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m 1857, a maioria dos negros de "os mais que fazem profissão habitual de

Salvador, escravos ou não, traba- ganhar", o que incluía praticamente todo


lhava na rua, ou entre a casa e a negro ded icado ao trabalho remunera-
rua. Eles eram responsáveis pela do de rua (2).
circulação de coisas e pessoas pela A lei era uma medida, entre muitas
cidade. Carregavam de tudo: pa- outras, concebida pelos poderes públi-
cotes grandes e pequenos, do en- cos para disciplinar o trabalho do negro
velope de carta a grandes caixas em Salvador. Na verdade, o projeto maior
de açúcar, tinas de água e fezes, era disciplinar o negro no esp::iço públi-
tonéis de aguardente e gente em co, tanto de trabalho como de lazer. Fos-
cadeiras de arruar. Não se viam sem escravos ou libertos, deviam ser bem
mestiços, muito menos brancos vigiados. Vigi::idos em sua ocupação os-
nessa ocupação. "Tudo que cor- tensiva da rua, quer carregando ou ven-
re, grita, trabalha, tudo que transporta e dendo mercadorias, quer fazendo batu-
carrega é negro", observou em 1858 o ques, jogando capoeira ou só vadiando.
viajante alemão Robert Avé- Lallemant Confo rme le is s is temati camente
(1 ). Mas no primeiro dia de junho de 1857, desobedecidas, os escravos deviam levar
uma segunda-feira, as ruas de Salvador passes assinados pelos senhores, e os li-
amanheceram estranhamente calmas. bertos, passaportes assinados por auto-
JOÃO JOSÉ REIS é Os negros haviam decidido cruzar os bra- ridades policiais, designando quando e
professor de Hislórla da ços, cm protesto contr;i uma postura mu- por onde podiam circular. Sobretudo não
UFBa e autor de
Rebelião Escrava no
nicipal cm vigor a partir daquela data. deviam freqüentar as sombras da noite.
Brasll: a História do Á postura, publicada três meses an-
Levante dos Malês tes, estabelecia que os ga11/tadores, como TRABALHO E CULTURA DE RUA
(Brasiliense) e A Morte
é uma Festa: Ritos
eram chamados esses trabalhadores de
Fúnebres e Revolta rua, doravante só poderiam "ganhar" Os negros eram temidos, em primei-
Popular no Brasil do mediante licença concedida pela Câma- ro lugar, porque eram muitos. Á S esti-
Século XIX
(Companhia das
ra Municipal. Por esta licença, ou m:.1trí- mativas da população de Salvador cm
Letras). cula, pugariam dois mil réis. No mesmo 1857 variam muito. Mattoso propõe
ato deveriam pagar uma taxa adicional 89.260 e Nascimento 58.498 (3). Á S fon-
de três mil réis por uma chapa de metal tcs contemporâneas são mais generosas:
Eate artigo ' pane de um estudo
mais amplo. pata cut• 1eal1zaçâo
com o número de inscrição, de uso obri- o Jornal da Baltia, por exemplo, arriscou
conto corno apoio do CN Pq e do gatório ao pescoço sempre que estives- 140 a 150 mil habitantes, uma estimativa
Centro de E11Udoa A11o·Aslàti-
cos, Rio de Jan.Oro. Goctatl• de sem no ganho. O custo tola! da operação, "bem calculada" segundo o periódico (4).
agradeeer aJudithAllen, quo pri·
melro me chamou atenção para
cinco mil réis, não era desprezível. Equi- Se há dúvidas quanto aos totais, há me-
a greve de 1857. vulia naquele ;mo de 1857 a cerca de uma nos quanto ao fato de os brancos repre-
arroba (qui nze quilos) de carne. Além sentarem uma minoria cm torno de 30%.
1. Aobe<lAvé-Lallemnnt. V1ag11m
pelu Provl nclas da
disso os libertos (ex-escravos) deveriam Talvez menos do que isso, se considerar-
BaNa.PemambuCO.Alagollse apresentar um fi adores "idôneos" que mos que a população escrava era siste-
SergJp.( 18'9), Elelo Ho<lzon·
te/Sào Paulo. 11180, p. 22. se comprometesse pelo comportamento maticamente subestimada porque os se-
2. Jornal da Bahia (1613/1857 e
fu turo deles. nhores evitavam ter seus escravos conta-
8/5/1857), da coleção de p&<i· Inclu ídos nessa lei estavam só os dos, por temerem impostos ou mesmo o
ódlcos da Blblloteca Pública
do Estado da Bahia. ganhadores, não as ga11/wdeiras, negras confisco dos importados ílcgalmentc de-
3 Kátla M de O Manoso. Bahia:
que se dedicavam principalmente a pois de 183 1 (5). Calcula-se que chega-
a Cidade do Salvndof e seu
Metendo no Sku/o X IX, São
n1ercadcj ar diversos gê neros secos e ram à Bahia, apenas nos cinco anos an-
Paulo/Salvador. 1978. P- 138; molhados. E entre os ganhadores o edital teriores ao fim definitivo do tráfico cm
Nina Amélia V NaJCfmento.
Dez Fregue,tu dll Cidade de da Ci'1mara destacava: l) "ganhadores 1850, cm torno de 46 mil escravos (6). E
Satvadof, Salvador, p. 65.
de cesto ou tina", isto é, os que transpor- e mbora a mai o ria segu isse para o
41. Jornal da 81111/a (912/1857). tavam individualmente líquidos em ti- Recôncavo dos engenhos ou fosse reex-
5. Medo de cen10: James nas, principalmenle água, e pequenos portada para o sul do país, alguns milha-
weuierell, Braz/I: Strny Notes
lrom Bahia, Liverpool, 1860,
mas sólidos volumes em cesto; 2) "ga- res devem ter sobrado para Salvador sem
pp. 95· 6 : Subdeleg ado nhadores de pau e corda", que transpor- figurarem nas estatísticas oficiais.
Manoel A Valença ao Chele
de Policia, 31n 11eS<1. Arqul· tavam cm grupos fardos maiores e mais De qualquer jeito, a população es-
YO Público do Estado da Bahia
(APEBa doravante). Policia. pesados, utilizando-se de longas varas e crava parece também minoritária cm
maço 6231 . cordas; 3) "carregadores de cade iras", 1857, algo entre 30% e 40%. Entretanto,
6. He1ben Klein, "A Demografia que trabalhavam em duplas no trans- somados escravos, libertos e livres ncgro-
do Trâfico Atlàntlco de Esera·
voo para o Braall", ln Estudos porte de pessoas. O edital ainda acres- mcstiços, resultavam ampla maioria. Só
Econômicos. 17:2 (1987), p. centava que estariam sujeitos à postura os negros ficavam em torno ele 40%, pelo
133.

8 REV I ST A USP
menos metade de origem africana. Eram mar nas últimas décadas do tráfico. Pre- 7. Avé· Lallemant. Vla91tm. p.
272. Propo<çáo de b<ancos.
eles, como já se viu e se verá muito mais dominavam também entre os libertos: escravos. etc.;Nascimonto.
adiante, que davam a cor da vida baiana dos 87 africanos com origem conhecida Dez Fr9{Ju11slas, p. 97; Joâo
J. Rela, Flob11lião Escrava no
de rua. "Opulenta cidade dos negros" foi na lista de 1849, 70% eram nagôs (9). Brasi(SàoPaulo, 1986.p. 16.

a última impressão de Avé-Lallemant Disciplinar o trabalhador africano, e. Maria José Andrade. A MAO·
d11-obra Escrava em Salva·
sobre Salvador - depois de ver sobretudo na cidade, era tarefa ingrata. dor. 1811· 1888. São Paulo.
Pernambuco, /\lagoas e Sergipe (7). As Os escravos precisavam de independên- 1988, pp. 189·90; Reli. Fie·
bel/do, p. 16; Nascimento,
tentativas de controle dos negros, que cia e liberdade de movimento para dar D11z Fr11gu11slas, p. 9S.
datavam dos tempos coloniais, se inten- conta do serviço, dar lucro aos senhores 9. 'Relação do Ahicanos rolllden·
sificaram após a Independência, sobre- e fazer a economia funcionar. Os ganha- tes na Freguesia de Santana,
etc. tt t 2. 1849)'. APEBa. Es-
tudo no rastro das revoltas escravas que dores iam à rua encontrar eles próprios cravos (assuntos). maço
2898: sobre trafico no Gollo
assombraram os senhores ao longo da trabalho. Era comum, embora não fosse do Ben1n; Pierre Verger, Flux
ot roflwc de la rralre des nog1os
primeira metade do século XIX. Essas generalizado, que os senhores permilis- on110 lo Golfo do 86nin or
revoltas foram feitas por africanos. Os sem que seus escravos a1é morassem forn BnhiD do Todos os Sanros.
Patis, 1968.
negros temidos eram principalmente es- de casa, em quartos alugados às vezes de
tes.
Em Salvador, importante porto do
tréÍfico atlftntico, a maioria da populaçüo
escrava era nascida na África, com uma
tendência para sua " nacio nalização"
apenas a partir da cessação do trúfico em
1850. De acordo com dados de Andrade,
entre o início do século e 1849, 67% da
mão-de-obra escrava estava fonnada por
africanos; já na década de 1850 essa pro-
porção cairia para 53%. Num outro tra-
balho, calculei cm cerca de 33% a pro-
porção de africanos (escravos e libertos)
na população de Salvador cm 1835; se-
gundo os cálculos de Nascimento, essa
proporção teria despencado para cerca
de 24% vinte anos depois (8).
Outras características da demografia
africana devem ser lembradas, por se-
rem úteis para entender a greve de 1857.
A Bahia entre 1750 e 1850 importou mais
escravos da região do Golfo de Benin e do
antigo Daomé, principalmente povos /\ja-
Fon-Ewe (aqui chamados j ejes), iorubas
(aqui chamados 11agôs) e haussás (tam-
bém tidos por auçás ou ussâs). Ourante o
século XIX, os de naçüo nagô vieram a
constituir formidável maioria. Vou me
concentrar nos homens (que eram 60%
da comunidade africana), pois foram eles
que fizeram a greve de 1857. Vou me
aproximar deles através de um registro
realizado em 1849 em Santana, freguesia
urbana típica de Salvador, já que o censo
de 1855 não traz os detalhes de que pre-
cisamos. O registro contou 925 escravos,
dos quais 551 (60%) de origem africana.
Muitos destes últimos não tiveram suas
origens especificadas, li stados apenas
como "africanos", mas dos 475 que a ti-
veram, 78% eram nagôs. Isso confirma
estudos que. mostram o amplo predomí- ILUSTRAÇÃO OE CARLOS BASTOS
EXTRAIDA 00 LIVRO BAHIA OE TODOS
nio nagô entre os escravos vindos de além- OS SANTOS OE JORGE AMADO

REV I STA USP 9


ex-escravos. Eles só voltavam à casa para méstico. Dos 61 nagôs, 18 se declararam
"pagar a semana", ou seja, a soma sema- carregadores de cade ira, sete remado-
nal (que podia ser também diária) con- res, cinco cangueiros e dez genericamen-
tratada com os senhores; o que mais te "ganhadores". Ou seja, 65% se ocupa-
ganhassem podiam embolsar. Escravos vam do serviço de transporte. Os demais
que dessem duro, em condições favorá- negociavam e trabalhavam como
veis de mercado, chegavam a poupar o artesãos. Ao contr.írio, dos 15 jejcs, se-
su fi ciente para comprar alforria após gundo g rupo étnico mais numeroso en-
anos de suor. Libertos, muitas vezes con- tre esses libertos, apenas um se declarou
tinuavam nas mesmas ocupaçõesde ga- ganhado r, e nenhum carregador de ca-
nho, embora alguns prosperassem a pon- deira o u ocupação afim. Nove e ram
to de se tomarem eles próprios senhores artesãos. Entre escravos e libertos, os
de ganhadores escravos. O traba lho nagôs praticamente dominava m o tra-
o mbro a ombro de escravos e libertos balho "informal" de rua em 1849 e, como
dava sig nificados de liberdade aos pri- veremos, também em 1857. Foram eles
meiros e significados de escravidão aos os principais respo nsáve is pela greve.
segundos que faziam das relaçõesde gan- Voltaremos ao assunto.
ho na cidade um curto -circuito perma- Essa concentração de africanos da
nente. De vez em quando dava em incên- mesma origem, associada ao caráter da
dio. escravidão urbana, uma escravidão sem
Assim foi, em linhas gerais, a escra- feitor como já se disse (11), fez florescer
v idão urbana onde q uer que floresceu, uma cultura escrava mais autônoma e
mas em cada cidade os escravos fizeram ousada. Identidade étnica e densidade
uma histó ria particular. Na Bahia, por cultural africanas, por sua vez, favore-
exemplo, as tentativas de incêndio foram ceram a resistência escrava diante de
muitas (aliás, não só na cidade) e uma senhores, autoridades policiais e a popu-
das razões pode ser' buscada na concen- lação livre em geral. Apesar da presença
tração étnica entre os ganhadores. policial, grupos religiosos, grupos de tra-
Retornemos aos nagôs de Santana. balho e de lazer, redes menores e mais
Muitos escravos tinham ofícios, eram amplas de solida rie d ade· ou convi-
sapateiros, alfaiates, pedreiros, padeiros, vialidade, tendo po r eixo a identidade
calafates, barbeiros, carpinteiros. Mas étnica, se fom1avam mais facilmente no
dos 370 nagôs, 30% faziam exclusiva- burburinho da cidade-porto, embora não
mente o serviço de rua, a maioria no car- estivessem ausentes nos engenhos e fa-
rego de fardos e gente, em saveiros, nas zendas. E, apesar da predominância
costas ou cm cadeiras. Foram arrolados numérica de umas nações . africanas so-
47% como do "serviço de casa", mas não bre outras, não deixou de haver o inter-
se deve crer que esses homens trabalhas- câmbio cultural, a negociação de identi-
sem apenas como domésticos. É possível dades, a redefinição de solidariedades.
que muitos tivessem s ido assim Os nagôs, por exemplo, vieram de
registrados por senhores temerosos de uma terra ioruba dividida em subgrupos
virem a ser taxados por tê-los no ganho. muitas vezes hostis entre si, e ainda sepa-
Concordo com Matloso quando escreve rados por afiliação religiosa e lealdades
que "a d istinção entre escravos 'de ga- políticas. Os iorubas dos reinos de Oyo,
nho' [... ] e os domésticos era tênue, pois Egba, ljebu, llexa, Ketu to rnaram-se
os proprietários se serviam deles ou os nagôs baianos através de complexas tro-
alugavam segundo as necessidades do cas e convergências de signos culturais,
momento" (10). Pode-se dizer com pou- no que foram ajudados por uma língua
ca margem de erro que a maioria dos comum, deuses. aparentados, a união de
escravos africanos de Salvador trabalha- muitos sob o Islã, a longa ex'periência de
va em regime parcial ou "de dedicação súditos do alafinado de Oyo, a trádição
10. K4Ua M. d4 O. Malloeo, Bahia exclusiva como ganhadores. Assim, em urbana ioruba e, obviamente, a condição
Skulo XIX. Alo de Jan8ÍIO, 1857 as autoridades tinham nás mãos um de cativeiro ertl terras baianas. A memó-
1992. p. 538. Da mesma auto-
ra sob<e ..etavldio urbana m ovimento que envolvia a maior parte ria da origem específica entre esses afri-
bal.,,.: ltt••..:1•119•uBrisJI,
Paris. 1979, peulm. dos calivos da cidade. E também, talvez canos nunca se 11pagaria completamen-
11. Lella M. Algrantl, O F111torAIJ.
sobretudo, dos libertos. te. que todos são nagôs, cada um
""'•: E1tudouob,.11 Escra- Entre os 87 libertos de Santana, não tem sua terra", tentou explicar um es-
vldifo Urban• no Rio de J11nel-
10. Petrópolis, 1988. encontramos nenhum listado como do- cravo nagô a seus interrogadores em 1835

