o AUTOR CONHECEU BEM CEDO A W.E.B.

Ou BOIS NASCEU EM UMA

AlIDADE DA DISCRIMINAÇÃO, A QUAL COMUNIDADE RURAL EM GREAT
O CHAMOU DE "SOMBRA DO V~U", BARRINGTON, MASSACHUSSETTS,
LADO SOMBRIO DA SOCIEDADE QUE EM 1868, TR~S ANOS APÓS O
RGUERA MUROS ENTRE AS GENTES. FIM DA GUERRA CIVIL, E MORREU
A ESSA METÁFORA CONDUTORA DE EM GANA, QUASE UM S~CULO DEPOIS,
ALMAS DA GENTE NEGRA, EXATAMENTE NA V~SPERA DO ATO PELO
lE RETORNA VÁRIAS VEZES, QUAL FOI DIRETAMENTE RESPONSÁVEL,
A TRANSFORMA EM PALAVRAS A GRANDE MARCHA PELOS DIREITOS
DIGNIDADE PARA O POVO NEGRO: CIVIS LIDERADA POR MARTIN lUTHER
I AM THE SMOKE KING 11 AM BLACK. " KING JR., EM WASHINGTON.
As ALMAS DA GENTE NEGRA ~ UM O MOVIMENTO CONDUZIDO PELO
NSAIO LITERÁRIO DATADO DA JOVEM lUTHER KING, EM 1963,
JUVENTUDE DO LlDER NEGRO EM QUE FOI O ANÚNCIO DE NOVOS TEMPOS
COMENTADOS OS LONGOS E HOSTIS PARA O POVO NEGRO E RESULTADO
ANOS DA RECONSTRUÇÃO DO SUL. DIRETO DA LUTA DE OU BOIs.
MOMENTO EM QUE OS NEGROS Ou BOIS, O MAIS INFLUENTE
VIRAM-SE LIVRES, MAS INTEIRAMENTE LIDE R POLlTICO DAS PRIMEIRAS D~CADAS
unoos DA SOCIEDADE QUE, DO S~CULO XX, FORMOU, JUNTAMENTE
RIMEIRA VISTA, PARECIA TER COM FREDERICK DOUGLASS E BOOKER
NTRADO EM NOVOS TEMPOS. T. WASHINGTON, O TRIO EMBLEMÁTICO
A OBRA ESTÁ DIVIDIDA EM QUE LIDEROU OS NEGROS AMERICANOS
14 CAPfTULOS: 13 ENSAIOS E NA PASSAGEM DA ESCRAVIDÃO PARA
M CONTO. Ao LONGO DOS ENSAIOS, UMA FRÁGIL CIDADANIA, QUE
U BOIS DISCUTE E SOBRETUDO PARA Ou BOIS ERA APENAS UMA
RESENTA DIVERSAS QUESTÕES E SEMILlBERDADE. OS ANOS POSTERIORES
lE MAS FUNDAMENTAIS PARA O À GUERRA E À EMANCIPAÇÃO
VO NEGRO; ENTRE ELES, A FUNÇÃO ASSISTIRAM AO SURGIMENTO
UE 'fERIA UMA UNIVERSIDADE NEGRA DE MOVIMENTOS DE PURO
PAPEL FEMININO NA SOCIEDADE, TERRORISMO SOCIAL. ORGANIZAÇÕES
NTECIPANDO UMA DAS DISCUSSÕES COMO A Ku KLUX KLAN E
JCIAIS DAS D~CADAS POSTERIORES. OS CAVALEIROS DA CAM~LlA BRANCA,
M PROFUNDO CONHECIMENTO DE A SERViÇO DA "PUREZA DO SANGUE
111 FMPO, Ou BOIS SENTENCIA: E DOS VELHOS IDEAIS SULISTAS",
PROBLEMA DO S~CULO XX FRAGILlZARAM AINDA MAIS A INSERÇÃO
ROBLEMA RACIAL." DA POPULAÇÃO NEGRA NO TECIDO
SOCIAL NORT~-AMERICANO,
JÁ BASTANTE DESFIBRADO PELO LONGO
CONFLITO ENTRE O NORTE E O SUL.
 David G. Ou Bois, 1999
Sumário
Direitos desta edição adquiridos pela
Editora Nova Aguilar S.A.
Rua Dona Mariana, 105 - casa I
Botafogo - 22280-020 - Rio de Janeiro
Tel/Fax: (21) 537.7189 - 537.8275
E-mail: novaguilar@netfly.com.br

Revisão tipográfica: Introdução (Heloísa Tolier Gomes) 7

Helena Mollo
Cronologia 25

Capa:
Reflexão prévia 49
MIL

Sobre as nossas lutas espirituais 5I

Fotografia da capa:

Special Collections and Archives, WE.B. Ou Bois Library,

II Sobre a aurora da liberdade 63
University of Massachusetts Arnherst.

ITI Sobre o Sr. Booker T Washington e outros 93

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LNROS, RJ.
IV Sobre o significado do progresso I 17

D866Aa
Ou Bois, W.E.B. (WiUiam Edward Burghardt), 1868-1963 V Sobre as asas de Atalanta 13 I
As almas da gente negra / W.E.B. Ou Bois ; tradução, introdução e
notas, Heloísa ToUer Gomes. - Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999
VI Sobre a instrução dos Negros 143
Tradução de: The Souls of Black Folk
Conteúdo parcial: Washington & Ou Bois: duas opções de liberdade /
por David G. Ou Bois VII Sobre o cinturão Negro 163
ISBN 85-7384-051-X

r. Afro-americanos. 1.Título.
VIII "obre a busca do Velocino de Ouro 189
99-1624 CDD 973.0496073
CDU 973(73=96)
~\lIH(' os IIlhos do senhor c do escravo 215
x Sobre a fé dos nossos pais 239 JntrodUfão
XI Sobre o falecimento do primogênito 257

X II Sobre Alexander Crummell 265

XIlT Sobre a vinda de John 277

XVI As Sorrow Songs 297

A América seria a América sem o seu povo negro?
Reflexão F inal 3I3 Ou BOIS

Posfácio (Oavid G. Ou Bois) 3I5

\ Â 1E.B. Du Bois foi O mais influente líder político negro dos

Y Y. Estados Unidos na primeira metade deste século. Mais jo-
vem do que Frederick Douglass e Booker T. Washington, ele veio
completar, no seio da comunidade afro-americana, o grande trio
de liderança histórica na passagem da escravidão a uma frágil
e instável cidadania. Os três, apesar das diferenças de geração,
temperamentos e ideologias, perseguiram um mesmo objetivo bá-
sico: a integração da população negra na sociedade norte-ameri-
cana. Nesse trio, Douglass foi o brilhante orador abolicionista,
Washington o empresário pragmático afinado aos novos tempos,
Du Bois o intelectual requintado, estudioso da sociedade de seu
país a partir do interesse apaixonado pelo destino do povo negro.
I )os três líderes, foi ele quem revelou mais explicitamente, em sua
IIhról escrita, o impacto da opressão racial e seus efeitos devastado-
II:.~ 11,\ nascente comunidade dos libertos da escravidão.'

\II}:II'I Mcyer desenvolve esses aspectos em seu Negro Thought in America /880 -

1'11 \ Ihe University of Michigan Press, 1987.

ft 7·
 I k índole combativa e espírito polêmico, por vezes paradoxal, silo As almas da gente negra é o texto privilegiado em que Du Bois
1)\1 I\OIS S('l11rOUadmirações fervorosas e granjeou também ferre- combina o ardor do militante político, a bagagem cultural do cien-
nh,h uumizndcs, inclusive dentro da segregada comunidade negra tista social, a sensibilidade do poeta. Lê-lo não basta para conhecer
dI' S('\I \('l11po. I-loje, passadas as contendas imediatas daqueles dias, bem seu autor, mas pode ser um excelente começo para se entender
,I relevância da vasta obra que deixou e o impulso que deu à luta o homem Du Bois, sua luta, frustrações e realizações; e para se
p('los direitos civis dos afro-americanos e dos povos oprimidos do compreender melhor a dramática trajetória do negro nos Estados
inundo asseguram-lhe o reconhecimento da posteridade. Esse re- Unidos, da escravidão ao início do nosso século.
conhecimento foi muito além das fronteiras dos Estados Unidos, Nascido na comunidade rural de Great Barrington, Massa-
,lIlllgindo outras nações e continentes (seus livros e textos jornalís- chusetts, em 1868, Du Bois faleceu em Gana, a 27 de agosto de
\ iros têm sido traduzidos em diversos idiomas, do tcheco e do 1963 - precisamente na véspera da grande Marcha pelos Direitos
espanhol ao chinês, do francês e alemão ao japonês, russo, rumeno Civis em Washington, presidida por Martin Luther King Jr. Nada
( corcano, entre outros). mais expressivo do que essa simbólica sucessão de lideranças: o
Por vocação historiador e, sobretudo, sociólogo, havia também jovem militante negro anunciando seu sonho às multidões, a retira-
(111Du Bois as nuances do psicólogo e o rigor intelectual do filóso- da de cena do ancião que tanto lutara pelo mesmo sonho e que, do
111 prováveis marcas de seu aprendizado, em Harvard, com alto de seus noventa e cinco anos e de longe, no continente dos
( ;\'Ol'g(' Santayanna e com o mestre e amigo William James. A ver- ancestrais, acompanhara o despontar de uma nova era de cidadania
'"lI ti Id,lde marca a sua escrita, tanto na prernência do jornalismo para o povo negro nos Estados Unidos.
11111111Cllllenteengajado quanto na reflexão erudita do ensaísmo. Quando Du Bois nasceu, apenas três anos haviam se passado
\ 1',11'de ampla perspectiva histórica, Du Bois igualmente expressa desde o final da guerra civil que selara, no país, o destino do escra-
11111,1
VIS,lOhurnanista que o aproxima da melhor tradição cultural vismo. Tempos terríveis então se anunciavam, muito particularmen-
1111111'
.uncricana do oitocentismo. Em seu ideal de auto confiança, te para os libertos e seus descendentes. O choque e as conseqüências
11.1\,"I1II/;1Ç<10dos dons e talentos inatos em prol de um aprimora- do assassinato, em 1865, de Abraham Lincoln, cujo talento de esta-
uu irvidual
1111'111\1 que se abre para o social e para o cósmico, res- dista tamanha falta faria naquela época de corrupção política, tur-
un 1I1l1.1~do sentido de harmonia emersoniano e da indepen- bulência social e instabilidade econômica; a desastrosa administra-
III.TII'Xi'llllI 1,11buscada porThoreau. ~,1O presidencial de Andrew Johnson, que abriu caminho para a
I !('IIIIT ,I~:'II,I~realizações no campo do ensaísmo literário, des- I',mial retomada do poder pela derrotada oligarquia sulista; os doze
I, il/,ililr '/11 ,~",,'r /I/:~ra, livro de mocidade que lhe conferiu ,111md,l Reconstrução do Sul, com seus relativos êxitos e tremendos
11111,11'1(111,"1
1IIII'I'Il,ICional. Quando de sua publicação, im- r I,li ,"sos - aliás, magistralmente comentados por Du Bois neste
11],11111,
I."" 1',\/.llIl'ln, William James, Henry James e Max 11'\'1<.1
I, depois, principal objeto de análise em seu Black Reconstruction

,1 inrcrmcdiar
lilp!llldD~~1' 1:,,11111111110 a sua tradução para I ()~\S); ,I perplexidade da "gente negra", saindo da escravidão para
1(1Clol le"I!,'1/ '11111\S,I jóia da literatura norte-americana Illgll"S,1I ('111uma precária liberdade e debatendo-se entre o racismo
i! 1','lhliul 10-111/1
.11 1IIIgll" portugucsa e chegasse ao Bra- Iholll/ .111~1I1(' ,I dubiedade não menos racista do Norte.

9
 i\pó~ ,I Guerra Civil (conhecida entre nós como Guerra da Se- primeiros anos de vida a pobreza, porém não a miséria. Ainda na
re~~,lo), o~ antigos proprietários de terras e de escravos, apegados infância, segundo conta no pungente capítulo inicial de As almas da
,1m lkspojos de um passado tornado mito, adaptaram-se, por bem gente negra, a "sombra do véu" do preconceito racial e da discrimina-
ou 1'01' mnl. <10 modelo capitalista imposto pelo Norte, então já em ção abateu-se sobre ele. E a revelação de que ele e os seus habitavam
Vl'I'II~IIIOSOprocesso de industrialização. A população branca do o lado sombrio desse véu, circunscrito por "altas paredes", sendo
Sul, ressentida e empobrecida, tendeu a atribuir as agruras do pre- portanto impedidos de usufruir os benefícios da sociedade e da
sente ,1 população negra cuja recente liberdade política temia e que civilização, marcou toda a sua vida. A metáfora do véu a separar os
combateu com variadas armas, dentre as quais a do terrorismo ra- dois mundos, o branco e o negro, e a toldar a luz do sol para a
cial. Foi naquela segunda metade do século XIX que surgiram a Ku população dos descendentes dos escravos africanos é um dos moti-
Klux Klan, os Cavaleiros da Camélia Branca e outras organizações vos condutores em As almas da gente negra. Também a sombra, a noite
expliciramente racistas, a serviço da pureza do sangue e dos "ve- e a fumaça, associadas à própria cor escura, são recorrentes em sua
lhos ideais sulistas". Em outras palavras, o Sul sabia-se derrotado poesia - forte, embora ocasional: "I am the smoke king,/ I am
porém afirmava-se vivo, cultivando "suas melhores tradições" - black", escreveu, com característico senso de dignidade, em poema
norudarnente, as noções arraigadas de hierarquia racial e a inflexível da juventude.ê
l rcnça na inferioridade dos não-brancos. De temperamento reservado e pouco afeito a expansões emocio-
O exacerbado ressentimento do Sul tornou-se cada vez mais nais, foi contudo com paixão e entrega absoluta de si mesmo que
.ivassalador e paralisante para os libertos à medida que os estados Du Bois dedicou a vida ao grande objetivo que a norte ou: entender
sulistas, amparados pelo princípio constitucional de autonomia e desvendar a experiência dos negros em seu país e no mundo; dis-
est adual, em poucos anos gradualmente neutralizaram, em seus secar e expor a dramática inserção dos africanos e seus descendentes
u-rritórios, os direitos de cidadania da população negra, em teoria no traçado histórico dos Estados Unidos, desde o momento em
~,II,lI1tidos pelas Emendas à Constituição 14 e 15. Surgiram, assim, <'lueo primeiro navio negreiro aportou às costas da Virgínia até os
I10S estados da antiga confederação separatista, as leis de segrega- tempos modernos; apreender e relatar o peculiar destino de negros
"Hllól(inl popularmente conhecidas como "Jim Crow", que vigora- c brancos norte-americanos, indissoluvelmente ligados pela Histó-
1,1111
uuocadas, em sua grande maioria, até a década de 1960. lia porém dramaticamente distanciados em suas. vidas cotidianas e,
I:oi nesse ambiente nacional conturbado - porém em Massa- dessa forma, impedidos de construir um futuro melhor para todos.
\'! lIlSel1s, longe do Sul- que nasceu e criou-se o menino William Nesse sentido, não se cansava de afirmar que os interesses das duas
I~dwóllll. descendente de africanos e de franceses huguenotes. Pelos "1.I\ólS" eram essencialmente os mesmos. Ele tendeu, portanto, a
fil,is l.ulos, provinha ele de famílias de negros e mestiços livres. Seu IIJIII ,11os ideais separatistas e de "volta à África" que agitaram par-
I1i~,lvtl111.IIl'rno,Tom Burghardt, nascido nas Antilhas e seqüestra- I, c/,I i omunidade afro-americana na primeira metade do século
ík, ILI illf.illll,1 por mercadores de escravos holandeses, lutara como
./.1.11111
11,1glllll,1 dn independência dos Estados Unidos e com li" ".HI~Ilr lhe Smoke", Black fóius: An Anthology oj Ajro-American Literature.
I~~I\ 1'011111,11,1
lu I," r um certo prestígio. Du Boi~ conheceu nos til" '".1.: Ncw Arncrican Library. 1968.

li
(como os do bombástico Marcus Garvey, de tanto impacto ate me- sabilidades que uma história de injustiças escamoteara no passado
ados da década de 1920) embora às vezes, especialmente rrn mo e cujo patente continuísmo bloqueava o presente, ameaçando o
mentes de amargura e pessimismo, tenha-se deixado atrair por eles. futuro. Denunciava ele, portanto, a dívida postergada da América
Durante a maior parte da vida, Ou Bois advogou a coopcraçao branca para com seus filhos negros, conduzidos da escravidão à
intcr- racial no país que era, desde muitas gerações, a pátria comum semiliberdade de cidadãos de segunda classe.
de negros e brancos. Paradoxalmente ele viria a escolher a Áli'ica Seu rigor ético e intelectual não se dirigia apenas à sociedade
como último lar e abrigo para seu derradeiro projeto intelectual: abrangente, contudo. Reclamava ele também da população negra o
retomar a direção da Enciclopédia cifricana -lamentavelmente, com a engajamento na educação e no trabalho, balizado pela solidarieda-
sua morte, deixada inacabada mais uma vez. Seu exílio voluntário de e pelo orgulho racial, assim como pela conscientização histórica
dos Estados Unidos foi visto por muitos como uma manifestação do papel do negro na sociedade. Reconhecendo que as lamentáveis
de protesto pelas perseguições pessoais que sofreu, ainda na idade condições de vida da comunidade negra incitavam o sempre laten-
avançada, e como uma atitude tardia de desafio diante da persistên- te preconceito racial da sociedade dominante, insistia em que o
cia da discriminação racial no país. Ele, porém, justificou o radica- negro lutasse incessantemente por seus direitos e assumisse igual-
lismo do gesto com razões de ordem histórica e existencial, ao ex- mente seus deveres, visando à ascensão social da coletividade.
pressar ao presidente Kwame Nkrumah seu contentamento por Implementava ele sua própria visão de um nacionalismo negro, in-
ser-lhe conferida a cidadania de Gana: "Meu bisavô, atado a cor- centivando a criação de organizações e a elaboração de métodos de
rentes, foi arrancado do Golfo da Guiné. Eu voltei, para que o meu ação social próprios, a partir da consciência de uma experiência
pó se misture ao pó dos meus ancestrais'l.' única - a da escravidão - e de uma herança específica - a afri-
Percebe-se, ainda, nesse retorno fecundo de Ou Bois às origens cana - sempre do lado obscuro do "Véu". Foi, assim, o principal
- pois que realizando um trabalho e completando a curva de mais idealizador e um dos fundadores do histórico Niagara Movement
um elo, na cadeia do tempo - a noção de ter levado a termo sua (1905- I 909), movimento negro dedicado à luta pelos direitos
missão no país natal e a aceitação do fato de que a liderança afro- políticos e econômicos da população afrodescendente. Ou Bois
americana passava agora, e por direito, às novas gerações: "aquilo não se negava, porém, a participar de iniciativas multiraciais com
(lue eu fiz mal, ou que não pude terminar, passa agora a outras objetivos afins: caso de sua atuação na NAACP (National Association
mãos para ser completado pelo tempo afora", escreveu, em mensa- ]or the Advancement <1 Colored People), associação ainda hoje em ativida-
gem de despedida endereçada aos pósteros." de e da qual ele foi um dos íundadores, em 19 IO.
Du Bois afirmava que os Estados Unidos só realizariam seu Na defesa dos interesses da comunidade negra, propôs Ou Bois
destino histórico e os ideais democráticos afirmados pelos funda- um de seus conceitos mais conhecidos, o da "décima parte
dores da nação quando, e se, seus cidadãos assumissem as respon- talentos a" [talented tenthJ: a afirmação da existência, na população

