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Entre

as províncias
e a nação
Copyright © 2019, Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro, Karulliny Silverol
Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.).
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Adriana Pereira Campos
Geisa Lourenço Ribeiro
Karulliny Silverol Siqueira
Kátia Sausen da Motta
(Organizadoras)

Entre as províncias e a nação


os diversos significados da política no Brasil do Oitocentos

Editora Milfontes
Vitória, 2019
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Capa
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FROND, Victor. [Vitória e colônias]. [S.l.: s.n.], [1860].
VILLELA, João Ferreira. [Recife. Recife, PE: [s.n.], [entre 1860 e 1870]. 4 fotos, colódio,
p&b, 19 x 25 cm.
HAGEDORN, Friedrich, 1814-1889. Maranhão: vue de la Cathédrale. - [S.l. : s.n.,
1856] (Paris : : Lemercier). - 1 gravura : litografia, p&b (impr. sobre fundo beige).
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São Paulo.
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E61 Entre as províncias e a nação: os diversos significados da política no Brasil do
Oitocentos/ Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro, Karulliny Silverol
Siqueira, Kátia Sausen da Motta (Organizadoras).
Vitória: Editora Milfontes, 2019.
256 p.: 23 cm.:

Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-94353-82-5

1. Brasil Império 2. Política 3. Províncias I. Campos, Adriana Pereira II. Ribeiro,


Geisa Lourenço III. Siqueira, Karulliny Silverol IV. Motta, Kátia Sausen da
II. Título.

CDD 981.04
Sumário
Apresentação.................................................................................................. 7

Parte 1
Biografias e trajetórias políticas

Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva: um liberal a


favor da união entre Portugal e Brasil (1821) ................................. 13
Cecília Siqueira Cordeiro

Marcelino Duarte: trajetória política do padre exaltado................ 35


Adriana Pereira Campos

Parte 2
Disputas políticas e partidárias

“Tradicionalistas” x “Conservadores”: uma disputa palaciana na


Corte de D. Pedro I.......................................................................... 55
Rafael Cupello Peixoto

Disputas políticas no Maranhão pós-independência: o postergar das


distinções, rivalidades e efervescência dos partidos........................ 85
Roni César Andrade de Araújo

Parte 3
Sistema representativo e práticas políticas

Muito além do voto: eleições, participação popular e regulação do


sistema eleitoral na província de São Paulo (1840-1850)...............109
Rodrigo Marzano Munari

Minas em círculos: a reforma eleitoral de 1855 e as eleições de 1856


na província mineira.......................................................................135
Ana Paula Ribeiro Freitas

Pelo voto do cidadão: estratégias eleitorais na Província do Espírito


Santo ...............................................................................................163
Kátia Sausen da Motta
Voto, votante, partido e representação: a eleição municipal no Brasil
Imperial (Recife, 1829-1849) ..........................................................181
Williams Andrade de Souza

Parte 4
Linguagens e ideias políticas

Linguagens e práticas do republicanismo: a propaganda republicana


e seus impactos na Província Do Espírito Santo............................213
Karulliny Silverol Siqueira

“Um sonho impossível”: o fim da escravidão no Brasil nas páginas de


O Constitucional – órgão do Partido Conservador do sul do Espírito
Santo................................................................................................231
Geisa Lourenço Ribeiro
Apresentação
Nas últimas décadas, os estudos sobre o século XIX mostram-
se ressignificados, atentando para sujeitos históricos que, visualizados
por meio de inéditas abordagens teórico-metodológicas, destacam
as novas perspectivas da política no Oitocentos. Temas como
cidadania, circulação de ideias políticas por meio da imprensa, sistema
representativo e funcionamento do sistema eleitoral brasileiro no
Império têm ganhado cada vez mais o interesse dos pesquisadores,
manifestando-se nas produções acadêmicas dos programas de pós-
graduação de todo o país.
Com o objetivo de colocar em discussão os recentes estudos
acerca da dinâmica política no Brasil do século XIX, realizou-se em
outubro de 2018, durante o III Simpósio Internacional da Sociedade
Brasileira de Estudos do Oitocentos (SEO), o simpósio “Dinâmicas
partidárias e eleições no Brasil do Século XIX”. O simpósio ocorrido
na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal-RN,
reuniu diversos pesquisadores especialistas na temática, direcionados a
explorar o âmbito do político por meio de investigações que, sobretudo,
destacam-se por contemplar as diferentes realidades provinciais do
Império.
Deste modo, a coletânea Entre as províncias e a nação: os diversos
significados da política no Brasil do Oitocentos vem à luz a partir do estudo
de temas clássicos como eleições, partidos e a política da escravidão,
mas que, nos capítulos a seguir, são tratados com novas perspectivas
teóricas e metodológicas. A obra, deste modo, objetiva contribuir com
a historiografia nacional, destacando as particularidades regionais do
país e a pluralidade da política oitocentista.
O livro é resultado de amplo debate entre pesquisadores que
analisam o século XIX como espaço que permite transitar entre os
âmbitos local e nacional, viabilizando certa perspectiva comparada
entre os estudos aqui apresentados. Os capítulos que seguem enfatizam,
sobretudo, o estudo das dinâmicas partidárias, o processo eleitoral no

7
Entre a província e a nação

Império, bem como a caraterização de votantes e cidadãos, além de da


perspectiva biográfica em meio à política Imperial. A obra divide-se
em quatro seções distintas, mas que dialogam entre si, na intenção de
compor panorama político do Brasil Império.
A primeira seção, denominada “Biografias e trajetórias políticas”,
evidencia a atuação de personagens no campo da imprensa e Parlamento.
Periódicos, folhas impressas e espaços formais da política, como
Câmara dos Deputados e Senado, constituíam espaços primordiais no
debate de ideias, projetos e leis, principalmente em contextos de suma
importância para a construção do Brasil Nação, como, por exemplo, o
momento da Independência, a partir da análise das propostas do liberal
Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva. Exibe-se ainda
a trajetória peculiar do Padre Marcelino Duarte, figura importante
na composição política do grupo dos Exaltados no período regencial,
época na qual diversas facções políticas disputavam espaço no cenário
político da Corte.
Na seção intitulada “Disputas políticas e partidárias”, os autores
analisam, por exemplo, a disputa entre conservadores e tradicionalistas
durante o Primeiro Reinado. Além dos estudos contemplarem a
esfera da Corte do Rio de Janeiro, também destacam a efervescência
política em âmbito provincial, direcionando o foco para a província do
Maranhão no contexto do pós-independência.
A terceira seção é nomeada “Sistema representativo e práticas
políticas”. Neste momento, a obra destaca a dinâmica das eleições
no século XIX, levantando elementos sobre a participação popular,
a caracterização dos votantes, bem como as estratégias eleitorais em
diversas províncias como São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. Os
capítulos exibem as peculiaridades regionais acerca dos sufrágios no
país e as dinâmicas das disputas pelo poder.
A quarta e última seção é intitulada “Linguagens e ideias
políticas” e elenca estudos que consideram os anos finais do Império. Os
capítulos evidenciam, por meio da imprensa, as linguagens utilizadas
na propaganda republicana e o debate sobre o fim da escravidão
na província do Espírito Santo. As análises objetivaram destacar a
assimilação de projetos políticos nacionais e a pluralidade de ideias que
circulavam no país já no fim do século XIX.

8
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

A obra, neste sentido, é um convite ao leitor a revisitar o século


XIX por meio de abordagens diversas que levam em consideração a
análise das trajetórias, as linguagens e a imprensa como veículos de
ideário político e, sobretudo, apresentam a composição da cultura
política imperial por meio de um viés plural. Ao exibir a participação
da dinâmica das províncias em meio à política do Brasil imperial, a
coletânea elucida os vários espaços, sentidos e significados assumidos
pela política no Brasil do Oitocentos.

As Organizadoras.

9
Parte 1
Biografias e trajetórias políticas
Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado
e Silva: um liberal a favor da união entre
Portugal e Brasil (1821)
Cecília Siqueira Cordeiro1

Se o respeito ao Monarca é nas Monarquias o


primeiro dever do Povo, é também certo que uma justa
consideração aos direitos do Povo é da obrigação do
Príncipe, e qualquer ataque a estes direitos chama a
resistência legítima de uma Nação contra o mesmo Rei
que desconhece as suas funções verdadeiras.2

Essas são as primeiras linhas de um opúsculo de onze páginas


que circulou na Bahia nos últimos dias de fevereiro de 1821. O
conteúdo desse impresso, atribuído pelos autores da coletânea Guerra
Literária: Panfletos da Independência (1820-1822) a Antonio Carlos
Ribeiro de Andrada Machado e Silva, tem o mesmo tom do início ao
fim: duras críticas às resoluções adotadas pela Corte do Rio de Janeiro
para contornar a crise da monarquia portuguesa, iniciada a partir da
Revolução do Porto (24 de agosto de 1820), e que precipitou a “agonia
do Antigo Regime português”.3
Por apresentar posicionamentos significativamente alinhados
àqueles professados pelos liberais do lado de lá do Atlântico, tal
documento mostra-se fundamental para se compreender a cultura
política que se projetava hegemônica naquele momento, isto é, a defesa
de um liberalismo constitucionalista que colocava em xeque os governos
despóticos, preconizando a elaboração de Constituição para definir
limites ao poder real, a responsabilização dos ministros e a garantia aos
direitos civis e políticos. Além do mais, ao defender a união entre Brasil e
Portugal, mesmo que isso implicasse o prejuízo das relações comerciais
brasileiras, Antonio Carlos revela uma faceta diversa daquela que a
historiografia comumente lhe conferiu. Isso ocorre porque, de uma
maneira geral, rememora-se Antonio Carlos como um dos precursores

1  Mestre em História pela Universidade de Brasília (2016), doutoranda do Programa


de Pós-Graduação em História da mesma instituição e bolsista Cnpq.
2  REFLEXÕES Sobre o Decreto de 18 de Fevereiro deste ano oferecidas ao Povo da
Bahia por Philagiosotero. Bahia, 1821. In.: CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia
Bastos; BASILE, Marcello (org.). Guerra Literária: Panfletos da Independência (1820-
1823). v. 2. Belo Horizonte: EdUFMG, 2004, p. 260.
3  Ibidem, p. 229.

13
Entre a província e a nação

de incipiente “sentimento nacional”, evidenciando seu empenho em


defender os interesses do Brasil nas Cortes de Lisboa (1821) e em
denunciar as “intenções recolonizadoras” desse Congresso.

Antonio Carlos: história e historiografia


Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, o “irmão do
meio” da famosa tríade dos Andradas, nasceu em Santos, litoral de São
Paulo, em 1º de novembro de 1773.4 Realizou os estudos primários em
sua vila natal e os secundários em São Paulo, aos cuidados de frei Manuel
da Ressureição. Como, porém, não apresentava vocação eclesiástica,
seguiu os passos do irmão mais velho, José Bonifácio, rumando para
Portugal. Lá, no ambiente da reformada e ilustrada Universidade de
Coimbra, formou-se em Direito e Filosofia. Embora não tenha ingressado
na prestigiosa Academia Real de Ciências, responsável por patrocinar
inúmeras pesquisas no espírito da Ilustração portuguesa (como os
estudos mineralógicos e naturalistas de Bonifácio), Antonio Carlos
realizou algumas traduções5 de obras para a Tipografia do Arco do Cego,
criada pelo então ministro do Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho.
Em 1800, nosso Andrada retornou ao Brasil investido nos cargos
de escrivão vitalício da ouvidoria de São Paulo e de auditor geral das
tropas daquela capitania. Entre 1805 e 1809, acumulou o cargo de juiz de
fora de Santos, período em que se envolveu em contendas com o então
governador de São Paulo, Franca e Horta. Em 1811, contando com o
prestígio crescente de José Bonifácio junto à Coroa, Antonio Carlos foi
nomeado ouvidor e corregedor de São Paulo. Não chegou, porém, a
tomar posse, uma vez que foi indiciado como mandante de um homicídio
em sua vila natal. Por essa acusação, Antonio Carlos refugiou-se em
Niterói, mas não conseguiu escapar à prisão. Permaneceu no cárcere
até 1815, quando recebeu o perdão real – novamente por intermédio
de Bonifácio – em forma de hábito da Ordem de Cristo, sendo também
nomeado ouvidor da recém-criada comarca de Olinda, para onde se
mudou “a fim de dar tempo a que a coisas fossem definitivamente
esquecidas”.6

4  Todas as referências biográficas de Antonio Carlos foram retiradas da obra SOUSA,


Alberto. Os Andradas. v. 2. São Paulo: Typographia Piratininga, 1922.
5  As obras, escritas originalmente em inglês, versam sobre agricultura, tratados de
navegação e comércio de açúcar. As traduções foram publicadas entre 1799 e 1800.
6  SOUSA, Alberto. Os Andradas... Op. cit., p. 476.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Em 1817, quando contava 44 anos de idade, envolveu-se na


Revolução Pernambucana, chegando a elaborar uma Constituição –
considerada a primeira do país –7 que regeria o governo provisório
até a convocação de Assembleia Constituinte. O envolvimento na
conjuração rendeu-lhe mais uma temporada preso, dessa vez ao lado
de figuras radicais como Frei Caneca. Consta que os primeiros anos
na prisão foram bastante infaustos, já que Antonio Carlos ficou sem
ver a luz do dia e com ferros no pescoço. Em 1818, D. João recusou-se
a assinar um despacho redigido pelo ministro Villanova Portugal – ao
que tudo indica, a pedido de José Bonifácio – para que se encerrassem as
investigações sobre a referida revolução e se concedesse anistia a todos
os presos envolvidos na inconfidência. Algum tempo depois, porém, o
soberano aceitou abrandar a pena dos encarcerados, de tal forma que
a cadeia na Bahia virou uma espécie de liceu, onde Antonio Carlos e
outros presos lecionavam uns para os outros matérias como filosofia,
teologia e direito.
Com a adesão da Bahia à regeneração portuguesa, aos 10 de
fevereiro de 1821, Antonio Carlos e outros presos políticos foram
liberados. Nosso Andrada publicou o seu opúsculo assim que tomou
conhecimento do polêmico decreto real de 23 de fevereiro (mas datado
de 18), que continha providências da Coroa com relação à revolução que
se espalhava com rapidez pelo Império luso-brasileiro.8 A impressão do
livreto se deu, como o próprio documento indica, “na Typographia da
Viúva Serva e Carvalho [...] Com Permissão do Governo Provisional”.9
Antes, porém, de nos determos no referido opúsculo, faremos breve

7  RODRIGUES, José Honório. Independência: Revolução e Contra-revolução. v. 1.


Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975, p. 102.
8  O decreto determinava que D. Pedro partisse para Portugal “munido da Autoridade e
Instruções necessárias para pôr logo em execução as medidas e providências” convenientes,
visando “restabelecer a tranquilidade geral [...], ouvir as representações e queixas dos
Povos, e [...] estabelecer as reformas e melhoramentos e as Leis que possam consolidar a
Constituição Portuguesa”. Tal Carta deveria ser transmitida ao monarca, a fim de receber,
se por ele fosse aprovada, a indispensável sanção real. Além do mais, afirmava ser impossível
que todos os artigos da Constituição fossem igualmente adaptáveis e convenientes ao Brasil,
e por isso convocava as Câmaras das cidades e vilas principais, que tivessem juízes letrados,
para que elegessem procuradores a fim de analisar tais artigos, bem como propor “as mais
reformas, os melhoramentos [...] e quaisquer outras providências que se entenderem
essenciais ou úteis”. Por fim, “para acelerar estes trabalhos” e preparar as matérias de que
se deveriam ocupar os referidos procuradores, o despacho criava desde já uma “Comissão
composta de pessoas residentes nesta Corte”, nomeadas pelo rei, para que entrassem logo
no exercício de suas funções.
9  REFLEXÕES Sobre o Decreto de 18 de Fevereiro deste ano oferecidas ao Povo da
Bahia por Philagiosotero... Op. cit., p. 275.

15
Entre a província e a nação

análise sobre como a historiografia retratou Antonio Carlos Ribeiro de


Andrada Machado e Silva.
O irmão de Martim Francisco e José Bonifácio não recebeu da
historiografia a posição de centralidade atribuída a seu irmão mais
ilustre, o “Patriarca da Independência” – e o fato do aposto “irmão de
José Bonifácio” seguir as menções a seu nome é bastante significativo.
Não foram identificadas biografias dedicadas exclusivamente a nosso
personagem, embora existam verbetes biográficos em dicionários
históricos organizados nos séculos XIX e XX.10 Entretanto, a
historiografia especializada não deixou de referir-se a nosso Andrada,
ainda que de forma bastante atrelada aos irmãos José Bonifácio e
Martim Francisco, sobretudo para evidenciar a sua combativa atuação
no Congresso de Lisboa (1821-1822) em prol dos interesses do Brasil e/
ou na primeira Assembleia Constituinte brasileira (1823).
José Honório Rodrigues, por exemplo, em obra dedicada à
Constituinte de 1823, define Antonio Carlos como “o mais experimentado,
o mais desinibido, o mais corajoso de todos [os constituintes]”,11 aquele
que defenderia a “causa do Brasil” diante do crescente despotismo de
D. Pedro I. O mesmo faz Márcia Berbel em trabalho sobre o Congresso
de Lisboa, destacando sua atuação, embora não fuja do referido aposto:
“Antonio Carlos de Andrada e Silva, o irmão mais novo de José Bonifácio,
foi o mais importante orador paulista nas Cortes”.12 Para essa historiadora,
a liderança natural de Antonio Carlos decorria de “suas afinidades com os
demais revolucionários de 1817 e os anos compartilhados na prisão”, que
“certamente colocavam-no como interlocutor ideal junto às delegações
nordestinas para as negociações programáticas que se desenvolveram
nas Cortes”.13 Nosso Andrada, portanto, teve a habilidade e experiência
necessárias para, a partir dessas afinidades, dialogar e, eventualmente,
convencer as bancadas do Nordeste a adotar o “Programa de São Paulo”,
elaborado por seu irmão José Bonifácio.14
10  Cf. MELO, Luís Corrêa de. Dicionário de Autores Paulistas. São Paulo: Editora
Gráfica Irmãos Andreoli, 1954, p. 574 et seq; SILVA, Inocêncio Francisco da. Dicionário
Bibliográfico Português. v. I. Lisboa: Imprensa Nacional, 1858-1923, p. 104; BLAKE,
Augusto Vitorino Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro, v. I, p. 128-130,
1970; NEVES, Lúcia Bastos. Antonio Carlos de Andrada. In.: VAINFAS, Ronaldo (org.).
Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 48-49.
11  RODRIGUES, José Honório. Independência... Op. cit., p. 36.
12  BERBEL, Marcia Regina. A nação como artefato: deputados do Brasil nas Cortes
portuguesas (1821-1822). São Paulo: Haucitec/Fapesp, 1999, p. 75.
13  Ibidem, p. 76.
14  Ibidem, p.180.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

A liderança de Antonio Carlos foi assinalada por diversos autores


do século XIX e XX. Francisco de Varnhagen, em obra clássica sobre
a Independência do Brasil, definiu o paulista como um “leader” da
deputação brasileira:
tomando assento a 11 de fevereiro, e sendo a primeira vez em sua
vida que entrava em semelhantes lides, logo no dia seguinte se
lançava à discussão, como se fosse um consumado parlamentar, e
a sua grande resolução e energia e o seu talento fecundo de acudir
com alvitres na discussão, lhe geraram, em poucos dias, a posição
de verdadeiro chefe e leader da parte da deputação brasileira que
pugnava por obter concessões a favor do novo reino.15

Oliveira Lima, por sua vez, defende a ideia de que a natureza


enérgica de Antonio Carlos provinha de seus “padecimentos nos
cárceres imundos da Bahia”.16 Para esse autor, essa nefasta experiência
lhe proveu a impetuosidade, coragem e vigor apresentados no Congresso
de Lisboa, características que o destacavam entre os irmãos:
Antonio Carlos era dos três irmãos o que tinha o talento mais
brilhante, porque tinha a palavra fácil, imaginosa e arrebatada [...]
Já quase que quinquagenário, o espírito bem sazonado, formado em
Coimbra por duas faculdades – Leis e Filosofia –, tinha sofrido na
vida bastantes vicissitudes e aprimorado sua educação intelectual
na “universidade” da prisão [...] Mercê de tudo isso, sentiu-se
Antonio Carlos logo à vontade no meio parlamentar e chamou a
si a direção dos “brasileiros”. Foi o seu leader natural, leader em
todo caso mais para assalto, para derrubar, do que para reconstruir
porque, apesar da facilidade da sua argumentação e da fecundidade
dos seus alvitres, o dom da convicção era nele menor do que o dom
da intimidação.17

A liderança de Antonio Carlos, contudo, foi interpretada também


sob ótica negativa. Em sua História do Império: a elaboração da
Independência, Tobias Monteiro caracteriza a atuação de Antonio Carlos
na Constituinte de 1823 como irrefletida e inconveniente, de forma que
suas posições “antiportuguesas” teriam ajudado a enfraquecer a ligação
de seus irmãos ministros com D. Pedro I. Segundo este autor, sua conduta
“era então mero prazer ou empenho de complicar situação já de si tão

15 VARNHAGEN, Francisco A. História da Independência do Brasil. Brasília:


Senado Federal, 2010, p. 80.
16 LIMA, Oliveira. O movimento da Independência, 1821-1822. São Paulo:
Melhoramentos, 1922, p. 118 et seq.
17  Ibidem.

17
Entre a província e a nação

difícil; não era ato de estadista”.18 A “eloquência” e “impetuosidade” de


Antonio Carlos acabaram por atribuir-lhe a liderança no movimento
oposicionista ao Imperador que precedera a dissolução da Constituinte,19
de forma que essa oposição se tornou “nociva à obra cometida àquela
Assembleia”,20 resultando na Carta outorgada de 1824.
O mais recorrente, porém, é Antonio Carlos aparecer à margem
da figura de José Bonifácio. No capítulo dedicado às Cortes de Lisboa da
grandiosa obra Brasil: uma biografia, por exemplo, as autoras destacam
que, de todas as deputações brasileiras, somente a de São Paulo “fez [a]
lição de casa, levando instruções explícitas, nas quais se reconhecia a
pena de José Bonifácio e seus temas prediletos”.21 Olhando-se o índice
remissivo desse livro, percebe-se que incluíram o nome “Antonio
Carlos” em expressões mais abrangentes, como “grupo liderado por
Bonifácio”, “os Andradas”,22 o “grupo coimbrão e conservador liderado
por José Bonifácio e pelos Andradas”,23 ou ainda “os bonifácios, facção
liderada por José Bonifácio”.24
Outra característica da historiografia que se refere a Antonio Carlos
é a utilização de seus discursos inflamados e de teor nacionalista tanto no
Congresso de Lisboa, quanto na Constituinte de 1823 a fim de assinalar
o conflito de interesses entre as deputações portuguesas e brasileiras que
“resultaram” na Independência do Brasil. Nesse sentido, a “defesa da
Causa do Brasil” empreendida com vigor por Antonio Carlos e outros
constituintes foi sobremaneira ressaltada como exemplo de resistência
nacional às tentativas das Cortes de “recolonizar” o Brasil. Como bem
pontuou Antonio Penalves Rocha, o neologismo “recolonização”, surgido
ainda durante os debates das Cortes de Lisboa para referir-se às medidas
adotados por esse Congresso com relação ao Brasil, embora tenha sido
negado categoricamente pelos deputados portugueses, transformou-se
em fato histórico reproduzido acriticamente pela historiografia luso-
brasileira desde meados do século XIX.25 Nas palavras desse autor,
18  MONTEIRO, Tobias. História do Império: a elaboração da Independência. v. 2.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EdUSP, 1981, p. 670.
19  Ibidem, p. 683.
20  Ibidem, p. 686.
21  SCHAWRCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015, p. 209.
22  Ibidem, p. 215.
23  Ibidem, p. 232.
24  Ibidem, p. 233.
25  ROCHA, Antonio Penalves. A recolonização do Brasil pelas Cortes. História de

18
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

na segunda metade do século XIX e na primeira do século XX,


escritores brasileiros e portugueses de narrativas históricas lançaram
uma pá de cal sobre a controvérsia e deram como líquido e certo
que a Independência do Brasil resultara, em última análise, de uma
reação ao plano de recolonização das Cortes. Na segunda metade do
século XX, diversos historiadores profissionais reproduziram essa
mesma explicação, dando, desta vez, ênfase a questões econômicas,
sobretudo aos interesses da burguesia portuguesa de restaurar
o estado de coisas anterior à Abertura dos Portos. Aliás, essa
representação foi mantida nos livros contemporâneos de síntese
de História do Brasil – didáticos e paradidáticos – como se fosse o
resultado de um conhecimento acabado e definitivo.26

É o caso, por exemplo, da coletânea 1822: Dimensões, organizada


por Carlos Guilherme Mota no sesquicentenário da Independência,
que contém um artigo, de autoria do historiador português Fernando
Tomaz, intitulado “Brasileiros nas Cortes Constituintes de 1821-1822”.27
Ao longo do texto, Tomaz evoca numerosos discursos de Antonio
Carlos e outros constituintes para enfatizar os crescentes antagonismos
entre brasileiros e portugueses. Muito embora dispense adjetivações
para descrever a participação de Antonio Carlos – ou de qualquer outro
deputado – nesse Congresso, o autor esforça-se para, por meio desses
discursos, denunciar a “má-fé”28 das Cortes com relação ao Brasil, com
o intuito de ressaltar os interesses antagônicos entre as deputações.
De forma bem mais acentuada, também José Honório Rodrigues29
analisa o Congresso de Lisboa sob uma ótica de conflitos e de
nacionalismos crescentes entre as bancadas do Brasil e de Portugal. Para
esse autor, Antonio Carlos assume posição proeminente colocando-
se de forma destemida e corajosa ante às intenções recolonizadoras
das Cortes, postura bem diferente da adotada por outras deputações
brasileiras, como foi o caso do “espetáculo degradante da subserviência
paraense, maranhense, piauiense, baiana e carioca”.30 Ao descrever a
bancada paulista, não faltam elogios, destacando-se a participação de
Antonio Carlos, ainda que instruído pelo programa político elaborado
por José Bonifácio enquanto membro da Junta de São Paulo:

uma invenção historiográfica. São Paulo: EdUNESP, 2009, p. 9.