10 RE V I ST A US P
(12). E ainda havia outras divisões, como produção capitalista. O escravo tinha de
aquela entre os filhos de Alá e os filhos de prover diretamente ao senhor e a si pró-
Orixá, ou entre ambos e os seguidores da prio no ganho de rua. Do ganho depen-
Igreja. Mas a própria religiosidade - plás- dia inclusive sua c hance de comprar a
tica, flexível, absorvente - dos africanos liberdade. Mas a jornada de trabalho era
permitiu que muitos v iessem a circular descontínua, retalhada, não só pelos in-
através de diversos discursos religiosos. tervalos entre um serviço e outro. Não
A competição existia, e até o conflito, mas havia, por exemplo, como proibir cm
grupos islâmicos, terreiros, irmandades definitivo o escravo de baixar o cesto, o
funcionaram sobretudo como espaços de pau ou a corda para jogar o u apreciar
aglutinação. Em torno desses grupos os uma ca poeira, entrar num samba-de-
escravos aperfeiçoaram suas estratégias roda, consultar um curador na perife-
de resistência cotidiana o u decidiram ria, o u enfurnar-sc numa casa para orar
romper com o cotidiano opressivo. Foi para Alá, o Misericordioso. O escravo,
assim em 1835, quando escravos e liber- associado ao liberto, contrapunha reg u-
tos muçulma nos, os chamados malês lar e cotidianamenlc sua economia mo-
(maioria nagô). se levantaram cm Salva- ral do trabalho àquela do senhor. Isso
dor na mais espetacular rebelião escrava acontecia até cm pe quenas v ilas do
no Brasil (13). Recôncavo, como nos arrabaldes de
A força da cultura escrava na Bahia Nazaré das Farinhas, onde, segundo uma
oitocentista deve ser entendida cm cone- denúncia po licial de 1845, um escravo
xão com a experiê nc ia de trabalho dos nagô que se diz ia príncipe cm sua terra
escravos. Não se trata de deduzir cultura reunia em casa outros cativos "cm dias
de processos e relaçõcs<le trabalho, uma de serviços [...] e ferve batuques, gritos,
o peração funci o nalista conservado ra, assuadas e mais cousas [ .. .)" ( 15). Na
mas de considerar que os escravos não grande cidade escravocrata, a "cidade-
suspendia m a produção de significados esconderijo" na feliz expressão de Sidney
culturais durante a produção de merca- Chalhoub, o escravo podia ocultar do
dorias e serviços. Isso seria verdade ti- senhor como, onde e até do que vivia (16).
vessem eles se pcm1itido uma coisificação o próprio ganho vinha muilas vezes de
absurda, como se o "tempo do senhor", fontes ocultas, do batuque, da capoeira,
isto é, o tempo de trabalho , fosse um da adivinhação. Não eram poucos os es-
mo mento absolutamente mecânico em cravos que viviam de ad iv inhar, curar
sua existência, um tempo sem qualquer feitiço o u fabri car amule tos muçulma-
sig nificação escrava. Só o " tempo do es- nos, ocupações lucrativas que na I3ahia
cravo", o momento de seu sono, de seu .favoreceram muitas alforrias. Em 185 1,
lazer, de seu domingo scri:l o mo mento Wethç re ll observou que os negros da
de expressão de sua "genuína" cultura. Bahia muito se exibiam cm sambas-de-
Peter Kolchin criticou os defeitos dessa roda em troca de uns cobres. Eram alter-
pe rspectiva nos estudos sobre a slave nativas ao trabalho informal convencio-
co1111111111ity norte-americana. Ele conven- nal (17).
ce quando escreve: "Com freqüência essa O escravo ganhador o rganizava o
posição leva os estudiosos a dcsenfatizar tempo de seu trabalho - o tempo, o ritmo
o contexto sociocconômico da escravidão e, por vezes, o volume de trabalho. O tra-
12. Apud Reis. Rebelil.o, p. 190.
e, na verdade, a experiência de trabalho balho do ganhador era po r tarefa, não
dos escravos, como se a comunidade es- por unidade de tempo, o que constituía 13. Idem. passlm.

crava de alguma maneira florescesse fora algo familiar para os africanos; entre os 14. Pet8' l<olchin. "ReevllluatJng
lhe Ant-lum Slave Com·
da instituição da escravidão" ( 14). Po- iorubas, segundo Afolabi Ojo, em certas muníly: ACompara Uve P8'·
&pective". ln ni. Joumlll oi
rém, se a cultura escrava estava irreme- circunstftncias o próprio tempo era mar- Amerlcan Hl•tory. 70: 3
diave lme.nte associada ao s istema cado pelo volume de trabalho. E este ti- (1983). p. 581 .

escravista de trabalho, este também es- nha limites, se o escravo pudesse 15. Apud JoAo J . Reis. "Recõn·
cavo Rebelde: Revolw E•·
tava integrado num sistema cultural na estabelecê-los, como no caso dos ganha- cravu no• Engenho•
dores. Wetherell, que não era um viajan- Baiano•·. ln Afro·Á•I• . 15
formação do qual o africano partic ipou (1992). p, 125.
fundame ntalmente. te de passagem, percebeu essa economia
16. Sídney Chalhoub. Vi.6<11
Na escravidão urbana, tanto o tem- de esforço entre os carregadores africa- Liberdade: uma Hl•tótlll "-•
Últlmu Dkllda "-
po do senhor como o tempo do escravo nos: "são extremary1ente independentes, dAo n• Corte. Sio Paulo,
estavam ambos investidos no trabalho, eles antes perderiam a chance de ganhar 1990. esp. pp. 212 . . ..

embora não de forma "secreta" como na um s<ilário do que carregar mais do que 17. Weiherell. Bruil, p. 56.

REVISTA US P 11
eles considerem conveniente" . Se trata Entendê-la como expressão de felicidade
de algo diferente do tempo linear e do ou acomodação é ficar na superfície, como
ritmo mecânico de consumo capitalista ficaram os viajantes Marjoribanks e
da força de trabalho. Sobre esse tempo Detmer. Um out ro viajante, o pastor
africano tradicional o antropólogo Bcn- Kidder, comparou-a à marcha fúnebre,
jam i n Ray diz ser "episódico e exagerando na piedade cristã. Não sur-
descontínuo; não é um tipo de 'coisa' ou preenderia que, além de tradicionais
mercadoria". Se assemelha ao "tempo canções africanas de trabalho, os ganha-
pagão" (tradução livre de kefir time) dos dores inventassem letras de crítica da
trabalhadores sul-africanos estudados escravidão e escárnio dos brancos. l lá
por Kelctso Atkins. Sob o regime evidência nesse sentido. O príncipe
colonialista cm suas terras ou sob o regi- Maximiliano da Áustria, mais tarde fu-
me escravocrata cm terra alheia, os afri- zilado como imperador do México, foi
ca nos resistiram quanto puderam ao informado durante visita a Salvador, em
aniquilamento de suas noçãos de tempo 1860, que os negros cantavam principal-
e trabalho (18). mente sobre farinha e cachaça, acrescen-
O trabalho dos carregadores era tando: "fazem às vezes também alusões
marcado por um ritmo peculiar obser- às relações entre senhor e escravo e à ma-
vado por praticamente todos os visitan- neira como este é tratado". Como fari-
tes estrangeiros. Os ganhadores de pau e nha de mandioca era item básico da die-
corda, por exemplo, quando no trans- ta local, fa lar dela significava falar gene-
porte de volumes pesados em grupos de ricamente de comida. Num cântico ne-
quatro, seis e oito, trabalhavam movidos gro significava falar de falta de comida
por canções cantadas em língua da _frica. ou de comida ruim, e do desejo de uma
O príncipe Alexandre de Wuerttemberg, mesa faria. A cachaça, sobretudo, tra-
que passou o mês de abril de 1853 na duzia o dionisíaco da cultura africana na
18. G. J. Ojo. Yo1uba Cu/.
1u1e, llo/londrea. 1966. p. 203: Bahia, escreveu: "Quer descendo ou su- brecha do trabalho pesado. Se cantavam
W91he1ell, Brazi1, p. 54 (grifado
no original); Benjamin, Aay. bindo, vencendo encostas íngremes e o tempo todo sobre farinha e cachaça, os
Afrlcan Rel/glon: Symbol, caminhos pedregosos - cantam! Cantam escravos baianos falavam o tempo todo
Ritual and Communily,
Englewood Cllfl, 1976, p. 41 : sempre durante a marcha". Dentro da das relações escravistas, e não apenas "às
Kefetso Alklnt, "'Kefir llme':
P1eindu11tlal Tempo<al Con· tradição rítmica africana, havia o " pu- vezes", coisa difícil para príncipe enten-
cep11 anel Labour in Nine·
teen1h.Cen1uty Colonial Na·
xador" do canto, a quem os demais res- der. Naturalmente a música dos ganha-
tal". in Joumal oi Aflican His· pondiam em coro. Segundo Wetherell, dores tmnbém fazia alusão mais direta à
foty, 29 (1988), pp. 229-44 e
também Frederick Cooper, quando o fardo era mais pesado ou quan- exploração do trabalho 'e outros pesares
"Colonlzlng Time: Work
Aythm• anel Labor Confli C1 in do subiam ladeiras os africanos se fazi- da escravidão. Silva Campos lembra que
Coloni al Mombasa·. ln N. am "muito mais vigorosos em seus gri- assim cantavam quando carregando muito
Oirckes (org ). Colot!Talismand
Culture(Ann.Albot, 1992). pp. tos, ajudando o trabalho e variando sua peso:
209·45, Há o ciàssico de E. P.
Thornpoon: "Time, Work Oi• · música com um expressivo e longo gru-
cipline and lndua1tial Capilal·
l1m·. ln Paat & Present. 38
nhido". Era trabalho duro, estafante, "Ô, cuê...
(1967), pp. 56·97. trabalho de negro como se dizia, pois Ganhadô
19.Paulo Alexandre de branco não o fazia, e mesmo o negro Ganha dinheiro
Wuenternberg, "Viagem do
Principe P. A. ele Wuemem·
nascido no Brasil, então chamado "cri- Pr'a seu Sinhô".
berg à Amêrica do Sul", ln oulo", parecia recusar. Na lista de 1849,
Revistado /nst/futo Históticoe
Geog1áflco do Brasil. 171 em Santana, havia cerca de 240 escravos Ingenuidade submissa? Pode pare-
(1936), p. 9: Wetherell, Brazll,
pp. 53·4, crioulos adultos, nenhum listado como cer para o "Sinhô", mas o ganhador diz
20. John M. Chernott. Afrlcan
carregador de cadeira, apenas 11 como a quen1 quiser ouvi-lo que o fruto de seu
Ryfhm and Sensibiliry: ganhadores, desconfio que ganhadores duro trabalho lhe está sendo subtràído.
Aesthetlct and Social Action
ln Afrlcan Musical ldioms, Chi. de cesto e tina. Entre os 43 pardos e ca- Ele denuncia a escravidão ca ntando.
cago, 1979. p. 3: Daniel P,
Kldder, Sketehes ofRosldonce
bras, nenhum ganhador (19). Substância cultural elementar do modo
and Traveis in B1azil erc., Fila· A música que animava aqueles cor- de ser africano, a música o acompanha-
délfia e Londte1, 1845, vai. 2.
p, 25: Marjorlbankl e Oetme< pos negros podia ajudar a aliviar o peso va cm tudo de mais (ou menos) impor-
apud Moe<na Augef, Vis/ranres
EsrranQelros na Bahia sobre os ombros, mas sobretudo aliviava tante na vida, na alegria ou na dor. E o
Olrocontlsll. São Paulo/
Brasília, 1980, p, 217:
o espírito, permitindo aos africanos per- trabalho, por opressivo que fosse, não
Mulmlllano apud Ve<ger, No- sistir, afirmar sua humanidade, não de- estava dissociaqo da vida (20). ·
tlciu da Bahia, Salvador,
1981, p. 217: JoAo da Siiva
Campos, "Ugelru Notas to·
sesperar. Ela contribuía para assegurar o
Embora trabalho escravo urbano
bre a Vida lnfüna, Collumes e
alguma "estrutura de integridade comu- desse oportunidade e até promovesse a
Religi ão doe Africanos na nitária", como escreveu Chernoff fazen- iniciativa individual, permitindo por
811hla". lnAnais doAPEBa, 29
(1943), p, 294. do sociologia da música africana. exemplo a saída· da alforria; sua organi-