SllIdl'y Graham Ou Bois. A Piaoria! Biography, Chicago: Johnson Publishing

negra, de uma elite intelectual que fazia jus, desde a juventude, a
('''Il1I'.lIly. 1978. p. 155. uma formação educacional condizente com seus dotes e capacida-
1.1.1".1" lúú de de liderança, de forma a assumir posteriormente a responsabili-

13
dadr maior pelo destino social de toda a comunidade. Mas não era Tanto pela voz do abolicionista brasileiro, vindo das camadas

s6 IWI.I valorização (sem dúvida elitisra) de uma minoria inrclcc- privilegiadas da sociedade oitocentista, quanto por parte do pensa-

uml qUl' Du Bois sublinhava a densidade da contribuição cultural dor afro-americano que se definia como "sangue do sangue e carne
da carne daqueles que vivem dentro do Véu", ressoa o testemunho
lH'gl'a :10 país. Os negros, afirmava, haviam construido, ao longo da
do papel fundamental, basilar, do negro na formação histórica e na
l'xperiência histórica afro-americana, uma cultura riquissima, e a
ícrcciam ao pais que, obtusa e cruelmente, insistia em rejeitar sua identidade nacional de seus respectivos países. Mas nesse cruzar de

doação. Ao final de As almas da gente negra, isto se expressa em angus- pensamentos que transcende gerações e nacionalidades, cumpre
assinalar uma importante distinção: em seu reconhecimento da
tiadas perguntas:
contribuição do negro brasileiro, Nabuco, como a ampla maioria
Nossa canção, nosso trabalho, nossa disposição e advertência dos intelectuais da época, passa ao largo da questão cultural. A
têm sido dados a esta nação em irmandade de sangue. Tais contribuição negra ao Brasil, segundo ele, é populacional ("a raça
dádivas não serão dignas de oferecer? Nem nosso trabalho e negra nos deu um povo") e viabilizou a marcha civilizatória do país
empenho? A América seria a América sem o seu povo negro?5 através de um árduo trabalho cujos desdobramentos assinala na
passagem citada.
Na leitura de algumas páginas de As almas da gente negra, parecem Du Bois, por outro lado, faz questão de articular as realizações
ecoar, para o leitor brasileiro, belas passagens de O Abolicionismo em materiais e intelectuais da gente negra: "nossa canção, nosso traba-
lllr<' Joaquim Nabuco, num Brasil ainda imerso na escravidão, tam- lho, nossa disposição e advertência". Valoriza ele assim, incansavel-
hérn se referia eloqüentemente ao que chamava de doação da raça mente, a cultura africana e afrodescendente. É sintomático, portan-
nl'gra: to, que o fecho de As almas da gente negra seja uma emocionada
homenagem à música dos negros norte-americanos e que esta se
... a raça negra nos deu um povo. [...] Tudo o que significa luta
destaque nas epígrafes duplas diante de cada capítulo do livro, ilu-
do homem com a natureza, conquista do solo para a habita-
minando citações de escritores americanos ou europeus. A simbo-
ção e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa
logia dessa construção epigráfica sublinha, inusitadamente para a
do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas
época, a potencialidade da cooperação inter-racial despida de hie-
c correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospi-
rarquias que Du Bois propunha e concretizava. I

t.iis, tudo, absolutamente tudo, que existe no país, como resul-

Em seu fértil aprendizado ao longo da vida, foram marcantes as
r.ulo do trabalho manual, como emprego de capital, como
uanslorrnações pelas quais passaram seu pensamento e as formas
.11 IIIlHII.IÇ;ío de riqueza, não passa de uma doação gratuita da
d\ S('1I l'ngajamento social. Após a imersão no mundo segregado
1.1\.1 '1111' trabalha à que faz trabalhar." 1\111\111 racialmente afirmativo) da Fisk University, Du Bois in-
'11 "1111 110 ambiente universitário solidamente vitoriano de Har-
W I', lI, 1)11 111118, '1/., \,,,11., .1 Il/ll,k Folk. Tn t» Bois Wrilings, NY: The Library of I't"' I I, .1,1 Universidade de Berlim. Em sua autobiografia, Dusk 0/
1'.1(\,',. .:r'I' \ IV ("Sllhll' ," )orrow SO/(gs"). P: 545
.J!lh'O. U,1/."/,,,,,,,,,,,,,,, Jlrllúl'0lls: Vozes, 1977, P: 69. I },I\I'II (19'10), ele comentaria esse prosseguimento de sua experiên-

15
1'1
 cia acadêmica, relatando: "estudávamos história c política quase dar), na busca de diretrizes africanas autônomas, com a derrocada
que cxclusivarncruc do ponto de vista de antigos ideais de liberdade dos impérios coloniais, e crescentemente afastado do pensamento
d,l democracia inglesa e da Nova Inglaterra, e do desenvolvi- liberal europeu.§ 1919, Ou B..ills organizou o Primeiro Con-

.--
,"el11.1.
ment o dos Estados Unidos", tocando apenas de passagem no que gresso Pan-Afriçano, em Paris, cujo documento final reivindicava o
11I'ill1ordi::tlmcnte o interessava: "o problema da admissão do meu reconhecimento e a proteção dos africanos vivendo sob o domínio
povo 113 liberdade da democracia."? _colonial; em 1927, durante o Quarto Congresso Pan-Africano, em
Du Bois admitiu que, não fosse pelo problema racial que cedo o Nova York, manifestou-se contra a intervenção americana no Haiti
atingiu e absorveu, ele teria provavelmente permanecido "um dócil e ~ exploração econômica da Libéria; e no Quinto Congresso Pan-
fiel diante do altar da ordem social e do desenvolvimento econômi- Africano, em Manchester (1945), são já líderes africanos que do-
co no interior dos quais nasc[ era]"." Gradualmente, encontrou sub- minam o movimento pan-africano, exigindo independência do do-
sídios intelectuais para melhor trabalhar a questão racial. Assim, foi mínio europeu.
\ com grande emoção que, em I 906, ouviu Franz Boas discursar na Ou Bois saudou como promissora a união dos povos de pele
I Universidade de Aclanta sobre a importância das culturas ao sul do escura que antevia para o futuro - os "damnés de Ia terre", na famosa
9
Saara para o desenvolvimento da civilização antiga. À medida que formulação de Franz Fanon -, reconhecendo, no entanto, que tal
percebia a contradição entre os ideais humanistas e a realidade de não se daria sem graves conflitos mundiais. Três vezes, no início de
conquista e domínio do colonialismo e do imperialismo europeus, As almas da gente negra, ele afirmou (profeticamente ?): "O problema
roi perdendo a fé nos valores que o fascinaram na juventude. A do século XX é o problema da barreira racial." 10

discriminação racial nos Estados Unidos já não era novidade para Almejava ele, neste livro, conscientizar brancos e negros quanto
ele c, ao ser capaz de vincular a problemática afro-americana e o à continuação moderna do jogo de domínio e exclusão, ancorado
legado ocidental de exclusão da maior parcela da população mundi- em escravismo secular. Ao descrever os paradoxos da sociedade
al- os "não-brancos" -, ampliou seu âmbito de interesse, abar- norte-americana, ao exibir as condições de pobreza e desamparo
cando os povos do Terceiro Mundo em suas lutas de emancipação. da maior parte da população negra, esclarecia didaticamente
N3 década que se seguiu à publicação de As almas da gente negra, (grande professor que era) como a sociedade, na manutenção de
livro em que suas posições políticas mostram-se ainda conservado- concepções e práticas racistas e discriminatórias, protegia interes-
rOl'. Du Bois identificou-se crescentemente com o socialismo. As St'S reacionários de classe e de poder. Daí a importância, sublinha-
(I ,11lS[ormações em sua forma de pensar são análogas às mudanças va, de lutar pela proteção, ampliação e fortalecimento do voto e
dI' r umo do próprio movimento pan-africano (que ajudou a fun- l't'la educação ampla do povo negro, das escolas primárias ao ensi-
IlIl universitário. Ou Bois corretamente percebeu o vínculo entre o
W.I~,I\,I)" Bois, I)usk oJ Dawn: Ali Essay Toward aM Autobiograpby oJ a Raa Concept. In lU ,"0 .1 educação e a atividade política significativa.
/.)1/ /l.'t\ IllItlll.~.!,N.Y., The Library of America, 1986, p. 574. ..
1.1, IJ". 1'. '17.\.
"ri' 1 1,IV,,1 1 rvrllllg lrwis. J1IEB. Du Bois: Biography oJ a Raa, 1868 - 1915. N.Y.: \ ft ,I\i' surge na "Reflexão Prévia" e, também, na abertura e no final do capoII
11(1111' 110.1111111 (llIlIl'.IIlY, 1993, p. 656, '",1111' ,\ Aurora da Liberdade").

11 17
 Educação e direitos de cidadania foram os pontos centrais ~a mada de responsabilidade nacional diante da situação sócio-eco-
<!iscórdia entre Ou Bois e Booker T. Washington, ~ssunto do capí- nômica do negro, direitos civis plenos e oportunidades educacio-
tulo III em As almas da gente negra e tema do ensaio do professor nais iguais. As intrincadas implicações da divergência entre os dois
Oavid G. Ou Bois, neste volume. Para informação adicional do líderes afro-americanos, assim como as conseqüências, hoje, do
leitor brasileiro, acrescente-se que, na virada do século XX e du- rumo prevalecente - que foi o de Washington, não o de Ou Bois
1:\ rante a sua primeira década, o poder da liderança de Booker T. - são analisadas no ensaio do professor Oavid Ou Bois, que in-
\ ,Washington na comunidade afro-americana era imenso, enquanto forma e enriquece a leitura de As almas da gente negra em geral e do
o prestígio de Ou Bois apenas começava a se firmar. Washington capítulo III, em particular.
'controlava então grande parte da imprensa negra, tinha um trânsi- As almas da gente negra distribui-se em 14 capítulos - 13 ensaios
to inusitado entre as autoridades políticas do mundo branco (to- e um conto. Oito desses textos já haviam sido publicados em peri-
\I'mou um célebre chá na Casa Branca com o presidente Theodore ódicos como The Atiantic Monthly, The World's Work, The Dial, The New
Roosevelt) e dispunha de abundantes verbas governamentais e de World e Annals if the American Academy. Um ensaio, "Sobre o Cinturão
1 entidades assistenciais progressistas, com as quais desenvolveu seu Negro" (VII), fora encomendado pela McClure's Magazine sem che-
projeto de educação industrial e agrícola sediado no Tuskeg~ gar a ser publicado. Ou Bois reviu todos eles, para a composição do
nstitute - tão poderoso que foi cognominado por Ou Bois de "A livro. Os cinco capítulos inéditos têm um cunho mais introspecti-
Máquina Tuskegee". Entre seus pares, Washington era conhecido vo ou confessional do que os demais, como o comovente depoi-
como "the Wizard" [o Feiticeiro] ou como "the Great Accomo- mento sobre a morte do filho pequeno (XI); o ensaio sobre o líder
dato r" [o Grande Conciliador], alusão a seu talento ~ gosto por religioso e político Alexander Crummell (XII), texto cuja estrutura
conciliações, segundo seus aliados, ou por acomodações, segundo narrativa já prepara o caminho da ficção que o segue, a saber, o
críticos e oponentes. conto "Sobre a Vinda de John" (XIII); o capítulo final (XIV),
O professor Oavid Ou Bois desenvolve a tese de que as diferen- "Sobre as Sorrow Songs"; e também "Sobre as Asas de Atalanta" (V),
ças de origem entre Booker T. Washington (nascido ainda escravo, lima das peças mais fascinantes do conjunto. A partir do jogo de
no Sul) e Ou Bois (nascido livre, no Norte pós-guerra civil) em sons e de sentidos das palavras Atlanta/ Atalanta, Ou Bois utiliza o
muito explicam os respectivos desacordos sobre os rumos desejá- mito grego da donzela corredora atraída pelos pomos de ouro de
veis para os afro-americanos no alvorecer do século XX. Ele afirma I lipômenes, como alegoria para o crescente espírito de lucro e de
que a doutrina de prosperidade material, respeitabilidade social e '.11"10 material que ele via, temeroso, grassar no novo Sul, branco e
instrução industrial defendida pelo Washington negro - como se Ilrgl'll. Ainda no mesmo ensaio, Ou Bois discute a função da uni-
este descendesse espiritualmente de Benjamin Franklin, acrescenta- \I I\ld.lde negra.
ríamos nós - ajustava-se como uma luva ao espírito capitalista e U i usnio inicial do livro reconfigura o conceito da "consciência
materialista da época, daí o seu aparente sucesso. Aparente porque ,li iJ,l;, ", 1)11 do "eu dividido" - que remonta a dois escritores pre-
jtJ então, no calor da hora, Ou Bois advertia quanto aos temíveis !tlll.!.,) di' Du Bois, Goethe (no Fausto), e Emerson (em "O Trans-
efeitos dessa política desenvolvimentista. Reivindicava ele uma to- "d,',lI.d,sta") - para evocar a realidade psíquica do negro ame-

,li 19
ricano. Ao lado da metáfora do Véu do preconceito racial, a noção cotidiana de comunidades negras na Geórgia. A mesma questão

trágica da consciência dupla, sempre em permanente tensão, forma liga-se à das relações inter-raciais no Sul, abordada especialmente

o par de motivos condutores que informam e sublinham o livro. em "Sobre os Filhos do Senhor e do Escravo" (IX). No capítulo

O capítulo seguinte, "Sobre a Aurora da Liberdade" (lI), muda X, Ou Bois discute a importância da religião dos negros e das black

radicalmente de tom. Mais didático do que filosófico, trata da Re- cburches, e faz um retrospecto de suas transformações desde as lon-

construção no Sul e discute minuciosamente as polêmicas ativida- gínquas origens africanas, avaliando a força do papel comunitário

des do Serviço de Libertos, o Freedmen's Bureau, construí do sobre dessas igrejas na sociedade afro-americana moderna.

a devastação do pós-guerra. O conjunto de textos que compõem As almas dagente negra é todo

Um dos ensaios mais bem realizados do ponto de vista literário dedicado à "gente negra" cuja pluralidade de "almas" o título res-

é "Sobre o Significado do Progresso" (IV), no qual Ou Bois relata salta. Nessa sinalização do múltiplo e do diverso, em jogo que en-

sua experiência de jovem mestre-escola nos confins do Tennessee. volve não apenas a interiorização (da gente negra) mas também o

Pastoral em prosa do Sul rural, o texto dá J conhecer ao leitor o olhar (do leitor), está um dos traços da modernidade de Ou Bois.

modo de vida e as aspirações da humilde população negra da re- Segundo o crítico Paul Gilroy, neste livro desponta, pela primeira

gião. Quando ali discorre sobre a grandeza obscura e o destino vez, uma perspectiva diaspórica e global diante da política do racis-

abortado da jovem Josie, Ou Bois realiza uma de suas mais belas e mo e de sua superação. Diz ele:

convincentes criações de personagens femininas. Em sua sintonia

para com a vida frustrada de uma talentos a mulher, nota-se, já en- Os impulsos nacionalistas de Ou Bois coexistiram [em As al-
mas da gente negra] com a sua transcendência. [Ali se tece] uma
tão, o germe de suas preocupações feministas acentuadas em sua
obra posterior e no ativismo político da maturidade.'! narrativa sistemática das interconexões entre a África, a Euro-

No capítulo VI - onde surge, pela única vez no livro, a expres- pa e as Américas para complicar a narrativa excepcionalista do

são "talented tenth" - Ou Bois volta à questão das escolas indus- sofrimento negro e da emancipação nos Estados Unidos. A

triais, prosseguindo na abordagem daquilo que tanto o preocupa- escravidão internacional forneceu a base racional para essa

va, a educação. Sugerindo a afinidade do autor com a tradição perspectiva, mas associou-se ao desejo de Ou Bois de demons-

cultural afro-americana que remonta às antigas slave narratives e aos trar a situação intrínseca dos negros, firmemente encerrados

spirituals, esse ensaio se fecha com a retomada de alusões bíblicas já no interior do mundo moderno que o seu próprio trabalho
[orçado viabilizou.V
presentes no capítulo de abertura.
Também nos capítulos VII e VIII, de cunho sociológico, Ou
Bois convida o leitor a percorrer o Sul rural, tematizando a vida N('I'ICS últimos anos, uma das tendências predominantes nos
I'~I'" 111., culturais nas e sobre as Américas (dentre os quais destaca-
II Em ensaio de 1920, ele escreveria: "A ascensão da mulher, ao lado do problema
da barreira racial e do movimento pela paz, é a nossa maior causa moderna."
J.
"Thc damnation of wornen" [A maldição das mulheres ln: Du Bois Writings. Op.
1'.".1 (;.Jmy. The B!tuk Atlantic: Modernity and Doublt Consciousness. Cambridge,
I, . li hu-cus: Harvard University Press, 1993, p. 120-121.
ru., p.%5.

