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262 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ

bandits d'honneur brésiliens. Paris, Ed. Juilliard, 1968; "Favelas urbanas,


favelas rurais", Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, S. Pau-
lo, n.º 7, 1971; "Die Teilnahme des brasilianischen Negers am mes-
11ianischen Bewegungen und das Problem der Marginalisierung", in
Klassengesellschaft und Rassismus, Herausgeben von Jürgen Grãbener.
Düsseldorf, Bertelsmann Universitãts --, Verlag, 1971; "Do rural e do
urbano no Brasil", in Vida Rural e Mudança Social, organizado por
Tamás Szmrecsányi e Oriowaldo Queda. S. Paulo, Cia. Ed. Nacional,
9
1973; "Classes Sociais no Brasil, 1950-1960'', Ciência e Cultura, vol. 27,
n.• 7, S. Paulo, 1975; O messianismo no Brasil e no mundo. S. Paulo, Dialética do rural e do urbano:
Ed. Alfa-ómega, 1976(a); O mandonismo local na vida política do
Brasil e outros ensaios. S. Paulo, Ed. Alfa-ómega, 1976(b); "Escravos
exemplos brasileiros
e Mobilidade Social Vertical em Dois Romances Brasileiros do Sé-
culo XIX", in Cadernos, Centro de Estudos Rurais e Urbanos, Ano 9,
ri.º 9, S. Paulo, 1976(c).
Pierson, Donald, Brancos e pretos na Bahia, estudos de contacto racial.
S. Paulo, Cia. Editora Nacional, 1945. 1. Do rural e do urbano
Queiroz Jr., Teófilo de, Preconceito de cor e a mulata brasileira. S. Paulo,
Atica, 1975.
Uma das maiores preocupações dos sociólogos rurais tem sido
Stonequist, Everett V., The Marginal Man. Nova York, Charles Scribner's
sempre a de definir com alguma precisão o seu objeto de pesquisa,
Sons, 1937.
Willems, Emílio, Dictionnaire de Sociologie. Paris, Libr. Marcel Riviére,
principalmente diante das transformações por que tem passado o
1961.
meio rural, em suas unidades de produção (entre nós denominadas
fazendas, sítios, roças, granjas etc.), contaminadas pela mecani-
zação e pela organização do trabalho que, a partir das cidades
industrializadas, se disseminaram no campo. f: com esta questão
· que Aldo Solari, por exemplo, - um dos bons sociólogos rurais
latino-americanos, - inicia sua obra publicada em 1963, na Ar-
gentina, em que faz uma tentativa de equacionamento dos pro-
blemas mais importantes relativo ao conjunto de países a que per-
tencemos. Reconhece que a sociologia rural, surgida num período
de crise para estudar os grupos sociais vivendo no campo, - crise
profunda de suas estruturas sócio-econômicas, - teve seu desen-
volvimento impulsionado por ela; a sociologia rural nascera, por-
tanto, de :problemas da "praxis". (1) E o problema mais recente
é o da "urbani~ªç.ão <lo meio..rural".
~ulação de Solari leva à indagação seguinte: uma
vez "urbanizado o meio rural", continuará existindo uma 110cio-
logia rural, ou ter-se-á ela tornado desnecessária? Já nos detivemos
neste problema, anteriormente, dando resposta positiva quanto à
continuidade da sociologia rural.(2) Há, porém, uma outra ma-
neira de encará-lo, que não abordamos então em profundidade,
embora estabelecendo as premissas para seu tratamento. Nosso

(1) Solari, 1963, p. 8.


(2) Pereira de Queiroz, 1969.

J
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ponto de partida fora o próprio Solari, ao chamar a atenção para Não determinariam sempre também um êxodo rural-urbano? Sa-
a "revolução mais importante a que já assistiu a história da Hu- bemos que pelo menos durante a Idade Média foi este êxodo im-
manidade". Diz ele: "Em 1790, o censo dos Estados Unidos in- portante na Europa, e há historiadores que demonstram hoje, para
dicava que somente 5,1 % da população era urbana: o restante o período anterior ao século XVIII, a extrema mobilidade do ho-
era rural. Eram necessários 20 lavradores trabalhando a terra para mem do campo. (5) Desta forma, muito antes da Revolução Indus-
alimentar a um citadino. Hoje, que mais da metade da população trial, os dois problemas maiores que a Sociologia Rural atual tem
é urbana, um lavrador alimenta, sozinho, seis citadinos. Estas ci- se colocado, isto é, o da divulgação das inovações e o dos êxodos
fras dão un:a idéia sumária, porém muito clara, da magnitude da rurais, constituíram quesitos habituais da vida rural, que necessita-
transformaçao que se produziu num lapso de 150 anos". E vai ram estudos e soluções. Não surgem, pois, como específicos do pe-
mais além: "Se se considerar a história humana até fins do século ríodo contemporâneo nosso.
XVI~, P?de-se notar que as guerras, as revoluções, as mudanças No entanto, os pesquisadores que se preocupam com o pro-
de ?mastias, o desaparecim~~to de países inteiros, não afetou, to- blema, seja antes ou depois da Revolução Industrial, não têm o
davia, os caracteres essenciais da estrutura social no sentido de costume de considerar as relações entre campo e a cidade como
que a i~ens~ mai~ria da população continuou vivendo no campo estreitamente interdependentes e se influenciando mutuamente de
e uma mmona, ma10r ou menor, mais ou menos importante porém modo profundo. Sua posição é muito mais a de verificar como pa-
sempre limitada, vivia nas cidades". (3) A partir do século' XVIII ralelamente se desenvolvem as duas realidades, quais as concomi-
com a Revolução Industrial, uma grande parte da população en~ tâncias e divergências através do tempo, do que realmente a de
contra trabalho nas cidades e é por esta atraída, dando-se o êxodo colocar a ambas num mesmo conjunto mais amplo e tentar visua-
rural-urbano que tanto tem preocupado historiadores e sociólogos. lizar que lugares ocupam no interior de uma única estrutura. Isto
Inverte-se na Europa e nos Estados Unidos então a proporção de é, a perspectiva adotada foi em geral a de considerar que se tra-
habitantes entre campo e cidade, com profunda mudança estru- tava de duas sociedades bastante díspares, que podiam se interin-
.tural. fluenciar, porém que constituíam duas "coisas" de essência diversa
Ao colocar o início da Sociologia Rural no momento em que que não se misturavam. Ou então, quando se misturavam, os ele-
<> campo se despovoa em benefício das cidades, estas adquirindo mentos rurais constituíam "sobrevivências" no meio citadino, os
entã? uma. importância numérica crescente que acompanha a com- elementos citadinos constituíam ... vações" no meio rural. Ti-
plexidade mterna crescente dos empregos, Aldo Solari parece dar nham-se sempre em mente o "atraso" da sociedade rural em rela-
a entender que no período anterior, em que a população mais ção à sociedade urbana, e e e atraso era interpretado como um
numerosa era a do campo, não teria havido nem êxodo rural-ur- indicador seguro da diferença essencial existente entre ambas.
bano, nem problemas sócio-econômicos prementes no meio rural São mais ou menos estas as idéias subjacentes à colocação ha-
que atraíssem a atenção dos estudiosos. Ao nosso ver, tal maneira bitualmente feita por sociólogos, historiadores, geógrafos, que po-
d: pensar está ligada ao desconhecimento da história européia nos dem ser resumidas da seguinte forma: 1) existe uma dualidade do
s~cu~os XVII e XVIII, que se distinguiu justamente pela impor- rural e do urbano, no sentido filosófico específico do termo "dual",
tanc1.a ?ada aos problemas agrários, à invenção técnica no setor, que exprime a existência, lado a lado, de dois termos que, embora
e pnnc1palmente pela preocupação com a difusão das inovações interagindo, são absolutamente irredutíveis um ao outro; 2) o rural
- a tal ponto que se pode dizer que a Revolução Industrial de é concebido como "atrasado" em sua evolução, em relação ao ur-
fins do século XVIII foi precedida por uma Revolução Agrária bano, e sua influência sobre este é tida como "sobrevivência tra-
anterior, e mais ainda, que não poderia ter existido se esta Revo- dicional"; 3) a penetração de elementos urbanos no campo - "ino-
lução Agrária não a precedesse. ( 4) vações" - passa a ser imediatamente considerada como um avanço
A urbanização é um fenômeno antigo; as cidades foram im- "benéfico" para este; 4) aumentando cada vez mais a penetração,
portantes para a economia de um país, embora não apresentas- vão se perdendo as características peculiares à sociedade rural, que
sem outrora o crescimento que lhes deu a Revolução Industrial. tende a se confundir cada vez mais com a sociedade urbana, e,
portanto, a desaparecer. Isto é, o êxodo rural-urbano e a invasão

(3) Solari, 1963, pp. 7-8.


(4) Augé-Laribé, 1955. (5) Le Goff, 1967; Ladurie, 1969.
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do rural pelo urbano acabariam com a irredutibilidade de ambol\, vez mais.(8) No fim da década de 60, vários trabalhos, porém,
uma vez que o rural se converteria em urbano; a Revolução In- começam a demonstrar que não ocorre nenhuma oposição irredu-
dustrial seria o fator determinante da anulação da irredutibilidade tível entre o tradicional e o moderno; as mesmas críticas podem
das relações entre o rural e o urbano, pois através da importância ser formuladas contra a oposição idêntica entre rural e urbano.
outorgada à tecnologia e da extensão desta ao campo, se operaria Aliás, ao resumirmos as idéias mestras dos pesquisadores alguns
uma modificação na própria "natureza" da sociedade rural, permi- parágrafos atrás, verifica-se a incongruência delas, pois ao mesmo
tindo que pouco a pouco fosse engulida pela sociedade urbana. tempo que apontam para a irredutibilidade recíproca do rural e
O dualismo desapareceria. do urbano, admitem que num determinado momento histórico, esta
Esta colocação do problema se aproxima de outra que diz res- irredutibilidade deixa de existir, e o rural entra em desapareci-
peito às relações entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, entre mento, diante da invasão do urbano. . . Isto é, operar-se-ia uma
metrópoles e colônias. Admite-se também que, por influência do redução do rural ao urbano.
desenvolvimento sócio-econômico, ou então pela pressão da me- A nosso ver, estas colocações defeituosas de problemas so-
trópole sobre a região colonizada, os caracteres específicos ao ciológicos redundam de serem elas formulações a partir de um ra-
subdesenvolvimento iriam se anulando e uma homogeneidade sócio- ciocínio dedutivo, e não a partir do exame da realidade tal qual
cultural e econômica seria o coroamento dos processos. Desta for- ela se impõe a nós, no sentido durkheimiano de "coisa" que nos
ma, tanto a urbanização do meio rural, quanto os processos de é exterior. De fato, quando concebidos como dualidades, tradicio-
colonização e de desenvolvimento, formariam um conjunto orien- nal-moderno, rural-urbano, e outros pares de conceitos que se
tado para a homogenização cada vez maior de todas as sociedades acredita opostos, a dedução lógica é de que são mutuamente ex-
humanas ocidentais, convergindo para uma forma social seme- clusivos; dedução lógica dizemos, e portanto que não apela para
lhante. Na base desta forma social semelhante, e como fator de- a experiência humana, nem para a definição desses conceitos, a
terminante, estariam o avanço tecnológico cada vez maior, asso- fim de se comprovar se são ou não adequados à realidade.
ciado a relações de produção que tenderiam a ser idênticas em Embora a dissemelhança constatada entre o rural e o urbano,
todos os países capitalistas. A homogenização sócio-cultural e eco- de um lado, e a especialização em processo rápido no interior
nômica seria, conseqüentemente, um epifenômeno da conjugação das Ciências Sociais de outro, levassem ao surgimento das duas
entre avanço tecnológico e relações de produção. ( 6) disciplinas; embora alguns de seus problemas admitam um trata-
Haverá realmente tal homogenização, ou estaremos de novo mento isolado - não é possível perder de vista a interligação exis-
diante de um "falso problema", como outros que freqüentemente tente entre os dois aspectos do real - interligação que não per-
têm surgido no âmbito da sociologia? De fato, a oposição entre mite nenhuma interpretação válida de cada um, se não se levar
o rural e o urbano é da mesma ordem da oposição tradicional- em consideração o conjunto formado por ambos. As especializa-
moderno, cuja inanidade tem sido ultimamente demonstrada. Como ções exageradas terminam em becos-sem-saída, como aquele em
já dissemos noutro trabalho, na proposição desse falso problema, que se encontra atualmente a Sociologia Rural norte-americana,
"as diferenças que resultam da história, da cultura, das ideologias, girando incansavelmente em torno de uma questão para a qual não
das hierarquias de valor ( ... ) não são tomadas em considera- encontra solução e que é a seguinte: como promover uma rápida
ção", pois são tidas como "variações menores";(?) tecnologia e "modernização" da organização do trabalho e da tecnologia no
relações de produção são consideradas fatores "imperialistas•, que meio rural a partir do estudo deste como uma entidade em si?
tudo arrazam e impõem caracteres idênticos onde quer que se es- Ou então à situação de uma Sociologia Urbana, emperrada em
tabeleçam. Talcott Parsons, por exemplo, considera existir grande considerar que a "urbaniz.ação" está indissoluvelmente ligada à
parecença entre os Estados Unidos e a União Soviética, socieda- "industrialização" - quando no passado esteve ela, pelo contrário,
des unidas pelo mesmo "industrialismo" que as aproximaria cada indissoluvelmente ligada à riqueza rural.
Já expusemos algures nossa opinião de que, de acordo com
A preocupação com a homogenização em perspectiva já deu lugar
os conhecimentos atuais, existem três tipos primordiais de sorie-
(6)
a congressos e simpósios, e mesmo à formação de uma instituição
internacional de pesquisa. Ver Spécificités culturelles et Industrialisa-
tion, 1974. (8) Parsons, 1967.
(7) Pereira de Queiroz, 1971 e 1972 (a).
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dades globais, no que toca ao rural e ao urbano, a partir de sua sendo e~contradas. desde a mais alta antiguidade; por sua vez, a
estrutura interna mais profunda e de acordo com a realidade em::_ Revo!uç~o Industn?l, post:rior à Re_volução Agrária na Europa,
pírica: l.º) sociedades internamente indiferenciadas no que diz res-
cont.;_:1b~m ,rara a i~stalaçao, das sociedades industrializadas, cuja
peito ao rural e ao urbano, constituídas pelas sociedades tribais;
tendencia e se espraia~ a5r?ves do espaço. É esse o ponto em que
2.º) sociedades internamente diferenciadas em meio rural e meio
est~n:os, no quadro h1stonco geral. Todavia, o fato da sociedade
urbano, nas quais o meio rural é o produtor principal de rique- agrana ter dado lugar a um tipo de sociedade industrializada tal
za, e que chamamos de sociedades agrárias; 3.º) sociedades como a, conhecen.10s, e cujas diferenças econômicas e políticas
internamente diferenciadas em meio rural e meio urbano, nas entre paises do ocidente ~países atrás da cortina de ferro não pa-
quais o meio urbano, através da industrialização, é o principal recem de uma heterogeneidade total, não nos deve levar a afirmar
produtor de riqueza, e que chamamos de sociedades indus- que .será este o modelo único da transformação das relações cam-
triais. (9) Nestas duas últimas formas de sociedades globais:a-· po-cidade.
posição respectiva de grupos urbanos e de grupos rurais é dife- . É.º .modelo que conhecemos atualmente nas sociedades mais
rente; enquanto, nas sociedades agrárias, o campo como produtor md~stnahz~das, isso sim. Porém, conhecemo-lo a partir das modifi-
de riqueza tem uma importância indiscutível, modelando as cida- caçoesA sofndas pe.la Europa, pelos Estados Unidos, pela URSS;
des para servir aos seus desígnios (quer como cidades administra- 1:º~ tres casos, sociedades muito diversas das que se encontram na
tivas, quer como cidades comerciais, quer como cidades universi- Asia cor:temporânea ou na África (a Latino-americana podendo
tárias, ou ainda como cidades mistas), nas sociedades industriali- ser con~1~erada um prolongamento das sociedades ocidentais).
zadas a importância passa a ser dos centros urbanos, que modelam Conse~1ra, por exemplo, a China comunista, ou a lndia - o
o campo para servir aos seus desígnios (quer como produtor do que estao ambas tentando - uma descentralização da indústria
abastecimento alimentar, quer como produtor de matéria-prima que C?loque esta di~etamente no campo, quebrando a preeminência
industrial, quer até como sede de determinadas usinas). Des- das cidades e contmuando então uma situação de dominação do
ta forma, quando aparece numa sociedade global{lO) a dis- campo, agora também produtor de riquezas industriais além das
tinção campo-cidade, dá-se entre estes dois termos uma relação a~r~rias,. sobre a cidade que permanecerá apenas como sede ad-
de dominação-subordinação que os coloca em posições recíprocas m1mstrahva e de distribuição de bens e de serviços? É uma inda-
diferentes, conforme a produção de riqueza esteja centralizada pelo gação que permanece ainda sem resposta. Não sabemos também o
campo ou pela cidade. E esta relação não pode ser esquecida, qual- que po~erá resultar ~as ~ransformações africanas, em que muitas
quer que seja a pesquisa efetuada, parta ela da perspectiva do vezes sao colocadas imediatamente em contato uma sociedade tri-
meio rural, ou adote ela o ponto de vista do meio urbano. Sua bal em declínio, com elementos oriundos tanto do desenvolvimento
oompreensão só será total se enquadrada a pesquisa dentro da ~gráArio quanto do desenvolvimento industrial que a colonização lhe
perspectiva mais ampla da sociedade global e da situação especí- 1mpos.
fica dos dois termos do binômio rural-urbano, um em relação ao ~outras palavras, a combinação dos três tipos de sociedades
outro. globais pode se dar de forma diferente, além das que já conhece-
A evolução histórica, tal como a conhecemos, colocou na mos. E mesmo nestas, nem sempre por toda a parte se relaciona-
Europa estas três formas de sociedades globais, pelo menos apa- r~m meio rural e meio urbano segundo uma dialética de contrá-
rentemente, numa seqüência que vem se fazendo através dos tem- rios, e1? que da tes~ e da antítese se originasse algo diverso, numa
.pos. Sociedades tribais deram lugar a sociedade.\) agrárias, estas nova smtese a partir de duas raízes. A reserva que aqui formula-
mos não vai contra a utilização de um ponto de vista dialético
da relação rural-urbano. Rural e urbano ~êm um com 0 outro
Ver maiores detalhes em Pereira de Queiroz, 1969, pp. 10-14. r~la?~es que-sempre estão. se tpQ~ficagQ.Q;_.1;:,__~va:mfiletiêã-
Adotamos a definição de "sociedade global" de Georges Gurvitch: ~J2.~L1'l ?ó_s..-.aceitar o postulado de que "as coisa~ -sociâiS" -
"os fenômenos sociais totais ao mesmo tempo mais vastos e mais '
imponentes, mais ricos de conteúdo e de ascendente sobre uma rea- ~stao em f!l..QV1Il1~11~º e transformação constantes, renovando-se e
lidade social dada", que constituem "macrocosmos de macrocosmos º~Y..l<n9o-se incessantemente, o que vale tanto para "as
sociais". Gurvitch, 1958, vol. 1, p. 216. -~~?~~~~,!ru:tt~riais, quanto para "as coisas" humanas e sociais.
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segundo leis necessárias, expressas na dialética - e as mesmas