12 REVI S TA USP
zaçf10 na cidade tinha um car:ítcr essen- ancoradouros: can to da Ca lçada, do
cialmente coletivo. O próprio trabalho, Por1ão de São Bento, da Mangueira, do
bem como sua remuneração, eram en- cais Dourado. Com tanta música cm si,
tendidos como resultado da produção "canto" poderia ter essa raiz. No entanto
coletiva. Wcthcrcll comparou os ganha- refere-se a canto enquanto esquina, lu-
dores baianos com estivadores ingleses, gar estratégico na cultura de rua de um
concluindo que, se juntos eles carrega- modo geral porque espaço de coníluên-
vam fardos pesadíssimos, individualmen- cia, reunião. Na visão de mundo
te os ingleses, estimulados pelo salário, na, a encruzilhada tem importfmcia 111 ís-
carregavam mais peso (2 1). O africano tica ímp::ir: lugar de oferendas, de nego-
não fazia qualquer coisa por dinheiro. ciação com os deuses, lugar de Exu, o
Trabalho solitário, tipo opcr:írio-padrão, abre-caminhos, espirituoso mensageiro
não era um valor de sua cultura. Me ocor- dos deuses. Na prática do ganho, a esqui-
re o caso relatado pelo administrador cio na facilitava o negócio, por facilitar aces-
ce mitério de Bom Jesus da so de cl ientes de várias direções, além da
Massaranduba, cm Salvador ele 1856. referência fácil. Mas se era bom uma
Segundo ele, trabalhavam l:í três "afri- esquina, o canto podia estar por toda
canos livres", dois dos quais, por alguma parte: praças, ladeiras, ancoradouros.
razão, hav iam sido transferidos pelo "Como a atividade dos negros dos cantos
subdelegado distrital para ou tro lugar. era sobretudo o transporte de pessoas e
Sobre aquele que ficou, escreveu: de mercadorias, ou seja, de ci rculaçiio
[...], sua localização dentro da estrutura
"o preto recusa-se :.i prestar ao mes- física da cidade segue a lógica da articu-
mo se rviço pois encontra-se lação, mobilidade e funcionamento da
desgostoso por estar privado da com- cidade", escreve a arquiteta Ana da Cos-
panhia de seus parceiros e por pesar ta (24).
sobre ele os trabalhos superiores Par.a o ganhador, o importante as-
suas forças, de maneira que no dia 24 peclo territorial do canto reforçava sen-
fugira para a cas a do indi cado tidos mais profundos de pertencimcnto.
subdelegado" (22). Nele muitos meios de vida se encontra-
vam. Al ém de carregadores que iam e
Africano livre era aquele confisca- vinham, ficavam ali negros de ofício, que
do de contrabando depois de 183 1, cm consertavam sapatos e guarda-chuvas,
geral empregado cm obras públicas cm trançava m cestos, chapéus e esteiras,
troca de pequeno sal;írio. Esse daí não faziam colares e pulseiras de contas, tal-
fugira da escruvidão, fugira da solidão. vez carregadores mais velhos agora de-
Não lhe passou pela cabeça pedir aumen- dicados :1 atividades mais amenas. l lavia
to salarial correspondente ao aumento os barbeiros, que também usavam suas
de trabalho. Além de mais trabalho, que afiadas navalhas na ílebotomia - a arte
alegava não poder dar conta, talvez nf10 de curar sa ngrando - ou ensa iavan1
quisesse ficar só em companhia dos mor- algum instrumento musical, para toca-
tos. Sob qualquer fmgulo que se tome fica rem nas famosas bandas de barbeiros
sugerida a personalidade gregá ria do daqueles tempos. Alguns gan hado res
africano no trabalho. f inal ela história: o recuperavam forças ali mesmo: "os que
prcsiclcnle da provínc ia instruiu que o dormiam geralmente tinham uma senti-
número de coveiros voltasse a ser três. nela pronta para acordá-los quando cha-
Isso explica a org:111izaçiio do traba- mados para serviços'', viu Daniel Kidder 21 . Wetherell, Braz/I, pp. 53·4.

lho criada pelos negros da cidade. Os no final da década de 1830 (25). Enquan- 22 APEBa. Sarid11. Faloclmen·
to aguardava m fregueses, candom- tos. maço 5500.
ganhadores estavam orga nizados em
cantos, como se chamavam os grupos, blezeiros esculpiam representações de 23 Robin Law. Th8 Oyo Enlplfe,
ç, 1600 • ç, 1836: A West
etnicamente delimitados, que se reu- suas divindades, os que eram malês cos- Afocan in tlNI Era
oi tlNI Allantic Stave Tradll,
niam para oferecer seus serviços em lo- turavam roupas e barretes muçulmanos, Oxford, 1977, p. 203.
cais também delimitados da geografia ur- aprendiam com seus mestres a ler e es- 24 Ana do Lourde9 R. da Costa.
bana. A inspiração pode ter sido os gru- crever a língua do Alcorão, rezavam pre- 'Eopaços Negros: 'Cantos' e
'Lojo.1' em Salvad0< no Sku·
pos de trabalho volu111í1rios, comuns na ces de s ua fé. E lá também iam as lo XIX". ln Canros e Toques.
África Ocidental, conhecidos como aro vendedoras de mingau, aberém, acaçá, Suplom8fltodo Caderno CRH
(Salvador, 1991), p. 25.
entre os iorubas (23). Os cantos baianos caruru, vatapá e outras delícias. E con-
25. Kldder, SketehllS. vol. 2. PP
tinham nomes de mas, largos, ladeiras, versava m sobre fal os da terra cm que 20·1.

REVISTA USP 13
estavam e notícias da terra de origem, reio Mercantil de 5 de maio de 1838. Na-
chegadas de navios vindos da África. O turalmente, envergando a roupa do bran-
canto era muito mais do que mera esta- co, o dito preto poderia ter feito boa fi gu-
ção de trabalho (26). ra diante dos parceiros. O mais provável
Símbolos da ocupação negra do es- é que a vendesse a outro branco. Dinhei-
paço pt1blico, os cantos se tomavam com ro não devia estar fácil naquele momen-
freqüência territóri os disputados. Um to, poucos dias depois da retomada de
exemplo dessas disputas se deu em 1859 uma co mbalida Salvador pelas tropas
entre os ganhadores do canto do beco legais das müos dos rebeldes da Sabinada,
dos Ga linheiros, esquinfl com a rua do após meses de cerco. É claro que ganha-
Comércio, e o loj ista Francisco José de dor não fazia aquilo todo dia, um recurso
Farias Villaça. Na mesma esquina, emergencial, e provavelmente a maioria
Villaça tinha "loja de fazendas seccas", nunca o fazia. Mas acusações como as de
cujas atividades estariam sendo prejudi- Villaça e casos como o de Alves, estes
cadas pela proximidade do canto. Este, estampados na imprensa, associavam o
segundo sua denúncia à Cf11nara, era ganho ao crime - co mo de resto
freqü entemente se faz com o trabalho
"tão numeroso, que não só quasi que informal. A imagem certamente não re-
prohibcm [os ganhadores] a passa- fletia os valores do canto, que até para
gem por aquclle beco, porém também sobreviver devia seguir normas rígidas
produze m tão horrível algazarra, e de honestidade na relação com sua clien-
proferem taes obscenidades, que tela. Para instituir e fazer obedecer tais
incommodão os Negociantes que se normas, além de outras, é que os cnntos
não podem di strahir de suas sérias contavam com uma estrutura de poder.
occupações". Se Villaça tivesse sido mais político
teria negociado a p:iz com o líder dos
Villaça acusava ainda ser vítima de africanos do beco dos Galinheiros, pois
roubos contínuos, razão por que manti- os cantos não eram coletividades anár-
nha fechada a porta da loja que dava quicas como ele tentou representá-los.
para o beco. Sugeria que os ruidosos Seus chefes chamavam -se capittios-do-
ga nhad ores fossem transfe ridos para camo, cuja fun ção incluía contratar ser-
outro lugar mais espaçoso, indicando o viços com clientes, designar tarefas, re-
largo da ladeira do Taboâo, onde já exis- ceber e dividir a féria, mediar conflitos
tia um canto de carregadores de cadeira. porventura surgidos entre ganhadores e
Não foi atendido. O fiscal da Câmara deu negociar com tipos como Villaça. Talvez
parecer de que o canto já ocupava o beco fosse também "puxador" de canto, ago-
h(l muito tempo - havia adquirido direi- ra no sentido musical. Devia naturalmen-
tos por antigüidade -, sendo "tolerado te ter remuneração extra o capitão. Pena
por todas as Camaras, cm conseqüência que falt e infonnação sobre como ele era
de serem [os ganhadores] precisos para escolhido, mas provavelmente contavam
o expediente do Comm erci o". E o a antiguidade na Bahia, o conhecimento
"Commercio" era algo bem maior do que da língua e dos costumes dos brancos,
o lojista Villaça. Quanto à transferência que traduziam experiência com o mer-
sugerida por este, o fiscal foi de opinião cado de trabalho. Além, é claro, de capa-
que o Taboão era lugar de trfmsilo inten- cidade de liderança. Uma liderança que
so e já tomado pelos ganhadores de ca- tal vez refle ti sse alguma ascendência
deira. Em suma, ganharam os ganhado- tribal ou religiosa trazida da África e aqui
res a disputa espacial (27). reconsti tuída. O pai-de-santo nagô
Villaça acusava ganhadores de rou- Elcsbão, perso nagem do roma nce
bo. Eram comuns notícias nos jornais oitocenti sta de Xavie r Marques, fora
denunciando-os por sumirem com o que capitão-de-canto, e nessa condição con-
26. Cantos: Idem, Ibidem, pp. 21 .
27: Manoe4 Outtlno, A Raça lhes havia sido confiado para carregar. séguira "ajuntar economias e comprar a
Afrlcat111 • uu• Co• tum... O mestre de navio português José Fran- carta de alforria". Na Bahia, tanto liber-
SalYadOr, 11155, pp 87-8, Stl·
v• Campos, 'Vicia Ínllm•º. PP
FIWt•IRt1flUJ(
cisco Alves, ao desembarcar em Salva- tos como escravos podiam ser capitãos-
pp, 524·7. dor, "entregou a um preto de ganho um assim como podiam ser pais-de-santo e
27. Atqulvo Municipal o.
Salva· pequeno embrulho de roupa e pape·is [... ] mestres muçulmanos-, o que mostra que
d0< (AMS dO<avanto), CAma·
ra. Req-1monro., 1860, nào·
tendo-lhe desaparecido o dito preto (...]", as hiera rquias denlro da comunidade
calalogado (n/c d0<a-vante) segundo anúncio que publicou no Cor- africana nem se mpre seguiam aquelas