'., 21
se a contribuição do próprio Gilroy) tem sido, deixando de lado Rompendo com o pensamento liberal da juventude para adotar
discursos essencialistas de raça e nacionalidade, atentar para o di- diversas modalidades de socialismo e identificando-se, no desenro-
namismo de um legado sócio-cultural híbrido, advindo do cruza- lar de seu amadurecimento, com um fecundo pacifismo, Ou Bois
mento histórico de heranças múltiplas que se fragmentam e recom- teve o privilégio de viver longuíssima vida em que lutou por gran-
põem para ressurgir, sucessivamente, em novas configurações. des ideais e, inevitavelmente, deparou-se com suas próprias contra-
Assim, já desde a violência da travessia do Atlântico, heranças étni- dições. E, se certas vezes se contradisse - para parafrasearmos seu
cas foram transportadas para serem reelaboradas através da expe- conterrâneo, o poeta Walt Whitman -, é porque ele era plural,
riência do africano arrancado do continente de origem e de seus contendo, em si, multidões.
filhos que, através das gerações, transformar-se-iam e transforma- Certamente, são muitas as almas da gente negra que se oferece-
riam o Novo Mundo. ram ao leitor de seu tempo e agora a nós, no crepúsculo do século
Consciente dessa multiplicidade e de sua realidade tcnsionada, XX, no limiar do século vindouro. Talvez seja esta a maior home-
Ou Bois, bem antes de seus contemporâneos, rasura em sua obra a nagem prestada por Du Bois à população negra a que dedicou vida,
história oficial, para dela mostrar o avesso. Ele não renega a cultura reflexão e árduo trabalho: reconhecer, nela, a pluralidade, a rnulti-
clássica porém a revisita e reescreve, subvertendo-a por nela enxer- plicidade, a diversidade, em seu país e no mundo - juntamente
tar a ( sua) perspectiva afro-americana. A partir da independência com o legado responsável de uma humanidade comum. E apontar
do gesto, florescem novas possibilidades de sentido - como suce- sempre para a riqueza das trocas.
de com o mito do Jardim das Hespérides, na escrita polifônica de
As almas da gente negra.
No alvorecer do século XX, do interior de uma sociedade toda
voltada para o materialismo desenvolvimentista, Ou Bois sintoma-
ticamente privilegia, no título de seu livro mais famoso, não o pro-
gresso material mas a interiorização (pluralizada) da gente negra
- suas "almas". Esse precursor da luta pelos direitos civis das
minorias e dos modernos estudos culturais, desconfiando de
essencialismos limitadores, transita livremente, modernamente,
pelos gêneros literários e combina os saberes das diversas ciências
sociais. Quer na recriação literária de um humilde povoado negro
no interior do Tennessee ou da Geórgia, quer no tratamento erudi-
to das grandes questões sociais da humanidade, sua escrita contun-
dente, que jamais neutraliza os conflitos, simultaneamente alerta ..
para a necessidade da cooperação e do conhecimento mútuo entre
as diversas famílias humanas.

22 23
 REFER~NCIAS HISTÓRICAS W.E.B. DUBOIS

Fundação de Jamestown. 1607

Chegada dos primeiros negros à

Virgínia.
B
Legalização da escravidão, na 1667
Virgínia, para os negros conver-
tidos ao cristianismo.

Os casamentos inter-raciais são 1691

banidos na Virgínia.

Declaração da Independência - 1776

dos Estados Unidos.

Reconhecimento internacional 1783

da independência dos Estados
Unidos.
Início da emancipação gradual
dos escravos, no Norte.

Northwest Ordinance proíbe a es- 17871

cravidão nos territórios ao norte
do rio Ohio. * A Convenção
onstitucional entra em acordo
a respeito da escravidão.

A primeira lei federal de natura- 1790

lização reserva a cidadania para
os brancos.

A invenção do descaroçador de 1793

.llgodão fortalece a base econô-
mica da escravidão sulista.

Fim do tráfico escravista inter8}

u.icional nos Estados Unidos.

Missouri Compromise estabelece li- 1820

1111.1divisória entre o território
livre e o território escravista.

27

~
 REFER[;NCIAS IIISTÓRICAS
Início da agitação abolicionista
110 Norte.
m acordo temporariamente re- 1850
solve a controvérsia sobre a ex-
tensão da escravidão nos territó-
rios. Fugi/ive Slave Law: escravos
fugitivos encontrados nos esta-
dos ao norte da Mason Dixon Line
(estados livres) devem ser reen-
caminhados a seus proprietários
sob pena de pesadas sanções.
Dred Scoll Decision anula o Missouri 1857
Compromise ~ga a todos os ne-
gros do país o direito à cidada-
nia: por decisão da Corte Supre-
ma, um negro não pode abrir
processo em tribunal federal.
Nasce BookerT. Washington.
--
Ataque de John Brown a Harper's 1859
Ferry.
Eleição de Lincoln. * Secessão 18B
dos estados sulistas.
Início da guerra civil.
Proclamação da Libertação.
Fim da guerra civil. * Assassina- 1860
I() de Lincoln, * Thirteenth Amend- -
mrn! proíbe a escravidão.
d,l Reconstrução.
\..
11111III
' Grapevine, contos em dialeto ne-
1;l/íl/~r!,tÍ ÁIllfI'/'l/fII/c~ende aos,~
ItI III1m Il~ drrcitos de cidadania. -..........J Burghardt Ou Bois em Great
W.E.B. DUBOlS REFER~NCIAS HIFÓRICAS W.E.B. DUBOIS
1831
xV e~tK~
Fiflee~th Amendment protege os di- 1870
reitos eleitorais dos negros.
Final da Reconstrução. 1877
Primeira lei estadual segregando 1881 Aluno do curso secundário, tem
os negros em transportes públi- vários empregos: recolhe carvão,
cos (Tennessee). corta grama, vende jornais. Lê
muito, faz um jornalismo inci-
piente, joga beisebol.
Exilusion Act proíbe a imigração 1882
de chineses.
A Corte Suprema apóia as leis 1883 Escreve sobre a comunidade ne-
fim Crow no Tennessee que san- gra de Great Barrington para o
cionam espaços públicos separa- periódico New York Globe e, oca-
dos para negros e brancos. Isto sionalmente, é correspondente
anula o Civil Rights Act aprovado para o Springfield Republican.
pelo Congresso.
1858
Em Chicago é construído o pri- 1884 Forma-se no curso secundário,
meiro arranha-céu, de dez anda- único estudante negro numa tur-
res, com estrutura de aço. ma de treze. Faz discurso de for-
matura sobre o abolicionista
Wendell Phillips.
G\ 1885 Morte da mãe. Ingressa na Fisk
University, em Nashville, Ten-
~
nessee. Quase morre de febre ti-
fóide. Estuda alemão, grego, la-
tim, literatura clássica, filosofia,
ética, química e física.
~
Charles Chesnutt, The Goophered 188(/7 Mestre-escola dois verões perto
1~
de Alexandria, Tennessee. Im-
Nasce William Edward
gro. Thomas Nelson Page, In ale pressiona-se com a música negra
Vzrginia, romance que idealiza o que escuta nas pequenas igrejas
Barrington, Massachusetts.
Velho Sul. locais.
29
 REFER)jNCIAS HISTÓRICAS W.E.B. DUBOIS
1888"9 Graduação em Fisk. Profere dis-
curso de formatura sobre Bis-
marck. É admitido em Harvard.
Durante o verão, trabalha como
ajudante de garçom em hotéis
em Minnesota. Em Harvard, es-
tuda filosofia com William
James e George Santayana, eco-
nomia com Frank Taussig, histó-
ria com Albert Bushnell Hart. É
recusado no Harvard Clee Club.
Nos meses de verão, faz pales-
tras para grupos de igrejas. Par-
ticipa da vida comunitária negra
de Boston, toma parte em gru-
pos teatrais amadores.
Mississippi é o primeiro estado 1890 B.A. cum laude em filosofia. Estu-
a suprimir os direitos eleitorais da Ciências Políticas na Har-
dos negros através de convenção vard Graduate School.
constitucional.
1891 M.A. em história, Harvard.
1892 Após árduos esforços, consegue
financiamenro (Slater FUnil) para
estudar na Alemanha. Aluno da
Friedrich Wilhelm Universitât,
em Berlim.
1894 O grau de doutor lhe é negado
pela universidade alemã em ra-
zão do tempo insuficiente de
estudo na Alemanha. Não ob-
tendo renovação da bolsa, volta
aos Estados Unidos. Escreve a
instituições negras de ensino em
busca de trabalho, e é rejeitado
em Fisk, Howard, Hampton,
l"
REFERÊNCIAS HISTÓRICAS W.E.B. DUBOIS
Tuskegee. Leciona os clássicos
em Wilberforce Universiry,
Ohio.
Stephen Crane, The Red Badge oJ 1895 Escreve a Booker T. Washington,
'ourage. * Booker T. Washington, cumprimentando-o pelo sucesso
"Atlanta Exposition Address". obtido com o discurso na Atlanta
Cotton Exposition. É o primeiro
negro a obter o Ph.D. em
Harvard.
aso Plessy v. Ferguson: a Corte 1896 Casa-se com Nina Gomer, estu-
Suprema autoriza a segregação dante deWilberforce. The Suppression
em acomodações e serviços pú- oJ theAfrican Slave- Trade to the United
blicos, formulando a doutrina States oJ America, Z638-Z870, sua
"separare but equal". tese de doutoramento, é publi-
cada. Prepara um estudo socioló-
gico sobre a população negra da
Filadélfia.
1897 Leciona economia e história na
Atlanta University, Expande o
âmbito da sua pesquisa socioló-
gica que o ocupará, e a um grupo
de estudantes voluntários, por
mais de dez anos. Recusa-se a
freqüentar concertos, teatros,
parques e museus segregados, ou
a utilizar-se de transportes fim
Crow. Nasce o ftlho, Burghardt
Gomer Ou Bois.
Iuerra Hispano-Americana. Os 1898
Estados Unidos obtêm as ilhas
do Havaí, Porto Rico, Filipinas.
 música de Scott [oplin, o 1899 O ftlho morre de disenteria. Es-
",,,/;lIIe, torna-se popular no país. creve artigos para Atlant« Month/y
e The Independent.
31
 REFER~NCIAS HISTÓRICAS
Booker T. Washington, Up jrom
Slavery.
Paul Laurence Dunbar, The Sport
oJ the Gods. ,ç. Thomas Dixon, The
Leopard's Spots, considerado o ro-
mance racista mais extremista da
literatura norte-americana
Surge o Niagara Movement, precur- 1905 Colabora na organização do
sor da NAACp, dedicado à con-
quista incessante e inflexível dos
direitos políticos e econômicos
dos negros.
Morre, aos 33 anos, o poeta 1906
Paul Laurence Dunbar.
Mais de um milhão de imigran- 1907
tes europeus chegam a Ellis Island
(Nova York).
32
W.E.B. DUBOIS
1900 Condecorado por trabalho apre-
sentado sobre o desenvolvimen-
to econômico negro, na Exposi-
ção de Paris.
1902 Acirra-se a divergência entre Ou
Bois e Booker T. Washington.
Os dois líderes se encontram.
Recusa oferta para lecionar em
Tuskegee.
19°3 Publicação de The Sou/s oJ Black
Folk. O sucesso do livro torna Ou
Bois uma figura nacionalmente
conhecida.
Niagara Movement, e é eleito Secre-
tário Geral. Inicia correspon-
dência com o escritor, advogado
e compositor James Weldon
[ohnson, também membro do
Niagara Movement.
19°9 Publica a biografia John Brown,
que é criticada por Oswald Garri-
son Villard (pesquisador e jorna-
lista, neto de Garrison) como
historicamente imprecisa. Traba-
lha para a EncyclopediaAfricana, um
estudo histórico e sociológico da
vida do negro em todo o mundo,
IU:FER~NCIAS HISTÓRICAS
Fundação da NAACp, em Nova 1910 Eleito Diretor de Publicações e
York: National Association for the Pesquisa da NAACP, é o único
Advancement oJ Colored People.
James Weldon [ohnson, The
Autobiography oJ an Ex-Coloured
Man.
Inauguração do Armory Show,
Nova York: primeira grande exi-
bição de arte moderna no país.
Marcus Garvey funda a Universal
Negro Improvement Association.
W.E.B. DUBOIS
a ser elaborado por uma equipe
internacional sob a supervisão de
Ou Bois. O Niagara Movement tem
seu 5° encontro - o último _
em Nova Jersey.
negro da diretoria. Muda-se
para Nova York para fundar e
trabalhar em The Crisis, revista
mensal da NAACP (circulação
inicial, 1.000 exemplares).
1911 Presente ao Universal Races
Congress, em Londres. Publica
seu primeiro romance, The Quest
oJ the Silver Fleece, melodrama ro-
mântico sobre a exploração da
indústria do algodão. Filia-se ao
Partido Socialista.
1912
191 3 Escreve e encena The Star oJ Ethiopia,
desfile comemorativo da história
negra, apresentado em Nova York
para celebrar o 50° aniversário da
libertação dos escravos (poste-
riormente exibido em Washing-
ton, Filadélfia eLos Angeles). A
cir-culação de The Crisis já alcança
30.000 exemplares.
1914 Defende o voto das mulheres em
editorial de The Crisis. Considera
as rivalidades imperialistas das
33
j
 REFER(;NCIAS IIISTÓIUCAS W.E.B.DUBOIS
potências européias a causa prin-
cipal da Primeira Guerra Mun-
dial; avalia o colonialismo fran-
cês e o inglês como preferíveis ao
alemão, posicionando-se em fa-
vor da vitória aliada.
Ku Klux Klan reativada na Geór- 1915 Faz campanha contra Tbe Birth oj
gia. * O filme de D.W Griffith a Nation e sua glorificação da Ku
The Birth oj a Nation é exibido em Klux Klan. Protesta contra a
Nova York. * Morte de Booker ocupação americana do Haiti.
T. Washington. Após a morte de Booker T. Wa-
shington, faz uma reavaliação
equilibrada do líder negro.
1916 Escreve ao presidente Wilson re-
clamando dele o cumprimento
de promessas passadas para com
a população negra do país.
Os Estados Unidos declaram 1917 Escreve editorial no número de
guerra à Alemanha e participam junho de Crisis, conclamando os
da Primeira Guerra Mundial. negros a buscarem trabalho nas
Cerca de 400.000 afro-america- indústrias de guerra se conti-
nos servem na guerra. Apenas nuassem a ser banidos do serviço
10% deles participam da frente militar, argumentando que a
de combates. * Conflito racial aquisição de conhecimento mili-
em St. Louis, quando dezenas de tar e industrial enfraqueceria a
negros são massacrados. * Gran- dominação racial branca. Parti-
de migração dos negros do Sul cipa de marcha silenciosa (orga-
para os centros industriais do nizada pela NAACP), na 5a Ave-
Norte (auge em 1919). nida, Nova York, em protesto
contra o agravamento da violên-
cia racial.
1918 É advertido pelo Departamento
de Justiça de que poderá ser pro-
cessado caso continue a criticar
o racismo nas forças armadas. O
Departamento de Guerra lhe
II
ItEFER(;NCIAS HISTÓRICAS
Mais de 25 grandes conflitos ra- 1919 Organiza o Primeiro Pan-African
ciais, em Chicago e outras cida-
des. A Ku Klux Klan expande-se,
vigorando em 27 estados, e or-
ganiza cerca de 200 manifesta-
ções contra grupos minoritários,
controle de natalidade, pacifis-
mo, internacionalismo, darwi-
nismo. 70 negros são linchados,
dentre os quais oficiais unifor-
mizados.
Prohibition (Lei Seca): Eighteenth
Amendment. Revogado em 1933.
* As mulheres votam: Nineteenth
Amendment.
W.E.B. DUBOlS
oferece comissão como capitão
do exército e um posto no servi-
ço especial de inteligência mili-
tar para assuntos raciais (a acei-
tação do convite por Ou Bois é
duramente criticada nos meios
negros). O duplo oferecimento,
porém, não se concretiza. Em-
barca para a França em dezem-
bro e investiga, para a NAACp, o
tratamento de tropas negras.
Congress, a realizar-se em Paris.
Apesar de interferências inglesas
e norte-americanas, compare-
cem 57 delegados dos Estados
Unidos, Caribe, Europa e Áfri-
ca. O Congresso convoca Con-
ferência de Paz em Paris para re-
conhecer e proteger os direitos
de africanos vivendo sob jugo
colonial.
1920
1921 Organiza o segundo Pan- Ajrican
Congress realizado sucessivamente
em Londres, Bruxelas e Paris. As
sessões realizadas em Londres,
especialmente, criticam o colo-
nialismo europeu, conclamando
a defesa internacional dos direi-
tos africanos.
35
 I{I'I'I;RÊNCIAS HISTÓRICAS W.E.B. OUBOIS
REFERt:N( IAS I IIS rÓIUCAS W.E.B. OU BOIS

Je,111 TOO11l('I'. obra prima 1923 Organiza o terceiro Pan-African

Can«
d,1 lucr.uur» aíro-amcricana que Congress, realizado em Londres,
11ti IIlll\lrl,O ,\ l larlem Renaissance. Paris e Lisboa. Em dezembro,
viaja pela primeira vez à África
(Monrovia, Libéria).
1924 Visita. Serra Leoa, Guiné e Se-
negaL Define posição contra
Marcus Garvey com o artigo "A
Lunatic or a Traitor" (número
de maio de Crisis).
Nasce Malcolm X (Original- 1925 Contribui com o ensaio "The
mente Malcolm Little). * Alain Negro Mind Reaches Out" (so-
Lock.e (ed.), The New Negro: An bre a África contemporânea)
l nterpretation (livro crucial da para a antologia crítica The New
i larlem Renascence). * Scott Fitzge- Negro: An Interpretauon.
rald, Tbe Great Gatsby. * Theodore
3.000 pessoas (o casamento dis-
solve-se em um ano). Publicação
de Dark Princess: A Romance.
N,ISCCMartin Luther King Jr. 1929
Quebra da Bolsa de Nova York,
rnlcio da Grande Depressão.
William Faulkner, The Sound and
thr Fury.
l.unes Weldon [ohnson, Black 1930
Mallhattan. Fundado movimento
dos Muçulmanos Negros (Black
Mt/slims), em Detroit. Em 1934,
,I seita passará a ser liderada por
I:Iijah Muhammad, em Chicago.
Nasce Toni Morrison, Prêmio 1931

Dreiser, An American Tragedy. * Nobel da Literatura em 1993.

Manifestação da Ku K1ux K1an
em Washington, com 40.000 1933 Reavalia, em Tbe Crisis, posição
participantes. quanto à segregação racial. Preo-
cupado com os efeitos da De-
Langston Hughes, Tbe Weary 1926 Funda Krigwa Players, um grupo pressão e pessimista diante das
Il/llrs. teatral no Harlem, Nova York, perspectivas de integração, advo-
dedicado à temática da vida e ga instituições negras separadas
cultura negra. Visita a União So- e medidas econômicas e sociais
viética (cujo regime o impressio- de auto-ajuda. Intensificam-se
na profundamente), Alemanha, suas divergências com os demais
Turquia, Grécia e Itália. membros da diretoria da
NAACP.
1,llllr~ Wcldon Johnson, God~ 1927 Quarto Pan-African Congress, em
'1/ "l/rI'I!I/(I \'rvm Negro Sermons in Nova York. Ou Bois condena a
Langston Hughes, The J#!ys oJ 19H Renuncia como editor de The
White Folh. Crisis e também da diretoria da
I}, ,r, intervenção norte-americana no
NAACP. Designado Chairman
Haití e a exploração econômica
do departamento de sociologia
da Libéria.
da Aclanta University muda-se
I.UIIIII,'( ( 1111111. "/ir Illllllld oJ thr 1928 Sua filha Yolande casa-se com o para Aclanta e viaja pelo Sul, co-
1J,ll\i'lI (,111 poeta Countee Cullen no Har- letando dados para pesquisa.
lcrn, em cerimônia assistida por Recusa-se a freqüentar restau-
37
 REFER~NCJAS HJSTÓRICAS W.E.B. DUBOIS
REFER~NCIAS HISTÓRICAS W.E.B. DUBOIS
rantes racialmente segregados.
lizar-se na Inglaterra. Encontro
Dá início ao projeto Encyclopedia
com Kwame Nkrumah, Jomo
oJ tbe Negro, sendo escolhido co-
Kenyatta e outros líderes do mo-
mo editor-chefe.
vimento pari-africano, pela inde-
pendência do domínio colonial.
Distúrbios no Harlem, Nova 1935 Publicação de B/ack Reconstruaion.
York. * George Gershwin, Porgy
1947 Visita Jamaica, Granada, Trini-
and Bess.
dad e Cuba.
Ama Bontemps, B/ack Thunder. * 1936 Viagens pela Europa e Oriente:
William Faulkner, Absalom, Absalom! . banida a segregação nas forças 1948 Vice-Presidente do Council oJ
Manchúria, China e Japão. De-
armadas (governo Truman). Ajrican Alfairs (até 1956). Come-
nuncia perseguições anti-sernitas
ça a escrever regularmente para o
como bárbaras e cruéis.
National Guardian (até 1961).

