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CPI DO 8 DE JANEIRO CRIADA PARA ATAZANAR A RIO DE JANEIRO A ALIANÇA ENTRE O COMANDO

VIDA DO GOVERNO LULA, A COMISSÃO FOI UM TIRO VERMELHO E AS MILÍCIAS DESAFIA O PODER
NO PÉ DA OPOSIÇÃO E VAI PROPOR O INDICIAMENTO PÚBLICO E SERÁ UM TESTE AO MODELO DE
DE BOLSONARO POR INCITAR O GOLPE DE ESTADO INTERVENÇÃO ANUNCIADO POR FLÁVIO DINO
ANO XXIX N° 1281 R$ 31,90
18 DE OUTUBRO DE 2023

GUERRA DESIGUAL
A BARBÁRIE GUIA O CONFLITO ENTRE ISRAEL E O HAMAS
MINO CARTA: ISRAEL DE NETANYAHU PROMETE VARRER OS ÁRABES DO MAPA
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É O BRASIL
NO RUMO CERTO

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ACESSE GOV.BR/NOVOPAC E SAIBA MAIS.

O NOVO PAC É O NOSSO PAC:


DA G E R AÇÃO D E E M P R EG O.
DA T R A N S I ÇÃO EC O LÓ G I CA .
D O C R E S C I M E N TO EC O N Ô M I C O.

O maior programa
de investimento do país,
que vai melhorar a vida dos
brasileiros em todos os estados.

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18 DE OUTUBRO DE 2023 • ANO XXIX • N° 1281

O voto no “liberal libertário”


Javier Milei é profundamente
anti-Estado. Pág. 44

6 A SEMANA As câmeras
32 E N T R E V I S TA O dólar promove
42 A N Á L I S E

9 M A R I A R I TA K E H L nas fardas de PMs ajudam a a alegria de ecologistas,


protegê-los, diz ex-ouvidor pentecostais e católicos

Plural
das polícias de São Paulo
Seu País 34 S A Ú D E Gargalos do SUS
O relatório
22 8 D E J A N E I R O Nosso Mundo
são ainda mais graves nos

48
final da CPMI dos Atos A grave
44 A R G E N T I N A
municípios que fazem
Golpistas vai propor crise econômica
fronteira com outros países
L A L I B E R TA D AVA N Z A 2 0 2 3 E M Á R I O N O VA I S / B I B L I O T E C A
o indiciamento de Jair colocará a democracia
Bolsonaro e seus asseclas à prova nas urnas FASCISMO À
27 R I O D E J A N E I R O Economia em 22 de outubro PORTUGUESA
Após a execução de 38 B N D E S Disputa pelo
DE ARTE/FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

Kevin McCarthy
46 E U A
três médicos e a rápida FAT reacende debate é a enésima vítima da O HISTORIADOR FERNANDO ROSAS
resolução pelo sobre o financiamento da subserviência do Partido LANÇA NOVA OBRA PARA DECIFRAR
“tribunal do crime”, reindustrialização do País Republicano a Trump
vem aí outra intervenção
A DITADURA DE SALAZAR, A MAIS
LONGEVA DA EUROPA NO SÉCULO XX
50 T H E O B S E R V E R A incômoda herança
OLHO POR OLHO digital 53 C I N E M A Gal Costa revisitada
Capa: Pilar Velloso. 54 MÚSICA Notas tocadas com o propósito de
Foto: Belal Khaled/ A BARBÁRIE CONTRA CIVIS GUIA O educar 56 A F O N S I N H O 57 S A Ú D E Por Arthur
Anadolu Agency/AFP CONFLITO ENTRE ISRAEL E HAMAS Chioro 58 C H A R G E Por Venes Caitano

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4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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CLUBE DE REVISTAS
A Semana
CPI das Pirâmides/ Alvos ilustres
Chaga aberta

No terceiro trimestre deste


ano, a Bahia registrou 195
Relatório final pede indiciamento de Ronaldinho Gaúcho e Faraó dos Bitcoins
mortes decorrentes de

A
intervenção policial, revelam
dados do Instituto Fogo CPI das Pirâmides Financei-
Cruzado. O número represen- ras aprovou por unanimidade,
ta aumento de quase na segunda-feira 9, o relatório do
80% dessas ocorrências, deputado Ricardo Silva, do PSD
na comparação com o mesmo
paulista, que pede o indiciamento do ex-jo-
período de 2022, quando
109 suspeitos morreram gador de futebol Ronaldinho Gaúcho, de oi-
em ações da polícia baiana. to operadores da 123 Milhas, do empresário
A Bahia detém, hoje, a maior Glaidson Acácio, conhecido como o “Faraó
letalidade policial do Brasil. dos Bitcoins”, e de outros 35 investigados.
Ao todos, as forças de segu-
Ouvido pela comissão, Ronaldinho é acusa-
rança foram responsáveis
por 1.464 homicídios no ano do pelo relator de praticar estelionato e lava-
passado, ultrapassando gem de bens e capitais, entre outros crimes. O
o Rio de Janeiro, segundo ex-craque da Seleção Brasileira foi chamado
o Anuário Brasileiro de por sua ligação com a 18K Ronaldinho, que
Segurança Pública.
prometia vultosos retornos financeiros, de
até 400% ao ano, com aplicações em cripto- O atleta diz que seu nome foi usado
moedas. Durante o depoimento à CPI, o atleta de forma indevida por empresa

negou ser sócio da empresa e disse que seu no-


me foi usado de forma indevida. tar concorrentes no mercado das criptomoe-
Já o Faraó dos Bitcoins é acusado de estelio- das. O relatório também recomendou ao mi-
nato, lavagem de bens e capitais e delito de nistro da Fazenda, Fernando Haddad, o fim do
gestão fraudulenta. O empresário é apontado prazo para expirar milhas de companhias aé-
pelo Ministério Público do Rio como chefe de reas. Outra sugestão é a criação de uma lei com
uma “tropa armada” para monitorar e até ma- novas regras para os programas de milhagens.

Memória/ PELO PÃO NOSSO DE CADA DIA


DOM MAURO MORELLI DESTACOU-SE NA LUTA CONTRA A FOME NO BRASIL

O bispo emérito de Duque de Fome, em parceria com Her- de fé de Dom Mauro Morelli
Caxias, Dom Mauro Morelli, fa- bert de Souza, o Betinho, auxi- neste momento de tristeza e
leceu na segunda-feira 9, aos liou no planejamento do progra- despedida”, escreveu o presi-
88 anos. O religioso estava in- ma Fome Zero, no primeiro dente Lula nas redes sociais.
ternado em um hospital de Belo mandato de Lula, e foi integran- “Tive o privilégio de trabalhar
Horizonte para tratar complica- te do Comitê Permanente de com Dom Mauro no Programa
ções de uma pneumonia. Nutrição da ONU. Exerceu, ain- de Segurança Alimentar e Nu-
Dom Mauro foi ordenado sa- da, o bispado em Duque de Ca- tricional desenvolvido pela Itai-
cerdote em 1965 e nomeado xias de 1981 a 2005, quando pu Binacional e coordenado por
bispo auxiliar de São Paulo em renunciou ao ministério. mim. Nesse período, pude ob-
1974 pelo papa Paulo VI. O pá- “Soube, com grande triste- servar de perto seu compro-
roco foi um grande expoente na za, do falecimento desse gran- misso incansável pelos direitos
luta contra a desnutrição no de amigo que lutava por um humanos e a alimentação”,
Francisco reconheceu os esforços Brasil. Ele participou da criação Brasil mais justo e solidário. acrescentou a socióloga e pri-
de Morelli em prol dos mais pobres da Ação da Cidadania Contra a Meus sentimentos aos irmãos meira-dama, Janja Silva.

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
18.10.23

Unicef/ Déficit de aprendizado


Amadorismo oneroso

A prefeitura de São Paulo


Analfabetismo de crianças de 7 a 9 anos dobra no Brasil após pandemia gastou 400 reais por unidade
com uma armadilha contra o

A
Aedes aegypti, mosquito
proporção de crianças de 7 anos 4,4% para 9,5%. Os dados constam em um transmissor da dengue, que
que não sabem ler ou escrever recente estudo sobre pobreza multidimen- tem uma versão similar
passou de 20%, em 2022, pa- sional do Unicef, o braço das Nações Unidas desenvolvida pela Fundação
ra 40% no ano passado. Nes- para a infância e adolescência, com base em Oswaldo Cruz ao custo de
apenas 10 reais. A gestão de
se mesmo período, marcado pela suspensão dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Ricardo Nunes celebrou um
das atividades escolares por conta da pande- Domicílios do IBGE. contrato de 19 milhões de
mia de Covid-19, o porcentual de alunos de 8 Apesar do retrocesso no campo educacio- reais, em março deste ano,
anos não alfabetizados passou de 8,5% para nal, houve uma tímida melhora na taxa de po- para uma revendedora da
20,8%. Na faixa dos 9 anos, a taxa cresceu de breza multidimensional, que também consi- empresa holandesa In2care
fornecer os equipamentos. Já
dera a renda familiar e o acesso
o modelo criado pela Fiocruz
a moradia digna, água tratada e não é protegido por patente e
saneamento básico. Ela foi re- pode ser adquirido por meio
duzida de 62,9%, em 2019, para de parcerias com o Ministério
60,3%, em 2022, segundo o da Saúde. Ao jornal Folha de
S.Paulo, o secretário
Unicef. O revés nos indicadores
municipal de Saúde de São
de alfabetização é atribuído, Paulo, Luiz Carlos Zamarco,
sobretudo, à demora para reto- disse desconhecer as
mar as aulas após o período armadilhas desenvolvidas
mais agudo da pandemia. O pelo laboratório público. “Vou
me informar, porque, se tem,
Brasil foi o quarto país do mun-
vamos optar pelo nacional.
do a manter as escolas fechadas Não tinha conhecimento.”
por mais tempo – em média,
um ano e meio –, segundo um
estudo da Organização para a
Cooperação e o Desenvolvi-
O Brasil foi o quarto país a manter as escolas fechadas por mais tempo mento Econômico, a OCDE.

Clima/ DILÚVIOS RECORRENTES


SANTA CATARINA TEM 135 CIDADES ATINGIDAS POR FORTES CHUVAS
NE WS, LUL A M A RQUES/A BR E FUNDH AS/PMS JC
A N D E R S O N C O E L H O / A F P, A R Q U I V O / V A T I C A N

Após a devastação causada pe- chente no Rio Itajaí-Açu, com ní- vizinho, avalia o governador de
las chuvas no Rio Grande do vel bem acima do normal, a pre- Santa Catarina, Jorge Mello.
Sul, 135 municípios catarinen- feitura de Blumenau decidiu “Foi um trabalho grandioso dos
ses – 46% do total – acumulam suspender preventivamente a bombeiros, da polícia, da
prejuízos causados pelos fortes Oktoberfest entre 6 e 10 de ou- Defesa Civil, de todas as forças
temporais que atingem o esta- tubro. O evento, que terminaria de segurança para ajudar a
do. Destes, 82 decretaram situ- em 22 de outubro, será esten- socorrer essas pessoas. Agora
ação de emergência. Segundo dido até o dia 29. é acolher essas famílias em
o governo estadual, duas pes- O alerta antecipado das for- casas de parentes e abrigos.
soas morreram por conta das tes chuvas e os esforços para Depois que as águas baixarem,
inundações que castigaram as reduzir seus impactos foram vamos arregaçar as mangas
cidades de Rio do Oeste e Pal- decisivos para evitar a repeti- para recuperar pontes e Com as mudanças climáticas,
meira. Devido ao risco de en- ção da tragédia vista no estado espaços públicos.” a cena tornou-se corriqueira

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 7

CLUBE DE REVISTAS
A Semana

EUA/ Disputa embaralhada


Vale do Silício
brasileiro
Robert Kennedy Jr. anuncia candidatura independente à Presidência
A montadora chinesa BYD
assumiu, na segunda-feira 9,

R
o parque industrial da Ford em
obert Kennedy Junior, sobrinho
Camaçari, a 50 quilômetros
de Salvador, para iniciar a do ex-presidente norte-ameri-
produção de veículos elétricos cano John Fitzgerald Kennedy,
no Brasil. O investimento anunciou, na segunda-fei-
é de 3 bilhões de reais e as ra 9, que deixou o Partido Democrata pa-
primeiras unidades devem
ra se lançar como candidato independente
ser lançadas no mercado no
fim de 2024. O complexo às eleições presidenciais de 2024. Advogado
industrial foi adquirido pelo especializado em temas ambientais, ele che-
governo baiano por 220 gou a desafiar Joe Biden nas primárias de
milhões de reais e será sua antiga legenda, mas desistiu da disputa.
repassado para a BYD por
Agora, busca se firmar como representante
meio de uma concessão,
informaram os secretários daqueles que estão cansados da polarização
Afonso Florence, da Casa que domina a sociedade americana.
Civil, e Angelo Almeida, do Os analistas estão divididos em relação
Desenvolvimento Econômico. aos impactos da candidatura na corrida pre-
Com os incentivos do Poder
sidencial. Se, por um lado, Kennedy Jr. pode
Público, Wang Chuanf,
fundador e CEO da BYD, atrair eleitores democratas insatisfeitos com
promete instalar também Biden, por outro, também pode retirar votos
um centro de pesquisas. de Trump, pois é um ativista antivacinas e se
“Queremos fazer deste apresenta como um outsider mais autêntico
lugar um Vale do Silício.”
no pleito de 2024. “Venho aqui hoje para de- O sobrinho do ex-presidente JFK
clarar nossa independência da tirania da cor- abandonou o Partido Democrata

rupção”, disse a apoiadores na Filadélfia.


Robert Kennedy Junior é filho de Robert governo do irmão, ele disputava a indicação
F. Kennedy, que foi procurador-geral dos do Partido Democrata para concorrer à Pre-
EUA de 1961 até 1964, com atuação destacada sidência, quando foi assassinado pelo imi-

JESSICA KO U RKO U NIS/GE T T Y IM AGES/A FP E MOHSEN K A RIMI/A FP


no combate à máfia, e elegeu-se senador por grante jordaniano Sirhan Sirhan em 1968,
Nova York em 1965. Secretário de Justiça no cinco anos após a morte de JFK.

Afeganistão/ PESADELO SEM-FIM


DEVASTADOR TERREMOTO MATA MAIS DE 2 MIL AFEGÃOS

Um terremoto devastador ma- Geológico dos EUA, o epicen- mobilizadas para ajudar nos
tou ao menos 2 mil afegãos na tro do terremoto situou-se esforços de salvamento, in-
região oeste do país, informou cerca de 40 quilômetros a no- cluindo as Forças Armadas e
um porta-voz do governo roeste da cidade de Herat. organizações sem fins lucrati-
Taleban. O cismo de magnitu- “Além dos 2 mil mortos, há vos, como o Crescente Ver-
de 6,3 na escala Richter foi ao menos 1,2 mil feridos e melho. Mas, nas redes so-
seguido de fortes tremores 1,3 mil casas destruídas”, ciais, multiplicaram-se vídeos
secundários no sábado 7, com afirmou Abdul Wahid Rayan, mostrando civis tentando re-
magnitudes de 5,5 a 6,3, porta-voz do Ministério da In- mover os escombros com as
Finda a guerra, o país padece com além de outros abalos meno- formação e da Cultura. Pelo próprias mãos, em busca de
a miséria e catástrofes naturais res. De acordo com o Serviço menos doze equipes foram sobreviventes.

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
MARIA RITA KEHL
Psicanalista e escritora, foi integrante da Comissão Nacional da
Verdade. É autora, entre outros, de O Tempo e o Cão, vencedor
do Jabuti de 2010, e Tempo Esquisito (2023), ambos pela Boitempo

Antes que me cancelem

bem, o jogo era limpo. Meu cancelamen- dizê-las.” A frase é do iluminista Voltaire.
► A convicção de que, to foi fruto de um reles mal-entendido. No século passado, foi replicada pela a es-
para alguém se pronunciar “O mundo só caminha pelo mal-en- critora inglesa Evelyn Beatrice Hall.
tendido”, escreveu Baudelaire, o maior Tenho a impressão de que, na cultu-
sobre algum tema,
poeta da língua francesa. E acrescen- ra do narcisismo em que estamos todos
precise estar chancelado ta: “Sem o mal-entendido seria impos- mergulhados, o debate dialético torne-se
por um “lugar de fala”, sível que nos entendêssemos”. Pois é, mais raro. Fruto dessa mesma cultura,
não havia WhattsApp no século XIX. o apego de muita gente à garantia narcí-
faria Voltaire se
O mal-entendido era possível e por ve- sica fornecida pelos grupos identitários
remexer no túmulo zes abria brechas nos consensos, através torna cada vez mais rara a possibilidade
das quais novas possibilidade de enten- de discussões dialéticas. Como a propos-
dimento poderiam se apresentar. E como ta democrática pode conviver, por exem-

J
á fui “cancelada” uma vez. Por é bom quando voltamos a nos entender! plo, com a prática atual do cancelamento?
mais contraditório que pareça, Aquela intriga injusta ocorrida no pe- A convicção de que, para alguém se
foi no período em que integrei a ríodo da CNV me fez entender o sofri- pronunciar sobre algum tema, preci-
Comissão Nacional da Verdade, aprova- mento paranoide das vítimas de cance- se estar chancelado por um lugar de fa-
da no Congresso por empenho da então lamento: “O que foi que eu fiz? Por que la, teria feito Voltaire se remexer no tú-
presidenta Dilma Rousseff. Correu um ninguém mais fala comigo?” Entendi mulo. Vivemos num mundo em que ca-
boato de que eu “não estaria interessada” também que o cancelamento é o avesso da um deve tornar-se um microespecia-
na causa dos desaparecidos políticos. Um da dialética. A dialética – dialektiké, em lista apenas sobre os assuntos que lhe di-
mal-entendido que explicarei logo abai- grego – é a arte do diálogo (não me can- zem respeito?
xo. Demorei para “limpar minha ficha”. celem, não quero bancar a erudita, en- Três séculos depois de Voltaire, sob o
Como fui indicada pelo MST, era ló- contrei o termo no Google). título de “Lugar de Cale-se” escrevi so-
gico que coubesse a mim a pesquisa so- bre o “cancelamento” sofrido por Lilia
bre as graves violações de direitos huma- A “verdade”, seja ela qual for, tem mui- Schwarcz por parte do movimento ne-
nos entre as populações camponesas. No to mais chances de se apresentar, ou de gro. Seu crime? Ter feito um comentário
“pacote” vieram os indígenas: uma inclu- se elaborar, como resultado de um deba- – bastante irrelevante, a meu ver – sobre
são fundamental, dado o seu amplo geno- te honesto do que de brotar límpida e im- um vestido usado pela cantora Beyoncé.
cídio ocorrido durante a ditadura. Assim, poluta da cabeça de um gênio. “Tese-antí- Em vez da busca por um entendimen-
embora acompanhasse todas as audiên- tese-síntese.” Como alcançar esta última, to democrático e universal, a cultura dos
cias públicas dos militantes sobreviven- se a possibilidade da antítese for cancela- cancelamentos visa, ainda que não cons-
tes junto à CNV, eu não tinha tempo pa- da? Seríamos condenados a girar em tor- cientemente, a construção de uma vidi-
ra também pesquisar. Foi em uma des- no de uma tese estéril que, na falta da an- nha social toda dividida em nichos. Na-
sas audiências públicas que me dei con- títese, não produziria a esperada síntese. da a ver com o Touche pas à mon pote(Não
ta do meu cancelamento. Vale lembrar também que, depois de toque no meu camarada), que fez a Fran-
Alguns familiares de presos políticos nove meses em que escrevi quinzenal- ça ferver no século passado. Naquela oca-
viravam a cara, quando ia cumprimentá- mente para o jornal O Estado de S. Paulo, sião, o movimento negro buscava prote-
-los. Uma delas, generosa, resolveu me es- fui cancelada justamente quando me pro- ger-se de insultos e outros crimes prati-
clarecer a razão: “Você não está interessa- nunciei de maneira elogiosa sobre a en- cados por racistas.
da na causa dos mortos e desaparecidos”. tão candidata a presidente da República, Nas páginas de CartaCapital, não te-
Consegui explicar que mal tinha tempo de Dilma Rousseff. “Posso não concordar nho temor algum de que este artigo se-
B A P T I S TÃ O

tocar meu capítulo, e meu “cancelamen- com nenhuma palavra do que você diz, ja cancelado. •
to” foi cancelado. Estava entre pessoas de mas defendo até a morte o vosso direito de redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 9

CLUBE DE REVISTAS
CA PA

HITLER
AO CONTRARIO
ISRAEL DE NETANYAHU PRETENDE CANCELAR
HAMAS, MUÇULMANOS E ÁRABES
EM PESO DO MAPA DO ORIENTE MÉDIO

por MINO CA RTA

P
apa Francisco, na convicção
dos crentes, é o porta-voz de
Deus. Nietzsche corrigiria:
“É o porta-voz da nature-
za”. Questão meramente se-
mântica, vale nos dois casos.
Francisco diz: “O mundo es-
tá desmoronando e talvez se
aproxime de um ponto de ruptura”. Fal-
tam poucas semanas para a nova rodada
de negociações climáticas da ONU, con-
vocada para Dubai, enquanto o papa soli-
cita uma transição energética “vinculan-
te” e passível de ser “monitorada”. Ao que
tudo indica, o papa entende destas coisas.
Quando menino, cursei o primário no
colégio das Marcelinas, lá inscrito por-
que meu pai, antifascista, sabia que aque-
las freiras de graciosas toucas cartilagi-
nosas não eram crentes de Mussolini. De
fato, protegiam meninos judeus quando
as leis raciais, na esteira de Hitler, já esta-
vam em vigor. De todo modo, as Marceli-
nas retiravam da classe os não batizados
e os levavam para brincar no belo par-

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
que atrás do colégio. Quanto aos batiza- Papa Francisco já ouve o tropel dos Cavaleiros do Apocalipse
dos, estes não eram remetidos para uma
marcha vagamente bélica, a exibir fardas
ridículas, numa praça pública, onde des-
filariam em homenagem ao Duce. Pelo
contrário, poderiam almoçar em casa.
Naquele tempo, ouvi falar pela primei-
ra vez no Apocalipse e logo recebi um li-
vro de presente, a falar do fim do mun-
do. Li, devo dizer sem sobressaltos, o tex-
to do apóstolo João e me pareceu ouvir o
tropel dos fatídicos Cavaleiros, cada um
a representar, respectivamente, a guer-
ra, a fome, o fogo e a pestilência. Tendo a
TIZIA N A FA BI/A FP E A H M A D G H A R A B L I/A FP

crer que a guerra do Oriente Médio não


se dá por acaso. Se não for assim, trata-se
A L I J A D A L L A H / A N A D O L U A G E N C Y / A F P,

de uma espantosa coincidência.