14 R EVIST A USP
da sociedade escravocrata. Assim, no dos cativos baianos hav.iam sido guerrei-
inquérito da rebelião de 1835, menciona- ros na África, como a maioria dos 21 es-
se um escravo que dirigia africanos es- cravos entrevistados por Fra·nci s de
cravos e libertos, carregadores de cadei- Castelnau no final da de 1840 (29).
ras no canto da Vitória, bairro elegante É bom avisar que quando falo de
da Salvador de então (28). parakoyi, bale, olorog1111 e capitões
O modelo original dessa liderança é daomeanos não estou querendo encon-
desconhecido, mas pode estar vinculado trar à força sobrevivências africanas na
a diversas tradições africanas. Lembra Bahia, e sim imaginar possíveis modelos
os parakoyi, funcionários do reino organizacionais de que os africanos pu-
iorubano de Egba que organizavam e dessem ter lançado mão para criar estra-
regulavam as feiras periódicas. Lembra tégias e estruturas de sobrev ivência e
ainda os bale que dirigiam núcleos resistência sob a escravidão. Não consi-
artesanais nas cidades iorubanas. Na go conceber que organizações como os
história do Daomé, terra dos jejes, havia cantos possan1 ter sido meros transplan-
inclusive o cargo de "Capilfto do Merca- tes africanos no Novo Mundo. De certa
do", com fun ções semelhantes às do forma, como sugere Robert Slenes, os
parakoyi egbano. Da mesma forma, o africanos descobrem uma nova África
capitão-de-canto pode ter aparecido por no Brasil (30).
inspiração militar, se considerarmos que Uma cerimônia de posse do capitão-
os africanos da Bahia vieram de socieda- de-ca n lo é um bom exemplo de
des militarizadas em que, ao longo da pri- ritualização africana no ambiente de tra-
meira metade do sécu lo XIX, abunda- balho. Os membros do canto enchiam
vam grupos armados dirigidos por pe- um tonel com água do mar e o carrega-
quenos chefes como os o lorog1111 vam com a ajuda de pau e cordas, da
iorubanos. O reino de Uid{1, na vizinha mesma maneirn que carregavam diaria-
costa daomeana, tinha o comando mili- mente pesados fardos. Sobre o tonel
tar de um "Capitão de Guerra". Muitos montava imponente o novo capitão, le-
vando uma garrafa de aguardente (olhe
aí a cachaça!) numa mão e na outra ga-
lhos de alguma árvore, talvez vegetal com
algum significado ritual. O cortejo des-
crito por Querino marchou cantando
pelas ruas da Cidade Baixa, a zona por-
tuúria, e retornou ao canto, onde foi re-
cebido por membros de outros cantos.
Aí o capitão derramou um pouco da ca-
chJça no chão. Nesta parte da cerimônia
demarcava-se um território dentro de 28. Xavier Marquei. O F•ltic:Ho.
Sio Pauklw'Btasilia. 11173. p.
cujos limites o novo líder exerceria um 33. ' O....assa do Levam• de
Etcravos Ocorrido em Salva·
poder reconhecido, inclusive, por líderes d0t em 1835'. ln AIW• do
Af>ESa. 50 ( 1992). p. 7•
de outros cantos (31 ).
Quanto ao barril de água salgada 211. T. G. O. Gbadanoal. Th•
Growth of /slam among IM
pode simbolizar o oceano atravessado Yorut>a, t/UJ.1908, Allantk:
Highlands, 1978, p. 2: Pet.er
pelos africanos rumo à diáspora na Bahia. Uoyd, 'Crafl Organlzatlon ln
O Atlântico tinha um enorme significa- Yo<uba Towns·. ln Álrlc._ 23:
1 (1953), p. 34: Robin L.ow,
do na vida dessas pessoas, uma vez que Th11S1awCoastOfWe11Atrl·
ca, t 550- t 750. OJdord, 1991,
lhes havia cortado a vida em dois. Os es- pp. 51. 1oo: Francla de
cravos que faziam a travessia no mesmo Castelnau, Ruelgt>tnena sur
l'Alrique CtH>tta!e (.../d 'ap1e1
navio tornavam-se ma/1111gos, uma espé- /e rapport dH du
SIKtltn •sdaVB• .. Bahia. Pa·
cie de parentesco simbólico que os unia ria. 1851, pauim.
por laços fortíssimos de afetividade e so- 30 RoberlW. Slenft, -Ma/ungll
lidariedade (32). Deixando a família de ngotn1Veml': Álllca Encobel·
ta e Descoberta no Btull', in
sangue perdida na África, já no meio do Revista USP, 12 (111111 ·112),
pp.
m;1r surgia uma nova família ritual. Esta
pp.
contava com o aval dos deuses africanos, 31. Ouerino.
88·9.
que acompanharam seus devotos na lra-
32. Slene1, " Malungu ngoma
vessia. Derramar no chão a cachaça, Veml", ln ap, clt.. pP. $1-'.

REV I STA USP 15


como fez o capilão, é geslo carac1erís1ico se collar nas estradas, a duas e Ires
de reverência às divindades africanas lcgoas de distanc ia, n'ellas effectuüo
enlre nós. Desla forma, os lrabalhadorcs suas compras, deixando até os consu-
do canlo pareciam representar a ruplu- midores internos desprovidos d'elles,
ra com a terra natal e ao mesmo tempo o e obrigados· a comprar nas mãos
relorno rilual às raízes. Um rito de pas- d'esses arrogantes e improv isados
sagem, no caso de investimento de po- introductores por alto preço! !"(33).
der, essa fcsla, corno lodo bom rito de
passagem e de poder, reafiímava a soli- Não é plausível que os africanos usas-
dariedade do grupo de trabalho. sem a força bruta como método de co-
Não só o mercado de lrabalho esla- mércio, o que requereria um poder mui-
va enredado por significações africanas. to além do que detinham. E também não
A rede se estendia aos mecanismos de precisavam, pois traz iam de suas terras
mercado de alimentos, onde a competi- - sobretudo os iorubas, jejcs e hauss5s-
ção se dava contra os brasileiros natos, uma formid5vel experiência na arte de
homens livres brancos ou mestiços. negociar, homens e mulheres. As mulhe-
Os ganhadores que se dedicavam ao res, aliás, se deslacavam, não escapando
comércio de produlos da lavoura conse- do gosto pelo comércio esposas de reis
guiam va ntage ns su rpreendentes, por iorubanos (34). Na Bahia, terra alheia, os
serem parte de uma liga africana de cu- supostamente "selvagens" atravessa-
nho comercial. Essa rede ti nha uma pon- dores africanos lograram formar uma
la nas feiras do Recôncavo que abastcci- inteligente aliança com os também afri-
a m Salvador, e desperlava a fúria dos canos fornecedores, deixando os comer-
competidores. Em 1858, por exemplo, 76 ciantes de Nazaré a ver navios. Incon-
comerciantes da vila de Nazaré das f-ari- formados, estes reag iram com a lingua-
nha s dirigiram um abaixo-assinado à gem grosseira do pre<.:011<.:e ito étnico,
Assembléia Provincial acusa ndo que buscando a proteção do Estado ao invés
naq ucla praça de ir à luta livre do mercado. Propuse-
ram ao governo que proibisse os africa-
"com o maior escandalo se observa nos de mercadejar, que os obrigasse a só
a:.senhoriados das compras transa- trabalhar nu lavoura ou que lhes impu-
çües os selvagens afric:mos libertos, e sesse o in:.uport5vel imposto de 300 mil
até alguns escravos, que, aproveitan- réis anuais. Não colou.
do-se da convcniencia de serem os /\ outra ponta da rede africana al-
conductores dos generos seus iguaes, cançava Salvador, o nde reinavam am-
conr:io com a prcfercncia na compra, bulantes e quilandeiros, a maioria mu-
inda por menor preço, cm prejuizo lheres. Segundo aque te censo de Santana
dos /\gricultores, arrestando assim a de 1849, entre as libertas que negocia-
população naciona l, sempre a mais vam, a maioria declarou " mercadejar
garantida cm todos os l'aizes, d'cssc diversos gêneros". As que fora m mais
vantajoso, honesto e lucrativo meio específicas falaram de mingau, acaç:í,
de v ida, qual o negocio de abcrém, frutas, verduras, feijão, arroz,
Cabotagem''. milho, p:io, peixe. Essas mulheres prati-
camente monopolizavam o pequeno co-
Segundo os exagerados cidadãos mércio, segundo depoimentos que vêm
baianos, esse comércio estaria "todo en- desde pelo menos Vilhena, na virada do
tregue ao domínio africano [...]". E espe- século XVII I, confirmados por diversos
cificavam como agiriam os africanos visitantes estrangeiros da 13ahia oi to-
durnnle as feiras semanais: centista. Quando cm 1835, depois do le-
vante malê, uma junta de juízes de paz de
"essa alluvião de zangões sociais Salvador sugeriu que os africanos fos-
33 APEBll. AOlll•O·Asslnadol. aprcsentão-se no mercado, apoderão- sem proibidos de comercializar alimcn-
1856-59. maço 1184. se das tropas, lomão à força das mãos los, o próprio chefe de polícia, inimigo
34, Law. Tlle Oyo Emp11•. cap de ou trem os generos, impoem aos fidagal tios africanos, discordou com o
10
conductores seus iguaes o dever da argumento de que proibição anteri or
35. Lul• dos Santos Vilhena. A
Bahia no Século X VIII, Salva.
prcfcrencia, e inda não contentes, logo semelhante gerara "careslia repentina"
d0<, 1969. 11ol. 1, pp 93, 127, que desembarcão n'esta Cidade, e isto e confusüo para implementar a medida (35).
129·30, Augol, Visitantes,
pMlllll, Aeos. RIJbeNilo. p 290 11a cpoca ela carestia dos viveres, vão Os homens circulavam mercadejan-

16 REVISfA USP
do água, lenha, cal, louça, fazendas, sa-
tou o fim da independência dos cantos.
palo. Eram menos alivos no comércio am- Em junho daquele ano a Assembléia
b u la n lc de comida, mas ocupavam Legislativa Provi ncial concebeu a Lei n11
posiçãos cslralégicas na venda de, por 14, que linha por objclivo regulamcnlar
exemplo, farinha de m:rndioca. Em 1855, e disciplinar o mercado de lrabalho afri-
e de novo cm 1857, os comcrcianlcs esta-cano de rua cm Salvador. A lei dividia a
belecidos cm Salvador acusaram os afri- cidade cm capatazias, que lomariam o
lugar dos canlos, e criava o posto de ca-
canos - cm alguns casos os escravos afri-
canos de comercianlcs portugueses - de pataz para subs tiluir o de capilão-dc-can-
monopolizarem o comércio de farinha . to. O objetivo das capalazias seria cxala-
Os africanos, cm aliança com portugue- m entc o de "polícia dos g anhado res",
ses, "apenas chegam os barcos, compram confom1c rezava o lcxlo legal, fossem os
por alacado o carrcgamcnlo, e recolhido g anhadores escravos, liberlos ou livres,
ao Celeiro pãom-lhe o preço". O governo traba lhado res cm !erra ou no mar. O
só permilia a venda de f:irinha no Celei-
capataz receberia "vencimento razoá-
ro Público e J{i, de novo, os compradoresvel", obrigatoriamenlc pago pelos ganha-
africanos se dirigiam aos vendedores dores, para zelar pelo bom desempenho
lambém africanos. Numa pclição denun- no trabalho e pelo bom comportamento
ciando esse esquema, lê-se: "qua nlos polílico e policial daqueles, cvilando que
compradores ali apparcccm [ ... ] quase comclcsscm crime contra a ordem e con-
todos lambém Africanos e escravos, não lra a propriedade. Ou seja, os ganhado-
procuram senão aos seus scmclhanles, res deviam pagar para serem espiona-
ficando os abaixo-assinados inhibidos dedos, e não só ao capalaz, como veremos
concorrerem na vendagem da farinha num minulo.
com grande prcjuizo dos seus inlercsscs". A le i também obrigava que os ga-
Solidariedades semelhanlcs às cnconlra- nhadores se matriculassem, declarando
das nos canlos uniam africanos envolvi- nome, endereço, nome do senhor (no caso
dos no comércio de produtos como a fa- de serem escravos) e a "qualidade e gê-
ri nha de mandioca (36). nero de serviço a que estüo habituados".
Considerando o lipo de inserção su-Essa malrícula seria me nsalmente atua-
bordinada do africano na c idade, essas lizada, e quem se furtasse a fazê-la seria
relações forjadas nos mercados e nas ruaspunido com uma mulla de dez mil réis, o
formavam relações de força, eram po!í- dobro no caso de reincidência. Naquele
tica e resistência negra no cotidiano. Asano, com dez mil réis comprava-se pelo
vezes coadjuvavam na implosão do coti- menos uns quinze litros de farinha de
diano. Os ganhadores escravos e liberlos mandioca.
desempenharam um impo rtanle papel Um ano depois, cm abril de 1836,
na revolla muçulmana de 1835. Cerca de saiu a rcgulamcntaçf10 dessa lei. Ela dc-
51 % d os réus escravos e li bertos lalhava a nova eslrutura de pod er no
indiciados naquele ano eram lrabalha- antigo canlo. No topo ficava o juiz de paz
dores de rua, principalmente carregado- da fre guesia, cabendo-lhe nomear um
res de cadeira e fard os e vendedores inspetor para cada capatazia que ali fun-
ambulanles. Outros 17% eram arlesãos, cionasse . Antes hav ia " inspeto res de
a maioria dos quais mu ito provavelmen- quarteirão", que coadjuvavam os juízes
te fazia ponto dentro de cantos. Estes sena polícia da freguesia; agora, além des-
deslncaram corno cenlros de conspira- ses, haveria inspetores especializados na
ção (37). As autoridades do governo per- polícia das capatazias. Esses inspetores
ceberam que linham de controlar me- deveriam ser cidadãos brasileiros ele boa
lhor os ganhadores. A postura que levou conduta, alfabclizados e que livesscm
à greve de 1857 foi unw dessas lcntalivas,
residência na freguesia onde servissem.
mas antes dela outras medidas haviam A eles caberia rcgislrar os ganhadores e
sido tentadas. vigiá-los, evitando o desvio de mercado-
rias lrans po rtadas e informando sobre
CONTROLE E RESISTÊNCIA qualquer compo rlamcnlo que pusesse cm
NAS RUAS risco a ordem plíblica.
36 APEBa. Abaixo·Assinndo•.
Era também da alçada do inspetor 1850·55. mac;o 983; llPEBa.
Roqulirlmontos. 1857, n/C
As armas de 1835 cslavam ainda nomear o capalaz, que devia se mpre
qucnlcs quando o governo baiano decre- "cumprir as ordens do lns pcctor". Mas 37, Rolo, Roblilido, pp. 20S· 7.