26  ROCHA, Antonio Penalves. A recolonização do Brasil pelas Cortes... Op. cit.
27  TOMAZ, Fernando. Brasileiros nas Cortes Constituintes de 1821-1822. In.: MOTA,
Carlos Guilherme (org.). 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 74-101.
28  Ibidem, p. 75.
29  Cf. RODRIGUES, José Honório. Independência... Op. cit.
30  Ibidem, p. 99.

19
Entre a província e a nação

chegara a vez dos paulistas, a mais formidável, a mais representativa,


a mais brava, a mais brasileira das bancadas às Cortes constituintes
portuguesas. Nenhuma podia sequer chegar-lhe aos pés. Basta citar
seus nomes e nenhum, absolutamente nenhum, foi homem que se
acovardasse, que se humilhasse, que se avassalasse: Antonio Carlos
Ribeiro de Andrada Machado e Silva, o maior orador nas Cortes,
como mais tarde foi, enquanto viveu, um dos protagonistas da
Independência.31

O “maior orador das Cortes”, porém, teve sua atuação marcante


na medida em que seguiu as instruções redigidas por seu mais
proeminente irmão, José Bonifácio:
já é sabido que os deputados paulistas partiram instruídos sobre
os negócios da União, os negócios do Brasil e os de São Paulo.
[...] Foi José Bonifácio quem propôs que uma comissão redigisse
as instruções que os deputados deviam observar, tendo sido ele
próprio o redator das Lembranças e Apontamentos, datada de 9 de
outubro de 1821, um verdadeiro programa político. Aí revelava
José Bonifácio mais uma vez a sua capacidade, seu descortínio, sua
visão de estadista. Nenhuma bancada compareceu a Lisboa armada
com um instrumento de orientação política como este, que dirigia a
representação paulista.32

Outro exemplo que enfatiza os interesses antagônicos entre


deputados do Brasil e de Portugal é a obra do português Manuel Gomes
de Carvalho, Os Deputados Brasileiros nas Cortes de 1821. Para esse
autor, os debates travados entre as bancadas portuguesas e brasileiras
são compreendidos como verdadeiros “combates de titãs”,33 com
destaque para a atuação do deputado Moura, do lado português, e de
Antonio Carlos, do lado brasileiro:
Antonio Carlos que, saído do inferno do cárcere para responder aos
interrogatórios da famosa alçada da conjuração pernambucana, não
perdia o aprumo perante o feroz desembargador Bernardo Teixeira
de Carvalho, não era homem para se intimidar diante de Moura.34

Manuel de Carvalho atribui ao nosso Andrada a responsabilidade


de ser o primeiro a falar nas Cortes de Lisboa em separação, em
emancipação, caso Portugal insistisse com as tentativas de cercear

31  Cf., RODRIGUES, José Honório. Independência... Op. cit.


32  Ibidem.
33  CARVALHO, Manuel Gomes de. Os Deputados Brasileiros nas Cortes de 1821.
Brasília: Senado Federal, 1979, p. 33.
34  Ibidem, p. 172.

20
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a autonomia adquirida pelo Brasil desde 1808. Segundo este autor,


em sua primeira intervenção no Congresso, as palavras de Antonio
Carlos teriam conquistado “a simpatia de uns, a prevenção de outros
[e] a curiosidade de todos”35 que ocupavam as cadeiras de deputados,
bem como daqueles que lotavam as galerias. A ameaça de separação se
consolidou no momento em que Antonio Carlos afirmou que “os povos
do Brasil são tão portugueses como os povos de Portugal”, devendo
gozar de “direitos iguais”, acrescentando que “a força de Portugal
há de durar muito pouco, e cada dia há de ser menor, uma vez que
se não adotem medidas profícuas e os brasileiros não tenham iguais
comodidades”.36 Nesse sentido, ainda para esse autor:
pela primeira vez surgia, resoluta e não sem arrogância, a ameaça de
desunião em breve tempo, caso os portugueses da Europa negassem
aos do Brasil vantagens de que viessem a fruir. As fortes palavras
estimularam os brasileiros, que se lançaram ao debate com energia
que não haviam manifestado na sessão precedente.37

Essa perspectiva tão corrente na historiografia e consagrada


na memória nacional está imortalizada na famosa pintura de Oscar
Pereira da Silva, Sessão das Cortes de Lisboa. A representação traz
Antonio Carlos em posição de destaque, em pé e de costas, enfrentando
o deputado português Borges Carneiro. Segundo Carlos Lima Júnior,
a pintura, encomendada por Afonso Taunay para comemorar o
centenário da Independência – e que se encontra no Salão de Honra do
Museu Paulista, em frente ao célebre quadro Independência ou Morte, de
Pedro Américo – deveria retratar, nas palavras do próprio Taunay, uma
“agitadíssima sessão” das Cortes de Lisboa, “em que Antonio Carlos e
os Deputados brasileiros fazem frente ao partido recolonizador” que
queria aprovar “medidas opressivas ao Brasil”.38
Nesse sentido, Antonio Carlos acabou sendo rememorado pela
historiografia como grande defensor da “causa do Brasil” ante as
tentativas recolonizadoras das Cortes de Lisboa, ainda que comumente
35  CARVALHO, Manuel Gomes de. Os Deputados Brasileiros nas Cortes de 1821...
Op. cit., p. 157.
36 CARLOS apud CARVALHO, Manuel Gomes de. Os Deputados Brasileiros nas
Cortes de 1821... Op. cit., p. 158.
37  Ibidem.
38  LIMA JÚNIOR, Carlos Rogério. Um artista às margens do Ipiranga: Oscar Pereira
da Silva, o Museu Paulista e a reelaboração do passado nacional. Dissertação (Mestrado em
Culturas e Identidades Brasileiras). Programa de Pós-Graduação em Culturas e Identidades
Brasileiras da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 196.

21
Entre a província e a nação

sua atuação tenha sido atrelada ao irmão mais famoso, José Bonifácio,
que redigira as instruções para a bancada paulista. Por fim há também
outro documento importante – este saído da pena de Antonio Carlos
– que foi explorado pela historiografia e que ajudou a materializar a
versão do antagonismo entre brasileiros e portugueses que “resultou”
na Independência. Escrito em 22 de outubro de 1822 (durante a fuga
de Lisboa para o Rio de Janeiro, motivada pela perseguição que sofrera
por seu posicionamento nas Cortes), o Manifesto de Falmouth é digno
de nota, sobretudo porque nosso Andrada posiciona-se de forma
bem diferente daquela presente no opúsculo escrito na Bahia, no ano
anterior.
Ele e seu sobrinho, o também deputado às Cortes, José da
Costa Aguiar, escrevem tal manifesto a fim de denunciar o “partido
que nas Cortes tem pretendido escravizar o Brasil”.39 A linguagem e
as metáforas do texto difundiram a ideia de que os brasileiros haviam
sido “traídos” por seus irmãos portugueses, que os ludibriaram com
“palavras meigas e convites açucarados de fraternidade e igualdade”,40
para no fim mostrarem seu real interesse e suas “sinistras e dolosas
intenções” recolonizadoras – tal interpretação será muito comum
também na imprensa brasileira da época, a partir de meados de 1821
até a Independência. Antonio Carlos mostra-se arrependido de um dia
ter acreditado que o “grito da liberdade” da Regeneração portuguesa se
estenderia ao Brasil em condições de igualdade:
assim que em fevereiro do presente ano tomou assento o primeiro
dos abaixo-assinados, viu com dor a extensão da sua ilusão, e bem
mau grado seu convenceu-se que as Cortes tinham na boca amor
e irmandade para com o Brasil, e no coração projetos de cizânia,
divisão, enfraquecimento, humilhação e tirania.41

Para Penalves Rocha, que analisou detalhadamente as medidas


das Cortes com relação ao Brasil, chegando à conclusão de que a
recolonização foi “invenção historiográfica” e não uma verdadeira
política defendida pelos deputados portugueses,42 o Manifesto de
39 PORTUGAL. Documentos para as Cortes Gerais da Nação Portuguesa. v. I.
Lisboa: Imprensa Nacional, 1883-1891, p. 457.
40  Ibidem, p. 457.
41  Ibidem, p. 457.
42  Para este autor, os deputados portugueses buscaram que Portugal recuperasse a
hegemonia econômica dentro do Império luso-brasileiro, com prejuízos para a economia
brasileira, mas não, de fato, a recolonização ou o retorno do pacto colonial ou do estado de
coisas anteriores a 1808.

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Falmouth é a “única fonte histórica sobre o caráter recolonizador do


projeto de relações comerciais” discutido naquele Congresso, porque
Antonio Carlos e Costa Aguiar declarariam que:
apresenta-se [nas Cortes] um projeto de relações comerciais entre
os dois reinos, no qual, ajuntando escárnio à fraude, alcunha-se de
igualdade a mais descarada desigualdade, e quer-se arteiramente
soldar os já quebrados ferros do sistema, erigir de novo Portugal em
depósito privativo dos gêneros do Brasil e fechar quase aquele reino
à indústria estranha por proibições diretas ou por meio de restrições
equivalentes a proibições.43

Tal interpretação teria servido à historiografia que pretendeu


escrever a história da emancipação do Brasil a partir do crescente
antagonismo entre brasileiros e portugueses desencadeados pelos
“decretos recolonizadores” das Cortes, ajudando a perpetuar Antonio
Carlos como um dos precursores de incipiente “sentimento nacional” –
ainda que sua atuação tenha sido bastante influenciada pelas instruções
redigidas por seu irmão mais célebre.

O opúsculo
Já o opúsculo anteriormente referido, escrito por Antonio
Carlos em um dos seus primeiros atos fora da prisão, continha teor
bastante diverso daquele apresentado no Manifesto de Falmouth. O
entusiasmo com a regeneração portuguesa é incontestável, e não se
desconfia (ainda) das intenções dos revolucionários portugueses. Nesse
sentido, Antonio Carlos mostra-se sensivelmente alinhado aos ideais
vintistas, reproduzindo concepções muito próximas às das primeiras
proclamações e manifestos dos regeneradores portugueses. Em
primeiro lugar, um ponto em comum entre o pensamento vintista e
de Antonio Carlos são as duras críticas desferidas contra o Ministério,
responsabilizando-o pela redação do desastroso decreto de 23 de
fevereiro e acusando-os de serem insensíveis aos verdadeiros anseios
dos Povos e às Luzes do século:
confessa o Ministério que as circunstâncias e que se acha a Monarquia
exigem providências justas, e adequadas para consolidar o Trono,
e assegurar a felicidade da Nação; e assim confessa também a sua
incapacidade; e traição apresentando providências que aumentam

43 PORTUGAL. Documentos para as Cortes Gerais da Nação Portuguesa... Op. cit.,


p. 458.

23
Entre a província e a nação

o mal em vez de diminuí-lo, e que não quadram com o espírito do


século, nem com as luzes do Povo Português.44

Ao comentar a resolução, expressa no decreto, de enviar D.


Pedro a Portugal para prover as reformas e melhoramentos que possam
consolidar a Constituição portuguesa, Antonio Carlos revela-se mais
uma vez integrado à cultura política do momento histórico. Nosso
Andrada articula, sem grandes constrangimentos e de forma bastante
natural, elementos novos e antigos, modernos e tradicionais. Ao
mesmo tempo em que se identifica como súdito fiel de Sua Majestade,
também se posiciona como cidadão ciente da necessidade da divisão
dos poderes, condenando a ingerência do Executivo no Legislativo:
é louvável o interesse que um Soberano toma pelo bem de seu Povo,
e ninguém disputará a Sua Majestade a primazia a todos os Reis do
Mundo neste aspecto, nem a relevante fineza de separar de Si o Seu
Amado Filho o Senhor Dom Pedro, para o incumbir de remediar os
males de Portugal. Mas este interesse deve mostrar-se pelo aferro
às ideias essenciais do pacto social, a exercer-se dentro das raias
das funções próprias ao Monarca, sem invadir as da Legislatura, e
Representação Nacional, que são inalienáveis da Nação.45

Por conta, talvez, de sua vida pregressa como revolucionário


em 1817, identifica-se com o “Povo da Bahia” – e, por extensão, com
o Nordeste –, acusando os ministros e outros membros da Corte
de temerem sobremaneira as desordens causadas pelas revoluções
populares. Na opinião de Antonio Carlos, tais “desordens temporárias”
nada mais são do que provas do “excesso de vida de um Povo”:
é, porém, perfídia manifesta a insinuação de falta de tranquilidade em
Portugal, quando por todos os papéis Públicos vê-se reinar naquele
País a mais perfeita concórdia. Foi de tempo imemorial uma das
artes banais do Ministério fazer crer ao Povo que a sua regeneração
é sempre acompanhada de convulsões. Este temor assusta os
tímidos e moderados que formam em regra o maior número de uma
Nação, e faz até recuar os já empenhados: Porém, para com o Povo
da Bahia perdeu o Ministro seu aranzel; nós sabemos a falsidade
da insinuação tão insidiosamente inserida; e quando verdade fosse
nem por isso recearíamos de comprar a felicidade à custa de alguma
desordem temporária, que é sempre prova do excesso de vida de
um Povo.46

44  REFLEXÕES Sobre o Decreto de 18 de Fevereiro deste ano oferecidas ao Povo da


Bahia por Philagiosotero... Op. cit., p. 268.
45  Ibidem, p. 268 et seq.
46  Ibidem.

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Ilustrado como era, Antonio Carlos comunga e explicita


conhecimento das noções de pacto social e de separação dos poderes:
“O pacto primeiro”, diz ele, “criou o indivíduo coletivo chamado Nação,
e o dividiu em Povo, [e] em Soberano, isto é, mandado e mandante”.
Contudo, “este Soberano não é mais que a coleção de todas as vontades”,
sendo “muito diverso do que ordinariamente denominamos Soberano,
que é propriamente o Príncipe”.47 Logo, para Antonio Carlos, a
Soberania encarnava os três poderes, não sendo exclusiva ao monarca
– um “membro essencial na sociedade”, mas criado posteriormente ao
primeiro e fundamental pacto. Em seu opúsculo, evoca esses conceitos
para criticar com veemência o decreto no que se refere à aprovação
da Constituição pelo rei, o que, em sua opinião, inculca em “Sua
Majestade [o] desejo de empolgar outras funções, e concentrar em si
toda a força social, com ofensa manifesta do senso comum”. Agindo
assim, pressupõe-se que “a Nação não pode ter Constituição, sem que
Sua Majestade o queira, e que a Sua Real Sanção seja indispensável nas
Leis Constitucionais”.48
A posição de Antonio Carlos, ainda que aparentemente moderada
– porque não faz crítica aberta e virulenta ao rei, a quem isenta de toda
a responsabilidade governamental, transferida ao Ministério – sinaliza
uma disputa pela predominância do Poder Legislativo sobre o Executivo.
A obra legislativa é, segundo a tradição iluminista, responsável por
demarcar as principais características dos governos; ela expressa a
vontade da Nação soberana, não sendo o assentimento real condição
indispensável para sua organização enquanto corpo político. Segundo o
próprio Antonio Carlos:
a sanção Régia é de forma essencial na fatura da Constituição
[...], mas quando sucedesse que Sua Majestade recusasse o Seu
Assentimento, o que não é de esperar de Sua reconhecida bondade e
justiça, nem por isso a Nação ficaria privada do direito de constituir-
se sem este requisito; o juramento de Sua Majestade autentica a
responsabilidade de Sua Administração, que não podendo exceder-
se imediatamente em Sua Pessoa pela elevação de seu caráter
Augusto [...] pesa ao menos sobre o Ministério que o rodeia, e
obra em seu Nome; serve de obriga-lo, e de obrigar seu Povo ao
cumprimento dos deveres recíprocos; é uma condição indispensável
para a conservação da sua Dinastia, mas não é condição que tolha
qualquer outro desenvolvimento do poder Nacional, e sem a qual

47  REFLEXÕES Sobre o Decreto de 18 de Fevereiro deste ano oferecidas ao Povo da


Bahia por Philagiosotero... Op. cit., p. 269.
48  Ibidem, p. 270.

25
Entre a província e a nação

não possa existir Governo; não precisa a Nação pedir a sua criatura
o que é direito seu.49

Não significa, porém, que o monarca, parte integrante do Poder


Executivo, deva manter-se alijado do andamento dos negócios do
Estado, inclusive do processo legislativo. Na visão de nosso Andrada,
compete aos reis sensatos e de “reconhecida bondade e justiça”, como
condição mesma para a manutenção de suas dinastias, assentirem com
a Constituição elaborada pelos legítimos representantes da Nação.
Sujeitando-se a essa harmoniosa e bem entendida divisão de poderes,
será possível que os reis exerçam sua função primordial, a de
Administrador da Nação, a quem também se defere na fatura das
Leis e precisa ingerência que, como a Cidadão que lhe compete,
e de quem a sociedade carece, como de um peso para retardar a
aceleração, e irremediável sedução dos corpos populares, que só
podem querer; mas não compete à criatura o exercer o que é do
criador.50

Vale, então, questionar: afinal de contas, os movimentos dos


“corpos populares” devem ser freados pelo Executivo, ou são apenas
“desordens temporárias” necessárias para que os povos alcancem sua
felicidade, como defendeu anteriormente Antonio Carlos referindo-
se à regeneração de Portugal e da Bahia? O que à primeira vista parece
um contrassenso do nosso Andrada, nada mais é do que concepção
corrente na cultura política partilhada por amplos setores das elites luso-
brasileiras às vésperas da Independência. Tal concepção considerava
legítimo o movimento de regeneração da monarquia, ainda que causador
de desordens e eventuais tumultos, porque compartilhava o ideal de
combate ao despotismo ministerial e de implementação de um regime
constitucional, no qual essas mesmas elites assegurariam direitos por
meio da Constituição. Outros movimentos, porém, menos elitizados e
conduzidos espontaneamente por populares e camadas mais baixas,
deveriam ser refreados em razão de sua excessiva democratização –
como, por exemplo, o incidente da Praça do Comércio no Rio de Janeiro,
em 26 de fevereiro de 1822.51 Para conter esses excessos, a figura soberana

49  Cf. REFLEXÕES Sobre o Decreto de 18 de Fevereiro deste ano oferecidas ao Povo
da Bahia por Philagiosotero... Op. cit.
50  Ibidem, p. 270.
51  Cf. OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. A astúcia liberal. Relações de mercado
e projetos políticos no Rio de Janeiro (1820-1824). Bragança Paulista: EdUSF/Ícone, 1999,
grifo nosso.

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e forte do monarca, bem como o seu poder de sanção, era essencial, haja
vista que as Assembleias também estão sujeitas a excessos democráticos:
uma vez, porém, feita a Constituição, e aprovada, outra será a
natureza da sanção; sem ela não poderá haver Lei, porque só ela
é o contraste da vontade geral [...] e só ela segura ao Povo, que a
indiscrição, e efervescência de partido não adotaram medidas
nocivas ao bem geral.52

Na continuação de seu opúsculo, Antonio Carlos critica o modo


como “fazem os Ministros falar Sua Majestade com o tom próprio
dos tempos feudais”, desconhecendo “os dogmas políticos” e agindo
com “refinada malícia” na esperança de frustrar as “esperanças de uma
fraternal participação [do Brasil] na restauração da glória e prosperidade
Nacional”.53 Aqui, refere-se especificamente à convocação de um
Conselho de Procuradores para analisar os artigos da Constituição
portuguesa aplicáveis ao Brasil, o que julga um ultraje por considerar,
citando expressamente Montesquieu, que as leis constitucionais
demarcam direitos inerentes a todos os seres humanos, e, portanto,
universais.
Dá o bom Decreto como certo, que a Constituição que se vai
estabelecer em Portugal não pode ser-nos adaptável em pontos
essenciais, atento o estado de nossa povoação e localidade, e daí parte
para instituir o arremedo do que chama Cortes. [...] Quero mesmo
com Montesquieu reconhecer a necessidade da sua operação; mas
daqui se não segue que esta influência se estenda a pontos essenciais
na Constituição.54

Continua sua argumentação, afirmando não desconhecer, no


entanto, as diferenças, sobretudo de povoamento, existentes entre a ex-
colônia e ex-metrópole:
não é da minha intenção negar que a diversa localidade do Brasil,
e natureza de sua povoação exijam modificações, em as nossas
instituições em comparação com as de Portugal; seguramente
uma povoação composta em grande parte de escravos Africanos
e mestiços, e de libertos de todas as cores necessitará nas Leis que
regulam o estado do homem, determinações peculiares, que não
podem ter lugar na Europa onde a povoação é toda livre. [...] [Essas
diferenças] podem trazer algum matiz no contexto das Leis; porém

52  REFLEXÕES Sobre o Decreto de 18 de Fevereiro deste ano oferecidas ao Povo da


Bahia por Philagiosotero... Op. cit., p. 270.
53  Ibidem, p. 270 et seq.
54  Ibidem, p. 271.