Mas sua forma de relacionamento, embora sempre ativa, nem leis regem a aquisição do conhecimento. ( 11)
sempre será a de oposição. Contrapondo-se ao "idealismo", que afirmava a existência
Como se trata de uma posição metodológica ainda pouco ex- primordial da consciência determinando o conhecer, a forma do
plorada entre nó~, torna-se necessário explicitá-la, a fim de que conhecer, a classificação dos seres, etc., e que se exprime também
a compreensão de nossas observações seja mais completa. na dialética de Hegel, Marx considera que a matéria, a natureza,
os seres, têm uma realidade objetiva (material) fora da consciên-
2. Metodologia cia e independente dela. O primeiro dado da realidade é a matéria,
é ela a fonte de sensações, de representações, da consciência en-
O termo "dialética" teve seu significado variando através do fim; o pensamento é produto da matéria, no momento em que
tempo; nunca é demais lembrar esta circunstância, e mostrar qual esta atinge em seu desenvolvimento um alto grau de perfeição; é,
o sentido em que o estamos tomando, a fim de evitar malentendi- pois, erro grosseiro querer distinguir pensamento e matéria como
dos. Sua forma atual está longe da forma de origem, em que sig- essencialmente diferentes e formando uma dualidade. Ou melhor,
nificava a aquisição de conhecimentos através da discussão; em ambos se diferenciam em circunstâncias históricas precisas, porém
Sócrates, tratava-se de uma discussão por perguntas e respostas; continuam ligados pela idêntica origem. Uma forma de exprimir
Platão refinou este procedimento eminentemente pedagógico, pre- sua indissolúvel ligação é a interpenetração fundamental entre ciên-
conizando a divisão do assunto em gêneros e espécies (isto é, in- cia (conhecimento do mundo material e portanto pensamento) e
troduzindo a classificação), a fim de poder examiná-lo e discuti- praxis (ação sobre o mundo material e portanto algo de material
lo. Mas estes antecedentes são bastante longínquos. também). 1
Foi Hegel quem deu ao conceito uma conotação mais pró- O que Marx afirma da "dialética" deriva desta posição filo-
xima de nós, dizendo que ele significava a própria marcha do sófica básica, e aponta a perspectiva em que devem se colocar
pensamento e sua lei fundamental. Cada idéia suscita outra con~ pensadores e cientistas para adquirirem uma perspectiva válida
trária, e confrontadas chegam a uma nova formulação, a qual por do universo. O universo não é uma associação fortuita de objetos
sua vez desperta outra contrária, levando a nova construção, e ou de fenômenos, que possa ser desmembrada tranqüilamente;
assim por diante, sem possibilidades de terminar. Esta seria a pelo contrário, objetos e fenômenos estão organicamente ligados
(como organicamente ligados estão matéria e pensamento), depen-
marcha por excelência da mente humana, por meio da qual adqui-
dem uns dos outros e se condicionam reciprocamente. Nenhum
re conhecimentos - marcha que corresponde à própria "nature- fenômeno do universo pode ser compreendido isoladamente, des-
za" do espírito e das coisas. A necessidade básica e inata do espí- tacado do meio em que surgiu e ao qual se liga, numa posição
rito humano seria ultrapassar contradições; e a primeira grande que lhe é específica e que também se transforma. Estes fenômenos
incongruência se daria entre o mundo finito cheio de contradições' (e também a matéria), estão constantemente em movimento e
e esta necessidade do espírito humano. A dialética se torna assim transformação; constantemente algo nasce e se desenvolve, con~­
a constante tentativa de eliminar os contrários - tentativa sempre tantemente algo se desagrega e se modifica. Todo estudo deve,
renovada uma vez que Hegel concebe o "finito" também como pois, considerar os fenômenos de um duplo ponto de vista: o de
em movimento contraditório constante. sua posição e composição, de seus condicionamentos, de suas rela-
Marx efetuou importante modificação na definição do con- ções; o de seu movimento, de suas transformações, de seu apare-
ceito, transportando-o da esfera do pensamento para o domínio cimento e desaparecimento. Mesmo que as aparências sejam de
da matéria e da história. O universo seria formado de matéria em estabilidade para um fenômeno, há sempre nele algo que está nas-
movimento, numa evolução que vai atingindo níveis sucessivos, cendo. se desenvolvendo, se transformando.
até o nível último; tudo está, pois, em processo, tudo está engaja- O movimento inerente à matéria e a todos os fenômenos de-
do num desenvolvimento histórico. A dialética não define apenas corre da contradição, lei básica de sua estruturação interna: tudo
a marcha do espírito humano na aquisição de conhecimentos, mas ,
é tida como a própria essência da sociedade e do universo. Os
múltiplos fenômenos destes não são mais do que aspectos da ma- (11) Marx, 1946; Lefebvre, 1947; Gurvitch, 1962.
téria em movimento histórico, que se condicionam reciprocamente
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o que existe tem um lado positivo e outro negativo, um passado cias Sociais. Georges Gurvitch foi um dos sociólogos que se preo-
e um futuro; tudo o que existe se encontra engajado numa luta cuparam com a questão.(12)
entre o equilíbrio e o desequilíbrio, entre o velho e o novo. E esta Gurvitch considerou que, do ponto de vista didático, tornau
luta dá lugar ao "processo histórico", que está muito longe de va-se necessário em primeiro lugar ultrapassar a dualidade mani-
ser uma evolução harmoniosa de fenômenos. Pelo contrário, sua queísta que se instalara no pensamento ocidental, fundada sobre
marcha é a de uma revelação paulatina das múltiplas contradições a existência primordial de dois princípios opostos, o do bem e o
existentes no âmago dos fenômenos, revelação que à medida que do mal, e que no marxismo ortodoxo tomara a formã~õãillãletica
vai sendo feita e se tornando consciente, também vai sendo ultra- · ·ctcrscontrários .. Esta tomada de posição implicava em reconhecer·
passada e gerando a necessidade de se revelar as novas contradi- · éoni Marx a inexistência da dualidade entre marcha do espírito e
ções que surgem. 1llovjme11tação da realidac:le..!ii~~~Jc~l. pois aíiilias constituem eX::-
O problema principal de Marx não é definir como é, nem . pressões de uma única e mesma realidade. A própria experiência
como se opera o conhecimento humano. Sua preocupação primei- científica, fosse no campo das Ciências Humanas e Sociais, fosse
ra é a explicação da sociedade, do universo e de sua essência - no campo das Ciências Exatas e da Natureza, era uma experiência
é o lançamento das bases de uma nova filosofia da história e do histórica e datada, que não fugia às imposições de tempo, de lugar,
mundo, a partir da qual tudo deve ser reformulado e compreendi- de nível de conhecimento, modificando-se portanto com a variação
do. A essência do universo é o movimento dialético. Nesta maneira destas imposições e encerrando contradições que eram o próprio
de compreender, o conhecimento se torna subordinado à própria motor das transformações. Noutras palavras, também estes fenô-
lei do universo e é por esta condicionado. Isto é, não há "conhe- menos tinham na dialética seu princípio básico de transformação,
cimento em si", ele é o fruto de um período histórico, de suas e a aquisição de conhecimentos a seu respeito não fugia à regra.
contradições, de suas lutas. Desta forma, levado pelo seu próprio Desta maneira, não havia nem dualidade entre forma de conhecer
objetivo principal, Marx abre o caminho para novas tomadas de e realidade científica, nem dualidade entre duas formas diversas
posição diante deste .problema, invertendo o que propusera Hegel: de conhecer que distinguiriam o conhecimento científü:o de um
lado, do conhecimento sócio-econômico e político, do outro. ( 13)
para este, a dialética era inerente ao espírito humano, era a marcha
A mesma perspectiva dialética se ~plicaria a ambos.
"natural" deste na aquisição do conhecimento; para Marx, a dia- Constatou Gurvitch que o dinamarquês Niels Bohr, prêmio
lética é a forma de movimentação existente no universo e em seus Nobel de Física de 1922, abrira caminho para uma nova pers-
fenômenos, e o movimento do espírito nada mais é do que um pectiva dialética no âmbito desta ciência, transformando a teoria
produto condicionado pelo que existe no mundo histórico real. dos átomos; mostrara que a teoria dos corpúsculos e a teoria on-
O caminho aberto por Marx para a compreensão do universo dulatória da luz não eram mutuamente exclusivas e sim comple-
e de seus fenômenos tem sido trilhado tanto por filósofos que se mentares, coexistindo e se interinfluenciando sem se anularem re-
lhe seguiram, quanto por outros pensadores, por cientistas, pof ciprocamente, e pôs fim ao conflito que a esse respeito existia na
pesquisadores voltados para determinados setores do real. Nas microfísica. Uma oposição aparente mascarava uma real comple-
Ciências Humanas e Sociais, a nova abordagem determinou .polê- mentaridade; embora as duas teorias não pudessem ser reduzidas
micas as mais variadas, opondo os que interpretavam o marxismo uma à outra, e permanecessem em posições contrárias, coexistiam
dentro de um radicalismo e um rigor excessivos, àqueles que se e se interinfluenciavam. Esta forma _de dialética, que foi denomi-
opunham ao que consideravam a "materialização demasiada" do nada "da complementaridade'', foi estendida a uma série de outros
pensamento e que optavam por uma posição mais idealista. Muitas ,problemas da Física por professores eminentes como Louis de
posições intermediárias foram definidas também, e, o que é mais Broglie. Jean-Louis Destouches e outros.
importante, houve quem procurasse repensar as posições marxis- Mostra ainda Gurvitch que dentro dos princípios trazidos tam-
tas em função das ciências específicas do meio .físico e buscasse bém às ciências exatas e naturais pelo relativismo, reconheceu-se
ao mesmo tempo canalisar para elas o fruto das discussões. Desta que não estavam elas (ciências) enraizadas em tempo e espaço
forma, em setores muito diversos do real, como o das Ciências ,
Físicas e o das Ciências Biológicas, a dialética marxista levou a
certas ampliações que puderam ser de.pois reconduzidas às Ciên- (12) Gurvitch, 1962; 1964; 1965.
(13) Gurvitch, 1962, p. 17.
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universais e unívocos; noutras palavras, que a marcha da aquisição 3) Ambigüidade dialética: cada elemento ou termo não
dos conhecimentos científicos não se operava segundo uma ordem tem apenã~s-vâfios sentidos diversos que ou vão
dada (tempo universal e unívoco), nem num ponto específico em direção diferente, ou podem convergir, conforme os mo-
do globo que seria o núcleo irradiador do mesmo para as demais mentos;
regiões (espaço universal e unívoco); pelo contrário, fazia-se ela 4) Polarização dialética ou dialética dos contrários: os
numa multiplicidade de tempos e de espaços, segundo orientações termos e elementos se apresentam contraditórios ou antinômicos,
diversas, como também variadas eram as relações entre esses tem- pressupondo aspectos irredutíveis uns aos outros, que num mo-
pos e esses espaços. A marcha do pensamento científico nas Ciên- mento dado são dominantes sobre outros aspectos;
cias Físicas e Naturais, não se dava, pois, de forma homogênea 5) Reciprocidade de perspectivas: os elementos ou termos
e numa só direção; pelo contrário, suas leis internas eram as hete- têm uma imanência recíproca tão intensa, que os conduz a um
rogeneidades, as contradições, a diversidade das orientações. paralelismo ou a uma simetria mais ou menos rigorosa em suas
A partir destas constatações e diante dos resultados de pes- manifestações; é esta, segundo Gurvitch, a forma mais "traiçoei- ,
quisas, definiu Gurvitch para a área de Ciências Sociais cinco ra" da dialética, pois muitas vezes, sob a aparência de uma re- 1·
tipos de dialética, interligando os fenômenos sócio-econômi- ciprocidade de perspectivas (simetria), o que existe num "p~ata­
cos, políticos e culturais; admitiu que outros mais poderiam ser mar" mais profundo é, ao contrário, a ruptura de todo parale-
descobertos, e que aqueles que apresentava deveriam ser refor- lismo e a afirmação de uma polarização fundamental.(15)
mulados se necessário. Ei-los: 1) ~emen~!Q.adLdialética; Estes processos dialéticos não são encarados por Gurvitch
2) implicação dialéticª_mútua;_ 3) polârfZâÇãõ dial~tica (habi- como imutáveis, ou como existentes uma vez por todas; ao con-
tualmente denominada "diãieüc'a- dos contrários"); ·4)-'feciproci- trário, .pressupõem a modificação constante como sendo a lei es-
~ers_p~ctivas;_.5) _a~bigüidade dialética. ( 14) Todos estes sencial da realidade sócio-econômica, cultural e política. Desta
tipos têm -a- carãeterística essencial de encerrarem uma negação forma, os elementos que há pouco se apresentavam segundo uma
entre os termos, a qual persiste mesmo na complementaridade, na dialética da reciprocidade de perspectivas, podem mais tarde apa-
implicação mútua, na reciprocidade de .perspectivas, na ambigüi- recer interligados numa dialética da ambivalência, ou outra
dade, tendo sido de há muito reconhecida na dialética dos contrá- qualquer.
rios. Sem o elemento de negação, a complementaridades dialéticas Como se vê, nesta perspectiva, trata-se de não temer dispa-
se dissolve numa simples complementaridade banal, perdendo todas ridades e desequilíbrios, nem aspectos contrários das formas só-
as características dinâmicas e de processo em curso. cio-econômicas, culturais e políticas, nem as contradições, ambi-
Expliquemos rapidamente o que significam, um por um, os güidades e ambivalências, e sim reconhecê-las sempre, e até mais,
processos dialéticos de que fala Gurvitch: buscá-las sempre, mesmo no interior de fenômenos que pareçam
os mais equilibrados e harmoniosos. É este o princípio fundamen-
1) Çomplementl!_.riiia!le._dialética: sob a primeira aparência tal de Gurvitch ao examinar a realidade social, postulando que
de uma exclusão recíproca de termos ou de elementos contrários, sua essência é a constante mobilidade e que a razão de ser da
quando abordados em profundidade afirmam-se uns em função mobilidade está nos desequilíbrios de que é portadora - os quais
dos outros; não podem na verdade nem ser isolados uns dos não se esgotarão jamais, pois resolvido um desequilíbrio, a pró-
outros, nem ser reduzidos uns aos outros, mas compõem, em con- pria forma que se alcançou com esta solução dá lugar a outro
junto, uma totalidade real; desequilíbrio. A realidade sócio-econômica, cultural e política é
2) Ini licação-óuTiíl"anência dialética mútua: elementos ou de diversidade infinita, com multiplicidade de aspectos que não
termos à primeira vista heterogeneos se .. ;-·~entanto, a mes- podem nunca se harmonizar totalmente entre si, - pluridimen-
ma direção, se contêm reciprocamente, se interpenetram, são par- sionalidade que, devido às suas próprias características, nem es-
cialmente imanentes uns aos outros, sem perder sua identidade taciona e nem se equilibra; seus processos dinâmicos não se re-
específica; duzem à oposição dos contrário_s, mas se dá de outras formas,

(14) Gurvitch, 1962, p. 184. (15) Gurvitch, 1962, pp. 190-218.