Passa em segunda linha a guerra da
Ucrânia, pois esta soa como mais condi-
zente com o momento. Gostaria de saber
que pensaria a respeito Hannah Arendt,
a formidável pensadora judia, para lhe
perguntar até que ponto chega, no caso,
a banalidade do Mal. Israel, sob o coman-
do de Benjamin Netanyahu, cuida de es-

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 11

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CA PA

Com a aprovação dos banqueiros de Wall Street, Biden acusa Hamas de terrorismo quecer as lições do Armagedom e enfren-
ta a revolta do Hamas com ferocidade na-
zista. As baixas em Tel-Aviv foram impo-
nentes, mas o revide judeu destrói siste-
maticamente a Faixa de Gaza.
É o rincão estreito e desértico do
Hamas, onde reinam, além da morte, a
fome e a miséria, conforme os desígnios
de Tel-Aviv, determinados no propósito de
cancelar qualquer resquício da raça árabe
naquele espaço desesperado. Espanta a hi-
pocrisia dos grandes da Terra e também
de alguns dos seus apaniguados. De Biden
aos banqueiros de Wall Street, até o repre-
sentante do governo e a imprensa brasilei-
ros, prontos a avalizar de que é uma rea-
ção muito além de compreensível dos opri-
midos de Gaza, ou seja a de quem defende
com a vida a sua própria vida.
Estamos diante de uma hecatombe
gigantesca e de destino desde já imagi-
nável. Não deixa de ser o desfecho de um

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
Só Hannah Arendt sabia até onde poderiam receber em breve o apoio do
poderia chegar a banalidade do Mal
Hezbollah. Causa estranheza a postura
de inúmeros jornalistas brasileiros, dis-
postos a aceitar a ideia de que terrorista
é a reação do oprimido. Mussolini definia
como terroristas todos aqueles que ten-
tavam livrar a Itália do seu poder.

A
quantidade de erros e prepo-
enredo que lateja inexoravelmente nas tências cometidos na região
veias do mundo. Encerrada a Segunda depois da queda do Império
Guerra Mundial, os vencedores preten- Otomano vai muito além da
deram oferecer ao povo judeu uma espé- conta, permitindo a divisão do
cie de compensação pelo Armagedom. E território conforme os interes-
foi então que o desastre anunciado se de- ses das potências da época, ao ignorarem
senhou naquela área e os palestinos fo- as demandas dos povos que habitavam a
ram enxotados para a Faixa de Gaza. região. Nesta moldura, deram-se as crises
A Guerra dos Seis Dias, desfechada por do fechamento do Canal de Suez e o con-
um exército muito bem treinado e equi- fronto com os militares que por largo tem-
pado, comandado pelo general Moshe po se estabeleceram no comando do país.
FÁ BIO RO D RIGU ES P OZ ZEBO M /A B R, A RQUIVO/

Dayan, tratou de aplastar a resistência Correta, na visão de CartaCapital, a posi- Com Nasser no poder, o Egito milita-
das populações muçulmanas. Nesta con- ção brasileira em relação ao conflito, certa- rizou-se com o apoio da União Soviéti-
A F P, J I M W A T S O N / A F P E I S T O C K P H O T O

juntura, claro se revelou o propósito de mente influenciada pela postura equidis- ca, para voltar ao comando fardado em
eliminar qualquer resistência árabe e es- tante de Celso Amorim, conselheiro espe- tempos mais recentes, agora fortemen-
ta determinação esteve na origem da guer- cial do presidente Lula, sabedores dos efei- te enraizado. Por um breve tempo hou-
ra do Líbano, terrificante capítulo de um tos daninhos do ódio recíproco e, portanto, ve quem acreditasse em uma Primavera
enredo trágico, marcado pela violência dispostos a ouvir as razões de uns e outros. Árabe, mas logo a expectativa foi desfei-
do agressor e pela debilidade do agredido. O presidente dos Estados Unidos, Joe ta e até o momento, pelos caminhos da
Ocorre agora que os palestinos, conde- Biden, confirma o seu desempenho hi- Hégira, barcos clandestinos conduzem
nados a viver na miséria e na fome, reagi- pócrita quando define como terroris- levas de refugiados para as praias euro-
ram para exibi-las aos olhos do mundo. tas os insurgentes do Hamas, os quais peias, em busca de salvação. •

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 13

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CA PA

BANHO DE
SANGUE
A ESPIRAL DA BARBÁRIE NO
CONFLITO ENTRE ISRAEL E O HAMAS

por SERGIO LIR IO

A
utorizado pelo Ocidente ta-aviões, navios e caças de combate pa- A brutalidade do conflito começou,
a revidar o brutal ataque ra dar suporte às ações dos aliados prefe- porém, a produzir pequenas fissuras
do Hamas, Israel não se renciais. A revanche, traduzida como “le- no consenso a respeito da legitimida-
fez de rogado. Em respos- gítimo direito de defesa”, foi, nos últimos de da reação israelense. António Guter-
ta ao “11 de Setembro” is- dias, a única moeda aceita na comunida- res, secretário-geral das Nações Unidas,
raelense, conforme defi- de internacional. O resultado do olho por declarou-se “profundamente angustia-
nição de Gilad Erdan, re- olho não poderia ser mais eloquente. Até do” com o cerco a Gaza e lembrou que os
presentante permanen- o fechamento desta edição, na manhã da ataques do Hamas, por mais injustificá-
te do país na ONU, o ministro da Defesa, quarta-feira 11, o número de mortos havia veis e bárbaros, não surgiram do vácuo,
Yoav Gallant, determinou o “cerco total” à alcançado a marca de 1,9 mil. Eram mil is- mas “de uma ocupação de décadas sem
Faixa de Gaza, gueto onde vivem cerca de 2 raelenses e 900 palestinos, além de cer- fim à vista”. Ministro interino das Rela-
milhões de palestinos. O fornecimento de ca de 7 mil feridos de um lado e de outro. ções Exteriores da Espanha, José Ma-
eletricidade, água, gás e comida foi inter- nuel Albares, expôs a fratura no conti-
rompido, enquanto os mísseis espalham, nente ao defender a manutenção da ajuda
em grau e intensidade superlativos, a des- humanitária aos territórios palestinos às
“É O 11 DE
truição no enclave. Só na terça-feira 10, a vésperas da reunião da União Europeia
artilharia judaica pôs abaixo 200 alvos. “O SETEMBRO” convocada para discutir o assunto. “A co-
Hamas cometeu um erro grave”, declarou ISRAELENSE, operação deve continuar. Não podemos
Gallant. Após um breve período de indi- AFIRMOU O confundir o Hamas, que está na lista dos
ferença e até desconfiança mútua nas re- grupos terroristas da UE, com a popu-
REPRESENTANTE
lações, Washington voltou a reafirmar a lação ou com a Autoridade Palestina”. A
aliança incondicional com Tel-Aviv. “Os DO PAÍS NA ONU. O ONG Human Rights Watch definiu a sus-
Estados Unidos nunca deixarão de apoiar OCIDENTE AVALIZA pensão do suprimento de itens essenciais
Israel”, declarou Joe Biden. “No meu go- A RETALIAÇÃO à sobrevivência como “crime de guerra”.
verno, o apoio a Israel é sólido e inabalá- Por ora, trata-se de tímidos e insignifi-
DE TEL-AVIV
vel”, acrescentou o presidente norte-ame- cantes apelos ao bom senso. Ao longo de
ricano, que anunciou o envio de um por- 70 anos, Tel-Aviv quase sempre ignorou

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
Os ataques surpreendentes do Hamas desencadearam uma maciça retaliação de Israel. Bastaram quatro dias
para o confronto se tornar o mais sangrento desde 2014. “É só o começo”, afirmou Benjamin Netanyahu
MOH A MMED A BED/A FP E M A HMUD H A MS/A FP

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 15

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CA PA

o que o Hemisfério Norte achava de suas Mais de 300 mil reservistas foram colocados governo desde os atentados. “O desastre
de prontidão pelo Exército israelense. Uma
incursões na vizinhança. Bastava o aval que se abateu sobre Israel no feriado de
incursão na Faixa de Gaza seria arriscada
de Washington. Imagine agora. A barbá- Simchat Torá é da clara responsabilida-
rie do Hamas e as comemorações em par- de de uma pessoa: Benjamin Netanyahu”,
te do mundo árabe, em especial no Irã, Internamente, tanto quanto no exterior, diz o editorial do domingo 8. “O primei-
acusado de financiar as ações terroris- são raras as vozes que, neste momento, ro-ministro, que se orgulha da sua vas-
tas, uniram o Ocidente na defesa da jus- atribuem ao premier algum grau de culpa ta experiência política e da sua sabedoria
tificativa “moral” da contraofensiva de pelo conflito. Uma dessas vozes é o jornal insubstituível em questões de segurança,
Israel, assim como os ataques às Torres Haaretz, que não tem poupado o chefe de falhou completamente na identificação
Gêmeas em Nova York levaram os aliados dos perigos para os quais conduzia cons-
a silenciar diante da “Guerra ao Terror” cientemente Israel ao estabelecer um go-
iniciada por George W. Bush, cujos resul- EDITORIAL verno de anexação e desapropriação, ao
tados são hoje conhecidos – a desestrutu- nomear Bezalel Smotrich e Itamar Ben-
ração do Afeganistão e do Iraque e a radi-
DO HAARETZ, -Gvir a posições-chave, ao mesmo tempo
calização extremista na região. O bom- INFLUENTE JORNAL que adotava uma política externa que ig-
bardeio de Gaza “apenas começou”, avi- DE ISRAEL: norava abertamente a existência e os di-
sou na terça-feira 10 o primeiro-ministro “O DESASTRE reitos dos palestinos.”
israelense, Benjamin Netanyahu, antes Desta vez, como ressalta o Haaretz,
de conclamar a união de governo e oposi-
É DA CLARA não é preciso retroceder aos confins da
ção na defesa da integridade dos judeus. RESPONSABILIDADE história, ao big-bang do ódio transmiti-
Acossado pelos protestos populares DE UMA PESSOA: do de geração em geração, para entender
contra a interferência no Poder Judiciá- BENJAMIN a explosão da barbárie no atual conflito.
rio em benefício próprio e a aliança com a Entender não é justificar, muito menos
extrema-direita local, Netanyahu viu cair
NETANYAHU” comemorar, à moda iraniana, o massacre
no colo uma causa capaz de unir o país. aleatório iniciado pelo Hamas, a exibição

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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xação definitiva do território e uma das
razões do esfriamento das relações com
os Estados Unidos. Em junho, Anthony
Blinken, secretário de Estado norte-
-americano, havia sido claro sobre os ris-
cos da operação. “A expansão dos assen-
tamentos apresenta um obstáculo ao ho-
rizonte de esperança que buscamos. Da
mesma forma, qualquer movimento em
direção à anexação da Cisjordânia, a rup-
tura do status quo histórico em locais sa-
grados, as demolições contínuas de casas
e os despejos de famílias prejudicam as
perspectivas de dois Estados. Elas tam-
bém minam a dignidade diária básica a
que todos têm direito.”

N
Duas faces da mesma moeda? Netanyahu aproveita a situação para desviar a atenção etanyahu e seus ministros
dos problemas do seu governo. Os iranianos comemoram os ataques a Israel fizeram ouvidos moucos.
Dois meses depois, em agos-
to, Ben-Gvir, ministro da
Segurança Nacional, meteu-se
em um bate-boca com a mode-
lo Bella Hadid, de origem palestina, sobre
o mesmo tema. “O meu direito, o direito
da minha esposa, o direito dos meus filhos
de viajar nas estradas da Judeia e Samaria
é mais importante do que o direito de mo-
vimento dos árabes.” Considerada “racis-
ta e hedionda” pela Autoridade Palestina,
a declaração gerou a seguinte resposta da
modelo: “Em nenhum lugar, em nenhum
momento, especialmente em 2023, uma
vida deveria ser mais valiosa do que ou-
tra”. A reação de Ben-Gvir? Acusar Hadid
de antissemitismo. Embora tenha falado
HOSSEIN BERIS/MIDDL E E AST/A FP E H A ZEM BA DER /A FP

sério, não deixa de ser irônico. O minis-


tro foi condenado no passado por racis-
mo e, antes de integrar o governo, exibia
GABINETE DO PRIMEIRO MINISTRO DE ISRAEL,

em casa a foto de um extremista judeu que


de corpos das vítimas ou o uso de reféns parlamentar, Netanyahu concordou em matou 29 palestinos em uma mesquita.
como escudos humanos. É apenas a ma- abraçar o programa radical dos neoalia- A superioridade bélica e o apoio dos
neira prudente de driblar o maniqueís- dos. A ultradireita aliada ao premier é a EUA não deixam dúvida sobre qual la-
mo que tem caracterizado a geopolíti- nêmesis dos grupos árabes que preten- do vai prevalecer. Resta contabilizar os
ca desde ao menos o início da Guerra da de combater: o extermínio do inimigo é custos. Em meros quatro dias, o atual
Ucrânia. Para escapar das acusações de a única “política” aceitável. Desde a for- conflito transformou-se no mais san-
corrupção, Netanyahu fez um pacto com mação da maioria parlamentar, no fim grento desde 2014. Os reféns levados pe-
o diabo. Ou, pior, com a extrema-direi- do ano passado, o governo israelense re- lo Hamas, o apoio armado dos libaneses
ta israelense. A interferência na Justiça tomou a expansão dos colonos judeus na do Hezbollah, que tem atacado posições
é o menor dos males. Em troca do apoio Cisjordânia, base de um projeto de ane- israelenses ao norte, e o aparente finan-

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 17

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CA PA

Biden reafirmou o apoio


incondicional dos EUA a Israel
e enviou um porta-aviões
para não deixar dúvida

ciamento do Irã tornam mais complexo o extrema-direita aproveita o episódio para e caminho, longo e tortuoso, para a solu-
desfecho da batalha e suas repercussões equipar suas milícias. Ben-Gvir promete ção dos dois Estados. Imbuído da “justa
globais. O aiatolá Ali Khamenei nega a armar “massivamente” a população, prin- missão”, Netanyahu vira os olhos ao pas-
participação na invasão, mas comemora. cipalmente na Cisjordânia ocupada. O sado. O premier tem evocado a Guerra do
“Beijamos as mãos daqueles que plane- ministro teria autorizado a compra ime- Yom Kippur em busca de um “governo de
jaram o ataque ao regime sionista”, cele- diata de 10 mil espingardas a serem distri- emergência nacional, sem condições pré-
brou em um discurso transmitido pela te- buídas aos colonos. “Vamos virar o mun- vias”. Há 50 anos, exatamente como nes-
vê local. “As próprias ações do regime sio- do de cabeça para baixo para que as cida- tes dias, as forças de segurança e a inteli-
nista são responsáveis por este desastre.” des sejam protegidas”, afirmou, de acor- gência de Israel foram pegas de surpresa
do com relatos do Times of Israel. por um ataque, à época liderado por Egito

U
ma incursão terrestre israe- A escalada do conflito ameaça ainda um e Síria, em pleno feriado judaico. A bata-
lense no alçapão de Gaza em- dos raros esforços diplomáticos de Israel, lha durou 20 dias e o avanço árabe só não
bute inúmeros riscos: baixas a aproximação com a Arábia Saudita, vi- logrou sucesso por conta da interferên-
pesadas na tropa, morte de ci- tal para a estabilidade no Oriente Médio cia direta dos Estados Unidos em prol de
dadãos capturados e uma vio- Tel-Aviv. Naquele momento, o país não era
lência descontrolada que po- governado por um egoísta inconsequente,
deria minar a solidariedade internacio- mas por Golda Meir, uma das fundadoras
nal. Segundo Abu Ubaida, porta-voz do
O IRÃ NEGA da nação e símbolo do Partido Trabalhis-
Hamas, um refém será morto toda vez que PARTICIPAÇÃO ta. O conflito selaria o pacto definitivo e
os bombardeios de Israel destruírem al- NO PLANEJAMENTO umbilical entre israelenses e norte-ame-
vos civis na região. Estima-se que os mi- DOS ATAQUES ricanos que garantiria aos primeiros supe-
litantes da facção tenham capturado por rioridade militar incomparável na região
volta de cem judeus. Tel-Aviv afirma, por
DO HAMAS, MAS e carta branca para impor seus interesses
sua vez, ter retomado o controle das fron- COMEMORA. acima de qualquer reivindicação dos vizi-
teiras na segunda-feira 9 e recolhido 1,5 “BEIJAMOS AS nhos ou acordo de paz. Mais: sem neces-
mil corpos de combatentes inimigos em MÃOS” DE QUEM sidade de prestar contas de seus atos ao
seu território. Cerca de 300 mil reservis- resto do planeta. A truculência venceu em
tas foram convocados e permanecem de
AGIU, AFIRMOU O 1973. E volta a triunfar, cinco décadas de-
prontidão para o caso de nova escalada AIATOLÁ KHAMENEI pois. Os bárbaros dançam sobre os corpos
dos confrontos e de uma invasão a Gaza. A dos inocentes. •

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
“A ÚNICA CERTEZA É DE QUE HAVERÁ RETALIAÇÃO”
Não existe um plano de emergência, diz brasileiro na Cisjordânia
POR RENÉ RUSCHEL

O
músico e antropólogo mais. Uma das iniciativas Não existe qualquer plano de combustível, gás, água, ali-
brasileiro Raffoul israelenses é justamente ten- emergência elaborado para o mentos e medicamentos, tam-
Goust mora há quatro tar suprimir qualquer tipo de caso de um ataque. As famí- bém se estenderão à Cisjordâ-
anos em Ramallah, na Cisjor- levante. Agora, com o objetivo lias são apenas orientadas a nia. A única certeza é de que
dânia. A região, até então con- de sufocar o Hamas, a expec- estocar água, medicamentos haverá retaliações. Não posso
siderada uma violenta ocupa- tativa é de que o exército au- e comida, enquanto torcem avaliar a intensidade, a dimen-
ção colonial de Israel em ter- mente significativamente sua para que nada aconteça. são, mas certamente sofrere-
ras palestinas, transformou- presença na região. As ruas, Nos dois primeiros dias do mos consequências.
-se em um palco de guerra estradas e os checkpoints são ataque, sábado e domingo, as Os sentimentos comuns da
com final imprevisível. Goust os locais mais vigiados. ruas ficaram praticamente de- população são de apoio aos
está a menos de 80 quilôme- Na noite do domingo 8, fo- sertas. Na segunda-feira hou- avanços em território israelen-
tros do epicentro desta bata- ram mortos dois palestinos ve uma pequena movimenta- se e o descontentamento com
lha, a Faixa de Gaza, domina- em Qalandia, nos arredores ção com alguns serviços vol- o tratamento midiático mun-
da pelo grupo Hamas, e pouco de Ramallah, e outros dois em tando a operar ao menos por dial, que classifica o Hamas e,
mais de 60 quilômetros da ca- Nablus. Todos em confronto algumas horas. Fui aconselha- por extensão, os palestinos,
pital israelense. “Da janela do com as forças israelenses. A do a não lecionar no conserva- como terroristas. A imprensa
meu apartamento consigo situação mais alarmante é, no tório no fim de semana, mas internacional em sua quase to-
avistar Tel-Aviv”. Em conversa entanto, na Faixa de Gaza. hoje (segunda) retornamos. talidade tem desconsiderado
com CartaCapital, o músico Segundo um balanço divulga- Durante as aulas foram ouvi- estas ações como uma res-
descreveu a vida da população do pela mídia palestina na se- dos, no entanto, barulhos de posta às agressões sofridas
neste momento, suas apreen- gunda-feira 9, as forças de Is- explosões, bombas e ruídos de há décadas pela ocupação
sões e temores. A seguir, o re- rael haviam destruído mais de aviões. Tivemos de procurar sionista. Essa violência é fruto
lato em primeira pessoa: 1,2 mil residências, 13 edifí- locais seguros. A dúvida ago- de uma luta histórica que se
O ataque a Israel pegou to- cios, três escolas da ONU e ra é se as sanções adotadas arrasta há 75 anos, sem que
dos de surpresa. Por aqui, a três mesquitas. As estimati- pelo governo de Israel à Faixa tenha havido vontade política
sensação é de incerteza e es- vas apontavam cerca de 75 de Gaza, como controle de para resolvê-la.
panto, mas todos reconhecem mil desabrigados. Apesar do medo, não pre-
a gravidade do momento. O Embora a população esteja tendo voltar ao Brasil. Segui-
que se observa é um clima de unida em seus propósitos e no rei em minhas funções como
muita apreensão. Na Cisjordâ- apoio à luta contra Israel, exis- pesquisador, antropólogo e
nia têm acontecido confrontos te o descontentamento de professor. Torço para que as
diários com as forças militares uma parcela significativa da autoridades encontrem um
israelenses nos arredores das população com a Autoridade desfecho justo, com o menor
cidades e proximidades dos Palestina. Há até quem se re- número de vidas perdidas. O
checkpoints, de Jenin a fira à autoridade como uma Itamaraty tem negociado a
Ramallah. Os relatos de vio- espécie de “braço israelense” retirada de brasileiros da Fai-
lência contra palestinos são e a acusam, inclusive, de ten- xa de Gaza, mas o resgate
ACERVO PESSOA L , M A NDEL NGA N /A FP

frequentes, além da preocupa- tar impedir os levantes popu- não chegou à Cisjordânia,
E J U S T I N M C TA G G A R T/ U . S . N AV Y

ção em relação aos colonos lares. Neste momento não há, embora tenha sido informal-
instalados nos assentamentos porém, protestos nem mani- mente cogitado pelo embai-
da região. festações contra o governo. A xador em Ramallah. Quero
O exército israelense é res- maioria da população perma- continuar na Palestina, a não
ponsável pela proteção dos nece recolhida em suas casas, ser que a situação se agrave
colonos judeus na Cisjordânia. uma vez que não existem na de tal forma que minha per-
Após os ataques do Hamas, o Cisjordânia sirenes de alerta manência não seja mais uma
número de soldados aumen- nem abrigos onde possam se “Só volto ao Brasil se não questão de opção, mas de so-
tou e deverá crescer ainda proteger em caso de ataques. tiver opção”, diz Goust brevivência, de vida ou morte.