27
Entre a província e a nação

só nas Leis particulares, só no Código Civil; não vejo porém que o


mesmo suceda nas Leis Constitucionais, ou que regulam as relações
das forças reunidas, que formam o Estado Político.55

Afinal – e aqui temos a concepção de Constituição para Antonio


Carlos –, essas leis constitucionais “marcam o respeito entre o
governante e os governados, e à maneira por que se põe em atividade os
diversos elementos do corpo social, e em execução, a vontade geral”.56
São, em vista disso, universais porque derivam “da índole e natureza
do homem, do fim e objeto da associação, e ultimamente de outras
relações que são as mesmas em todos os Seres pensantes, em todos os
tempos, e em todos os lugares”.57 Para além do caráter universalista das
constituições, supor diferenças intransponíveis entre Portugal e Brasil
seria um grande equívoco, tendo em vista que “os Portugueses do Brasil
são a mesma Nação que os da Europa”, são “membros de uma mesma
família, em que os traços gerais da origem não têm podido alterar-se
pelas pequenas diferenças [nos] produtos de sua peculiar situação”.58
O Antonio Carlos do início de 1821, portanto, revela-se
completamente alinhado aos interesses dos liberais portugueses –
situação radicalmente diversa daquela que apresentará em fins de
1822 –, rejeitando a possibilidade de uma monarquia dual, postura
que defenderá, juntamente com seus irmãos, em um futuro não muito
distante. Tal possibilidade, ainda segundo nosso Andrada, provocaria
uma fissura na Nação, rompendo a unidade do grande Império luso-
brasileiro:
embora ainda hoje a Rússia e a Polônia, a Suécia e a Noruega, e
outrora a Inglaterra e a Escócia e a Irlanda nos apresentassem
exemplos de Nações sujeitas ao mesmo chefe e execução das Leis,
que contudo tinham Legislaturas separadas, e variações no seu
Direito Público e Constitucional. Eram, e são as que hoje admitem
esta aberração, Nações inimigas juntas só pela conquista, com
costumes, linguagem, opiniões, prejuízos diversos, e muitas vezes
até com religião oposta como sucede com os Russos e os Polacos;
mas pretender rachar em duas a mesma Nação, destruir a unidade
central da máquina política; é lembrança que só ao inepto, ou antes
avelhacado Ministério do Rio de Janeiro podia vir à cabeça.59
55  REFLEXÕES Sobre o Decreto de 18 de Fevereiro deste ano oferecidas ao Povo da
Bahia por Philagiosotero... Op. cit., p. 271 et seq.
56  Ibidem, p. 272.
57  Ibidem.
58  Ibidem.
59  Ibidem.

28
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Antonio Carlos também critica a convocação do Conselho


de Procuradores assentada no decreto. Restringir a eleição desses
procuradores às cidades e vilas com juízes letrados acarretaria que
apenas “servos da Coroa, satélites declarados da arbitrariedade,
enfim Magistrados estranhos aos lugares, que nada simpatizavam
com os seus moradores” fossem eleitos para o dito conselho. Ainda
para nosso Andrada, a argúcia dos ministros era tamanha que,
para “degradar em tudo a dignidade do vão Corpo de Cortes”,
estabeleceram que o presidente do conselho fosse escolhido pelo
rei, o que reduzia esse órgão à condição de “um mero Conselho”.60
O decreto nada mais estabelecia do que o antigo formato de Cortes
consultivas, severamente criticado por Antonio Carlos, inserido na
cultura política constitucionalista:
continua o despejado Decreto dando às denominadas Cortes um
voto só consultivo: é da essência da representação Nacional a decisão
das matérias oferecidas a sua discussão; porque só à Nação compete
estatuir, e apenas ao Monarca impedir por motivos justos, e dentro
dos limites, que prescreve a razão e a Constituição, a determinação
que parece precipitada e contrária aos interesses do povo. Mas não é
este o fim das chamadas Cortes do Brasil; são apenas escolhidas para
examinar e propor, sem nada poderem decidir.61

Para o futuro deputado às Cortes de Lisboa, o Ministério


menosprezava a necessidade de se implementar uma “nova
organização conforme a natureza das relações resultantes do pacto
social, e adequada aos fins do seu ajuntamento, inconseguíveis sob as
antigas formas”, arriscando-se “antes expor-se à perda de autoridade
em Portugal, do que renunciar aos seus erros, e render homenagem
ao espírito dominante do Século”. Mas os brasileiros, bem informados
que estavam pelos “bons escritos de nossos irmãos da Europa”,62 não
se deixariam iludir:
que prazer que não [temos] em anunciar-lhe = que nos não conhecem
bem, que se enganaram, que não lhes aceitamos o insidioso presente
de suas cerebrinas Cortes, e da sua Comissão preparatória de nova
espécie!!! = Saibam eles que suas tretas não aproveitam, saibam que
não somos tão crianças, que confundamos uma Junta preparatória
de Cortes com uma Deputação não eleita, que toma assento em
Cortes sem outro título mais que a vontade do Ministério; saibam
60  REFLEXÕES Sobre o Decreto de 18 de Fevereiro deste ano oferecidas ao Povo da
Bahia por Philagiosotero... Op. cit., p. 272.
61  Ibidem.
62  Ibidem, p. 274.

29
Entre a província e a nação

que é inadmissível a amalgamação de Oficiais do Governo com os


Representantes da Nação.63

Esse “golpe bem calculado a ferir os dois Países, não fará senão
acordá-los e premuni-los para uma resistência máscula”,64 prossegue
Antonio Carlos, entendendo que a intenção do governo do Rio de Janeiro
era separar Portugal e Brasil, deixando aquele à sua própria sorte, e este
subjugado a um governo despótico, menoscabado a uma “escravidão
vergonhosa”.65 Aqui vemos a ideia de povos irmãos que lutam, juntos, pela
liberdade e contra o despotismo presente na monarquia portuguesa. Esse
será o espírito de todos os movimentos de adesão à regeneração vintista
por todo o território brasileiro, permanecendo assim até a chegada das
notícias dos chamados “decretos recolonizadores”, em outubro de 1821.
Os próprios liberais portugueses mostravam entusiasmo ao convocar os
portugueses de todas as partes do mundo para tomar parte no movimento,
como se depreende deste trecho do Manifesto do Governo Supremo do
Reino, de 30 de outubro de 1821:
extinto para sempre o injurioso apelido de colônias, não queremos
todos outro nome que o título generoso de concidadãos da mesma
pátria. Quanto nos deprimiu a uns e a outros a mesma escravidão,
tanto nos exaltará a comum liberdade; e entre o europeu,
americano, asiático e africano não restará outra distinção que a
porfiada competência de nos excedermos e avantajarmos por mais
entranhável fraternidade.66

Por fim, e um tanto quanto supreendentemente – considerando-


se a visão corrente na historiografia sobre Antonio Carlos –, nosso
personagem chega a concordar no final de seu opúsculo que as relações
comerciais do Brasil sejam limitadas em prol da restauração econômica
de Portugal, caso fosse necessário:
embora queiram os nossos inimigos comuns inculcar-nos que
separados seriam mais seguros, e acelerados os nossos passos na
carreira da prosperidade, ao menos comercial; nós lhe respondemos
– que apesar de ser certo que a liberdade ilimitada nas nossas relações
comerciais concorra para a extensão da nossa indústria, e possa
abismar o comércio de Portugal, quando rival [das] mais Nações

63  REFLEXÕES Sobre o Decreto de 18 de Fevereiro deste ano oferecidas ao Povo da


Bahia por Philagiosotero... Op. cit.
64  Ibidem, p. 274.
65  Ibidem, p. 275.
66 PORTUGAL. Documentos para as Cortes Gerais da Nação Portuguesa... Op. cit.,
p. 82.

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Europeias [...] Contudo, é preferível a limitação destas relações, e


mesmo a sua diminuição e retardamento, quando acompanhados
de independência, a uma prosperidade acelerada, que existe na
tutela do poder arbitrário.67

Afinal, argumenta, “esta aparente riqueza não pode ser duradoura


no regaço da escravidão, pois sem a energia da liberdade susta-se a
progressão indefinida do melhoramento em todos os ramos”.68 Assim,
o sentimento de fraternidade entre irmãos, ou “brasilianos”, como
se refere, e portugueses, prevalecerá. Não por acaso, Antonio Carlos
encarava com verdadeiro horror o decreto, que nada mais era do que:
funesto oferecimento do cisma que deve arruinar os Membros de
uma mesma Monarquia, um pelo outro, e sobre a comum ruína
erigir o regime opressivo do despotismo [...] Mas não o conseguirá
entre nós; desafiaremos os seus esforços cobertos com a égide da
mesma Religião, da mesma Constituição, do mesmo Rei. Será a
nossa sorte a sorte de Portugal, ou pereceremos juntos, ou juntas
caminharemos para os grandes destinos que nos augura o nosso
valor, o nosso brio, e a nossa constância na virtude.69

Dessa forma assertiva Antonio Carlos encerrava seu opúsculo de


11 folhas. Detivemo-nos com bastante desvelo em seu texto, primeiro
porque exprime sua opinião pessoal sobre aqueles acontecimentos de
fins de 1820 e início de 1821, e segundo porque compartilha várias ideias
e códigos da cultura política constitucionalista, disseminada e partilhada
por amplos setores das elites políticas dos dois lados do Atlântico. Como
a História mostrou, essa concordância entre brasileiros e portugueses
e o desejo de união entre os dois países seriam gradativamente
abandonados, com o desenrolar dos trabalhos das Cortes de Lisboa.
É interessante notar, porém, que um dos mais aguerridos deputados
brasileiros às Cortes, aquele que foi reconhecido pela historiografia
nacional como propagador de um incipiente sentimento nacional,
pensava de maneira bastante diversa naquele início de 1821, alinhando-
se completamente aos liberais portugueses a favor da união entre Brasil
e Portugal.

67 PORTUGAL. Documentos para as Cortes Gerais da Nação Portuguesa... Op. cit.,


grifo nosso.
68  Ibidem, p. 275.
69  Ibidem, grifo nosso.

31
Entre a província e a nação

Referências:
Fontes:
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32
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Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

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33
Marcelino Duarte: trajetória política do
padre exaltado

Adriana Pereira Campos1

A carreira de Marcelino Duarte, como ensina Bourdieu,2 apresenta


as posições por ele ocupadas em diferentes espaços políticos em que
o “devir” se encontra sujeito a sucessivas transformações. No Espírito
Santo, o padre apresentou trajetória de intensa luta política no interior
da pequena elite regional a que pertencia. Seguiu para o Rio de Janeiro,
onde passou integrar grupo político com atuação radical, chegando a
figurar como editor do jornal O Exaltado e líder de movimento armado
na Praia Grande, hoje Niterói, em 1834. Depois de derrotado, em 1835,
o padre candidatou-se a regente do Império e retomou brevemente a
publicação de seu jornal. Sem maior expressão no Império, Marcelino
fixou residência em Niterói, onde ocupou cargos eletivos como de juiz
de paz (1835) e vereador (1837).
Neste capítulo, destaco a trajetória do padre até sua decisão de
se mudar para a Corte, deixando sua terra natal. No Espírito Santo, o
redator de O Exaltado pertencia à rica família dos Pinto Ribeiro, cujos
antepassados portugueses chegaram à capitania do Espírito Santo
ainda no século XVIII. Os Pinto Ribeiro, depois de estabelecidos,
transformaram-se em senhores de terras e escravos. Na segunda
geração da família havia indivíduos com importantes cargos, como
Marcelino Pinto Ribeiro (tio do padre Marcelino Duarte), lente da
Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra,3 e José Ribeiro
Pinto (tio também), ouvidor da capitania,4 juiz de fora em Campos de

1 Professora dos Programas de Pós-Graduação em História e em Direito da


Universidade Federal do Espírito Santo. Doutora em História pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (2003), Coordenadora do Laboratório de História, Poder e Linguagens da
Universidade Federal do Espírito Santo e bolsista produtividade 2 do CNPq.
2 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In.: FERREIRA, Marieta de Moraes e
AMADO, Janaina (org.). Usos & abusos da história oral. 8 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006,
p. 189.
3  Marcelino Pinto Ribeiro, homônimo do pai do Padre-Mestre, ver COUTINHO, José
Caetano da Silva. O Espírito Santo em princípios do século XIX: apontamentos feitos
pelo bispo do Rio de Janeiro quando de sua visita à capitania do Espírito Santo nos anos
de 1812 e 1819. Vitória: Estação Capixaba e Cultural–ES, 2002, p. 111; BRASIL. Annaes da
Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro. v. XXXVII. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas da
Bibliotheca, 1918, p. 214.
4  José Pinto Ribeiro, ver em AHU – Paraíba/ AHU_ACL_003, Cx. 30, D. 2457/AHU_
ACL_CU_017, Cx. 162, D. 12158; COUTINHO, José Caetano da Silva. O Espírito Santo

35
Entre a província e a nação

Goitacazes e desembargador da Relação da Bahia5. Além disso, José


Ribeiro Pinto possuía negócio vinculado ao comércio de cabotagem,
com riqueza na casa dos 20 contos de réis.6 A terceira geração alcançou
igual projeção nos quadros do Império, como Manoel Pinto Ribeiro
de Sampaio, nomeado juiz de fora do Reino de Angola, em 1811, que,
depois da Independência, trilhou carreira nos tribunais superiores do
país, como o Tribunal da Relação da Bahia, a Casa da Suplicação e o
Supremo Tribunal de Justiça.7
As funções da magistratura ocupadas pelos Pinto Ribeiro
demonstram o sucesso do empreendimento da família na busca
de postos graduados no Império. Como esclarece Maria de Fátima
Gouvêa,8 havia notória hierarquização entre os membros da
magistratura e, mais frequentemente, a ocupação de cargos realizava-
se por influência familiar. A presença de um professor universitário
coimbrão, um desembargador na Relação e um juiz de fora em Angola
instalava o clã em três domínios do espaço atlântico português.
Não era, contudo, auspiciosa a posição de Marcelino Duarte entre
os Pinto Ribeiro. Nasceu fora do casamento e seu progenitor era o
padre Marcelino Pinto Ribeiro, de quem herdara o nome. Esse fato
embaraçoso o obrigava a justificar que sua concepção ocorrera quando
o pai era ainda estudante.9
Não se conhece o nome da mãe do sacerdote, nem as circunstâncias
de seu nascimento no município da Serra, em 1788. Sabe-se apenas
que o pai, a despeito da condição do filho, garantiu a perfilhação
e a educação do menino, assim como determinou que ele seguisse a
carreira de padre, repassando-lhe a titularidade da cadeira de gramática

em princípios do século XIX... Op. cit., p. 214.


5  José Pinto Ribeiro, ver em AHU_ACL_CU_ 017, Cx. 247, D. 16841/AHU_ACL_
CU_035, Cx. 17, D. 1328 e AHU_ACL_CU_035, Cx. 32, D. 2624.
6  Cf. CARVALHO, Enaile Flauzina. Redes Mercantis: a participação do Espírito Santo
no complexo econômico colonial (1790-1821). Vitória: Secult, 2010, p. 100; TRIBUNAL
DE JUSTIÇA DO ESPÍRITO SANTO. (Cartório de 1º. Ofício de Vitória Nélson Monteiro).
Inventários post-mortem 1790-1822. Caixa 13, 1811.
7  INSTITUTO Histórico e Geográfico Brasileiro. Arquivos Privados. Família Soares
Sampaio, ACP 90, Lata 819, pastas 4, 6 a 9 e 26.
8  GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Poder político e administração na formação do
complexo atlântico português (1645-1808). In.: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de
Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 305.
9  Astrea, Rio de Janeiro, n. 124 (avulso), 1829, p. 2.

36
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

latina quando jubilado, em 9 de outubro de 1815.10 Marcelino Duarte,


assim, tornou-se herdeiro, inclusive, das posses de terras e bens, que lhe
garantiram algum conforto no Rio de Janeiro.
Não bastasse a posição de filho natural de padre, Marcelino
chegou ao Rio de Janeiro proveniente de uma das menores províncias
brasileiras. Pode se afirmar que ele realizou trajetória pouco comum
em direção à elite nacional, pois, consoante Barman e Barman,11
indivíduos naturais de províncias pequenas e fracas enfrentavam
grandes obstáculos para ingressarem nos círculos de poder do Império.
Tudo isso colocou à prova sua sobrevivência na Corte. Provavelmente,
Marcelino dependeu muito de seu talento como redator para obter
alguma notoriedade.
A obra mais reverenciada do padre mestre no Espírito Santo
consiste no poema épico extremamente sentimental e intitulado
“Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817”.12 O
padre inspirou-se, conforme alguns biógrafos,13 na perseguição sofrida
por parte do governador da capitania, Francisco da Costa Rubim. Havia,
é verdade, muita animosidade entre os dois. O governador descreveu
o comportamento do mestre de línguas latinas como decepcionante,
desagradável e inoportuno, em carta datada de 13 de abril de 1818 e
endereçada a Thomas Antonio de Vilanova Portugal. Acentuava, o
dirigente, o condenável desempenho do padre nas festividades relativas
ao coroamento de D. João, quando foram encenadas diversas peças
dramáticas e cavalhadas na vila da Victoria.14
Nada confirma que a viagem de Marcelino Duarte, em 1817,
objetivasse apresentar denúncia contra o dirigente da capitania. As
notas 24 a 28 do poema falam, é verdade, das perseguições encetadas

10 DAEMON, Bazílio. Província do Espírito Santo: sua descoberta, história


cronológica, sinopse e estatística. Vitória: APEES, 2010, p. 283.
11  BARMAN, Roderick; BARMAN, Jean. The role of the Law Graduate in the political
elite of Imperial Brazil. Journal of Interamerican Studies and World Affairs, v. 18, n. 4,
p. 424, 1976.
12  CARVALHO, José Augusto. Panorama das letras capixabas. Revista de Cultura,
Vitória, v. 7, n. 21, p. 37, 1982.
13  Cf. ROSA, Affonso Claudio de Freitas. História da literatura espírito-santense.
Porto: Officinas do “Commercio do Porto”, 1912; VASCONCELLOS, José Marcelino
Pereira de. Ensaio sobre a história e estatística da Província do Espírito Santo. Victoria:
Typografia de P. A. D’Azeredo, 1858.
14  ARQUIVO NACIONAL. Fundo Interior – Negócios de Província e Estado – IJJ9
356. Documento n. 38.

37
Entre a província e a nação

por Rubim contra alguns espírito-santenses.15 Muito possivelmente,


a razão da peregrinação até a Corte deveu-se à prosaica ambição do
padre em obter o hábito da Ordem de Cristo. Tratava-se de honraria
nobilitante acompanhada de pequeno rendimento (terça) e de
privilégios jurídicos e fiscais. Para ingresso na ordem, o candidato
devia provar sua “limpeza de sangue” e vida nobre. O valor simbólico
da dignidade conferia ao homenageado a distinção de pertencimento
à nobreza lusa.
Para famílias em ascensão, como os Ribeiro Pinto, em fins do
século XVIII e começos do XIX, interessava articular, como teoriza
João Fragoso,16 redes políticas que protegessem seus investimentos
dos humores do capital mercantil. A titulação de seus membros em
ordens, como a de Cristo, habilitava-os a galgarem posições influentes
no quadro administrativo do Império. Enobrecidos, os Ribeiro Pinto
podiam arrogar o comando da república espírito-santense e proteger
seus interesses.
Marcelino Duarte considerava, inicialmente, quatro meses
suficientes para obter êxito em empreitada tão comum aos seus
familiares. A oposição de Rubim, contudo, prorrogou a jornada do
padre por 28 meses.17 Em desforra, o clérigo capixaba, como sugere
Oscar Gama Filho,18 compôs o poema épico recheado de pitadas de
malsinação ao desafeto.19 O retorno à terra natal somente ocorreu depois
15  VASCONCELLOS, José Marcelino Pereira de. Jardim poético... Op. cit., p. 46.
16  Cf. FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal
da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In.: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla Maria
Carvalho; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Conquistadores e negociantes: histórias de
elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, p. 33-120.
17  Ver nota 10 no “Derrota” In.: VASCONCELLOS José Marcelino Pereira de. Jardim
poético... Op. cit., p. 40. Marcelino Duarte tornou-se, apesar da oposição de Rubim,
Cavaleiro da Ordem de Cristo, como era tradição dos Pinto Ribeiro, ver em O mensageiro
da Praia Grande: jornal curioso, instructivo, e liberal. Nitheroy, n. 6, 1835.
18  GAMA FILHO, Oscar. Chorinho com Marcelino. Revista Você, Vitória, n. 14, p.
7, 1993.
19  Há versões compostas no século XX que atribuem o sentimentalismo do poeta ao
desgosto de deixar a terra natal em face de perseguição empreendida pelo Governador
Francisco da Costa Rubim. Cf. verbete Marcelino Pinto Ribeiro Duarte (1788-1860) In.:
ROSA Affonso Claudio de Freitas. História da literatura espírito-santense... Op. cit., p. 53-
97. Affonso Claudio de Freitas Rosa reservou, em sua obra, lugar proeminente a Marcelino
Duarte e avô de sua esposa. Ele chegou mesmo a introduzir correções em parte do poema
para certamente elevar o autor ao panteão dos grandes poetas (será que duvidava da
qualidade do original?). Como patrono da primeira cadeira da Academia Espírito-santense
de Letras, Marcelino Duarte ganhou, assim, versão mais heroica de sua biografia composta
no afã de valorização da literatura capixaba (ou da nobreza da família Pinto Ribeiro).

38
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

da nomeação do governador Francisco Rubim para outra capitania, a


do Ceará Grande,20 em 12 de setembro de 1819.21
Sem dirigente até a posse de novo regente, a capitania experimentou
governar-se por Junta constituída pelo tenente-coronel Manoel Vieira
Machado, por José dos Reis Mota e por José Azevedo Cabral, juiz de fora
de Campos.22 O conselho executivo, nos seis meses de sua existência,
dedicou-se principalmente a viabilizar certa Sociedade de Agricultura,
Comércio e Navegação do Rio Doce, sonho do Império português para
viabilizar saída de mercadoria de Minas pela costa capixaba. Após esse
interregno, em 20 de março de 1820, chegou à terra espírito-santense
o dirigente novel, Baltazar de Souza Botelho de Vasconcelos. Pouco
depois, a capitania inquietou-se sob o impacto da Revolução do Porto
(24/08/1820) e das novidades da Regeneração vintista.23
Corria o ano de 1821, quando a notícia do juramento da
Constituição pelo monarca, ainda incompleta em Lisboa,24 alvoroçou
a elite política local e se formaram partidos sobre os destinos do Brasil.
Bazílio Daemon25 registra dois levantes militares em Vitória noticiados
pelo governador à Corte, em abril e julho daquele ano. O último ocorreu
na igreja matriz durante o juramento da Constituição em 14 de julho,
quando se ouviram clamores pela instalação de governo provisório
na capitania. Baltazar Botelho pediu aos proponentes a assinatura em
documento para sua salvaguarda. Apenas dois homens, um caixeiro da
praia e um boticário, cumpriram o desafio, e ninguém mais.26 Nesse
momento, membros do corpo da tropa de linha, com problemas de

20  O nome Ceará Grande deve-se ao Ceará-mirim, localidade junto ao rio Bacuípe ao
norte do rio Grande, na Paraíba. Ver FREIRE, Mário de Aristides. A capitania do Espírito
Santo: crônicas da vida capixaba nos tempos dos capitães-mores (1535-1822). 2 ed. Vitória:
Florecultura, 2006, p. 235.
21  Ver discussão sobre a data em FREIRE, Mário de Aristides. A capitania do Espírito
Santo... Op. cit.
22  Cf. FREIRE, Mário de Aristides. A capitania do Espírito Santo... Op. cit., p. 235. Na
obra de MARTINS, encontra-se informado que o Juiz de Fora entre 1816 e 1822 fora José
de Azevedo Cabral. MARTINS, Fernando José. História do descobrimento e povoação da
cidade de São João da Barra e Campos dos Goytacazes: antiga capitania da Parayba do
Sul e da causa e origem do levante denominado - dos Fidalgos, acontecido em meados do
século passado. Rio de Janeiro: Typografia de Quirino & irmão, 1868, p. 221
23 SERRÃO, Joel Brasil. Pequeno dicionário de história de Portugal. Porto:
Figueirinhas, 2004, p. 666; 743-744.
24  Decreto de 24 de fevereiro de 1821.
25  DAEMON, Basílio. Província do Espírito Santo... Op. cit., p. 303.
26 Ofício dirigido pelo governador a Pedro Álvares Diniz apud OLIVEIRA, José
Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. 3 ed. Vitória: APEES, 2008, p. 297-298.