Zora Neale Hurston, tu« Eyes 1937

wendolyn Brooks, Annie Allen 1949 Participa da Cultural and Scientific
Were Wiltching God.
(poemas). Corference jor World Peace (Nova
York). Preside painel com o es-
John Steinbeck, The Grapes oJ 1939 Publicação de Black Folk, Tben and
critores Aleksandr Fadeev, Louis
Wrath. Now.
Untermeyer, EO. Matthiessen e
Norman Mailer. Participa de
Richard Wright, Native Sono 1940 Publicação da autobiografia
congressos pacifistas, em Paris e
Dusk oJ Dawn. Encontro com o
110scou.
escritor Richard Wright.

1950 Como presidente da Peaa

Os Estados Unidos declaram 1942
guerra ao Eixo, integrando as
forças dos Aliados na Segunda
Guerra Mundial.
Nasce Alice Walker (Pulitzer 1944 Primeiro negro a tornar-se
Prize com o romance The Color
Purple, 1982). * A Corte Supre-
ma decide que os direitos eleito-
rais não podem ser negados aos
cidadãos em razão da cor da
pele,
R Ir h,lI·tI Wright, Black Boy: A
RI'i(IIt! 01 Childhood alld Youth.
(K
Information Center, coleta assina-
turas de apoio ao Stockholm Appeal
(pela proibição incondicional
do uso de armas atômicas). A
esposa Nina Gomer Ou Bois
morre em Baltimore. Candidata-
membro do National lnstitute oJ
se ao Senado pelo American Labor
Arts and Letters. Visita o Haiti.
Party.
1951 Indiciado, juntamente com qua-
tro outros membros do Peaa
Information Center, sob alegação de
que o Centro funcionava como
1945 Colabora na organização do
agência extra-oficial do Comitê
quinto Pan-Ajrican Congress, a rea-
do World Congress oJ the Difenders oJ
39
 W.E.B. DUBOIS
REFER~NCIAS HISTÓRICAS
Peace e o sucessor deste, o World
Peace Council. A pena poderia
acarretar cinco anos de prisão e
multa de US $ 10.000. É preso
e libertado sob fiança. Casa-se
com Shirley Graham em cerimô-
nia assistida pela filha Yolande e
pelo filho de Shirley, David, a
quem ele adota. Compra casa
(Brooklyn, Nova York) do dra-
maturgo Arthur Miller. Rela-
ções cada vez mais conflituosas
com a NAACP e outros líderes
negros. Finalmente absolvido,
com os outros réus, por falta de
provas de vínculos internacio-
nais entre a Peace lrformation
Center e quaisquer outras organi-
zações estrangeiras.
Ralph Ellison, Invisible Man 1952 Posições políticas de esquerda
(National Book Award for fiction no aumentam seu afastamento de li-
ano seguinte). deranças afro-americanas. O De-
partamento de Estado lhe recusa
passaporte, alegando que sua via-
gem ao exterior não é de interesse
nacional.
[ames Baldwin, Go Tell it on the 1953 Elogia Stalin, em National
MOHlltain. Guardian. Participa da campanha
fracassada para salvar Julius e
Ethel Rosenberg da execução. É
agraciado com o Prêmio Inter-
national da Paz, pelo World Peace
Councii.
C;i'O 11,01'.111 v. 130ardoJ Education oJ 1954 Surpreso com o fim da segrega-
'/pl'rk", "01/111\: /I. Cone Suprema ção nas escolas, escreve: "Vi o
.11'1,.Ir. I'IlI' un.mirnidnde, gue a impossível acontecer:'
I"
REFER~NCIAS HISTÓRICAS W.E.B. DUBOIS
segregação racial em escolas pú-
blicas é inconstitucional.
Rosa Parks é presa em Mont- 1955
gomery, Alabama (1° de dezem-
bro) por violar os regulamentos
de segregação em ônibus (re-
cusou-se a ceder o lugar a um
passageiro branco). Cinco dias
depois, começa o movimento de
boicote aos ônibus no Alabama,
e o reverendo Martin Luther
King, Jr. ascende como líder ne-
gro no Sul e no país. * James
Baldwin, Notes oJ a Native 50n.
Decisão da Corte Suprema torna 1956 Envia mensagem de apoio a
ilegal segregação em transportes Martin Luther King, Jr., durante
públicos. o boicote de transportes públi-
cos em Montgomery, Alabama.
Convidado a proferir palestras
na República Popular da China,
é impedido de comparecer por
ser-lhe negado o passaporte. De-
safia William Faulkner a debater
a segregação no Mississippi.
Faulkner se recusa.
Nasce Spike Lee. * Congresso 1957 Convidado por Kwame Nkru-
aprova Voting Rights Act, criando rnah, primeiro-ministro de Gana,
omissão de Direitos Civis e am- para as festas de independência
pliando os poderes do Governo do novo país. Não comparece
Federal (governo Eisenhower) por não conseguir passaporte.
para proteger os direitos dos ci-
dadãos negros. * Tropas federais
são enviadas a Little Rock,
Arkansas, para controlar distúrbi-
os contra a integração racial nas
escolas. * Fundação da 50uthern
41

REFERÊNCIAS HIST6RICAS
Christian Coriference (SCLC), com
Martin Luther KingJr. como pri-
meiro presidente. * E. Franklin
Frazier, B/ack Bourgeoisie:The rise 0/ a
new middle tlass in the United States
(publicado anteriormente na
França).
Lorraine Hansberry, A Raisin in 1959 Encontro com Nikita Khrus-
the Sun.
Sit-ins em restaurantes públicos 1960 Visita Gana e Nigéria.
segregados, a partir de Greens-
boro (Carolina do Norte), logo
espalham-se por todo o país. *
41.
REFERÊNCIAS HIST6RICAS W.E.B.DUBOIS
W.E.B. DUBOIS
Ireze novas nações africanas pas-
S:1ma fazer parte das Nações
Unidas.
Protestos multiplicam-se no 1961 Publicação de Worlds 0/ Color, úl-
Norte contra a segregação legali- timo romance da trilogia The
zada em restaurantes, lavatórios, B/ack F/ame. A filha Yolande mor-
salas de espera em estações de re em Baltimore. Aceita convite
ônibus e de trens no Sul. * Mor- de Nkrumah para mudar-se para
1958 Comemoração de seu 90° ani-
te de Frantz Fanon, aos 36 anos. Gana, retomando e dirigindo o
versário, a que comparecem
projeto Encyclopedia Africana. Soli-
2.000 pessoas (Roosevelt Hotel,
cita admissão no Partido Comu-
Nova York). Começa a reescre-
nista dos Estados Unidos, pou-
ver sua autobiografia (a primeira
co antes de deixar o país.
versão, The Autobiography 0/ WE.B.
Du Bois, fora publicada em
O estudante negro James Mere- 1962 Encontra Charles Chaplin na
1968). Obtém finalmente o pas-
dith matricula-se na University of Suíça. Visita mais uma vez a
saporte. Visita diversos países da
Mississippi sob proteção das tro- China.
Europa, inclusive a Alemanha
pas federais (governo Kennedy).
Oriental, onde recebe o Douto-
rado Honorário de economia
Quatro crianças negras são mor- 1963 Torna-se cidadão de Gana.
pela Humboldt Universitãt (an-
tas em Birmingham, no Alaba- Acompanha de longe os prepa-
tes Friedrich Wilhelm). Envia
ma, quando segregacionistas rativos para a marcha pelos direi-
discurso à Conferência Africana
bombardeiam a Sixteenth Street tos civis, em Washington. Morre
em Acra, Gana, conclamando os
Baptist Church. * Marcha pelos di- em Acra na véspera do evento,
africanos a rejeitarem o capita-
reitos civis:March on Vftáshingtonfor 27 de agosto. Enterrado em
lismo ocidental e a aceitarem
Jobs and Freedom, a 28 de agosto, Acra, com honras de estado, a
ajuda da União Soviética e da
com 250.000 participantes, na 29 de agosto.
China.
noite anterior, morte de Ou
Bois, em Gana. * O presidente
Kennedy envia tropas federais
chev. Visita União Soviética,
para pressionar a Universidade
China, Suécia e Inglaterra antes
do Alabama a aceitar o ingresso
de retomar aos Estados Unidos.
de dois estudantes negros. *
Recebe o International Lenin Priee.
O presidente John Kennedy é as-
sassinado em Dallas, Texas (22
de novembro).
43
 REFERtNCIAS HISTÓRICAS W.E.B. DUBOIS REFER~NCIAS HISTÓRICAS W.E.B. DUBOIS

ivi! Righls Acl proíbe discrimina- 1964 mais de 100 distúrbios raciais no
ção em sindicatos e empregos, e país. * O Congresso proíbe dis-
estipula acesso igual a lugares criminação em vendas e aluguéis,
e serviços públicos. * Martin mais especificamente em progra-
Luther King Jr. recebe Kennedy mas de habitação financiados
Peace Prize e Prêmio Nobel da pelo governo federal. * Robert
Paz. * Intervenção dos Estados Kennedy é assassinado em Los
Unidos no Vietnã. * Distúr-bios Angeles, California. * Publicação
no Harlem, Nova York. da antologia Black Fire, organiza-
da por Larry Neal e Amiri
Malcolm X assassinado no Baraka (LeRoi Jones).
Harlem, Nova York. * Distúr-
bios raciais em Los Angeles, 1965 Corte Suprema exige sistemas 1969
Califórnia, com 34 mortes e escolares unitários em todas as
mais de 3.000 feridos. ", Civil escolas do país. Fim da segrega-
Rights Act: proteção aos direitos ção nas escolas.
eleitorais dos negros no Sul.
Toni Morrison, Tbe Bluest Eye. * 1970
Stokely Carmichael (que popu- Maya Angelou, I Know WIry the
larizou a expressão black power) li- Caged Bird Sings.
dera a Student Nonviolent Coordina-
ting Committee e reorienta o grupo 1966
no sentido da libertação negra. *
É fundado o radical Black Pantber
Party.

aso Loving v. Virginia: A Corte 1967

Suprema declara inconstitucio-
nais as leis estaduais proibindo o
casamento inter-racial. * Thur-
good Marshall torna-se o pri-
meiro juiz negro da Corte Su-
prema. Distúrbios raciais em
Ncwark e Detroit..e em outros
~1'.lnd('s centros.
..
M.lrI in Luthcr King Jr. é assassi- 1068
n.u 111 ('111 Mcrnphis, Tennessee.
N,I '('1I1.1Il.1s('gllinle à sua morte,

\01 45
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 1\iflexão Prévia

Aqui estão encerradas muitas coisas que, se lidas com paciência,

poderão mostrar o significado estranho de ser negro agora, ao al-
vorecer do século xx. Esse significado não é desprovido de inte-
resse para ti, Gentil Leitor; pois o problema do século XX é o
problema da barreira racial.
Peço-te, então, que recebas o meu livrinho com benevolência,
examinando comigo as minhas palavras, perdoando os erros e as
imperfeições em consideração à fé e à paixão que estão em mim, e
buscando o grão de verdade nele escondido.
Procurei esboçar neste livro, em linhas vagas e incertas, o mun-
do espiritual em que dez milhões de americanos vivem e lutam.
Em primeiro lugar, em dois capítulos tentei mostrar o que a Liber-
tação significou para eles, e quais foram as suas conseqüências. Em
um terceiro capítulo, assinalei o lento desenvolvimento das lide-
ranças individuais e critiquei francamente o líder que é, hoje, o
principal responsável pelos de sua raça. Em seguida, em dois ou-
tros capítulos, fiz um rápido esboço dos dois mundos, dentro e
fora do Véu, chegando, assim, ao problema central de instruir os
homens para a vida. Aventurando-me em mais detalhes, examinei
em dois capítulos as lutas dos milhões de camponeses negros e, em
outro capítulo, procurei esclarecer as atuais relações entre os filhos
do senhor e os filhos do escravo.

49
 Abandonando, então, o mundo do homem branco, caminhei
por dentro do Véu, erguendo-o para que o leitor possa vislumbrar
seus recessos mais íntimos - o significado da sua religião, a pai-
xão das suas dores humanas e a luta das suas maiores personalida-
Sobre as 'Nossas 1.!!tas Gspirituais
des. Ao final de tudo isso, incluí uma narrativa já bem conhecida,
porém raramente escrita.
Alguns desses meus pensamentos viram a luz sob outras confi-
Oh água, voz do meu coração, chorando na areia,
gurações. Pelo gentil consentimento em republicá-los aqui, em for- Derramando, durante toda a noite, um pranto tão triste,
ma alterada e aumentada, devo agradecer aos editores de The Atlantic Deitado, a escutar, não compreendo
A voz do meu coração no peito ou a voz do mar,
Monthly, The World~ Work, The Dial, The New World e de Annals oJ the
Oh água, que implora o descanso, serei eu, serei eu?
American Academy oJ Political and Social Sciena. Durante toda a noite escuto a água a chorar.
Antes de cada capítulo, há um compasso das Sorrow Songs - um
Água incessante, jamais haverá descanso
eco de persistente melodia da única música americana que brotou
Até que desça a última lua e baixe a maré derradeira,
das almas negras no passado sombrio. E, finalmente, será preciso E o fogo do final comece a inflamar o oeste;
acrescentar que eu, que aqui falo, sou o sangue do sangue e a carne E o coração, cansado e perplexo, chorará como o mar,
Toda a vida chorando sem remédio,
da carne daqueles que vivem dentro do Véu? Como a água, durante a noite toda, que escuto a chorar.
ARTHuR SYMONS

WE. B. DuB.
Atlanta, Geórgia, Z' defevereiro de Z903

"
 Nova Inglaterra, onde o escuro rio Housatonic serpenteia entre as
montanhas Hoosac e Taghkanic até o mar. Em uma pequenina es-
cola de madeira os meninos e as meninas, não sei por quê, tiveram
a idéia de comprar - a dez centavos o pacote - deslumbrantes
cartões de visita para trocá-Ios entre si. A troca foi alegre até que
uma menina alta, recém-chegada, recusou meu cartão. Recusou-o'
peremptoriamente, com um olhar. Então me ocorreu, com uma
certa urgência, que eu era diferente dos outros; ou talvez semelhan-
te no coração, na vida e nos anseios, mas isolado do mundo deles
por um imenso véu. Dali em diante, não senti qualquer desejo de

pntre mim e o outro mundo paira, invariavelmente, uma

rasgar esse véu, de perpassá-lo. A todos do outro lado incluí no

G pergunta que nunca é feita: por alguns, por sentimentos de

mesmo desprezo e vivi acima dele, em uma região de céu azul e de
grandes sombras errantes. Esse céu tornava-se mais azul quando eu
delicadeza; por outros, pela dificuldade de equacioná-Ia cor-
derrotava meus colegas nos exames ou em uma corrida, ou mesmo
retamente. Todos, no entanto, agitam-se em torno dela. Com um
quando espancava suas cabeças pegajosas. Ai de mim; com o passar
jeito um tanto hesitante aproximam-se de mim, olham-me com
dos anos todo esse belo desprezo começou a empalidecer; pois as
curiosidade ou compaixão e então, em vez de perguntarem direta-
palavras pelas 'quais eu ansiava, com todas as brilhantes oportuni-
mente: Como é a sensação de ser um problema?, dizem: Na minha
dades que encerravam, eram deles e não minhas. Mas eles não hão
cidade, conheço um excelente homem de cor; ou: Também lutei em
de guardar essas recompensas, eu disse; algumas, todas, eu as arran-
Mechanicsville;' ou: Esses ultrajes no Sul não fazem seu sangue
caria das mãos. De que maneira exatamente isto seria feito, nunca
ferver? Eu então sorrio, ou me interesso, ou reduzo o calor da mi-
pude decidir: talvez interpretando as leis, ou curando os doentes,
nha raiva, conforme a ocasião. Quanto à pergunta real: Como é a
ou contando as maravilhosas lendas que pairavam em minha mente
sensação de ser um problema?, raramente respondo uma palavra
- de algum jeito. Com os outros meninos negros, a luta não era
sequer.
tão furiosamente ensolarada: a juventude deles encolhia-se em in-
, no entanto, ser um problema é uma experiência estranha _
sossa adulação, em silencioso ódio do mundo pálido à sua volta ou
até mesmo para alguém que jamais foi outra coisa, a não ser talvez
em irônica desconfiança de tudo o que fosse branco. Ou perdia-se
na primeira infância, ou na Europa. É nos primeiros dias da in-
em um grito amargo: Por que Deus fez de mim um pária e um es-
quieta meninice que a revelação surge subitamente, de uma só vez,
tranho na minha própria casa? As trevas da prisão fechavam-se em
por assim dizer. Lembro-me
1,1
bem de quandoa
de mim. Eu era uma coisinha de nada, lá longe nas colinas da
--
sombra tomou con-
torno de todos nós: paredes apertadas
simos, mas implacavelmente
e refratárias para os alvís-
estreitas, altas e incomensuráveis para
os filhos da noite, que deveriam labutar sempre e mais no escuro,
11,11.1111,\d,\ Guerra Civil cravada na Virgínia, a 26 de junho de 1862, nas proximi-
./,1./'" .1,1 ('1.1,).1.' de Mcchanicsville. resignados, ou esmurrar a pedra com suas débeis mãos, ou então