276 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ
CULTURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 277

às vezes paradoxais, como a da oposição dentro da col)lplemen- ticamente só serem encontrados empregos no campo, constituin-
do as cidades antes de mais nada centros administrativos. Tanto
taridade.
Finalmente, para Georges Gurvitch a dialética se apresenta para as estruturas sócio-econômicas, quanto para as estruturas de-
como um excelente instrumento de análise para a realidade sócio- mográficas (natalidade, mortalidade, porcentagem de sexos) e po-
econômica, cultural e política, uma vez que corresponde à pró- líticas, as coincidências é que são consideradas na maioria dos
pria natureza desta realidade; nada poderia, pois, haver de mais estudos. Colocados os problemas desta forma, aceita-se insensi-
próprio para captá-la. Todavia, se a dialética é o instrumento so- velmente a dedução de que o desenvolvimento destes países se-
nhado para tal, cumpre não confundir análise e explicação. A guirá caminhos paralelos.
dialética, enquanto instrumento, analisa, não explica. A explica- No entanto, se esta maneira de encarar os países latino-ame-
ção estaria, sempre, na história, pois é na história que se inserem ricanos não é totalmente destituída de validez, pode-se indagar
os fenômenos sociais globais; as explicações se encontram sem- se seria a mais apropriada para compreender a fundo suas con-
pre nas configurações da totalidade, diversas conforme o momen- figurações e, principalmente, para apreender os processos em
to histórico, e não em seus aspectos parciais. A dialética como que se encontram em curso. Uma abordagem deste tipo abando-
técnica de análise, e portanto de fragmentação, correspondente à na inteiramente a história, por um lado, e por outro lado desde-
essência dialética da realidade social, e leva o pesquisador até o nha as variações sócio-culturais; e, deste ponto de vista, pode
limiar da explicação, mas não o transpõe; a explicação se encon- ser seriamente questionada. O exame das relações cidade-campo
tra nas configurações móveis dos fenômenos sociais globais em no período colonial ilustra as divergências que não devem ser
curso, em seus fluxos e refluxos. Cada fenômeno, cada camada postas de lado, existentes entre uma América Hispânica e uma
social, cada estrutura, cada conjuntura, encontra sua explicação América Portuguesa, a começar pelas diferenças da colonização
num encadeamento global que jamais se repete tal e qual e que empreendida. ( 17)
é histórico. E há também toda uma dialética entre o conheci- Nos territórios mexicanos e na vertente ocidental dos An-
mento obtido através das análises sociológicas, de um lado, e a des, os espanhóis encontraram importante população autóctone,
história, de outro, que vem contribuir para que o encaminha- portadora de civilizações complexas e com tecnologia já desen-
mento das coisas e dos conhecimentos seja sem fim ... volvida. A colonização foi uma empresa guerreira de dominação
de grupos sociais estratificados que já conheciam a distinção en-
tre o rural e o urbano. Tratava-se, pois, de desalojar os dirigen-
3 Cidade e campo na sociedade colonial latino-americana: tes destas sociedades e de tomar-lhes o lugar na cúpula; para
variedade de dialéticas em sociedades agrárias. tanto contavam os espanhóis com uma superioridade técnica in-
discutível no que diz respeito às armas. Todavia, eram os colo-
A colonização efetuada por espanhóis e portugueses na Amé- nizadores um grupo muito pequeno diante da população nativa,
rica Latina tem sido considerada como formadora de estrutura8 concentrada em cidades e regiões agrícolas intensamente explora-
sócio-econômicas semelhantes, com desenvolvimento também se- das. A tática seguida pelos dominadores para alcançar o objetivo
melhante no tempo. É esta a posiçã.o, por exemplo, de Aldo So- foi fomentar as inimizades e os conflitos internos na sociedade
lari; no trabalho já citado "Sociologia Rural Latinamerica- local para, através de alianças sucessivas, derrubar cada um doITTs
na" ( 16) salienta os traços idênticos entre os diversos países, quer rivais até destruir quase totalmente a camada superior. Substi-
se trate de um pequeno país como Nicaraguá, quer se trate das tuíram assim os espanhóis a camada dominante anteriormente
imensidões brasileiras, mostrando as convergências entre eles. Por existente, conservaram a estratificação e as estruturas sócio-eco-
toda a parte, latifúndio e minifúndio estiveram associados, fazen- nômicas, e conseguiram dominar uma população muito densa, que
do com que os grandes proprietários de terras encontrassem nos já estava habituada a governos centralizados e autoritários. _/
proprietários de pequena e muito pequena propriedade, a mão- Uma vez operada a conquista e descobertas as minas,.....era
de-obra barata que procuravam; trabalhadores sem terra comple- imperativo preservar as cidades e também fundar outras: solução
tavam o quadro. Estas circunstâncias se aliavam ao fato de pra-
' (17) Estas considerações se baseiam em dois trabalhos nossos. Ver Pe·
(16) Solari, 1963. reira de Queiroz, 1966, 1968(a).
1:
278 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ

1
para preservar em seu conjunto a estrutura existente, que concen~ CULTURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 279
trava nas cidades a burocracia indispensável para a cobrança dos
impostos e para o controle das diversas regiões. A organização c_urso constitui uma nítid~ a~ea,ça à contit;iuidade de grande quan-
implantada se fundamentava, pois, na dualidade cidade-campo já tidade de traç?s culturais md1genas, pois a cidade não parece
existente. V alia-se do papel de controle que tem uma sede ad- oferecer uma mfra-estrutura apropriada à sua conservação por
ministrativa em relação ao meio rural que a circunda - das mais um lado, e por outro lado o prestígio da "branquidade" é t~bém
antigas e importantes funções das cidades em geral - para as- um fator que concorre para tal anulação. A dialética dos contrá-
sentar o poder dos conquistadores. Estes habitavam nas cidades, rios continua assim a existir entre rural e urbano.
n.as quais então se localizava a camada superior; e, por influên- . Na Amér~ca Portuguesa, o problema que se colocou aos co-
cia desta camada superior, passaram a se definir como "brancas" lon~zadores f01 totalmente diverso: não se tratava de conquistar
devido à dominação da etnia, e como "ocidentais" pela civiliza- e sim de povoar um vasto território dotado de população relati-
ção; como sói acontecer, quando a dicotomia cidade-campo vamente pouco numerosa, dispersa, estruturada em grupos de pe-
é bem marcada e o papel de controle da cidade bem nítido ten- queno P?rte, de tecnologia pobre, nômades, e portanto desconhe-
dia a ser esta mais valorizada do que o meio rural, muit~ em- cendo c1d.ades, mantendo-se errantes na imensidão do espaço.
bora a produção de riqueza se fizesse no campo e nas minas. P?rtugal, m~eressado na conq!:lista da Ásia e da África, não po-
No campo, ao contrário, se encontravam em massa os abo- dia desperdiçar homens, devendo reduzir ao mínimo o aparato
rígenes, a c:vilização dominante era a autóctone. O trabalho das go':.eI"?amental e burocrático que representaria a metrópole na
minas e o trabalho rural persistiam. Administradores e intenden- coloma. Nesta perspectiva, os centros urbanos não se faziam muito
tes iam às cidades dar periodicamente conta do que se passava necessários; a Coroa preferiu fragmentar o território entre dona-
nas propri~dad~s.' do que ocorria nas minas. Pouco a pouco, o tários, gr~ndes .senhores rurais que seriam responsáveis por tudo
campo se 1dentlf1cava com o "aborígene", com o "bárbaro" tan- q~anto ah se fizesse. Não se favoreceu de início a fundação de
to devido à qualidade de população que o habitava em m~ioria, cidades, reduzidas ao mínimo indispensável; e nem mereceram
quanto devido à qualidade da civilização ali persistente. A des- elas os regulamentos e o planejamento rigoroso das que a Espa-
valorização do campo era notória, e no entanto ali se encontra- n_ha es~abeleceu em seus .te~rit?rios. Dentro des~a mesma perspec-
vam a produção de riqueza e o que podia existir de empregos. tiva, ~ª.º se procurou d1sc1phnar as relações etnicas, a não ser
As relações entre cidade e campo tomaram o aspecto de s_uperf1cialmente; antes procurou-se uma forma de elevar os mes-
uma dualidade em oposição, numa dialética da polarização: a ci- tiçc:_s de ín_dio à condiç~~ de "brancos'', para aumentar a popu-
dade civilizada e branca irredutível ao campo aborígene, de cultu- laçao dommante. A pohtica desenvolvida mais tarde com os es-
ra nativa; antinômicos, havia entre ambos uma posição também cravos africanos obedeceu a um duplo objetivo: eram eles neces-
de dominador-dominado. E é dentro deste quadro de refe- sanos para trabalhar a terra como mão-de-obra e para toda a
rência que se pode compreender nestes países a conservação de sorte de tarefas; porém também tinha a colônia necessidade de
uma forte população indígena que perdura até hoje, colocando homens livres para postos e cargos para os quais os escravos eram
problemas específicos, assim como a permanência de uma civili- considerados inaceitáveis (por exemplo, para feitores nas fazen-
zação autóctone cujos traços fundamentais ainda não foram des- ~a~;. ou para certos ofícios urbanos); ficaram então abertas pos-
truídos. s1b1hdades de passagem para fora da camada escrava maneira
Esta dualidade se reflete claramente na tendência ainda exis- ~e incrementar o crescimento de uma camada livre i~termediá­
tente de se considerar "branco" quem habita a cidade - prin- r.1a entre senhores e cativos. As condições de escravo e de homem
cipalmente a grande cidade - e "índio" quem habita na zona hvre pe~aneceram interligadas pela posição ambígua do liberto.
rural, com a conseqüência de que mestiços e índios, desde que Mes~1ço~ e mulatos tiveram, pois, na América Portuguesa,
se estabeleçam nas cidades, ascendem à categoria de "brancos", desde o míc10 da colonização, uma importância que não foi a
tendendo a abandonar sua cultura específica e a adotar a civili- sua na América Espanhola. Vivessem no camp·o ou na cidade
zação ocidental. ( 18) Atualmente, o forte êxodo rural-urbano em sua condicão de homens livres numa sociedade escravocrata lhe~
dava algum status - o que acontecia também aos negros livrei
Estas oportunidades estavam orofundamente associadas ao fato
(18) Pereira de Queiroz, 1968(a), p. 9. de não se desenvolver na colônia luso-brasileira uma dualidade

J
marcada camoo-cidade, a vida sócio-econômica se concentrando
nas propriedades grandes, médias e pequenas. De fato, os via-
CULTURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 281
280 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ

cidade não se confunde com o campo, na colônia luso-brasileira;


jantes desse período se referem unanimemente ao fato das vilas o homem de cor livre não se confunde com o branco; a civiliza-
e cidades permanecerem mais ou menos desertas o ano todo, a~­ ção ocidental não se confunde nem com a africana, nem com a
quirindo animação somente no momento ~as grande~ f~sta~ reli- aborígene. Porém tudo isto se interpenetra, sem divisões irrecor-
giosas. A Coroa Portuguesa não favorecia a _multi.phcaçao ~e ríveis entre etnias, entre civilizações, entre cidade e campo. O
aglomerados urbanos, o que lhe interessava era JUStamente a dis- comportamento do indivíduo varia conforme esteja no campo ou
persão dos colonos no espaço - ~sp~rsão que significava toma- na cidade, mas sempre ele pertence a duas realidades.
da e manutenção de posse dos terr1tonos. O primeiro impacto de uma diferenciação maior foi produ-
Criou-se, assim, um riti;no de vida que foi específico da, so- zido com a instalação da Família Real no Rio de Janeiro, em
ciedade brasileira durante largo tempo, avançando pelo penado 1808; uma camada totalmente diferente e superior ali passou a
monárquico afora; ritmo composto de perío~os sucessivos de se concentrar, que nada tinha a ver com o campo; era formada
concentração da população nas cidade~ e nas vilas nos moment_os em grande parte por uma administração pública que aqui vinha
de festa religiosa ou de algum acontecimento marc~nte, e de d:s- se implantar, ampliando a burocracia inicial de volume ínfimo, e
persão (momentos muito mais longos) pelas propn~ades rurm~. por uma nobreza estranha à estrutura sócio-econômica e polí-
Durante o período de dispersão, o contato dos mdiv1duos reum- tica regional. Viver na cidade passou a ter valor, na medida em
dos no interior de uma propriedade, ou em torno de uma capela que se confundia com "viver na Corte", em contato com os
(bairros rurais) era estreito; no caso das fazendas, este contato "grandes" e o poder. E foi a partir desse momento que um novo
se fazia entre famílias de camadas diversas, enquanto no caso ritmo de vida iniciou seu processo, segundo o qual se passava
dos bairros rurais tinha lugar entre famílias de camadas homo- mais tempo na cidade e períodos mais curtos de férias na fa-
gêneas. Nos mom'entos de concentração nas vilas, fa~en~eir~s e zenda; lentamente, foram se separando populações urbana~ e po-
lavradores estabeleciam contatos com gente de seu propno mvel; pulações rurais, mostrando que se penetrara numa nova era, na
e os sitiantes dos bairros rurais tomavam conhecimento da varie- era em que a cidade tinha vida por si mesma, e tendia a se tor-
dade de camadas sociais, da variedade de bairros rurais que com- nar predominante em relação ao campo. A independência do país,
punham o universo sócio-econômico de sua região. Num e noutro em 1822, exigindo a ampliação rápida da administração pública,
caso, a população de vilas e cidades era. quas_e a mesma, da do deu nova importância às capitais provinciais e à capital federal.
campo, pois era ela praticamente que _al~ habitava tambem; co- Uma nova dialética pouco a pouco se substituiu à dialética da
mo muito bem notou Gioconda Mussohm, num de seus excelen- imanência mútua, porém não uma dialética de contrários entre
tes trabalhos, a cidade era entã_? um~ prolo~~~nto das fazei::_, cidade e campo; por muito tempo, reinaria a dialética da com-
das, existindo para servi-las ~_para domma:la~ plementaridade, pois cada um se afirmava em função do outro,
- ~ Nãó nõllve;"-pois, durante o período colomal, prolongan~o­ não podendo ser compreendido isoladamente, nem ser também
se durante o período monárquico, uma diferenciação esse~~al reduzido ao outro, e um concorrendo ativamente para a vigência
entre campo e cidade, como o que se estabelecera na Amenca do outro.
Espanhola; pelo contrário, a dialética da implicação mút~a pa- A análise dialética mostra, pois, como foram profundamente
:rece a mais apropriada para no°!ear o tipo. de processo. existente diferentes as colonizações ibéricas na América Latina, não sendo
então entre ambos, o que tambem proporc101!-ou ~m~ mte~pene­ possível confundi-las como uma totalidade monolítica. Pelo con-
tração profunda de civilizações. Note-se q?e imanencm reciproca trário, as diferenças atuais entre os países que hoje compõem esta
ou implicação mútua, significa que os dois termos, heterogen~os grande região se enraízam em seu passado, mostrando que a con-
à primeira vista se contêm reciprocamente, se recobrem parcial- sideração apenas das semelhanças estruturais que porventura exis-
mente um ao o~tro; quando se aprofund.a ai1!-da mais a, ~nálise, tam não esgota a sua definição e tem muitas chances de perma-
verifica-se porém que não perdem sua identidade especifica. A necer apenas nos aspectos mais superficiais. Enquanto na Améri-
ca Espanhola a distinção rural-urbano tem hoje uma consistên-
cia indiscutível, na América Portuguesa não é ela ainda muito ní-
(19) Mussolini, 1955, p. 341, fala do papel das faz~n~as, "s1;1bstit~in_do 'as tida, e se reflete em vícios de linguagem de que não nos aperce-
cidades brasileiras no papel de centros secundanos de mfl1;1encia ur- bemos habitualmente. No Brasil não se diz, por exemplo, "vou
bana"; ver também pp. 351-52. Rios, 1951, pp. 188-208 vai no mes-
mo sentido. para o campo", e sim "vou para o interior" - este "interior"
282 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ CuL TURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 283