39
Entre a província e a nação

disciplina desde o ano de 1820,27 tiveram a oportunidade de clamar pela


substituição do comandante.
A revolta seria apenas a quixotada da tropa se acaso não tivesse
terminado nos anais judiciais da famosa devassa conhecida como Processo
dos Cidadãos ou, simplesmente, Bonifácia.28 E no roldão das versões
sobre a bazófia encontra-se o padre poeta, na qualidade de testemunha,
relatando os fatos passados naquele 14 de julho e os desdobramentos
políticos ensejados por investigação solicitada pelo governador. Consoante
declaração de Marcelino nos autos, diante da agitação e dos gritos, teria
ele exortado os revoltosos que o “pedido realizado daquela forma não
convinha à província”.29 Que relação havia entre o padre-mestre e os
acontecimentos de província tão pacífica com a Bonifácia e réus ilustres?
O elo desse imbróglio consistia na autoridade designada para investigar
a desordem nas terras capixabas. Foi Luís Pereira da Nóbrega de Sousa
Coutinho o responsável por sindicar o caráter daquelas manifestações.30
Marcelino Duarte, e outras quatro testemunhas capixabas31, no ano 1822,
chegou ao ponto de relatar a viagem do Nóbrega como estratégia para
divulgar ideias pouco “simpáticas” e “maltratar o dito governador” na,
então, capitania do Espírito Santo.32
27  Cf. FREIRE, Mário de Aristides. A capitania do Espírito Santo... Op. cit., p. 262;
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo... Op. cit., p. 296;
RUBIM, Braz da Costa. Memória históricas e documentas do Espírito Santo. Rio de
Janeiro: Typografia de D. Luiz dos Santos, 1861, p. 135 et seq.
28 Coloca-se entre aspas a expressão Bonifácia em razão da crítica produzida por
SCHIAVINATTO, Lis; FERREIRA, Paula Botafogo Caricchio. As rememorações da
“bonifácia” entre a devassa de 1822 e o processo dos cidadãos de 1824. R. IHGB, Rio de
Janeiro, ano 175, n. 464, p. 310, 2014, p. 310.
29  A Bonifácia contou com o depoimento de cinco capixabas, dentre eles o padre
Marcelino Pinto Ribeiro Duarte e Ignacio Carneiro Duarte apud OLIVEIRA, José Teixeira
de. História do Estado do Espírito Santo... Op. cit., p. 322.
30 Cf. Correio do Rio de Janeiro, n. 33, 1823, p. 132; BRASIL. ARQUIVO NACIONAL.
As juntas governativas e a Independência. v. 3. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1973,
p. 982.
31 Ver depoimento do padre Marcelino Duarte no processo instaurado por José
Bonifácio de Andrada e Silva apud OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do
Espírito Santo... Op. cit., p. 321 et seq.
32  Cf. OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo... Op. cit. Na
devassa aberta por Bonifácio de Andrada contra Luís Pereira da Nóbrega de Sousa Coutinho
junto com Joaquim Gonçalves Ledo, José Clemente Pereira, Januário da Cunha Barbosa,
Domingos Alves Branco Muniz Barreto e outros, por suposta conspiração estabelecida para
formar uma República, nota-se o testemunho de capixabas sobre o comportamento do dito
Nóbrega durante sua presença no Espírito Santo. Jerônimo de Castanhese Vasconcelos
Pimentel, tenente do corpo de primeira linha no Espírito Santo, testemunhou que Nóbrega
incendiara os ânimos na província por meio da sugestão que os colegas de tropa deviam
ser ouvidos, pois os tempos do despotismo acabaram e ele, depoente, responderia por ser

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Possivelmente Nóbrega deixara lastro de antipatia entre os


capixabas. Curiosamente, das cinco testemunhas da província do
Espírito Santo contra o brigadeiro, três residiam na Corte e duas na
mesma rua do Cano – os reverendos Marcelino Pinto Ribeiro Duarte e
Manuel de Freitas Magalhães. De modo geral, as testemunhas espírito-
santenses contaram que Nóbrega se simpatizara com a causa da
tropa, criticara o governador e ainda os acusara de corcundas por não
aderirem ao pretexto dos militares. A defesa de Nóbrega, de certo modo,
confirmou a versão dos capixabas, mas redarguiu não constituírem
motivo para confirmar o réu autor de conspiração contra a monarquia
constitucional.33 Seria Marcelino Duarte um “bonifácio” submisso às
estratégias dos Andradas?
Voltando ao ano de 1821, as dissensões em solo capixaba
permaneciam exaltadas e as facções iniciaram acirrada disputa para a
escolha do representante da capitania nas Cortes de Lisboa. Marcelino
Duarte elegeu-se eleitor de paróquia e de província, confessadamente
com o apoio de Baltazar de Souza Botelho.34 Na ocasião, o reverendo
venceu um dos mais influentes e ricos homens da terra, Francisco
Pinto Homem de Azevedo, seu primo. Ao que tudo indica, apesar da
saúde combalida, o governador sabia moderar os ânimos, e a eleição
do deputado à Cortes, Fortunato Ramos, nascido em Victoria e lente
em Coimbra, construiu certa unidade entre as partes litigantes. Após o
escrutínio e o licenciamento de Baltazar, Marcelino regressou ao Rio de
Janeiro para manter residência no Rio de Janeiro por algum tempo, sem
deixar de cultivar forte e estreito vínculo com os antigos compatriotas.
Uma vez na Corte, em 1822, Marcelino Duarte envolveu-se nas
escaramuças do processo de Independência do Brasil, e viu-se envolvido
na torrente de disputas entre os Andradas, de um lado, e Ledo, Januário
e Nóbrega, de outro. A par disso, porém, Marcelino Duarte continuava
atento aos acontecimentos de sua pátria, como gostava de chamar a
terra natal. Instalara-se Junta Provisória de Governo35 na província em

acusador daqueles homens.


33  SCHIAVINATTO, Lis; FERREIRA, Paula Botafogo Caricchio. As rememorações
da “bonifácia” entre a devassa de 1822 e o processo dos cidadãos de 1824... Op. cit., p. 310.
34  CORRESPONDÊNCIA de Marcelino Pinto Ribeiro Duarte. Astrea, Rio de Janeiro,
n. 124, p. 3, 1829.
35  Os membros da dita Junta eram José Nunes da Silva Pires, na qualidade de presidente,
Luís da Silva Alves de Azambuja Susano, secretário, e vogais José Ribeiro Pinto (primo
de Marcelino Duarte), Sebastião Vieira Machado e José Francisco de Andrada e Almeida
Monjardim (primo de segundo grau de Marcelino Duarte). Cf. ARQUIVO NACIONAL.

41
Entre a província e a nação

primeiro de março de 1822. Graves cizânias, porém, embaraçavam as


autoridades capixabas. A Junta Provisória abriu oposição à excessiva
autoridade conferida ao Comando das Armas, com a qual dividia
a administração da província.36 Para o primeiro titular do posto,
nomeou-se interinamente o tenente-coronel Ignacio Pereira Duarte
Carneiro, aliado do padre Marcelino, cuja designação ocorreu graças a
critérios alheios à nova junta eleita. A lei obrigava a escolha de militar
com elevada patente e Duarte Carneiro possuía, naquela conjuntura, a
mais alta patente dentre os espírito-santenses. Sem o apoio do antigo
governador, Balthazar Botelho que partira do Espírito Santo, a facção
de Duarte Carneiro perdera sua influência e a permanência do tenente
coronel no cargo não ultrapassou um mês.
Da corte chegou a nomeação de Julião Fernandes Leão37 pelo
Príncipe-Regente em 15 de abril de 1822. Ele servira em Jequitinhonha,
na Comarca de Porto Seguro, e atuava há alguns anos nas tropas da
província.38 O alferes, desde 1810, encontrava-se empenhado no
controle das populações indígenas do vale do Jequitinhonha e do Rio
Doce, medida de fortalecimento do comércio com Minas.39 Duarte
Carneiro, membro da elite local, fora substituído, portanto, por homem
bem relacionado com o governo imperial. Notável que Duarte Carneiro
também atendera ao chamado de Bonifácio e se apresentara como
testemunha contra Nóbrega.
No Correio do Rio de Janeiro40 firmou-se verdadeira disputa sobre
as versões a respeito dos eventos ocorridos em julho de 1822, quando
saíram presos da vila de Victoria o comandante das armas e certo
As juntas governativas e a Independência... Op. cit., p. 971.
36  BRASIL. ARQUIVO NACIONAL. As juntas governativas e a Independência...
Op. cit., p. 974; 976; 978; 982; 983.
37  Bazílio Daemon registra que, desde 18 de abril de 1821, Julião Fernandes Leão
atuava como inspetor do corpo de pedestres da capitania do Espírito Santo. Além disso,
nos eventos ocorrido em julho de 1821, Julião Leão teria se desentendido com o sargento
mor Francisco Bernardes, contra quem se pediu a substituição por José Marcelino de
Vasconcellos. Cf. DAEMON, Bazílio. Província do Espírito Santo... Op. cit., p. 303 et seq.
38  CARTA Régia de 28 de setembro de 1810. Gazeta do Rio de Janeiro, n. 18, p. 3,
1811, com nomeação de Julião Carneiro para atuar no vale do Jequitinhonha.
39  Ver relato em Idade d’Ouro do Brazil, Bahia, n. 20, p. 8, 1812; Correio Braziliense,
Londres, n. 21, p. 465-466, 1818.
40  De acordo com Isabel Lustosa, João Soares Lisboa era o responsável pela publicação
do periódico que teve duas fases: 10 de abril de 1822 a 21 de outubro de 1822 e 1° de agosto
de 1823 a 24 de novembro de 1823, alguns números extraordinários entre 24 de maio e 31
de julho de 1823. Cf. LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na
Independência (1821-1823). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

42
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

juiz ordinário. Em julho, o padre assinou carta publicada na coluna


“correspondência” em que transcreveu denúncia de perseguições
e prisões arbitrárias operadas por Julião Leão em sua “pátria”. Em
10 de agosto, nos números 98 e 99, Luiz Bartholomeu das Silva e
Manoel dos Passos qualificaram Julião como “baxá”,41 “furioso pé de
chumbo”, “inimigo da pátria e partidário das Cortes em Lisboa”. Nova
correspondência da dupla, publicada em dois números do Correio, em
20 e 21 de agosto, prosseguia na denúncia, inclusive, narrando o atentado
promovido por Julião contra a Junta quando ele gritou: ataca! Morra a
Junta! Viva quem me fez comandante das armas. Segundo a narrativa
de Luiz Bartholomeu e Manoel dos Passos, “Povo, soldados de Linha e
Milícias” socorreram a Junta e “moleques e a populaça” correram com
pedras os 14 ou 16 soldados liderados pelo dito Leão, insultando-o com
vergonhosas descomposturas. À noite, quando a calma voltou a reinar
na cidade, Julião Leão entregou-se à Junta e foi preso para a Fortaleza
da Barra de Victoria.
Julião Leão nutria desavenças com o capitão Luiz Bartholomeu
da Silva e Oliveira, que, na versão do comandante, buscava assinaturas
na tropa de linha para desalojá-lo do comando das armas.42 De fato, o
dito Bartholomeu escreveu correspondência publicada ainda em 1822
admitiu a organização de manifesto aos cidadãos eleitores. Mas o teor
se cingia apenas à exortação da subordinação ao príncipe regente, do
respeito ao rei constitucional e do compromisso com a união de Brasil e
Portugal.43 Havia, portanto, verdadeira guerra de opiniões na província.
Sem romantizar possível polarização ente povo e elite, pode-se
afirmar que as ideias de independência sopraram ventos que fizeram
rebolir os homens e a política na terra espírito-santense, a exemplo
do ocorrido em outros lugares do Reino do Brasil. No mesmo 1822,
africanos e crioulos escravizados armaram-se para exigir a liberdade
na freguesia da Serra, pertencente à vila da Victoria. João José Reis e
Eduardo Silva44 descrevem situação semelhante ocorrida na Bahia

41  Adjetivo comumente atribuído a homens autoritários. Provavelmente relativo a


autoridades turcas.
42 GOULARTE, Rodrigo da Silva. Motins e tumultos no limiar da Independência
brasileira. In.: NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; BESSONE, Tânia Maria (org.). Dimensões
políticas do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012, p. 86.
43  Ver cópia enviada por Luiz Balthazar em: O Espelho, Rio de Janeiro, n. 78, p. 1-3,
16 ago. 1822.
44  REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no
Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 90.

43
Entre a província e a nação

em que muitos cativos não esperaram a libertação para participar da


luta da Independência e fugiam das propriedades senhoriais. Houve
a recomendação por parte do Império de retribuir a iniciativa com a
aquisição da alforria para esses indivíduos. Tal notícia teria chegado à
Serra e se espalhara entre os cativos? Ou as palavras ganhavam novos
significados entre os homens e mulheres submetidos ao cativeiro?
Pode se afirmar que o vocabulário contra o despotismo e a
valorização da liberdade e da autonomia inspiraram as camadas médias
e baixas do país, para escândalo das elites. Vistos do alto, interpretaram-
se os projetos desses segmentos como sedições e insubordinação.
Consoante Gladys Sabino Ribeiro,45 a pátria era um “espaço comunitário
limitado, onde o objeto de lealdade e dignidade, em uma autoridade
patriarcal, era o Rei, agora constitucional”. A historiadora adverte ainda
que não procede a versão historiográfica que identifica a emancipação e
a independência com a separação total de Portugal nos primeiros meses
de 1822.46
As concepções em torno da regeneração vintista evoluíram de
modo imprevisto no Brasil e em Portugal. Desse ângulo, compreende-
se o papel desempenhado pelo padre-mestre e sua defesa da moderação
em terras capixabas. Por um lado, a proposição da causa do Brasil como
rompimento com Portugal amadurecia em muitos corações capixabas,
talvez, do próprio Marcelino. A autonomia e o constitucionalismo,
no entanto, ainda não implicavam necessariamente em separação de
Portugal. De outra parte, o movimento destinava-se a fins específicos
e a população não estava autorizada a derivar desordens desses ideais.
Daí a insistência do padre com a observância da prudência.
A precipitação dos acontecimentos acelerar-se-ia no segundo
semestre de 1822 no Brasil. Não foi diferente na província do
Espírito Santo. Até meados do ano, verificou-se certa unidade de
propósitos entre a Junta Governativa e o Comando das Armas nos
festivos eventos de comemoração do Fico e da titulação de Defensor
Perpétuo do Príncipe Pedro.47 Em julho, contudo, as diferenças
tornaram-se insustentáveis. Nessa mistura de expectativas políticas,
novas identidades forjadas no calor dos acontecimentos separaram
definitivamente os dois grupos dirigentes. De um lado, a Junta e, de
45 RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identidade nacional e
conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 47.
46  Ibidem, p. 51.
47 Ver Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 88, 23 jul. 1822, p. 1.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

outro, o Comando das Armas. Seria a primeira associada aos interesses


brasileiros e o segundo ao dos portugueses? As sugestões de corcundas
entre os capixabas não seriam frutos de retórica sobre os caminhos da
causa do Brasil?
Em março de 1822, Marcelino Duarte, sob o pseudônimo de O
Philopátrico publicou o panfleto “o Brasil Indignado”. O projeto de
autonomia do Brasil apareceu no folheto como possibilidade e ameaça,
pois “as Províncias [...] se juntarão em massa logo que vierem a Lei que
as force a retornar a infância”. E por isso o philopatrico persuadia que os
“generosos portugueses” deveriam ouvir as representações contidas nos
manifestos, pois resultavam do “amor da ordem e da conservação para
salvar a monarquia do perigo eminente”.48
Já em 1826, Marcelino, com o novo codinome O Capixaba,
publicou, no Diário Fluminense,49 outra versão dos acontecimentos.
Descreveu o modo pacífico como a independência ocorreu na
província do Espírito Santo, que apenas “divulgou o reconhecimento da
Independência política do Império do Brasil” quando o “novo Príncipe
havia nascido, como o fiador, e o Garante Augusto da perpetuidade
do Império Independente”.50 Apresentou o coronel Ignacio Pires
Duarte Carneiro como o primeiro capixaba a mostrar seu interesse
pela causa da nação, fazendo celebrar com jantar público aos seus
soldados subalternos. Os festejos teriam durado dois dias, os edifícios
da cidade de Victoria iluminados, peças de teatro encenadas e cantos
comemorativos entoados.
Utilizando os cognomes Philopátrico e Capixaba, Marcelino
Duarte51 levou ao público duas versões do fato com a diferença de
alguns poucos anos. Na primeira, a incerteza dominava o devir, na
segunda, o futuro encontrava-se consolidado, ao ponto de se esquecer
as desordens condenadas por ele próprio na ocasião do juramento
da Constituição e bases lusitanas. Do Rio de Janeiro, o padre mestre
insertava suas reflexões entre os poucos jornais que circularam naquela
cidade, entre 1822 e 1823.52
48 DUARTE, Marcelino Pinto Ribeiro (Hum Philopatrico). In.: CARVALHO,
José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILE, Marcello (org.). Guerra literária: panfletos da
independência (1820-1823). v. 2. Belo Horizonte: UFMG, 2014, p. 368.
49  Diário Fluminense, Rio de Janeiro, n. 7, p. 235, 14 mar. 1826.
50  Ibidem.
51  Conferir em: Astrea, Rio de Janeiro, n. 131, p. 2, 1829.
52  REIS, Arthur Ferreira. Anarquistas e servis: uma análise dos projetos políticos do

45
Entre a província e a nação

Em março de 1823, assinando como O Philopatrico mais uma


vez, Marcelino levou a público versão tumultuosa do processo de
independência em sua província, alertando contra os “pés de chumbo”
que dirigiam o governo de sua pátria. Em maio de 1823, mais uma vez
no Espelho, o padre mestre registrou sua despedida do Rio de Janeiro e
anunciou seu retorno em “derrota” à pátria:
como estou de partida, bem que a meu pesar, para a Província
do Espírito Santo, a continuar no exercício do meu magistério, e
me consta, que dois revoltosos, e liberais anarquistas de 1821,
cujos nomes (por não trucar de falso) oculto por ora, chegarão de
próximo a essa Cidade, para me debelarem pelas cartas insertas seu
Espelho N. 135, em que eu mostrei o caráter abjeto do Secretário
Provisório da dita Província [Ignacio Accioli], tendo de ser o
primeiro andamento dos dois emissários citarem a V. para declarar
o nome de Philopatrico ali assinado, rogo a V. que isso por poupar
despesas, e passadas a esses [?] Cidadãos; como por desonerar a V.
deste comprometimento, queira inserir em sua próxima folha; na
qual assinando-me.53

De acordo com a publicação, mal finalizado o ciclo da


independência, Marcelino renovava sua disposição de oposição no seio
da elite capixaba. Sabe-se pouco da permanência do padre na província
do Espírito Santo em 1823. Há, porém, no Diário do Rio de Janeiro
notícia que ele, em novembro do mesmo ano, discursou na matriz
da vila de Victoria pela saúde de Pedro I.54 O antigo ouvidor, Ignacio
Acciolli, era o presidente da província, contra quem o padre dirigira
duras críticas no Espelho. As rixas renderam-lhe a demissão do cargo
de mestre de gramática, ofício herdado do pai.55 Esse parece ter sido o
motivo pelo qual o reverendo retornou ao Rio de Janeiro para recuperar
judicialmente sua ocupação, cujo sucesso alcançou com recurso ao
Desembargo do Paço. É impossível precisar a data do regresso, mas
pode ter ocorrido em 1824. Depois desse episódio, o padre poeta não
voltou mais a residir na província, conformando-se em remunerar
substituto em sua cadeira.56
ano de 1826 no Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2016, p. 36.
53  O Espelho, Rio de Janeiro, n. 156, p. 3, 16 mai. 1823.
54  Diário do Governo, Rio de Janeiro, n. 146, p. 665, 23 dez. 1823.
55 Em 1829, o Prometido Azorrague, em aberto ataque à honestidade de Accioli,
menciona a reversão da exoneração obtida pelo junto ao Supremo Tribunal do Desembargo
do Paço em favor de Marcelino Duarte. Cf. Astrea, Rio de Janeiro, n. 440, p. 1964, 27 jul.
1829.
56  Astrea, Rio de Janeiro, n. 131, p. 2, 12 jul. 1829.

46
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Instalado na Corte, Marcelino Duarte ministrava aulas em


sua própria residência, como se presume de anúncios publicados no
Jornal do Commercio.57 Chegou a enviar requerimento à Câmara dos
Deputados, colocando-se à disposição para ser redator dos diários da
casa legislativa.58 E iniciou, entre 1825 e 1829, novas incursões no mister
do jornalismo, publicando folhas avulsas e correspondências, sob os
codinomes O Capixaba e O Amigo da Verdade.59
Das correspondências de Marcelino publicadas nos jornais
cariocas, nota-se o estilo marcado por retórica dramática e hidrófoba. Os
textos transformavam os adversários em homens pérfidos e corruptos;
os amigos, em vítimas insuspeitas e honradas. A província do Espírito
Santo parecia lugar de um povo oprimido e subjugado a autoridades
iníquas e arbitrárias. O padre mestre justificava sua atividade epistolar
como alternativa para advogar pelos perseguidos e atormentados povos
de sua pátria. Recorria aos adjetivos mais ásperos possíveis para expor
as fraquezas e as falhas dos inimigos e deixava os opositores perturbados
com a força de sua retórica inflamada. Desafiado, abandonava a discrição
e revelava a autoria dos artigos encobertos por algum dos apelidos, tal
como feito no número avulso da Astréa.60 Às ameaças de denúncia
de suas declarações, Marcelino respondia com mais incriminações.
Infatigável e sem veículo periódico próprio, o padre recorria a folhas
avulsas publicadas por vezes na tipografia da Astréa ou Nacional. Outras
vezes, contentava-se com a coluna de correspondências dos periódicos
como Astréa, Diario Fluminense, O Espelho, Abelha do Itaculumy,
entre outros. As publicações geravam réplicas e tréplicas, pois o padre
manifestava suas opiniões com muita contundência.
Nos anos de 1828 e 1829, Marcelino Duarte travou nas cidades
do Rio de Janeiro e Vitória verdadeira guerra de panfletos contra as
autoridades da província do Espírito Santo. Armado de sua erudição
e oratória, denunciou com a força dos periódicos a anulação de sua
eleição para a Câmara dos Deputados em virtude da vacância do cargo
de José Bernardino Baptista Pereira, ministro da Fazenda. Acusado de
suborno, quando obteve 56 votos dos 73 do colégio eleitoral, o padre
reagiu fortemente pela imprensa, fragilizando a estratégia provinciana
57  Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, n. 375, p. 3, 9 jan. 1829.
58  CÂMARA DOS DEPUTADOS. Annaes Primeiro Ano da Segunda Legislatura -
1830. t. I. Rio de Janeiro: Typographia de H. J. Pinto, 1878, p. 77.
59 Cf. Astrea, Rio de Janeiro, n. 131, p. 2, 12 jul. 1829.
60  Ibidem.

47
Entre a província e a nação

de manipulação eleitoral. A vitória não foi mais completa, porque a


eleição permaneceu inconclusa.61
Marcelino Duarte dirigiu sua verborragia contra o presidente da
província, Ignacio Accioli Vasconcellos, seu novo Rubim. A polêmica
reunia alguns dos velhos companheiros, como o tenente coronel Luiz
da Fraga Loureiro (pai), o reverendo João Luiz da Fraga Loureiro (filho)
e o coronel Ignacio Pereira Duarte, e antigos desafetos, como o primo e
capitão mor Francisco Pinto Homem de Azevedo e o presidente Ignacio
Accioli. Outros mais lá se encontravam. Em número avulso da Astréa,
o pároco detalhou sua longa reclamação, publicando na íntegra a ata
eleitoral e a análise dos fatos.62
O padre Fraga Loureiro costumava também publicar na Astréa
sob o nome de o Prometido Azurrague, cuja linguagem violenta e irônica
lembrava bastante a de Marcelino Duarte. Seu açoite, porém, dirigia-
se exclusivamente aos problemas da província. Em 1829, Loureiro
arremeteu sobre Ignacio Accioli, e um seu aliado, João Antonio de
Moraes, acusações de malversação de dinheiro público e privado.63
Moraes resolveu responder aos argumentos do Azurrague em folha
avulsa.64 Ao citar o padre mestre, ele o atraiu para a arena de debate,
que em nova folha avulsa surrou o tal Moraes.65
Julião Fernandes Leão era outra vítima dos artigos de Marcelino
Duarte. O Amigo da Verdade não o deixava cair no esquecimento. No
ano de 1825, o padre estampou novamente as perseguições perpetradas
por Leão em terras capixabas nos idos de 1822.66 Julião tentou explicar
suas pendências com o Conselho de Guerra culpando o velho aliado
espírito-santense de Marcelino, Fernandes Telles da Silva.67 Em
resposta, Marcelino Duarte adotou sua verve irônica superando Leão
em argumentos e recursos de retórica. Promoveu verdadeira sova
pública do velho militar.