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 19

CLUBE DE REVISTAS
CA PA

das grandes potências, aprovou a Reso-

PAZ
lução 181, que resultou no plano de par-
tilha da Palestina. Os colonos judeus, an-
tes proprietários de 6% das terras e 30%
da população local (600 mil habitantes),
passaram a ter 55% do território. Os pa-

VIOLENTA
lestinos, que representavam 70% da po-
pulação (1,3 milhão), ficaram com os 45%
restantes. Portanto, houve um processo
violento de expropriação e expulsão de
palestinos, marcando definitivamente
a história desses povos.
Durante a guerra da Palestina, entre
A COMUNIDADE INTERNACIONAL 1947 e 1949, os palestinos foram expulsos
de cerca de 400 cidades e vilarejos onde
CONTENTA-SE COM UMA PALESTINA eram maioria. Várias cidades e comuni-
“CALMA”, EMBORA MISERÁVEL E OPRIMIDA dades tomadas temporariamente pelo Ha-
mas eram habitadas, em sua maioria, por
palestinos que se refugiaram na Faixa de
Gaza. Portanto, na perspectiva dos palesti-
por R EGINA LDO NA SSER*
nos, essa mobilização iniciada em 7 de ou-
tubro era a realização do sonho do retorno.
Houve outros momentos históricos
importantes que moldaram o destino de

O
atual conflito na Faixa de so, dois dias depois dos ataques, o Minis- Gaza. Em junho de 1967, como decorrên-
Gaza é praticamente uma tério da Defesa repetiu várias vezes que cia da vitória de Israel na guerra com os
reedição de conflitos ante- havia “restaurado o controle total” sobre países árabes (Síria, Egito e Jordânia), a
riores, a não ser pela forma a fronteira de Gaza. É compreensível essa Cisjordânia e a Faixa de Gaza foram ocu-
como foram realizados os preocupação do governo israelense, pois, padas militarmente pelas forças israelen-
ataques do Hamas. Por como está reconhecido no sistema inter- ses e passaram a ser chamadas de Territó-
meios aéreos, marítimos e nacional vigente, fronteiras definidas e rios Palestinos Ocupados (TPO). Em 2005,
terrestres articulados com seguras são um elemento essencial para teve início o chamado plano de desenga-
o lançamento de foguetes, os combatentes o exercício da soberania nacional. Mas jamento de Gaza proposto pelo então pri-
do Hamas causaram surpresa pela ousa- quais foram os fundamentos que orien- meiro-ministro israelense Ariel Sharon.
dia e intensidade das ações em território taram a constituição dessas fronteiras? A retirada de todos os seus assentamen-
ocupado por Israel e provocaram centenas Em 29 de novembro de 1947, a Assem- tos causou boa impressão na comunida-
de mortes de civis e militares israelenses. bleia-Geral da ONU, com o apoio decisivo de internacional, pois poderia ser o início
Assim como nos outros episódios de de um Estado em Gaza, abrindo um ca-
violência na região, o debate pautado minho para a paz. O porta-voz do Hamas
pela mídia foi em torno do Hamas e com O TERRÍVEL CICLO chegou a afirmar que se tratava de uma vi-
isso a questão da ocupação, opressão e DE VIOLÊNCIA NÃO tória da resistência armada e que “Israel
humilhação que o povo palestino, em deixou Gaza porque se tornou um fardo”.
geral, e os habitantes de Gaza, em par-
TERMINARÁ ATÉ Em 2006, houve eleições na Palestina
ticular, vivem há 75 anos sob regime de A CONSTITUIÇÃO e o Hamas conseguiu 74 dos 132 assen-
apartheid foi esquecido. DE UM ESTADO tos parlamentares, contra 45 do Fatah.
Sob a perspectiva geopolítica, talvez PALESTINO Isto se devia principalmente à sua his-
o fato de os militantes do Hamas terem tórica atuação como organização de ca-
ultrapassado as fronteiras seja o ponto
SOBERANO ridade aliada à insatisfação popular em
mais perturbador para a doutrina de se- E AUTÔNOMO relação ao governo do Fatah, acusado de
gurança nacional de Israel. Não por aca- corrupção e de ser conivente com a ocu-

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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pação israelense. A vitória do Hamas foi Os termos da reação israelense são sempre os cerco. O movimento foi realizado à re-
mesmos: “castigo exemplar”, “dar uma lição” etc.
vista com grande apreensão na comuni- velia do Hamas, que não teve nenhuma
dade internacional e desencadeou verda- participação nos eventos. Mesmo as-
deira guerra civil com o Fatah, que resul- se, só fazem aguçar o ímpeto destrutivo e sim, as forças de Israel mataram 170 ma-
tou na tomada de poder na Faixa de Gaza. cruel da retaliação de Tel-Aviv a um custo nifestantes e deixaram centenas de fe-
Em 2007, Israel declarou formalmen- enorme para os palestinos. Desde 2007, o ridos, com graves consequências físi-
te que a Faixa de Gaza é uma entidade governo israelense diz que o objetivo do cas. Foi um recado muito claro do gover-
hostil e instaurou o bloqueio terrestre, uso intensivo e desproporcional da força é no israelense de que estava pouco se im-
marítimo e aéreo da região que perdura acabar com o terrorismo do Hamas e pro- portando com os métodos empregados.
até hoje. Para se ter uma dimensão das teger os civis israelenses. Em curto prazo, o mais importante
consequências desse cercamento, a ONU agora é cessar as hostilidades, a fim de

O
publicou um relatório em 2012 prevendo ministro da Defesa de Israel preservar a vida dos civis. A população de
que em 2020 a região se tornaria um lu- declarou ter ordenado “um Gaza voltará a uma situação que a comu-
gar inabitável. Aproximadamente, 97% cerco completo” à Faixa de nidade internacional chama de “calma”.
da água é considerada imprópria para Gaza. “Não haverá eletrici- Na verdade, trata-se de uma paz violen-
uso, mais da metade da população vive dade, nem comida, nem com- ta, uma espécie de calmaria de miséria
abaixo da linha da pobreza, 80% depen- bustível... Estamos lutando e opressão que antecede as tempestades
dem de ajuda externa e 64% dos jovens contra animais humanos e agiremos em e, quando isso voltar a acontecer, vamos
estão desempregados. Além das péssi- conformidade.” Com isso, pretende cul- falar das mesmas coisas que estamos a
mas condições de vida, os habitantes de par a vítima de sua própria tragédia, des- debater agora. Triste constatar que es-
Gaza sofrem graves crises humanitárias de uma suposta superioridade moral. As te terrível ciclo de violência não termi-
decorrentes de seis guerras assimétricas. frases que mais se repetem durante esses nará até que seja constituído um Esta-
Diferentemente de outros conflitos béli- anos são: merecem um “castigo exem- do palestino soberano e autônomo. Pa-
cos, não podem escapar de seu território, plar”, “pagarão um preço insuportável”, ra isso, é necessário que voltemos ao iní-
que conta com uma das maiores densida- “lhes daremos uma lição”. Entretanto, a cio de todo esse processo, isto é, quando
des populacionais do mundo. lógica da resistência é que, quanto mais as grandes potências na ONU criaram o
Uma pergunta inevitável refere-se à punições coletivas se infligem a uma po- Estado de Israel. Agora seria o momento
YA S S E R Q U D I H / A F P

forma de luta legítima que o povo pales- pulação, há mais determinação. de quitar essa dívida moral, maior causa
tino deve empreender contra um opres- Entre 2018 e 2019, uma ampla mobi- das tragédias na Palestina. •
sor muito superior em termos militares. lização pacífica envolveu dezenas de mi-
As ações bélicas do Hamas, além de cau- lhares de palestinos que se dirigiram à *Professor de Relações
sarem danos na população civil israelen- fronteira reivindicando a suspensão do Internacionais da PUC-SP.

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 21

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As digitais do ex-presidente
estão por todos os lados.
Fosse outro, poderia
ser chamado de
“mentor intelectual”

Aquele que falta


CONGRESSO A CPI do 8 de Janeiro vai propor o indiciamento
de Jair Bolsonaro por incitação ao golpe de Estado
POR ANDRÉ BARROCAL

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 27
NESTA Rio de Janeiro. Refém do
SEÇÃO crime organizado, o estado
terá mais uma intervenção

A
écio Lúcio Costa Pereira Os bolsonaristas O motivo foi ter publicado no Facebook
foi o primeiro de 1,3 mil um vídeo no qual um procurador da Re-
inventaram a
réus a serem julgados por pública em Mato Grosso do Sul, Felipe
participar do quebra- comissão para Gimenez, dizia em uma entrevista que a
-quebra de 8 de janeiro fustigar Lula. eleição havia sido fraudada graças a ur-
em Brasília. Funcionário de uma estatal No fim, expuseram nas eletrônicas não confiáveis, e que “Lu-
paulista desde 2014, foi demitido após o próprio golpismo la não foi eleito pelo povo, ele foi escolhi-
aparecer em um vídeo no dia do levante. do e eleito pelo STF e o TSE”. A publica-
“Amigos da Sabesp: quem não acreditou, ção ocorreu em 10 de janeiro e logo o ca-
tamo aqui. Quem não acreditou, tô aqui pitão apagou-a. Ao depor à Polícia Fede-
por vocês também, porra! Olha onde eu ao crime é um ilícito específico previsto ral sobre o episódio, em abril, o ex-pre-
estou: na mesa do presidente”, dizia, do no artigo 286 do Código Penal, e Bolso- sidente declarou que havia se enganado
plenário do Senado, pouco antes de sua naro também estará ao alcance da Jus- e compartilhado o material sem querer.
prisão em flagrante no próprio local. O tiça por isso. Nesse caso, a punição é pe-
acusado foi condenado a 17 anos de ca- quena, no máximo seis meses de cadeia. A investigação de Bolsonaro havia si-
deia por tentar um golpe de Estado e abo- Só quem pode denunciar alguém por do requerida pela Procuradoria em 13 de
lir com violência o Estado Democrático crime à Justiça é o Ministério Público. janeiro, depois de muita pressão interna.
de Direito, entre outros crimes. Quando Por isso, o órgão será um dos destinatá- Não foi o então “xerife”, Augusto Aras, a
o Supremo Tribunal Federal decidia seu rios do relatório que vier a ser aprovado. agir, mas um subprocurador-geral desig-
destino, em 14 de setembro, o ministro Se tudo correr como o programado, a vo- nado para cuidar de casos do 8 de Janei-
Gilmar Mendes comentou: “Estamos jul- tação do documento ocorrerá na quarta- ro. Carlos Frederico Santos voltou atrás,
gando nesse momento Aécio, mas falta -feira 18. Para a imputação da CPI a Bol- porém, na mira apontada para o ex-pre-
alguém (...). O pano de fundo desse deba- sonaro ter consequência, a Procurado- sidente. Em julho, enviou a Alexandre de
te é tudo isso que ocorreu todo esse tem- ria-Geral da República precisará tomar Moraes, relator no Supremo de vários in-
po, todo esse tempo, esse assédio, tan- providências. A Procuradoria é o MP pe- quéritos decorrentes do 8 de Janeiro, uma
ques fumegantes no 7 de Setembro”. rante o Supremo. Bolsonaro chegou a ser manifestação. Não fazia sentido, argu-
Quem faltaria? A CPI do 8 de Janeiro pre- alvo de uma investigação por possível in- mentou, usar um ato de 10 de janeiro pa-
tende responder depois do feriado. citação da tentativa de golpe em janeiro. ra investigar alguém por incitar um acon-
No relatório final que apresentará na
próxima terça-feira 17, a senadora Elizia-
ne Gama, do PSD do Maranhão, acusará
Jair Bolsonaro de incitar o levante, de ser
uma espécie de autor intelectual. Nessa
condição, o ex-presidente estará ao al-
M A RCOS CO R R Ê A / P R E B RU N O S PA DA /AG . CÂ M A R A

cance da mesma denúncia à Justiça feita


contra Aécio Pereira e outros 1,3 mil ba-
derneiros. É o que dizem dois advogados:
Duarte Jr., deputado pelo PSB do Mara-
nhão e integrante da CPI, e o crimina-
lista paulista Pierpaolo Bottini. Ambos
citam o artigo 29 do Código Penal para
unir o futuro do incitador ao dos incita-
dos. “Quem, de qualquer modo, concor-
re para o crime incide nas penas a este
cominadas, na medida de sua culpabili-
dade”, afirma o artigo, que trata do cha-
mado “concurso de pessoas”. Incitação A relatora Eliziane Gama vai detalhar a cadeia de eventos até o 8 de Janeiro

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 23

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tecimento da antevéspera. Santos pedia


a exclusão do capitão do inquérito 4.921,
aquele sobre instigadores do levante, e a
abertura de uma espécie de pré-inquéri-
to exclusivo sobre o ex-presidente. Em 7
de agosto, Moraes concordou.
Santos era o preferido de Aras para co-
mandar a Procuradoria, após a renova-
ção de seu próprio mandato ter sido des-
cartada. O cargo tem sido ocupado inte-
rinamente pela subprocuradora-geral
Elizeta Ramos. Um dos primeiros atos
de Elizeta foi trocar, na marra, a chefia
da repartição do MP que funciona como
instância interna máxima em casos de
corrupção, a 5a Câmara. Saiu Ronaldo Al-
bo, que aliviou em 7 bilhões de reais uma
multa aplicada à JBS/Friboi em um acor-
do de leniência, entrou Alexandre Cama-
nho de Assis, subprocurador-geral que
tentou proteger Michel Temer da enras-
cada na qual o frigorífico havia metido o
então presidente em 2017. Lula indicará
quando um procurador-geral? “Não tem
pressa”, afirma um ministro.

O xadrez em Brasília está complicado,


daí a falta de pressa. Parte do Senado quer
influenciar a escolha de Lula não só para a
Procuradoria, mas para a vaga aberta pe-
la aposentadoria de Rosa Weber no Supre-
mo. O Senado é que aprova, ou não, indi-
cados para os dois órgãos. Quem encabe- Cid e Vasques cumpriram ordens.
ça a rebelião, nos bastidores, é Davi Alco- E os “patriotas” acima serviram
lumbre, do União Brasil do Amapá. O se- de massa de manobra

nador comanda a poderosa Comissão de


Constituição e Justiça, a quem cabe saba- “Com o relatório da CPI, o Congresso
tinar indicados para as duas instituições. dará aval político ao Judiciário e ao Mi-
Ele é a face oculta por trás do presidente nistério Público (contra Bolsonaro)”, diz
do Senado, Rodrigo Pacheco, do PSD de um integrante da comissão de inquérito, o
Minas Gerais. Alcolumbre antecedeu Pa- deputado Rogério Correia, do PT mineiro.
checo no cargo, entre 2019 e 2020, fez dele Será, no fim das contas, um tiro no pé dos
seu sucessor, em 2021, e quer sucedê-lo em bolsonaristas que propuseram a investi-
2025. Para voltar ao posto, dá corda aos gação a fim de “provar” um delírio, que a
bolsonaristas, que veem o Supremo como culpa pelo 8 de Janeiro é do governo Lula.
inimigo. Recentemente, Alcolumbre lide- Não que o levante não possa ter tirado pro-
rou a aprovação na CCJ de uma proposta veito de falhas do GSI, o órgão de seguran-
que limita as decisões individuais de juí- ça do Palácio do Planalto, e do Ministério
zes da Corte. Tudo em 40 segundos. da Justiça, que controla a Força Nacional

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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A cadeia de riam quebrar os sigilos bancário e fiscal
de Jair e Michelle Bolsonaro, para iden-
acontecimentos tificar pistas de financiamento dos gol-
anteriores ao 8 de pistas. E interrogar mais militares, en-
Janeiro permite tre eles o general da reserva Walter Bra-
apontar a participação ga Netto, cujo depoimento chegou a ser
do ex-presidente marcado e depois foi cancelado.