sendo ainda uma reminiscência do tempo em que a população se dor de concentrações de população trabalhadora num mesmo lo-
dividia entre a população "da Corte" e a população "do inte- cal, o que promove a implantação de novas estruturas sócio-eco-
rior". Quando se faz referência a um município, o rural e o ur- nômicas entre os grupos humanos, associada a uma nova e cres-
bano se apresentam mesclados, sendo necessárias perguntas in- cente estruturação do espaço; uma dicotomia nítida entre cidade
cisivas para que se consiga especificar o que se passa na sede e campo, determinando também novas formas do "habitat", no-
(que entre nós é por definição uma cidade) e o que se passa no vos padrões de circulação e de transporte; o que se associa a
meio rural que a rodeia. A nitidez das definições da América Es- novos estilos de vida e novos comportamentos sociais, a novas
panhola contrasta, pois, com a imprecisão das definições da Amé- exigências de mercado tanto no que diz respeito aos bens quanto
rica Portuguesa, e ambas se prendem à diferença dos processos ao trabalho; e, finalmente, last but not least, a novas exigências
dialéticos entre campo e cidade, encontrados numa e noutra. E nos níveis de eficiência das atividades sócio-econômicas. Chega-
a diferença dos processos dialéticos se origina na diversidade das se até a dizer que a Revolução Industrial teria tido como resul-
conjunturas históricas que presidiram ao nascimento das colônias. tado uma Revolução Urbana ... (20)
Como se havia já mostrado, ao discutir a metodologia, a Como dissemos no início deste trabalho, não há dúvida de
identificação dos processos dialéticos não significa que estão eles que a expansão da invenção tecnológica proporcionou, primei-
explicados, e com eles a marcha das estruturações e desestrutu- ramente ao campo (Revolução Agrária), em segundo lug_ar à ci-
rações que sofrem as sociedades analisadas. A explicação está dade (Revolução Industrial), as possibilidades de bens em quan-
na conjuntura histórica da gênese, que nos mostrou os espanhóis tidades não sonhadas anteriormente, permitindo a aglomeração,
chegando a territórios densamente habitados e com uma socie- em pequenas áreas, de indivíduos com atividades distanciadas das
dade estratificada complexa que conhecia a diferenciação do ru- atividades agrárias, sem prejuízo de sua manutenção e abasteci-
ral e do urbano; e os portugueses, ao contrário, chegando a terri- mento em víveres. E desta forma operou-se uma mudança total
tórios escassamente habitados por grupos pouco volumosos, por- do eixo econômico, o campo perdendo para a cidade sua ante-
tadores de estrutura e civilização bastante simples. Num e nou- rior primazia, no que tange à produção de riquezas. A estrutura
tro caso, formaram-se estruturas de dominação, em que o co- de dominação instalada entre ambos, do ponto de vista eco-
lono português ou espanhol - europeu em suma - ocupou a nômico, se teria estendido aos valores, aos comportamentos, às
posição de superioridade. Porém o encaminhamento que tomaram estruturas sociais e políticas; inconfundíveis e antinômicas se
as estruturas e as civilizações foram diversas, porque a compo- mostrariam as relações entre campo e cidade, passand~ a se dar
sição das circunstâncias históricas de cada região colonizada fo- segundo uma dialética dos contrários.
ram também diversas. No entanto, os surtos de urbanização na Europa e na Asia
Desta forma, o fato de estarmos diante de uma colonização se efetuaram, em passado mais remoto, sem apoio numa indus-
que tem lugar na mesma época, com colonizadores ibéricos inse- . trialização prévia; pelo contrário, estiveram associados a um
ridos numa estrutura sócio-econômica de origem bastante seme- aumento da riqueza no campo, a modificações havidas nos siste-
lhante, portadores praticamente da mesma civilização, e instalan- mas de plantio e às invenções tecnológicas ligadas à produção
do nas regiões colonizadas estruturas sócio-econômicas agrárias agrária. Constata-se, pois, que a urbanização, definida como
que têm afguma parecença - portanto com as mesmas relações aparecimento, crescimento e expansão de centros citadinos, nos
de produção - não redundou no desencadeamento de processos quais se concentra uma população que não vive diretamente do
dialéticos idênticos; pelo contrário, a conjuntura global histórica trabalho da terra mas se ocupa com atividades desligadas dele,
diversa em que cada grupo de colonizadores se viu merirulhado é um processo anterior e independente do processo de industria-
operou desenvolvimentos difetrentes, inscrevendo-se na disseme- lizacão. Eç;te é relativamente recente no tempo - remonta ao
lhança das dialéticas. século XVIII - enquanto os centros urbanos provêm da mais al-
ta anti.i:rüidade e se originaram de progressos efetuados em idades
muito remotas, no âmbito das atividades rurais, permitindo tal
4. Fato agrário e fato industrial numa sociedade em processo de
aumento de produção de víveres que se tornou possível a con-
desenvolvimento - a sociedade brasileira
O processo de industrialização tem sido considerado como
um poderoso motor de urbanização, no sentido de que é gera- (20) Bernardes, 1966, p. 66.
284 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ
CULTURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 285
centração local de indivíduos não empenhados diretamente nela sileiro, (23) elaborado quando o surto de uma "industriailzação
em trabalhos agrários. De acordo com estas constatações, o nexo industrializante", para utilizar a terminologia de Jean-Marie Mar-
causal que explicaria o aparecimento das cida~es se deu no pas- tin, (24) seguia já plenamente seu curso no país, pode-se chegar
sado com as invenções rurais; o nexo que as hga ao processo de a novos diagnósticos referentes ao assunto.
industrialização não seria, pois, causal, e sim de fomento ou de O exame de índices estatísticos referentes à estrutura ocupa-
incrementação. cional da população do país mostrava, para o momento do es-
Mas se desde as altas eras, uma vez desfeitas sociedades tudo efetuado (1966), uma predominância de ocupações direta-
tribais que não conheceram o fenômeno "cidade" e cuja trans- mente ligadas ao meio rural, engajando uma porcentagem maior
formação criou o que é rural, diferente do urbano, cada um des- de indivíduos do que as ocupações ligadas ao meio urbano; além
tes aspectos tendeu a ser definido em função do outro, mostran- disso, naquele momento, todas as unidades da Federação ~rasi­
do-se de certa forma como a sua negação, e isto apesar das ci- leira, menos duas, apresentavam uma população rural mais vo-
dades não se apresentarem semelhantes; fugindo ao mesmo tipo, lumosa do que a população urbana; como decorrência, eram as
! 1
tem sido inúmeras as tentativas de classificação a que foram sub- atividades primárias as que mais importância tinham na estru-
metidas todas elas insatisfatórias. A nosso ver em grande parte turação do espaço econômico.
por ter~m abandonado uma característica fundamental, que é o Esta última observação era significativa: floresciam as cida-
tipo de relações que mantêm com o meio rural circundante, por des nas zonas e regiões em que as condições deprosperidade no
um lado, e por outro lado com a sociedade global n~ <J.Ual e~tão quaãrõ ruralerâm ·tais queeiigiam o seu aparecill1e!l:!2--_e desen.-::.-
implantadas. Foram estudadas de per si,. como se_existissem i~o­ ~-PQ_d:fa-se dizer que quanto mais variada e mais rica
ladas e assim devessem ser compreendidas. Ou quando mmto a-ecôíiõmia rurar de um Estado da Federação, maior o nÚ:IJ:!~fQ_ __
estudou-se sua dominação sobre o campo, considerando-se que - de cidades-e-1nairpfõgressisfas . eram -êlãs.- Aliás;- podemos com-
sempre seriam superiores a este, e a ele contraditórias. ,- p1etãfãCfescfíÇãõ éle" Ni1o -Bernafd"es cómalguns fatos de obser-
Já vimos como no Brasil, no período colonial, a dificuldade vacão corrente entre nós: todas as vezes que uma zona ou re-
em separar campo e cidade mostrou um outro tipo de relaciona- gião rural entrou em decadência, fosse devido ao esgotamento do
mento, por detrás da aparência ilusória de uma dialética dos con- solo, fosse devido a quaisquer outras circunstâncias, suas cida-
trários. Para tempos mais próximos de nós, convém lembrar no- des sofreram diretamente as conseqüências, o progresso se apa-
vamente o trabalho já citado de Gioconda Mussolini, em que gava, transformando-as em "cidades mort~s". Toda ~ decadên-
demonstrou como os processos de persistência e mudança de cia do Vale do Paraíba, em sua zona de varzeas e colmas, cons-
comportamentos tradicionais nos centros urbanos brasileiros es- tituiu um excelente exemplo da ligação íntima existente entre cam-
tavam fortemente ligados ao meio agrário em que se locali- po e cidade, entre nós. E é este tipo de relacionamento que Nilo
zam. (21) Além disso, nossas "frentes pioneiras" se apresentam Bernardes ainda encontra para a maioria das cidades brasilejras
como verdadeiros viveiros de concentração urbanas em processo em 1966, fora do binômio São Paulo e Rio de Janeiro.
de instalação,(22) mostrando que o enriquecimento do campo Estavam, pois, estas cidades na dependência do campo, não
se opunham a ele. O capital extraído do campo era aplicado nas
continua a ser gerador de cidades.
cidades para embelezá-las, mas não para levá-las a produzir; as ci-
Todavia, não se poderia mais pensar na antiga dialética . da
dades estavam a serviço do meio rural e se desenvolviam em fun-
imanência recíproca dos tempos coloniais, uma vez que as dife-
ção dele. Seu papel era extremamente fraco no que diz res-
renciações já seguiram seu curso, e que a população rural não é
peito a provocar, direta ou indiretamente, transformações tanto
mais a mesma da cidade; vimos que isto se dava "no tempo dan-
na estrutura agrária, quanto nos sistemas agrícolas, ou mesmo na
tes", na medida em que, fora do período das festas, as ~ilas e
cidades tinham fechadas a maior parte de suas casas. Anahsando
o trabalho do geógrafo Nilo Bernardes, O espaço econômico bra-
-·- . . -··----------~ (23) Bernardes, 1966, pp. 109ss.
(24) Martin 1966 chama de "indústrias industrializantes" aquelas que
suscita:U co~ seu desenvolvimento, novas indústrias, diferencian-
(21) Mussolini, 1955, pp. 333-334. do-se daquelas que esgotam em si mesmas as possibilida~es de ~e­
(22) Monbeig, 1952. senvolvimento industrial. É a diferença entre a metalurgia e a m-
dústria têxtil, por exemplo. Ver pp. 11-2 e nota 7.
,,
CULTURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 287