53
com perseverança, à beira do desânimo, contemplar lá em cima no
do negro adeja no conto de Etiópia, a Sombria, e do Egito, a Esfm-
céu a faixa de azul.
ge. Ao longo da história, supremacias isoladas de homens negros
epois do egípcio e do indiano, do grego e do romano, do
cintilam aqui e ali, como estrelas cadentes, e morrem às vezes antes
teu tão e do mongol, o negro é uma espécie de sétimo filho, nascido
que o mundo tenha avaliado corretamente o seu brilho. Aqui na
com um véu e aquinhoado com uma visão de segundo grau neste
América, nos breves dias desde a Libertação, a agitação do Negro,
mundo americano -, um mundo que não lhe concede uma verda-
em muitos esforços hesitantes e duvidosos, tem feito muitas vezes
deira consciência de si, mas que apenas lhe permite ver-se por meio
com que a sua própria força perca a eficácia, dando a impressão de
da revelação do outro mundo. É uma sensação estranha, essa cons-
ausência de energia ou fraqueza. E no entanto não é fraqueza -, é
ciência dupla, essa sensação de estar sempre a se olhar com os
a contradição de objetivos duplos. A luta de objetivos duplos do
olhos de outros, de medir sua própria alma pela medida de um
artesão negro - por um lado, escapar do desprezo que sentem os
mundo que continua a mirá-lo com divertido desprezo e piedade.
brancos para com uma nação de meros lenhadores e aguadeiros,
E sempre a sentir sua duplicidade - americano, e Negro: duas
por outro arar e pôr pregos e cavar a terra para uma horda faminta
almas, dois pensamentos, dois esforços irreconciliados; dois ideais
- só poderia resultar em fazer dele um pobre artífice, pois ele tem
que se combatem em um corpo escuro cuja força obstinada unica-
"apenas metade do coração em cada uma dessas causas. Em razão da
mente impede que se destroce.
pobreza e ignorância do seu povo, o sacerdote e o médico negro
A história do Negro americano é a história desta luta - este
foram tentados pelo charlatanismo e pela demagogia; em razão da
anseio por atingir a humanidade consciente, por fundir sua dupla
crítica do outro mundo, por ideais que o envergonharam de suas
individualidade em um eu melhor e mais verdadeiro. Nessa fusão,
tarefas humildes. O pretenso savant negro foi confrontado pelo pa-
ele não deseja que uma ou outra de suas antigas individualidades se
radoxo de que o conhecimento de que seu povo necessitava já não
percam. Ele não africanizaria a América, porque a América tem
era nenhuma novidade para seus vizinhos brancos, enquanto o co-
muitíssimas coisas a ensinar ao mundo e à África. Tampouco des-
nhecimento ministrado ao mundo branco era como grego para os
botaria sua alma negra numa torrente de americanismo branco,
do seu povo. O amor inato pela harmonia e pela beleza que levou
porque sabe que o sangue negro tem uma mensagem para o mun-
as almas rudes do seu povo a dançar e a cantar não trouxe senão
do. Ele simplesmente deseja que alguém possa ser ao mesmo tem-
confusão e dúvida à alma do artista negro; pois a beleza que lhe foi
po Negro e americano sem ser amaldiçoado e cuspido por seus
revelada era a beleza da alma de uma raça que o público mais am-
camaradas, sem ter as portas da Oportunidade brutalmente bati-
plo desprezava, e ele não podia articular a mensagem de nenhum
das na cara.
outro povo. Esse desperdício de objetivos duplos, essa busca da
Este, então, é o propósito da sua luta: ser um colaborador no
satisfação de dois ideais irreconciliáveis, forjou uma triste devasta-
reino da cultura, escapar da morte e do isolamento, administrar e
ção na coragem, na fé e nas atitudes de dez milhões de pessoas,
li! ilizar o melhor da sua potência e do seu gênio latente. Tais pode-
levando-as com freqüência a cultuar falsos deuses e a invocar falsos
li" do corpo c da mente foram, no passado, estranhamente perdi-
meios de salvação, parecendo, às vezes, até torná-Ias envergonhadas
.11)'_ dl'sharatados ou esquecidos. A sombra de um poderoso passa-
de si próprias.

55
 No passado, nos dias do cativeiro, eles pensavam ver num certo pontamento ainda mais amargo porque o ideal inalcançado era
acontecimento divino o fim de toda dúvida e desapontamento; irrealizável, exceto para a ignorância simples de um povo humilde.
poucos homens jamais adoraram a Liberdade com metade da fé A primeira década foi apenas um prolongamento da procura vã
inquestionável sentida pelo Negro americano durante dois séculos. da liberdade, a bênção que parecia sempre esquivar-se do seu alcan-
Para ele, na medida em que pensava e sonhava, a escravidão era ce - como um torturante fogo-fátuo, enlouquecendo e enganan-
realmente a soma de todas as vilanias, a causa de todo sofrimento, do a multidão desnorteada. O holocausto da guerra, os terrores da
a raiz de todo preconceito; a Libertação seria a chave para uma Ku K1ux K1an,2 as mentiras dos carpet-baggers,3 a desorganização da
terra prometida de beleza mais doce do que aquela que se estende- indústria e os contraditórios conselhos de amigos e inimigos, dei-
ra ante os olhos de exaustos Israelitas. Nas canções e exortações xaram o transtornado servo sem qualquer palavra de ordem além
expandia-se um refrão - Liberdade; em suas lágrimas e maldi- do antigo grito de liberdade. À medida que o tempo passava, entre-
ções, o Deus a quem ele implorava tinha a Liberdade na mão direi- tanto, ele começou a agarrar-se a uma nova idéia. O ideal de liber-
ta. Finalmente, ela chegou - repentina, temerosa, como um so- dade exigia para a sua realização meios convincentes e, estes, a
nho. Com um selvagem carnaval de sangue e paixão veio a Fifteenth Amendm'4'1he
.,-
dava. (]) voto, que anteriormente vislumbra-
mensagem em suas próprias cadências queixosas: ra como um sinal visível de liberdade, ele agora considerava como o
principal meio de conquistar e aperfeiçoar a liberdade que a guerra
Gritem, oh crianças! lhe havia parcialmente proporcionado. E por que não? Os votos
Gritem, vocês estão livres! não tinham trazido a guerra e emancipado milhões? Os votos não
Pois Deus comprou sua liberdade! haviam dado ao liberto o direito à cidadania? Existiria alguma coi-
sa impossível diante de um poder assim tão amplo? Um milhão de
Desde então, anos já se passaram - dez, vinte, quarenta; qua- homens negros começou com zelo renovado a votar em si mesmos,
renta anos de vida nacional, quarenta anos de renovação e desen- para entrarem no reino. Assim a década se passou e veio a revolu-
volvimento e, contudo, o escuro espectro continua a sentar-se em
Sociedade secreta organizada no Sul dos EUA ao final da Guerra Civil (J 865),
seu lugar de costume, na festa da Nação. Em vão bradamos diante com o objetivo de reafirmar a "supremacia da raça branca" por meio de métodos
deste problema, o nosso mais abrangente problema social: terroristas. O nome completo da organização é Cavaleiros da Ku Klux Klan. A
sociedade original foi dissolvida, sendo reativada na Geórgia, nos mesmos mol-
des, em 1915. Ler a respeito: Behind lhe Mask oj Chivalry: The Making oj lhe Second Ku
Assuma qualquer forma porém não esta, e meus nervos firmes Klux Klan, de Nancy MacLean. Nova York/ Oxford: Oxford University Press,
Jamais hão de tremer! 1994.
Nortistas que foram para o Sul após a Guerra Civil, em busca de vantagens
políticas e econômicas.
 Nação ainda não se libertou dos seus pecados; o liberto ain- 15~ Emenda. Foram as seguintes as emendas à Constituição referentes à popula-
d,1 11;10 encontrou na liberdade a sua terra prometida. O que quer ção negra, nos anos subseqüentes à Guerra Civil:
1865: 13" Emenda, proibindo a escravidão.
dI' hl1111 que lenha vindo nesses anos de mudança, a sombra de um 1868: 14" Emenda, concedendo direitos de cidadania aos libertos.
11I1l(lllldo dcsaponramento paira sobre o povo negro - um desa- 1870: 15" Emenda, destinada a proteger os direitos eleitorais dos libertos.

10 57
 si uma tênue revelação do seu poder, da sua missão. Começou a ter
ç\io de 1876, deixando o servo cansado e semilivre.i perplexo, mas
um vago sentimento de que, para conseguir seu lugar no mundo,
ainda inspirado. Lenta porém firme, nos anos seguintes, uma nova
teria que ser ele mesmo e não um outro. Pela primeira vez procurou
visão começou gradualmente a substituir o sonho de poder políti-
analisar o fardo que trazia às costas, aquele peso morto de degra-
co - um movimento forte, a ascensão de um outro ideal a orientar
dação social parcialmente mascarado por um mal-esclarecido pro-
os desnorteados, uma outra coluna de fogo à noite, após um dia
blema negro. Sentiu sua pobreza: sem um centavo, sem lar, sem
escuro. Era o ideal da "sabedoria dos livros"; a curiosidade, nascida
terra, ferramentas ou economias, entrara em competição com os
da ignorância compulsória, de conhecer e testar o poder das letras
ricos, os proprietários, os bem-preparados. Ser pobre é duro, mas
cabalísticas do homem branco, o anseio de saber. Aqui, finalmente,
ser uma raça pobre numa terra de dólares é a dureza mais extrema.
parecia ter sido descoberta a trilha da montanha que levava a
Sentiu o peso da sua ignorância - não simplesmente das letras,
Canaã; mais longa do que a estrada da Libertação e da lei, íngreme
mas da vida, dos negócios, das humanidades; a indolência acumu-
e acidentada mas reta, conduzindo às alturas elevadas o bastante
lada, os subterfúgios e a falta de jeito de décadas e de séculos alge-
para se dominar a vida.
mavam-lhe as mãos e os pés. E seu fardo não eram só a pobreza e a
Trilha acima, a guarda dianteira labutou lenta, pesada, obstina-
ignorância. A mancha rubra da bastardia, que dois séculos de siste-
damente. Só aqueles que observaram e guiaram os pés inseguros, as
mático aviltamento legal das mulheres negras haviam estampado
mentes nebulosas, a compreensão lerda dos alunos escuros dessas
em sua raça, não significava apenas a perda da antiga castidade afri-
escolas sabem com que fé, com que dificuldade este povo lutou
cana, mas também o peso hereditário de uma massa de corrupção
para aprender. Era um trabalho exaustivo. O frio estatístico regis-
de adúlteros brancos, ameaçando até mesmo aniquilar o lar negro.
trou as polegadas de progresso aqui e ali, anotou também onde,
A um povo assim prejudicado não se deveria pedir que compe-
aqui e ali, um pé escorregara ou alguém havia caído. Para os cansa-
tisse com o mundo, mas sim permitir-lhe que dispusesse de todo o
dos alpinistas, o horizonte continuava escuro, as névoas eram mui-
tempo e energia mental para tratar dos seus próprios problemas
tas vezes-frias, Canaã permanecia sempre obscura e longínqua. Se,
sociais. Mas, ai! enquanto os sociólogos listam com júbilo, na po-
no entanto, as paisagens não mostravam ainda qualquer meta,
pulação de cor, os bastardos e as prostitutas, o Negro suarento,
qualquer lugar de descanso, pouca coisa além de lisonjas e de críti-
exaurido de trabalho, tem sua própria alma escurecida pela sombra
cas, a jornada ao menos dava ensejo à reflexão e ao auto-exame; ela
de um profundo desespero. Os homens chamam essa sombra de
transformou o filho da Libertação no jovem de nascente consciên-
preconceito, explicando-o em termos eruditos como a defesa natu-
cia, conhecimento e respeito por si mesmo. Nas sombrias florestas
ral da cultura contra o barbarismo, do saber contra a ignorância, da
de seus esforços, a própria alma elevou-se à sua frente e ele se viu na
pureza contra o crime, das raças "superiores" contra as "inferio-
escuridão, como que através de um véu; no entanto, ele avistou em
res". Então o negro exclama "Amém!" e jura que, enquanto esse

Du Bois refere-se, aqui, ao final da "Radical Reconstruction" e à crescente hege-

estranho preconceito basear-se na justa homenagem à civilização, à
monia de uma política racial conservadora. Os direitos civis dos negros, con- cultura, à retidão e ao progresso, ele humildemente curvará a cabe-
quistados com as Emendas 14 e 15 à Constiruição (ver nota anterior) seriam
ça, obedecendo com mansidão. Porém, diante desse preconceito
gradualmente suprimidos.

59
58
 sem nome que salta à frente de tudo, ele permanece desamparado, com os questionamentos vãos. Os brilhantes ideais do passado -
sobressaltado e quase sem fala; diante do desrespeito e da zombaria a liberdade física, o poder político, a instrução do cérebro e o trei-
à sua pessoa, do escárnio e da humilhação sistemática, da distorção namento das mãos - todos sucessivamente tiveram a sua hora, até
dos fatos e das mentiras desabridas, da ignorância cínica do melhor mesmo esse último torna-se obscuro e sombrio. Serão todos eles
e da ruidosa acolhida do pior, do onipresente desejo de inculcar o errados - todos falsos? Não, não é isso, mas cada um deles por si
desdém por tudo o que seja negro, de Toussaint" ao demônio-, só era simples e incompleto demais - sonhos da infância crédula
diante de tudo isso levanta-se um desespero nauseante que desar- de uma raça, ou fantasias diletas do outro mundo que não conhece
maria e desanimaria qualquer nação, exceto aquelas multidões ne- e não deseja conhecer o nosso poder. Para dizer a verdade, todos
gras para quem "desânimo" é uma palavra que não existe. esses ideais devem ser derretidos e fundidos em um só. Da instru-
Mas enfrentar um preconceito assim tão extenso só poderia tra- ção das escolas, precisamos hoje mais do que nunca - do treina-
zer o inevitável autoquestionamento, o descrédito de si e o rebaixa- mento de mãos aptas, de olhos e ouvidos mais apurados e, sobretu-
mento dos ideais que sempre acompanham a repressão e germinam do, da cultura mais ampla, mais profunda, mais elevada, de mentes
em uma atmosfera de desprezo e de ódio. Sussurros e presságios dotadas e corações puros. Quanto ao poder do voto, necessitamos
chegaram, vindos dos quatro ventos: Vejam só! Estamos enfermos dele somente por uma questão de autodefesa - de outro modo, o
e moribundos, gritaram as multidões negras; não sabemos escrever, que nos salvará de uma segunda escravidão? A Liberdade também,
nosso voto é inútil; que necessidade temos de educação, uma vez aquela por que tanto esperamos e ainda buscamos - a liberdade
que só temos de cozinhar e servir? E a Nação fez eco e reforçou da vida e do corpo, a liberdade de trabalhar e pensar, a liberdade de
essa auto crítica, dizendo: Contentem-se em servir, e mais nada. amar e aspirar. Trabalho, cultura, liberdade - precisamos de to-
Qual a necessidade de educação para semi-homens? Abaixo o voto dos, não separadamente mas todos juntos, não sucessivamente mas
do negro, à força ou pela fraude - e contemplem o suicídio de em conjunto, todos crescendo e ajudando-se mutuamente, todos
\ uma raça! No entanto, do mal veio algo de bom - o ajustamento empenhando-se em prol desse ideal mais amplo que paira diante
mais cuidadoso da educação à vida real, a percepção mais clara das do povo negro, o ideal da fraternidade humana, adquirida por
responsabilidades sociais dos Negros e a sóbria compreensão do meio do ideal unificador da Raça; o ideal de criar e desenvolver os
\ significado do progresso. traços e os talentos do Negro, não em oposição ou com desprezo a
Assim raiou o dia do Sturm und Drang: a tempestade e a tensão outras raças, mas em ampla conformidade com os ideais maiores
hoje embalam nosso pequeno barco, nas águas enlouquecidas do da República americana, a fim de que um dia, no solo americano,
mar do mundo; dentro e fora, o som do conflito, o sacrifício do duas raças mundiais possam outorgar-se reciprocamente aquelas
corpo e a entrega da alma; a inspiração bate-se com a dúvida, e a fé características de que ambas tão tristemente carecem. Nós, os escu-
ros, não chegamos nem mesmo agora de mãos totalmente vazias:
Referência a Pierre Dominique Toussaint I'Ouverture (1743 - 1803): liberta- não existem hoje maiores exponentes do autêntico espírito huma-
dor e herói negro do Haiti, governou o país entre 1801 e 1802. Foi, assim,
fundada uma república negra no Novo Mundo - fonte de terror, durante o no da Declaração de Independência do que os Negros americanos;
século XIX, para os escravistas do continente. não existe música americana verdadeira a não ser as selvagens, as

60 61
doces melodias do escravo negro; os contos de fadas e o folclore II

americanos são indígenas e africanos; e, afinal, nós, homens negros,

parecemos ser o único oásis de fé sincera e reverência em um poei-
Sobre a Aurora da !J3erdade
rento deserto de dólares e de espertezas. A América ficará mais
pobre se substituir seus erros brutais e mal digeridos pela humilda-
de negra, leve de coração porém determinada? Ou seu espírito
Descuidado parece ser o grande Vingador;
grosseiro e cruel pelo bom humor amoroso e jovial? Ou sua música As lições da história apenas registram
vulgar pela alma das Sorrow Songs? Um golpe mortal desferido no escuro
Entre velhos sistemas e o Verbo;
O Problema Negro é apenas um teste concreto dos princípios A verdade sempre no patíbulo,
subjacentes desta grande república, e a luta espiritual dos filhos O erro sempre no trono;
dos libertos é o trabalho de almas cujo fardo está quase além da Contudo, esse patíbulo domina o futuro,
E atrás do turvo desconhecido
medida de suas forças, mas que o carregam em nome de uma raça Está Deus, oculto nas sombras,
histórica, em nome desta terra dos pais de seus pais e em nome da dando pelo que Lhe pertence.
LOWELL1
oportunidade humana.
E agora, o que esbocei brevemente em largos traços, permitam-
me recontar de muitas maneiras nas páginas que se seguem, com
carinhosa insistência e detalhes mais precisos, para que os homens
possam prestar atenção à luta que se trava nas almas da gente negra.