O relatório de Gama provavelmente


acusará alguns fardados pelo 8 de Janei-
de Segurança. Mas a CPI só saiu do papel ro. A senadora tende a definir o quebra-
após a CNN Brasil divulgar, em abril, ima- -quebra como desfecho de uma história
gens internas do Planalto que mostravam mais longa de conspiração contra a elei-
funcionários do GSI em atitude amisto- ção, e nessa trama há digitais militares.
sa diante dos invasores do 8 de Janeiro. O Para que a história mais longa ficasse ní-
então chefe do órgão, general Marco Ed- tida, o hacker Walter Delgatti, famoso des-
son Gonçalves Dias, foi demitido no emba- de a “Vaza Jato”, foi peça-chave. Seu de-
lo das imagens. No próximo dia 17, os bol- poimento à CPI em 17 de agosto foi “bom-
sonaristas da CPI apresentarão um rela- bástico”, na visão da relatora. Ligou Bol-
tório próprio que provavelmente culpará sonaro diretamente à conspiração. Del-
Dias e o ministro da Justiça, Flávio Dino. gatti contou como havia sido uma reunião
Gesto capaz de atiçar os fiéis do capitão, com o então presidente em 10 de agosto
mas sem consequência na esfera judicial. de 2022, no Palácio da Alvorada. O capi-
A CPI não precisaria terminar ainda, tão, segundo ele, queria auxílio para vio-
tinha mais um mês de prazo pela frente. lar as urnas eletrônicas e provar que eram
As forças que a compõem chegaram, no fraudáveis. “A parte técnica eu não enten-
entanto, a um impasse sobre os rumos do, então, eu irei enviá-lo ao Ministério da
dos trabalhos, e o presidente do colegia- Defesa, e lá, com os técnicos, você explica
do, o deputado Arthur Maia, do União tudo isso”, teria dito Bolsonaro. “Fui leva-
Brasil da Bahia, não quis arbitrar a favor do até o ministério pela porta do fundo. É
de ninguém. A oposição defendia convo- um portão grande, atrás. Eu entrei com o
car Dino para depor. Os governistas que- carro e já desci no elevador”, declarou o
hacker na CPI, um relato repetido um dia
depois perante a Polícia Federal.
Na época do encontro entre Bolsonaro
e Delgatti, a pasta da Defesa participava
de uma comissão que o Tribunal Superior
Eleitoral havia criado para atestar a segu-
rança das urnas. A pasta era chefiada pelo
M A RQUES/A BR E M A RCELO CA M A RGO/A BR

general da reserva Paulo Sérgio Nogueira


M A RCOS OLIV EIR A /AG. SEN A DO, LUL A

de Oliveira, outro que escapou de investi-


das da CPI graças ao fim antecipado da co-
missão. Delgatti relatou na comissão ter
ido mais quatro vezes ao ministério para
conversar com técnicos de Tecnologia da
Informação e com o general. Disse mais:
tinha sido ele, Delgatti, o cérebro por trás
do relatório final da Defesa sobre as ur-
nas, divulgado em 9 novembro, dez dias

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 25

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após a vitória de Lula. Um documento ar- Por causa de rumo a Brasília. Ao depor à Polícia Civil
diloso. Não apontava fraude nem a descar- sobre o plano de atentado, declarou: “O
tava, o que serviu para embalar os sonhos
divergências que me motivou a adquirir as armas fo-
golpistas de militares e dos bolsonaristas internas, a CPI ram as palavras do presidente Bolsonaro”.
acampados na porta de quartéis. Até ho- terminará antes A declaração foi citada pela Procuradoria
je, o general Oliveira não veio a público se do previsto naquele pedido para incluir o capitão no
pronunciar sobre o relato do hacker. inquérito sobre a autoria intelectual da
Ao apontar uma história mais longa tentativa de golpe em 8 de janeiro.
por trás do 8 de Janeiro, a CPI reforçará
aquilo que o Tribunal Superior Eleitoral A delação do tenente-coronel do
fez em julho, ao impedir o capitão de se de 2022 é outro capítulo do enredo. A Exército Mauro César Barbosa Cid, ex-
candidatar por oito anos. O julgamen- CPI quis interrogar dois dos três conde- -ajudante de ordens de Bolsonaro, tam-
to do TSE tinha como ponto de partida nados pelo plano. Um deles, Wellington bém traz ingredientes que, se comprova-
uma reunião do então presidente com Macedo de Souza, sentenciado a seis anos dos, envolvem o capitão na conspiração
embaixadores estrangeiros em julho pela Justiça de Brasília, ficou em silêncio, golpista posterior à eleição. Essa delação,
de 2022, alvo de uma ação movida pelo apesar de Gama lhe ter oferecido uma diz o deputado Rubens Pereira Jr., do PT
PDT. Nela, Bolsonaro basicamente afir- delação. O outro, Alan Diego dos Santos do Maranhão e integrante da CPI, é con-
mou que a eleição seria roubada para Lula. Rodrigues, sentenciado a cinco anos, te- sequência da Comissão Parlamentar de
Criar desconfiança sobre a lisura do plei- ve o depoimento cancelado. Ambos pla- Inquérito. Cid havia sido preso em caráter
to, entendeu o tribunal, era uma estraté- nejaram o atentado, enquanto estavam preventivo em 3 de maio, a pedido da PF
gia da campanha bolsonarista que contri- na porta do QG do Exército na capital fe- e por ordem de Alexandre de Moraes, em
buiu para seus simpatizantes permanece- deral, de onde saíram vários participan- razão de ter providenciado um cartão fa-
rem coesos e em estado de alerta mesmo tes da tentativa de golpe em 8 de janeiro. juto de vacina anti-Covid para Bolsonaro,
após a eleição. A minuta golpista achada A bomba havia sido fabricada com mate- no fim de 2022. Na CPI, o fardado ficou ca-
em 12 de janeiro na casa do ex-ministro da rial fornecido por um empresário, George lado em 11 de julho. Só se rendeu e fez uma
Justiça Anderson Torres foi vista pelo tri- Washington de Oliveira Sousa, sentencia- delação com a Polícia Federal depois de a
bunal como parte da conspiração. do a nove anos. Ele havia deixado o Pará CPI ter quebrado seu sigilo bancário e des-
O plano de explodir uma bomba no ae- em novembro de 2022 com oito armas, mil coberto que Cid movimentou mais dinhei-
roporto de Brasília em 24 de dezembro munições e cinco bananas de dinamite, ro do que o salário permitia. A delação foi
homologada em 9 de setembro por Moraes.
Nela, Cid conta, entre outras, a tentativa
de Bolsonaro de convencer a cúpula mili-
tar a aderir a um golpe travestido de lega-
lidade, a fim de reverter a eleição de Lula.
A prisão preventiva de Silvinei Vasques,
chefe da Polícia Rodoviária Federal no go-
verno Bolsonaro, é outra “obra” da CPI.
Segundo Pereira Jr., Vasques mentiu à
comissão ao ser interrogado em 20 de ju-
nho sobre as razões para a PRF ter feito,
no dia da eleição, operações incomuns
no Nordeste, reduto eleitoral de Lula. A
comissão informou à Procuradoria e ao
FERN A NDO FR A Z ÃO/A BR

Supremo sobre as mentiras. No início de


agosto, Vasques foi preso por ordem de
Moraes, em uma investigação da PF jus-
tamente sobre as operações incomuns.
E Bolsonaro, também terá a cadeia co-
Braga Netto, vice na chapa de Bolsonaro, tem passado ileso. Até quando? mo destino? •

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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As incursões
militarizadas
semeiam o terror
nas comunidades

Poder paralelo
e executou a sentença dos autores e do
mandante do crime foi o “tribunal do trá-
fico”, em mais um episódio que desnuda
a falência das políticas de segurança pú-
RIO DE JANEIRO Após a bárbara execução de blica e o elevado grau de organização e
três médicos e a rápida punição do “tribunal ousadia do poder paralelo no Rio.
Trata-se de um território conflagra-
do crime”, o estado terá outra intervenção do, sobretudo na capital, hoje disputa-
da bairro a bairro por traficantes e mi-
P O R M AU R Í C I O T H U S WO H L
licianos. A população, a depender de sua
renda e localização geográfica, padece
com a ausência, a ineficiência ou a tru-

O
culência de um efetivo policial em mui-
crime não ficará impu- cução, na quinta-feira 5, de Marcos de tos casos conivente com o crime. Nesse
ne.” Apesar de recorrer Andrade Corsato, Diego Ralf Bonfim e contexto, não cessa de crescer o mapa de
a um surrado e quase Perseu Ribeiro Almeida – três médicos confrontos violentos que envolvem di-
sempre mentiroso cli- que participavam de um congresso de versas facções, dissidências e alianças –
chê, uma vez que so- Ortopedia e inocentemente tomavam inclusive entre traficantes e milicianos
CA RL DE SOUZ A /A FP

mente 16% dos casos de homicídio são so- cerveja em um quiosque na orla carioca – em um quadro complexo que desafia
lucionados no Rio de Janeiro, desta vez o –, o caso estava solucionado. O problema as autoridades estaduais. Estas, no ca-
secretário de Polícia Civil, José Renato é que a rápida “resolução” não derivou de so dos médicos assassinados, acabaram
Torres, tinha razão. Com ligeireza jamais um surto de eficiência da polícia flumi- expostas ao ridículo. Enquanto a cúpu-
vista, apenas 11 horas após a bárbara exe- nense. Quem prendeu, julgou, condenou la da segurança, em rápido pronuncia-

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 27

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Uma das vítimas, o médico baiano o Lesk, ex-miliciano que recentemen- no Rio, contudo, não é tão simples. São
Perseu Almeida (de branco), foi
confundido com um miliciano
te se aliou à maior facção criminosa do três facções criminosas de grande por-
Rio na disputa territorial pelo bairro de te duelando entre si e dezenas de milí-
Gardênia Azul, também na Zona Oeste. cias organizadas, fragmentação ocorri-
mento, sugeria que uma das vítimas po- Informada somente após o desfecho do da sobretudo após a saída de cena de mi-
deria ter sido confundida com um mili- rápido julgamento, a polícia encontrou licianos como Wellington da Silva Braga,
ciano e os homicídios cometidos por en- os quatro corpos dentro de dois veículos o Ecko, morto pela polícia em 2021, e Ri-
gano, a cúpula do poder paralelo já havia nos locais indicados pelos próprios trafi- cardo Teixeira Cruz, o Batman, que atu-
tomado a dianteira. cantes. Talvez em consequência da per- almente cumpre pena de 16 anos por ho-
plexidade causada pela inusitada “cola- micídio cometido contra um motorista
Na mesma madrugada do crime, seus boração” do crime organizado, o gover- de transporte alternativo que não acei-
autores, então escondidos na Cidade de nador Cláudio Castro não escolheu bem tava se submeter ao “imposto” cobrado
Deus, na zona oeste da capital, foram le- as palavras. “Até eles se indignaram com pela milícia. O racha iniciado na ausên-
vados à força pelos próprios comparsas a ação dos seus próprios e fizeram essa cia dos dois maiores líderes aproximou
para a favela Vila Cruzeiro, no Complexo punição interna. O Estado não se abala o então miliciano Lesk e os traficantes
da Penha, na Zona Norte. Na condição absolutamente com nada pelo fato de que do CV na disputa pelas comunidades de
de réus, assistiram a uma videoconferên- eles resolveram punir os seus”, disse. In- Gardênia Azul e seu entorno.
cia que reuniu virtualmente os princi- dagado sobre a maior “eficiência” do po- Na noite da tragédia, olheiros de Lesk
pais líderes do Comando Vermelho, den- der paralelo, falou o óbvio: “A gente esta- confundiram o ortopedista Perseu Al-
tro e fora do presídio Bangu 3, e que teve va em um processo de investigação, e eles meida com o miliciano Taillon Barbosa,
como veredicto a pena de morte. A mes- já sabiam quem eram”. que dias antes deixara a cadeia e mora-
ma sentença foi aplicada ao chefe da “Eles”, nas palavras do governador, va a 750 metros do quiosque. Tiveram a
“Equipe Sombra”, Philip Mota Pereira, são os traficantes. A realidade do crime grande ideia de eliminar ali mesmo o ri-

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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Lesk, o mandante do crime mal
planejado, foi encontrado morto
no porta-malas de um automóvel

sam ser dados. “Um dos pontos princi-


pais que ficam sempre ausentes da dis-
cussão é o combate à corrupção e coop-
tação de agentes públicos. Não há como
um grupo organizado se fortalecer dessa
maneira e operar em tantas frentes, co-
mo tráfico de drogas, exploração ilegal de
jogo, tevê a cabo, transporte clandestino,
desvio de combustível e roubo de carga,
sem que haja forte participação de agen-
tes do Estado”, afirma Bruno Langeani,
dirigente do Instituto Sou da Paz, enti-
dade que organizou o estudo sobre os ín-
dices de resolução de homicídios nos es-
tados brasileiros. No Rio, diz, há coopta-
ção tanto de policiais estaduais quanto
de forças federais, Judiciário e Legisla-
tivo: “Sem um grande plano de enfren-
tamento desta corrupção, é difícil gerar
resultados de impacto”.

O antropólogo e escritor Luiz Eduar-


do Soares afirma que a corrupção policial
deve “deixar de ser tratada cinicamen-
te” pelas autoridades, que agem como se
houvesse apenas casos de desvios de con-
duta individuais. Como estrutura dessa
corrupção, Soares identifica quatro prá-
ticas amplamente disseminadas hoje no
Rio: o “arrego”, tradicional acordo finan-
ceiro com traficantes; a presença de em-
presas ilegais de segurança privada cria-
das e geridas por policiais; o crescimento
val. Na visão dos assassinos, seria uma Em apenas 11 horas, do número de policiais que atuam tam-
bela vingança da morte de Paulo Aragão bém como milicianos; e a projeção terri-
o CV prendeu, julgou,
REDES SOCIAIS E CA RL DE SOUZ A /A FP

Furtado, o Vin Diesel, aliado de Lesk e, torial e política dos interesses de milicia-
segundo a polícia, morto a mando do
condenou e executou nos e policiais: “Os quatro tópicos são fru-
pai de Barbosa. Para o poder paralelo, a sentença de morte to de uma só matriz, uma espécie de pa-
foi uma ação destrambelhada e punida dos responsáveis pelo tologia que fere o espírito da Lei Maior:
com base na lei do cão. Para os familia- assassinato de três a autonomização alcançada pelas polí-
res das vítimas, uma desgraça que mar- médicos na Barra cias, que as transformou em verdadeiro
cará para sempre suas vidas. enclave institucional, refratário à autori-
Em meio a tanta escuridão, é possí- dade política civil e ao Estado Democrá-
vel vislumbrar alguma luz? Para espe- tico de Direito”. Daí, continua o especia-
cialistas, passos iniciais óbvios preci- lista, vem “a majoritária adesão ideoló-

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 29

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O ministro Flávio Dino lançou plano da prisão de um terceiro-sargento da ati- uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO)
para enfrentar o crime organizado
com uso de “força” e “inteligência”
va da Polícia Militar, que tentava sair da que originou relatos e denúncias de di-
Maré em um caminhão que transporta- versas violações dos direitos humanos
va 150 quilos de pasta-base de cocaína. cometidas por agentes de segurança, de
gica do setor ao fascismo bolsonarista”. Repita-se: o Rio não é para principiantes. furtos a estupros. “É necessário refletir,
Presa a práticas do passado enquanto de forma crítica e cautelosa, a partir do
o crime se moderniza a cada dia, a polícia Também fiel ao script, Cláudio Cas- histórico das ocupações anteriores. É
fluminense repetiu o tradicional reper- tro elogiou as polícias Civil e Militar pe- preciso criar alternativas às estratégias
tório de retaliação aos criminosos. Na se- la “grande ação” realizada nas comuni- militares e belicistas”, afirmou, em nota,
gunda-feira 9, ocupou a Cidade de Deus dades. “Estamos libertando os morado- a organização Redes da Maré. Relatos lo-
e os complexos da Penha, do Alemão e da res das amarras do tráfico e da milícia, cais dão conta de que vários moradores
Maré, este último prestes a sofrer uma demolindo barricadas em vias públicas já estariam “escondendo” eletrodomésti-
ocupação permanente que contará com e devolvendo o sagrado direito de ir e vir cos em casas de parentes fora da comuni-
300 homens da Força Nacional de Segu- em paz. Isso é só o começo, não recuare- dade porque, da vez anterior, muitos te-
rança e mobilizará um efetivo total de mil mos um milímetro sequer”, disse o gover- riam sido levados por policiais.
homens, segundo o governo do Rio. Ba- nador. Dias após afirmar que, na sua ges- Desta vez, o Complexo da Maré foi es-
tizado de Operação Maré, o ensaio desta tão, “é porrada na criminalidade”, Cas- colhido após a exibição na televisão de
semana repetiu os erros de planejamento tro parece ter adotado de vez o tom bra- imagens do que parecia ser um treina-
de sempre e resultou em 69 escolas e cin- vateiro de seu antecessor, o cassado Wil- mento realizado por traficantes em um
co postos de saúde fechados, 35 mil estu- son Witzel, aquele que celebrou como um clube no meio da favela. Além do efetivo
dantes sem aula e moradores apavorados gol a morte de um sequestrador na Ponte que incluirá agentes da Força Nacional,
com a troca de tiros entre traficantes em Rio-Niteroi e incentivou a polícia a “mi- da PM, da Polícia Civil e da Polícia Ro-
terra e policiais em um helicóptero. Ape- rar na cabecinha” dos bandidos e atirar. doviária Federal, serão mobilizados ex-
sar do manjado clima de vendeta, o obje- Na vida real, os 140 mil moradores da clusivamente para a operação três heli-
tivo alegado para a operação era cumprir Maré se preparam para dias difíceis. To- cópteros, 12 veículos blindados (os popu-
60 mandados de prisão nas comunida- dos se lembram da ocupação de um ano e lares caveirões) e 50 viaturas. Também
des. Apenas nove foram efetuadas, além meio entre 2014 e 2015, consequência de está previsto o uso de drones com inteli-

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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Capelli é cotado para assumir o
Ministério da Segurança Pública
após divisão da pasta da Justiça

nistério da Segurança Pública, promessa


de campanha do presidente Lula que per-
deu força após a nomeação de Flávio Dino
para a pasta da Justiça: “É importante ter
um ministério específico nessa área, pa-
ra que se possa dedicar exclusivamente a
montar uma estratégia conjunta de com-
bate à criminalidade com as forças de se-
gurança dos estados e municípios. À cria-
ção do Ministério da Segurança Pública
deve seguir o anúncio de várias medidas
articuladas com os governos estaduais”,
diz o deputado federal Jilmar Tatto, do
PT, um dos entusiastas da ideia.

Cotado para assumir o comando da


nova pasta, caso ela venha mesmo a ser
criada, Ricardo Capelli, atualmente se-
gência artificial e capazes de fazer o reco- As intervenções cretário-executivo do Ministério da
nhecimento facial de criminosos procu- Justiça, se disse consternado pela bar-
anteriores
rados. Para Langeani, a operação “é mais bárie carioca. Os sérios problemas de
do mesmo, sem grandes perspectivas de
colecionam segurança vividos em diversos estados
melhorias reais”. A experiência, diz, mos- denúncias de brasileiros, com destaque para o Rio e
tra que não há sucesso em ocupações de violações aos direitos Bahia, tornam o enfrentamento ao crime
longo período: “Elas trazem pouca efeti- humanos nas organizado uma tarefa para ontem. “O
vidade em termos de prisões de alto esca- favelas ocupadas Brasil tem leis e regras. Tem um Estado
lão ou grandes apreensões, além de gerar de Direito que precisa ser e será respeita-
um grande prejuízo às populações locais, do. Não tem cabimento organizações cri-
uma vez que fazem com que estas sejam minosas cometerem um crime e elas mes-
privadas de usar equipamentos públicos mas resolverem esse crime”, diz Capelli.
como escolas, creches e postos de saúde. soluções militarizadas como GLOs, ocu- Já Luiz Eduardo Soares avalia que o
Isso impacta a capacidade de os morado- pações e intervenções das Forças Arma- fato de o governo federal enviar ao Rio
res obterem renda para o seu sustento”. das.” O especialista considera que o ne- de Janeiro grupamentos da Força Na-
Soares afirma que a busca por medidas gacionismo é o primeiro obstáculo a ser cional pode nada significar do ponto de
imediatas como as ocupações “faz parte vencido: “Já passou da hora de adotarmos vista prático, mas corresponderá ao es-
T O M A Z S I LVA /A B R E I S A A C A M O R I M / M J S P

da tragédia do Rio” e apenas ecoa o dis- uma perspectiva minimamente racional, tabelecimento de uma parceria de gran-
curso hegemônico de que é preciso agir o que nos levaria a reconhecer que as po- de significado político. “O governo bolso-
com mais intensidade contra os bandi- líticas e os métodos empregados até aqui narista do Rio quer essa aliança para di-
dos. “Segundo essa visão, o que falta é for- não funcionaram. Ao contrário, seu fra- vidir os ônus do banho de sangue. Espe-
ça, violência, mais execuções extrajudi- casso tem agravado os problemas”. ro que o presidente Lula, cuja vitória já
ciais e mais encarceramentos em massa. Com repercussão e impacto nacio- nos salvou do fascismo, recuse o abraço
É exigida uma solução imediata que, por nais, o assassinato dos três ortopedis- de afogado que poderia nos tragar para
ser absolutamente impossível ante um tas no Rio recolocou em pauta a discus- um naufrágio futuro. Não nos esqueça-
quadro tão complexo, acaba se tornando são sobre o desmembramento do Minis- mos de que o Rio é o principal berço dos
apenas uma autorização para pseudos- tério da Justiça para a criação de um Mi- inimigos da democracia.” •

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 31

CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Sucesso incômodo
CÂMERA CORPORAL “Não faz sentido acabar
com um programa que se tornou referência
no País”, afirma ex-ouvidor das polícias
A MARIANA SER AFINI

D
urante a campanha eleito- à margem da lei. Além de reduzir drastica-
ral, o governador paulista mente a violência policial, como compro-
Tarcísio de Freitas, do Re- vam os estudos realizados nos batalhões
publicanos, prometeu re- onde a tecnologia foi adotada, as câmeras
tirar as câmeras das fardas corporais protegem os policiais de falsas
da Polícia Militar. Diante da firme rea- acusações, pois as imagens captadas com-
ção de especialistas em segurança públi- provam se a sua atuação foi lícita ou não.
ca, o ex-ministro de Jair Bolsonaro re- CC: O governador cortou verba e
cuou da decisão, mas congelou os inves- abandonou os estudos para aferir essa
timentos do programa Olho Vivo e aban- efetividade das câmeras. É uma forma
donou os estudos sobre sua efetividade de matar o programa Olho Vivo?
– nos batalhões onde as câmeras foram BM: Espero que não. É importante des-
adotadas, a letalidade policial despencou tacar que a iniciativa de adotar as câme-
76,2% entre 2019 e 2022. Em um decre- ras corporais partiu do próprio coman-
to publicado no início de outubro, Frei- do da Polícia Militar, e logo o programa
tas cortou 15,2 milhões de reais do orça- tornou-se uma referência em todo o Bra-
mento reservado para a compra de novos sil. A minha esperança é de que não ocor-
equipamentos, como revelou em primei- ra nenhum tipo de interrupção. Na ver-
ra mão o site Alma Preta. dade, o ideal é que se estabeleça um cro-
“Espero que o programa não seja in- nograma para implementar as câmeras perde a população e ganha quem não de-
terrompido”, afirma, em entrevista a corporais em todos os batalhões opera- seja a transparência na atividade policial.
CartaCapital, o sociólogo Benedito Ma- cionais da PM no estado de São Paulo. Hoje, discute-se a adoção dessa tecnolo-
riano, ex-ouvidor das polícias de São CC: A quem interessa retirar as câ- gia em todo o território nacional. O esta-
Paulo e hoje secretário de Segurança e meras das fardas dos PMs? do de São Paulo foi pioneiro nesse tema,
Cidadania de Diadema, no ABC paulista. BM: Com o fim das câmeras corporais, a partir de iniciativa da própria PM. Vi-
“Com o fim das câmeras corporais, per- rou um case de sucesso para todo o País.
de a população e ganha quem não dese- Não faz o menor sentido abandonar um
ja a transparência na atividade policial.” projeto que está dando certo e que me-
“Além de reduzir lhora a atividade policial.
CartaCapital: As câmeras instala- a letalidade policial, CC: A pedido do governo paulista, o
das nas fardas de PMs censuram o tra- Tribunal de Justiça de São Paulo derru-
balho policial, como alegam parlamen-
a tecnologia protege bou uma liminar que obrigava os PMs
tares bolsonaristas? os PMs de falsas a usarem câmeras nas fardas durante
Benedito Mariano: De modo algum, acusações”, observa a Operação Escudo, realizada na Bai-
elas só censuram os policiais que atuam Benedito Mariano xada Santista.