286 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ ciação entre fazendeiros e o capitalismo europeu datava do pe-
ríodo colonial - aliança tácita que, no século XVIII, "era do-
diversificação dos produtos cultivados, que ficavam limitados ou minada já pela indústria britânica, e que é suficiente para expli-
ao que era exigido pela exportação, ou ao que era nece~sário car o insucesso de toda produção industrial brasileira no limiar
para o consumo imediato dos habitantes do campo e da cidade. do século XIX".(27) Na segunda metade do século XIX, o pro-
O que é mais, o próprio desenvolvimento industrial também ,gresso da cafeicultura impôs a expansão da mão-de-obra, e con-
estava neste caso dependente do meio rural. A industrialização centrou na zona Centro-Sul "uma forte população de origem
paulista teve na base de seus primeiros surtos a riqueza adqui- européia, suscetível de consumir os produtos da indústria brasi-
rida com o café. As áreas coloniais do Paraná, de Santa Cata- leira e de lhe fornecer a mão-de-obra especializada de que ne-
rina do Rio Grande do Sul mostram o mesmo fenômeno, isto é, cessitava". (28)
um; primeira industrialização que se desenvolve tendo como Nesse período, paradoxalmente, o desenvolvimento indus-
ponto de apoio os capitais derivados de atividades agrárias lucra- trial havido teve apoio no capital nacional; quanto ao capital es-
tivas. E também no Nordeste, estabelecimentos têxteis isolados se trangeiro, apenas parcialmente se voltou para a indústria, prefe-
implantaram até mesmo em pequenos povoados de zonas mais rindo os ingleses investir na infra-estrutura urbana (transporte ur-
ricas.(25) bano, produção e distribuição de gaz, eletrificação), em bancos
No trabalho excelente e extraordinariamente bem documen- e nas estradas de ferro. A preferência significava que o desenvol-
tado que Jean-Marie Martin dedicou ao processo de industriali- vimento urbano em curso estava sendo mais importante e mais
zação e ao desenvolvimento energético no Brasil, desd~ a época lucrativo do que a industrialização - na verdade, ainda incipi-
colonial encontramrse dados que fundamentam tambem estas ente, e chama de novo nossa atenção para o desligamento, no
afirmaçÕes. O relacionamento entre a agricultura de exportaç_ão século XIX, entre os processos de industdalização e de urbaniza-
e o desenvolvimento urbano a princípio, entre a mesma e a In- ção, no Brasil. "Com efeito, o Brasil, como a maior parte dos
dustrialização em seguida, está apoiado em algarismos que ? países coloniais, conheceu um fenômeno de urbanização muito
autor encontrou em arquivos de toda a sorte. Destaca-se a ambi- anterior a qualquer processo de industrialização, e comandado
valência das relações rurais e urbanas, levando Jean-Marie Martin pelo desenvolvimento de suas trocas com a Europa" - o que
a dizer que, "obstáculo maior no caminho da .indústria, a agri- equivale a dizer, comandado pelo desenvolvimento da agricultura
cultura de exportação permanece todavia na ongem de se_u ª~~­ de exportação, que se completava com uma importação intensa
recimento e de sua expansão. Se tal não fosse o caso, sena difi- de produtos europeus. (29) A urbanização em curso significava,
cilmente compreensível que, depois de uma primeira fase de re- por exemplo, um aumento do consumo de energia; verifica-se en-
lativa dispersão no território brasileiro, a indústria se tenha tão tão nesse período que "as fases em que o crescimento industrial
depressa concentrado no Estado de São Paulo, que se torna, a é mais rápido, não são aquelas em que o consumo de energia
partir da segunda metade do século XIX, o grande produtor de mais se desenvolve"(30) - o que deveria acontecer, caso ur-
café". Três foram as vias pelas quais a agricultura de export~­ banização e industrialização estivessem associadas; ao contrário,
ção desempenhou importante papel no sur~mento e no cresci- é o desenvolvimento rural que comanda o desenvolvimento da
mento da indústria: "pela formação do capital, pela concentra- energia, tanto no campo como na cidade, e que comanda também
ção da mão-de-obra e pela constituição de um mercad? para os o desenvolvimento urbano, comandando inclusive a própria in-
bens de consumo" aos quais se acrescenta o desenvolvimento da dustrialização ...
administração púbÍica, uma vez que os recursos indispensáveis à Assim, embora constituindo "obstáculo" à industrializa-
ampliação das cidades provinham em grande parte da expor- ção, a agricultura de exportação no Brasil agiu como um elemen-
tação. (26) . to que a fomentou; e, quanto à urbanização, o papel incrementa-
Nota, pois, Jean-Marie Martin a assoc~aç~o de fazend.em~s,
comerciantes (estreitamente ligados aos pnmetros) e capttahs-
tas estrangeiros no financiamento do primeiro ~eríodo da indús-
tria brasileira, durante o século XIX. Repara ainda que a asso- (27) Martin, 1966, p. 80.
(28) Martin, 1966, p. 97.
(29) Martin, 1966, pp. 37-38.
(30) Martin, 1966, p. 37.
(25) Bernardes, 1966, p. 96.
(26) Martin, 1966, pp. 95-96-97.
288 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ CULTURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 289
dor da agricultura foi decisivo. Assim, o meio rural estava em mas que na verdade se afirmam pouco a pouco um em função
"ambivalência dialética" para com o processo de industrializa- do outro, do ponto de vista econômico, a este se agregando os
ção, ( 31) mantendo-se porém em ,"complementaridade dialétic~" outros aspectos como o político e o cultural.
para com o meio urbano. Atraves do t~ab~lh~ de. J~~n-~fane Mas com a "industrialização industrializante" em curso em
Martin, pode-se observar que esta "amb1valencia dialetlca era São Paulo e adjacências, a partir de 1950, mais ou menos, não
já uma transformação em relação ao que existira no período co- se estaria instalando um novo tipo de relacionamento entre ci-
lonial. A própria situação colonial determinara uma situação de dade e campo? As formas básicas deste tipo de industrialização
oposição entre meio rural e industrialização, na medida em que a parecem bastante desvinculadas dos condicionamentos geográ-
metrópole estava interessada em ampliar o que lhes desse lucro ficos, e geram importantes recursos econômicos a partir de gran-
- a atividade agrária de exportação, associada à importação de des concentrações de mão-de-obra aglomerada em pequenas áreas.
produtos provenientes de artesanato e indústrias lusas e euro- O suprimento em matéria-prima, energia etc., não provém mais
péias. A proibição da fabricação de sabão, em 1775; os decretos. de suas imediações, porém de pontos muitas vezes remotos. Estas
proibindo a produção de toda a espécie de tecidos finos (veludo, características impõem novas estruturas inter-regionais, transfor-
setim, tafetá, percal, flanela etc.), de galões, de chapéus, em mam o espaço em que se implantam os .complexos industriais,
1785 - embora mostrando que um embrião de artesanato havia modificam as relações entre os homens nas cidades, e também as
tentado se desenvolver, não despertam nenhum movimento de relações entre a cidade e o meio rural. Desta maneira, tal indus-
reação da parte dos fazendeiros, tão prontos a se levantar contra trialização comanda, ela própria, as transformações ao seu redor,
medidas da metrópole que lhes parecessem contrariar seus inte- inclusive as que têm lugar no íntimo do meio rural. Enquanto, no
resses. Jean-Marie Martin diagnostica, pois, para essa época uma período anterior, o termo independente economicamente fora o
dialética dos contrários, isto é, "uma correlação inversa ligando setor agrário, que gerava capital para o setor industrial, neste se-
o desenvolvimento artesanal ao pré-industrial e o enriquecimento gundo momento, o setor industrial é o termo independente gera-
baseado nas culturas de exportação". (32) dor de capital, enquanto o setor agrário passa a ser o termo de-
Nossa constatação da existência de uma "dialética dos con- pendente.
trários" entre a produção rural e a incipiente industrialização bra- A região industrializada age então como centro integrador
sileira no século XVIII e início do século XIX, a demonstração que vai progressivamente articulando as outras regiões do país -
de qu'e, no fim do século XIX, as relações não eram mais de isto é, reorganiza o espaço nacional em função de uma interde-
oposição entre ambos, mas sim de ambivalência - o "obstá- pendência e de uma solidariedade econômica, que vai atingir in-
culo" da agricultura de exportação continuando como tal, porém diretamente mesmo as regiões mais recuadas. Dando um novo
agindo ao mesmo tempo como um primeiro fator de in~e~en­ impulso à urbanização, intensifica a dicotomia campo-cidade,
tação de indústrias - indica a variação dos processos dialéticos cujas economias vão aprofundando suas diferenças, embora con-
através do tempo. A riqueza crescente da região cafeicultora, de tinuem também profundamente interdependentes. A formação de
que a cidade de São Paulo se tornara o ful.cro, el~geu-a como o grandes empresas agro-industriais-comerciais se incrementa. A
meio mais adequado para a implantação mdustnal, em nossos abertura de grandes rodovias está ligada a este período, que é
dias. Pouco a pouco, a "ambivalência dialética" foi por sua vez também o de certa especialização regional - o Centro-Oeste pas-
substituída por uma "dialética da complementaridade", que mais sando, por exemplo, a ser o fornecedor de carne e de cereais
e mais foi se afirmando entre produção agrária e industrialização. para São Paulo, enquanto São Paulo, por sua vez, lhe envia pro-
Isto é, a dialética da complementaridade, que definira as rela- dutos manufaturados, cuja matéria-prima é de longe drenada para
ções, no Brasil, entre o meio agrário e o meio urbano, passou fi- a região paulista. O mercado interno passa também a ter cres-
nalmente a definir também as relações entre industrialização e cente importância e a impor sua marca nas atividades econômi-
desenvolvimento agrário, dois fluxos aparentemente contrários, cas nacionais.
As transformações trazidas pela industrialização se refletem
por exemplo, no destino dado aos produtos do campo, dos ql!~is
(31) Novamente se observa a independência entre os processos de indus- muitos deixam de ser cultivados com "tecnologia tradicional", e
trialização e urbanização. passam para a situação de produtos cultivados com "tecnologia
(32) Martin, 1966, p. 79. avançada" ou com "alguma tecnologia avançada". E o que ocor-
290 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ CuL TURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 291

re por exemplo com a mandioca e o milho, em São Paulo. Anti~ em que se cultiva o produto, mais claras e firmes as novas ten-
gos produtos cultivados por pequenos lavradores com a mão-de- dências da cotonicultura.
obra familiar e destinados ao mercado local quando sobrassem Além desta transformação através do tempo, em que a in-
do consumo doméstico, são hoje em dia também destinados à in- dustrialização do Estado de São Paulo serviu de motor ao pro-
dústria, o que os faz passar de sua situação de tecnologia rudi- gresso agrícola, outros detalh~s ~o trabalh? de Mar~a Tereza
mentar, para a situação de "a caminho de tecnologia avançada". Leme Fleury vão na mesma direçao, que dizem res.peito a uma
No entanto, um produto como o café, que fora a grande riqueza transformação através do espaço e concomitante no tempo. As-
do Estado outrora, no cultivo e beneficiamento do qual se pro- sim, na região do Estado chamada "zona píoneira", ''.essencia~­
curava utilizar o que havia de mais moderno, atualmente é en- mente agro-pecuária, com indústria incipiente, com baixa densi-
contrado ora tratado por técnicas avançadas, ora por técnicas ru- dade demográfica, com elevada porcentagem de população r1;ll"a.l,
dimentares; baixou de sua situação anterior de produto de "tec- com sistema viário algo precário", foi a autora encontrar mveis
nologia avançada", portanto, ( 33) para o de "alguma tecnologia tecnológicos e níveis de produtividade mais baixos, maior em-
avançada". prego de trabalhadores permanentes; ~nquanto. na região de _Ri-
beirão Preto e de Campinas, "de ma10r densidade demográfica,
A industrialização, modificando o destino dado a certas pro- com elevada porcentagem de população urbana", com industria-
duções agrícolas, transforma inclusive sua maneira de cultivo, lização em "estágio avançado", "bem servida quanto ao sistema ,
podendo-se dizer que, entre nós, quando um produto tradicional viário" a cotonicultura tem níveis tecnológicos e de produtivi- 1

de abastecimento se torna um produto destinado à indústria na- dade i:iais elevados, sendo também maior a utilização da mão-~
cional, as técnicas avançadas passam em geral a ser utilizadas de-obra volante e menor a de mão-de-obra permanente.(36) E
em sua cultura. ( 34) Maria Tereza Leme Fleury pode concluir que "o processo de
_Todavia, não é apenas a modernização agrícola que se Il10S:: modernização da cotonicultura paulista ocorreu vinculado ao de--
tra influenciada pela industrialização, através do destino dado senvolvimento do Estado de São Paulo global e regional'', desen-
aos produtos; o tamanho da propriedade, a organização do tra- volvimento comandado pela expansão industrial, pois "as re-
balho no seu interior, são outros aspectos que, conforme se tem giões se distinguem pelo seu. avanço indu~trial ~redominante­
constatado através de pesquisas, sofrem alterações. .Estudando a mente"· assim "é o desenvolvimento urbano-mdustrial que, assu-
cotonicultura no Estado de São Paulo, mostra Maria Tereza Le- mindo 'caract~rísticas diferentes nas diversas regiões do Estado,
me Fleury que este produto, anteriormente cultivado por peque- está condicionando a transformação tecnológica da lavoura algo-
nos proprietários, arrendatários e parceiros, até 1950 com técni- doeira e sua organização de trabalho".(37) _
cas de cultivo bastante atrasadas, sofreu uma concentração fun- Do que foi examinado, depreende-se que as relaço~ entre
diária, entre 1950 e 1971, ao mesmo tempo que se processava meio rural e industrialização, na sociedade paulista, a mais avan-
a modernização das técnicas empregadas e que se transformava çada economicamente no país, permanecem hoje em :omplem~n­
a organização do trabalho agrário nas propriedades; enquanto an- taridade dialética conservando um elemento de negaçao, mas m-
teriormente predominavam os trabalhadores assalariados perma- teragindo de tal forma que as transformações industriais se com-
nentes, a tendência atual passou a ser para aumentar o número pletam por meio de transfonnaç~es agrárias. Quan~.° fala?J-os _e?,1
de trabalhadores temporários, concomitantemente com a eleva- "industrialização", estamos tambem falando em urbar:izaçao. ,
ção do nível tecnológico. (35) Quanto mais industrializada a zona uma vez que, no estágio em qu~ s,e. encontr~m ª!11-b~s, va<? se h~
gando intimamente por uma dialet;c.a de 1manenc_ia re~1proca.
pois produtores e mão-de-obra agrana tendem aqm a viver nas
(33) Ver os trabalhos do Instituto de Economia Agrícola, 1972, e tam- cidades ...
bém Pereira de Queiroz, 1972, 1974. Resumindo o que foi apresentado, houve no Brasil, n~ pas·
(34) Pereira de Queiroz, 1974. Nosso trabalho se baseou nas pesquisas sado, uma dialética de imanência recíproca entre campo e cidade,
do Instituto de Economia Agrícola, da Secretaria da Agricultura do
Estado de São Paulo, efetuadas em 1972; o desenvolvimento \las
indústrias de café solúvel não havia ainda sido suficiente para afetar
o cultivo deste produto. (37) Flerury, 1975, pp. 112-13.
(35) Fleury, 1975, pp. 91-100. (36) Fleury, 1975, pp. 105-07.
!'
'I
292 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ CuL TURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 293