James Russell Lowell (1819 - 1891): poeta, ensaísta e diplomata. Interessou-se

pela produção cultural dos negros nos Estados Unidos. Incentivou, por exem-
plo, a literatura de Paul Laurence Dunbar, Ou Bois o homenageia, citando-o em
epígrafe.

h

O problema
relação das raças mais escuras com as raças mais claras na
tensificar as dificuldades; e as Emendas da Guerra'' configuraram
os problemas dos Negros de hoje.
O objetivo deste ensaio é estudar o período da história de 1861
a 1872 no que se refere ao Negro americano. Na verdade, esta
narrativa da aurora da Liberdade é um relato do governo de ho-
mens chamados Freedmen's Bureau [Serviço de Libertos J,4 uma
das tentativas mais singulares e interessantes feitas por uma grande
nação para atacar amplos problemas de raça e de condição social.
A guerra nada tem a ver com os escravos, bradavam o Congres-
so, o Presidente e a Nação; no entanto, logo que os exércitos, do
Leste e do Oeste, entraram na Virgínia e no Tennessee, escravos
do século XX é o problema
da barreira racial- a
fugitivos
quando
apareceram
as fogueiras trêmulas
entre suas fileiras. Vinham
dos acampamentos
durante
brilhavam como
a noite,

Ásia e na África, na América e nas ilhas oceânicas. Foi uma fase

desse problema que causou a Guerra Civil; e, por mais que aqueles
que marcharam rumo ao Sul ou ao Norte em 1861 possam ter-se
fixado em pontos técnicos de união e de autonomia local como Decerto a mais importante foi a Proclamação da Emancipação, lançada em cará-
frases de efeito, eles todos sabiam, como nós sabemos, que a ques- ter preliminar a 22 de setembro de 1862, e que continha os seguintes trechos:
"Que no dia 1.0 de janeiro de 1863 todas as pessoas mantidas como escravas
tão da escravidão negra foi a causa real do conflito. Assim, curiosa-
dentro de qualquer estado ou de uma designada parte de um estado, cujo povo
mente, essa questão mais profunda sempre vinha à tona apesar do estivesse em rebelião conrra os Estados Unidos, fossem, dessa data em diante, e
esforço e dos desmentidos. Mal haviam os exércitos do Norte to- para sempre, livres; e o governo executivo dos Estados Unidos, incluindo sua auto-
ridade militar e naval, reconhecerá e manterá a liberdade dessas pessoas e não fará
cado o solo do Sul, a velha pergunta, sob novos disfarces, brotou
ato ou atos com qualquer fim de reprimir-lhes os esforços para obter sua verdadei-
da terra: o que será feito com os Negros? Os peremptórios coman- ra liberdade:'

dos militares, em todas as direções, não podiam responder a essa [...] E declaro mais e faço saber que tais pessoas de condição apropriada serão
recebidas nos serviços armados dos Estados Unidos, a fim de guarnecer fortes,
indagação; a Proclamação da Libertação+ só parecia expandir e in- posições, postos e outros lugares, e tripular navios de todos os tipos nos ditos
serviços:'
Com a crescente necessidade de convocar soldados negros para reforçarem as Apud Documentos históricos dos Estados Unidos. Harold C. Syrett (org.). São Paulo:
rropas do Norte contra o' Sul conflagrado e pressionado pelos aboliciorustas Editora Cultrix (rrad. Octavio Mendes Cajado), P: 220.
radicais do Republican Parry, o presidente Lincoln abandonou os projetos de Agência federal criada ao [mal da Guerra Civil para promover o estabelecimento
emigração que chegara a entreter para a população negra do país, proclamando, e a integração social dos escravos emancipados (cerca de quarro milhões, em
a partir do ano-novo de 1863, a emancipação dos escravos nos estados rebeldes. 1865). O nome completo da instituição era U.S. Bureau ofRefugees, Freedmen,
A respeito, ver Lincoln e os Estados Unidos: de K. C. Wheare. Rio de Janeiro: and Abandoned Lands. Oficializado pelo Congresso em 1865, após três anos
• "ahar, 1963. (trad. Waltensir Durra); Abraham Lincoln. Os anos da pradaria, os anos da de /obbying por parte de abolicionistas como Samuel G. Howe e McKim, o
.!I"ma, de Carl Sandburg. Belo Horizonte: 1tatiaia, 1965, (trad. Oscar Mendes); Freedmen's Bureau logo se tornou um elemento essencial nos esforços do Norte
II//rol" (biografia romanceada), de Gore Vidal. Grã-Bretanha: Grafton Books, para reconstruir a vida do Sul. Du Bois discute extensivamente os sucessos e
!IJHS. fracassos do Bureau no capítulo VI.

('I
65
grandes estrelas incertas, ao longo do horizonte negro: anciãos rio Cameron/ ao final de 1861; "e, como tal. é óbvio que não de-
magros de cabelos brancos desgrenhados; mulheres de olhos assus- vem ser devolvidos ao inimigo." Assim, pouco a pouco, o tom dos
tados, arrastando crianças desnutridas e chorosas; rapazes e meni- comandantes militares mudou; o Congresso proibiu a devolução
nas, resolutos e esquálidos - uma horda de vagabundos famintos, dos fugitivos, e os "contrabandos" de Butler foram bem-vindos
sem lar, desamparados e deploráveis em sua escura desgraça. Dois como operários militares. Isso complicava ainda mais o problema,
modos de tratar esses recém-chegados pareceram igualmente lógi- pois agora os fugitivos espalhados tornavam-se uma correnteza
cos a tipos opostos de mentalidade. Ben Butler, na Virgínia, rapida- persistente que jorrava cada vez mais forte, à medida que os exérci-
mente declarou que a propriedade escrava era contrabando de tos marchavam.
guerra e pôs os fugitivos para trabalhar; enquanto Fremont, em Então o homem de rosto longo, com a preocupação esculpida
Missouri, declarou os escravos livres sob lei marcial. Aprovou-se a na face, que se sentava à Casa Branca, percebeu o inevitável e eman-
iniciativa de Butler, mas Frernont foi rapidamente contestado e seu cipou os escravos dos rebeldes no ano-novo de 1863. Um mês
sucessor, Halleck, viu as coisas de maneira diferente.f "Daqui em mais tarde, o Congresso convocava com urgência soldados negros,
diante", ordenou, "os escravos não poderão de modo algum ser cujo alistamento havia sido permitido com certa relutância pelo
admitidos em nossas fileiras; se chegarem inadvertidamente, quan- decreto de julho de 1862. Assim, as barreiras foram derrubadas ea
do reclamados por seus proprietários, a eles serão devolvidos:' Tal ação se fez. A correnteza de fugitivos transformara-se em uma
política foi difícil de implantar: alguns dos refugiados negros dizi- inundação, e os oficiais do exército continuavam a perguntar, an-
am-se libertos, outros revelavam que seus senhores os haviam aban- siosos: "O que deve ser feito com os escravos que chegam quase
donado, e outros ainda eram capturados em fortes e plantações. todos os dias? Devemos fornecer comida e abrigo para as mulheres
Evidentemente, os escravos eram por outro lado uma fonte de for- e as crianças?"
ça para a Confederação" e estavam sendo usados como operários e Foi um certo Pierce, de Boston, quem mostrou o caminho, tor-
artífices. "Eles constituem uma reserva militar", escreveu o secretá- nando-se assim, em certo sentido, o fundador do Freedmen's
Bureau. Ele era muito amigo do secretário Chase, e quando, em
General Benjamin Franklin Bucler (1818-1893): líder político e militar, com- 1861, a responsabilidade do cuidado dos escravos e das terras
bateu pela União na Guerra Civil.
abandonadas caiu sobre os oficiais do Tesouro, Pierce foi especial-
John Charles Frémont (1813-UI90): líder militar na Guerra do México
(1846-1848). foi explorador do Oeste e candidato presidencial em 1856. mente destacado para estudar a situação. Em primeiro lugar, cui-
Henry W(ager) Halleck (1815-1872): oficial militar. lutou na guerra contra dou dos refugiados em Fortress Monroe; depois, após a captura de
o México (1846) e na Guerra Civil. Foi consultor militar de Lincoln e coman-
Hilton Head por Sherrnan, Pierce foi para lá enviado a fim de
dou as tropas da União entre 1862 e 1864. quando foi substituído por Grant.
A Confederação. ou Estados Confederados. era formada por onze estados sulis- implementar sua Experiência de Port Royal, que era transformar
tas - os "estados rebeldes" - que se separaram dos Estados Unidos em
1860-1861, por ocasião da primeira eleição e posse de Abraharn Lincoln, após
sua campanha presidencial ostensivamente antiescravista. Eram eles: Alabama, Simon Cameron (1799-1889): importante líder político da Pensilvânia, foi
AI k.1I1S;IS. Flórida, Geórgia. Louisiana, Mississippi, Carolina do Norte. Caroli- senador. secretário de guerra durante a Guerra Civil e ministro dos Estados
11.1 do Sul. Tcnncssee, Texas e Virgínia. Unidos na Rússia,

"I>
67
escravos em trabalhadores livres.' Antes mesmo que esta se concre- E a cada dia, também, parecia mais claro que esse não era um
tizasse, porém, o problema dos fugitivos assumira tais proporções problema normal de ajuda temporária, mas uma crise nacional;
que Coi tirado das mãos do sobrecarregado Departamento do Te- pois aqui despontava um problema de mão-de-obra de grandes di-
souro e entregue aos oficiais do Exército. Centros para receber mensões. Multidões de Negros permaneciam ociosas ou, quando
as multidões de libertos já se formavam em Fortress Monroe, trabalhavam, não sabiam ao certo se receberiam pagamento; e, se
Washington, Nova Orleães, Vicksburg e Corinth, em Columbus, eram remuneradas, esbanjavam sem pensar aquela coisa nova, o di-
no Kentucky, e Cairo, em Illinois, assim como em Port Royal. Ca- nheiro, irrefletidamente. Dessa maneira e de várias outras, a vida de
pelães do exército encontravam ali campos novos e frutíferos; mul- ,lcampamento e a nova liberdade desmoralizavam o liberto. A orga-
tiplicavam-se os "superintendentes de contrabando" e algumas nização econômica mais ampla que se mostrava, portanto, clara-
tentativas de trabalho sistemático foram feitas, alistando-se os ho- mente indispensável despontava aqui e ali, conforme o acaso e as
mens mais fortes e dando-se tarefas aos outros. condições locais determinassem. Foi então que o plano Port Royal
Vieram então as associações de Auxílio aos Libertos, nascidas de Pierce, de plantações arrendadas e de trabalhadores orientados,
dos tocantes apelos de Pierce e desses outros centros de infortúnio. mostrou o áspero caminho que havia à frente. Em Washington o
Surgiu a American Missionary Association, nascida do Amistad e governador militar, diante do apelo urgente do superintendente,
agora suficientemente grande para funcionar; surgiram as várias cedeu propriedades confiscadas para serem cultivadas pelos fugiti-
organizações eclesiásticas, a National Freedmen's Relief Associa- vos e lá, à sombra da cúpula, formaram-se aldeias rurais negras. O
tion, a American Freedmen's Union, a Western Freedmen's Aid general Dix cedeu propriedades para os libertos de Fortress
Commission - no total, cinqüenta ou mais organizações ativas Monroe e assim por diante, no Sul e no Oeste. O governo e as
que enviavam roupas, dinheiro, livros escolares e professores para o sociedades benemerentes forneciam os meios de cultivo, e mais
Sul. Tudo o que faziam mostrava-se necessário, pois a pobreza dos uma vez o Negro voltou, lentamente, a trabalhar. Os sistemas de
libertos era freqüentemente descrita como "estarrecedora além da controle iniciados dessa maneira logo se transformaram, em vários
imaginação", e a situação a cada dia piorava em vez de melhorar. locais, em pequenos governos estranhos. Como o do general
Banks, na Louisiana, com seus noventa mil habitantes negros, cin-
Salmon P( orcland) Chase (1808-J 873): líder político e jurista. Secretário do qüenta mil trabalhadores e um orçamento anual de mais de cem
Tesouro (1861-1864) e presidente do Supremo Tribunal dos Estados Unidos
mil dólares, preenchendo quatro mil folhas de pagamento por ano,
(1864-1873).
WiUiam Tecumseh Sherman (1820 - 1891): comandante das tropas da além de registrar todos os libertos, investigar e reparar queixas,
União na Guerra Civil, foi articulador de grandes vitórias através da Geórgia e impor e coletar impostos e instalar um sistema de escolas públicas.
das Carolinas nos anos finais da guerra.
Assim, também, o coronel Eaton, superintendente do Tennessee e
Experiência de Port Royal: em 1861, as grandes plantações de Port Royal, na
Cnrolina do Sul, foram submetidas a controle federal. Em suas terras, fez-se de Arkansas, governava cem mil libertos, arrendava e cultivava sete
lIm.' experiência de trabalho livre sob o encargo e supervisão de ex-escravos. O
mil acres de plantações de algodão e alimentava dez mil indigentes
cmprccndimcmo roi bem-sucedido enquanto os negros livres supuseranl que
VII 1.1111 ,I se rornar proprietários das terras. Após a Guerra Civil, porém, a terra
por ano. Na Carolina do Sul estava o general Saxton, com seu pro-
,1\,II"'l1 por ser devolvida aos antigos donos. fundo interesse pela gente negra. Sucessor de Pierce e dos funcio-

(,X 69
nários do Tesouro, ele vendeu propriedades confiscadas, arrendou Il~limplementação de um plano abrangente e unificado para o tra-
plantações abandonadas, fomentou escolas e recebeu de Sherman, I.uncnto dos libertos, sob a direção de uma instituição que deveria
após a terrivelmente pitoresca marcha para o mar, milhares dos ser "encarregada do estudo de planos e da execução de medidas
desgraçados vivandeiros. para orientar com eficiência, e em todos os sentidos apoiar, de for-
Três coisas características na incursão militar de Sherman na ma judiciosa e humanitária, a passagem dos nossos pretos emanci-
Geórgia deram à nova situação um destaque sombrio: o Conquista- pados e ainda por emancipar, da velha condição de trabalho força-
dor, o Conquistado e o Negro. Alguns vêem todo o significado na do para a nova situação de trabalho voluntário".
fronte sinistra do destruidor, e outros nos amargos sofredores da Sem muito entusiasmo, foram dados alguns passos nessa dire-
Causa Perdida. Mas, na minha opinião, nem o soldado nem o fugi- ,-50, em parte colocando-se todo o problema novamente sob o en-
tivo falam com um sentido tão profundo quanto a nuvem humana e cargo dos agentes especiais do Tesouro. Leis de 1863 e 1864 ins-
escura que se agarrava, como o remorso, na retaguarda das colunas 1 ruíam-nos a tomar conta de terras abandonadas, arrendando-as
ágeis e que inchava às vezes, quase engolfando-as e sufocando-as, até por períodos que não excedessem doze meses, e a "promover em
alcançar metade do seu tamanho. Em vão eles eram mandados de tais arrendamentos, ou de algum outro modo, o trabalho e o bem-
volta, em vão arrancavam pontes debaixo de seus pés; eles se arrasta- estar geral" dos libertos. A maioria dos oficiais do exército saudou
vam e perambulavam, errantes, até que alcançaram e entraram em essa decisão como uma ótima maneira de livrar-se dos embaraço-
Savannah, uma horda nua e faminta de dezenas de milhares de pes- sos "negócios negros" e o secretário Fessenden," a 29 de julho de
soas. Despontou, também, a característica solução militar: "As ilhas 1864, lançou um excelente sistema de regulamentos, que mais tar-
ao sul de Charleston, as plantações de arroz abandonadas, trinta de foram seguidos de perto pelo general Howard.'" Sob a respon-
milhas ao longo dos rios até o mar, e os campos às margens do rio sabilidade de agentes do Tesouro, arrendaram-se grandes quantida-
St. John, na Flórida, estão reservados e isolados para o assentamento des de terra no Vale do Mississippi e muitos Negros conseguiram
de Negros agora libertados por decreto de guerra:' Assim se procla- empregos; mas, em agosto de 1864, os novos regulamentos foram
mava a celebrada "Ordem de Operações Número Quinze" . suspensos por razões de "política pública" e o exército novamente
Todas essas experiências, ordens e sistemas estavam fadados a
assumiu o controle.
atrair e a confundir o governo e a nação. Logo após a Proclamação
da Emancipação, o deputado Eliot apresentou um projeto de lei
criando um Serviço de Emancipação [Bureau of Emancipation]:
William Pitt Fessenden (1806-1869): senador pelo estado do Maine e secretá-
este, porém, nunca foi oficializado. No mês de junho, uma comis- rio do Tesouro no governo Lincoln, após a renúncia de Chase (1864-1865).
são de inquérito, designada pelo secretário de Guerra, expediu em Integrou o pequeno grupo de senadores do Norte que se opuseram à extensão
da escravidão nos territórios, e foi um dos líderes do movimento que resultou
(lVor de uma agência provisória para "benefício, proteção e empre-
na formação do Republican Parry. Foi dele o voto decisivo contra o impeacbment
go dos refugiados libertos", em linhas bastante semelhantes àque- do presidente Andrew Johnson em 1868.
1.1s seguidas mais tarde. Chegaram ao presidente Lincoln petições I() General Oliver O(tis) Howard (1830-1909): presidente do Freedmen's Bureau
e um dos responsáveis pela fundação da Howard University, em Wasbington,
dI' l"ld,ldãos c de organizações influentes, insistindo enfaticamente D.e. (1867), instituição que o homenageou adotando seu nome.

" 71
 Enquanto isso, o Congresso voltara sua atenção para o assunto; poderes assim outorgados, e a organização tornava-se permanente.
e, em março, a Casa aprovou, por maioria de dois, um projeto de lei ntretanto, o Senado revogou o projeto, e um novo comitê de reu-
estabelecendo uma agência para os Libertos no Departamento de niões foi designado. Este comitê expediu, a 28 de fevereiro, um
Guerra. Charles Sumner, II responsável pelo projeto no Senado, ar- novo projeto de lei que circulou rapidamente quando a sessão se
gumentou que os libertos e as terras abandonadas deveriam estar encerrava, e que se tornou o ato legislativo de 1865, estabelecendo
sob o mesmo departamento, e expediu um substitutivo ao projeto no Departamento de Guerra um "Serviço de Refugiados, Libertos
da Casa anexando a agência ao Departamento do Tesouro. Esse e Terras Abandonadas" [Bureau of Refugees, Freedmen, and
projeto foi aprovado, mas tarde demais para ser posto em prática Abandoned Lands J.
pela Casa. Os debates giraram em torno da política da administra- Este último acordo foi uma medida legislativa apressada, de
ção governamental e da questão geral da escravidão, sem tocar delineação vaga e incerta. Um Bureau foi criado "para continuar
muito de perto nos méritos específicos da medida em pauta. Teve durante a atual Guerra de Rebelião e por mais um ano, após o seu
lugar, então, a eleição nacional.V e o governo, obtendo do país um final." A ele foram atribuídos" a supervisão e a administração de
voto de renovada confiança, retomou a questão com maior serieda- todas as terras abandonadas e o controle dos assuntos relativos
de. Em uma reunião das duas seções do Congresso chegou-se a um aos refugiados e libertos", sob "as regras e os regulamentos que
acordo sobre uma medida cuidadosamente elaborada que continha sejam apresentados pela chefia do Bureau e aprovados pelo Pre-
as principais cláusulas do decreto de Sumner, mas que tornava a sidente". Um delegado, nomeado pelo presidente e pelo Sena-
organização proposta um departamento independente, tanto dos do, dirigiria o Bureau, com uma equipe de apoio que não deveria
funcionários da Guerra quanto do Tesouro. O decreto era conser- exceder a dez funcionários. O presidente também tinha por fun-
vador, conferindo ao novo departamento a "superintendência ge- ção designar delegados assistentes nos estados rebeldes, e para to-
ral de todos os libertos". Seu propósito era "estabelecer regula- das essas funções poderiam ser destacados oficiais militares, re-
mentos" para os libertos, protegê-Ios, arrendar-lhes terras, ajustar cebendo seu soldo habitual. O secretário de Guerra podia
seus salários e comparecer diante de tribunais civis e militares distribuir suprimentos, roupas e combustível para os indigentes, e
como seu "amigo íntimo". Havia muitas limitações quanto aos toda propriedade abandonada era colocada em mãos do Bureau,
para futuro arrendamento e venda a ex-escravos em lotes de
1I
Charles Sumner (1811-1874): líder político antiescravista e senador dos Esta-
dos Unidos (1851-1874). [ames Brewer Stewart escreveu a seu respeito: quarentas acres.
"...0 elegante senador Charler Sumner, famoso por sua eloqüência bombástica Assim, o governo dos Estados Unidos indiscutivelmente assu-
contra a escravidão e por seus ataques contra a segregação racial. 'Graças à
miu o encargo do Negro emancipado como o tutelado da nação.
escravidão', declarou ele certa vez no Senado, 'toda uma raça é entregue à prosti-
tuição c ao concubinaro, sem a proteção de qualquer lei: " In Ho/y wamors: The Foi um empreendimento extraordinário. Aqui, de uma só penada,
abo/'IIOIIlSISand Americall s/avtry. Nova York: Hill and Wang, 1976, P: 149. erigiu-se um governo de milhões de homens - homens nada co-
12
nu Bois refere-se à segunda eleição de Abraham Lincoln. Em seu segundo man-
muns, aliás, mas homens negros emasculados por um sistema de
d.uo presidencial, Lincoln (1809 - 1865) governaria apenas poucas semanas,
M'ndo .issassmado por John Wilkcs Booth, no Ford's Theatre, em Washington, a escravidão extremamente bem elaborado, de séculos de existência.
l'i ,k alurl de 1865. E agora, súbito, violentamente, eles ingressavam em novas prerro-