REVISTA USP 17
o capataz continuava sendo africano, pal haria também a vida dos senhores,
agora um africano de confiança dos bran- que teriam seus escravos domésticos
cos, nunca porém escravo. Era seu dever constantemente parados para se verifi-
observar a assiduidade dos ganhadores, car se estavam no ganho ou a serviço do
idenli ficando os ausentes e investigando senhor. E os que estivessem de favor para
as ausências. Qualquer irregularidade amigos dos se nho res? E quanto às
devia ser imediatamente comunicada ao capatazias que só tivessem escravos ma-
inspetor. Cabia também a ele arrecadar triculados, como nomear para elas capa-
diariamente dos ganhadores sessenta réis tazes libertos?
dos que trabalhassem cm terra e oitenta Dois aspectos chamaram mais a aten-
dos que traba lhassem no mar, de cuja ção crítica do Diârio: a obrigatoriedade
quantia dois terços iriam para o inspetor do uso das chapas de metal e a forma de
e o resto para o capataz. remuneração de inspetores e capatazes.
As capatazias só poderiam f uncio- Esta última espantou o articulista: "Esta
nar com pelo menos dez membros, as que com cffeito assusta!! ". E perguntava:
tivessem menos teriam seus ganhadores
distribuídos entre outras. A medida ser- "Que há de um ganhador, quer seja
via para evitar a dispersão, concentran- escravo, i11ge11uo, ou liberto, prestar-
do e aprimorando a vigilância. Coroan- sc ao serviço commun , carrega ndo
do os mecanismos de controle, cada tra- pesados volumes, fatigar-se, perder a
balhador registrado traria uma pulseira saúde, e muitas vezes a vida, mas, não
de melai com a inscrição de seu número obstante, exhibir de seo fra co lucro
de registro e o de sua capatazia. Os capa- diário três, ou quatro vintens para tão
tazes trariam pl aqueta semelhante pre- somente locupletar o inspector [... ] e o
sa a uma "tiracollo de coiro preto". Fica- ca pataz?"
va assim marcad a a diferença entre o
ganhador comum e seu capataz (38). Previa "muita arb i1raried ade" da
O pl ano assim previa tomar de as- parte destes, que exigiriam sua remune-
salto o canto, destruindo sua autonomia ração mesmo se m ganho. Mas o autor
a partir de dentro, subordinando-o à fre- sabia que o ganhador não era bobo. E
guesia, ou seja, à jurisdição territorial do antecipava que ele certamente transferi-
poder branco. Já que este não podia evi- ri a o ônus para os fregueses, e com o
tar que os africanos circu lassem livre- aumento do transporte "os próprios ge-
mente pela cidade, procurava con trolar neros, que eram vendidos ao Povo por
seus centros de rcuniiio. Propunha -se a um preço, terão augmento de valor".
fcitorizaçiio da esc rav idão urbana, o O comcnt:írio sobre as chapas bei-
governo a fazer as vezes de feitor j;í que rava o deboche:
inexistia o fe itor senhorial.
A lei niio desagradou apenas aos "Se até o anno de 1835, só viamas al-
africanos. Um longo artigo publicado cm gum forçado com uma braga ao pé, do
5 de maio de 1836, no Diário da Bahia, anno de 1836 cm diante teremos de
criticava-a detalhada e severamente. O ver vo/1111túrios com clla no braço, e de
registro apenas dos ganhadores era certo qualquer curioso Estrangeiro,
discrim inatório. O regulamento, como que vier à Bahi a, não omiltirá nas suas
um todo, apresentava "incongruências, Memórias o espírito classificador, que
irregularidades, e prece itos por demais nos caracte risa, e a mais decidida
pesados, e ::;em proveito... ". paix:io por disti11c1ivos: mas serão as
Nem todas as frcgucsias eram listadas, argolas fi xas ou não?"
o que sign ificava transferir ganhadores
para servirem cm outras sob juízes e ins- Que fosse m fixas: o liberto, por exem-
petores estranhos. Isso dificultaria inclu- plo, teria de ir à igreja, a uma visita, a
sive o acesso dos fregueses aos ganhado- uma festa com aquilo no braço? O autor,
38. Colteção do Lol s e Resolu·
res matriculados, quando antes "qual- é claro, imaginava situações esdrúxulas
ç6os da Assembl6ia L09/sl- quer pessoa de sua janella, de uma loja, para melhor ridicularizar a medida. Mas
Blivs da Bahia. 1835 · 1841.
Slllvado<. 1862. pp. 22·7. ou cm geral de todos os pontos chamava levantava o ponto fundam ental de que
39. APEBa. Juízos do Paz. maço quem lhe transportasse cffcitos à troco ler no corpo o penduricalho se ria uma
2688. de um ou mais vinlcns, sem que muitas forma indigna, humilh ante de controle
40. Idem. ibidem. vezes fosse um positivo ganhador". Atra- dos africanos. É muito boa a compara-

18 REV I ST A USP
ção com as cadeias que prendiam os con- rode 1837, j;í havia desistido e o juiz de
denados a trabalhos. Os ganhadores paz não enconlrava quem quisesse subs-
podiam ser escravos, mas pelo visto a tituí-lo. Evaristo L.idislao, o juiz, infor-
cadeia da escravidão não era a mais des- mou ao prcsidcnle que os ganhadores re-
prezível na tris te 13ahia. E se j:í eram cusavam-se a remunerar o inspetor e a se
ganhadores libertos, aquela marca suge- submeler rcvis1a. Dian1e disso decidiri1
ria que a escravidão ainda os rondava. empregar "alguma violência pequena".
Essas significações aílorariam novamen- Mas por pequena que tivesse sido a vio-
te cm 1857. lência (que di riam os africanos do seu
Por cnquanlo os juízes de paz tenla- tamanho'?), ninguém se apresentaria
riam impor as novas regras. Ignorando para o ganho nos dias seguintes. Os co-
as críticas, o governo se ulilizaria das merciantes do bairro j:í se queixavam da
p:íginas do próprio Ditírio da /Jaliia (27/ falta de braços para o carreio. O próprio
5/1836) apenas para esclarecer as dúvi- juiz expcrimenlara esta falta cm seu ser-
das dos juízes sobre a aplicação da lei. viço. Seu colega Felix da Graça Pereira
facl;ircce u, por exemplo, que nf10 haven- Lisboa, do segundo dislrito, desde janei-
do liberto na capatazia, um escravo po- ro j(i avisara ao presidente que restavam
deria ser nomeado capalaz, mas com li- ali apenas treze ca rregadores de cadei-
cença do senhor; que as chapas seria m ra, poucos para a populosa Sé. Os de-
confeccionadas ri custa dos gan hadores mais haviam escapado par:i freguesias
ou dos senhores; que os ganhadores po- onde a lei ainda nüo havia sido posta em
diam transitar por Ioda a cidade e não só execução. E estava difíci l encontrar os
no dist rito de sua capatazia. E out ras "evadidos", pois não haviam declarado
miudezas que demonsl ravam a dificul- corretamenle suas moradas e os nomes
dade de colt>car cm pdtica as medidas. de seus senhores. Isso em janeiro.
Por exemplo, cm fevereiro de 1837 um Em março o ins- _._.,.... ...,.. . ..,
juiz de paz pcrgunlava se deviam exigir petor Joaquim
111a1rícu la de escravos domésticos com Cesar
permissão senhorial de lrahalharcm para
si após o serviço de casa e aos domingos.
V:írios juízes de paz tinham essa dtívida,
o que mostra quüo generalizada era essa
pr:ílica. Um despacho do presidenle da
província ordenava que nüo se fizessem
exceções (39).
Mas o presidente despachava do
conforto de seu pal:ício. Nas ruas ..._...., .
rolava uma guerw de nervos. O juiz
Evarislo Ladislao da Si lva, do pri-
meiro distrito da Sé, chegou a
declarar-se convencido de que as
medi das eram impratic:íveis,
principa lmente por estabelecer
"um imposto sem a proporçf10
dos lucros d'aquellcs que o de-
viam pagar" (40). E realmente
a lei das capalazias não funcio-
nou. Mas nüo funcionou sobre-
tudo porque os ganhadores re-
sistiram das mais diversas for-
mas. Recusavam-se a pagar a cota
dos inspetores, dedaravam nomes
e endereços falsos, pulavam de uma
freguesia para outra burlando a ma-
trícula, e uns incitavam outros a uma
espécie de desobediência civil.
Um inspetor de capa lazia do pri -
meiro distrilo da Sé, no in ício de feverei-
d ' /\lme ida, do mesmo distrito, tentava que não agradou ao crítico do Diário da
resistir. Num ofício a seu juiz de paz, relix Bahia em 1836 fo i ter a Assembléia
da Graça, lamentava que já havia três ou Legislativa usurpado da Cf1mara Muni -
quat ro semanas que os ganhadores de c ipal o dire ito de regulamentar os ga-
sua capataz ia não pagavam seu salário. nhado res. Segundo e le, ganhado r e ra
Muitos estavam se trans fe rindo para a assunto para postura munic ipal, o go-
Conceição da Praia, uma das freguesias verno provincial que cuidasse de coisas
onde o regulamento ainda não havia sido mais sérias. Com efeito, muitas posturas
implementado. E acrescent ava: " te m d isciplinavam o pequeno comércio de
chegado ao arrojo de alguns negros vi- rua, a que os africanos, no caso maioria
re m a esta capatazia e co nd uz ir mulheres, se dedicavam.
individuos deste para aquelle lugar su- As posturas regulamentavam pesos
blevando des ta mane ira os ganhadores e medidas, especificando locais onde se
aqui matriculados". /\o conlr:irio do juiz podiam vender determinados produtos,
Fc li x, o inspetor Joaq uim sabia quem proibindo a colocação de tabuleiros em
eram os senhores dos escravos de sua lugares de maior movimento. Os afri ca-
capatazia, e foi cobrar deles o dinheiro e nos que desobedeciam tinham seus pro-
o paradeiro daque les. Mas senhores e du tos confiscados, a lém de pagarem
escravos nem sempre estavam em lados multas pesadas e penas de prisão. Os
o postos do coníl ito. Aquela lei era uma vereadores eram o tempo todo bombar-
int romissão impertinente do Estado nas deados por queixas de moradores e fre-
relações escravistas. Os senhores não só gueses contra fiscais relapsos e queixas
recusaram-se a pagar, como afirmaram de ganhadores e senhores contra fiscais
que seus escravos tinham liberdade para severos. Em 1839, po r exemplo, uma
decidir onde ganhar. E falaram isso com caria publicada no Correio Mercantil (22/
"expressões grocciras e atacantes", cho- 4/ 1839), assinada por um anônimo " Ini-
ramingou o inspetor (4 1). migo dos Desleixos", cobrava a remoção
A freguesia da Conceição da Praia, de um peque no mercado de peixes da
zona portuária para onde os ganhadores rua da Preguiça para o lugar designado
da Sé estavam fugindo, tinha virado ter- pe la Cflmara. O leitor denunciava que
riló rio livre. Naquele mesmo início de "as ganhadeiras, os compradores de pei-
1837, o juiz de paz do Pilar, freguesia xe, e os capadócios à palestra entulhã,o
vizinha, de nunciava que ainda não pu- aquela paragem de forma que não se pode
dera ver suas capatazias do mar instala- passar". Além do falatório, do mau chei-
dqs porque os donos de saveiros haviam ro e do obstúcu lo ao trfmsito, queixava-
deixado de atracar. Desviaram-nos para se da cor dos que ali se reuniam: "Oh
a Praia. No Pilar, quase todos os inspeto- Céos, nunca vi nada trio parecido com a
res estavam pedindo demissão, o qu e Guiné Africana!" . E insistia na compa-
indica que também as capatazias da ter- ração: "só ali se veria tanta po rcaria,
ra niio estavam dando certo. O juiz do tanta negraria junta" . Até por rima, o
Pilar pedia ao presidente que obrigasse o cidadão ("sou 13rasileiro", escreveu) as-
juiz da Conceição a cumprir a lei. Mas a sociava negro a lixo, o que sugere que o
confusão parecia irremediavelmente ins- motivo da queixa servia de pretexto para
talada ( 42). extravasar preconceito étnico.
Com o tempo, as autoridades desis- No entanto, os fiscais não eram tá.o
tiram. É provável que para isso tivesse tolerantes como a denúncia do " Inimigo
contado a pressão de negociantes preju- dos Desleixos" poderia levar a crer. Em
dicados com as dificuldades de carreto, julho de 1835, por exemplo, Q fiscal José
de senhores com a falta de segurança do Custódio Lobo oficiou que prendera "al-
ganho, e muita gente com a falia de c;:t- gumas pretas [ ... J que eslavão embarn-
deiri nhas, além cjos próprios juízes de çando o tranzito ·publico com s uas rner-
paz com o desgaste da lula para fazer os • cadorias". E nUo houve relaxamento com
ganhadores obedecerem. Essa desobedi- o passar do tempo. No ano da greve, 1857,
ê ncia, no entanto, foi o que realmente a escrava africana Esperança foi multa-
derrotou a lei. Vencedores, escravos e li- por mercadejar parada cm lugar proi-
bertos reocuparam seus territórios e o bido; e um escravo aguadeiro, por amar-
41. Idem, Ibidem. que seria capatazia voltou a ser canto. rar o burro à porta de uma venda en-
42. Idem. Ibidem. Um dos aspectos da lei das capatazius quanto dcse<frregava água numa casa.