d~ pon~o de vista demográ~ic~ _e econômico, que pouco a pouco sociedade agrária que começava a se urbanizar no século XIX,
f~i cammhando par~ uma drnletica da complementaridade, na me- independentemente de qualquer industrialização. .
dida cm que os habitantes do campo e da cidade se diferenciavam A divergência de desenvolvimento entre campo e cidade no
numa especialização ?e tarefas; porém, nesse período, a dominação que diz respeito à cultura tem sido observada por sociólogos e
do cami:_o sobre a cidade era clara, e, quanto à industrialização, antropólogos, na opinião dos quais uma dialética da oposição ca-
as rel~çoes tomavam o aspecto de uma dialética dos contrários ractenzana em geral suas relações, principalmente no momento
:-- os _mteresses dos ~azendeiros e da metrópole contribuindo para atual. O rápido progresso da industrialização urbana na Europa,
im~edir o ~es~nvolvimento dela. Num segundo período, depois no século XIX, enquanto o campo parecia dormitar conservando
da mdependencia, permanece a dominação do campo sobre a ci- hábitos antigos, levou à admissão de que o meio rural se caracte-
dade, mas já _agora numa dialética da complementaridade entre as rizaria pela "resistência à mudança'', enquanto a cidade, ao con-
duas econ~mias. ~~ rel!lções en~re as atividades agrárias e o pro- trário, era o fulcro das inovações. Além disso, a disseminação da
cesso de mdustnahzaçao tambem se modificaram, instalando-se tecnologia no meio rural - tecnologia de origem urbano-indus-
en!re ambos. uma dialética da ambivalência. Tal situação perdurou trial - destruía uma série de práticas arcaicas, parecendo votar
~te qu~ se mve~te.ram as posições entre a economia agrária e a ao desaparecimento o que fora chamado na Europa de "civi!ização
~nd~st~al, esta ultima passando à posição dominante. Sediadas as camponesa", e des.pertando resistência aparentemente por is_so.
mdust.nas _em algumas cida?es1 . suas relações com o processo de No Brasil, esta maneira de ver deu também seus frutos, desde
u~ba~iza.çao segu~m ,um.a drnleh~a de complementaridade. A am- o fim do século XIX. Euclides da Cunha foi talvez o primeiro
bivalencia entre mdustna e agncultura também desaparece ins- pesquisador brasileiro a opor,. como ini~igos irredutíveis, a c~vili­
taland~"-,se ~o~amente u~a dialética da complementaridade, ~omo zação moderna das grandes cidades do litoral e o conservantismo
a que Jª existia entre me10 rural e meio urbano desde o século das populações sertanejas, baseando nesta perspectiva toda a in-
XIX. Isto é, irmanam-se cidade e indústria (no caso das cidades terpretação do movimento messiânico de Canudos.(38) Mais perto
industrializadas), quanto à economia; e suas relações com o cam- de nós, James Watson analisou a mesma questão de um ponto <!e
po passam a ser coincidentes. Ê dentro de uma dialética da com- vista antropológico, estudando o que chamou de "ocidentaliza~ão
plementaridade com a indústria que o campo modifica sua tecno- do caboclo brasileiro" - o termo "caboclo" tomado no senti<!o
logia e sua organização de trabalho - complementaridade que no que, no sul do país, se dá à palavra "caipira" e, no Nordeste, à
entanto não acarreta identificação do campo nem com a cidade palavra "tabaréu".(39) Na maneira de ver de James Watson_,_as
e n.e~ c?m a indús_tria, todos três guardando suas identidades por cidades brasileiras do litoral se teriam "ocidentalizado" do ponto
mais mt1mo que se1a o seu relacionamento. Noutras palavras ha- de vista da sua civilização, e este processo se estaria estendendo
~e~E;~ Q ''di~e~ent_e", ou o "negativo", fator justa~en1ê-~-, ao meio rural; por "civilização ocidental", entende ele aquela que
da persistencrn das distú1ções. teve origem na Europa Ocidental e daí se estendeu para outros
continentes, num processo de homogeneização cultural, favorecido
5. Dialética rural-urbana e cultura ou talvez mesmo criado pela disseminação do capitalismo.
U~a ~as ca~acterísticas das relações entre campo e cidade, Ê certo que no Brasil existiu uma cultura ou civilização "tra-
no Bras~l,. hga-s~ a constatação de que a vida dos habitantes pode dicional" no sentido de um conjunto de costumes, instituições,
est~r su~eita a ntmos, no decorrer do ano, oriundos do local de
A
crenças, práticas, comportamentos oriundos do passado - conjun-
residen;~a e de sua mudança. Nos tempos passados, habitavam to que em fins do século XVII já adquirira consistência ~rópria,
as familias de preferência nas propriedades agrícolas, fossem elas diferenciando-se da civilização portuguesa que fora a sua raiz. ( 40)
grandes ou pequenas, concentrando-se nos povoados e nas vilas Ê certo também que, a partir de um determinado momento, pelo
somente po~ ocasião ~a~ festas religiosas. A habitação permanente menos alguns dos valores, práticas e costumes foram sendo subs-
era a propnedade agrana; nos povoados e vilas ficavam as "habi- tituídos por outros que não eram originários do país, mas difun-
taçõe,_s ~ecundá~as" o~ de férias. Com a evolução demográfica e
economica, ? ~tmo f01 passando a ser outro: a habitação urbarla
tornou-~e pnncipal; nas fazendas, nos sítios, nas chácaras ficavam (38) Cunha, 1936, 13.ª ed.
as "habitações secundárias". O Brasil era então, como vimos, uma (39) Watson, 1953, pp. 21-38.
(40) Candido, 1964.
294 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ
CuL TURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 295
<lidos do exterior. Este processo foi muito anterior ao processo de
industrialização; correspondeu à expansão urbana brasileira do Freyre coloca em fins do século XVIII e início do século XIX
século XIX, que se fez como uma conseqüência geral da indepen- esta adaptação, promovendo o aparecimento de algumas inova-
dência e, no sul do país, da expansão agrária. ções, que assim se originaram no próprio interior da sociedade . e
No entanto~ noutros momentos anteriores da história pátria da cultura do país, mas que são caracterizadas pela permanência
houve desenvolvimentos urbanos com base na riqueza rural· Re- fundamental de seus traços.
cife, Salva~or e outras cidades do Recôncavo baiano, São ' Luís No entanto, um estudo do Rio de Janeiro nesse mesmo pe-
do Maranhao, Belém do Pará, para não citar senão as cidades que ríodo mostra que, se o Recife, ou Salvador, ou São Luís do Ma-
conheceram um progresso urbano mais antigo, sem dúvida alguma ranhão, passaram então por um desenvolvimento em que se pro-
o demonstram; estas cidades cresceram e se expandiram num meio cessou uma adaptação das instituições e dos costumes da popu-
rural próspero. A inversão do ritmo de vida dos fazendeiros tor- lação agrária a um primeiro processo de urbanização em curso,
~ando-o preferencialmente urbano, parece nelas se ter dado ·antc- na cidade que se tornara a capital do país teria havido transfor-
normente ao que se observou no Rio de Janeiro; é uma hipótese mação, não adaptação. Num outro trabalho abordamos este pro-
que somente pesquisas locais permitiriam comprovar, mas que se blema indicando que as antigas formas urbanas da "cidade dos
pode levantar no estado atual precário de nossas pesquisas histó- vice-r~is" estavam já em 1830-1840 substituídas por outras dife-
ricas . . . Embora tenha havido uma expansão urbana nesses cen- rentes, que o estilo de vida não era mais o mesmo, e que todas
tros, teria ela sido acompanhada de uma transformação nos valo- estas transformações pareciam ligadas ao desabrochar de uma so-
res, nos costumes, nas práticas e comportamentos? Ou teria havido ciedade de classes, com uma alta e média burguesia, com peque-
simplesmente uma adaptação dos mesmos, devido à passagem de no-burgueses que eram funcionários e artesãos, dispostos em ca-
um "habitat" disperso nas fazendas para um "habitat" em con- madas caracterizadas por suas ocupações, pelos seus hábitos e
centrações urbanas?
costumes, embora economicamente não ocorresse a implantação de
Gilberto Freyre, que muito antes de outros estudiosos uma infra-estrutura industrializada. ( 42)
foi atraído pelo estudo deste processo, dá a entender que houv~
Pode-se pensar que a utilização desta nomenclatur~, muito
uma adaptação, e não uma transformação.(41) No primeiro caso, da estreitamente associada às teorias de Karl Marx, que a hgaram a
adaptação, os valores, as instituições, os costumes não se modifi- um substrato sócio-econômico definido em função de uma conjun-
cam, mas se ajustam ao novo "habitat"; no segundo caso, da tura histórica específica e localizada no espaço europeu_, ultrapas-
transformação, a modificação da forma, da estrutura dos valores saria os limites do permitido, mesmo deixando de lado qualquer
dá lugar a algo de novo, podendo-se ver, em certo~ casos, que
problema de ortodoxia. No ~io de Janeiro do ~écu!o XIX, as re-
um conjunto sócio-cultural foi substituído por outro diverso, bro- lações de produção estão mmto longe das que mspiraram a Marx
tado no entanto do anterior. Gilberto Freyre não define em suas
suas reflexões, .pois ali nem mesmo existia qualquer processo de
obras o grau de modificação havida; mas da leitura de seu segundo
industrialização que pudesse ser mencionado. Como falar então em
trabalho, Sobrados e mocambos, depreende-se que não está ana-
alta, média e pequena burguesia, já que um dos. outros termos
lisando uma transformação, e sim uma adaptação de modo de vida;
descritivos que definem esta estrutura - o proletanado - faltava
o próprio subtítulo o indica, pois o livro trata da "Decadência do
inteiramente? E faltava porque nada de semelhante a uma Revo-
Patriarcado Rural e Desenvolvimento do Urbano", mostrando que
lução Industrial ali se observava. Tais constataçõ~s. têm ~e~ado
a instituição familiar, que considera a espinha dorsal da sociedade
muitos autores a recusar a análise das camadas sociais brasileiras,
da época - o patriarcado - permanece em sua forma essencial nessa época, dentro de tal quadro conceituai.
e se adapta ao novo meio para o qual se transplanta. Para ele,
há, então, continuidade entre o meio rural e o meio urbano do Esta maneira de ver talvez seja aceitável dentro de uma pers-
ponto de vista sócio-cultural; não estamos diante de realid~des pectiva das teorias sócio-econômicas específicas, :predominante-
culturais opostas que se destroem mutuamente, porém de reali- mente; nossa posição é outra, já que estamo.s anah~ando oAs ~a­
dades ligadas por uma dialética da imanência recíproca. Gilberto riados grupos diferentemente dispostos na hierarquia econom1ca
interna da sociedade urbana brasileira, porém de um ponto de

(41) Freyre, 1933. l.ª ed.; 1951, 2.• ed.


(42) Pereira de Queiroz, 1973, pp. 211-13.

~I
296 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ CuL TURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 297

vista sócio-cultural. ( 43) Antes mesmo da Revolução Industrial terra a moda masculina, cabendo à Europa a moda feminina,
na Europa, distinguia-se a burguesia européia por traços de civili- tanto no que diz respeito ao vestuário, quanto às boas maneiras,
zação muito marcados, que vão desabrochar juntamente com o li- aos costumes, à instrução, valores em sentido amplo e restrito. E
beralismo, doutrina filosófico-política que se firma aliada à mesma Charles Morazé mostra com grande felicidade a marca que os
Revolução. E mais ainda, dá origem a uma nova camada inferior, europeus "burgueses conquistadores" impuseram então na face
com outros comportamentos e modos de pensar, bem distintos dos do mundo, nesse século XIX que foi o século do seu apogeu. ( 46)
da~ três camadas do mundo burguês e do campesinato: o prole- No Rio de Janeiro, como já tivemos oportunidade de mostrar,
tanado urbano com suas maneiras de ser específicas. Efetuando ocorreu então uma diferenciação de camadas sócio-econômicas
o estudo de orçamentos familiares, Halbwachs mostrou, na França muito mais nítida, cada qual com estilo de vida diverso. Os us~s
do século XX, a diferença cultural essencial entre farm1ias de e costumes da antiga "civilização brasileira", formada no século
operários e de pequeno-burgueses que, no entanto, tinham o mes- XVII e sedimentada no século XVIII, recuaram para o meio ru-
mo nível salarial; sistemas de valores muito diferentes orientavam ral, onde se conservaram, mas fragmentos dela persistiram nas
as prioridades das despesas, que se organizavam de forma total- camadas inferiores urbanas. José de Alencar, ao escrever seus ro-
mente diversa, não havendo possibilidade de se confundir peque- mances, teve disto perfeita consciência; ao classificá-los, observou
na burguesia e operariado quanto às maneiras de ver, muito em- que O tronco de ipê, Til, o gaúcho, todos eles rurais, vieram
bora dispuzessem de recursos econômicos exatamente do mesmo "desses recantos, que guardam intato, ou quase, o passado"; no
nível. ( 44) Diferença semelhante foi encontrada por Louis Cheva- entanto, ele mesmo advertia que no primeiro romance se notava
lier, que estudou justamente o nascimento do proletariado urbano já, "devido à proximidade da corte, e à data mais recente, a influ-
parisiense, a partir de camadas urbanas inferiores existentes ante- ência da nova cidade, que de dia em dia se modifica, e se repassa
riormente à Revolução Industrial. ( 45) O. que Halbwachs encon-
do espírito forasteiro". Mas enquanto nos romances rurais, apesar
trou na década de 1920-1930 foi o resul.tado do que nascera no
século XIX, sob a forma de "classes laboriosas", muito facilmente de tudo, "encontra-se ainda em sua pureza original, sem mescla,
encaradas já também como "classes perigosas". esse viver singelo de nossos pais, tradições, costumes e linguagem,
Se no século XVIII a Europa exportava certos aspectos de com um sainente todo brasileiro", o mesmo já não ocorria nos ro-
seu om ortamento burguês, que chegavam ao Brasil tanto direta- mances urbanos - Lucíola, Diva, A pata da gazela, Sonhos d' ou-
mente, quanto atraves a sociedade urbana portuguesa de então, ro, Senhora. Pois estes, diz o autor, se originaram "desta luta
esta exportação cultural se intensificou sobremaneira no século entre o espírito conterrâneo . e a invasão estrangeira". ( 47)
XIX, sob o influxo marcante da Revolução Industrial. Na medida Em seus romances urbanos, retratou pois José de Alencar
em que as camadas urbanas inferiores da Inglaterra e da França a vida citadina do Rio de Janeiro; e, incriminado pelos críticos
não possuíam recursos para adquirir mercadorias que a nova (ec- que os encontravam recheiados de galicismos e anglicismos, de-
nologia multiplicada de forma acelerada, impunha-se que novos fendia-se: "Taxar estes livros de confeição estrangeira é, revelam
mercados se abrissem nas camadas abastadas de outras regiões, os críticos, não conhecer a fisionomia da sociedade fluminense,
mesmo longínquas, para consumi-las. Intensificou-se então, por que aí está a faceirar-se pelas salas e ruas com atavios parisien-
exemplo, a exportação da moda, ligada aos dois maiores centros ses ... ". ( 48) A sociedade carioca de então, com seus burgueses
industrializados, Londres e Paris; ambos dividiram entre si . o comerciantes, burgueses funcionários públicos, que não se mistu-
mercado da alta e média burguesia mundial, dominando a Ingla- ravam mais com os pequeno-burgueses cabeleireiros e confeiteiros,
estava muito longe do Rio de Janeiro "do tempo do Rei Velho",
ainda muito homogêneo socialmente, descrito por Manoel Antônio
(43) Por isso não estamos inteiramente de acordo com as colocações fei- de Almeida para o início do século. ( 49) A diferenciação interna
tas por Florestan Fernandes, que parecem deixar uma posição muito
secundária as fortes características culturais da camada burgue~a eu-
ropéia já no século XVIII, que tiveram sua influência no Brasil. '\íer
Fernandes, 1975, pp. 15-20. Para uma definição dos caracteres sóc10-
culturais do burguês no século XVIII, na França, ver Aguilhon, 1968, (46) Morazé, 1957.
pp. 224-25-26 e pp. 233-34. (47) Alencar, 1872, pp. XIV-XV.
(44) Halbwachs, 1964. (48) Alencar, 1872, p. XVI.
(45) Chevalier. (49) Almeida, s.d.
298 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ CULTURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA No BRASIL 299

urbana se dera com bastante rapidez, como já expusemos noutro momento posterior a Martins Pena, porém anterior a José de
trabalho. ( 50) Alencar. Não ocorria ainda uma heterogeneidade cultural total
Não há dúvida que o rápido enriquecimento trazido pela ex- entre camada mais elevada e camada mais baixa, tanto as peças
portação do café acelerava a diferenciação, desenvoivendo nas ci- teatrais de Martins Pena, quanto os romances de Macedo e do
dades o comércio e os serviços; porém é importante notar que as próprio Alencar o indicavam. Tratava-se de uma separação cultu-
novas camadas e subcamadas mais elevadas adotavam quase ime- ral no interior da camada mais elevada, distinguindo francamente
diatamente a civilização burguesa exportada da Europa. Gilda Ro- o pessoal urbanizado, daquele que não o era. As peças de Martins
cha de Melo e Souza analisou como se operou tal adaptação, es- Pena estavam mostrando que a urbanização era representada pela
treitando os laços que uniram as camadas superiores do país com cidade do Rio de Janeiro; tudo quanto vinha de fora - e princi-
as camadas paralelas européias - principalmente francesa e in- palmente de São Paulo que, no entanto, também se apresentava
glesa. ( 51) Da mesma forma que na Europa, a burguesia alta, como um centro importante de riqueza, como podemos verificar
média e pequena, do Brasil, desenvolveu cada qual suas peculia- em O diletante, por exemplo - estava marcado com o selo do
ridades como outras tantas barreiras para impedir a ascensão social roceirismo, do atraso mais do que provinciano.
dos inferiores, quando estes alcançavam um nível de recursos com- Lendo-se O tronco do ipê, têm-se a impressão de que a di-
patível. (52) visão se estendia de alto a baixo das camadas sociais, de tal modo
Operou-se, então, um recuo das antigas formas de agir e de que as mucamas de famílias habitando a Corte tinham outra so-
pensar que vinham dos tempos coloniais - recuo no espaço, pois fisticação e outro refinamento que não apresentavam as mucamas
passaram a caracterizar o mundo rural. No prefácio que José de de famílias do interior. (56) Haveria, então, certa homogeneidade
Alencar escreveu para Sonhos d'ouro, diagnosticou o escritor o cultural entre camadas da mesma localização, o distanciamento
tipo de dialética que se desenvolvera entre a nova civilização bur- se dando entre a Corte aburguesada de um lado, e de outro o in-
guesa importada da Europa, e a civilização formada no meio terior conservando hábitos tradicionais brasileiros. Esta diferen-
nacional, falando em "luta entre o espírito conterrâneo e a inva- ciação ainda persistia no tempo de Machado de Assis, evidenciada
são estrangeira". (53) Efetivamente, ao nível da cultura pareceu no susto da mãe roceira com a educação que a filha estava rece-
se instalar uma dialética dos contrários, separando o que era "ci- bendo na Corte, exclamando então que não se necessitava nem de
tadino" do que era "rural", e isso no mesmo nível econômico. aprender francês, nem piano, protestando que criara sua filha na
Esta separação já se encontrava perfeitamente delineada no teatro roça e para a roça.(57) Em trabalho anterior, baseado exclusiva-
de Martins Pena, escrito no período de 1833 a 1847. Peças como mente na obra de Machado de Assis, pudemos observar já a dife-
Um sertanejo na corte, anterior a 1837, e O diletante, datado de renciacão, e dizer: "O Brasil deixava de ser um imenso país rural
1844, registravam a profunda diferença existente entre meio rural e a vida na Corte vai se caracterizando cada vez mais pelo modo
e meio urbano, (54) este último representado quase exclusivamente de ser de sua burguesia, que se refina em comparação com a exis-
ainda pela cidade do Rio de Janeiro, onde a corte imperial con- tência rústica das fazendas". (58) Pouco a pouco, a dissemelhança
tribuía com sua influência para a disseminação dos novos hábitos. entre "cidade" e "roça" ou entre "cidade" e "interior" foi quali-
O mesmo verificamos nos romances de Joaquim Manoel de ficada pela oposição de dois conceitos: a cidade era "progressis-
Macedo, cuja publicação se iniciou com A moreninha por volta ta"; o interior era "atrasado". Esta diferenciação sedimentou-se
de 1844. Rosa talvez seja o melhor exemplo, pois é através das na maneira de ver dos contemporâneos, e forneceu um pouco mais
divergências entre dois irmãos, um citadino, o pai de Rosa, e outro· tarde aooio a Euclides da Cunha para interpretar o movimento
matuto, que fica demonstrada a grande dissemelhança cultural messiânico de Antônio Conselheiro, ao escrever Os sertões: reação
que já lavrava entre a cidade e o campo.(55) Tratava-se de um do "interior". ameaçado em seus comportamentos, tradições, va-
lores, pela difusão de elementos "citadinos". (59)

(50) Pereira de Queiroz, 1973 (b).


