de dentro de nós e pequeno e famoso livro de Pallasmaa (2005,
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organizarmos as múltiplas relações com o trad.bras.) e mais alguns, como Zardini


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meio ambiente, com nossos semelhantes (2005), com inclinação fenomenológica,


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e até com o transcendente. Nesse rumo, a num contexto museológico, ou outros


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estética é condição de vida social, melhor poucos numa perspectiva histórica (Cowan &
dizendo, é a mediação que nos faz humanos. Steward 2007).
Correlatamente, tem-se que associar a A maior parte dos estudos, porém, elegeu
mediação sensorial, a sensorialidade, um sentido específico (além da visão, cuja
com o corpo, já que, como dizem os abundância dispensa referências): o olfato,
fenomenologistas, mais que termos um com seu poder de orientar fortemente os
corpo, somos um corpo, como modo de ser modos de experimentar espaço e lugar
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no mundo – até na superação da condição (Henshaw, 2014) ou servir às políticas
corporal. Daí a importância que o corpo vem de higienização social (Rago, 1987). A
assumindo na compreensão da cidade, muito arquitetura aural não está ausente (Blesser
além de uma problemática funcionalista e e Salter, 2006), mas estranhamente – já que
ergonômica (Britto, Pereira e Jacques, 2010). é um dos alvos prediletos da antropologia
Fala-se hoje que haveria uma “virada sensorial – o sentido do tato está mal
sensorial” no universo das ciências sociais, representado, embora sejam numerosos
gestada no interior da história, da sociologia os estudos do chamado haptic design, de
e, sobretudo, da antropologia, a partir da tendência mais tecnológica, fornecedora de
década de 1980 (Howes e Classen, 2014). parâmetros para a arquitetura. Até para o
Daí também a proposição de questões paladar se encontraram algumas (poucas)
especificamente sensoriais no campo pistas para iluminar os espaços urbanos
de estudos da arquitetura, urbanismo e (Lemasson 2006).
patrimônio, no esforço de investigar o papel Do ponto de vista aqui privilegiado – o
do sensorial na formação das experiências habitante –, seu peso é ainda insuficiente
nesses estudos, mas as perspectivas que aos suportes materiais do patrimônio e seus

Repovoar o patr imônio ambiental urbano


se abrem são alvissareiras, sem contar os contextos e atores hegemônicos.

a c i o n a l
insumos teórico-metodológicos. Corpo Ressalve-se, ainda, que é impróprio
e sensorialidade implicam experiências separar sujeitos e bens. Laurajane Smith
de seres concretos e já começa a aparecer, (2006) pretende que o patrimônio é mais

n
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principalmente em estudos com bem entendido como processo, ou verbo,
compromissos metodológicos, uma presença, e não substantivo. Eu acrescentaria: como

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mais que inferida, do habitante. Pinar verbo transitivo, que necessita de objetos

e
Yelmi (2015) cuida do projeto Soundscape diretos para se realizar. Cidade e cidadão estão

i s t ó R i c o
of Istanbul, que organiza mapas sonoros e o unidos até mesmo pelos vínculos indissolúveis

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arquivo dos sons do cotidiano e medidas de da etimologia.

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proteção, mas também desenvolve inúmeras Aqui, o protagonismo estratégico,

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atividades comunitárias, como oficinas com portanto, não pretende desqualificar
adultos e crianças dos locais. Já Alessandra nosso precioso acervo de saber já

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Mariani (2008) examina a recriação virtual acumulado, nem desmobilizar doravante

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em museu de uma “imersão sensível” de as atividades dos órgãos de patrimônio

e v i s t a
habitantes (e demais visitantes) em ambientes ou de pesquisa e sugerir outro paradigma.

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de Montreal, como exercício de interpretação Fundamentalmente, desejei chamar a atenção
sensorial de seu viver na cidade. para uma lacuna que precisa ser anulada
-- o que certamente revitalizará o paradigma
conclUindo vigente. Por isso mesmo é que não toquei
em aspectos práticos, organizacionais ou
O objetivo maior destas reflexões foi metodológicos de pesquisa. Desejo apenas
ressaltar ser conveniente, para respeitar a salientar a responsabilidade especial da
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natureza social do patrimônio ambiental universidade e instituições semelhantes –
urbano, transferir o excessivo e por vezes aliás, positivamente convocadas para os
exclusivo foco de interesse nos bens (materiais registros de patrimônio imaterial, assim
ou imateriais), e no poder público, para como nos levantamentos do Centro Nacional
os sujeitos – os agentes humanos, nas suas de Referência Cultural – CNRC. Por isso, o
multiformes interações. Contudo, longe de Inventário Nacional de Referências Culturais
qualquer inaceitável perspectiva relativista – INRC (Corsino et al., 2000) e demais
ou paternalista, o importante é evitar, na inventários de patrimônio poderiam servir
arena do patrimônio, atores ocultos. Assim, o de ponto de partida para o desenvolvimento
protagonismo dos sujeitos aqui explícito deve de alguns novos temas e abordagens. Última
ser considerado apenas como uma espécie de observação: seria bom introduzir entre as
“ação afirmativa”, para compensar essa antiga rotinas de pesquisa alguns dos protocolos
marginalização e a consequente carência de da etnografia urbana (Magnani, 2002),
conhecimento, principalmente em face de um mesmo que o objetivo não se limite a
quadro muitíssimo mais fornido em relação estudos de caso.
Políticas de patrimônio cultural urbano referências
Repovoar o patr imônio ambiental urbano

terão sempre um débito em aberto, se


a c i o n a l

desconhecerem o universo de valores, que ADAMS, Mags; GUY, Simon. Editorial: senses and the city. The
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