73
 examinar o campo de trabalho. Ele deparou-se com uma curiosa
gativas, numa época de guerra e de paixões, no meio da população confusão: pequenos despotismos, experiências comunistas, escravi-
abatida e amargurada de seus antigos senhores. Qualquer homem dão, peonagem, negociatas, caridade organizada, beneficência de-
teria hesitado antes de assumir a responsabilidade de tamanha tare- sorganizada - tudo isso desenrolando-se a pretexto de auxiliar os
fa, com suas amplas responsabilidades, seus poderes indefinidos e libertos, tudo isso sacralizado pela fumaça e pelo sangue da guerra,
recursos limitados. Provavelmente ninguém, a não ser um soldado, entre o praguejar e o silêncio de homens irados. A 19 de maio o
teria respondido de pronto a tal convocação; e, na verdade, nin- novo governo - pois era realmente um governo - promulgou a
guém a não ser um soldado poderia ser convocado, pois o Con- sua constituição; delegados seriam designados em cada um dos es-
gresso não destinara verba para salários e despesas. tados da secessão, e eles deveriam encarregar-se de "todos os as-
Menos de um mês após o falecimento do exaurido Libertador, suntos relativos aos refugiados e aos libertos", e qualquer auxílio,
seu sucessor':' designou o general-de-divisão Oliver O. Howard assim como suprimentos, só poderia ser dado com o seu assenti-
para a função de delegado do novo Bureau. Ele era um homem do mento. O Bureau estimulava a cooperação permanente com as as-
Maine, então com apenas trinta e cinco anos de idade. Marchara sociações beneficentes, e declarava: "Será objetivo de todos os de-
com Sherman para o mar, lutara em Gettysburg'" e, ainda no ano legados introduzir sistemas praticáveis de trabalho remunerado" e
anterior, tinha sido designado para o comando do Departamento fundar escolas. Imediatamente foram designados nove delegados
do Tennessee. Homem honesto, de uma crença demasiada na natu- assistentes. Estes deveriam seguir sem demora para seus campos de
reza humana, possuia pouca habilidade para negócios e para sutile- trabalho; buscar o fechamento gradual dos estabelecimentos de
zas de detalhes, e tivera grandes oportunidades de conhecer em caridade e tornar os indigentes responsáveis por sua própria sub-
primeira mão muito do trabalho que tinha diante de si. E, desse sistência; funcionar como tribunais de justiça onde esses não exis-
trabalho, tem-se dito com justeza que "nenhuma história minima- tissem, ou onde os Negros não fossem reconhecidos como livres;
mente correta da civilização poderá ser escrita sem colocar em rele- estabelecer a instituição do matrimônio entre ex-escravos e atua-
vo, como um dos grandes marcos do progresso político e social, a lizar registros; providenciar para que os libertos tivessem a liberda-
organização e a administração do Freedmen's Bureau," de de escolher seus patrões e ajudá-Ios a fazer contratos justos;
A 12 de maio de 1865, Howard foi nomeado; e assumiu as e, finalmente, a circular dizia: "A autêntica boa-fé que, conforme
funções de seu ofício prontamente, a 15 de maio, começando por esperamos, está em todos aqueles empenhados na extinção da es-
cravidão, ajudará especialmente os delegados assistentes no cum-
13 Andrew Johnson (1808-1875): 17. presidente dos Estados Unidos. Vice-presi-
0
primento de seus deveres para com os libertos, assim como na pro-
dente no segundo governo Lincoln, assumiu o mandato presidencial após o assas-
moção do bem-estar geral:'
sinato de Lincoln (1865), permanecendo no poder até 1869. Sofreu processo de
impeadnnent em 1868, sendo absolvido por margem de um voto (ver nota 9). Mal havia começado o trabalho, dando-se de algum modo par-
14 A batalha de Gettysburg, na Pensilvânia, foi uma vitória das forças da União tida no sistema geral e na organização local, surgiram duas grandes
contra o exército do general Robert Lee, em julho de 1863. Em novembro do
mesmo ano, Lincoln inaugurou o Cemitério Nacional Militar no campo em que dificuldades que mudaram bastante a teoria e os resultados do tra-
se travou a batalha, fazendo na ocasião o fan10so pronunciamento conhecido balho do Bureau. Em primeiro lugar, havia as terras abandonadas
como "Gettysburg Address",

75
74
do Sul. Havia muito tempo o Norte sustentava a teoria, mais ou mulheres destemidas e, após os estampidos roucos dos canhões,
menos explícita com clareza, de que os principais problemas da soava o ritmo do alfabeto. Eram ricas e pobres, sérias ou apenas
Libertação poderiam ser solucionados pelo assentamento dos es- curiosas. Privadas às vezes de um pai, outras de um irmão, às vezes
cravos nas terras confiscadas de seus senhores - uma espécie de com perdas ainda maiores, elas vinham em busca de uma vida de
justiça poética, diziam alguns. Mas essa poesia feita em solene pro- trabalho na implantação de escolas como as da Nova Inglaterra,
sa significava, ou o confisco em massa da propriedade privada no entre os brancos e os negros do Sul. E realizaram bem o seu traba-
Sul, ou amplas apropriações. Ora, o Congresso não se apoderara lho. Naquele primeiro ano, ensinaram a Cem mil almas, ou mais.
de um único centavo e, mal surgiram as proclamações de anistia Evidentemente, o Congresso devia voltar logo a legislar a res-
geral, os oitocentos mil acres de terras abandonadas nas mãos do peito do Bureau organizado tão às pressas e que, em seu rápido
Freedmens Bureau rapidamente desapareceram. A segunda dificul- crescimento, adquirira tanta importância e tamanhas possibilida-
dade estava em aperfeiçoar a organização local do Bureau por todo des. Uma instituição como aquela era quase tão difícil de encerrar
o vasto campo de trabalho. Criar uma nova máquina e designar quanto de iniciar. No início de 1866, o Congresso tratou da ques-
funcionários aptos e corretos para um grande trabalho de reforma tão quando o senador Trumbull, de Illinois, apresentou um projeto
social não é tarefa de criança; essa tarefa, além disso, tornava-se de lei visando a prolongar o Bureau e ampliar seus poderes. Essa
ainda mais difícil, pois uma nova organização central tinha de ade- medida, nas mãos do Congresso, mereceu discussão e atenção bem
quar-se a um sistema de assistência e controle dos ex-escravos já mais amplas do que sua ante cessara. A nuvem da guerra já se
existente, heterogêneo e confuso; e os agentes disponíveis para tal esgarçara o suficiente para viabilizar uma concepção mais clara do
trabalho deviam ser buscados em um exército ainda ocupado em trabalho da Libertação. Os campeões do projeto argumentavam
operações de guerra - homens que, pela própria natureza do caso, que o fortalecimento do Freedmen's Bureau ainda constituía uma
eram pouco indicados para um delicado trabalho social- ou en- necessidade militar; que ele era necessário para a implementação
tre os questionáveis vivandeiros a reboque das tropas invasoras. adequada da Thirteenth Amendment, 15 além de ser uma obra de absolu-
Assim, mesmo após um ano de esforços redobrados, o problema ta justiça para com o ex-escravo a um custo irrisório para o gover-
parecia ainda mais difícil de entender e resolver do que de início. no. Os antagonistas da medida declaravam que a guerra terminara
No entanto, três coisas bastante compensadoras foram realizadas e que a necessidade de medidas de guerra havia passado; que o
naquele ano de trabalho: ele aliviou uma enorme carga de sofri- Bureau, em razão de seus poderes extraordinários, era claramente
mento físico; levou sete mil fugitivos, egressos dos centros conges- inconstitucional em tempos de paz, e que estava destinado a irritar
tionados, de volta para o campo; e, o melhor de tudo, inaugurou a o Sul e a pauperizar o liberto, possivelmente a um custo final de
cruzada das escolas elementares da Nova Inglaterra. centenas de milhões de dólares. Os dois argumentOS seguintes não
Os anais dessa Nona Cruzada ainda estão por escrever - a foram respondidos: eram, na verdade, irrespondívcis: um deles, de
narrativa de uma missão que parecia à nossa época bem mais qui- que os poderes extraordinários do Bureau ameaçavam os direitos
xotesca do que a jornada de São Luís parecera à sua. Por trás das
névoas de saque e destruição ondulavam os vestidos simples de 15 Emenda 13 [Thirteenth Amendment]: ver nota 4, capítulo L

" 77
civis de todos os cidadãos; o outro, de que o governo devia ter o mente, não eram exercidos todo o tempo, nem em sua extensão

poder de fazer o que indiscutivelmente tinha que ser feito, e o mais ampla; no entanto, nas palavras do general Howard, "dificil-

abandono dos libertos significava, na prática, a sua reescravização. mente algum assunto a ser legislado na sociedade civil deixou, em

O projeto, que afinal foi aprovado, ampliava e tornava permanente algum momento, de exigir a ação desse Bureau excepcional:'

o Freedmen's Bureau. Ele foi prontamente vetado pelo Presidente Para compreender e criticar com inteligência um trabalho assim

Johnson como "inconstirucional", "desnecessário" e "extrajudi- tão abrangente, não se deve esquecer um só instante a direção dos

cial" e não conseguiu aprovação. Nesse meio-tempo, contudo, a acontecimentos, naquele final da década de 1860. Lee se rendera.!?

brecha entre o Congresso e o presidente começava a se ampliar, e Lincoln estava morto, e Johnson e o Congresso discordavam radi-

uma forma modificada do projeto perdido foi finalmente aprova- calmente; a Thirteenth Amendment fora adotada, a Fourteenth estava pen-

da, a despeito do segundo veto do presidente, a I 6 de julho. dente, e a Fifteenth seria posta em vigor em 1870.18 A guerrilha, essa

O decreto de 1866 deu ao Freedmen's Bureau a sua forma final eterna chama que tremula no pós-guerra, empenhava suas forças

- a forma pela qual ele seria conhecido pela posteridade e julgado contra os Negros, e todo o território do Sul despertava, como que

pelos homens. A medida estendia a existência do Bureau até julho de um sonho selvagem, para a pobreza e a sublevação social. Numa

de 1868; autorizava outros delegados assistentes, a contratação de época de calma e prosperidade, entre vizinhos de boa vontade, a

oficiais do exército dispensados do serviço regular, a venda aos ascensão social de quatro milhões de escravos a uma posição segura

libertos de certas terras confiscadas em termos nominais, a venda e autônoma no organismo político e econômico teria sido uma

de propriedade pública Confederada para o estabelecimento de es- tarefa hercúlea; mas, quando as dificuldades inerentes a uma opera-

colas para a população negra, e determinava um campo mais am- ção social tão bela e delicada tinham por acréscimo o despeito e o

plo de interpretação e competência judiciais. O governo do Sul ódio do conflito, o inferno da guerra; quando, por toda parte, esta-

não reconstruído'" foi, portanto, em grande parte colocado nas vam presentes a suspeita e a crueldade, e a esquálida Fome chorava

mãos do Freedmen's Bureau, especialmente porque agora, em mui- ao lado da Privação, nesse caso, o trabalho de qualquer instrumen-

tos casos, o comandante militar do departamento também assumia to de regeneração social estaria em grande parte condenado ao fra-

as funções de delegado assistente. Foi assim que o Freedmen's casso. O próprio nome do Bureau representava no Sul algo que,

Bureau tornou-se um governo plenamente desenvolvido. Ele fazia durante dois séculos, seus melhores homens haviam se recusado até

leis, executando-as e interpretando-as; impunha e recolhia impos- mesmo a discutir - que a vida entre Negros livres era simples-

tos, definia e punia crimes, mantinha e utilizava a força militar, mente impensável, a mais louca das experiências.

ditando medidas que considerava necessárias e adequadas para a Os agentes que o Bureau podia ter à sua disposição variavam
realização de suas variadas metas. Todos esses poderes, natural- bastante, de filantropos altruístas a tacanhos intrometidos e a Ia-

16 Ou Bois refere-se ao conturbado período da história norte-americana conhecido

como Reconstrução (1865-1877), quando os Estados Confederados derrota- 17 Robert E( dward) Lee (1807-1870): comandante das tropas confederadas du-
dos foram controlados pelo governo federal e forçados a modificar suas institui- rante a Guerra CiviL
ções políticas e sociais como exigência para a plena readmissão na União. 18 Sobre as Emendas à Constituição 13, 14 e 15, ver nota 4, capítulo I.

78 79
drões; na verdade, embora a média fosse bem melhor do que o vindouras - uma delas, um cavalheiro grisalho, cujos pais haviam
pior, era a mosca ocasional que ajudava a estragar o ungüento. [9 se comportado como homens e cujos filhos jaziam em túmulos
Enquanto isso, no meio de todos, acocorava-se o escravo liberto, anônimos; que se curvara aos males da escravidão porque a aboli
aturdido, entre amigos e inimigos. Ele havia emergido da escravidão ção desta ameaçava a todos com desgraças inenarráveis; que final-
- não a pior escravidão do mundo, não uma escravidão que tornas- mente, no crepúsculo da vida, tornara-se um vulto devastado e ar-
se toda a vida insuportável, uma escravidão que até tinha ocasional- ruinado, que trazia o ódio nos olhos; e a outra, uma imagem que
mente algo de bondade, de fidelidade, de felicidade -, mas mesmo pairava, escura e maternal, o terrível rosto enegrecido pela poeira
assim a escravidão que, quanto à aspiração e ao merecimento huma- de séculos, que anteriormente se acovardara diante das ordens do
nos, classificava no mesmo rol o homem negro e o boi. E o Negro senhor branco, que se curvara amorosamente sobre os berços dos
sabia muito bem que, quaisquer que fossem as suas convicções mais filhos e filhas desse senhor branco, e que fechara na morte os olhos
profundas, os homens do Sul tinham lutado com desesperada ener- fundos de sua esposa - sim, que também, a pedido dele, havia-se
gia para perpetuar essa escravidão sob a qual as massas negras, mal rebaixado à sua luxúria, trazendo ao mundo um filho de cor parda,
podendo articular seu pensamento, haviam-se contorcido e tremido. só para ver os membros do seu menino escuro lançados ao vento
Essas multidões saudaram a liberdade com um grito de júbilo. Re- por malfeitores errantes, que cavalgavam em perseguição aos "ne-
traíram-se diante do senhor, que ainda fazia esforços para recuperar gros malditos". Tais eram as visões mais tristes daqueles dias de
suas correntes e cadeias; correram em direção aos amigos que os pesar; e ninguém apertava as mãos daquelas duas figuras do passa-
tinham libertado, embora esses amigos estivessem prontos a usá-los do-presente que se iam; contudo, no ódio, elas foram embora; e, no
como arma para trazer o recalcitrante Sul de volta à lealdade. Dessa ódio, os filhos de seus filhos hoje vivem.
maneira, a clivagem entre o Sul branco e o Sul negro aumentava. É Tal era, portanto, o campo de trabalho do Freedmen's Bureau. E
irrelevante dizer que isso nunca deveria ter sucedido; foi tudo tão uma vez que, embora com certa hesitação, seu funcionamento per-
inevitável quanto lamentáveis foram as suas conseqüências. Elemen- sistiu até 1869 graças ao decreto de 1868, podemos considerar
tos curiosamente incongruentes degladiavam-se - de um lado, o como um todo os quatro anos de sua vigência. Existiam, em 1868,
Norte, o governo, os carpet baggers, e o escravo; do outro, todo o Sul novecentos funcionários do Bureau espalhados de Washington ao
que era branco, aristocrático ou vagabundo, homens honestos ou Texas, governando, direta ou indiretamente, muitos milhões de
velhacos, assassinos sem lei ou mártires do dever. homens. As iniciativas desses governantes enquadram-se principal-
Assim sendo, é duplamente difícil escrever com calma sobre mente em sete denominações: assistência ao sofrimento físico, su-
esse período, tão intenso era o sentimento, tão fortes as paixões pervisão da fase inicial do trabalho livre, compra e venda de terras,
humanas que estavam em jogo e cegavam os homens. Em tudo isto, estabelecimento de escolas, pagamento de subvenções, administra-
destacam-se duas figuras, emblemas daqueles dias para as épocas ção da justiça, e financiamento de todas essas atividades.
Até junho de 1869, mais de meio milhão de pacientes foi trata-
19 "A mosca morta corrompe o ungüento do perfumista, urna pitada de tolice do pelos médicos e cirurgiões do Bureau, e sessenta hospitais e
conta mais que muita sabedoria" (Eclesiastes, 10.1). asilos estiveram em funcionamento. Em cinqüenta meses, vinte c