61 Cf. Astréa, Rio de Janeiro, n. 406, p. 1780, 26 mar. 1829.


62  Contra o resultado instalou-se o tumulto proporcionado pelos obstinados vencidos.
Acusavam o pleito de vício causado por suborno, que não restou provado, mas os acusadores
conseguiram adiar a votação, cujo resultado não voltou às páginas da Astréa. Ver ata e
análise em: Astrea, Rio de Janeiro, n. 124, 1829.
63 Cf. Astrea, Rio de Janeiro, n. 410, p. 1-2, 4 abr. 1829.
64  Idem, n. 128, 1829.
65  Idem, n. 131, 1829.
66  Diário Fluminense, Rio de Janeiro, n. avulso, 16 abr. 1825.
67  Idem, 21 abr. 1825, p. 349.

48
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Até fins da década de 1820, o padre mestre encontrava-se


mergulhado nos expedientes da imprensa política e alternava o talento de
poeta para se demudar em tribuno. Suas ideias políticas transformaram-
se junto com o país. A prudência cedeu lugar à exaltação, nem tanto
pela ousadia de rompimento com os conceitos políticos vigentes
como monarquia e hierarquia social, mas principalmente pelo uso da
linguagem vívida, ousada e debochada. A peça O Cônego Ignez encerra
esse ciclo de mudanças na vida do clérigo, pelo menos do ponto de vista
literário.
No ano de 1830, Marcelino Duarte compareceu à posse dos novos
vereadores na Câmara da cidade do Rio de Janeiro, oportunidade em
que proferiu, de acordo com o editorial da Astréa,68 fecundo discurso
e entoou o hino Te Deum Ludamus diante de grande público. Na
oportunidade afirmou:
o Brasil não retrograda; os ferros da escravidão não foram feitos
para os braços do Brasil. Os Brasileiros são briosos; eles não
conhecem essa crassa estupidez, que distingue a classe comum da
Europa [...]. Não, meus Senhores, nós juramos a CONSTITUIÇÃO,
não seremos perjuros. Ai d’aquele que tentar contra a Liberdade
do Brasil! O Brasil tem um Defensor Perpétuo, tem um Monarca
liberal. Ele nos afiançou que mais liberal do que Ele, nem a mesma
Constituição. Ele não quererá dar a seus súditos a terrível lição de
rebeldia e de perjuro.69

Um ano depois, os elogios irônicos ao monarca deram lugar


a críticas abertas. Marcelino Duarte encontrava-se preparado para
enfrentar o devir. Em 1831, tornara-se um homem maduro de 43 anos,
experiente, cosmopolita, admirado e popular. Não precisava mais da
proteção do velho pai ou de um líder. Ele era agora o teto sob o qual os
aliados podiam encontrar guarida, sombra e esteio. Estava pronto para
os novos eventos que encrespariam a monarquia e quase a levariam à
lona. Entrava em cena o Exaltado.

68  Astrea, Rio de Janeiro, n. 523, 19 jan. 1823.


69  Farol Maranhense, Maranhão, n. 178, p. 761, 23 mar. 1830. O discurso encontra-se
disponível na Biblioteca Nacional.

49
Entre a província e a nação

Referências:
Fontes:
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356. Documento n. 38.
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Janeiro, anos indicados.
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VASCONCELLOS, José Marcelino Pereira de. Ensaio sobre a história e estatística
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50
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

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51
Entre a província e a nação

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52
Parte 2
Disputas políticas e partidárias
“Tradicionalistas” x “Conservadores”: uma
disputa palaciana na Corte de D. Pedro I
Rafael Cupello Peixoto1

Escrita em 15 de dezembro de 1830, a carta de Felisberto Caldeira


Brant Pontes de Oliveira e Horta, marquês de Barbacena, ao Imperador
D. Pedro I é um importante documento manuscrito que revela complexo
e intenso jogo político envolto na corte palaciana do primeiro monarca
brasileiro. Em outro artigo publicado recentemente,2 expus que a
referida missiva recebeu pouco destaque da historiografia especializada,
no que compete a estudos que tratam da abdicação de D. Pedro em 7 de
abril de 1831.3 A carta de Barbacena foi interpretada por muitos anos na
historiografia tradicional como símbolo da “nacionalidade brasileira”
ultrajada pelo “absolutismo” de D. Pedro I4 - visão, hoje, descartada5 -,
assim como, foi encarada pelos biógrafos do marquês como documento
“profético”. Isto porque, Barbacena alertou o Imperador para que
mudasse sua conduta política frente ao Parlamento e se afastasse
da “facção clementina”,6 pois se assim não o fizesse, seu reinado não
1 Docente do curso de História da Escola de Formação de Professores do Centro
Universitário Celso Lisboa (UCL) e Professor de História do Ensino Médio e Fundamental
II no Colégio Imaculado Coração de Maria (CICM) no Rio de Janeiro. É Doutor em História
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2018) e durante a realização da pesquisa de
doutoramento foi bolsista Capes.
2  CUPELLO, Rafael. “Palavras de constituição e brasileirismo na boca, [...] Português e
absoluto de coração”: o prognóstico histórico de Barbacena e a crise do 7 de abril de 1831”.
Veredas da História, v. 11, n. 1, p. 241-272, 2018.
3 Gladys Sabina Ribeiro e Vantuil Pereira fizeram importante debate sobre a
historiografia do Primeiro Reinado e a abdicação de D. Pedro I e em nenhum momento
o papel de Barbacena, naquela conjuntura, foi mencionado. Cf. RIBEIRO, Gladys Sabina;
PEREIRA, Vantuil. O Primeiro Reinado em revisão. In.: GRINBERG, Keila; SALLES,
Ricardo (org.). O Brasil Imperial: 1808-1831. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009, p. 137-173.
4  RODRIGUES, José Honório. O Parlamento e a evolução histórica. v. 2, t. I. Brasília:
Senado Federal, 1972, p. 83.
5  Numa perspectiva crítica a essa interpretação, Gladys Sabino Ribeiro reproduziu
trechos da carta de Barbacena para refutar essa abordagem historiográfica, que reeditou,
segundo suas palavras, os “partidos” “português” e “brasileiro”, dando “sentido às lutas
contra as supostas “recolonização” e “restauração”, respectivamente em 1822 e em 1831”
Cf. RIBEIRO, Gladys Sabino. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos
antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ, 2002, p. 243.
6  Nomenclatura desenvolvida pelo marquês de Barbacena para se referir à existência
do “Partido Português” instalado na corte palaciana de D. Pedro I sob a liderança de
José Clemente Pereira, que contava com o apoio dos conselheiros João da Rocha Pinto
e Francisco Gomes da Silva. Cf. AGUIAR, Antônio Augusto de. A vida do marquês de
Barbacena. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1896, p. 803-810.

55
Entre a província e a nação

duraria mais de seis meses. Escrita pouco mais de três meses antes da
Abdicação, o registro de Barbacena foi usado por seus biógrafos como
prova irrefutável de sua sagacidade política ao “profetizar” o 7 de abril de
1831.7 Em outro momento do artigo supracitado,8 defendi que a missiva
de Barbacena não deve ser percebida como profética. Na verdade, ela
foi produto de um sujeito influenciado por pensamento moderno, que
ressignificou o conceito de “história”, surgido a partir das reflexões
iluministas e dos adventos da Revolução Francesa e Industrial, e que
permitiu o surgimento da filosofia da história inaugurando o que hoje
compreendemos como “modernidade”.9
Todavia, apesar da carta não poder ser configurada nem como um
“símbolo da nacionalidade”, nem como um elemento “profético”, isto
não quer dizer que o referido documento não tenha relevância analítica.
Pelo contrário, Barbacena fez reveladora exposição dos bastidores do
seu Ministério (dez. 1829 a out. 1830) evidenciando intrigas e disputas
políticas dentro da corte palaciana de D. Pedro I. Tal missiva serve
como importante instrumento de pesquisa a fim de identificar os grupos
políticos que circulavam o primeiro monarca. Sendo assim, procuraremos
ao longo deste capítulo apresentar as disputas políticas palacianas da corte
de D. Pedro I, tendo na missiva de Barbacena nosso ponto de partida.
Primeiramente, não custa relembrar a retórica discursiva
presente no cenário político brasileiro do Primeiro Reinado. Naquele
tempo, ainda não havia se consolidado consenso sobre os elementos
formadores de uma nacionalidade “brasileira”.10 Esta estava em
7 Cf. AGUIAR, Antônio Augusto. A vida do marquês de Barbacena... Op. cit., nota
4; CALÓGERAS, Pandiá. O marquês de Barbacena. Brasília: EdUnB, 1982; OTÁVIO
FILHO, Rodrigo. Figuras do Império e da República. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zélio
Valverde, 1944.
8 CUPELLO, Rafael. “[...] Palavras de constituição e brasileirismo na boca, [...]
Português e absoluto de coração [...]”... Op. cit., nota 1.
9 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. da PUC-Rio, 2006. Na verdade, as asserções
desenvolvidas pelo marquês de Barbacena não podem ser catalogadas dentro de uma
leitura de prognóstico de caráter político-didático, pautada em uma percepção setecentista
de “história”, isto é, numa característica tradicional de mestra, na qual o passado (o
conhecimento histórico) possibilitava ensinar/modelar o presente, controlando o futuro.
Assim, os argumentos expostos por Barbacena não buscavam ensinar pelo exemplo e
imitação do passado o caminho a ser traçado por D. Pedro I, que, repetindo os modelos
anteriores, garantiria o sucesso de seu governo. Na verdade, eram instruções de como reagir
a um futuro que ainda estava por vir. Cf. CUPELLO Rafael. “[...] Palavras de constituição e
brasileirismo na boca, [...] Português e absoluto de coração [...]”... Op. cit., p. 247-255, nota
1.
10 Sobre a origem e a difusão do nacionalismo, Cf. ANDERSON, Benedict.

56
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

construção, experimentando inúmeros embates ao longo de todo o


Primeiro Reinado na rua, na imprensa, no púlpito do Parlamento e
em outros espaços de poder, reunindo “brasileiros” e “portugueses”,
“estrangeiros” e “pardos”, “negros” e “africanos”, uma massa de gentes,
como bem destacou Gladys Ribeiro.11 De fato, os “valores nacionais”
eram muito frágeis, sendo usados muito mais como instrumento de
conotação política, a fim de atacar rivais e projetos destoantes do que
necessariamente representar um claro manifesto de “amor pátrio”.
Assim como outros agentes políticos envoltos nas disputas
palacianas da corte de D. Pedro I, o marquês de Barbacena fez uso
da retórica do “portuguesismo”12 como estratégia política para obter
o apoio e a confiança do monarca a fim de captar para si o “capital
simbólico”13 necessário para se sobrepor no campo político imperial,
neste caso a corte palaciana do Imperador, além de pressionar o
próprio monarca a se afastar da “facção clementina” e aproximá-lo de
seu grupo político. Antes mesmo da produção de sua “carta profética”,
Barbacena produziu outro manuscrito em que fez uma chave de leitura
sobre os elementos que compunham o “ser português” no conturbado
cenário político do reinado de D. Pedro I, no qual fez uso de discurso
antilusitano, artificio que – como sublinharemos mais a frente – estará
novamente presente em sua missiva de 15 de dezembro de 1830.
Escrito, provavelmente, no final de 1829 e nomeado “Governo
segundo a Constituição”, o manuscrito expôs as convicções de Barbacena
a respeito do funcionamento de uma monarquia constitucional,
além de traçar a situação política do Império do Brasil e estabelecer
caminhos a serem tomados, a fim de garantir a “glória do Imperador” e
a “prosperidade do Brasil”. O documento é tão notável que merece ser
transcrito de forma integral:

Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São


Paulo: Companhia das Letras, 2008. Para uma abordagem distinta à de Anderson, Cf.
HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
11  RIBEIRO, Gladys Sabino. A liberdade em construção... Op. cit., nota 4.
12  “Portuguesismo” pode ser entendido como a identidade que foi sendo convertida
ao “ser português” ao longo do Primeiro Reinado percebida como representante do
“absolutismo”, da “recolonização” e do “autoritarismo”. Cf. RIBEIRO, Gladys Sabino. A
liberdade em construção... Op. cit., p. 57 et seq.
13  Segundo Pierre Bourdieu, o poder simbólico nada mais é do que a capacidade que
um indivíduo ou grupo obtém para si um capital simbólico capaz de conquistar o poder
político. Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

57
Entre a província e a nação

Governo segundo a Constituição

As reformas, que a Constituição precisa, serão feitas por meios


legais, e quando se oferecer a ocasião oportuna.

Conservar toda a força de mar e terra sempre disponível e


concentrada. Nas Províncias a tropa e Marinha que basta para a
polícia, e entreter [?] a comunicação. Os depósitos de Tropa no Rio,
e S. Catarina, o da Marinha no Rio.

O expediente de cada Secretaria é privativo do respectivo Secretário,


mas nenhuma reforma, ou nomeação de principais empregos será
feita sem prévia participação aos Colegas. Os planos, ou negócios de
geral administração serão discutidos no Conselho dos Ministros, e
submetidos ao Conselho de Estado. Portanto [?] nenhuma Proposta
será feita à Assembleia sem preceder esta formalidade.

No Estado atual das Luzes há em todas as Nações três divisões


naturais, e também entre nós – Democratas, ou Liberais –
Absolutistas – Constitucionais, ou Imperiais. O Governo não
os deve perseguir, mas conter cada um nos justos limites. Existe,
porém entre nós outro partido chamado Português, que melhor
se chamará – partido inimigo – o qual deve desaparecer, e quem
quiser tomar aquela bandeira, será considerado inimigo do Império,
e do Imperador, e se estiver no Seu Serviço, traidor. Os Brasileiros
nascidos no Brasil ou em Portugal devem ter um só interesse = glória
do Imperador – prosperidade do Brasil. Quando o Brasileiro nascido
em Portugal portando [?] por esse título preferência de confiança,
e amor do Soberano, comete um crime, que se não for filho de
vingança [?], e traição, é pelo menos de estupidez [?] igualmente
perigosa. O Ministério deve sufocar este germe da universal queixa
dos súditos contra o Soberano.

Nenhum ato do Imperador se manifestará por qualquer órgão, que


não seja o do Ministro da Repartição. O Ministro que consentir a
ingerência externa de qualquer pessoa na Sua repartição é indigno
da confiança do Imperador, e não pode fazer parte de um Ministério
escolhido pelo Soberano para lhe dizer sempre a verdade. A
Conservação das fórmulas é a salvaguarda dos direitos do Trono,
e dos indivíduos: assim é mister que se guardem no Paço, e nas
Secretarias, nas Coisas, e nas pessoas.

Nada se fará de salto, e bruscamente exceto a separação de gente


imoral, que nem se deve aproximar do Trono, nem dos primeiros
funcionários do Estado.14

14  Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Fundo Marquês de Barbacena. ANRJ, BR AN,

58
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

O texto acima é bastante revelador. Nele, o marquês destacou a


necessidade de exterminar o “Partido Português”, visto como inimigo
do Império e do Imperador. Barbacena observou a atuação de homens
vinculados a essa “facção” como se fossem “inimigos do Brasil”.
Como um constitucional moderado, o marquês defendeu a liberdade
política das oposições desde que contidas nos “justos limites” da lei,
isto é, da Carta Constitucional, diferentemente do que supostamente
propunham os componentes do “Partido Português”. A eles, foi
reservada preocupação especial, vendo a necessidade de exterminá-los
do País. Sua ojeriza a esse “partido” pode ser entendida na medida em
que percebemos que Barbacena via seus integrantes como “inimigos
do Império e do Imperador”. Mais uma vez, a questão das identidades
nacionais em formação no Primeiro Reinado fica latente. Assim, para
o marquês, a ameaça à unidade imperial estava naqueles “Brasileiros
nascidos no Brasil ou em Portugal” que conjugassem dos valores
da bandeira do “partido português”, isto é, do despotismo político,
voltando-se contra a “glória do imperador”. Ao “brasileiro nascido em
Portugal”, o recado era mais direto: trair a pátria adotiva era quebrar o
“título de confiança” dado pelo soberano. Evidencia-se, assim, o clima
de vigilância que “adotivos” e “portugueses” viviam no Brasil pós-
independência sempre observados com enorme desconfiança pelos
“brasileiros natos”.15 O curioso é que, ainda nesse momento, Barbacena
identifica D. Pedro I, português de nascimento, como defensor da
“causa brasileira” e, por conseguinte, do constitucionalismo. Posição
que, com o aproximar dos anos de 1830, foi ficando cada vez mais
difícil de defender. A própria demissão do Ministério Barbacena
acelerou ainda mais a associação que as “facções” liberais faziam de
D. Pedro I. Sempre reticentes com as ações autoritárias do Imperador,
os liberais vinculavam-no ao “despotismo”, facilitando, assim, a
construção da imagem do “português” como um “absolutista” e
“inimigo da Independência do Brasil”.16
Todavia, outro ponto chama a atenção das anotações de Barbacena
sobre o “Governo segundo a Constituição. Nele, está desvendada a visão
de monarquia constitucional defendida pelo marquês de Barbacena.
Fica claro com que nenhuma decisão política administrativa poderia
ser submetida à Câmara dos Deputados sem que antes fosse precedida

RIO.Q1.0.MFA.1, p. 1-2.
15  RIBEIRO, Gladys Sabino. A liberdade em construção... Op. cit., p. 87-143, nota 4.
16  Ibidem, p. 83-87.

59
Entre a província e a nação

de plena discussão no Ministério e no Conselho de Estado. Posição que


sempre defendeu ao longo de sua trajetória política. Numa leitura mais
ampla de suas correspondências, Barbacena constantemente alertou
o Imperador, “Chalaça”, ministros, conselheiros e demais sujeitos do
“campo político” imperial que os temas fulcrais da política nacional
deveriam ser primeiro e conjuntamente discutidos por conselheiros
de Estado e ministros para que depois fossem repassados à Assembleia
Geral.17
Nessas anotações, Barbacena avigorava a necessidade de unidade
política do Ministério, isto é, que secretários e ministros defendessem as
propostas do governo sem qualquer dissidência interna, bem como que
nenhuma força externa ou pessoa alheia ao “Ministro da Repartição”
respondesse, manifestasse ou opinasse sobre os “negócios de geral
administração” do Governo. Nesse sentido, o marquês procurou atacar
problemas crônicos das administrações anteriores dos antigos gabinetes
do primeiro monarca: a intromissão do Imperador sobre assuntos que
cabiam às repartições e secretarias de cada Ministério, a ingerência do
“Gabinete Secreto” sobre D. Pedro I e a falta de unidade política entre
ministros e governo. Quando observamos as falas dos ministros nos
Anais da Câmara dos Deputados, evidencia-se que não havia qualquer
coesão entre eles, suas pastas ministeriais e o governo, e muito menos
integração entre eles e o monarca.18
Portanto, a forte presença do antilusitanismo na carta de 15 de
dezembro de 1830, escrita pelo marquês de Barbacena e endereçada a D.
Pedro I, não pode ser interpretada como “marco fundador” de pretensa
nacionalidade “brasileira”. Na verdade, deve ser vista sobre uma ótica
política e inserida dentro das disputas palacianas da corte do primeiro
monarca. Passemos então a examinar a referida correspondência. Na
redação de seu texto, Barbacena expôs toda sua reprovação para com as
atitudes “portuguesas” de D. Pedro I e de parte de sua corte palaciana.
Na carta, o marquês relacionou a defesa do “constitucionalismo”, o
respeito às instituições monárquicas (Câmara, Senado e Conselho de
Estado) e um constante diálogo com a Câmara Baixa como características
que representavam as supostas qualidades “brasileiras”. Procurando
reforçar esses elementos a uma pretensa identidade dos “brasileiros”,
Barbacena relembrou ao monarca que:

17  Cf. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Fundo Marquês de Barbacena.


18  Cf. ANAIS da Câmara dos Deputados, sessões de 1826 a 1831.

60
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

identificando-se com os Brasileiros, proclamou a Independência,


fundou o Império, e conseguiu o reconhecimento de todas as nações.
Ainda mais dissolveu a Constituinte, e suplantou a Confederação do
Equador.

Nem os ataques externos, nem as sublevações internas triunfaram de


V. M [inelegível], pelo contrário, quer V. M. fosse, quer mandasse,
a qualquer ponto do Império suas ordens foram respeitadas, a
tranquilidade restabelecida, e o Nome de V. M. era respeitado
pelos Chefes de Famíliacomo símbolo da integridade do Império,
e felicidade Brasileira. Apenas V. M. I. mudou de comportamentos
voltando suas afeições Portuguesas, sua autoridade começou a
diminuir, e em pouco mais de dois anos quase desapareceu. Tanto
pode José Clemente, Francisco Gomes!19

Portanto, ao se identificar com os “brasileiros”, D. Pedro I


tinha sua autoridade respeitada como “símbolo da integridade do
Império, e felicidade Brasileira”. Junto aos “brasileiros”, proclamou
a Independência, fundou o Império e conseguiu o reconhecimento
de todas as nações. Na visão de Barbacena, até pontos polêmicos
do seu governo, que desagradaram parte significativa dos cidadãos
do Império, como a dissolução da Constituinte e a repressão
à Confederação do Equador, teriam contado com o apoio dos
“brasileiros”. No entanto, não surpreende a posição do marquês com
os referidos eventos. Para ele, ambos questionaram a soberania na
figura do imperador e combatê-los não era ir contra os princípios
liberais e constitucionais da época. Barbacena aprovou a dissolução da
Constituinte, porque via nas discussões que acabaram por prevalecer
na referida assembleia um descaminho para a “democracia” – termo
entendido pelo marquês como sinônimo de “anarquia” – quando
parte dos deputados mais radicais propuseram a soberania da
nação residindo na própria Câmara.20 Ele era a favor de um sistema
bicameral, na qual a soberania seria compartilhada entre monarca e
Assembleia, mas com um Executivo forte, nas mãos do Imperador,
dando a ele o poder de veto e dissolução da Câmara Baixa, a fim de
evitar, precisamente, a “anarquia”, isto é, a “desordem”. No caso da
Confederação do Equador, o marquês condenava os confederados por
ignorarem a autoridade do imperador sobre a província, ao desafiá-lo
19  Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Fundo Marquês de Barbacena. ANRJ, BR AN,
RIO Q1.0.COR.57, p. 19-20, grifos nossos.
20  CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILE, Marcello (org.). Guerra
Literária: panfletos da Independência (1820-1823). v. 1. Belo Horizonte: EdUFMG, 2014,
p. 34.

61
Entre a província e a nação

ao proclamarem a autonomia do território pernambucano frente ao


Império do Brasil.21
No contraponto aos valores “constitucionais” dos “brasileiros”,
o “despotismo”, o “absolutismo” e a “perfídia” são características
vinculadas aos “portugueses”. Mas, não eram todos os lusos que
mereciam a desaprovação de Barbacena, mas sim uma quadrilha de
“criados [e] caixeiros Portugueses, que, aliás, constituem a escória
do que há de mais vil, e ignorante na Europa civilizada”.22 A fim de
confirmar sua simpatia pelos lusitanos, ou pelo menos pela maioria
deles, afirmou:
não faltará, senhor, quem diga a V. M. I. que a excessiva ambição,
ou inveterado ódio aos portugueses, são os únicos agentes desta
representação; derradeiro, [...] mas a verdade é que nem tal ambição,
nem tal ódio existem.