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
Pioneirismo. A iniciativa partiu do próprio
comando da Polícia Militar, lembra Mariano

entre 30 mil e 35 mil policiais atuando


nas ruas simultaneamente. Esse é o to-
tal de câmeras necessárias para assegu-
rar que todo o patrulhamento seja moni-
torado. Não me parece um investimen-
to tão alto perto dos benefícios trazidos.
CC: Que outras medidas poderiam
ser tomadas para reduzir a violência
policial e também as mortes de poli-
ciais em serviço?
BM: O governador deveria ser o maior BM: Garantir que as câmeras sejam usa- BM: Considero fundamental priorizar o
interessado em ampliar esse programa. das de maneira adequada é uma respon- policiamento comunitário. Nos últimos
As câmeras auxiliam, inclusive, no traba- sabilidade dos comandos regionais e do dois anos, registramos uma drástica re-
lho da Polícia Judiciária. Elas não foram comando da Polícia Militar. Os equipa- dução das mortes violentas em Diadema.
PREFEIT UR A DE DIA DEM A E ROV EN A ROSA /A BR

criadas apenas para vigiar os policiais e mentos deixaram de registrar diversas Foram quatro homicídios para cada 100
coibir excessos, mas também para pro- mortes em decorrência de intervenção mil habitantes, é a menor taxa em cidades
duzir provas contra os suspeitos detidos. policial. É com muita preocupação que te- com mais de 200 mil habitantes no Bra-
CC: Na operação na Baixada Santis- nho visto essas notícias de que há poucas sil. Ao mesmo tempo, a letalidade policial
ta, algumas câmeras corporais não es- imagens da operação na Baixada Santista. também caiu bastante. Qual é o diferen-
tavam ligadas, outras foram retiradas CC: Existem, atualmente, pouco mais cial? Aqui, desenvolvemos uma política de
durante a ação. Há relatos de morado- de 10 mil câmeras para mais de 80 mil prevenção, levando em conta a integração
res das comunidades ocupadas que po- PMs. O governo diz ser muito dispendio- das polícias e a inteligência, por meio de
liciais chegaram a cobrir as lentes ou até so adquirir tantos equipamentos. uma central de videomonitoramento, ho-
mesmo remover o equipamento da far- BM: Não é verdade. Hoje, o efetivo da PM je com mais de 310 câmeras espalhadas
da. Quem fiscaliza a atuação policial pa- gira em torno de 85 mil homens. Se levar- pela cidade. O policiamento de proximi-
ra impedir esse tipo de interferência? mos em conta o turno de trabalho, temos dade foi fundamental para esse êxito. •

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 33

CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Cobertor curto
SAÚDE Os gargalos do SUS são
ainda mais graves nas cidades que
fazem fronteira com outros países
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A

O
s históricos problemas no anos, avançamos em relação à infraestru-
campo da saúde pública tura. No entanto, em se tratando de recur-
no Brasil, principalmen- sos humanos, temos um problema crôni-
te em regiões distantes co pela falta de especialistas. E ainda exis-
dos grandes centros urba- te a necessidade de transferência de casos
nos, são maximizados em municípios que mais graves para atendimento na capital.”
fazem fronteira com outros países. É o
que aponta um levantamento realizado Quatro em cada dez municípios fron-
pelo Conselho Federal de Medicina, com teiriços não têm leitos para internação de
base em dados do Ministério da Saúde. adultos ou crianças, deixando a popula- Fronteira do CFM. A médica cobra políti-
Pelo menos 11 estados das regiões Norte, ção de quase 240 cidades sem esse servi- cas públicas que estimulem especialistas
Centro-Oeste e Sul estão situados nos li- ço tão necessário. Mais de 150 localida- a atuarem na região, com melhores condi-
mites com dez países latino-americanos, des perderam leitos na rede pública entre ções de trabalho e remuneração compatí-
abarcando 588 cidades, numa faixa de até 2014 e 2023. “A gente identificou que es- vel com a especialização.
150 quilômetros de largura ao longo das sas zonas de fronteira precisam ter uma Das 588 cidades fronteiriças, 268
fronteiras terrestres, a totalizar 16,7% da estrutura mínima necessária para que os (45%) não possuem sequer um hospital
área total do País. Menos de 3 mil unida- médicos possam exercer o seu trabalho geral. Outras 320 dispõem apenas de 434
des de saúde estão instaladas nesses mu- com eficácia e segurança, no sentido de unidades, quadro agravado com o fecha-
nicípios, para atender um contingente de garantir que os moradores tenham acesso mento de 38 centros hospitalares nos úl-
quase 12 milhões de pessoas, fora os mo- a uma assistência integral. Se não for pos- timos dez anos. Para quem necessita de
radores de países vizinhos que cruzam a sível em todos os níveis de complexidade, cuidados intensivos, a situação é ainda
fronteira em busca de assistência. ao menos nos mais necessários”, destaca mais preocupante, pois 92% desses mu-
É o caso de Brasileia e Epitaciolândia, Dilza Teresinha Ribeiro, coordenadora nicípios não contam com leitos de UTI.
no Acre, separados de Cobija, na Bolívia, da Comissão de Integração de Médicos de E o cenário já foi pior, o número de leitos
apenas pelo Rio Acre. Os municípios tam- de UTI aumentou 47% na última década.
bém estão na divisa com o Peru. “A reali- O atendimento nas Unidades Básicas de
dade do nosso município não difere muito Saúde é outro gargalo. Em 72% dessas ci-
de outras cidades do interior, mas mora- Além do déficit dades houve redução de consultas. É um
dores de países vizinhos buscam por aten- de infraestrutura grave problema, pois 80% da população
dimento no SUS e isso se soma à demanda local depende exclusivamente do SUS
local”, explica o médico Edson Braga, que
e de profissionais, para ter acesso à saúde.
trabalha numa unidade de saúde em Bra- muitos estrangeiros No caso de cirurgias, muitas delas
sileia. Ele ressalta que a maior dificulda- buscam assistência são feitas fora da cidade de domicílio
de é a falta de especialistas. “Nos últimos médica no Brasil do paciente, por falta de estrutura lo-

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
cal, incluindo partos. Em 2022, dos 59 Diagnóstico. “Falta o básico”, alerta do que o atendimento aos indígenas se dá
mil partos realizados na região, quase Dilza Ribeiro, coordenadora da Comissão por meio da Secretaria de Saúde Indíge-
de Integração de Médicos de Fronteira
7 mil (12%) mulheres grávidas precisa- na, o que às vezes facilita o acesso, embo-
do Conselho Federal de Medicina, o CFM
ram ser transferidas para outras cida- ra também tenha problemas.
des para dar à luz seus filhos. A indíge-
na Niara Nukin sabe bem a dificuldade No Acre, a área de fronteira concen-
que enfrenta para ter acesso à saúde. A tra 22 municípios, abarcando 906 mil
aldeia dela fica na fronteira com o Peru pessoas. Apenas dez dessas cidades têm
e o deslocamento até o posto de saúde é hospital e somente a capital, Rio Bran-
feito de barco. Ela precisou levar a filha co, dispõe de UTI. Apesar de não ofere-
que estava com suspeita de dengue para cer tratamento intensivo, Cruzeiro do
a emergência de hospital, mas a menina Sul, município a 600 quilômetros da ca-
não fez o exame para confirmar o diag- pital, é referência na região, por aten-
nóstico, recebeu apenas um atendimen- der não apenas pacientes acrianos, mas
to inicial. “Passaram o remédio sem sa- também de cidades vizinhas e dos países
GTS/DEFENSORIA PÚBLICA /GOVCE E CFM

ber o que ela tinha e mandaram a gente ir fronteiriços. Médico no município há 29


para o posto de saúde no outro dia. Às ve- anos, Marcos Lima explica que o hospital
zes, não tem médico, só técnico de enfer- de lá é uma espécie de porta de entrada
magem. O acesso da aldeia para a cidade para os pacientes de toda a região. “Em-
é muito ruim, a gente tem de ir de barco bora seja um município bem distante de
e o rio está seco. Eu tive de pagar o exa- Rio Branco, nosso principal gargalo ho-
me particular mesmo e o resultado deu je é atender a grande demanda de pacien-
um pouco de anemia e plaquetas baixas. tes. A população de Cruzeiro do Sul gira
A gente mostrou para outro médico e ele em torno de 100 mil habitantes, começa-
falou que pode ser dengue”, diz, lembran- mos a ter certa dificuldade de leitos por-

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 35

CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Emergência. Mesmo com a recente


expansão, nove em cada dez municípios
na zona de fronteira não têm leitos de UTI

que, além da população local, atendemos


muitos peruanos e até mesmo moradores
do Amazonas. Cruzeiro do Sul acabou se
tornando um centro de referência.”
No Amapá, Amazonas e Pará, a situ-
ação é ainda pior: nenhum dos municí-
pios fronteiriços desses três estados tem
tratamento intensivo oferecido pelo SUS,
deixando mais de 900 mil habitantes de
34 cidades-limite desassistidos. Tam-
bém na Região Norte, os 42 municípios
fronteiriços de Rondônia e Roraima con-
tam somente com três UTIs para aten-
der um contingente de quase 1,7 milhão
de pessoas. “Nossa intenção é sensibili-
zar as autoridades, principalmente o Mi-
nistério da Saúde, quanto às dificulda-
des que os moradores dessas regiões en-
frentam. Buscamos sempre ouvir as co-
munidades indígenas, ribeirinhas e qui- 139 municípios na divisa com outros paí- bem nessas áreas e contribui para que as
lombolas, porque não adianta a gente dis- ses, 75 não possuem nenhum hospital ge- regiões mais afastadas também tenham
cutir algumas questões sem eles estarem ral e somente em 13 há UTI. Em Santa Ca- serviço médico adequado.” Ribeiro admi-
no debate. É preciso saber das necessida- tarina, 82 cidades estão situadas em área te a importância do Mais Médicos, mas
des de cada uma dessas populações para de fronteira e apenas cinco delas ofere- reforça a necessidade de se fazer um tra-
capacitar as equipes de saúde, pensando cem tratamento intensivo pelo SUS. balho de valorização do agente de saúde,
em oferecer um atendimento que respei- Alvo de críticas desde o seu nasce- não só do ponto de vista profissional em
te os aspectos históricos, culturais e so- douro, em 2014, o programa Mais Mé- si, mas financeiro também, dando con-
ciais”, afirma Ribeiro, acrescentando ser dico tem sido um parceiro da população dições de acesso. “O Conselho Federal
necessário também pensar numa estra- nos municípios fronteiriços, uma vez que de Medicina fez todo esse levantamen-
tégia com foco na prevenção de doenças. muitos profissionais da saúde não estão to para chamar atenção das instituições
dispostos a trabalhar, e às vezes morar, responsáveis, para que elas possam re-
No Centro-Oeste, quase 1,8 milhão de em regiões tão afastadas dos grandes almente dar uma assistência adequada,
cidadãos brasileiros vivem em 72 cidades- centros urbanos. Lima classifica como a de forma conjunta, a toda a população.”
-limite em Mato Grosso e Mato Grosso do “cereja do bolo” a atuação desse profis- De acordo com o CFM, existem atual-
Sul. Dos 28 municípios fronteiriços ma- sionais. “O Mais Médicos funciona muito mente 16.664 médicos atuando nem áreas
to-grossenses, apenas Cáceres dispõe de fronteiriças inscritos no Cadastro Nacio-
leitos de UTI pelo SUS. Em Mato Grosso nal de Estabelecimentos em Saúde, o que
do Sul, quatro dos 44 municípios ofere- representa apenas 2,9% do total de médi-
cem o serviço. Ocorre no Sul do Brasil a O levantamento cos em atividade em todo o País, confor-
maior concentração de municípios de zo- me registros do próprio Conselho Fede-
na de fronteira. O Rio Grande do Sul lide-
do CFM apontou ral. Segundo a entidade, na última déca-
ra o ranking com 197 cidades, das quais 22 carência de serviços da, houve redução no número de médicos
têm UTI e apenas Pelotas dispõe de uma essenciais nas 588 em pelo menos 83 das 588 cidades-limite,
rede com cinco hospitais. No Paraná, dos cidades fronteiriças embora, paradoxalmente, tenha ocorrido

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
ZONA DE EXCLUSÃO
A presença do SUS nos municípios fronteiriços*

RR AP

AM PA
MA CE RN
PB
PI PE
AL
TO SE
MT BA

DF
GO
MG
MS ES
crescimento de 52% de registros de novos 45 %
não possuem
SP RJ
profissionais. Sobre a formação de novos
hospital geral
médicos, o Conselho vê com cautela a au- PR
torização para a abertura “indiscrimina-
da” de novas escolas e faculdades, anun- SC
ciada recentemente pelo governo Lula.
RS
Ao contrário do que acontece com os
médicos, o número de enfermeiros nas ci-
40%
não têm leitos
dades fronteiriças aumentou 92% na úl- de internação
tima década, ainda que represente ape-
nas 2,5% dos 696 mil profissionais regis-
trados no Conselho Federal de Enferma-
gem. Segundo o CNES, nas áreas de fron-
92%
não dispõem
teira atuam 17.214 enfermeiros. O mesmo de vagas de UTI
acontece com os odontólogos. Houve um
R E G I N A A S S I S E S Í LV I O AV I L A / H C PA

crescimento de 22% na quantidade de


dentistas nessas cidades, apesar de que
em mais de 130 delas ter havido redu-
* Abarca uma faixa de até
ção desses profissionais. Pelos dados do
CNES, 4,2 mil dentistas trabalham em re-
150 quilômetros de largura ao
longo das fronteiras terrestres,
42%
não contam com
giões de fronteira, um contingente muito 16,7% da área total do Brasil.
pequeno, apenas 1%, em relação aos 400 leito pediátrico
Fonte: Conselho Federal
mil odontólogos que constam no cadas- de Medicina, 2023
tro do Conselho Federal de Odontologia. •

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 37

CLUBE DE REVISTAS
Economia

Farinha pouca
BNDES A disputa pelo FAT reabre o debate
sobre o financiamento da reindustrialização
P O R C A R LO S D R U M M O N D

O
debate sobre a destinação o custeio do programa de seguro-desem-
de parte dos recursos do prego, do abono salarial, das políticas de
Fundo de Amparo do Tra- readequação de mão de obra e de inter-
balhador para tapar bura- mediação de mão de obra, sendo os dois
co na Previdência, possibi- últimos itens existentes hoje só no papel.
lidade aberta pelo governo Bolsonaro, es- O FAT é também a principal fonte de re-
quentou na última semana e, de quebra, cursos para o financiamento de progra-
provocou a retomada da discussão sobre mas de desenvolvimento pelo BNDES.
as condições efetivas de financiamento,
pelo BNDES, da reindustrialização, pro- Após vários alertas das centrais sin-
grama de importância crucial. A sangria dicais, o ministro do Trabalho, Luiz Ma-
do FAT não ameaça, ao menos no curto rinho, propôs, na segunda-feira 9, a devo-
prazo, nem os programas de apoio ao tra-
balhador nem o financiamento do
BNDES, mas a demora em resolver os
graves problemas da Taxa de Longo Pra-
zo, criada no governo Temer, preocupa
economistas e empresários.
O FAT é o destino dos recursos pro-
venientes das contribuições para o
PIS-Pasep, fundo contábil instituído em
1975 com a unificação do fundo do Pro-
grama de Integração Social (PIS) com o Impasse. O presidente do BNDES corre
fundo do Programa de Formação do Pa- o risco de ficar sem recursos para investir
em indústrias, a exemplo da Herbarium
trimônio do Servidor Público (Pasep),
criados em 1970. No PIS, são cadastrados
os trabalhadores regidos pela Consolida-
ção das Leis do Trabalho (CLT), enquan- lução ao FAT de 80 bilhões de reais uti-
to os empregados nas repartições públi- lizados para cobrir gastos da Previdên-
cas da União, dos estados e municípios, cia e sugeriu que a mudança seja feita por
bem como em suas autarquias e empre- meio da reforma tributária em andamen-
sas públicas, são cadastrados pelo Pasep. to. O presidente do BNDES, Aloizio Mer-
Com a Constituição de 1988, os recursos cadante, apoia a devolução. Até a terça-
do PIS-Pasep passaram a ser alocados no -feira seguinte, não se sabia qual era a po-
Fundo de Amparo ao Trabalhador, para sição do ministro da Fazenda, Fernan-

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 42
NESTA Análise. O dólar faz
SEÇÃO a alegria de ecologistas,
pentecostais e católicos

do Haddad, pasta que por definição não descapitalização do FAT e do BNDES. Um Se a sangria do fundo
é propensa a abrir mão de receitas para processo desse tipo acabaria com a pers- não for estancada,
REDES SOCIAIS E M A RCELO CA M A RGO/A BR

equilibrar as contas públicas. pectiva inscrita na Constituição de 1988,


O economista Clovis Scherer, do de estruturar políticas de mercado de tra-
o principal banco
Dieese, assessor da CUT no Grupo de balho e de desenvolvimento econômico de desenvolvimento
Apoio ao Conselho Curador do FGTS, que permitam progressão social, melhora do País pode ficar
considera “compreensível” o governo do mercado de trabalho, uma estrutura- descapitalizado
atual buscar um superávit e avalia que, ção de políticas de qualificação profissio-
nos próximos dois anos, o repasse para nal e um papel ativo do banco de desenvol-
a Previdência não seria algo ameaçador vimento. “Neste caso, se desestruturaria
para o FAT. O problema, ressalta o eco- completamente esse objetivo, a visão libe-
nomista, é se essa política não for reverti- ral voltaria a predominar e nós perdería-
da, porque aí terá início uma trajetória de mos esses instrumentos”, alerta Scherer.

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 39

CLUBE DE REVISTAS
Economia

As condições efetivas de financiamen- lização do País, já foi melhor. Após devol- cits crescentes e corre o risco de depender
to da política industrial preocupam, por ver adiantado, em cinco anos, 600 bilhões cada vez mais do seu financiador, o pró-
ser este o único caminho, mundialmen- de reais em recursos do Tesouro aporta- prio BNDES, para tapar os buracos.
te testado, para aumentar e estabilizar a dos na crise financeira internacional de Arthur Koblitz, economista que pre-
criação de empregos de qualidade e ge- 2008, sob pressão dos governos Temer e side a associação dos funcionários do
neralizar os ganhos em produtividade Bolsonaro, quando constitucionalmen- BNDES, está convencido de que o risco
e a inovação para o conjunto da econo- te teria 40 anos para fazer essa devolu- de desfinanciamento é real e pode com-
mia, além de encaminhar a transição pa- ção, e depois de perder 80 bilhões da sua prometer o papel do BNDES para o de-
ra uma economia verde. carteira de ações, torrados pelo ex-pre- senvolvimento. Hoje, a Previdência está
A situação do BNDES, única fonte de sidente Gustavo Montezano e pelo ex- recebendo cerca de 20 bilhões de reais
recursos de longo prazo para investimen- -ministro da Economia Paulo Guedes, o do FAT e, caso essa sangria permaneça
tos e principal financiador da industria- BNDES conseguiu escapar da extinção. constante, em termos reais, o déficit do
Sob a tutela estrita do arcabouço fiscal, FAT será inevitável, drenando o estoque
vê, porém, diminuir a sua última fonte de recursos que cabe ao BNDES para sua
de financiamento, o Fundo de Amparo operação. Pelos cálculos de Koblitz, em
Finalidade. O FAT é fundamental para
os programas de seguro-desemprego
do Trabalhador, o FAT. Com receitas ca- 2025 sairão 7,5 bilhões e no ano seguin-
e abono salarial, mas não há investimento dentes e saídas em expansão, esse fundo, te, 24,5 bilhões. “É uma porta aberta, não
na requalificação dos trabalhadores o maior da América Latina, enfrenta défi- tem nenhuma previsão de quanto vai de
dinheiro para a Previdência, isso sai dis-
cricionariamente. Pode ser que amanhã
tenha uma crise da Previdência, e justi-
fiquem tirar todo o dinheiro deste ano”,
lamenta Koblitz.