20 R E V 1S T A U S P
São casos escolhidos ao acaso entre deze- para pass:1gciros", segundo anunciou
nas (43). seus consignatários Gantois & Marback.
Se as posturas municipais se torna- Essa firma participara ativa me nte do
ram o principal instrumento de controle lrMico cla ndestino de escravos para a
do mercado de trabalho dos africanos, o Bahia; agora fazia di nheiro transportan-
governo provincial não desistiria de tam- do, legalmente, africanos libertos de volta
bém alua r contra e les. Quem me lhor à África (45).
encarnou essa política, como mostra
Cunha, foi Francisco Gonçalves Martins, A GREVE
chefe de polícia por ocasifo do levante
dos malês em 1835. Quando chegou à A lei de 1857 foi então parte de uma
presidência da província, cm 1849, con- longa campanha de controle do traba-
tinuou a perseguir os africanos como a lhador africano cm Salvador. Mas fez-se
querer completar o trabalho in ic iado uma lei mais branda e mais simples do
quinze anos antes. Em 1850, eles sofreri- que a de 1835. Da lei anterior, herdara a
am um grande revés, com a proibição de exigência de matrícula e chapa. Nada,
trabalharem nos saveiros q ue descarre- porém, sobre a reorganização dos can-
gavam os navios no porto. Doravante os tos, por exemplo, talvez porque já se pre-
savciristas seriam "pessoas livres, com visse o mesmo fracasso da lei de 1835.
exclusão dos africanos", relatou Martins. O movimento começou bem. Nossa
Essa medida fi gurava ent re ou tras principal fonte sobre seu andamento é o
dirigidas a abrir espaço no mercado de Jornal da Bahia, com not ícias sempre
trabalho ao elcmcnlo livre nacional. Mas estampadas na primeira p:ígina. Sobre o
se era lógico afastar os escravos do servi- início da greve, noticiou a 2 de junho:
ço de savciro, o afastamento dos africa-
nos libertos configurava urna evidente " l lontem esteve a cidade deserta de
perseguição étnica e, dada a autoria de ganhadores e carregadores ele cadei-
Martins, perseguição política. Esse espí- ras. Não se achava quem se prestasse
rito antiafricano, mais do que antiescra- para conduzir objccto alg um. Da
vista, não foi percebido pelo abolicionista ·alfandega nenhum objeto sahio, a não
baiano Luís Anse lmo da Fonseca, um ser objccto mui portatil, ou que fosse
entusiasmado admirador do esforço de tirado por escravos da pessoa interes-
Martins em promover o trabalho livre sada.
(44). [ ... ] Os pretos occullaram-se; e se os
Med idas assim visavam empurrar senhores não intervierem nisso, or-
os africanos para o trabalho dependente denando-lhes que obedeçam a Lei, o
nos e ngenhos ou fazê- los retornar em mal continuará, porque, segundo ou-
massa à África. Uma suposta conspira- vimos, elles estão nessa disposição".
ção africana cm 1853, interpretada pelo
cônsul inglês como uma reação de africa- Segundo o jornal, o motivo princi-
nos desempregados, resultaria numa pal da parada era "a execução da postu-
repressão policial desmedida. /\. pressão ra que obriga os ganhadores a trazerem
política e as dificuldades econômicas da chapa ao pescoço!". As chapas, assim,
difícil década de 1850 intensificaram o avultam como a principal razão de estar
movimento de retorno ti África. No pró- parado o transporte de pessoas e de mer-
43. AMS, CAmnr.o. Co11espon-
prio ano de 1857, dezenas de an(1ncios cadorias em Salvador, sobrei udo estar d(111cls de FlsC1Jls. 1835.
apareceram nos jornais baianos cm que parado o porto de uma cidade voltada n/c: AMS, Requorimonlo•,
1857, n/c.
africanos comunicavam a amigos e cli- para o comércio exterior. O periódico
44 FnllaquerecítouoP1eslden1e
entes a decisão de deixar o país. Exem- esboçava a esperança de que os senhores da Ptovlncla erc, Salvada<,
plo: cm 21 de fevereiro Salvador Ra1i1os interviessem, fazendo seus cativos 1851. pp. 33-4. Mãnue!llC. da
Cunha. N1J9fOS. E strangt11ra.:
das Neves anunciava que partia "levan- retornarem ao serviço. Mas nf10 foi o que os E.cravos Ub«los e""" R..
torno A Áftlca. Sio P•ulo.
do sua familia", constituída da mulher e aconteceu. 1985. pp 96-7: Lula Anselmo
da Fonuca. A EscravidAo, o
cinco "crias forras". /\s companhias de Já no primeiro dia, os africanos re- Ci.ro e o Abolicionismo, Aeci·
navegação também anunciavam viagens ceberam um aliado acidental, mas im- fe, 1989 (orlg. 1887), 2' pane.
cap. 2 .
para a Costa d' África. Em fevereiro par- portante. J\ /\ssociação Comercial, que
45. Cunha, Ibidem, pp. 62·100
tiria para Onim (atual u1gos, Nigéria) o represe ntava os ,g randes negociant es, (vaga an!lalrlcana): Jornal da
navio '" lndependc nce' , de primeira protestou contra a lei municipal junto ao Bahia (18/2/1857): Verger.
Flux er Rellux. pp. 453· 4,
marcha e com excelentes acomodações presidente da província, o futuro chefe S37·8.

REVI S TA U SP 21
de gab inete de Ped ro 11 , João Lins sas vezes os opunham à Câmara, mais
Cansação de Sinimbu. Eles achavam que intervencionista (47). A divisão no cen-
o motivo dos africanos era o "imposto", tro de poder da cidade - Câmara Muni-
nfío matrícula, fiança ou chapa. O que cipal e Pal:ício Presidencial, por sinal,
desgostara os comerciantes era também ocupavam a mesma praça - seria o pri-
dinheiro, que perderiam se nüo puses- meiro fato político importante criado pelo
sem para circular suas mercadorias. movimento.
A dependência do comércio cm re- A sessüo da Câmara que discutiu as
laçiio aos ganhadores talvez nunca tives- ordens do presidente dividiu seus nove
se ficado ti'io clara como cm 1857. Em vereadores. Dois deles, inclusive o presi-
185 1, Wetherell escreveu que a "marcha dente da casa, propuseram que a matrí-
do progresso" chegara à Bahia na forma cula fosse reduzida a mil réis e se dispen-
de duas linhas de bondes e muitos carros sasse fiado r para ganhador liberto. A
de aluguel com traçi'io animal. Além dis- proposta foi rejeitada. Um edil acusaria
so, bandos de mulas seriam usados para o presidente da província de abolir uma
carregar cal, pedras, terra, etc. Mas nfio cobrança legal porque nfio podia haver
bastava. 1lavia que carregar as carroças " licença sem pagamento". E acusava o
com as pedras, por exemplo, trabalho de governo de irresponsável, por ler dado
ganhador. E o aluguel de carros era caro, mostra "de nüo ter sciencia de seus actos".
pois, ao contr:írio dos saveiros, o preço Ao argumento financeiro, outro associou
nfio era tabelado pelo governo. Além dis- o regimental, defendendo a postura "por
so, consta tratar-se de um setor monopo- entender que a Presidência da Província
lizado. 01\lmwwkda Bahia de 1857 listava [... ) não pode, assim como a Assembléia
apenas dois "alugadores de carros, seges Leg is lativa Provincial, derrogar,
e carrinhos". O principal er:1 o austríaco nuttificar, ou alternar uma Postura qual-
Rafael Ariani, propriet:írio de carros de quer depois de approvada" (48).
carga e passageiros, carruagens para No final os vereadores acataram o
ocasii'ios solenes e carros funer;írios. Ele presidente sob protesto. Em resposta
cobrava aluguéis altos, de 40 a 50 mil réis publicada na imprensa, lembraram que
pelo carro comum e até 70 mil réis por ele mesmo havia aprovado, embora pro-
carruagem, puxada por quatro cavalos, visoriamente, o texto de uma postura, não
para casamentos. Quanto aos carros só inspirada, mas "literalmente copiada
mortuários, o J om(l/ da Bahia citava al- do codigo municipal do Rio de Janeiro".
guém dizendo que "na Bahia cus1;1-se Realmenle, na corte, desde pelo menos o
mais morrer do que viver". E quando se início da década de 1840, os ganhadores
ia queixar a Ariani, segundo o mesmo haviam sido obrigados a usar chapas.
jornal, ele recebia com "maos modos [...] Com tf10 exemplar aval, a postura baiana,
j:í proverbiais" (46). segundo os vereadores, seria "legal, jus-
Depender das rodas de Ariani não ta e exequivel", inclusive a cobrança das
era uma boa idéia, fosse quitandeiro, chapas de metal. Omitiam apenas o de-
comerciante grossista ou simples usuá- talhe de que cobravam três mil réis por
rio de cadeirinha. Aliás, o uso de carros, uma chapa que lhes havia custado ape-
48 Welherell. Btaz1I, p 63.
C.,,,..o <1e L Masson (Olg ).
além da falta de mercadoria na praça, nas 600 réis junto fundiçi'io G. Colom-
Amanak AdmifltsttafiWI, Mt1t· pressionaria mesmo os preços. "A cares- bo (49).
cantil • lndust11al da Bahia
pata o Anno de t 85 7, Salva· tia cresceo", escreveria mais t<irde o J or - Do ponto de vista da argun.1entaçi'io
dot. 18$8. p. 365. Jomal da
Bahia (14 e 21/6/1857).
nal da llahia ( 15/6/57). Todos queriam os política, o melhor trecho dos vereadores
africanos de volla aos cantos. Mas esla- foi o dedicado aos ganhadores. Demons-
47 Eugene W. Ald1ng1. "Tho
Balllan Commefclal AHOC>I · vam errados se acreditavam na tese da trando expe riência cm tratar com eles,
IJon, 18'°· 1889". los& PhO,
UW.1'1yOIFlonda 1970, pp Associaçf10 Comercial de que se !ralava definiram o movimento como
116, 120, 133 só de dinheiro.
48 AMS. AW da CAmat4 vol Pois bem. Pressionado pelo comér- "conluio ou parede entre africanos
g 48, h 274-Sv
cio, o presidente da província imediata- libertos e os escravos, nflo porque lhes
49 Lul1 Cattos Soaru. "Os E•· mente informou à Câmara que suspen- pese o dispcndio que a licença ac:1rre-
et aVOll <le Ganho no A.o <le
Janeiro do Século XIX', ln desse a cobrança da taxa de matrícula e ta, na verdade insignificante para
R•vlsta Btasileíradtt H1st6'111.
8 16 (1988), pp. 111·2 (eh• · distribuísse g ratuitamente a chapa de industria ti'io lucrativa, e que nenhum
puC81iocu): Jomalda Bahia
(3/8(1857); AMS, Ala• da idcntificaçfio. O presidente, como os co- outro imposto paga, mas porque se
C/Jma14 vol. 9.48. li 269. merciantes da Associaçflo, eram adeptos querem ex imir de toda e qualquer
ISO. Jomalda Bahia (3(611857). do liberalismo econômico, o que diver- fiscalizaçi'io" (50).

22 R E V 1S T A U S P
E advertiam ao presi<lcnte ele que a contra a parte " policial". Na mesma edi-
g reve dava um péssimo e xe mplo a ção que publ icava a polêmica e ntre a
quantos no futuro q uisessem " ncutralisar Câmara da c idade e a Presidência da
a acção do Governo". Ao invés de ceder, província, o Jornal da Bahia no ticiava
as autoridades de via m tentar neutrali- sobre o segundo dia da greve: "Os cantos
zar o movimento, utilizando para isso os a inda estiveram desertos". Obse rvava
oper:írios do arsenal de guerra, ocupa- e ntretanto que carros operados por ho-
dos na ind ústria naval, e os c hamados mens livres, além de escravos a pé de
"africanos livres'', aqueles confiscados de despachantes, havi am retirado "diver-
contrabando após a proibiçüo do tráfico sos volumes" da alffmdega. Muitos par-
em 1831 e colocados sol> a tutela do Es- ticulares esta riam aderindo ao ca rro,
tado (daí serem também chamados " afri- uma opçflo cara, como vimos, e por isso
canos da nação"). A médio prazo, a Cfl- e mergencial. /\demais, o q ue havia de
mara apostava cm que fossem criadas as carros e homens livres e escravos domés-
companhias de homens livres, jú previs- ticos não dava conta do que havia de
tas em uma lei de 1855. me rcado ria para ser transpo rtada.
Mas o presidente não deu o uvidos Os homens livres, mesmo os de cor,
no barulho que vinha do outro lado da consideravam indig no trabalhar lado a
praça. Segundo e le, j:í que a Cflmara lado com escravos e libertos africanos.
pretendia apenas disciplinar os ganha- Jornal da Bahia de 15 de j unho:
dores, a medida dev ia ter ape nas um
caráter policial e não fi scal. Para isso " muitos braços livres, que não con-
bastava que permanecesse m a matrícu- correm aquelle traba lho po rque nüo
la e n obrigatoriedade "desses individuos querem exercê-lo a par de afri canos
trazerem visivelmente cm uma chapa de libertos ou escravos, correriam pres-
metal o numero ele sua matricula". Ade- surosos a ganhar alli decentemente o
mais, a Câmara n:io tinha prerrogativa pflo, que lhes nüo abunda, certos de
de criar a taxa, senão com aprovação da que nada te riam a so ffr cr nos
Assembléia Provinc ial. O presidente fa- prej uizos que herdaram e alimen-
zia eco das críticas à lei de 1836, afirman- tam" .
do que, na eventualidade de ser realmen-
te feita a cobrança, os ganhadores termi- O preconceito ("prejuízo") contra o
nariam transferindo para seus clientes o africano, e nüo só o escravo, era genera-
custo: lizado. Nflo era repulsa de cor nem clas-
se, mas étnica. Ni"io surpree nde que os
";\ Camara sabe que a imposição re- africanos se protegessem com barreiras
sultante dessa licença recahe sobre os também étnicas. Naturalmente o precon-
consumidores e nfo sobre os contri- ceito se acentuava na medida cm que, na
buintes, e portanto deve ponderar que hora da competiçüo no mercado de tra-
o alivio que se pretende fazer com a balho, os homens livres encontravam os
isençf10 delia nüo é fcita aos escravos, africanos admirave lmente o rganizados
e nem aos africanos libertos, mas sim e m to rno dos cantos. Os ca ntos assim
à po pulação consum mido ra, cujos re presentavam um instrumento de re-
interesses é dever da auc to ridade serva de mercado, uma barreira i1 entra-
attendcr, maxime quando trazidos ao da dos não-fili ados - e nele só entrava
seu conhecimento pelo modo legal e africano, ou quem a ele se submetesse.
pacifico por que o fcz a j unta directora Os escravos e libertos africanos estavam
da Associação Comercial" (5 1). na ocasiflo muito melhor organizados do
que os trabalhadores livres.
O presidente nf10 fazia pol ítica em Daí os homens livres viverem a pe-
favor de escravos e libertos, nüo escon- dir a proteçüo do governo contra os afri-
dendo os interesses que defendia. E orde- canos. Foi g raças a essa proteção que
no u que os vereadores acatassem suas vieram a penetrar na estiva, onde carre-
orde ns. gavam e descarregavam em saveiros os
Assim, no segundo dia de greve, já os navios ancorados ao largo do porto. A lei
africanos escravos e libertos haviam con- de 1850, lembrem-se, proibia a partici-
seguido derrotar uma parte, a parte " fis- paçf10 de africanos e/ou escravos nessa
cal", da postura. Continuavam parados atividade. Mas mesmo com a proibiçüo, 51 l <lem. lbi<lem