No mesmo dia em que o tesouro declarar o resultado do exame


das contas que dei, cuidarei de procurar navio para deixar o
Brasil, e preferirei Sintra a qualquer outro ponto da Europa para
minha residência; si então já houver segurança de pessoa, e bens;
tendo substituído ao atual tirânico governo do senhor D. Miguel,
outro mais conforme as luzes do século, e às justas aspirações da
humanidade.23

Ao declarar que residiria em Sintra, cidade próxima a Lisboa, assim


que o resultado do exame de suas contas (de Londres) fosse emitido pelo
Tesouro Nacional,24 Barbacena buscava reforçar junto a D. Pedro I que
21  Sobre a Constituinte de 1823, Cf. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas
e Constitucionais: A cultura política da Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan/
FAPERJ, 2003. Sobre as revoluções pernambucanas de 1817 e 1824, Cf. MELLO, Evaldo
Cabral de. Rubro veio. O imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1997; MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência. O federalismo
pernambucano de 1817 e 1824. São Paulo: Editora 34, 2004; MOTA, Carlos Guilherme.
Nordeste 1817: estruturas e argumentos. São Paulo: Perspectiva, 1972; VILLALTA, Luiz
Carlos Pernambuco, 1817, “encruzilhada de desencontros” do Império luso-brasileiro.
Notas sobre as ideias de pátria, país e nação”. Revista USP, São Paulo, n. 58, p. 58-91, 2003;
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. O Patriotismo Constitucional: Pernambuco,
1820-1822. São Paulo: Hucitec; Recife: UFPE, 2006.
22  AGUIAR, Antônio Augusto. A vida do marquês de Barbacena... Op. cit., p. 809,
nota 3.
23  Ibidem, grifos nossos.
24 Barbacena faz referência as acusações que recebeu sobre má administração do
dinheiro público em sua viagem diplomática em que era o tutor responsável pela rainha
infanta D. Maria da Glória. Sobre o referido episódio. Cf. CUPELLO, Rafael. O marquês
de Barbacena: política e sociedade no Brasil Imperial (1796-1841). Tese (Doutorado em
História Política). Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade

62
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

o “inveterado ódio aos portugueses”25 não existia. É bastante plausível


que o julgamento produzido pelo marquês de Barbacena a respeito
destes “criados e caixeiros portugueses” – que nada mais era do que
outra forma de se remeter e atacar a “facção clementina” – estivesse sob
influência direta dos acontecimentos que vivenciou na Europa enquanto
defendia o trono de D. Maria da Glória frente aos miguelistas, isto é,
dos partidários do absolutismo em Portugal. Assim, não surpreende
que ele tenha associado Clemente Pereira, Francisco Gomes e Rocha
Pinto entre outros – que compunham a referida facção – a “despóticos”,
bem como carregasse nas tintas o temor da “recolonização”, porque
via aqueles sujeitos como defensores do “absolutismo”, como também
eram os miguelistas em Portugal. Daí, talvez a dicotomia que criou entre
“liberdade” e “despotismo”, relacionando “brasileiros” e “portugueses”,
respectivamente. Nessa ótica, outro ponto exposto por Barbacena
merece destaque.
Na verdade, os exames analíticos desenvolvidos pelo marquês
de Barbacena, ao longo de sua carta, só foram possíveis devido ao
“espaço de experiência”26 adquirido pelo próprio junto ao “campo
político”27 imperial, círculo onde atuou ao longo de todo o Primeiro
Reinado. Foram suas experiências políticas adquiridas nas disputas
palacianas da corte de D. Pedro I que possibilitaram-no descrever
e identificar a atuação dos grupos políticos que circundavam o
primeiro monarca e a atuação deles sobre o Imperador, especialmente
a “facção antibrasileira”28 liderada por José Clemente Pereira e

do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018, p. 195-228.


25  AGUIAR, Antônio Augusto. A vida do marquês de Barbacena... Op. cit., p. 809,
nota 3.
26  Sobre o conceito de “espaço de experiência”. Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro
Passado... Op. cit., nota 8.
27 Para Bourdieu, o “campo” deve ser entendido como espaço social de relações
objetivas, no qual as relações imediatamente visíveis entre os agentes envolvidos em um
determinado campo disfarçam “as relações objetivas entre as posições ocupadas por esses
agentes” no espaço social, isto é, reproduzem o modo de pensamento econômico em que
uma dada sociedade se encontra inserida. Dessa forma, segundo o sociólogo francês, é
possível encontrar nos “campos” propriedades gerais que podem ser aplicadas nos diferentes
domínios – político, social, cultural, econômico, científico e etc. –, mas que guardam em si
universos relativamente autônomos. Destaca que “a teoria geral da economia dos campos
permite definir a forma específica de que se revestem, em cada campo, os mecanismos e os
conceitos mais gerais”, os quais possibilitam a compreensão mais ampla do funcionamento
de todo o espaço social e a maneira pela qual as classes dominantes exercem seu “poder
simbólico” sobre as classes dominadas. Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico... Op.
cit., p. 66-69, nota 12, grifos nossos.
28  Outro termo utilizado por Barbacena em sua missiva para se referir ao grupo político

63
Entre a província e a nação

Francisco Gomes da Silva, o “Chalaça”. Na visão de Barbacena, eles


eram os representantes do “Partido Português”, “facção” política
que, na concepção dele, defendia o “absolutismo”, a “recolonização”
e o “autoritarismo”. Ao criticar a postura de D. Pedro I, que se
aproximara novamente da “ala clementina”,29 Barbacena sentenciou
que tal posicionamento de “palavras de constituição e brasileirismo
na boca”,30 mas com atitudes de “português e absoluto de coração”31
levariam o monarca a desgraça, aparecendo o resultado (abdicação)
em “poucos meses, talvez não cheg[ando] a seis”.32
Desta forma, Barbacena retornou a uma chave de leitura que ele
próprio já havia declarado em outro documento – “Governo segundo a
constituição” –, quando destacou a necessidade de eliminar o “Partido
Português”, visto como inimigo do Império e do Imperador. Logo,
o descompromisso com o “constitucionalismo” perpetrado por D.
Pedro I e a “ala clementina” levaria o País à catástrofe, entendida aqui
como “desordem”, resultando num país de princípios “democráticos”,
interpretado pelas lideranças “moderadas” e “conservadoras” como
sinônimo de “anarquia”. Isso porque a “facção republicana”,33
opositora ao governo do imperador, inspirada nas ideias de Rousseau,
Montesquieu e Paine, defendia um alargamento do princípio de
“liberdade”, conjugando princípios liberais com ideias democráticas
e pleiteando reformas políticas e sociais profundas, como a extensão
da cidadania civil e política a todos os segmentos livres da sociedade.
A bandeira endossada pelos liberais “exaltados”34 encontrava
ligado a José Clemente Pereira. Cf. AGUIAR, Antônio Augusto. A vida do marquês de
Barbacena... Op. cit., p. 805, nota 3.
29  AGUIAR, Antônio Augusto. A vida do marquês de Barbacena... Op. cit., p. 810,
nota 3.
30  Ibidem.
31  Ibidem.
32  Ibidem.
33  A expressão foi utilizada por Barbacena em sua carta ao Imperador D. Pedro I.
Todavia, aqui, alargamos o significado original do termo, ampliando seu conceito ao associá-
los aos liberais “exaltados”, isso porque eram os “exaltados” que defendiam os “programas”
que eram criticados pelo marquês de Barbacena, ou seja, os princípios democráticos
e o alargamento de direitos sociais aos segmentos livres da sociedade imperial. Sobre os
“exaltados”. Cf. BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. “Os liberais exaltados: projeto e
ação”. In.: BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. O Império em construção: projetos
de Brasil e ação política na corte regencial. Tese (Doutorado em História Social). Programa
de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2004, p. 129-292; COSER, Ivo. O conceito de partido no debate político brasileiro
(1820-1920). Ler História, v. 67, p. 25-45, 2015.
34  Gladys Sabina Ribeiro critica a perspectiva analítica de Marcello Basile sobre o

64
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

eco nas ruas do Rio de Janeiro, bem como em outras províncias


imperiais desde 1829, causada pela impopularidade de D. Pedro I
e do ministério clementino.35 Para políticos de postura moderada
como Barbacena, a “liberdade” era compreendida como a garantia e
o respeito às instituições monárquicas, aos direitos estabelecidos na
Constituição e à divisão dos poderes entre o rei e os representantes
do povo (parlamento). Não havia qualquer preceito social igualitário.
Baseando-se na tradicional visão excludente sobre o Povo e a plebe.
O primeiro, com “P” maiúsculo, percebido como representante da
“boa sociedade”, isto é, lócus dos homens pensantes e capacitados,
responsáveis pela direção da nação e da plebe, essa última escrita
com “p” minúsculo, pois era lida como uma massa de ignorantes e,
portanto, deveria ser alijada de qualquer participação política.36 Daí,
Barbacena prezar a “Deus que não fosse geral”37 a revolução que se
avizinhava no Brasil, expondo o desconforto e o receio que a elite
política imperial tinha para com o populacho, isto é, a “arraia miúda”.

espaço de atuação “da rua”, pois considera que ele limita a ação desses movimentos aos
interesses das “facções” políticas daquela época. Segundo a autora em questão, defender tal
conceito é reproduzir o discurso das elites políticas imperiais que viam o “populacho” como
uma massa de ignorantes incapazes de se organizar politicamente. Cf. RIBEIRO, Gladys
Sabino. “A opinião pública tem sido o molho do pasteleiro”: o Caramuru e a conservação.
In.: CARVALHO. José Murilo; CAMPOS, Adriana Pereira. Perspectivas da cidadania
no Brasil Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 255-256. No entanto,
não percebemos o estudo de Basile como mero “reprodutor” dos discursos políticos da
elite política imperial sobre a “ação das ruas”. Na verdade, Basile destacou a autonomia
daqueles movimentos, sublinhando que as lideranças “exaltadas” procuraram conquistar a
simpatia “da plebe”, a partir do “programa partidário” que defendiam, a fim de apropriar-
se de “capital” necessário para disputar o controle dos espaços tradicionais de poder
– Parlamento e Corte – ocupados, majoritariamente, por “moderados” e “caramurus”.
Os próprios “caramurus” também buscaram legitimar suas bandeiras políticas junto às
camadas populares, sendo por elas aceitas ou rejeitadas, segundo o que estivesse de acordo
com as reivindicações da “arraia miúda”. Logo, o autor não retirou a autonomia de ação dos
movimentos de rua como argumentado por Gladys Ribeiro. Nesse sentido, nosso trabalho
se aproxima da linha interpretativa de Marcello Basile. Cf. BASILE, Marcello Otávio Neri
de Campos. O Império em construção... Op. cit., nota 32.
35 Sobre as agitações do período regencial, Cf. MOREL, Marco. O período das
Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
36  Sobre as leituras a respeito dos conceitos de liberdade no período imperial, bem
como a identificação política das principais “facções” que compunham o cenário político
do final do Primeiro Reinado e início das regências, Cf. BASILE, Marcello Otávio Neri de
Campos. O Império em construção... Op. cit., nota 32. Sobre uma perspectiva analítica
diferente no que diz respeito à leitura de liberdade no mesmo período, Cf. MATTOS, Ilmar
Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: Editora Hucitec, 2004; RIBEIRO, Gladys
Sabino. “A opinião pública tem sido o molho do pasteleiro”... Op. cit., nota 4.
37  AGUIAR, Antônio Augusto. A vida do marquês de Barbacena... Op. cit., p. 810,
nota 3.

65
Entre a província e a nação

Mas, não é apenas o discurso antilusitano do marquês que merece


a nossa atenção na referida correspondência de 15 de dezembro de 1830.
Como afirmamos no início deste artigo, Barbacena apontou ao longo
da carta a existência de sujeitos políticos que circundavam o primeiro
monarca. Segundo nossa perspectiva analítica é possível identificar pelo
menos duas tendências da “direita conservadora”38 dentro dos “áulicos
do Primeiro Reinado”.39
Primeiramente, faz-se necessário definir o que entendemos por
“direita conservadora” no oitocentos. Segundo Christian Edward Cyril
Lynch, na primeira metade do século XIX, havia duas grandes tendências
políticas: o liberalismo, que, por propor mudanças mais radicais na
estrutura social daquela época, seria de “esquerda”, enquanto que
“conservadorismo”, por se opor a essas mudanças, estaria à “direita”.40
Todavia, Lynch destacou que havia duas espécies de discursos
38 Conceito desenvolvido por Christian Edward Cyril Lynch. Para uma melhor
definição sobre o conceito de “conservadorismo” e suas várias interpretações, Cf. LYNCH,
Christian Edward Cyril. Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o
pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836). Belo Horizonte: EdUFMG,
2014, p. 23-44.
39  Segundo Nelson Ferreira Marques Júnior, os áulicos devem ser entendidos como o
grupo político que apoiou o Imperador D. Pedro I e que tinha uma concepção de monarquia,
na qual a soberania da nação repousava na cabeça da Coroa, como forma de resguardar os
interesses nacionais, com o poder de “veto imperial sobre as decisões da Assembleia, a fim
de garantir a ordem e a tranquilidade pública” (p. 26). De acordo com Marques Júnior,
eles foram os principais articuladores do poder político do monarca, após a outorga da
Constituição de 1824, procurando consolidar a percepção de monarquia que detinham, em
que o Imperador era o legítimo e único representante da nação. Cf. MARQUES JÚNIOR, N.
F. Os verdadeiros constitucionais, amigos do rei e da nação: áulicos, ideias, soberania na
corte fluminense (1824-1826). Dissertação (História Política). Programa de Pós-Graduação
em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013, p.
26.
40 Para definir o que pensamos aqui sobre “direita” e “esquerda” no oitocentos,
partimos da definição conceitual oferecida por Christian Lynch. Conforme o autor, para
fins de análise do discurso político, a identificação de grupos de direita ou de esquerda não
deve ser feita apenas pelo exame de seu conteúdo ideológico, “que é demasiado subjetivo
e mutável no tempo. Seria mais apropriado compreender a esquerda e a direita a partir
de seus lugares do espectro político, ou seja, como programas contrapostos que traduzem
contrastes de interesses e valorações a respeito da direção a ser seguida pela sociedade.
Enquanto lugares, direita e esquerda exprimem divergências inarredáveis por existirem
em qualquer sociedade e que não tem como desaparecer. [...] é preciso frisar que direita e
esquerda são posições que decorrem da própria natureza antagônica da atividade política.
Enquanto espaço do entrechoque e da polêmica entre contrários, a política exige de seus
atores que se definam em relação uns aos outros para legitimar sua aspiração de poder”.
De acordo com Lynch, pela adoção do critério mais formal e intemporal, “torna-se possível
identificar a presença de direitas e esquerdas desde o advento do sistema constitucional e
representativo na passagem do século XVIII para o XIX”. Cf. LYNCH, Christian Edward
Cyril. Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia... Op. cit., p. 24, nota 37,
grifos nossos.

66
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

antiliberais: o “legitimismo” e o “conservadorismo” propriamente dito.


Segundo o autor, por “legitimismo” ou “tradicionalismo”, entende-
se todo sujeito que carregava uma ideologia reacionária, contrária ao
liberalismo, pretendendo retornar “às matrizes organicistas e católicas
do Antigo Regime”.41 Assim, os “partidários” dessa corrente defendiam
quatro objetivos principais:
adoção de um catolicismo integral e de uma cultura sociopolítica
que não contrariasse os princípios da fé estatuídos pela Igreja
romana, defesa do absolutismo monárquico e o restabelecimento
da hierarquia social entre as três ordens (nobreza, clero e povo).42

Entretanto, Christian Lynch defendeu que, embora o


“legitimismo” fosse considerado conservador, porque de direita, seu
discurso não representava uma ideologia de conservação, mas sim
uma reação às mudanças provocadas pelo constitucionalismo que já
havia tomado o poder com a derrocada das monarquias tradicionais
na Europa oitocentista. De fato, os ideólogos do “legitimismo”
reaprenderam a política do Antigo Regime para apresentá-lo como uma
ideologia “tradicionalista”, a fim de reagir ao liberalismo.43 Todavia, os
“tradicionalistas” não se comportaram da mesma maneira na Europa
e nas Américas, pois as condições sociopolíticas apresentadas em cada
uma das regiões e a maneira pela qual a ideologia liberal adentrou a
América foram distintas das europeias. No caso do Brasil, a influência
legitimista foi de uma fraqueza surpreendente, uma vez que, por aqui,
o liberalismo virou sinônimo de independência nacional. Porém,
Lynch destacou que isso não inutilizou o discurso “tradicionalista”
no País. Se no Brasil não atacavam a instituição da monarquia
constitucional, ele se apresentou pela “defesa da monarquia legítima,
da união entre Estado e Igreja e da oposição ao casamento civil”.44 Já
os “conservadores”, propriamente ditos, não se opunham ao advento
do governo constitucional representativo, “limitando-se a resistir às
medidas ou concepções esposadas pelo liberalismo radical, que julgava
exageradas”.45 Segundo o autor em questão, os “conservadores” eram
liberais e reconheciam que viviam em “tempos modernos”, mas não

41  LYNCH, Christian Edward Cyril. Monarquia sem despotismo e liberdade sem
anarquia... Op. cit., p. 25.
42  Ibidem.
43  Ibidem.
44  Ibidem, p. 29.
45  Ibidem.

67
Entre a província e a nação

compactuavam com o “liberalismo de esquerda” entendido por Lynch


como ligado:
ao racionalismo das Luzes francesas, politicamente calcado no
jusnaturalismo contratualista, com sua otimista filosofia da história
como progresso, que tomava o passado como sinônimo de trevas e
propunha uma ruptura com a história pela via da razão.46

Por isso, os “conservadores” não estavam próximos dos


“legitimistas”, mas acreditavam que “tão absurdo quanto defender a
tese de que o poder decorria do direito divino era sustentar que o
único governo legítimo era aquele derivado da eleição popular”.47
Assim, o conservadorismo pode ser interpretado como uma “espécie
de liberalismo – um liberalismo de direita, de caráter reformista
e antirrevolucionário.48 A trajetória política de Barbacena ajuda a
exemplificar o tipo de “conservador” proposto por Lynch. O temor
pelas agitações da “arraia miúda”, a interpretação que dava ao conceito
de “democracia” confundida por ele como “anarquia”, reforça as
premissas teóricas de que ele era um constitucionalista de tendência
liberal-moderada; portanto, um “conservador” na concepção
desenvolvida por Christian Lynch.
Feita as explicações necessárias sobre o que entendemos
como “conservadorismo de direita”, a existência de duas tendências
ideológicas dentro dos “áulicos do Primeiro Reinado”, como apontada
pelo marquês de Barbacena, demonstra a necessidade de ampliar a
definição conceitual oferecida por Marcello Basile sobre essa “facção”.
Para ele, os “áulicos” podem ser entendidos como um agrupamento
político identificado a um liberalismo conservador, à maneira de
Edmund Burke, calcado em valores aristocráticos, mas incorporando
postulados liberais básicos (divisão de poderes, direitos de cidadania,
constitucionalismo e representação política).49 No entanto, outros

46  Cf. LYNCH, Christian Edward Cyril. Monarquia sem despotismo e liberdade sem
anarquia... Op. cit.
47  Ibidem.
48  LYNCH, Christian Edward Cyril. Monarquia sem despotismo e liberdade sem
anarquia... Op. cit., p. 30. Para uma interpretação distinta da de Lynch sobre o conceito de
Conservador. Cf. ROMANO, Roberto. O pensamento conservador. Revista de sociologia,
n. 3, p. 21-31, 1994. Para uma história do conceito, Cf. BOBBIO, Norberto. Dicionário de
política. 1 ed. Brasília: EdUnB, 1998, p. 242-246.
49  BASILE, Marcello. Governo, nação e soberania no Primeiro Reinado: a imprensa
áulica do Rio de Janeiro. In.: CARVALHO, José Murilo de [et. al.]. Linguagens e fronteiras
do poder. Rio de Janeiro: EdFGV, 2011, p. 174.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

trabalhos sobre os “áulicos” resultaram em interpretações que


tenderam a homogeneizar o referido agrupamento. Um exemplo
disso está na pesquisa de Nelson Ferreira Marques Júnior.50
Por mais que Marques Júnior procure apontar rivalidades
“ideológicas” entre os “áulicos do Primeiro Reinado”, sua
interpretação acaba, em muitos momentos, homogeneizando,
excessivamente, o comportamento daquela “facção”, principalmente,
quando defendeu que entre o fechamento da Assembleia Constituinte
(1823) e a abertura dos trabalhos parlamentares em 1826, os “áulicos”
se consolidaram como grupo político hegemônico e procuraram
impor um “programa ideológico” em que o conceito de soberania
estava depositada na figura do Imperador, sendo este visto como o
legítimo e único representante da nação.51 Além do mais, Marques
Júnior ampliou em demasia a composição social dos “áulicos” de D.
Pedro I, classificando como pertencentes daquela “facção” todos os
sujeitos que ocuparam cargos em ministérios do monarca, ou foram
senadores no Primeiro Reinado, ou, ainda, defenderam o monarca
na imprensa.52 Por mais que Marcello Basile tenha destacado que
o grupo era composto por publicistas, parlamentares, aristocratas,
comerciantes, cortesãos e burocratas, a maioria de origem portuguesa,
isso não quer dizer que todos os homens políticos que ocuparam os
postos na estrutura administrativa do Império – em especial o Senado
e os Ministérios – fossem “áulicos”. É fundamental compreender que
esse indivíduo precisava circular, “fazer presença” na corte palaciana
de D. Pedro I e conquistar a confiança pessoal do monarca, a fim de
que pudesse angariar para si o “título” de “áulico”. Logo, é de suma
importância conceber a corte palaciana do Imperador como principal
lócus de poder das decisões políticas: primeiramente, por sabermos
que nossa cultura política herdou e preservou, mesmo no governo
monárquico-constitucional de D. Pedro I, comportamentos típicos
do Antigo Regime,53 em segundo lugar, não podemos nos esquecer

50  MARQUES JÚNIOR, Nelson Ferreira. Os verdadeiros constitucionais, amigos do


rei e da nação... Op. cit., nota 38.
51  Ibidem.
52  Ibidem.
53 HOLANDA, Sérgio. Buarque de. “A herança colonial: sua desagregação”. In.:
HOLANDA, Sérgio. Buarque de (org.). O Brasil monárquico: o processo de emancipação.
t. II, v. 4. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 13-47.