O déficit chegou a tal ponto que o FAT,


para arcar com as despesas do seguro-
-desemprego, precisa tomar recursos do
BNDES. Segundo o economista, acabar
com as taxas mais baixas do crédito do
BNDES é central para o sistema finan-
ceiro e o bolsonarismo. “Isso é estratégi-
co para eles. Tanto que fizeram essa re-
forma, que é a Taxa de Longo Prazo. E o
governo Lula até agora não tem um cami-
nho para resolver o problema. Abriram
um alívio mínimo na TR, muito pequeno,
mas a TLP está vigorando. Hoje, o banco
tem um problema genuíno para colocar
dinheiro na economia. Cria-se uma situ-
ação em que acabam minando o funding
do banco. Há o risco de amanhã se refor-
mar a TLP e não ter recursos.”
Estancar a sangria do FAT e reformar
a TLP são objetivos convergentes, ressal-
ta Koblitz. “As duas coisas estão associa-
das. O governo precisa fazer uma revi-
são da TLP, urgente, o Brasil precisa de
investimento em infraestrutura e na in-
dústria, é tarefa para ontem fazer uma

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
Apelo. O ministro do Trabalho, Luiz
Marinho, quer acabar com o desvio de
recursos do fundo para a Previdência

xa cai quando a economia vai bem, o fi-


nanciamento privado flui e os custos de
funding são comprimidos. E sobe quan-
do a economia tem problemas, o finan-
ciamento privado seca e encarece.

No ano passado, a Associação Brasi-


leira da Indústria de Máquinas e Equipa-
mentos, a Abimaq, apontou em nota téc-
nica que “a política expansionista ado-
tada pelo Copom entre agosto de 2019 e
fevereiro de 2021, visando fazer frente à
queda de demanda provocada pela pan-
demia, derrubou a Selic, mas não refle-
tiu na queda da TLP, que, ao contrário,
ainda em meados de 2020, iniciou uma
revisão da TLP e proteger o funding do cinco anos, que pagam IPCA mais uma escalada, levando ao descolamento das
banco que sobrou, que é o FAT.” O eco- parcela fixa de juros, e deflagrou a gra- curvas em 6 pontos porcentuais em fe-
nomista prossegue: “Como é que, no Bra- dual eliminação da vantagem de custo de vereiro de 2021. A política contracionis-
sil, a precisar de tudo em termos de infra- seu funding institucional, o FAT. ta, iniciada em março do mesmo ano, ex-
estrutura, as coisas não decolam? Cres- “A lei da TLP poderia ter dado a opção pandiu ainda mais a diferença entre as
cer 3% e controlar a inflação não basta. aos clientes do BNDES de tomar emprés- taxas, em quase 10 pontos porcentuais.
Amanhã tem um problema na China, cai timos com custo em Selic ou taxa prefi- A TLP nominal, em menos de 12 meses,
a safra agrícola, aí vão fazer o quê? Outra xada. Não foi feito, mas basta querer. Is- saltou de 7% para quase 20% ao ano, um
reforma liberal, uma nova política de tri- so elevaria a competitividade do banco comportamento típico de taxa de curto
pé macroeconômico, para o País todo se sem custo fiscal, evitaria a descontinui- prazo, com instabilidade elevada e custos
adaptar a isso de novo?” dade na execução dos projetos em con- insustentáveis pelo processo produtivo.”
De importância determinante no fi- junturas de turbulência de mercado e ti- Os problemas identificados pela Abimaq
VA LT E R C A M PA N AT O /A B R E L Ú C I O B E R N A R D O J R . /A G . B R A S Í L I A

nanciamento da industrialização do raria um viés que encarece o apoio a pe- na TLP, de “instabilidade e falta de pre-
País, o BNDES, desde o governo Temer, quenas empresas, que tem prazo inferior visibilidade”, são o avesso dos requisitos
sofreu uma desarticulação, como apon- a cinco anos”, destacam os economistas. para os investimentos de longo prazo.
tam os economistas do banco público Outro problema, sublinham, é que a Em janeiro, Mercadante disse à im-
Marcelo Miterhof e Thiago Rabelo Pe- TLP é procíclica, não permitindo que a prensa ter proposto à Febraban a dis-
reira em artigo escrito há um ano. Os de- atuação do BNDES reme contra a maré cussão de um projeto para reduzir a TLP.
sembolsos do banco, entre 2000 e 2007, em momentos críticos. Sua parcela fi- Cabe observar que, no auge da crise de
foram equivalentes a 2% do PIB. De 2008 2008-2009, os empresários só obtiveram
a 2014, superaram 3%. A partir de 2017, taxas razoáveis em bancos privados de-
seus desembolsos ficaram próximos a 1% pois de o BNDES, o Banco do Brasil e a
do PIB. Em 2021, foram de apenas 0,74%. Na crise de 2008, Caixa baixarem os seus juros, de acordo
Além da queda da taxa de investimento, com a determinação do presidente Lu-
sublinham os autores do artigo, a princi-
os bancos privados la. Esperar que um entendimento entre
pal causa dessa redução foi a criação da só baixaram juros o governo e a banca privada possa resul-
TLP, que atrelou o custo de captação do após o movimento tar em um projeto para redução da TLP
BNDES aos títulos públicos (NTN-B) de de bancos públicos parece clara perda de tempo. •

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 41

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Economia

Ardis do dinheiro
ristas” os indivíduos não têm existência
social se não possuem dinheiro.
A função medida de valor, ao exigir
a numeração monetária das mercado-
ECONOMIA MONETÁRIA Em seus poderes rias, antes da entrada no mercado, ense-
insondáveis, o dólar promove a alegria ja a dissociação da troca em duas opera-
ções distintas, a venda e a compra. O di-
de ecologistas, pentecostais e católicos nheiro assume, então, sua segunda fun-
ção, enquanto instrumento da realiza-
P O R LU I Z G O N Z AG A B E L LU Z ZO E M A N F R E D B AC K *
ção do preço das mercadorias. Os prota-
gonistas do processo de intercâmbio ge-
neralizado “descobrem” a possibilidade

O
de acumular o representante da riqueza
s estudos sobre economia relativos. Os preços monetários são a ex- geral, a mercadoria universal, sem preci-
monetária começam reco- pressão necessária do valor das merca- sar gastá-la imediatamente na aquisição
nhecendo o caráter “origi- dorias na sociedade em que os produtos de outra mercadoria particular.
nário” da função medida do trabalho privado são destinados di- Aqui, mais uma vez, a economia capita-
de valor. Ela se realiza na retamente para o intercâmbio. lista monetária desmente as hipóteses de
prática sob a forma de unidade de conta, Na economia em que a produção é di- equilíbrio geral. Os chamados preços de
“nome aritmético” da medida de valor. retamente para a troca, torna-se inesca- equilíbrio supõem que nas relações de in-
É desta função que decorrem as demais, pável o batismo monetário das mercado- tercâmbio de mercadorias, cada vendedor
meio de circulação, meio de pagamento rias particulares. Elas não podem sair das está atado ao comprador como irmãos xi-
e reserva de valor. A função de meio de mãos dos possuidores sob a forma “natu- fópagos. Venda sem compra imediata gera
circulação está diretamente associada ral” para enfrentar a aventura do merca- uma promessa de pagamento. Seria bom
à unidade de conta. Essas duas funções do. Os preços correspondem a uma deter- entender que essa promessa está registra-
executam de forma reiterada os ritos do minação formal das mercadorias no sen- da em um documento, uma letra de câm-
reconhecimento social que acompanham tido de que elas não podem ingressar no bio, a ser resgatada numa data futura.
o processo de socialização dos indivíduos processo de intercâmbio generalizado
privados. Livres e separados, eles são antes de serem apresentadas ao dinhei- No avanço das relações de intercâm-
aglutinados nas relações de intercâmbio ro enquanto medida de valor, expressão bio, esses instrumentos de crédito pas-
monetário: primeiro, denominar cada da sociabilidade entre os produtores pri- sam a circular nos mercados de riqueza,
mercadoria particular no dinheiro ideal vados de mercadorias. As mercadorias já sempre submetidos a uma avaliação que
e, depois, submeter-se à aceitação dessa entram na circulação com preços mone- busca definir o seu valor monetário dian-
declaração pelo tribunal do mercado. tários, ou seja, não mais em sua forma ma- te das incertezas que afligem os possui-
Quando sai das mãos do produtor ou terial senão em sua determinação social. dores dos ativos quanto ao futuro.
do vendedor, com o preço monetário O dinheiro realiza a sociabilidade dos pro- Sim, o futuro é o senhor dos corações
estampado na testa, a mercadoria só é dutores de mercadorias e dos proprietá- e das mentes nas economias monetário-
confirmada como valor quando encon- rios da riqueza. Nas sociedades “Dinhei- -financeiro-capitalistas. Assim é porque
tra um comprador disposto a realizar o as decisões no capitalismo estão compro-
seu preço. Trata-se de uma aposta. Não metidas estruturalmente em antecipar
há aí um sistema de preços “reais” rela- a valorização da riqueza mercantil-fi-
tivos que garanta o equilíbrio do siste- O desejo de manter nanceira. A cada momento, Comprados
ma. Ainda hoje, os filhotes de Leon Wal- e Vendidos sofrem as angústias e as agru-
ras sustentam a lenda da separação en-
o dinheiro como ras do resultado de suas apostas.
tre o real e o monetário. O dinheiro em reserva é barômetro No artigo “A Teoria Geral do Empre-
Walras é apenas um numerário, um véu da nossa desconfiança go”, Keynes discute as concepções de di-
que encobre a realidade dos preços reais, quanto ao futuro nheiro dos economistas clássicos. Para

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
Imperativo. As taxas
de juro do Tio Sam afligem
as demais moedas porque
os detentores de riqueza
não podem escapar dos
sacolejos da moeda universal

Esse “eterno retorno do mes-


mo” (Nietzsche, tenha pieda-
de) está determinado pela inte-
ração entre a liberalização das
contas de capital, a posição das
economias “emergentes”, víti-
mas da arbitragem entre juros e
câmbio, e os Estados Unidos co-
mo provedores de ativos líqui-
dos de “última instância”.
Maior dívida pública do pla-
neta, déficit orçamentário e ex-
terno recordes! Que país é es-
se? Brasil? Não! Nosso grande
Uncle Sam! Segundo os mági-
cos da teoria convencional, a
moeda perderia valor, haveria
fuga de capitais e inflação ex-
plosiva! E 30 trilhões de dóla-
res de papagaios dos mais va-
riados no balanço do Federal
ele, os clássicos deixaram de sublinhar tituído por uma hierarquia de moedas, Reserve! Papagaios que são enjaulados
as duas funções cruciais do dinheiro em umas mais “líquidas” do que as outras. Um no seu cofre desde a crise de 2008.
uma economia monetária: como nume- exportador alemão e um importador japo- Pasmem, nas últimas semanas, há uma
rário, o dinheiro denomina o valor mo- nês dificilmente escolheriam o real como corrida aos títulos americanos e à valori-
netário de bens, serviços e contratos; co- moeda de transação em seus negócios. O zação da grana vestida de verde e edulco-
mo “reserva de valor” (store of wealth), o dólar é a moeda reserva, a moeda univer- rada com a proclamação In God We Trust.
dinheiro é a forma final de acumulação sal. O real é uma moeda não conversível. Em seus poderes insondáveis, o dinheiro
de riqueza no capitalismo: “Nosso dese- universal – o dólar – promove a alegria de
jo de manter o dinheiro como reserva de Não espanta que as taxas de juro de ecologistas, pentecostais, católicos! Mais
valor constitui um barômetro do grau de Tio Sam aflijam suas filhas menores em curioso ainda, para deixar qualquer econo-
nossa desconfiança e de nossos cálculos todo o planeta. Isso significa que os deten- mista da escola das expectativas racionais
e convenções quanto ao futuro”. tores de riqueza não podem escapar dos em surto psicótico, os irracionais que de-
Essa digressão de Maynard deveria em- sacolejos da moeda universal para avaliar têm moeda correram para os Treasuries de
purrar nossa curiosidade para o sistema seus ativos monetário-financeiros. 10 e 30 anos! Quanta irracionalidade hu-
monetário internacional. Nesse momen- A morfologia dos movimentos de capi- mana, estão financiando o Tesouro ame-
to, o dólar é a moeda reserva. Denomina tais é intrinsecamente pró-cíclica em sua ricano no médio e longo prazo. •
ISTOCKPHOTO

mais de 70% das transações comerciais e recorrência maníaca, que vai da abundân-
financeiras no mundo. Desgraçadamente, cia de grana estrangeira às paradas súbi- * Manfred Back é ex-trader e professor de
o sistema monetário internacional é cons- tas e daí às crises financeiras e bancárias. Economia e Mercado de Capitais do Instituto J&F.

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 43

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Nosso Mundo

Círculo vicioso
OBSERVATÓRIO DAS ELEIÇÕES Sucesso político e fracasso econômico:
nas urnas a democracia argentina encara seus fantasmas
L EO N A R D O AV R I T Z E R E A N D R ES S A R OVA N I *

A
Argentina tem uma traje- nômico. A eleição de 2023, com o primei- -se, então, uma via para a ampliação de
tória singular no campo ro turno previsto para 22 de outubro, po- direitos, como a adoção de filhos por ca-
das democracias sul-ame- de significar o fim dessa trajetória no que sais gays e o aborto. O segundo elemento,
ricanas. Com uma transi- diz respeito ao sucesso democrático. a continuidade da tensão entre peronis-
ção por colapso – vista, na- Os primeiros governos argentinos após tas e não peronistas, resolveu-se apenas
quele momento, com reticências por cien- a democratização foram marcados por neste século, em 2019, quando Mauricio
tistas políticos –, o país teve diversos go- dois fenômenos: a ausência de uma nova Macri completou seu mandato. Estabili-
vernos exitosos no que diz respeito a uma Constituição e um ciclo perverso entre zou-se, aí, um dos principais déficits da
lógica de construção democrática. O pri- governos peronistas e não peronistas que democratização argentina.
meiro diferenciou-se por colocar, no cen- impediu os presidentes não peronistas de
tro das suas ações, o julgamento das gra- completarem seus mandatos. O primei- Quando pensamos a situação econômi-
ves violações dos direitos humanos ocor- ro governo peronista exitoso, o de Carlos ca do país, vemos onde residem os riscos
ridas na ditadura. Desde os primeiros Menem, criou condições para uma solu- para a democracia. Depois de um período
anos de redemocratização, o descontrole ção efetiva para o primeiro problema ao de recuperação econômica que se seguiu
da economia esteve em pauta. Esse pare- incorporar, na revisão constitucional de ao curralito, isto é, ao bloqueio das contas
ce ser um bom resumo da democracia ar- 1994, os principais tratados de direitos bancárias pelo liberal Domingo Cavallo, a
gentina: sucesso político e fracasso eco- dos quais o país era signatário. Abriu- economia argentina mergulhou em uma

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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TAMBÉM pág. 46
NESTA EUA. O Partido Republicano
continua refém dos radicais
SEÇÃO apoiadores de Donald Trump

Outsider. O voto no “liberal libertário” do. Assim como a imagem construída por
Javier Milei (ao centro) é profundamente Bolsonaro no Brasil, ele se apresenta co-
anti-Estado e anti-institucional
mo um outsider que chegará para solu-
cionar problemas enraizados. A pesqui-
sa “A Cara da Democracia”, elaborada pe-
timo ano e a maior parte deles, 38%, não lo Instituto da Democracia e da Demo-
acredita que vá melhorar no curto prazo, cratização da Comunicação, realizada na
segundo pesquisa realizada pela Univer- Argentina em parceria com a consulto-
sidade de San Andrés. A satisfação dos ar- ria Poliarquia, indica que o país vizinho,
gentinos com o andamento geral do país é assim como o Brasil, vive um cenário
de 11%, o pior patamar desde 2016. de alta aversão ao funcionamento das
As eleições primárias argentinas, ocor- instituições políticas. Para 78% dos argen-
ridas em agosto, têm uma estrutura dife- tinos, os políticos só defendem seus pró-
rente das americanas e considera, an- prios interesses e uma taxa semelhante
tes, a preferência da população. O favori- desconfia dos partidos. A parcela da po-
to foi o autodenominado “liberal libertá- pulação que se considerava insatisfeita
rio” Javier Milei, um político que chamou com o funcionamento do regime demo-
atenção no fim de 2022, mas pareceria crático em 2022 subiu 10 pontos porcen-
fase de péssima performance econômi- não ter chances de alcançar o primeiro lu- tuais (de 56% para 66%) em quatro anos. A
ca. Nos últimos dez anos, o país cresceu gar. Sua liderança provocou um terremo- preferência pela democracia sobre outras
em apenas seis. No governo de Alberto to na política ao romper com padrões for- formas de governo caiu de 73% para 62%.
Fernández, os últimos quatro anos fo- temente estabelecidos. Segundo o cientis- Assim, a Argentina corre o risco nes-
ram de recessão. Com 80% de desaprova- ta político Martín D’Alessandro, foi o pior ta eleição de se enredar na espiral que já
ção, o peronista desistiu de buscar a re- resultado em 80 anos para os peronistas, envolveu outros países da região, como
eleição e abriu caminho para que Sergio a coluna vertebral da democracia argen- o Brasil, parcialmente recuperado da
Massa, seu ministro da Economia, entras- tina. Mas o terremoto não parou por aí: o aventura bolsonarista, o Peru, abalado
se na disputa. Mas é justamente a política voto em Milei é um voto profundamente por sucessivos impeachments, e o Chile,
econômica, reprovada por 88%, que os ar- anti-Estado e anti-institucional. paralisado entre a Constituição que não
gentinos identificam como principal pro- querem e a Constituição que não são ca-
blema do país, à frente de todas as outras Diante do fracasso das duas princi- pazes de compactuar. Este é um caminho
questões. A inflação, nos oitos primeiros pais correntes políticas no país, uma ter- que sabemos como começa, com a rejei-
meses deste ano, bateu a marca dos 80%, ceira cresce nas fissuras do embate de- ção de todas as instituições democráti-
atingindo 124% na variação anual. Trata- mocrático. A avaliação positiva de Javier cas. Só não sabemos como termina. •
-se do maior transtorno enfrentado pelos Milei cresceu em torno de 13 pontos. Mes-
argentinos, independentemente do parti- mo sendo visto pelos eleitores como vio- *Leonardo Avritzer é professor titular
de Ciência Política da UFMG, doutor em
do com o qual se declarem identificados. lento e instável emocionalmente, ele ofe- Sociologia Política pela New School for Social
Como consequência da performance receu uma cartela de propostas que vão Research e coordenador do INCT-IDDC.
econômica desastrosa, os níveis de con- ao encontro das convicções do eleitora- Andressa Rovani é jornalista e doutoranda
fiança nas instituições e de otimismo com em Ciência Política pela Unicamp.
O Observatório das Eleições na Argentina
o futuro caíram drasticamente. A concre-
é um projeto internacional organizado pelo
AUGUSTIN M A RCA RIA N /A FP

tude do principal problema a ser comba- Instituto da Democracia, sediado na UFMG


tido pelo próximo presidente é latente: o A preferência do e coordenado por Avritzer. Esse projeto
descontrole dos preços mina a esperança envolve uma equipe de pesquisadores de
povo pelo regime várias instituições e universidades, tanto
dos argentinos. Às vésperas da escolha de
um novo presidente, o nível de desencanto
democrático caiu no Brasil quanto na Argentina, e tem como
principal objetivo acompanhar as eleições
chama a atenção: 84% dos cidadãos acre- de 73% para 62% que estão programadas para ocorrer
ditam que a situação do país piorou no úl- em quatro anos no dia 22 de outubro no país vizinho.