(51) Melo e Souza, 1953.
(52) Ver o problema em Goblot, 1967; e em Veblen, 1945 e 1965. (56) Alencar, s.d.
(53) Alencar, 1872, p. XV. (57) Machado de Assis, pp. 126-27.
(54) Martins Pena, s.d. (58) Pereira de Queiroz, 1959.
(55) Macedo, 1945. (59) Cunha, 1936.
300 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ CuL TURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA No BRASIL 301

Ao se espraiar a partir aa Corte, os elementos culturais bur- Assim, enquanto numa perspectiva econômica, ?º Brasil do
gueses iriam diminuindo sua infl~ênc~a, n.a pr?p~rção ~ireta. das século X1X, o enriquecimento do meio rural concorria para o ~e­
distâncias. Alencar, sempre sens1vel as d1vergencias, nao deixou senvolvimento do meio urbano, estabelecendo com este uma dia-
de o notar. Comparando, por exemplo, dois de seus romances ru- lética da complementaridade - numa perspectiva cultural, o c1e-
rais O tronco do ipê e Til, reparou que no primeiro já se obser- .senvolvimento do meio urbano (graças ao meio rural) .promovia
vav~ a influência da vida da corte sobre a vida da fazenda, o que a adoção de uma civilização oriunda do estrangeiro, que se opôs
não existia no segundo, atribuindo esta circunstância a dois fato- .à nacional tradicional, desbancou-a e exilou-a para os confins do
res: "à proximidade da corte e à data mais recente".(60) Dá a meio rural numa dialética de oposições. Diagnosticamos propria-
entender este arguto observador que, à medida que passava o tem- mente uma' polarização de contrários, pois não deixou. nem ,mesmo
po, mais as influências da cidade p7netravam no cam.I_>O; e, t~m­ de haver a síntese que resolve a batalha da tese e da antitese:_ a
bém que a penetração era tanto mais forte quanto mais proximo civilização implantada de fora não ficou imune à interpenet~ação
se estivesse da corte. Tempo e distância eram, pois, fatores que da civilização autóctone e, embora conservando sua plena i~en­
influenciavam a impregnação maior da cultura burguesa, e con- tidade, também se modificou e incorporou traços dela provemen-
tribuíam para ir apagando a cultura tradicional. tes. ( 62) Por outro lado, a antiga civilização nacional, nos pontos
Houve assim uma dialética da oposição entre a civilização extremos em que se refugiou, sofreu o impacto de elementos ur-
européia b~rguesa' e a civilização tradicional no Brasil do século banos, que se associaram aos tradicionais. E do vaivém de uma
XIX, na qual teve primazia a civilização da parte mais rica e por à outra cultura algo novo foi se formando.
isso mesmo mais prestigiosa da sociedade global - o grupo ur- Se José de Alencar teve a perfeita consciência de como se
banizado da Corte; não era de admirar, num país em que o fator operava no tempo e no espaço a difusão da civilização burguesa
econômico fora sempre da maior importância para determinar as européia no Brasil, não foi, todavia, sensível ao fato. de que, para
posições dos indivíduos na hierarquia social, e isso desde o pe- complicar a singeleza do quadro que traçava, havia uma outra
ríodo colonial. A mudança do eixo da abastança no país, do Nor- forma de penetração concomitante: no meio urbano, as camadas
deste para Sudeste, com a expansão cafeeira, acentuou a .pr~emi­ superiores eram as primeiras a adotar os novos costumes, e mesi:no
nência deste fator. Além disso, a mesma expansão se associou à nas cidades os traços da civilização tradicional encontravam meios
intensificação da urbanização, primeiramente no Rio de Janeiro de sobreviver nas camadas inferiores. É principalmente o teatro
(sede da mais antiga zona cafeicultora do país), e em se~~da em de Martins Pena que deve ser analisado deste ponto de vist~;
São Paulo (que pouco a pouco ultrapassou o Rio de Janeiro em muitas de suas comédias urbanas se passavam no que se chamana
importância econômica, devido ao aproveitamento para o café da de "pequena classe média", mostrando uma persistência, nel~, de
zona que foi chamada Oeste Paulista). Foram estes, parece-nos, práticas antigas e tradicionais (O irmão das almas, O noviço),
os dois focos mais importantes da difusão da civilização burguesa, diversas daquelas que, na mesma época, tinham curso na "classe
sendo que o Rio de Janeiro antecedeu São Paulo de pelo menos alta" (O diletante, O inglês maquinista). ( 63) Desta forma, o que
30 anos.(61) Porém, o processo paradoxal que o café desenca- José de Alencar chamou de "antiga civilização brasileira" se re-
deou na região Sudeste, fazendo com que o meio rural enriquecido fugiava cada vez mais nas camadas rurais, de um modo geral; e
promovesse um desenvolvimento urbano que se associou a um nas cidades tendia a persistir nas camadas inferiores. Sua trans-
novo estilo de vida copiado do exterior, o qual foi pouco a pouco formação s~ tornou mais embaralhada devido a esta concomitância.
anulando o antigo estilo de vida - este processo paradoxal se Pudemos visualizar com alguma clareza os processos dialé-
implantou também noutras zonas do país, em fins do século XIX, ticos em curso ao nível de estruturas mais gerais, como as estru-
todas as vezes que uma delas atingiu um nível elevado de abas- turas econômicas; mas ao chegar ao nível das estruturas mais
tança· e o exemplo dos Pampas e suas cidades, no Rio Grande
do S~I, com o incremento das charqueadas e da criação de gado,
particularizadas, como a estrutura cultural~ a nitide_z não fo! a
mesma. Seria isso devido a uma complexidade maior do mvel
aí está - exemplo que mereceria um estudo detalhado. cultural - nível dos valores por excelência, que o marxismo iden-

(60) Alencar, 1872, p. XV. (62) Pereira de Queiroz, 1975.


(61) Pereira de queiroz, 1973 (b). (63) Martins Pena, s.d.
302 MARIA lsAURA PEREIRA DE QUEIROZ
CuL TURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 303

tificou com a superestrutura, e cujas ligações com a infra-estrutu- tura cultural (9u~ .num prim~iro momento se originaria daquela),
ra (isto é, com as relações de produção e mesmo com a economia os processos dialeticos sucesSlvos que se dão no interior de um e
em geral) não se encontram ainda bem esclarecidas nas teorias de outro setor da realidade social podem não ser os mesmos a
soci~l~gicas? .Ou este fato decorre de existirem me~os pesquisas partir. de uma pri~eira coincidência no passado. Isto é, qu~do
bra~ilei,ras feita_s em perspectiva cultural, que nos servissem de da ongem da sociedade colonial, a infra-estrutura determinou a
apo10 as reflexoes? Provavelmente estas duas razões não são mu~ superestrutura a ela ligada; e nesse momento no interior de ambas
tuamente exclusivas, e sim complementares. Pois não deixa de ser mas não entre ambas, note-se, instalou-se uma dialética de ima~
verdade que, se~a n~ meio b;a~ileiro, seja nos estudos sociológicos nência. recíproca. Todavia, desde que instaladas, em sua evolução
em gera!, a Sociologia E~onomica, ou os trabalhos de pesquisa na posterior houve mudança nos processos internos de cada uma
perspectiva do desenvolvimento são hoje muito mais abundantes ~uito e~b~r~ c~ntinuassem fortemente interligadas; e a orienta~
sem nenhuma comparação, do que os trabalhos de pesquisa ligado~ çao da dialetica mterna do setor econômico não foi a mesma da
a uma Sociologia da Cultura. Desta forma, estes nossos comen- dialética interna do setor cultural.
tários le~am a m_a~ca d~ cogitações preliminares, que necessitam _ No caso brasileiro, a orientação divergente tomada pela evo-
de, pesqmsas luçao do setor cultural foi impulsionada pela civilização burguesa
. . parciais mais aprofundadas' assim como de reflexões
teoncas mais amplas, para chegar a qualquer afirmação. Isto é e~ropéia, em pleno florescimento - isto é, por um fator econô-
não passam de hipóteses mais ou menos prováveis. ' mico e cultural externo. Este pôde operar graças à semelhança
Releva notar, para concluir, que, com a intrusão da civiliza- da estratificação das duas sociedades, provavelmente - estrati-
ção burguesa no seio da sociedade global brasileira, a hom:ogenei- ficação fortemente apoiada em critérios econômicos (muito em-
dad~ cultu~al que se aproximara intimamente no passado campo bora na Europa tivesse começado a existir um novo tipo de rel -
e cidade, mstalando uma dialética da implicação mútua entre ções de produção que ainda não se inaugurara no Brasil). De
ambos, f_oi_ se transformando em heterogeneidade, foi se aguçando acordo com critérios econômicos, definiram-se numa e noutra so-
e~ ~posi9ao, de tal modo que o processo dialético que passou a
ciedade camadas superiores de recursos elevados, em posição de
existir f01 aquele que denota maior afastamento entre os dois ter- comando político no que diz respeito ao restante da sociedade glo-
mos, o processo de oposição dos contrários. O caminho seguido bal; a camada superior da antiga sociedade colonial brasileira, de
pelos. J?rocessos ao nível da cultura não foi o mesmo que havíamos ~enor prestígio do que a européia, passou a copiar o estilo de
identificado para o nível demográfico e econômico. Nesta última vida da camada superior, de maior prestígio, da "moderna" so--
perspectiva, fora diagnosticada uma complementaridade dialética ciedade européia. Repetimos, as necessidades de colocação dos
pr~1;1tos industriais nas camadas burguesas dos países coloniais
s~guindo-se à dialética da implicação mútua que lhe fora ante~
nor; o segundo processo conservando a intimidade entre o rural auxiliaram sobremaneira a difusão destes, os países produtores es-
e o urb~no, muito embora existissem diversidade e negações. Na· tando agora em produção maciça, graças ao avanço tecnológico.
perspectiva cultural, houve também uma implicação mútua primei- Uma posição de superioridade-inferioridade sócio-econômica
ramente, porém aos poucos se instalou uma dialética da oposição, entre sociedades globais (as européias e a brasileira) concorreu
acentuando-se a heterogeneidade entre os dois termos embora para aumentar o prestígio de certas formas culturais específicas
houvesse ainda entre ambos traços em comum. Isto é -do mesmo das camadas elevadas da sociedade global mais valorizada. Foram
período, a dialética interna do setor econômico mostrou-se dife- estas formas exportadas para onde quer que houvesse base econô-
rente, em sua evolução, da dialética interna do setor cultural. Mas mica para tal, como muito bem se verifica da análise efetuada
esta diferença não queria dizer que as relações entre infra-estru- por Charles Morazé em seu excelente trabalho, ( 64) e o Brasil
tura e superestrutura econômica e superestrutura cuitural se tives- constituiu uma das regiões importadoras. Não esqueçamos que
s~m modificad~; a superestrutura sofrera uma influência vigorosa
estas formas culturais diziam respeito a bens e mercadorias fabri-
vmda do extenor, que lhe marcara a evolução· a infra-estrutura cadas pelos centros industriais que então se desenvolviam: a moda
,
porem, pouco se alterara no mesmo período. ' ' vestimentar, a moda alimentar, a moda educacional e relativa à
Desta forma, quando são analisadas as relações campo-cidade instrução, assim como todas as outras modas. Desta forma, não
no setor econômico e no setor cultural brasileiros, considerados
a~bos c~mo ~alocados em níveis diversos, uma vez que o econô-
mico sena a mfra-estrutura sobre a qual assentaria a superestru- (64) Morazé, 1957.
304 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ CuL TURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 305

apenas o prestígio das camadas elevadas européias levava as ca- influências externas que podem determinar modificações impor-
madas elevadas das sociedades não-européias à adoção das modas tantes na orientação de seus processos culturais internos.
burguesas; a exportação destas era forçada pelos países produto- O que se acaba de observar seria assim uma conseqüência
res, que desta e:x,portação dependiam para se expandir. O que de- da intensificação cada vez maior das relações entre as várias so-
terminava a modificação do setor cultural, nos países não-europeus ciedades ditas "ocidentais", que colocam as mais desenvolvidas
como o Brasil, durante o século XIX, parece ter sido realmente a do ponto de vista econômico-tecnológico em situação de domina-
transformação havida nas relações de produção, não no Brasil, ção para com as menos desenvolvidas. A estratificação que esta-
e sim na Europa. . . Nossa configuração cultural, que num pri- mos notando entre países, baseada no avanço técnico de alguns,
meiro momento da existência da sociedade brasileira, estivera li- provavelmente existiu desde a alta antigüidade; porém o raio de
gada à infra-estrutura sócio-econômica do próprio país, a qual dominação cultural exercido por aqueles que haviam alcançado
agira como fator de evolução, num segundo momento de existên- maior progresso que os demais, estava na dependência do próprio
cia passou a ser conectada com as modificações econômicas e c~!­ desenvolvimento tecnológico ainda não muito avançado. Esta in-
turais dos países industrializados europeus, que agiram então como fluência não teria o vigor e a importância da influência da Europa
fator de modificação dos processos culturais em curso. industrial no século XIX, porque a tecnologia era ainda rudimentar.
Estas constatações levam-nos a várias hipóteses concernente_s Não era mais necessário no século XIX conquistar sempre politica-
às ligações entre nível econômico e nível cultural: a) na origem mente e pela força outras nações para impor uma dominação; a
de uma sociedade global colonial, como o Brasil, no interior de dominação cultural se tornara um instrumento excelente para tal,
um e outro setor, os processos dialéticos específicos a cada um pois estava estreitamente associada à produção econômica. A Eu-
tendem a seguir a mesma orientação, momento em que as mudan- ropa o compreendeu, que assentou seu grande poderio do século
ças na superestrutura cultural são paralelas às da infra-estrutura XIX principalmente na produção econômica e no que se poderia
econômica; b) a partir de certo momento, os processos no interior chamar de "exportação cultural" para o mundo inteiro.
do setor econômico têm orientação diferente dos que ocorrem no Desta forma, parece que, no que tange às relações campo-
interior do setor cultural, podendo se apresentar inteiramente he- cidade ao nível econômico, os processos dialéticos sucessivos no
terogêneos; c) esta mudança de orientação se opera sob a influên- seu interior nem sempre são os mesmos verificados no interior
cia de fatores externos que agem no setor cultural somente, en- do nível cultural; pode haver dissemelhança de processos em curso
quanto as relações de produção da infra-estrutura econômica con- num e noutro nível, através do tempo, e a partir de uma primeira
tinuem semelhantes; d) as transformações econômicas de outras coincidência dos mesmos no passado. Noutras palavras, a dialé-
sociedades globais, que podem se localizar em regiões geografi- tica interna observada ao nível da infra-estrutura (nível econômi-
camente distantes, passam a agir como fatores externos da evolu- co) não segue sempre os mesmos rumos da dialética observada
ção cultural, pois, tomadas mais poderosas ainda devido ao avanço ao nível da superestmtura (nível cultural). Estas constatações le-
tecnológico, aumentam seu poderio econômico e político sobre as vam-nos a uma tentativa de inferência no que diz respeito às liga-
demais sociedades; e) sua imposição não toma somente uma forma ções entre nível econômico e nível cultural: embora suas relações
econômica declarada, mas pode se disfarçar sob o prestígio de se apresentem muito estreitas, os processos em curso no interior
produtos culturais que lhe são específicos, e que são exportados; de um nível podem ser dissemelhantes dos processos em curso
f) a exportação cultural é possível porque estes elementos se ex- no interior de outro. Ou seja, a determinação da superestrutura
primem sempre sob a forma de bens, de mercadorias e de serviços; pela infra-estrutura não vai ao ponto das variações da infra-estru-
g) assim a modificação do setor cultural de sociedades globais tura comandarem todos os ,processos em curso no interior da su-
cuja infra-estrutura econômica não sofreu ainda modificações sig- perestrutura. Fatores culturais exteriores à sociedade global anali-
nificativas, pode tomar outros rumos, seguindo caminhos que não sada e totalmente estranhos a ela (no caso brasileiro, a importa-
foram diretamente determinados pela sua própria infra-estrutura ção de uma cultura burguesa européia), podem determinar trans-
econômica, e sim pelas transformações havidas na infra-estrutura formações na superestrutura desta mesma sociedade, independente-
econômica de países às vezes até muito longínquos; h) desta forma, mente de ocorrerem transformações profundas nas suas relações
a partir de certo momento, a infra-estrutura econômica não pa~ de produção.
rece ter mais a mesma influência determinante sobre a superestru- Como conseqüência desta importação da civilização burguesa>
tura cultural, dentro da mesma sociedade global, ficando esta sob efetuada no decorrer do século XIX, temos a formação no Brasil de

l
306 MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ CuL TURA, Soe. RURAL, Soe. URBANA NO BRASIL 307