69
Entre a província e a nação

da participação do denominado “Gabinete Secreto”54 nas decisões do


monarca, situação tão reclamada por opositores à sua existência, entre
eles o próprio marquês de Barbacena.
Na verdade, a partir do estudo da trajetória do marquês de
Barbacena e das estratégias que ele desenvolveu para alcançar o topo
do “campo político” imperial,55 bem como ao confrontar a missiva de
dezembro de 1830 escrita pelo marquês com as Memórias oferecidas
a Nação Brasileira [...],56 publicada por Francisco Gomes da Silva, o
“Chalaça”, em 1831, fica explícito que nunca houve uma “homogeneidade
ideológica” entre os “áulicos”. Apesar de consideramos que a definição
de Basile é correta no que consiste ao conceito de soberania partilhado
pelos “áulicos”, defendemos que dentro do mesmo grupo havia uma ala
“tradicionalista”, que, muitas vezes, misturou os valores monárquicos
constitucionais aos preceitos tradicionais do Antigo Regime. Barbacena
apontou essa dicotomia quando expôs os bastidores de seu Ministério

54 Segundo Octávio Tarquínio de Sousa, nada suscitou mais desconfiança entre


brasileiros do que a preferência dada por D. Pedro I a portugueses em sua roda palaciana.
Segundo o autor, seria natural que o primeiro monarca tivesse amigos e criados portugueses,
tendo em vista que ele nascera em terras lusitanas. No entanto, a singularidade de nossa
independência, faria com que esta discriminação aos “brasileiros adotivos, portugueses
que adotaram o Brasil após a separação política, ocorresse, mas que nem sempre era justa.
O biógrafo de D. Pedro I defendeu que muitos personagens colocaram enorme ênfase
no papel do “Gabinete Secreto”, mas é verdade “que existiu algo de parecido”. Segundo
Tarquínio de Sousa, o Gabinete pode ser definido como indivíduos que conheciam o
imperador “alguns desde a infância e, vivendo a seu lado, se haviam transformado em
amigos dedicadíssimos. Seria o caso de João Carlota, de Plácido de Abreu, de [João da]
Rocha Pinto, de [Francisco] Gomes da Silva, de Francisco Maria Godilho Veloso de
Barbuda, feito barão de Pati de Alferes, Visconde de Lorena, Marquês de Jacarepaguá e
senador do Império. Todos merecendo do imperador um tratamento cordial e com acesso
diário junto dele, não se restringiam ao papel de criados do paço. Sem dúvida, subsistira no
Brasil, entre os servidores diretos do monarca, certa indefinição acerca das incumbências
que lhes tocavam, indo desde as mais relevantes até as mais rotineiras. Sobrevivências de
épocas superadas, com todos os estigmas do absolutismo, as funções na corte e no paço
apresentavam por vezes o que haveria de mais peculiar ao servilismo de meros lacaios”. Cf.
SOUSA, Octávio Tarquínio de. A vida de D. Pedro I. t. III. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército e Livraria José Olympio Editores, 1972, p. 40.
55  Nos os capítulos 2 e 3 de minha Tese de Doutorado, retratei a maneira pela qual
Barbacena usou os conselheiros de Estado, Inhambupe e Santo Amaro, além do próprio
conselheiro pessoal de D. Pedro I, Francisco Gomes da Silva, o “Chalaça”, como estratégia
para ganhar a confiança do Imperador e proteger-se de inimigos na corte, como José Clemente
Pereira. A fim de reforçar, tal argumentativa, vale ressaltar que Barbacena casou sua filha Ana
Constança com José Carlos de Almeida, filho do segundo casamento do marquês de Santo
Amaro. Cf. CUPELLO, Rafael. O marquês de Barbacena... Op. cit., nota 23.
56  SILVA, Francisco Gomes da. Memórias oferecidas a Nação Brasileira. Londres:
Impresso por L. Thompson, 19, Great St. Helens, 1831. Sala de Leitura Geral. H.G. 34613 V.
Disponível em: <http://purl.pt/24757/4/hg-34613-v_PDF/hg-34613-v_PDF_24-C-R0150/
hg-34613-v_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2017.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

(dez. 1829 /out. 1830). Logo, haveria entre os “áulicos” de D. Pedro I


duas tendências da “direita conservadora”: a do “legitimismo” e a do
“conservadorismo” propriamente dito. Assim, existiam duas maneiras
de conceber a forma pela qual o Imperador deveria exercer a “soberania
da nação”: uma “tradicionalista” ou “legitimista” e outra “conservadora”
ou “liberal de direita”, para fazer uso dos conceitos de Christian Lynch.
Os “tradicionalistas” simpatizavam com um governo monárquico-
constitucional de forte tendência centralizadora, dando excessiva
ênfase ao Executivo e ao Poder Moderador. Percebiam a Câmara dos
Deputados como “inimiga” do Imperador,57 porque esta procurava obter
para si o posto de “soberana da nação”, entendida pelos “legitimistas”
como exclusivo do monarca. Entre os “tradicionalistas”, podemos
citar: José Clemente Pereira, Francisco Gomes da Silva, João da Rocha
Pinto, “Carlota”,58 marquês de Jacarepaguá e o marquês de Jundiaí.59
Eles formavam o que Barbacena nomeou como “facção clementina”.
Em comum, todos nasceram em Portugal e a maioria migrou para o
Brasil quando da transferência da Corte Joanina para o Rio de Janeiro.
Por isso, a rápida associação política que a “oposição liberal”60 – fossem
eles, “moderados” ou “exaltados” – fez do uso do termo “corcunda”
– destinado aos “portugueses” absolutistas na “guerra literária” da
época da Independência – para se referir aos “áulicos” de uma forma
em geral, como bem apontou Nelson Ferreira Marques Júnior61 não
distinguindo as divergências internas entre eles. Tendo em vista que essa
ala “tradicionalista” compunha o “Gabinete Secreto” do Imperador, não
espanta que Barbacena usou a retórica do “portuguesismo” para atacar seus
adversários políticos e cunhá-los de fazer parte do “Partido Português”,
da “facção clementina”, dos “portugueses”, transformando essas palavras
em sinônimos do grupo político que pretendia “recolonizar” o Brasil.
57  SILVA, Francisco Gomes da. Memórias oferecidas a Nação Brasileira... Op. cit.,
p. 151 et seq.
58  Criado português de D. Pedro I. Cf. GUIAR, Antônio Augusto. A vida do marquês
de Barbacena... Op. cit., p. 805, nota 3.
59  A identificação desses sujeitos como “tradicionalistas” foram possíveis a partir da
missiva de 15 de dezembro de 1830 de Barbacena para D. Pedro I. Cf. Arquivo Nacional do
Rio de Janeiro. Fundo Marquês de Barbacena. ANRJ, BR, AN, RIO Q.1.0. COR.57.
60  Esta expressão foi retirada de Jeffrey Needell, que classificou as facções partidárias,
presentes na Assembleia Geral, contrárias às práticas autoritárias de D. Pedro I no Primeiro
Reinado como formadoras de uma “oposição liberal”. Cf. NEEDELL, Jeffrey. Formação dos
partidos políticos no Brasil da Regência à Conciliação, 1831-1857. Almanack Braziliense,
São Paulo, n. 10, p. 5-22, 2009.
61  MARQUES JÚNIOR, Nelson Ferreira. Os verdadeiros constitucionais, amigos do
rei e da nação... Op. cit., p. 43, nota 38, et seq.

71
Entre a província e a nação

No campo oposto aos “tradicionalistas”, os “conservadores”


propriamente ditos admitiam o diálogo com a Câmara dos Deputados,
a fim de cooptar seu apoio político, conseguindo, assim, a “confiança
pública”,62 isto é, conquistar a “opinião pública”.63 Na verdade, o
Ministério Barbacena (dez. 1829/out. 1830) foi o único que procurou
executar a distinção estabelecida na Constituição de 1824 entre as
funções do Imperador, enquanto “chefe de Estado” e “chefe de Governo”
(arts. 102, 132 e 142). Nas palavras de Lynch:
o Poder Moderador era delegado privativamente ao imperador
(art. 98) como chefe de Estado, que deveria exercê-lo ouvindo o
Conselho de Estado (art. 142). Como chefe de Governo, por sua vez,
o imperador era a cabeça do Executivo, exercendo-o por meio de
seus ministros e da referenda deles (arts. 102 e 132) [...] Ao fazer
do imperador chefe desse Poder Executivo, e não simplesmente seu
titular (como havia sido o caso do Poder Moderador), a intenção de
Caravelas havia sido a de distinguir entre as duas esferas de ação.
Como chefe de Estado, o imperador decidiria direta e pessoalmente,
auxiliado pelo Conselho de Estado, nas atribuições do Poder
Moderador e naquelas do Poder Executivo, que versassem sobre
política internacional – tradicional competência exclusiva dos
monarcas. Como chefe de Governo, o monarca decidiria, por meio
e com a sanção do Conselho de Ministros, as demais atribuições
de política interna. Na prática, essa sutileza não foi observada pelo
voluntarismo do imperador: não só todos os gabinetes do reinado
de D. Pedro I contaram com políticos realistas, como nenhum deles
– salvo a curta experiência do ministério do Marquês de Barbacena
(1829/1830), do qual Carneiro de Campos participou – pediu o
apoio da Câmara dos Deputados como condição para governar.64

62  AGUIAR, Antônio Augusto. A vida do marquês de Barbacena... Op. cit., p. 804,
nota 3.
63 Não utilizamos aqui a concepção moderna de “opinião pública”, isto é, um
espaço no qual uma pluralidade de indivíduos se exprimem em termos de aprovação
ou sustentação a uma ação, servindo de referencial a um projeto político definido, com
o poder de alterar os rumos dos acontecimentos, mas sim como um campo legítimo de
liberdade de pensamento visto, enquanto uma instância crítica, com certa autoridade para
intervir nos acontecimentos políticos, comportando-se como “termômetro” de um governo
liberal, pois já se constituía em uma reflexão privada sobre os negócios públicos, tornando
possível sua discussão em público. Nesse sentido, a imprensa de início do século XIX e,
especialmente, os letrados que atuavam nela manifestavam uma preocupação em dirigir
essa opinião pública, de produzi-la. Sendo assim, os homens de letras tinham o cuidado de
exprimirem-se em porta-vozes de uma evidência, e não em manipuladores de ideias. Para
uma contextualização a respeito do conceito de opinião pública, Cf. NEVES, L. M. B. P.
das. “Opinião Pública”. In.: FERES JUNIOR, João (org.). Léxico da História dos Conceitos
políticos do Brasil. Belo Horizonte: EdUFMG, 2009, p. 181-202.
64  LYNCH, Christian Edward Cyril. Monarquia sem despotismo e liberdade sem
anarquia... Op. cit., p. 98, nota 37, grifo do autor.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Logo, o gabinete de Barbacena, ao propor uma relação de diálogo


com a Câmara dos Deputados para com o Ministério recém-empossado,
nada mais fez do que executar as determinações da Constituição de
1824. Vale destacar que entre os ministros que compunham o ministério
de Barbacena se encontrava o marquês de Caravelas, considerado
o principal mentor da Constituição imperial.65 Portanto, a soberania
estava depositada na figura do monarca, mas era necessário que este
soubesse exercê-la. Assim, precisava dar ouvidos aos Conselheiros
de Estado, nomear ministros que atuassem de forma homogênea e
solidária à sua figura, bem como exercer com sabedoria o uso do Poder
Moderador, utilizando-se de sua prerrogativa e dissolvendo a Câmara
Baixa em circunstâncias em que se:
tornasse inevitável, e o ministério pudesse também conseguir o apoio
da nação, fazendo justiça imparcial, removendo imediatamente dos
empregos, as pessoas indigitadas como partidistas do absolutismo,
e sobretudo sustentando nas câmaras princípios constitucionais, e
fazendo proposta de tão reconhecida utilidade, que a câmara fosse
obrigada a aprová-las, ou perder a confiança pública.66

Entre os “conservadores”, podemos identificar: José Joaquim


Carneiro de Campos (marquês de Caravelas), Miguel Calmon Du Pin
e Almeida (marquês de Abrantes), Diogo Martim de Sousa Teles de
Meneses (conde do Rio Pardo), Francisco Vilela Barbosa (marquês de
Paranaguá) e o marquês de Barbacena.67 Portanto, não surpreende que
65  LYNCH, Christian Edward Cyril. Monarquia sem despotismo e liberdade sem
anarquia... Op. cit.
66  AGUIAR, Antônio Augusto. A vida do marquês de Barbacena... Op. cit., p. 804, nota 3.
67  Mais uma vez, conseguimos classificar tais sujeitos como “conservadores” a partir
da missiva de Barbacena de 15 de dezembro de 1830. Devemos ressaltar que os homens que
Barbacena qualificou como “constitucionais” foram por nós rotulados de “conservadores”
seguindo a definição oferecida por Lynch. Todos aqueles sujeitos compuseram o 8º
Gabinete de 4 de dezembro de 1829, comandado pelo referido marquês. Em sua carta, o
senador mineiro informou ao Imperador que pediu para que os demais componentes do
Ministério não pedissem demissão após a sua saída em fins de 1830. O gabinete durou até 18
de março de 1831. No entanto, daquela composição inicial, alguns ministros foram sendo
substituídos com o transcorrer dos agitados bastidores das disputas políticas promovidas
na corte de D. Pedro I. Na pasta do Império, Caravelas deu lugar, em 12 de agosto de 1830,
ao visconde de Alcântara, que serviu interinamente até 4 de outubro, data em que foi
nomeado José Antônio da Silva Maia, que por sua vez foi substituído em 24 de dezembro
de 1830, novamente, pelo visconde de Alcântara; nos Estrangeiros, Miguel Calmon foi
substituído interinamente pelo marquês de Paranaguá, em 23 de setembro de 1830 – data
de seu pedido de demissão depois das pressões sofridas por ele na pasta, pela impaciência
e certa implicância do Imperador para com sua pessoa. Cf. SOUSA, Octávio Tarquínio
de. A vida de D. Pedro I... Op. cit., t. III, p. 39-72, nota 26. Em 9 de dezembro daquele
ano, o ministério dos Estrangeiros foi ocupado por Francisco Carneiro de Campos; na
Fazenda, o marquês de Barbacena foi substituído em 2 de outubro de 1829 por José Antônio

73
Entre a província e a nação

parte desses “conservadores” tenha migrado para a ala “caramuru”,68 no


início da Regência, caso de Caravelas, e outros para a ala “moderada”,
como ocorreu com o marquês de Barbacena.69 A razão dos deslocamentos
desses indivíduos entre os dois referidos “partidos” regenciais se dava
pela proximidade de leitura que tinham do conceito de soberania, o
que podia ora aproximar, ora afastar, “áulicos tradicionalistas” ou
“conservadores”, em momentos de indefinição e reorganização política
como nas Regências, principalmente quando um dos debates centrais

Lisboa, que ficou no cargo até 3 de novembro daquele ano quando foi nomeado Antônio
Francisco de Paula e Holanda Cavalcanti de Albuquerque; as pastas da Justiça, Guerra e
Marinha não foram modificadas, permanecendo inalteradas até o fim do 8º Gabinete. Elas
foram ocupadas por Alcântara, Rio Pardo e Paranaguá, respectivamente. Vale salientar
que as mudanças promovidas por D. Pedro I ao longo desse Ministério, bem como dos
subsequentes misturaram “tradicionalistas” e “conservadores” com a predominância do
primeiro grupo sobre o segundo, sendo, inclusive, uma das razões da queda do monarca
em 7 de abril de 1831. Cf. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. INSTITUTO
NACIONAL DO LIVRO. Organizações e programas ministeriais: regime parlamentar
no império. 3 ed. Brasília: Departamento de Documentação e Divulgação, 1979, p. 25-31.
68  Segundo Marcello Basile, os “caramurus” podem ser tributados como partidários de
uma percepção conservadora do liberalismo alinhado a Edmund Burke. Esse grupo pode
ser visto como composto por figuras que circundaram de muito perto o Imperador durante
o Primeiro Reinado. Não por acaso, “o ponto de identidade do grupo era o elogio saudosista
a Pedro I e a crítica feroz ao 7 de abril e à Regência”. Cf. BASILE, Marcelo. O Império
em construção... Op. cit., p. 345. O principal ponto do projeto “caramuru” era a recusa
intransigente a qualquer mudança na Constituição de 1824, vista como suficientemente
liberal. Eram, portanto, ferrenhos defensores de um modelo de monarquia constitucional
fortemente centralizada, sendo opositores à extinção do Poder Moderador, do Conselho
de Estado e da vitaliciedade do Senado, onde tinham importante base de apoio; propostas
que foram apresentadas na Câmara dos Deputados nos projetos de reforma constitucional
do período Regencial. O federalismo pleiteado pelos “exaltados” era a principal reforma
combatida pelos “caramurus”, “avessos a qualquer tipo de descentralização, inclusive a que
os “moderados” passaram a aceitar após a Abdicação e foi adotada pelo Ato Adicional”. Cf.
BASILE, Marcelo. O Império em construção... Op. cit., p. 344. Suas principais lideranças
foram Antônio Francisco de Paula de Holanda Cavalcanti de Albuquerque (visconde de
Albuquerque), Martim Francisco de Andrada, Miguel Calmon (marquês de Abrantes),
Pedro de Araújo Lima (marques de Olinda), José Clemente Pereira, José da Silva Lisboa
(visconde de Cairu), Francisco Montezuma (visconde de Jequitinhonha), Antônio
Rebouças e Lopes Gama. Cf. BASILE, Marcelo. O Império em construção... Op. cit., p.
337-447, nota 32.
69 Reforçando sua identidade como um político “moderado”, encontramos uma
citação do jornal “caramuru” O Esbarra, em que o marquês é acusado, juntamente com
outras lideranças do “partido” em questão, de “ladrões, incestuosos, moedeiros falsos,
sevandijas, estúpidos, e mal-criados” e indagava com todo veneno: “Não é o Cellos-vascon
[Vasconcellos] Chimango; e não vive ele com sua Irmã? O Sr. Car-len-a [José Martiniano
de Alencar] não deflorou duas Primas, vivendo ultimamente com uma delas? Não são
ladrões o mesmo Cellos-vascon, Vm. [Evaristo], o Cena-barba [marquês de Barbacena], o
Republico [Borges da Fonseca], o Cezarino 500$ rs. [?] e P. Feijó, o Pilar [João Silveira do
Pillar] etc. etc.? Não são moedeiros falsos os Reg [regentes] todos?”. Cf. O Esbarra, n. 3, 22
nov. 1833 apud BASILE, Marcelo. O Império em construção... Op. cit., p. 351, grifos nossos.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

foi a proposta de reforma constitucional.70 Aos “tradicionalistas”, a


reforma era um despropósito. Não por acaso, praticamente todos os
“legitimistas” tornaram-se “caramurus” na Regência. Todavia, para
os “conservadores”, a reforma constitucional era encarada de forma
dúbia. Alguns deles, caso de Barbacena, perceberam na reforma uma
saída para evitar agitações populares e, assim, garantir a ordem social
e a unidade territorial do Império; para outros componentes do “ex-
grupo” de “áulicos conservadores”, como Caravelas, a mudança na
Carta Constitucional por meio da reforma provocava uma insegurança
jurídica ao não permitir a consolidação dos valores originários
da Lei Fundamental do Império de 1824, colocando a monarquia
constitucional sob ameaça e podendo dar margens às desordens sociais.
Daí, terem os dois figurões políticos tomado caminhos opostos na
Regência. Retornando a carta de dezembro de 1830. Apesar dos alertas
de Barbacena, D. Pedro I adotou postura muito mais próxima aos
“tradicionalistas” da “facção clementina” ajudando a consolidar sua
imagem como “português e absoluto de coração”.71
Após a demissão do marquês de Barbacena, em outubro de 1830,
as animosidades entre “portugueses” e “brasileiros” ganharam novo
fôlego,72 revivendo a “guerra literária” da época de Independência do
Brasil.73 Em sua carta, Barbacena asseverou que aconselhou o Imperador
a retardar sua demissão, sufocando nele “todos os sentimentos de
amor próprio”, no “propósito de salvar o trono”, pois “nenhum outro
ministro poderia conseguir tanto da Câmara”74 para aprovação de
projetos essenciais para o funcionamento do império – como medidas
salutares que propunha para o melhoramento do meio circulante75 –,

70 BASILE, Marcelo. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In.:


GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial: 1831-1840. v. II. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2017, p. 53-120.
71  AGUIAR, Antônio Augusto. A vida do marquês de Barbacena... Op. cit., p. 810,
nota 3.
72  Segundo Gladys Sabina Ribeiro, as animosidades entre “brasileiros” e “portugueses”
não ficaram reservadas a apenas os momentos-chave da política do Primeiro Reinado –
Independência, sucessão do trono português e a “Noite das Garrafadas”. Conforme a autora,
a tensão entre lusos e “nacionais” foi constante durante todo o Primeiro Reinado, sendo as
ruas da corte do Rio de Janeiro palco de inúmeros embates entre os dois seguimentos. Cf.
RIBEIRO, A liberdade em construção... Op. cit., p. 13-26; 243-358, nota 4.
73  CARVALHO, J. M. de; BASTOS L.; BASILE M (org.). Guerra Literária... Op. cit.,
v. I-IV.
74  AGUIAR, Antônio Augusto. A vida do marquês de Barbacena... Op. cit., p. 806,
nota 3, et seq.
75  Barbacena realmente se preocupava com esse tema. Encontramos, em sessão dos

75
Entre a província e a nação

os quais estavam em discussão naquela Casa. Declarava que, aprovados


tais projetos, ele próprio pediria demissão, não arranhando a opinião
e o juízo a respeito do Imperador que parte da oposição passara a
ter sobre o monarca, a partir do zelo constitucional imprimido pelo
Ministério liderado por Barbacena mesmo que já corressem notícias de
sua reaproximação com a “facção clementina”. Em 13 de outubro de
1830, o Aurora Fluminense noticiava:
diz-se que o Sr. Clemente Pereira está agora em plena atividade,
e que não tem sido estranho as últimas mudanças que houveram
na Administração. Nós não sabemos como possa isto ser: ele não
ignora que espécie de celebridade o seu nome tem ganhado no
Brasil, e que a sua ingerência bastará para deitar a perder a intriga
mais habilmente tecida.76

O marquês de Barbacena alertou D. Pedro I que, se ele permanecesse


na intenção de publicar sua demissão sobre a alegação de reexaminar as
contas da Caixa de Londres, no período em que esteve à frente da questão
do trono português na Europa, os projetos do governo em discussão na
Câmara Baixa não seriam aprovados e que perderia a confiança da “opinião
pública”, a qual o Ministério Barbacena havia reconquistado. Além
disso, reacenderia as críticas de seus opositores às finanças do Império
com relação aos custos da viagem de D. Maria II e ao suposto auxílio
financeiro oferecido pelo Império do Brasil aos liberais portugueses na
luta contra os miguelistas, pois confundiam gastos pessoais do monarca
(2º casamento) e dívida do Império para com Portugal (Tratado de 29
de agosto de 1825) com o orçamento próprio do governo imperial.77
Anais do Senado Imperial, proposta de Barbacena para o meio circulante. Cf. Anais do
Senado, 3 jun. 1833, p. 231. Além disso, em seu acervo pessoal, existem alguns documentos
que versam sobre propostas para circulação de notas, giro de ouro e prata, resgate da moeda
de cobre e organização de um banco nacional. Cf. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro,
Fundo Marquês de Barbacena. Série Atuação Parlamentar. BR AN, RIO.Q.1.0.APA.6;
BR AN, RIO.Q.1.0.APA.10; BR AN, RIO.Q.1.0.APA.17; BR AN, RIO.Q.1.0.APA.18; BR
AN, RIO.Q.1.0.APA.23; BR AN, RIO.Q.1.0.APA.24. A liquidação do Banco do Brasil, em
1829, aprofundou a crise monetária do Primeiro Reinado em virtude de o meio circulante
nacional ser constituído dos bilhetes do dito banco, o que financiava o déficit orçamentário
do governo. Uma das propostas do ministro da Fazenda, Barbacena, era de criar um
novo banco para não só emitir um novo meio circulante nacional (não mais os bilhetes
desvalorizados do primeiro Banco do Brasil), como também para administrar as rendas
do Estado. Esse novo banco não seria estatal. Cf. CAVALCANTI, A. O Meio Circulante
Nacional. Resenha e compilação chronologica de legislação e de factos. v. 1. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1893, p. 103 et seq.
76  Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Hemeroteca Digital. A Aurora Fluminense:
jornal político e literário, n. 399, 13 out. 1830, p. 1686.
77  Em ofício de Barbacena para “Chalaça”, de 01 de fevereiro de 1829, ele descreve os
procedimentos empregados com os recursos enviados pelo Imperador para a realização

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Barbacena ainda ironizou seus sucessores no Ministério da Fazenda


ao declarar que Sua Majestade Imperial não “acharia mais quem se
encarregasse da pasta, a não ser homem perfeitamente nulo, e inepto”78
como “o resultado da minha demissão já tem provado a V. M. I. a exatidão
de minhas opiniões”.79
Barbacena ainda deu a entender que a principal razão para seu
afastamento da Corte do Rio de Janeiro, pedindo licença ao monarca para
ir tratar de suas moléstias no engenho de Gericinó,80 após sua demissão,
não foi motivada realmente por motivos médicos, mas sim porque
acreditava que sua vida corria perigo, pois seus inimigos não perderam:
tão oportuna ocasião de excitar a cólera de V. M. contra mim, e
a qual se manifesta por um modo ainda não praticado com outro,
porquanto não só não me quis receber quando fui a S. Cristóvão, e
declarou que consideraria como seu inimigo a todo aquele que viesse
à minha casa, mas repetia frequentemente que um rei de Inglaterra
achara um amigo, que o livrara do arcebispo de Cantuária81, e que o
imperador do Brasil não achava outro, que o livrasse do marquês de
Barbacena.82

Provavelmente, a “ameaça” era pura retórica, a fim de reforçar o


“absolutismo” dos “portugueses” “tradicionalistas” que apoiavam D.
Pedro I, imprimindo a ideia de que eles não respeitavam a divergência das
opiniões, num cenário (Império do Brasil) pautado por valores liberais,
mesmo que saibamos que a liberdade de expressão, retratada nos debates
do segundo casamento, bem como para a manutenção da rainha infanta e ressalta:
“Tudo é verídico, tudo é exato, mas são contas entre Pai e filha das quais não pertence o
conhecimento se não a s. m. i. e a mesma”. Cf. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Casa
Real e Imperial – Mordomia-mor. BR RJANRIO 2h.0.0.125, f. 1v.
78  AGUIAR, Antônio Augusto de. A vida do marquês de Barbacena... Op. cit., p. 807,
nota 3.
79  Ibidem, p. 808.
80  Uma das propriedades de Barbacena no Rio de Janeiro. O primeiro pedido para
afastamento da Corte foi feito em 01 de dezembro de 1830. Um novo pedido foi feito em
20 de dezembro do mesmo ano. O Imperador só concedeu a licença em 22 de dezembro
de 1830. Cf. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Fundo Marquês de Barbacena. BR AN,
RIO.Q.1.0.COR.55, BR AN, RIO.Q.1.0.COR.58 e BR AN, RIO.Q.1.0.COR.59.
81  São Thomas Becket, Tomás de Cantuária ou Tomás de Londres (c. 1118 – 29 dez.
1170), foi arcebispo de Cantuária entre 1162 e 1170. É venerado como santo e mártir pela
Igreja Católica e pela Igreja Anglicana. Envolvido num conflito com o rei Henrique II
da Inglaterra pelos direitos e privilégios da Igreja, foi assassinado por seguidores do rei
na Catedral de Cantuária. Disponível em: <http://www.acnsf.org.br/article/22300/Sao-
Thomas-Becket--ndash--O-Arcebispo-martir-de-Canterbury. html>. Acesso em: 10 nov.
2017.
82  AGUIAR, Antônio Augusto de. A vida do marquês de Barbacena... Op. cit., p. 807,
nota 3, grifo nosso.