R E V 1 S T A U S P 23
em 1854, 2 1,7% dos "empregados na lide ceiros de escravidão. A vaia podia ser um
do mar" eram escravos, no que deve ter desabafo dos mais covardes, ou uma crí-
contado a pressão senhorial. Com a crise tica à incompetência da fuga. Seu senti-
da epidemia de cólera em 1855, essa pro- do mais profundo talvez nunca se escla-
porção dobrou e se manteve estável cm reça. O fato é que o ferro encaixado no
1856 (52). Mas se a estiva estava dividida corpo humilhava, faze ndo pesar mais
entre escravos e livres - e destes 35,2% ainda a condição de escravo, de corpo-
eram brancos em 1856 - o carrego além propricdade. Se a argola punia o peca-
das fronteiras da alfândega fi cava por do da rebeldia, a chapa parecia punir o
conta de escravos e libertos predominan- pecado da o rigem africana dos g anha-
temente afri canos. Daí o impacto da pa- do res.
rada. Naque le terce iro dia de g reve, o
Sobre o terceiro dia da greve, o J or- olheiro doJom al da Bahia (4/6/1 857) cir-
nai da Bahia (4/6/ 1857) informava que o culou pela cidade com as orelhas em pé:
transporte continuava devagar, " apezar " temos ouv id o que de nt ro em po uco
do auxilio prestado po r alg uns b raços andarão de novo os pretos nas ruas conto
livres e carros". A greve parecia ser ago- dantes, independentemente de chapas e
ra exclusivamente em torno do uso das matriculas". Porém, nesse terceiro dia o
pl acas de metal: "A repulsa pelas chapas movi mento co meçou a aprese ntar as
ainda continua po r parte dos pre tos. primeiras .desistências, exatamente no elo
Hontem esteve a cidade, como nos d ias mais fraco da comunidade de ganhado-
precedentes, limpa de pretos carregado- res: os escravos. Os senhores os estavam
res". Tal como o crítico das chapas em press ionando a trabalhar: apressara m-
1836, o periódico percebeu o que estava se e m co m parece r à Câm ara p ara
em jogo. E se a imprensa percebeu é registrá-los, obter g ratuitamente a placa
po rque to e.lo mundo j á sabia. Mais do e mandá-los logo para o ganho. Os afri-
que rej eitar o controle do seu trabalho, canos enfrentavnm a difícil circunstân-
os africanos rejeitavam aquela forma es- c ia de atuar p o liticame nte sobre um
pecífica de controle. O uso d as chapas mercado de trabalho segme ntado entre
era tido como humilhante. Os africanos libertos e escravos. Se os primeiros só
e ram orig inalmente de um mundo o nde tinham de seguir o comando de seus líde-
a marcação do corpo com escarificaçãos res, sem dúvida os capitães-do-canto, os
(as abaja iorubanas), o uso de determi- segundos fi cavam entre o comando des-
nados colares, roupas e penteados dizi- tes e as ordens dos senhores. Os escravos
am sobre sua posição na ordem social e enfrentavam m ais riscos. Desobedecer
ritual. O s afri c anos es tav am com aos senhores podia redundar em castigo,
Fo ucault: "o co rpo e stá dire tame nte redução e até s uspensão de sua parcela
merg ulhado num campo político". Mas do ganho, podia inclusive comprometer
a Câmara também: "o corpo só se torna a al forria, que dependia, além de dinhei-
força útil se é ao mesmo tempo corpo ro, ·d a boa vontade dos senhores. E estes,
produtivo e corpo submisso" (53). Am- uma vez s us pensa a taxa, nflo v iam por
bos sabiam que naquela chapa jogavam que evil ar a m atrícula. Com e feito, a
uma cartada decisiva. Como escreveu o partir de 4 d e ju nho, quando percebe-
Jomal da Bahia (6/6/1857), os afri canos ram que não tinham de pagá-la, eles cor-
lutavam para " desembaraçar-se do tal rera m para registrar seus escravos. Eu
ferro, que tão deshumanamente os equi- só consegui enco ntrar, nos arquivos da
para aos míseros quadrúpedes". Câmara, três matrículas até esta data;
E havia outras associaçãos. O crítico para o dia 4 encontrei quarenta (55).
de 1836 comparou a chapa com argola Não obstante â dificuldade, os gre-
d e condenado. Um com e nt ári o de vistas procuraram reagir, e o fizeram com
52.Mattoso, Bahia: Salvador, Wetherell lembra outra associação mais t:íticas de piqueteiros mode rnos:
pp. 278 -9: Cunha. Negtot.
Estrang•iro•. p. 98. direta: o colar enfiado no pescoço do es-
cravo fuj ão. O inglês escreveu: "esse dis- " Alguns senhores tê m m atriculado
53. Michel Foueaull, Vigiar• Pu·
nir, Petrópclla, 1977. p. 28. tintivo é considerado uma grande desgra- seus escravos, que sahcm para a rua
54. Welh9<ell, 811u il p. 70 (grita- ça, pois quando passam [escravos com com a chapa respectiva, mas são logo
do no 0<igl nal). ele] seus conhecidos zombam deles" (54). obrigados a arranca-la, não só por-
55. AMS. Atestados de Conduta A gente imag ina que esses bravos fuj ões que os companheiros os maltratam e
" Matrícula do Escra vos,
1857, n/c. deveriam ter sido aplaudidos pelos par- obrigam a isso, como també m po r-

24 RE V IS T A USP
que os moleques e as pretas fazem-
lhos roda, e os desesperam com dictos
e sa rcasmos".

No dia segui nte, o jornal informaria


que os escravos com chapas haviam sido
apedrejados pelos companheiros. Obri-
gados a tirarem- nas, eles voltavam para
casa por não pode rem trabalhar se m
serem presos pelos fiscais da Cãmara (56).
Um desses incidentes foi motivo de uma
petição à Cflmara, feita por Eufcmia
Maria das Dores Rocha:

"lendo matriculado n'essa Repa rti-


ção no dia primeiro de junho os seus
escravos que andão no ganho sob os
números 99 e J00, acconteceo que o
de n11 100 de nome Antonio, naçüo
Ussá, recolhendo-se pa ra casa depois
da Ave-Maria, um grupo de africa-
nos moleques na Baixa de Sapateiros
arrancassem do pescoço a chapa, que
trazia o dito escravo, vindo espanca-
do... "

A senhora do escravo haussá (gra-


vem sua origem) solicitava que o dinhei-
ro pago pela chapa perdida fosse devol-
vido. A Cfünara deferiu o pedido, lavran-
do cm ala que o incidente "denota falta
de açiio policial" (57).
Mas a polkia dificilmente poderia
controlar toda a cidade. Inclusive por-
que os ganhadores nf10 estavam sozinhos
na defesa do movimento: a comu nidade
negra ve io a campo para apoiú-los, cri-
anças e mulheres. Como vimos, as mu-
lheres controlavam um bom pedaço do
comércio de rua de Salvador. Ganhado-
res e gan hadeiras dividiam a soberan ia
das ruas. Apesar de niio participarem dos
ca ntos, uma inslitui çüo masculina, elas
faziam parle da rede mais ampla de tra-
balhadores africanos urba nos. Eu sus-
peito, inclusive, que ajudaram o movi-
mento não apenas desencorajando as
deserções. Como vendedoras de com ida,
nfto duvido que te nham alimentado a
crédito ganhadores que hú dias nüo fazi-
am vintém.
Acompanhando as mf1os no serviço,
ou simplesmente à solta na rnolecagem,
os meninos de cor eram ou tras persona-
gens constantes da cena públi ca
oitocentista. Esses "moleques", meninos 56. Jomal da Bahia (4 e 516/165 7).
e adolescentes negros, freqüe ntavam os
57. AMS. Atas da CAmsra. vol.
relatos de viajantes, os relatórios polici- n.
9 .46, 283.

R E V 1 S T A U S P 25
ais e mesmo a crôl}ica política. Nos mo- sem oposição policial, o cemitério do
tins antiportugueses e outros levantes das Campo Santo para opor-se à lei. que proi-
décadas de 1820 e 1830, figuraram como bia os enterros dentro das igrejas; ou a
certeiros apedrejadores. /\gora, junto Sabinada, em 1837, uma revolta
com as pretas, azucrinavam pobres es- federalista que tomou Salvador por qua-
cravos, fura-greves forçados, numa es- tro meses, sendo o presidente de então
pécie de c/wrivari trabalhista africano. acusado de não agir com firmeza contra
Por traiçüo ao canto, esses escravos eram os conspiradores. A paralisação africa-
colocados 1w roda, e não era roda-de-sam- na era uma "rcvoluçfio" cujo desdobra-
ba, embora talvez não foliassem palmas mento preocupava: "Qual será o resul-
e canções de humilhante crítica. tado?", interrogava o diário.
O quarto e o quinto dias de greve O presidente não estava preocupa-
nfto trouxeram novidade, exceto um ou do com isso. Nessa mesma sexta-feira
outro incidente entre ganhadores e al- seguiria rara Alagoas, sua terra, a bordo
guns escravos que se arriscaram a npa- do vapor Magé, "fazendo queimar bom
rcccr em público com <t chapa. A impren- carvüo :1s custas do Estado", alfinetava o
sa, entretanto, começou a transmitir si- Jomal da IJaliia (6/6/1857).
nais de alarme. A 5 de junho o Joma/ da E perguntava: "mas que faria S. Exca
IJaliia noticiava: "Essa resistência ines- si no caminho lhe aparecessem os negros
perada, que h:í três dias não passava de ganhadores com as chapas entre os den-
uma novidade como outra qualquer, vai tes?". Se o presidente teve esse negro
tomando um caracter de crise". Realmen- pesadelo no mar não sabemos. O fato é
te os baianos não dcvmam estar dormindo que os baianos terminavam aquela se-
em paz numa cidade paralisada por :.1fri- mana com pesadelo de branco: andar a
canos, alguns talvez veteranos de revol- pé, levar cartas ao correio, talvez enfrelli-
tas escravas, e onde já se falava de tar falta de iigua de beber cm casa, etc.
abolicionismo em sociedades organiza- etc. Como era bom ter africano para
das por jovens idealistas, estudantes prover tudo isso!
brancos e mestiços da Faculdade de Mas na segunda-feira, quando a gre-
Medici na. ve completava uma semana, os primei-
Num longo balanço da greve, 0Jor- ros carregadores de cadeira apareceram.
11al da lJa!tia de 5 de junho, sexta-feira, Os cantos do largo do Teatro (atual pra.-
chamaria o movimento de "ameaçadora ç:1 Castro Alves) e da rua de Daixo de São
crise, uma revolução", a "rcvoluçi'10 dos Bento (atual Carlos Gomes), próximos
ganhadores"; e estes seriam "novos re- um do outro, estavam cheios. Com um
volucion:írios", que linham "entend ido detalhe: ninguém trazia a chapa de iden-
dever impor seus interesses". Não tificação. No dia seguinte, segu ndo o
obstante a scmf1ntica ainda incerta do Jomal da Ba!tia (10/6/1857), os cantos de
vocübulo "revolução" na 13ahia desse cadeiras estavam quase todos "sortidos
tempo, não hú dúvida cm que aqui o pe- de carregadores" e muitos ganhadores
riódico o entendia por ruptura profunda já carreg;ivam fardos, inclusive da alfân-
com a ordem. Sendo um órgão da oposi- dega. Tudos continuavam se m chapa.
ção, buscava demonstrar a responsabili- Mas falt<ivam braços para normalizar a
dade do presidente da província pela circulação de mercadorias, cm parte ain-
"calamidade" da greve. Chegava a colo- da feita por carroceiros livres.
car na boca dos vereadores a acusaçfio O aparecimento dos ganhadores ti-
de que, sob ele, a província estaria sendo nha uma cxplicaç;ío. Nessa mesma ter-
"governada por africanos", acentuando ça-feira, a Câmarn Municipal - "queren-
cm negrito essas palavras. O presidente, do dar uma prova nüo equívoca dos de-
continuava o articulista, teria demons- sejos que a animam de promover [...] todo
trado fraqueza (ou "generosa compla- o hem dos seus munícipes" - revogaria a
cência") no trato com os ganhadores postura ele março, substituindo-a por
paredistas, pois acolhera a legalidade da outra. /\ decisão não tinha sido unânime.
postura para depois revogá- la, minando Um vereador votou contra. Outro reti-
ainda a autoridade da Câmara. Atitude rou-se em protesto. /\inda em scssfio, a
presidencial semelhante, lembrava o jor- nova postura fui levada ao palácio presi-
nal, leria provocado a ccmitcrada cm dcncia I, do outro lado da rua, e logo
1836, quando uma multidão destruiu, retomou a plen:írio aprovada pelo vice-