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 45

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Nosso Mundo

Seita suicida
o presidente tenha cometido qualquer cri-
me passível de impedimento.
McCarthy, tal como inúmeros supli-
cantes republicanos nos últimos oito
Kevin McCarthy anos, percebeu que suas aspirações polí-
é a enésima vítima da subserviência ticas estavam diretamente ligadas à sua
vontade de apoiar Trump e as forças ex-
do Partido Republicano a Trump tremistas no partido que se uniram ao seu
redor. Numa história tão antiga quanto o
POR MICHAEL COHEN tempo, ele fez um acordo com o diabo, ape-
nas para ser queimado pelas forças políti-
cas que fortaleceu. O domínio de Trump

M
sobre o Partido Republicano é tão com-
ais de 11 anos atrás, antes vilmente Trump e seus seguidores do Ma- pleto que beira o patológico. Desde março,
de Donald Trump emer- ga, o Make America Great Again, eles for- ele foi indiciado quatro vezes e acusado de
gir do lodo primordial do taleceram um movimento político que ca- 91 crimes diferentes. No entanto, seus nú-
pântano febril da extre- da vez mais testa os limites da experiência meros nas pesquisas entre os republica-
ma-direita, antes da in- democrática estadunidense. nos melhoraram drasticamente. Ele tem
surreição abortada de 6 de janeiro e antes A trajetória política de McCarthy conta uma vantagem de mais de 45 pontos na
de o último espasmo do extremismo re- essa triste história. Depois do 6 de janei- corrida pela indicação do partido.
publicano derrubar o presidente da Câma- ro, McCarthy, que, juntamente com seus
ra, Kevin McCarthy, dois renomados cien- colegas políticos, foi forçado a se esconder Simplesmente, não há futuro no
tistas políticos, Thomas Mann e Norman dos rebeldes invasores, voltou-se contra o Partido Republicano para quem se re-
Ornstein, identificaram a essência da po- homem responsável pela violência do dia. cuse a prostrar-se diante de Trump. Liz
lítica cada vez mais disfuncional dos EUA: Em particular, disse a colegas republica- Cheney foi a republicana mais veemen-
o Partido Republicano. Para eles, o Gran- nos: “Estou farto desse cara”. Mas, poucas te e apaixonada ao se manifestar contra
de e Velho Partido (GOP, na sigla eminglês) semanas depois, viajou para o refúgio pa- ele depois do 6 de janeiro. Sua recompen-
havia se tornado um “insurgente atípico”, laciano do ex-presidente no sul da Flórida sa: McCarthy planejou sua remoção da li-
que era “ideologicamente radical, desde- e, de joelhos, jurou lealdade ao deus ala- derança da legenda. Então, em 2022, um
nhando os compromissos e indiferente à ranjado do Partido Republicano. Ele ten- republicano do Maga desafiou Cheney
legitimidade de sua oposição política”. tou bloquear um comitê bipartidário do nas primárias republicanas e a derro-
O enfant terrible piorou de forma inima- Congresso para investigar o 6 de janeiro tou por quase 40 pontos. Outro após-
ginável. O Partido Republicano hoje é me- e aliou-se a teóricos da conspiração que tata republicano, o ex-candidato presi-
nos uma agremiação e mais uma massa in- continuaram a espalhar mentiras sobre as dencial e atual senador por Utah, Mitt
cipiente de lamentações culturais, teorias eleições de 2020. No início deste ano, ce- Romney, que votou duas vezes pela con-
da conspiração e slogans políticos de mí- deu aos extremistas republicanos e abriu denação de Trump nos seus julgamentos
nimo denominador comum. Apesar de to- um processo de impeachment contra Joe de impeachment, anunciou recentemen-
da a sua toxicidade, Trump é um sintoma Biden, embora não haja evidências de que te que não se candidataria à reeleição.
da descida à loucura do Partido Republi- Em entrevistas para a Atlantic, ele
cano durante décadas. Legislar não é vis- contou como, “em público”, senadores
to como uma ferramenta para melhorar republicanos “desempenharam seu pa-
a situação da população, e sim como uma O presidente da pel de leais a Trump, muitas vezes con-
oportunidade para zombar dos democra- torcendo-se retoricamente para defen-
tas e agir de acordo com as afrontas da ba-
Câmara dos EUA der o comportamento mais indefensá-
se do partido. Mas a indiferença republica- caiu com o apoio vel do ex-presidente. Mas, em particular,
na em relação a governar é, talvez, a menor de radicais de sua ridicularizaram a ignorância dele, revi-
das patologias do GOP. Ao apoiarem ser- própria legenda raram os olhos diante de suas trapalha-

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
McCarthy até tentou,
mas não conseguiu
contentar os trumpistas

das e fizeram observações incisivas so- Covid devastar o país – com os de no- pouco na Câmara dos Deputados. Neste
bre sua psique infantil e distorcida”. vembro de 2020, quando ele concorreu ano, em dezenas de eleições especiais, os
Tal como outros republicanos de prin- à reeleição, permaneceram praticamen- democratas estão com desempenho supe-
cípios, Romney está preferindo afastar-se, te inalterados. Desde que deixou o car- rior em impressionantes 11 pontos.
e é difícil culpá-lo. Suas críticas a Trump go, seus números de aprovação também É claro que as eleições são complicadas
levaram a ameaças de morte, e hoje ele são quase os mesmos. Os americanos, em e não há garantia de que o impopular
gasta cerca de 5 mil dólares por dia em geral, já se decidiram sobre Trump – e o Biden saia vitorioso em novembro do
segurança privada. Resultado: as fileiras veredicto é: “Não gostamos dele”. próximo ano. Mas considere suas péssi-
do Partido Republicano estão agora cada mas pesquisas atuais com cautela. Uma
vez mais ocupadas por pessoas com reser- As últimas três eleições nos EUA coisa é querer um candidato democrata
vatórios insondáveis de ambição e armá- provam isso. No que foi amplamente vis- diferente, como é o caso de muitos de-
rios vazios de integridade. Os incentivos to como uma rejeição a Trump, nas elei- mocratas, mas eleição é questão de esco-
políticos na legenda seguem numa direção ções intermediárias de 2018, os democra- lhas. O fato de a opção provável dos elei-
singular – para a extrema-direita. Se exis- tas conquistaram mais de 40 assentos e tores em 2024 ser Biden, ou um adversá-
te algum vislumbre de esperança, é este: o controle da Câmara dos Deputados. Em rio profundamente instável que poderia
para todos os eleitores republicanos que 2020, ele perdeu a reeleição por pelo me- ser um criminoso com diversas conde-
amam Trump, existe um grupo maior e nos 7 milhões de votos para Biden (4 mi- nações, é uma forma de estreitar o foco.
mobilizado de eleitores que o detestam. lhões a mais do que em sua derrota no vo- Mesmo que Trump perca, porém, o pro-
M A NDEL NGA N /A FP

Na verdade, o que talvez seja mais sur- to popular para Hillary Clinton em 2016). blema do Partido Republicano continua-
preendente em Trump é a natureza está- Nas eleições de meio de mandato de 2022, rá existindo muito depois de ele ter dei-
tica do seu apoio. De fato, se comparar- os democratas tiveram um desempenho xado a cena política. •
mos seus índices de aprovação em feve- drasticamente superior, conquistando
reiro de 2020 – antes de a pandemia de um assento no Senado e perdendo por Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 47

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Plural

Fascismo
volucionária. A democracia existiria ape-
sar do 25 de abril, não por causa dele.”
Em 2024, Portugal vai celebrar os 50
anos da Revolução dos Cravos, que pôs ter-

à portuguesa
mo a 48 anos de ditadura, dominada em
sua maior parte pela onipresente figura
de António Salazar, a ponto de tirania e
tirano se confundirem. Quem visita Lis-
boa em 25 de abril e assiste aos festejos na
LIVRO O historiador e político Avenida da Liberdade e arredores é leva-
Fernando Rosas dedica mais uma obra do a acreditar na convergência partidária
e ideológica em torno de um movimento
a decifrar a ditadura de Salazar, a mais iniciado nos quartéis, mas concluído nas

longeva da Europa no século XX ruas, quando os cravos vermelhos presen-


teados aos soldados pelos populares tor-
naram-se mais persuasivos do que os fu-
zis. Ilusão. O 25 de Abril e o legado salaza-

A
rista estão em disputa e certas classes so-
s circunstâncias não pode- Sem uma coroa para chamar de sua, res- ciais, além de influentes grupos de mídia,
riam ser mais oportunas. O tou à infanta e ao consorte, ressaltaram os insistem em uma versão lusitana da “dita-
historiador Fernando Ro- jornalistas, fixar residência em Londres, branda”. A evocação do 25 de Novembro
sas me recebeu em sua ca- onde, ao menos, se respira o ar da nobre- integra a peleja. Em 1975, exatos um ano
sa, em Lisboa, no intervalo za. Rosas absteve-se de comentar anteci- e sete meses após a revolução, militares
de dois eventos representativos da índole padamente as bodas, mas não fugiu de “moderados” lograram um pacto com os
da direita portuguesa. No dia anterior, 5 analisar o discurso de Moedas. “É um ve- oficiais ligados ao Partido Comunista, im-
de outubro, feriado da Proclamação da Re- lho truque da direita”, afirmou. “Sempre portantes na execução da reforma agrá-
pública, Carlos Moedas, prefeito da capi- tenta separar a democracia da matriz re- ria no pós-ditadura. O acordo pôs um freio
tal e expoente do PSD, havia subido ao púl- nas aspirações revolucionárias, enterra-
pito para anunciar os preparativos na ci- das de vez na Constituição do ano seguin-
dade dos festejos do 25 de Novembro, da- te. “Foi uma espécie de contrarrevolução”,
ta controversa que, em contraposição à Re- define Rosas. Outro debate se dá em tor-
volução dos Cravos, comemorada em 25 no da natureza do regime salazarista. Tra-
de abril, franjas da elite consideram como tou-se ou não de uma ditadura fascista?
o “verdadeiro” marco da liberdade. No dia
seguinte, 6 de outubro, as televisões dedi- Em Salazar e os Fascismos, edita-
cariam horas ao “casamento real”, a união do agora no Brasil, e em outras obras so-
no Convento de Mafra, aquele retratado bre o período, Rosas afasta a falsa polêmi-
por José Saramago, da infanta Maria ca por meio de uma análise comparativa.
Francisca, herdeira do trono (?), e do ad- Sim, o salazarismo foi uma forma de fas-
vogado Duarte de Sousa Araújo Martins. cismo, mais mussoliniano do que nazis-
Seria uma cobertura – e uma cerimônia – ta, conclui. O controle da sociedade deu-
de fazer inveja aos Windsor, não fosse um -se pela censura prévia, a sociabilização
aspecto sui generis do maciço interesse mi- SALAZAR E OS FASCISMOS do medo, o domínio das Forças Armadas,
diático: a monarquia perdeu títulos e re- Fernando Rosas . Apoio: DGLab . a cumplicidade da Igreja Católica (o dita-
galias no país há 113 anos, naquele longín- Editora Tinta-da-China Brasil dor era um “homem da providência divi-
(304 páginas, R$ 90,00 )
quo 5 de outubro de 1910 que os portugue- na”, diz) e a eficácia da organização corpo-
ses haviam relembrado 48 horas antes. rativa, na qual se conciliava capital e tra-

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 50
NESTA Pós-morte. Nossa herança
SEÇÃO digital tem sido ignorada
pelas grandes plataformas

Onipresente. A ditadura começou sem


Salazar, mas ele acabaria por se tornar
sinônimo do regime que durou 48 anos

as mesmas e brotam da crise do capitalis-


mo. Desta feita, do neoliberalismo triun-
fante a partir da década de 70. “A socieda-
de, ao menos na Europa, tende a se radica-
lizar. Há um esvaziamento do centro. Dos
destroços neoliberais, a extrema-direita
se ergue. Explora a frustração, o medo.” E
quais as diferenças? “O objetivo é instalar
um regime de tipo novo, uma democracia
iliberal. Eles simulam respeitar formal-
mente as instituições democráticas, mas
buscam esvaziar a vida parlamentar, nor-
malizar leis de exceção.”

As mudanças no capitalismo, ressal-


ta, provocaram uma mutação no extre-
mismo. A forma “canônica” do fascismo,
baseada na ativa intervenção do Estado,
não serve mais ao poder econômico glo-
balizado. O “regime de tipo novo”, defen-
de Rosas, prevê, ao contrário, uma “ade-
são às formas mais radicais do neolibera-
lismo”, mesmo se antinacionalistas. “Por
isso vemos um aggionarmento da extre-
ma-direita. Até pouco tempo, seus prin-
cipais líderes faziam discursos contra a
União Europeia. Hoje em dia, buscam ca-
balho sob a bênção e supervisão do Esta- querda, o PSOL português, em nenhum deiras no Parlamento Europeu.”
do Novo. A junção desses fatores, aliada à momento reduz o distanciamento ne- Não é diferente no caso do Chega, par-
utilidade do regime aos Estados Unidos no cessário ao historiador. Ao contrário, en- tido de matriz fascistoide, que promete
contexto da Guerra Fria, avalia o autor, ga- riquece as análises e confere ao texto o pe- levar Portugal de volta aos tempos de gló-
rantiu a longevidade de uma ditadura ex- so da experiência pessoal, de quem viveu a ria dos “Descobrimentos”, chefiado por
temporânea em plena Europa, uma auto- história e não somente a leu. O esforço de um líder tão carismático quanto histriô-
M Á R I O N O VA I S / B I B L I O T EC A D E A R T E /
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

cracia que resistiu aos ares de liberdade e à comparar as correntes totalitárias do sé- nico, André Ventura, um Bolsonaro que
modernização pós-1945 e que só daria si- culo passado também faz de Salazar e os leu três ou quatro livros. Embora exalte a
nais de cansaço na esteira do colapso dos Fascismos um guia para o debate sobre o moderação, como fez Moedas no 5 de Ou-
conflitos coloniais na África – sorvedou- avanço recente da extrema-direita mun- tubro, e rejeite em público uma aliança
ros de dinheiro e de vidas e banho de reali- dial. Que bicho seria esse? Para Rosas, é in- com o Chega, a direita tradicional portu-
dade nos delírios imperialistas de Salazar. correta a expressão neofascismo. Talvez, guesa vive à mercê das algazarras de Ven-
A militância política de Rosas, na resis- diz, o termo adequado seja pós-fascismo, tura. Nunca as viúvas de Salazar estive-
tência à ditadura, na vida parlamentar de- “uma farsa marginal e delinquente da tra- ram tão alvoroçadas. •
mocrática e na fundação do Bloco de Es- gédia dos anos 1930”. As raízes são, porém, - por Sergio Lirio

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 49

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Plural

A incômoda
herança digital
Nossos perfis e bens
virtuais estão em expansão, mas o que
acontece com eles após a nossa morte?
P O R ZO Ë C O R B Y N

T
amara Kneese estuda o – não só porque os nossos entes queri-
modo como as pessoas dos talvez não saibam das contas que te-
vivenciam a tecnologia. Ela mos, mas porque as plataformas não fo-
é pesquisadora sênior do ram concebidas para pensar na morte.
Data & Society Research TO: O que nossos legados digitais
Institute (Instituto de Pesquisa de Da- podem incluir?
dos e Sociedade), organização sem fins TK: Blogs, contas de e-mail e perfis de re-
lucrativos com sede em Nova York. des sociais são exemplos óbvios. Há tam-
Em seu novo livro, Death Glitch (O bém todas as fotos e playlists de músicas
Problema da Morte), ela examina o que guardadas na nuvem, aplicativos de paga-
acontece com nossas propriedades digi- mento por celular e avatares digitais. Fo-
tais depois que morremos e argumenta ra todos os dados coletados pelos nossos
que, para o bem de toda a nossa posteri-
dade digital, as empresas de tecnologia
precisam melhorar a maneira como li-
dam com esse fato em suas plataformas. Posteridade nas plataformas. Tamara
Kneese, que pesquisa a forma como as
pessoas vivenciam a tecnologia, aponta
The Observer: O destino póstumo
as responsabilidades das empresas do
dos nossos bens digitais parece um as- Vale do Silício sobre esse tema tabu
sunto mórbido. Por que ele é importante?
Tamara Kneese: Poucas pessoas pen-
sam na herança digital, mas os nossos telefones e outros objetos inteligentes.
bens digitais estão se acumulando. Exis- TO: Onde, especificamente, as em-
tem razões pragmáticas e sentimentais presas de tecnologia estão falhando?
I S T O C K P H O T O E LY D I A D A N I L L E R

pelas quais seus entes queridos, após a TK: Algo que muitos acham desconcer-
sua morte, poderão se importar com tante é quando recebem avisos automá-
eles. E a preservação também é impor- ticos de plataformas de redes sociais su-
tante para a memória histórica e coleti- gerindo amizade com alguém que mor-
va. O problema é que não existe um me- reu – seja essa pessoa sua conhecida ou
canismo claro para transferir os bens di- não. Algumas plataformas, como X (ex-
gitais de uma geração para outra. Nossas -Twitter) e TikTok, não têm nenhum me-
posses digitais estão se perdendo no éter canismo para tratar um perfil como sen-

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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Essas empresas foram
criadas por pessoas que
não precisaram pensar
muito sobre a confusão
da existência humana

previsões de que, até 2070, o número


de usuários mortos no Facebook ultra-
passará o de usuários vivos…
TK: Existe um valor comercial nos me-
moriais de usuários mortos em um site:
ajuda a fazer com que a família e os ami-
gos voltem. Mas o valor comercial e tal-
vez até sentimental de um cemitério digi-
tal desaparece a certa altura. Manter para
sempre os dados de todos os usuários mor-
tos não é rentável, além de ter um impac-
to ambiental. O armazenamento depende
de centros de dados e servidores que con-
somem muita energia. O custo é parte da
razão pela qual as empresas começaram,
discretamente, a remover contas inativas.
TO: Gerenciar e manter os dados
dos mortos é um ato de amor, mas tam-
bém exige trabalho por parte dos so-
breviventes, não?
TK: No caso de um perfil no Facebook,
do de uma pessoa morta. Outras, como no da ideia de como lidar com a morte o mecanismo integrado de transforma-
o LinkedIn, têm esse mecanismo, mas desde que, após o tiroteio na Universida- ção da página em memorial pode tornar
a maioria das pessoas não o conhece ou de Virginia Tech, em 2007, se tornou um tudo um pouco mais fácil. Mas, se for um
não o utiliza. Além disso, não se sabe por local de luto em massa. E merece algum blog pessoal, muitas vezes o ente queri-
quanto tempo qualquer plataforma so- crédito por isso. Mas, como está tentando do terá de pagar taxas de nome de domí-
breviverá. O fato de a morte não ter si- implementar uma espécie de serviço fúne- nio e hospedagem na web para mantê-lo,
do incorporada às plataformas é sinal de bre em grande escala, é uma solução “ta- e até manter relacionamentos com leito-
um tipo particular de privilégio: essas em- manho único”. Não há lugar para diferen- res. Outro trabalho pode envolver a atua-
presas foram criadas por pessoas que não tes contextos culturais ou individualida- lização de formatos e a movimentação de
precisaram pensar muito sobre a confu- des. Os parentes precisam navegar em um conteúdo de um disco rígido para outro
são da existência humana. mar de burocracia, no qual lutam para que ou entre provedores de nuvem porque
TO: O Facebook, maior site de rede um perfil seja transformado em memorial um deles faliu. Cartas em papel ou foto-
social, possui um modo de memorializa- ou excluído. Um recurso mais recente do grafias físicas também precisam de cui-
ção mais conhecido para perfis, que per- Facebook – nomear um contato para ser dados, mas não no mesmo grau.
mite que a pessoa seja lembrada pelos o guardião do seu perfil – não é popular. TO: Graças à IA generativa, chatbots
enlutados. Isso não resolve o problema? TO: O acúmulo de mortos traz con- e deepfakes estão sendo apresentados
TK: O Facebook trabalhou muito em tor- sequências para as plataformas? Há como passos em direção à imortalida-

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 51

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nas permanecia incompreensível. Tor-


nava-se uma luta por controle.
TO: Startups de planejamento de
propriedade digital prometem organi-
zar os bens online das pessoas e fazer
planos para descarte ou herança quan-
do elas morrerem. Até onde devemos
confiar nelas?
TK: Essas empresas começaram a apa-
recer no fim dos anos 2000, e muitas ti-
nham um viés lúdico. Por exemplo, vo-
cê podia escrever e-mails para serem en-
viados após sua morte, para dar a últi-
ma palavra em uma discussão, ou reve-
lar segredos nunca falados. Mui-
tas das primeiras empresas fe-
charam as portas, embora novas
continuem a substituí-las. Eu
Dispositivo. Em 2007, após o tiroteio na
Universidade Virginia Tech, o Facebook seria cautelosa ao me inscrever
tornou-se um local de luto em massa em qualquer serviço que pro-
e teve de aprender a lidar com a morte meta gerenciar algo no futuro.
TO: Você não pode simples-
mente passar uma conta para
de digital. As empresas prometem trei- um ente querido, deixando sua
nar chatbots antes da nossa morte ou senha?
substituir entes queridos. Existem pla- TK: Legalmente falando, vo-
nos para assistentes digitais que ma- cê não deveria. Uma platafor-
nifestam vozes falsas de parentes fa- ma cria um contrato com uma
lecidos. Poderia esta ser uma maneira pessoa e, quando ela morre, o
barata de todos alcançarmos uma apa- contrato também morre. Além
rência de vida eterna? disso, as senhas não são con-
TK: Diante da enorme quantidade de da- fiáveis – as pessoas as alteram
dos que as pessoas colecionam sobre si, a – e, no caso das finanças, isso
ideia de clone digital parece possível. Mas pode acionar sistemas de detec-
eu não compararia essa forma de preser- ção de fraude que compliquem
vação com a imortalidade. Apenas no nível a vida de um parente ou amigo. ISTOCK PHOTO E SCOT T OLSON /GE T T Y IM AGES/A FP

prático: quem vai manter esses sistemas TO: Como você planeja li-
ao longo do tempo? Há também repercus- cificações e preferências de uma pessoa. dar com seus restos digitais?
sões éticas e emocionais a serem conside- Herdá-los pode, portanto, ser um pouco TK: Ainda não criei um plano imobiliá-
radas. Há um problema de consentimento como se você estivesse sendo assombra- rio digital para mim, mas há um guia
para se criarem versões de IA de pessoas do. Entrevistei pessoas que cuidavam de simples com uma abordagem que apre-
mortas. E legar uma versão chatbot sua po- diferentes tipos de casas inteligentes de cio. Sugere começar escrevendo uma
de dificultar as coisas para um ente que- pessoas que morreram ou se mudaram. E lista de seus pertences digitais e depois
rido que está tentando seguir em frente. o que acontecia, com o tempo, é que os sis- pensar se deseja excluí-los ou preservá-
TO: Você argumenta que objetos in- temas perfeitamente planejados come- -los, tendo em mente o significado para
teligentes podem gerar heranças es- çavam a falhar cada vez mais. Um siste- você e qual poderia ter para as pessoas
tranhas. Como assim? ma de alarme desenvolvia um bug estra- que está deixando para trás. •
TK: Os objetos inteligentes costumam nho, os horários das luzes ficavam desco-
ser programados de acordo com as espe- ordenados e a reprogramação de persia- Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

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Em tom de
apenas a Gal, vivida por Sophie Charlotte,
mas ao grupo de artistas que, nas déca-
das de 1960 e 1970, mudou os parâmetros

homenagem musicais e comportamentais no País.