80 8,
um milhões de provisões gratuitas foram distribuídas a um custo quirido foram vendidas em condições fáceis, e abriram-se terras
de mais de quatro milhões de dólares. Em seguida, vinha a díficil públicas para o assentamento dos pouquíssimos libertos que pos-
questão da mão-de-obra. Em primeiro lugar, trinta mil homens suíam ferramentas e capital. Mas a visão dos" quarenta acres e uma
negros foram transportados, de volta, dos abrigos temporários às mula" - a justa e razoável ambição de tornar-se um proprietário
fazendas, para a experiência crítica de um novo sistema de trabalho. rural que a nação quase categoricamente havia prometido ao liber-
Instruções claras eram emitidas de Washington: os trabalhadores to - estava destinada, na maioria dos casos, a um amargo desa-
devem ter a liberdade de escolher os seus patrões, não há uma cota pontamento. E aqueles homens de fantástica percepção tardia, que
fixa definindo salários, e não haverá qualquer tipo de peonagem ou hoje buscam convencer o Negro com suas prédicas conduzindo-o
de trabalho forçado. Até aí, tudo bem; mas, considerando-se que de volta à atual servidão do solo, sabem muito bem, ou deveriam
os agentes locais diferiam toto calo em capacidade e caráter, e consi- saber, que a oportunidade de vincular o camponês negro volunta-
derando-se que as equipes de trabalho estavam em constante mu- riamente ao solo se perdeu no dia em que o delegado do Freed-
dança, os resultados necessariamente variavam muito. O maior fa- men's Bureau teve de ir à Carolina do Sul contar aos libertos em
tor de sucesso estava no fato de que a maioria dos libertos lágrimas, após anos de trabalho árduo, que a terra deles não lhes
mostrava-se disposta, até mesmo ávida, por trabalhar. Assim, fo- pertencia, que houvera um engano - um engano qualquer. Se, ao
ram redigidos contratos de trabalho - cinqüenta mil em um úni- final de 1874, o Negro da Geórgia, sozinho, possuía trezentos e
co estado -, trabalhadores foram aconselhados, salários garanti- cinqüenta mil acres de terra, foi graças à sua parcimônia e não a
dos e empregadores fornecidos. Na verdade, a organização subvenções do governo.
tornou-se uma enorme agência de empregos - nada perfeita, com O maior êxito do Freedmen's Bureau consistiu na implantação
certeza deficiente aqui e ali, mas, em seu conjunto, mais bem-suce- ge escolas gratuitas entre os Negros e na idéia da educação elemen-
dida do que, com bom senso, se poderia sonhar. Os dois grandes tar gratuita em todas as classes no Sul. O Bureau não só convocou
obstáculos que os funcionários enfrentavam eram o tirano e o oci- as mestras por intermédio das agências benemerentes e construiu
oso - o proprietário de escravos que estava determinado a perpe- prédios escolares, mas também ajudou a descobrir e a apoiar após-
tuar a escravidão sob um outro nome; e o liberto que considerava a tolos da cultura humana como Edmund Ware, Samuel Armstrong
liberdade um eterno descanso - em suma, eles encontravam-se e Erastus Cravath. A oposição à educação do Negro no Sul foi de
entre dois fogos. início amarga, e revelou-se em cinzas, insulto e sangue; pois o Sul
No trabalho de estabelecer os Negros como proprietários acreditava que um Negro instruído era um Negro perigoso. E o I
rurais, o Bureau foi desde o início prejudicado, sendo, por fim, Sul não estava totalmente errado; pois a educação entre todos os \
completamente neutralizado. Alguma coisa se fez, porém, e coisas tipos de homens tem sido sempre, e sempre será, um elemento de
maiores foram planejadas; arrendaram-se terras abandonadas na perigo e revolução, de insatisfação e descontentamento. No entan-
medida em que essas permaneciam em mãos do Bureau, e uma to, os homens lutam pelo saber. Talvez alguma suspeita desse para-
renda total de quase meio milhão de dólares derivou dos arrenda- doxo, até mesmo nos dias agitados do Bureau, tenha ajudado as
Lírios negros. Algumas outras terras cujo direito a nação havia ad- baionetas a minorar uma oposição à instrução humana que ainda

H.l
83
hoje existe, fumegante, no Sul. Fisk, Atlanta, Howard e Hamptorr" to. Por outro lado, deixar o Negro nas mãos dos tribunais do Sul
(oram [undadas naqueles tempos, e seis milhões de dólares foram seria impossível. Numa terra desatinada onde a escravidão mal ha-

gastos em trabalho educacional, dos quais setecentos e cinqüenta via sucumbido, impedir que os fortes abusassem de maneira irres-

mil dólares os próprios libertos deram de sua pobreza. ponsável dos fracos e que os fracos se regozijassem de modo inso-
Tais contribuições, juntamente com a compra de terras e vários lente com a força semi-amputada dos fortes era uma tarefa ingrata e

outros empreendimentos, mostravam que o ex-escravo já dispunha inútil. Os antigos senhores da região foram peremptória e freqüen-
de algum capital livre. Sua principal fonte inicial foi o trabalho no temente comandados, detidos, aprisionados e punidos sem qual-

exército, seu soldo e subvenções como soldado. As remunerações quer cortesia por parte dos oficiais militares. Os ex-escravos foram
aos soldados negros foram de início complicadas pela ignorância intimidados, espancados, estuprados e assassinados por homens

dos receptores e pelo fato de que as cotas de regimentos de cor dos irados e vingativos. Os tribunais do Bureau tendiam a se tornar,

estados do Norte eram amplamente preenchidas por recrutas do simplesmente, centros de punição dos brancos, enquanto os tribu-

Sul sem que os demais soldados soubessem disso. Conseqüente- nais civis regulares tendiam a se tornar unicamente instituições para

mente, os pagamentos acompanhavam-se de tamanhas fraudes que perpetuar a escravidão dos negros. Quase todas as leis e os métodos

o Congresso, em resolução conjunta de 1867, colocou toda a ques- que o engenho humano pôde arquitetar foram empregados pelos
tão nas mãos do Freedmen's Bureau. Em dois anos, seis milhões de poderes legislativos para reduzir os negros à servidão - para torná-

dólares foram então distribuídos a cinco mil requerentes, e a soma los escravos do Estado, senão de proprietários individuais; enquan-

excedeu afinal oito milhões de dólares. Mesmo com esse sistema, a to os Funcionários do Bureau também eram com freqüência encon-

fraude era freqüente; mas o trabalho, ainda assim, punha o capital trados buscando "inverter a ordem social", dando aos libertos um

necessário praticamente nas mãos de indigentes, e algum dinheiro, poder e uma independência que eles ainda não podiam usar. É mui-
pelo menos, foi bem gasto. to fácil para nós, de outra geração, oferecer sábios conselhos àqueles

A parte mais confusa e menos bem-sucedida do trabalho do que carregaram o fardo no calor do dia. É muito fácil, agora, achar
Bureau consistiu no exercício de suas funções judiciais. Seu tribunal que o homem que perdeu o lar, a fortuna e a família de um só golpe,

de justiça habitualmente compunha-se de um representante do em- e que viu a sua terra à mercê de "mulas e negros" foi realmente be-

pregador, um do Negro e um do Bureau. Se o Bureau tivesse podido neficiado com a extinção da escravidão. Agora, não é difícil dizer ao

manter uma atitude perfeitamente imparcial, esse arranjo teria sido jovem liberto, ludibriado e espancado, que viu seu pai ter a cabeça

ideal e, com o passar do tempo, possivelmente ganharia credibili- estraçalhada até virar geléia e sua mãe ignobilmente violada, que

dade; mas a natureza de suas outras atividades e o caráter do seu os mansos possuirão a terra. Sobretudo, nada é mais conveniente

corpo de funcionários inclinaram o Bureau a favorecer os litigantes do que atribuir ao Freedmen's Bureau todos os males daqueles dias

negros, o que sem dúvida acarretou muita injustiça e aborrecimen- cruéis, e amaldiçoá-lo categoricamente por cada um dos erros e tro-
peços cometidos.
'n Nomes das primeiras instituições de ensino universitário dedicadas à educação
Tudo isso é fácil, mas não é sensato nem justo. Alguém errou de
d,1 população negra nos Estados Unidos, todas fundadas ainda durante o século
XIX. maneira crassa, mas isso foi antes do nascimento de Oliver

1\., 85
l loward; houve agressões criminosas e negligências insensatas, po-
rém sem algum sistema de controle teria havido muito mais. Se
esse controle tivesse vindo de dentro, o Negro teria sido, para to-
dos os efeitos, reescravizado. Vindo, como veio, de fora, homens e
métodos perfeitos teriam feito tudo melhor; no entanto, mesmo
com agentes imperfeitos e métodos questionáveis, o trabalho reali-
ado não foi indigno de elogios.
Tal foi a aurora da Liberdade; tal foi o trabalho do Freedmen's
Bureau, o qual, em breve resumo, pode ser assim descrito: por cerca
de quinze milhões de dólares, além das somas gastas antes de 1865
e dos donativos das sociedades benemerentes, essa organização pôs
em funcionamento um sistema de trabalho livre, deu início à pro-
priedade camponesa, assegurou o reconhecimento dos libertos ne-
gros diante dos tribunais de justiça e fundou a escola pública gra-
tuita no SuL Por outro lado, não foi capaz de implementar o Diretor de alto conceito e reputação em âmbito nacional, essa ins-
começo da boa vontade entre ex-senhores e libertos, de proteger
inteiramente o próprio trabalho contra métodos paternalistas que
desestimulavam a auto-estima e a confiança, e de concretizar numa
extensão considerável suas promessas implícitas de fornecimento
de terra ao liberto. Seus sucessos foram fruto de trabalho árduo,
suplernentado pela ajuda de filantropos e pela luta ávida dos Ne-
gros. Seus fracassos foram resultado de maus agentes locais, das
dificuldades inerentes ao trabalho e da negligência nacional.
Tal instituição, em vista de seus amplos poderes, grandes res-
ponsabilidades, amplo controle de verbas e visibilidade, estava na-
turalmente sujeita a ataques repetidos e implacáveis. Em 1870, o
Burcau esteve sob investigação do Congresso, por iniciativa de
Fcrnando Wood. Em 1872, em ato de violenta descortesia, seus
.irquivos e as poucas funções que ainda detinha foram transferidos
do controle de Howard, na ausência deste, para a supervisão do
SI'(lTliÍrio de Guerra Belknap, por recomendação do próprio secre-
I :111.11I11ente,
1.11111. em 1874, em conseqüência de acusações sérias
H(,
feitas pelo secretário e seus subordinados de que teria cometido
infrações, o general Howard foi levado à Corte Marcial. Nos dois
julgamentos a que foi submetido, o delegado do Freedmen's Bureau
foi oficialmente declarado inocente de qualquer acusação e seu tra-
balho foi elogiado. Apesar disso, muitos fatos desagradáveis vie-
ram à tona - os métodos de fazer negócios do Bureau eram erra-
dos; muitos casos de desfalque foram provados e levantaram-se
fortes suspeitas de outras fraudes; alguns negócios tinham traços
de especulação perigosa, senão de desonestidade; e, em torno de
tudo isso, estava a nódoa do Banco do Liberto, o Freedman's Bank.
Dos pontos de vista moral e prático, o banco era parte do
Freedmen's Bureau, embora não houvesse vínculo legal entre am-
bos. Prestigiado pelo apoio governamental e por um Conselho
tituição bancária começou de forma notável ao desenvolver, entre
os Negros, a noção de fazer economias que a escravidão os havia
impedido de conhecer. E então, num triste dia, veio a quebra, e
todos os dólares arduamente ganhos pelos libertos sumiram; mas
essa foi a menor das perdas - a confiança na poupança também se
foi e, com ela, muito da confiança nos homens; e essa foi uma
perda que uma Nação que hoje escarnece da falta de iniciativa dos
Negros jamais equacionou. Nem mesmo mais dez anos de escravi-
dão teriam feito tanto para sufocar o senso de economia dos liber-
tos quanto a má administração e a falência de uma série de bancos
de poupança organizados pela Nação para ajudá-Ios. É difícil dizer
a quem atribuir toda a culpa; se o Bureau e o Banco faliram princi-
palmente em razão dos amigos egoístas ou das sombrias maquina-
ções de seus inimigos, talvez nem mesmo o tempo revele, pois aqui
está a história não-escrita.
Entre os inimigos fora do Bureau, os mais acirrados eram aque-
les que atacaram não tanto a conduta ou a atuação da instituição
face à lei, mas a própria necessidade da instituição em si. Esses
87
ataques vieram primeiramente dos Estados limítrofes [Border culpada podia conceder a uma raça ultrajada, e o único meio de

Slalesy' e do Sul; e foram sintetizados pelo Senador Davis, do compelir o Sul a aceitar os resultados da guerra. Assim, o sufrágio

Kcntucky, quando caracterizou o ato legislativo de 1866 como um negro pôs fim a uma guerra civil, dando início a um combate racial.
\ E alguns sentiram gratidão para com a raça desse modo sacrificada
decreto "para promover a discórdia e o conflito entre as raças
branca e negra ... por uma concessão de poder inconstitucionaL" O em sua ação e sua liberdade, no altar da integridade nacional; ou-

argumento ganhou uma força tremenda no Sul e no Norte; mas a tros, porém, sentiram e sentem apenas indiferença e desprezo.

sua própria força era a sua fraqueza. Pois, argumentava o senso Caso as exigências políticas tivessem sido menos prementes, a

comum da nação, se era inconstitucional, impraticável ou inútil oposição à tutela governamental dos Negros menos ácida e o ape-

que a Nação se tornasse a guardiã de seus súditos desamparados, go ao sistema escravocrata menos forte, o profeta social poderia

só restava então uma alternativa - tornar esses súditos seus pró- decerto imaginar uma política bem melhor - um Freedmen's

prios guardiães, armando-os com o voto. Além disso, o caminho Bureau permanente, com um sistema nacional de escolas para Ne-

do político pragmático apontava na mesma direção; pois, argu- gros; uma agência de empregos e de trabalho cuidadosamente su-

mentava este oportunista, se não podemos reconstruir o Sul pacifi- pervisionada; um sistema de proteção imparcial diante dos tribu-

camente com os votos brancos, certamente poderemos fazê-Ia com nais regulares; e instituições para benfeitorias sociais, tais como as

os votos negros. Assim, a justiça e a força deram-se as mãos. associações de poupança, as associações rurais e de construção, e as

Portanto, a alternativa assim oferecida à nação não estava entre o fundações sociais. Todo esse imenso dispêndio de dinheiro e de

sufrágio negro pleno ou restrito; pois qualquer homem sensato, ne- cérebros poderia ter formado uma grande escola de futura cidada-

gro ou branco, teria facilmente escolhido o segundo. Estava, sim, nia, e resolvido de uma maneira que nós ainda não resolvemos o

em uma escolha entre o sufrágio e a escravidão, depois que tanto mais intrigante e mais persistente dos problemas dos Negros.

sangue e tanto ouro haviam jorrado para extinguir a servidão huma- O fato de que tal instituição fosse impensável em 1870 deveu-

na. Nenhuma legislatura do Sul mostrou-se disposta a admitir um se, em parte, a certos atos do próprio Freedmen's Bureau. Este pas-

Negro, sob quaisquer condições, no processo eleitoral; nenhuma sou a considerar seu trabalho apenas como temporário, e o sufrá-

legislatura do Sul acreditou ser possível o trabalho negro livre, sem gio negro como uma resposta final para todas as perplexidades

um sistema de restrições que lhe suprimisse toda a liberdade. Não presentes. A ambição política de muitos dos seus agentes e protégés

havia praticamente homem branco no Sul que, honestamente, dei- fez com que o Bureau enveredasse por atividades questionáveis até

xasse de ver a Libertação como um crime, e a sua anulação na práti- que o Sul, acalentando os seus arraigados preconceitos, chegou fa-

ca como um dever. Em tal situação, a concessão do voto ao homem cilmente a ignorar todas as boas obras do Bureau e a dedicar verda-

negro era uma necessidade, o mínimo dos mínimos que uma nação
'I (.), estados limítrofes eram os antigos estados escravistas de Delaware,
M,II yl.1nd, Kcntucky e Missouri, adjacentes aos estados livres do Norte, situan-
d" sr, 1'00l.IIllO, no meio de forças opostas durante a Guerra Civil. Nenhum
."'II·~ vuuulou-sc aos Estados Confederados.
deiro ódio até mesmo ao seu nome. Assim morreu o Freedmen's
Bureau, e sua cria foi a Fifteenth Amendment.
A extinção de uma grande instituição humana antes que seu
trabalho seja concluído, assim como o falecimento precoce de um
indivíduo, deixa inevitavelmente para os outros homens um legado

li 89
de luta. O legado do Freedmens Bureau é a pesada herança desta uma figura velada e encurvada, diante da qual os passos do viajante

geração. Hoje em dia, quando problemas novos e mais amplos pas- apressam seu andar. No ar contaminado, impera o medo. Elevar e

saram a desafiar todos os esforços da mente e da alma nacionais, desvelar aquele coração humano assim vergado tem sido o pensa-

não seria conveniente fazer o inventário honesto e cuidadoso desse mento de três séculos, e eis que agora desponta um novo século,

legado? Pois isso todos sabem: apesar das soluções conciliatórias, para o dever e o devir. O problema do Século XX é o problema da
barreira racial.
da guerra, da luta, o Negro não está livre. Nos confins dos Estados
do Golfo,22 através de tantas milhas, ele não pode deixar a planta-
ção onde nasceu; praticamente em todo o Sul rural, os agricultores
negros são peões, atados pela lei e pelos costumes a uma escravidão
econômica cuja única saída é a morte, ou a penitenciária. Nas cida-
des e nos setores mais cultos do Sul, os Negros são urna classe
servil segregada, com direitos e privilégios resttitos.r' Perante os
tribunais, tanto na lei quanto nos costumes, eles permanecem apar-
tados, numa base diferente dos demais. Impostos sem representa-
ção constituem a regra da sua vida política. E o resultado de tudo
isso é, e naturalmente assim deveria ser, a marginalidade e o crime.
Esse é o amplo legado do Freedrnen's Bureau, esse é o trabalho que
ele não fez porque não pôde.

Eu vi uma terra alegrar-se com o sol, onde as crianças cantam e

colinas ondulantes estendem-se, como mulheres apaixonadas, em
abundantes colheitas. E lá, nas Estradas Reais, estava e está sentada

22 Referência aos cinco estados do sul dos Estados Unidos com territórios às mar-
gens do golfo do México: Flórida, Alabama, Mississippi, Louisiana e Texas.
2J
Em 1903, quando Tl» Souls oJ Black Folk foi publicado pela primeira vez, o povo
negro dos Estados Unidos vivia o período de maior virulência racista e discrimi-
nação racial de sua história.
Após o período da Reconstrução, no Sul derrotado pela Guerra Civil, a polí-
tica informal de segregação racial tornou-se lei, perdurando ainda durante toda
a primeira metade do século XX. Esses estatutos segregacionistas, conhecidos
como fim Crow Laws, tiraram seu nome de uma figura popular e risível dos
Minstrrl shows (ver nota 2, capítulo XIV) de antes da guerra, o ••escurinho"
[darkil] Jim Crow.
Em 1881, o estado do Tennessee aprovou uma lei que separava negros e bran-
cos nos trens. Leis semelhantes foram logo aprovadas em todo o Sul. Em 1896,
a Corte Suprema dos Estados Unidos decidiu, ao deliberar sobre o caso Plessy x
Ferguson, que serviços públicos "separados mas iguais" não violavam a Consti-
tuição. Estava preparado o caminho jurídico para a discriminação, a segregação
e o racismo. A partir de então, e na primeira metade do século XX, os negros
foram segregados nas escolas, tribunais, orfanatos, prisões, parques, hospícios,
hospitais, lojas, cemitérios.
O primeiro golpe contra o sistema Jim Crow ocorreu em 1954: ao julgar o
caso Brown x Board of Education of Topeka, Kansas, a Corte Suprema decidiu
que a segregação compulsória nas escolas públicas não assegurava às crianças
negras uma proteção igual sob a lei.

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