26 R E V 1S T A U S P
presidente em exercício, Manoel Messi- Foi também por ter sido " íntimo amigo"
as de Leão (58). do finado senhor de Aleixo Sanches, car-
Os vereadores aboliram a taxa, mas regador de cadeiras do canto da ladeira
mantiveram a chapa. Mantiveram tam- de São Bento, que o mesmo Rigaud sabia
bém a obrigatoriedade de os libertos ser o liberto "prelo de toda a capacidade,
apresentarem fiador. Com uma dife ren- o que também. o auestão outras pessoas
ça. Na postura original se lia: "apresen- que o conhecem como eu a muitos annos".
tar fiador que se responsabilise por elle, Um bom nome na praça foi o que levou
afim de poder conseguir a licença e a Marcellino e Ballhazar a conseguirem
chapa". Na nova postura lê-se: "apre- atestado do comerc iante M. J.
sentar um certificado de abonação da Magalhaes, que escreveu: " têm gozado
autoridade do districto, em que mora- de c rédito para com as c asas de
rem, e na falta deste de pessoa reconhe- commerc io que costumam carregar
cida rnen te idône a". Não parece urna carreto [ ...]"(59).
grande mudança, mas era. No primeiro No entanto, a maioria dos libertos se
caso se exigia que um homem livre se dirigiu a seus inspetores de quarteirão
responsabilizasse pela conduta futura do ou juízes de paz em busca de atestados.
liberto, nos mesmos moldes que um se- Nesses casos eles pró prios mandavam
nhor se responsabilizava por seu escra- redigir o docume nto por um procura-
vo. Isso implicava criar um laço de de- dor, solicitando que a autoridade assi-
pendência talvez insuportável para o li- nasse embaixo. Muitos ganhadores da
berto, sem contar que provavelmente Vitória, por exemplo, contrntaram para
fosse difícil encontrar alguém que qui- redigir tais petiçãos a Firmino da Costa
sesse se arriscar a tal compromisso. No Me nezes, que de ve ter armado uma
segundo caso, tratava-se apenas de um banquinha na rua para atendê-los a to-
atestado de comportamento ante rior, dos. É interessante que nelas se repetia
escrito por uma autoridade policial - em um trecho amargo para os ganhadores:
geral o inspetor de quarteirão ou o j uiz " acontece que a Câmara Municipal tem
de paz - o u pessoa " idônea". Ou seja, c riado a Postura que obciga aos ganha-
podiam confirmar-se laços de dependên- dores a uzar de uma chapa que os distin-
cia jú existentes, mas não se criariam ga dentre os oper:írios das outras classes,
outros. e que esta seja concedida a quem apre-
Com efeito, atestaram boa conduta sentasse attestado de sua boa conducta
dos libertos ex-senhores, amigos de ex- (...)" (60). Há nessas pa lavras um quê de
scnhores, comerciantes clientes dos ga- denúnc ia à discriminação sofrida pelos
nhadores, além de inspetores e juízes de africanos, e é possível que a idéia de in-
paz. Manoclino dos Santos garantiu que troduzi-las não tivesse sido inteiramente
Jacob Ojé (notem o nome africano, raros do escrivão Menezes. Os africanos ti-
na escrita senhorial), escravo liberto por nham plena consciência de estarem sen-
ele há pouco tempo, "sempre teve bom do marcados para baixo, desclassificados.
comportamento tanto como meo escra- No dia 12 muitos ganhadores se apre-
vo como agora forro [...]". Olimpio fiúza sentariam na rua de chapa. O número de
Moniz Barreto não se arriscou a opinar matrículas de escravos feitas nessa data
sobre o comportamento presente de seu bateu recorde; é também desta data a
ex-escravo nagô, Luiz, mas atestou que maioria das fi anças de libertos que con-
"enquanto esteve empregado no meo segui encontrar. Mas nem todos foram
serviço por mais de vinte anos sempre vistos com chapas. Uns provave lmente
teve um comportamento irrepreensível". por resistência, outros por faltarem cha-
Cipriano Rigaud escreve u cm favor de pas na Câmara, que não mandara
Antonio João de Bastos, ganhador do fabricá-las em número suficiente! Mas o
canto do Trnpichc das Grades de Ferro, J omal da Bahia (13/6/1 857), sem esque-
e " que vive de ganho carregando qual- cer de criticar a ineficiência dos vereado-
quer objeclo no comércio desta cidade". res, já podia anunciar: " as cousas vão 58. Jornal da Bahia (10/6/1857):
AMS, A ras da CAmara, vol.
O fi ador havia sido amigo de João de voltando aos seus eixos". Estava pratica- 9 .48. n. 275v; AMS, Oticlos
Rocebldo•. 1857, n/c.
Bastos, homônimo e finado senhor do mente acabada a greve. Nos dias seguin-
ganhador. O paternalismo ultrapassava tes o transporte em Salvador retornaria 59. AMS. A testados de Conduta
e Matrícula de Escravos,
as fronte iras da família senhorial para à normalidade. 1857, n/C.

abarcar suas amizades mais próximas. O movimento linh:\ sido um sucesso eo. ld<lm, lbldem.

R E V 1 S T A U S P 27
parcial. Derrubou a taxa de matrícula e Como já vimos com dados de 1849,
modificou os termos da "fiança". Conse- os nagôs predominavam entre ganhado-
guir parar lodo um importante setor de res libertos e escravos. As evidências para
trabalhadores urbanos durante mais de 1857 confirmam. Sobre os libertos, pou-
uma semana já era um resultado notá- cos dados: nas 29 matrículas ou fianças
vel. Que isso tivesse sido possível deve-se que revelam algo sobre suas origens, 17
atribuir a que os ganhadores não consti- se declararam apenas "afri canos", onze
tuíam uma massa desorganizada e sem nagôs e apenas um jeje. T emos mais in-
uma compreensão de seus interesses. Isso formação sobre os escravos. Das 4 77
foi entendido pelos próprios contempo- matrícu las que consegui localizar, 63 não
rflneos. Em seu balanço dos acontecimen- trazem referência à origem dos escra-
tos, o}om al da Bahia ( 15/6/1857) admitia vos, ou tras 173 os listam apenas como
que o presidente agira co111ra a postura "africanos" e l 86 como nagôs. Os demais
"cm virtude da resistência dos africanos". ga nhado res eram doze angolas, nove
E a resistência havia sido efi caz porque hauss6s, sete (nupc), seis jejes e mais
agiram "os africanos a uma voz, mov i- doze africanos de outras origens. De es-
dos por uma só vontade [ ...)". Como foi cravos brasileiros, só nove crioulos. Se
possível? contamos apenas os 241 ganhadores aos
Infelizmente nfto temos o depoimen- quais podemos atribuir o rigem étni ca
to dos próprios ganhadores. Não se mon- específica, os nagôs formavam 77% do
tou nada como uma mesa de negociações, g rupo. Não é que só nagôs tivessem feito
onde os africanos tivessem assento e suas a greve. Mas sua proporção superlativa
vozes registro escrito. Os ganhadores decerto facilitou a mobilização em 1857.
saíram de cena e divulgaram pela cida- E uma vez decididos a parar, quem ousa-
de, na base do "jornal oral", sua posição. ria desafiá- los? Aquele escravo haussá,
Além da própria parada, ludo que sabe- Antonio, que foi à rua de chapa em plena
mos vindo do campo africano durante greve, voltaria para casa espancado e sem
aqueles dias se resume aos. ataques a fura- chapa. A identidade étnica, que desem-
greves. Por outro lado, porque as autori- penhara papel saliente nos violentos le-
dades foram surpreendidas por "uma vantes escravos até 1835, voltava a fazê-
revolução de uma nova espécie", além de lo agora que os nagôs adotavam táticas
se encontrarem divididas, não houve o pacíficas de enfrentamento.
uso da força para combatê:-la. Assim, não Com uma diferença: dado o núme-
se fez um inquérito policial, com prisões ro de nagôs eles praticamen te viraram
e interrogatórios, o tipo de documenta- sinônimo de africano. Em 1835 eram cer-
çfto que poderia fornecer uma visão, por ca de 29% dos escravos africanos, cm
contaminada que fosse, de dentro do mo- 1857 e ram 77%. Esse enorme guarda-
vimento. Resta ler nas entrelinhas. chuva nagô deve ter passado a abrigar
Os cantos certamente tiveram um muitos africanos de naçãos menores,
papel fun damenta l na organização da cujos números às vezes nflo dava para
parede grevista. P:tra que todo mundo formar nem um canto, por exemplo. E
parasse em ordem e "a uma só voz" foi então viravam nagôs por adoção. Não
necess6rio discutir, combinar, decidir e que deixassem inteiramente de ser o que
mobi lizar numa extensão só possível a eram, mas ao passarem para as redes
partir de uma est rutura organizacional sociais nagôs tinham de abrir mão de uma
preexistente. O que me leva a crer que os parle da antiga identidade. Acontece que
cantos não eram reinozinhos isolados uns nessa segunda metade dos oitocentos as
dos outros, mas form avam uma espécie pequenas nações vão encolhendo rapi-
de federa ção. Isso é confirmado pela pre- damente, exceto a numerosa nagô. Esta
sença de delegações de diversos cantos irá ocupar um espaço étnico em que "o
por ocasião da posse dos capitães. Tal outro" se tornaria cada vez menos o ou-
como cm 1835, ficou claro em 1857 que tro africa no e cada vez mais o baiano.
e les constituíam, não apenas redes de Brancos, crioulos, mestiços nascidos no
rclaçãos econômicas e sociais, mas de Brasi l também passariam a e nxerga r
relaçãos políticas também. Insisto em que cad;i vez menos as diferenças entre os
a linha que tecia essas redes era "a na- africanos e a enxergar no nagô o africano
ção". Mas qual nação? típico. Dessa forma é que se verificaria

28 R E V 1S T A U S P
uma espécie de pan-africanizaçflo da iden- de 1857, tivemos um movimento híbrido.
tidade étnica na segunda metade do sécu- Foi uma rc11ção contra a tentativa do
lo XIX baiano. Por isso, ao contrário de Estado .de subtrair aos africanos "di rei-
1835, 1857 nüo foi cunhado pelos contem- tos e rotinas estabelecidos" (Tilly), inclu-
porâneos de movimento nagô e sim "afri- sive a imposição do tal "imposto" de cin-
cano". Relembro a defini çflo que a Câ- co mil réis. Contra isso, não se amotina-
mara Municipal fez da greve: "Conluio ram, fizeram greve. Os ganhadores nflo
ou parede entre africanos libertos e os tinham fábrica, mas tinham cidade, eram
escravos". trabalhadores informais, mas coletiva-
O movimento teve suas limitações, mente organizados. O fato de serem gen-
digamos, estruturais. Embora, segundo te urbana, consciente de sua importân-
o Jornal da Bahia (5/6/1857), a maioria cia para o fun cionamento da cidade,
dos ganhadores fosse constituída de afri- inserida num mercado de trabalho
canos libertos, o número de escravos não monclarizado, explica cm parte o estilo
era desprezíve l. Se os libertos tinham de resistência escolhido.
posição ocupacional semelhante aos es- Com o fim da greve, a resistência
cravos, a condiçf10 de liberdade os colo- coletiva c.laria lugar à açflo individual. No
cava num outro patamar da estru tura dia 29 de setembro de 1857, Ivo, um afri-
social e de poder. Vimos que partiram de cano escravo, seria preso, segundo o fis-
escravos, sob as ordens do senhor, as cal municipal José Pinto Ferreira, por-
primeiras defecções. Se naçflo, ocupação que "não só não tinha a chapa, como tam-
e discriminação os ligavam aos compa- bém não queria que um outro que tinha
nheiros libertos, a escravidão os separa- carregasse" (62). Dez dias depois Ludgero
va. Aquele censo de 1849 de Santana ilus- dos Santos Piedade, também fiscal, nar-
tra de forma contundente essa situação: rou para o chc fc de polícia que prendera
78 escravos eram propriedade de liber-
tos africanos, 47 pertenciam a senhores "hum preto Africano que arriando a
da mesma É possível que o movi- cadeira que levava de arruar, entran-
mento tivesse ido ainda mais longe na do em uma venda, a clle segui por ver
ausência dessas diferenças. Ao mesmo esta r dizendo que tinha ganhado
tempo, por ter ido até onde foi, e até por muito dinheiro cu perguntei-lhe pclla
ter sido feito, ele depõe mais sobre ali:m- chapa, respondeu-me que tinha a cha-
ça do que sobre separação. pa porém que me não mostrava, o que
O movim ento de 1857 suscita instei para que me mostrasse como
qucslflos mais amplas. i\ greve é um Fiscal da Cimara Municipal compe-
método de luta típi co do trabalhador tente para este fim, foi debalde, que
urbano moderno, sobretudo do trabalha- motivou o dito preto a insultar-me com
dor fabril. Como observa Charles Tilly, a palavras, e a ponto de querer dar-me
greve havia sido inventada aleatoriamen- e que se não o fez, foi por ter ido acom-
te muitas vezes antes do advento do siste- panhado com hum guarda que deu a
ma urbano-industrial, mas só com o pre- ordem de preso, e ainda mesmo de-
domínio deste ao longo do século XIX ela pois de preso luctou muito[... ] que por
se consagraria no repertório das açãos todo o caminho veio jurando-me que
coletivas da classe trabalhadora. Até en- quando me encontrasse que me havia
tfio o pobre aprendia a ser classe fazendo de ensinar, que já me conhecia, que
motins contra preços altos e escassez de seu senhor não hera pobre [... ]"(63).
alimentos (os food riots), cont ra leis que
contrariavam costumes tradicionais, con- Era comum que escravos usassem o
tra a imposiçâo de impostos. Esse tipo de bom nome do senhor como arma nos seus
movimento do contra, de mobilização enfrentamcnlos cotidianos com agentes
dcfcnsiva para impedir mudanças mo- do Estado. Mas nüo só escravos de senho-
ralmente inaceitáveis, foi declinando até res ricos usav:.1111 resistir. Incidentes se-
praticamente a extinção na Europa e melhantes devem ter se multiplicado. A 61.Charlee Tllly. From
Mobllization 10 Revolution.
subst ituído mormente pela greve, uma tal chapa não marcaria por muito tempo Aeadong. 1978.clllj). Sep. 146
açüo cm geral a favor de melhores condi- os corpos dos ganhadores. O nome do (citação).

ções de salário e trabalho (61 ). Este é o africano preso por Ludgero era Augusto, 62. APE Ba. Polícia, maço 6321 .

modelo europeu. Se comparado à Bahia nagô de naçf10. 63. Idem. maço 6461 .

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