uma diferenciação cultural campo-cidade, que praticamente não é mais ainda; sendo mais ampla, abrange a dialética dos contrá-
existira, ou fora muito tênue em épocas anteriores. A difusão das rios, que passa a ser umá de suas formas. Estamos, pois, diante
formas culturais burguesas se fez no próprio interior das cidades, de um procedimento inteiramente adequado à mobilidaae de cipo
passando das camadas superiores para as inferiores e tendendo a variado, constantemente em curso, que forma a essência da realí-
uma homogeneidade que intensificava o contraste com complexos dade sócio-econômica e política, em qualquer época e país.
culturais refugiados no meio rural. Neste, também as camadas su- Todavia, afirmou-se também a qualidade de instrumento de
periores representadas pelas famílias dos grandes fazendeiros ha- análise da dialética múltipla - isto é, de instrumento indispen-
bitando agora as cidades, passavam a ser focos de dissemi~ação sável para fragmentar um conjunto social complexo em compo-
de elementos urbanos; porém sua permanência breve nas fazendas nentes mais simples, sem perder de vista seus fluxos e refluxos
tornava menos importante a ação que poderiam desenvolver. A - - muito pelo contrário, recortando a realidade a partir destes
cultura tradicional se fixou, pois, nas camadas inferiores de uní fluxos e refluxos. Dizer-se, por exemplo, que na fase colonial
mo?o geral; nas re~iões em que eram dominantes os pequenos brasileira, meio rural e meio urbano estavam interligados por uma
agricultores ou os cnadores de gado, ela tendeu também a persistir. dialética da imanência recíproca, significa representar e qualificar
Desta forma, a dualidade cultural brasileira que tanto chamou através de um conceito específico essa ligação; não significa render
a atenção de alguns autores resultou de uma dialética rural-urbana contas de porquê a ligação tomou essa forma. Era o que mostra-
em que este último termo fora profundamente influenciado e mo~ va Gurvitch, quando advertia que não se confundisse análise com
dificado pela importação de formas de civilização estrangêií-a, tor- explicação, pois esta última só é encontrada quando se perscrutam
nando-se por sua vez foco de irradiação das mesmas. as conjunturas históricas e estruturais em que o fato, a instituiçã9,
a estrutura, o processo, tiveram nascimento; a explicação está,
portanto, associada à g_ê~e~<?_ do ~QD1enck~
6. Conclusões Nosso trabalho ressalta também - acreditamos - a especi-
ficidade dos dois aspectos. Vimos, por exemplo, como são diversos
Ao apresentar a metodologia segundo a qual iríamos encarar os processos em curso entre meio rural e meio urbano, no período
as questões que, pelo menos nalguns as,pectos, nos propúnhamos colonial, quando se analisà a América Espanhola em comparação
esclarecer, comentamos que a utilização de uma abordagem dia- com a América Portuguesa. No primeiro caso, reconheceu-se uma
lética múltipla significava: 1.0 ) que a própria essência da reali- dialética dos contrários; no· segundo, a dialética era de imanência
dade social é expressa neste conceito, sendo então nosso postu- recíproca - dois processos inteiramente diversos. A explicação
lado de base que esta realidade é inteira e profundamen@. móvel desta diferença não é encontrada na dialética em si mesma, que
em vários níveis e emCÍiversos sentidos, o que pressupõe, alé~ apenas fornece o diagrtóslico; encontramo-la no momento histórico
da modificação de processos, tnmbém transformações de estrutu- da colonização, na gênese desta e nas estruturas a que deram lugar,
ras e hierarquias; 2.º) devido à própria natureza do social, o ins- quando os espanhóis, em pequeno número, encontraram no local
trumento de análise mais apropriado para captá-la em suas varia- sociedades demograficamente importantes e de estrutura interna
ções seria a dialética .my.hipla. definida por Georges Gurvitch a complexa que era predS"o conquistar e dominar; enquanto os por-
partir da dialética-1'ííãrxista, e não a dialética dos contrários ape- tugueses se defrontavam com vastos espaços dotados de popula-
nas; 3.º) tanto a dialética múltipla quanto a dialética dos contrários ção demograficamente escassa que nem sequer era ainda seden-
con~tituem um instrumento de análise e não uma forma de expli- tária, com estruturas internas relativamente simples, sua tarefa (pois
caçao do que se passa no real; 4. 0 ) a explicação é dada pela gê- que também eram numericamente parcos), sendo então povoar
nese do fenômeno - dentro de um momento histórico, portanto, para dominar o espaço. Duas conjunturas históricas diversas, de-
em. que se i!_ef~êis9~ .de gr_µp()s, d~_set~~~~~--~_e_J?~~çõ~~~--· vido às diferenças de estrutura entre as duas sociedades coloni-
.sociedades gíob_aJ.s__§ ..Qs processos em curso. ··- zadas, levaram a ação colonizadora a tomar duas formas diversas,
- ~ ~foôõlogia adotada deixoí.i cfarà· ã ..importância e também se desenvolvendo no teinpo segundo processos dialéticos disseme-
a sens1b1hdade desta abordagem, pois permitiu discernir variaç~es lhantes - circunstância que não pode ser esquecida todas as vezes
nos três temas ~bordados, que se perderiam se fossem emprega- que se perscruta a transformação destas dúas sociedades. A mesma
das outras técmcas. A perspectiva da dialética dos contrários é 1::srrutura de dominação é criada nos dois casos, dirão alguns;
uma abordagem diferencial; a perspectiva da dialética múltipla o sim, mas a estrutura· de dominação estabelecida pelo branco euro-
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peu toma um sentido ou outro, conforme a conjuntura histórica apresentaram como dois casos de sincretismo, reunindo, devido às
regional, e o complexo urbano é também diferente. A sociologia suas interinfluências, traços mcongruentes. Apresentaram-se como
é a ciência das diferen não é a ciência das semelhanças. dois fatos que podem ter áreas que se recobrem, enquanto oun:as
Os iversos pontos que aqui expusemos - os caminhos di- permanecem distintas; que ora convergem em seus processos 11~­
ferentes da colonização na América Espanhola e na América Por:- temos ora divergem· que às vezes se associam em complementan-
tuguesa; as relações entre fato agrário e fato industrial numa so- dade •e outras vezes' se opõem. Mas que atraves , de to dos estes
ciedade como a brasileira; a cultura e as relações entre o rural flux~ e refluxos, mantêm sua identidade. Identidade que não é
e o urbano - puderam ser analisadas conservando as sociedades também imutável: a princípio, no Brasil, o campo se apresentou
examinadas suas qualidades particulares, interpenetrando-se ou como o produtor de riquezas por excelência; porém, ~m período
afastando-se, associando-se ou se modificando sem perderem suai; posterior, começou a cidade a se tornar produtora de nque:i:as e a
especificidades. As relações entre cidade e campo na América Por- desbancar o campo. Perdendo seu caráter de produtor de nqueza,
tuguesa não são as mesmas das que encontramos quando as ci- que o individualizara diante da c~dade, continu?u o meio rural
dades brasileiras, com ou sem industrialização, entram em cres- dücrente da cidade, porém subordmado economicamente, abasi:-
cimento; e a cultura anteriormente homogênea que apresentavam cendo-a e fornecendo-lhe matéria-prima para suas produções; nao
meio rural e meio citadino vão paulatinamente se diferenciando, se confundiu agora com ela, por razões diversas das que foram
o meio urbano afirmando cada vez mais sua supremacia· e expo~ vigentes na época anterior. Se antes se caracterizava fundamental-
tando sua cultura para o meio rural; porém o meio rural conserva mente pela produção de riqueza, hoje se caracteriza como produ-
traços que lhe são peculiares. Quer nos períodos mais antigos. tor de matéria-prima, diante de uma cidade que t~nde a concentrar
quer nos períodos contemporâneos, rural e urbano mantiveram as técnicas de transformação, anteriormente sediadas também no
qualidades que lhes são próprias. campo. . .
O que é mais, houve no passado brasileiro um momento em Nossa resposta quanto ao desaparecimento de uma Soetologia
que rural e urbano estiveram estreitamente mais interligados ainda Rural continua, pois, negativa. Esta disciplina precisa abandonar
do que agora, quando se teme que a difusão de traços culturais seus falsos problemas e admitir um ?ado fundam.ental; o ca~po
citadinos apague completamente as peculiaridades do campo: du- nunca pôde ser compreendido por si mesmo, pois se ele existe,
rante o período colonial, a interpenetração de ambos era tão im- é porque existe a cidade - e vice-versa. A cidade_ pertence ª?
portante, tão profunda, que não pudemos representá-Ia a não ser universo do campo, como o campo pertence ao umverso da ci-
falando numa dialética da imanência recíproca. No entanto, mes- dade. Quando falamos numa Sociologia Rural diremos que é do
mo nessa época, não era possível confundir campo e cidade, fosse ponto de vista do rural que nos colocamos para compreender as
do ponto de vista demográfico, fosse do ponto de vista econômico, relações entre o rural e o urbano; e no ponto de vista urbano
fosse até do ponto de vista cultural.:e possível supor que a atual quando fizermos Sociologia Urbana. Quando esta regra funda-
homogeneidade que hoje ameaça se instalar, obedeça às mesmas mental é esquecida, chegamos a explicações falsas; ou pc~mos gi-
condições do passado, no sentido de se interpenetrarem rural e rando em círculo diante de questões que parecem msoluveis. Cam-
urbano, porém conservando cada qual sua identidade. Em nenhum po e cidade só podem ser compreendidos -no interior de sua socie-
momento dos três exemplos que analisamos - muito diversos entre dade global. A total divergência que em certo momento pareceu
si quarito às épocas e às conjunturas histórico-econômicas e cul- transformar campo e cidade em duas realidades afas~ad~s e co.n-
turais - é possível sustentar que campo e cidade poderiam tender traditórias é historicamente datada: é filha da expansao mdustnal
a uma total indiferenciação e identidade. Podem variar os pro- do século XIX, do orgulho dos industriais que subitamente se viram
cessos de relacionamento, e serem menos estreitos; porém um fato na posição de grandes produto;es de riqu_eza, no desprez_o _do cam-
social rural contém sempre algo que o distingue do urbano. po ao qual até então tinham sido subordmados. A oposiçao rural-
Observa-se mais uma vez a importância da abordagem dialé- urbano não expressou, pois, propriamente uma reahdade; expres-
tica múltipla, através da qual se pode realmente apreender os fatos sou de forma sutil um julgamento de valor. . . .
sociais em suas especificidades, relações, influências recíprocas, Um outro ponto é preciso que seja esclarecido; diz respeito
processos daí resultantes. Nesta perspectiva, campo e cidade não à aplicação da dialética como um instrum~nto_ de anál~s~ e à sua
se apresentaram como uma dualidade, pios neste caso se estaria diferenciação no que diz respeito à exphcaçao, Adm!ttmos com
admitindo uma impenetrabilidade recíproca; mas também não se Georges Gurvitch que ambas não podem ser confundidas, e que
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a dialética em si mesma não explica, expõe; a explicação estando _i!...~iulldade de medida" que está sendo utilizada. Evidentemente,
reservada para a perscrutação das conjunturas históricas existen- nem a análise dialética das oposições,-nem a aná~
tes na gênese estrutural do fenômeno estudado. Qual seria a po- tipla que é mais ampla, constituem instrumentos de medida. São
sição da análise dialética e da explicação dentro de uma pesquisa, instrumentos que orientam para a compreensão, para o "como".
a primeira deveria preceder sempre a segunda? Na verdade; para e não para o "quanto".
se compreender a gênese de um fenômeno, uma análise da con- Desta forma, tanto a dialética marxista ortodoxa, quanto a
juntura histórica é indispensável, que pode requerer a utilização dialética múltipla, não são congruentes com a medida da conti-
da técnica da dialética múltipla. Se podemos dissociar teorica- nuidade e da repetição dos fenômenos; elas se voltam para servir
mente análise e explicação, na prática a passagem de uma à outra às abordagens qualitativas e diferenciais. Está muito em moda,
é às vezes imperceptível. · em sociologia, discutir sé a melhor abordagem é a qualitativa ou
Em nosso trabalho sobre a América Espanhola e sua colo- a quantitativa. Esta questão está mal colocada. Quando queremos
nização, oposta à colonização portuguesa no Brasil, foi a partir perscrutar as maneiras pelas quais se apresenta a realidade social~
de dados históricos concretos (quantidade .de população, existên- estamos buscando suas qualidades, tudo indica aquilo que a ~
cia de uma população já dividida ou não em rural e urbana, ela- tingue, a forma pela qual se constrói e se modifica, as proprieda-
boração ou não da estratificação social autóctone) que compre- des que a fazem ser tal qual é e não de outro modo, tudo que lhe
endemos porque uma dialética dos contrários se instala desde o é característico. Também podemos perguntar quantas vezes se re-
início da colonização espanhola entre campo e cidade, e o mesmo pete um traço característico, uma qualidade, um fenômeno -
não ocorre no Brasil. A marcha de nosso trabalho pressupõe .porém não se trata agora de distinguir, de estabelecer diferenças,
todo um conhecimento empírico-descritivo . prévio a respeito das de caracterizar; trata-se de reunir os elementos numa soma, de
' i sociedades estudadas - conhecimento prévio que levou ao diag- conhecer o número de vezes que um processo ocorre, de calcular
' i
nóstico da forma de dialética ocorrendo .entre as duas partes estu- o seu vulto. Enquanto a abordagem qualitativa responde à per-
dadas. Aparentemente, teria havido uma precedência do conheci- gunta "como", a abordagem quantitativa responde à pergunta
mento da gênese em relação à análise pela dialética múltipla; toda- "quanto".
via, ambas estiveram associadas, pois desde o primeiro instante A perspectiva diferencial não é, pois, homogênea com a pen:-
em que se analisou a sociedade colonizada espanhola, observou- pectiva da: repetição; o que não quer dizer que sejam opostas Olll
se a heterogeneidade fundamental do campo e da cidade. No Bra- incongruentes. Também entre elas há associação e complementa~
sil, ao contrário, verificou-se de imediato sua homogeneidade, que ridade; através da abordagem qualitativa, utilizando-se ou a téc-
levou a falar de uma dialética da imanência recíproca. Porque se nica da dialética múltipla, ou outra qualquer, diagnostica-se tanto
instalou esta dialética - foi então o momento de se apelar para a estrutura interna do fenômeno quanto· os processos em curso;
a gênese do fenômeno. Não é possível dizer, pois, faça-se primeiro uma vez efetuada esta análise, há que medir a quantidade de suas
uma ou outra coisa; a forma pela qual é colocada a questão prê- unidades internas, a repetição dos processos, a fim de discernir o
Iiminar é que é fundamental para determinar as etapas da análise ritmo que lhes é próprio. Os momentos de utilização de uma e outra
dos processos em curso, ou da gênese. perspectiva não são os mesmos. Em primeiro lugar é preciso co-
A dialética múltipla aparece, pois, como um instrumento de nhecer as diferenças internas e diagnosticar os processos, para em
análise, e não como uma forma de explicação - a explicação seguida medir repetição, freqüência, ritmo. Utilizando uma outra
devendo ser procurada na situação histórica da gênese estrnturB;l linguagem, no primeiro momento da pesquisa definem-se os pontos·
do fenômeno, que também deve ser analisada. Resta esclarecer de ruptura e, de acordo com a posição recíproca dos fragment~
"que. instn!_mento de anJfü_._~Ln.ão ..sigaifka instrumento de_JJledid···a.._ (estrutura), a orientação dos processos; no segundo momento, me-
A~lfêfüio oposto ..àsíntese) signiliçª _r~ç<>._rtar . um tüQQ.... dem-se as continuidades e as repetições. Momentos todos eles
C?~plexo e~3êus .cómp.9J!e.~WLID.ª1L~.~~.!~~~_&,,.. descritivos, e não explicativos de uma realidade social. A expli-
v1d1r SõftTetífe, e sim de separar em partes o todo para ressaltar cação sociológica não é encontrada nem na qualidade, nem na
os princípios básicos que regem sua composição - de onde a dii. quantidade dos fenômenos; é encontrada na sua gênese.
ficuldade desta operação. isar não é medir; J!ledir é avaliar -
uma quantidade, com.rHtrandn.-,a com ou . an ade tomada como
umdade; de cíiiãe~-à'iiecessidade d~ se s~_be,!dlu.arul.Q.Ji~ mede, qual

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