Giram, em torno da personagem prin-
cipal, Caetano Veloso (Rodrigo Lelis),
CINEMA MEU NOME É GAL REVERENCIA A TURMA DA TROPICÁLIA E Maria Bethânia (Dandara Ferreira), Gil-
RETRATA O AMBIENTE CULTURAL E POLÍTICO DURANTE A DITADURA berto Gil (Dan Ferreira), Dedé Gadelha
POR ANA PAULA SOUSA (Camila Mardila), o empresário Guilher-
me Araújo (Luis Lobianco) e muitos dos
nomes que entrariam para a história do
que passou a ser chamado de MPB.

O
s letreiros finais de Meu Nome É vivendo a sua história”, conta, no mate- Muitas dessas figuras fizeram tam-
Gal, em cartaz desde a quinta- rial de divulgação, Dandara, que dirigi- bém parte da vida da Dandara, nascida
-feira 12, indicam, a um só tem- ra antes a série documental O Nome De- na Bahia, em uma casa frequentada por
po, a força e as fragilidades desse projeto: la É Gal (HBO) – que levou a artista a ma- Gil e Caetano. Ela conta, inclusive, que
trata-se de um filme-homenagem. nifestar o desejo de se ver em um filme. foi Caetano quem a apresentou a Gal. Há,
Dirigido e escrito por Dandara Ferrei- Quando Gal morreu, em novembro não por acaso, certa reverência a trans-
ra e Lô Politi, o longa-metragem nasceu de 2022, as diretoras já tinham um cor- bordar na tela.
de um desejo da própria cantora. “Meu te, mas ela não chegou a vê-lo pronto. Pro-
Nome É Gal foi feito e pensado para ela vavelmente, teria adorado esse retrato A trama se detém sobre um perío-
sentar na sala de cinema e se divertir re- que é quase uma declaração de amor, não do curto, e bem escolhido: vai de 1966 a
1971, momento que marca a saída de Gal
da Bahia e o nascimento de sua persona
artística. Vemos a transformação de Ma-
ria da Graça Costa Penna Burgos, a Gra-
cinha, em Gal Costa.
O roteiro apoia-se, no embate entre a
timidez e o desejo de, simplesmente, can-
tar da protagonista e a ousadia e o ímpeto
de Caetano. A jornada da heroína se com-
pleta quando a Tropicália explode e a di-
tadura endurece. A partir daí, a “borbo-
leta sai do casulo” – para usar uma frase
dita por Guilherme, o personagem.
Essa breve e intensa história é conta-
da com grande energia e com um ótimo
elenco – no qual foram desconsideradas
por completo as semelhanças físicas en-
tre atores e personagens reais.
A trilha, familiar a todos os brasilei-
ros, tem como pontos fortes as próprias
S T E L L A C A R VA L H O

músicas. Mas incomoda, em alguns tre-


chos específicos das canções, um certo
descompasso entre o gestual vocal de
Sophie – encantadora no papel – e a ex-
Os atores Rodrigo Lelis e Sophie Charlotte vivem Caetano e Gal nessa nova cinebiografia tensão da voz de Gal. •

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 53

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Notas tocadas
te e não ouviam música além da recebi-
da todos os dias por meio da tela da te-

com propósito
vê e do rádio”.
Foi assim dado o estalo para que ela se
unisse ao então namorado – hoje marido
– Eduardo Bologna para criar um proje-
INFÂNCIA O Música em Família completa to que compreendesse arte e educação.
Nascia então o Música em Família.
23 anos com pouco alarde e grande Paula é descendente de comerciantes
repercussão no campo educacional da região do Brás, em São Paulo. Portan-
to, não teve muitas dificuldades em “ven-
POR SÉRGIO MARTINS der” seu sonho. “O difícil era pensar no
projeto, compor as canções, conversar
com os educadores, fazer os shows, gra-

C
var as músicas, idealizar o projeto gráfico
erta vez, um crítico de mú- taforma Spotify. “O Música em Família e ainda fazer bolo no fim do dia”, brinca.
sica definiu o pianista Nel- não é uma banda musical, não é um pro- O bom resultado inicial gerou uma co-
son Freire (1944-2021) co- duto do mercado. É um conceito”, resu- brança por um material autoral e temá-
mo “o grande segredo da me Paula, em entrevista a CartaCapital, tico, que produziu os discos Som da Vida
música erudita”. Ele refe- às vésperas do Dia das Crianças. e Somos Todos Iguais, ambos de 2007. Na
ria-se ao fato de, mesmo sendo um dos A gênese do projeto, quem diria, remon- década seguinte, eles firmaram uma par-
maiores nomes do piano, Freire ter op- ta à participação de Paula Santisteban ceria com o Instituto Alana, uma organi-
tado por uma carreira sem badalações. num concurso do Domingão do Faustão zação educacional que defende os direi-
Pois o projeto Música em Família, guar- para revelar novos talentos. Ela tornou- tos das crianças.
dadas as devidas proporções, é o segre- -se uma das finalistas em meio a 30 mil
do da arte como ferramenta pedagógica. candidatos. Mas a projeção nacional ge- O encontro com Ana Lucia Villela, pre-
Paula Santisteban e Eduardo Bologna rou nela uma crise. “Repensei muito co- sidente do Alana, mostrou-se particular-
criaram o programa em 2003 e, a despei- mo a música estava inserida em um mer- mente inspirador. Não Custa Nada, que
to do sucesso da empreitada, pouco apare- cado que acompanhava o sistema de con- fala de desapego material, nasceu a par-
cem na mídia e são também parcimonio- sumo em que vivemos, e no quanto isso tir de uma das reuniões com o instituto e
sos na divulgação dos shows que fazem – estava afastando as pessoas da música em da exibição do documentário Criança, a
o próximo está marcado para o dia 11 de sua essência”, diz. Alma do Negócio (2011), de Estela Renner
novembro, no Teatro B32, em São Paulo. Essa percepção se juntava a outra, que e Marcos Nisti, sobre consumo infantil.
Eles atendem, no entanto, 500 escolas Paula tinha em seu trabalho como pro- “O mais engraçado é que, um dia, toca
no Brasil e em Portugal, nas quais distri- fessora de música: “As crianças e suas o telefone e era uma multinacional, dona
buíram, ao longo da trajetória, cerca de famílias não tinham hábitos culturais, de uma marca de refrigerantes, querendo
300 mil álbuns/livros e somam a marca quase não frequentavam espaços de ar- comprar a música para uma propagan-
de mil shows que, ao todo, reuniram 500 da. Nunca aceitamos ligar nossa arte com
mil pessoas. E, ora vejam só, tocaram até nada prejudicial à infância”, diz Paula.
no Big Brother Brasil. As pautas que regem o Música em Fa-
Em 2018, as músicas Não Custa Nada mília nunca são aleatórias. Elas nascem
e Sem Perceber tornaram-se tema do re- “Pensamos em da observação de Paula e Eduardo sobre
fugiado sírio Kaysar Dadour e levou a du- a filha, Estela, e da experiência de serem
pla para além dos muros da escola. Hoje,
temas importantes pais e verem outros pais em ação. São te-
somam 4,5 milhões de visualizações no a serem conversados mas como consumo, diversidade e ami-
YouTube – sem contar os vídeos postados na sala de casa”, diz zade, entre outros, que vão sendo apri-
por terceiros – e 600 mil streams na pla- a criadora do projeto morados em conversas com educadores.

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
“A partir do momento que eles pas- nário, projeções e balés. Os gêneros to- Encontro de adultos e crianças.
sam para nós a ideia de cada projeto, cados vão de jazz a bossa nova, do rock Eduardo Bologna e Paula Santisteban
já distribuíram cerca de 300 mil álbuns
percorremos juntos nossas vivências e MPB tropicalistas a folk e world music.
de música pelas escolas desde 2003
relacionadas aos temas, compartilha- O show de novembro, por exemplo,
mos saberes e fazemos projeções de co- será baseado nos escritos do composi-
mo as crianças, as famílias e os educado- tor erudito Edmundo Villani-Côrtes.
res podem viver experiências significa- Em boa parte das composições existe a bora semelhantes na essência, eles pos-
tivas”, diz a educadora Andrea Chehade, preocupação com o dia a dia da criança. suem objetivos diferentes.
que integra a parte pedagógica do pro- Em 2021, auge da pandemia, eles lança- “São artistas que fazem incrivelmente
jeto. “Compartilhamos tudo: canções, ram o projeto bilíngue O Que Nós Somos bem música com foco nas crianças, den-
poemas, inspirações.” Juntos. Uma das canções, Eu Preciso Vol- tro do universo delas”, diz. “A gente não
tar a Te Ver, trata do isolamento social. faz música com foco único na criança, e
A parte musical é igualmente diver- A receita de canções para crianças sim num lugar onde adultos e crianças se
sificada. Do esquema voz e violão dos com conteúdo pedagógico pode reme- encontram, pensando na família, com fo-
DA NI PACCE

primeiros anos, Paula e Edu chegaram ter a outras experiências do gênero, co- co na conexão dessas duas pontas. Pensa-
a gravar ao lado de uma orquestra de 50 mo o Palavra Cantada e o Adriana Par- mos em temas importantes a serem con-
músicos e fazer apresentações com ce- timpim, de Adriana Calcanhotto. Em- versados na sala de casa.” •

C A R TAC A P I TA L — 1 8 D E O U T U B R O D E 2 0 2 3 55

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AFONSINHO
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

Subidas e descidas

po: Bahia 6 x 4 Goiás, no sábado 7, no Es- Lage – um dia após o empate com o Goiás,
► Vem de Fernando tádio da Serrinha, em Goiânia. no Nilton Santos –, o time virou do aves-
Diniz, à frente do Foi uma partida surpreendente, que so, como se, feito num conto de fadas, ti-
se tornou um dos cinco jogos com mais vesse sido transformado por uma “vari-
Fluminense e da Seleção gols na história dos pontos corridos do nha de condão”. No domingo 8, venceu
Brasileira, a percepção campeonato, desde 2003. o Fluminense por 2 a 0 pelo Brasileirão.
de que o Brasil “perde Aproximam-se também as finalíssi- Os técnicos dos times brasileiros têm
mas na Sul-Americana, com o Fortale- posição impossível de ser suportada por
talentos a rodo” za colocando o Nordeste brasileiro pela qualquer um – a não ser os “malandros
primeira vez nessa posição. velhos” e os ditos “cascudos”.
O time chega à final após ter vencido Ao chegarem aos times, eles têm car-

Q
uando nos sentimos exultan- o Corinthians por 2 a 0, na Arena Caste- ta branca e passam a mandar em tudo.
tes com as vitórias do esporte lão, na segunda semifinal, e enfrentará o Quase todos começam acreditando que
brasileiro, como aquelas obti- LDU – que eliminou o argentino Defensa vão conseguir resolver problemas quase
das no Campeonato Mundial de Ginás- y Justicia. O Fortaleza, como se costuma sempre atribuídos aos dirigentes.
tica Artística e no vôlei, classificado dizer, já está no lucro. Passados os primeiros jogos, no entan-
para a Olimpíada de Paris 2024, desa- Na Libertadores da América, passa- to, a depender do andar da carruagem, fi-
bam sobre nós as notícias sobre a nova das as fortes emoções das disputas en- cam arrancando os cabelos, exasperados
crise de violência no Oriente Médio. tre Palmeiras vs. Boca Juniors e Flumi- à beira do gramado. É o que temos vis-
No futebol, com a aproximação do nense vs. Internacional, chega-se à de- to acontecer com o também português
fim do ano-calendário, acumulam-se cisão final entre o Fluminense e o “co- Abel Ferreira e com o argentino Jorge
os jogos que se mostram decisivos em peiro” Boca Juniors. Sampaoli, recém-saído do Flamengo.
todos os sentidos: tanto para o sucesso Não à toa, a negociação do agora con-
dos campeões e dos que sobem de di- E, não sei não, mas o aguerrido time ar- firmado novo treinador do Flamengo,
visão quanto para o desalento daque- gentino arrisca-se a sofrer uma goleada. O Tite, foi mais intrincada que as neces-
les que se veem rebaixados, certamen- “Boca”, não devemos nos esquecer, chegou sárias para pôr fim às guerras insanas.
te com problemas acumulados. à decisão aos trancos e barrancos, de em- Que se cuide o Fernando Diniz, à frente
Nesse sentido, o que mais chama mi- pate em empate, e decisões por pênaltis. do Fluminense e da Seleção Brasileira ao
nha atenção é a situação dos que caem Mas, obviamente, pode até se sagrar mesmo tempo. Não são poucos os técni-
na Série B, cada vez mais intrincada campeão mais uma vez, afinal de con- cos obrigados a se afastar da função por
com o descenso de grandes clubes – tas, somos partidários da sabedoria po- problemas de saúde, quase sempre rela-
muitos deles tradicionais e com torci- pular: “Futebol não tem lógica” e “clás- cionados ao estresse a que são submetidos.
das numerosas e aguerridas. sico é clássico”. Vem, inclusive, do próprio Diniz, a de-
Desta vez, para subir estão na cabe- O time é o maior finalista da história claração importante a propósito da atua-
ça o Vitória da Bahia, o gaúcho Juven- da Conmebol Libertadores e levantou a ção da jovem promessa John Kennedy,
tude, o Sport de Recife (PE) e o Guara- taça seis vezes, ficando atrás apenas do atacante de 21 anos do Fluminense: “O
ni de Campinas (SP). Independiente, também da Argentina, Brasil perde talentos a rodo”.
Na Série B vão na ponta o Paissandu de dono de sete títulos. Os técnicos estrangeiros, quando
Belém (PA) e o Amazonas, do Norte do País, No Brasileirão, o Botafogo, apesar de saem, dizem que os torcedores são lou-
e o Brusque (SC) e Operário (PR), do Sul. quase ter matado seus torcedores do co- cos. E são mesmo. Mas a culpa é de quem
B A P T I S TÃ O

Outra novidade na última rodada do ração – eu incluído –, voltou aos trilhos os contrata sem garantir um mínimo de
Campeonato Brasileiro foi o resultado depois de tropeçar nas próprias pernas. estabilidade. •
elástico, como não se via há muito tem- Demitido o técnico português Bruno redacao@cartacapital.com.br

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R

CLUBE DE REVISTAS
ARTHUR CHIORO
Médico sanitarista e professor da Escola Paulista de
Medicina (Unifesp). Foi ministro da Saúde. É presidente
da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (MEC)

Em busca de mais médicos

creveram e, atualmente, 18,5 mil estão dirigidas para onde pretendem as mante-
► Deve-se exigir qualidade atuando em mais de 4 mil municípios, be- nedores, as propostas deverão ser efetua-
na formação, mas as neficiando mais de 64 milhões de brasi- das para regiões que realmente precisam.
leiros. No total, serão 28 mil profissionais O Mais Médicos, desde a sua criação,
necessidades de saúde atuando pelo Mais Médicos em 2023, com em 2013, produziu a expansão de 7.304
da população precisam vagas também para a região da Amazô- vagas em regiões de vazios de formação,
orientar o debate sobre nia Legal, equipes de Consultório na Rua interiorizando os cursos de Medicina.
e atendimento da população prisional. Mas foi descontinuado por uma “mora-
a expansão de vagas O terceiro eixo, o da formação, segue tória” de cinco anos, iniciada no gover-
nos cursos do País sendo um enorme desafio. Em 2012, a no Temer e que seguiu com Bolsonaro.
razão de médicos por mil habitantes Em vez do prometido, resultou na aber-
no Brasil era de 1,8. Em 2022, graças ao tura desordenada de mais 13.082 vagas sub

O
governo federal retomou o Mais Mais Médicos, atingiu 2,54 médicos por judice em regiões sem qualquer necessida-
Médicos para garantir o aces- mil habitantes. Agora, o governo fede- de social, inclusive onde já tínhamos nú-
so à saúde para mais de 96 mi- ral pretende elevar essa razão para 3,3 mero suficiente de faculdades e médicos.
lhões de brasileiros e diminuir vazios nos próximos dez anos, atingindo a mé- A expansão de vagas de medicina se-
assistenciais. O desafio é fixar profissio- dia da OCDE. gue sendo um dos pontos de maior ten-
nais em áreas de maior vulnerabilidade. Para tanto, é preciso ampliar cerca de sionamento entre o governo federal e en-
Instituído por lei em 2013 e retomado 10 mil novas vagas em cursos de medici- tidades médicas. Bastou o lançamento do
este ano, o Programa prevê diminuir a na. Perto de 2,2 mil vagas serão providas novo edital para regulamentar a aber-
carência de profissionais na Atenção Bá- por iniciativas de expansão das univer- tura de novas faculdades – há pedidos
sica nas regiões prioritárias, aperfeiçoar sidades federais. Outras 2,1 mil por meio para a abertura de mais de 50 mil vagas
a formação médica, a organização e fun- da expansão dos cursos de Medicina pri- no MEC, com risco de serem aceitos por
cionamento do SUS, e ampliar a oferta vados existentes. demanda judicial – e, rapidamente, ma-
de especialização em áreas estratégicas. nifestações contundentes foram emiti-
O Mais Médicos foi concebido em três As 5,7 mil vagas restantes serão ofer- das pelo Conselho Federal de Medicina e
eixos: estrutura, provimento e forma- tadas por meio de um edital público volta- pela Associação Médica Brasileira.
ção. O primeiro, nesta nova etapa, des- do às instituições privadas, a partir de cri- Todos devemos exigir qualidade na
tinará 7 bilhões de reais para reforma e térios objetivos anunciados pelos minis- formação médica, o que deve valer, des-
construção de Unidades Básicas de Saú- tros da Saúde e da Educação esta semana. taque-se, para toda e qualquer profissão.
de (UBS), recursos oriundos do PAC-3. O edital prevê a abertura de faculda- Isso é um imperativo ético e político.
Inicialmente, 1,8 mil UBS serão selecio- des em regiões de saúde que apresentam Mas as necessidades de saúde da po-
nadas, com edital já disponível para os média inferior a 2,5 médicos/mil habi- pulação precisam orientar esse debate,
gestores, priorizando regiões de vazios tantes e que demonstram capacidade pa- que deve ser travado de forma respeitosa
assistenciais e municípios com maior ín- ra abrigar cursos de Medicina, contando e democrática. Ainda mais depois de es-
dice de vulnerabilidade. com rede de serviços de atenção básica, tudos indicarem que os médicos especia-
O segundo, de provimento, prevê a urgência, saúde mental e com um hospi- listas são os profissionais mais bem re-
chamada de médicos para atuar na aten- tal com pelo menos 80 leitos, e o compro- munerados do País. E que os médicos ge-
ção básica com enfoque também para re- misso de abrir residência médica. neralistas estão em quarto lugar.
giões de alta e muito alta vulnerabilida- Foram excluídas as regiões de saú- Sou médico e professor de Medicina,
de. Em 2023, registramos o maior nú- de impactadas pela expansão planejada mas entendo que interesses corporativos
B A P T I S TÃ O

mero de profissionais em atuação desde pelas universidades federais. Assim, das não podem definir se os brasileiros terão
a criação do programa. 450 regiões de saúde, somente 116 pode- ou não o direito à saúde. •
Em torno de 34 mil médicos se ins- rão receber propostas. Em vez de serem redacao@cartacapital.com.br

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