77
Entre a província e a nação

a respeito da liberdade de imprensa no Parlamento, ainda não fosse um


consenso entre a “elite política imperial” e que os críticos a esse direito
não eram necessariamente “portugueses” ou “brasileiros adotivos”.83
De nada adiantaram os apelos e argumentos de Barbacena a seu
favor. O orgulho ferido de um monarca autocrático falou mais alto,
bem como as intrigas políticas plantadas pela “ala clementina”, da
qual “Chalaça” era o principal articulador, na difamação do juízo que
o imperador tinha pelo marquês de Barbacena.84 O referido marquês
não teve sua demissão postergada a um momento mais oportuno
como pedira, assim como D. Pedro I tornou públicas as razões de sua
demissão,85 exatamente nos pontos em que Barbacena o aconselhava a
não o fazer:
convindo liquidar-se quanto antes a dívida de Portugal, contraída
pelo Tratado de 29 de Agosto de 1825, o sendo necessário para
esse fim tomarem-se primeiramente as contas da Caixa de
Londres, examinando-se as grandes despesas feitas pelo Marquês de
Barbacena, do Meu Conselho de Estado, tanto com Sua Majestade
Fidelíssima [...], como com os emigrados portugueses em Inglaterra, e
especialmente com o meu casamento; e não podendo estas verificarem
legalmente, exercendo ao mesmo tempo o mencionado Marquês o
lugar de Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda:
Hei por bem demiti-lo .86

Como havia previsto o marquês, os projetos do governo foram


reprovados, “porque este havia perdido a confiança da nação, e ninguém
houve que o defendesse, e nem a Câmara deu providência alguma”.87
83  Sobre a liberdade de imprensa no Primeiro Reinado e Regências. Cf. YOUSSEF,
Alain. Imprensa e escravidão: Política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio
de Janeiro, 1822-1850). Dissertação (Mestrado em História Social). Programa de Pós-
Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010; BASILE,
Marcello. Inventário analítico da imprensa periódica do Rio de Janeiro na Regência: perfil
dos jornais e dados estatísticos. In.: CARVALHO, J. M.; NEVES, L. M. B. P. das. Dimensões
e fronteiras do Estado brasileiro no oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014, p. 37-62.
84  SOUSA, Octávio Tarquínio de. A vida de D. Pedro I... Op. cit., p. 39-73, nota 53.
85 Barbacena, em suas Exposições, argumentou que nunca pediu demissão ao
Imperador. Por isso, foi necessária a produção de um segundo decreto corrigindo o primeiro
que informava que o marquês havia pedido demissão da pasta da Fazenda. Cf. Exposição
do Marquês de Barbacena em resposta das imputações, que lhe tem sido feitas por ocasião
do Decreto de 30 de setembro deste ano, que o demitiu do Ministério da Fazenda. Rio de
Janeiro. Typografia Imperial e Nacional, 1830. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Fundo
Marquês de Barbacena, BR AN, RJ Q.1.0. MFA.8.
86  Coleção das Leis do Império do Brasil de 1830 – Atos do Poder Executivo, 1876, p.
45-46, grifos nossos.
87  AGUIAR, Antônio Augusto de. A vida do marquês de Barbacena... Op. cit., p. 808,
nota 3.

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Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

D. Pedro I ainda tentou colocar a “opinião pública” contra a figura do


marquês acusando-o de roubo.88 Na sessão de 16 de outubro de 1830
da Câmara dos Deputados, o novo ministro da Fazenda, José Antônio
Lisboa89, apresentou proposta para a criação de uma comissão –
composta por três membros –, a fim de examinar e “ir imediatamente
fechar e liquidar a caixa a cargo da Legação de Londres”.90 Barbacena
havia sido exonerado do cargo por Decreto de 30 de setembro daquele
ano.
Portanto, 16 dias após o afastamento de Barbacena da pasta
da Fazenda, o governo enviava uma proposta para a criação de uma
comissão para examinar as contas da Caixa de Londres, atendendo
a anseios da oposição, instalada na Câmara Baixa, que há muito
criticava a existência e funcionamento da caixa londrina, sendo ela
constantemente alvo de insinuações de desvios no erário público.91
Mas a estratégia do governo sofreu revés importante. A publicidade

88 Segundo Isabel Lustosa, em sua célebre biografia sobre D. Pedro I, o monarca


teria acusado Barbacena de ladrão e ainda disparado a Francisco Vilela Barbosa, marquês
de Paranaguá, quando este pediu socorro pecuniário ao ex-monarca no navio Warspite,
momentos antes de ele embarcar rumo à Europa: “Faça o que quiser, não é da minha conta:
por que não roubou como Barbacena? Estaria bem agora”. Cf. LUSTOSA, Isabel. D. Pedro
I: um herói sem nenhum caráter. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 17; 288. As
informações parecem proceder, pois o próprio marquês de Barbacena, na missiva de 15 de
dezembro de 1830, afirmou que o monarca, sob influência da “facção clementina”, espalhava
a notícia de grande roubo, tendo “a fraqueza de proferir no tesouro várias expressões contra
o meu crédito”. Cf. AGUIAR, Antônio Augusto de. A vida do marquês de Barbacena... Op.
cit., p. 807, nota 3.
89  “Estudou no Colégio dos Nobres, tendo concluído os estudos em Matemática e
Filosofia na Universidade de Coimbra. Considerado suspeito de manter em casa um acervo
de obras não ortodoxas pelo Tribunal da Inquisição, retornou ao Brasil. Foi nomeado lente
da Aula de Comércio, criada em 1809, e encarregado de examinar as finanças do Banco do
Brasil, o que deu origem ao trabalho Reflexões sobre o Banco do Brasil, oferecidas aos seus
acionistas (1821). Nomeado deputado da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e
Navegação (1824), acumulou ainda os cargos de secretário e inspetor das fábricas nacionais.
Após a Independência, foi designado para diversos trabalhos como a realização de um censo
(1822), a Comissão de Fazenda da Câmara dos Deputados, a elaboração do regimento das
alfândegas (1828) e a elaboração do regulamento consular (1829)”. Foi ministro da Fazenda
por apenas um mês e participou de outras comissões e projetos na Regência. Disponível
em: <http://www.fazenda.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/galeria-de-ministros/
pasta-imperio-primeiro-reinado-dom-pedro-i/pasta-imperio-primeiro-reinado-dom-
pedro-i-ministros/jose-antonio-lisboa>. Acesso em: 10 jan. 2018.
90  ANAIS da Câmara dos Deputados, sessão de 16 out. 1830, p. 605.
91  Na sessão de 18 de outubro de 1830 da Câmara dos Deputados, Bernardo Pereira de
Vasconcellos, um dos líderes da oposição ao governo de D. Pedro I, afirmou que a Caixa de
Londres era dispendiosa e inútil, e, portanto, era favorável à criação da comissão para que se
desse “conhecimento da matéria pela qual se tem despendido os dinheiros nacionais, a fim
de indenizar a nação e responsabilizar os que tiveram abusado da confiança do governo”.
ANAIS da Câmara dos Deputados, sessão de 18 out. 1830, p. 609.

79
Entre a província e a nação

dos gastos do marquês em sua excursão à Europa acompanhando a


infanta D. Maria e o início da exposição das contas de Londres tiveram
um efeito contrário ao imaginado pelo Imperador e seu grupo político
de apoio. Mesmo que o anúncio da demissão de Barbacena, sob a
acusação de má administração dos recursos públicos tenha afetado em
parte a imagem do marquês, as maiores críticas eram relacionadas ao
desrespeito constitucional de D. Pedro I ao imprimir ordens de gastos
sem o consentimento e consulta do Parlamento além de se intrometer
nos “negócios de Portugal”. Na edição de nº 398, de 11 de outubro de
1830, do Aurora Fluminense, Evaristo da Veiga confirma que ele assim
como os demais liberais – “moderados” (como ele) ou “exaltados” –
portavam uma concepção de soberania diferente da entendida pelos
“áulicos”, fossem eles “tradicionalistas” ou “conservadores”. Para
ele e a “oposição liberal”, a soberania emanava da Assembleia Geral,
pois os deputados eram os “representantes da nação”.92 Por isso, o
escândalo provocado pelo decreto da demissão de Barbacena, bem
como a exposição das despesas da Caixa de Londres provocaram forte
reação nos opositores de D. Pedro I. O monarca despendeu “grandes
despesas” – como assumiu no decreto de demissão do marquês –, mas
não pediu “aprovação das Câmaras”, nem mesmo tais despesas estavam
“marcadas na Lei do Orçamento”. Portanto, o governo e os “agentes do
Poder” desrespeitavam a prática constitucional e tinham a “doutrina
corrente” com “o suprassumo da virtude e mérito o talento de mentir
com impudência”.93 Logo, as opiniões de Veiga revelam a enorme
desconfiança com que o governo passou a conviver novamente a partir
da saída de Barbacena do Ministério de D. Pedro I.
Desse modo, a estratégia do governo de arruinar a imagem de
Barbacena e ganhar a “confiança pública” parece não ter dado certo. Ao
invés de convencer a “opinião pública” e instituir um juízo positivo sobre
o imperador, passando a ideia de um governante zeloso pelas finanças
públicas, preocupado em identificar possíveis desvios de recursos de seu
antigo ministro, como alarmado pela facção “áulica tradicionalista” –
preocupada em desgraçar a trajetória política de Barbacena –, as críticas
dos periódicos liberais se concentraram em outro ponto de análise: o
Brasil estava a sustentar os emigrados portugueses, instalados na Ilha
Terceira, na luta contra o governo absolutista de d. Miguel, além de

92  Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Hemeroteca Digital. A Aurora Fluminense:


jornal político e literário, n. 398, 11 out. 1830, p. 1681.
93  Ibidem.

80
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

ter omitido e não ter pedido permissão de tais custos ao Parlamento


brasileiro. O requerimento apresentado por José Lino Coutinho –
opositor de D. Pedro I na Câmara Baixa94 – na sessão de 26 de outubro
de 1830, daquela Casa, pedindo para que fosse remetido à Comissão de
Constituição da Câmara o impresso que foi distribuído como defesa
do marquês de Barbacena,95 a fim de examinar “desde logo a acusação
daqueles indivíduos que julgar complicados na delapidação da caixa
de Londres”,96 confirma como a oposição desacreditava no governo do
primeiro imperador.
Acreditamos que conseguimos demonstrar ao longo do artigo
que a carta redigida pelo marquês de Barbacena, em 15 de dezembro de
1830, para D. Pedro I estava para além de um documento “profético” ou
para um “símbolo da nacionalidade” ultrajada. Na verdade, a missiva
contém uma importante apreciação do marquês sobre os bastidores
políticos da corte palaciana de D. Pedro I e amplifica o debate para
os efeitos provocadores do fim do Primeiro Reinado. Além disso, a
partir dela podemos constatar que a rivalidade entre o Imperador e
Barbacena, aberta a partir da demissão do último da pasta da Fazenda,
teve consequências políticas para ambos. Sobre o primeiro, uma forte
crise se abateu sobre seu governo, fortaleceu a “oposição liberal” e
culminou com sua abdicação em 7 de abril de 1831. Sobre o segundo,
um desgastante processo de exame sobre suas contas de Londres, no
período em que esteve a serviço de D. Maria da Glória (1827-1829),
foi praticado e precisou ser enfrentado por ele por seis anos seguidos
(período que durou todo o processo). Além disso, Barbacena procurou
se realojar no “campo político” imperial, onde se afastou dos grupos
identificados com o ex-imperador e passou a defender algumas
“bandeiras” dos “moderados”, como a reforma da Constituição de
1824, mesmo que não concordasse completamente com as propostas
apresentadas por aquela “facção” para a dita reforma. Mas, a atuação
do marquês de Barbacena durante os conturbados anos da Regência é
assunto para outro trabalho.
94  Sobre as composições políticas no Primeiro Reinado, no que compete à Câmara
dos Deputados. Cf. PEREIRA, Vantuil. Ao Soberano Congresso: Direitos do cidadão na
formação do Estado Imperial brasileiro (1822-1831). São Paulo: Alameda, 2010.
95  Cf. FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal
da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In.: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla Maria
Carvalho; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Conquistadores e negociantes: histórias de
elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007.
96  ANAIS da Câmara dos Deputados, sessão de 26 out. 1830, p. 623.

81
Entre a província e a nação

Referências:
Fontes:
CARVALHO, J. M. de; BASTOS L.; BASILE M (org.). Guerra Literária: panfletos
da Independência (1820-1823). Belo Horizonte: EdUFMG, 2014, v. 1-4.
CAVALCANTI, A. O Meio Circulante Nacional. Resenha e compilação
chronologica de legislação e de factos. v. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1893, p. 103-104.
Memórias oferecidas a Nação Brasileira pelo conselheiro Francisco Gomes
da Silva. Londres: Impresso por L. Thompson, 19, Great St. Helens, 1831. Sala
de Leitura Geral. H. G. 34613 V. Disponível em: <http://purl.pt/24757/4/hg-
34613-v_PDF/hg-34613-v_PDF_24-C-R0150/hg-34613-v_0000_capa-capa_t24-
C-R0150.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2017.

Obras de Apoio:
AGUIAR, A. A. de. A vida do marquês de Barbacena. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1896.
ANDERSON, B. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão
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84
Disputas políticas no Maranhão pós-
independência: o postergar das distinções,
rivalidades e efervescência dos partidos

Roni César Andrade de Araújo1

No entremeio das questões que agitavam o Maranhão logo nos


primeiros anos em que passou a fazer parte do Brasil independente, o
debate entre os aspectos legais que definiam a cidadania brasileira e a
os atropelos às leis, praticados nos planos locais, motivou uma série de
reclamações que foram endereçadas às muitas esferas da administração
do Estado. Essas mesmas questões também ganharam voz junto ao
espaço dos debates públicos, na medida em que foram veiculadas
na imprensa, sob a forma de cartas e dos comentários dos próprios
redatores dos jornais que, a depender da identificação pessoal e dos
grupos aos quais estavam vinculados, tomavam partido favorável a um
ou outro lado em disputa.
Quando tratou dessa temática na imprensa fluminense, Isabel
Lustosa chamou a atenção para um “novo espírito” que se formara no
Rio de Janeiro a partir da convocação da Assembleia Constituinte para
o Brasil, por d. Pedro, em junho de 1822. Aquela ação despertara o que
a autora denonimou de “expectativas sobre a nova Ordem”,2 percebidos
a partir de cartas enviadas pelos leitores do Correio do Rio de Janeiro,
escritas em pelo menos dois períodos: o primeiro, entre abril e outubro
de 1822 e o segundo, entre maio e novembro de 1823. Se essa primeira
fase estava, como destacou a autora, diretamente ligada à convocação da
Assembleia Luso-Brasiliense, nos parece que, em certa medida, refletia
ainda os efeitos de outras importantes medidas adotadas por d. Pedro
nos primeiros meses de 1822, como a própria decisão de permanecer no
Brasil - mesmo à revelia das ordens emitidas pelas Cortes portuguesas
para retornar à Europa -, e até mesmo a convocação do Conselho de
Procuradores das Províncias do Brasil, em 16 de fevereiro; a segunda
fase, como é mais fácil de identificar, coincidiu com o funcionamento
1  Professor Adjunto II do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas da Universidade
Federal do Maranhão - Campus Grajaú e Pesquisador do Núcleo de Estudos do Maranhão
Oitocentista - NEMO. É Doutor em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(2018).
2 LUSTOSA, Isabel. O debate sobre os direitos do cidadão na imprensa da
Independência. In.: RIBEIRO, Gladys Sabina; FERREIRA, Tânia Maria Tavares Bessone
(org.). Linguagens e práticas da cidadania no século XIX. São Paulo: Alameda, 2010, p. 13.

85
Entre a província e a nação

da Constituinte que tomou assento em 3 de maio de 1823 e foi dissolvida


em 12 de novembro daquele mesmo ano.
Se, entre 1822 e 1823, a imprensa foi protagonista na tessitura
deste “novo espírito” que tomou conta do Rio de Janeiro e atestava
o despertar de direitos por parte do cidadão, no Maranhão essa
percepção só alcançou voz junto à imprensa posteriormente, após
a própria instituição da Carta Constitucional de 1824. A existência
de cidadãos que visualizavam novos tempos, tempos de garantia dos
direitos, em que manifestavam “opiniões, críticas e reinvindicações
que demostram uma consciência muito clara dos seus direitos e uma
vontade firme de fazê-los valer”,3 só pode ser verificada na imprensa
maranhense com pelo menos dois anos de diferença em relação às
províncias do Sul.
Cabe lembrar que quando, em finais de 1821, as notícias
chegadas das Cortes passaram a alimentar o descontentamento
de uma significativa parcela dos habitantes do Rio de Janeiro, no
Maranhão o processo é inverso. As vozes que se levantaram a favor
da autonomia do Brasil – sempre lembrando que nesse contexto
autonomia não englobava a ideia de emancipação política – não foram
acompanhadas pelas províncias do norte, onde a cada dia se fortalecia
o discurso da absoluta e inquestionável submissão às decisões
tomadas nas Cortes. O debate era político, mas motivado por questões
de matizes econômicas. E era justamente esse o ponto de divergência
dos interesses das províncias do sul e norte do Brasil. Nesse sentido,
a análise da participação da imprensa carioca em contraposição à
maranhense ajuda a entender a configuração diferenciada daquelas
duas províncias. Se no Rio de Janeiro é possível identificar a existência
de um debate entre grupos que defendiam uma tomada de posição
mais alinhada ou contrária às decisões das Cortes, no Maranhão o
único jornal em circulação na província, O Conciliador,4 assumia o

3 LUSTOSA, Isabel. O debate sobre os direitos do cidadão na imprensa da


Independência... Op. cit., p. 13, nota 1.
4  Marca o início das atividades impressas no Maranhão a publicação do nº 35 do
periódico O Conciliador do Maranhão a 15 de novembro de 1821, que desde 15 de abril
daquele mesmo ano, já circulava de forma manuscrita, quando eram produzidos “centenas
de exemplares, que eram lidos com avidez” Cf. SERRA, Joaquim (Ignotus). Sessenta anos
de jornalismo: a imprensa no Maranhão. 3 ed. São Paulo: Siciliano, 2001, p. 23. Até 04 de
novembro de 1821, foram 34 os exemplares que circularam de forma manuscrita. A partir
da edição de nº 35, passaram a ser impressos pela, recém-instalada, Typografia Nacional
Maranhense. Em 28 de novembro de 1822, o jornal passou a se chamar O Conciliador.
Ao todo, foram 212 edições, que circulavam às quartas-feiras e aos sábados. Encerrou seus

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

seu completo alinhamento às deliberações tomadas pelos deputados


reunidos em Portugal.
A fidelidade do Maranhão a Portugal, partilhada pelos redatores
do Conciliador, José Antônio da Cruz Ferreira Tezinho, o padre
Tezinho, e Antônio Marques da Costa Soares,5 compunha um cenário
completamente diferente do que se observava no Rio de Janeiro
onde a pluralidade de opiniões encontrava nos muitos periódicos em
circulação a conjuntura propícia aos acalorados debates que foram ali
travados. Deste modo, se nos primeiros meses de 1822, o dia-a-dia das
questões políticas que marcavam a relação cada vez mais conturbada
entre d. Pedro e as Cortes estampavam as folhas dos periódicos cariocas,
o Conciliador, mantinha firme a sua política declarada de omitir as
novidades que chegavam do Rio de Janeiro, à exceção daquelas as quais,
dando ênfase negativa, ajudavam a consolidar a imagem de ministros
conspiradores manipulando as decisões de jovem príncipe.
Chamo atenção para o fato de que aqueles eventos do início
de 1822 – identificados por Isabel Lustosa como fundamentais para a
construção do “novo espírito” -, quando veiculados pelo Conciliador
funcionaram mais como discursos da ratificação da fidelidade a
Portugal, como é possível observar nas edições 83 e 105, que tratavam
da convocação do Conselho de Procuradores e da convocação da
Assembleia Constituinte para o Brasil, respectivamente. Ressalte-
se que, em linhas gerais, não se tratava aqui de se posicionar contra
ou a favor da manutenção dos laços que união Brasil e Portugal, até
porque, apesar das desavenças existentes entre os interesses de boa
parte da deputação reunida nas Cortes e os deputados das províncias
do Sul do Brasil, não existia, em princípios de 1822, um discurso de
independência no sentido que se construiu mais para o final daquele
ano. Vale lembrar que o decreto de 16 de fevereiro, relativo ao
trabalhos em 23 de julho de 1823.
5  Nascido em Portugal, Padre Tezinho foi uma das maiores vozes que já se levantou
contrária à Independência do Brasil. À frente do Conciliador atuou fortemente contra todas
as pretensões de adesão ao projeto da Independência capitaneado pelo Rio de Janeiro. Em
abril de 1823, pouco antes da adesão, Tezinho fora para Portugal como um dos deputados
eleitos pela província do Maranhão para compor as Cortes, ficando António Marques da
Costa Soares responsável pelo jornal; Antônio Marques da Costa Soares, também nascido
em Portugal, ocupara alguns cargos durante a administração de Pinto da Fonseca (1819-
1822), como o de Diretor da Tipografia do Maranhão. Após a adesão, seu nome constava
na lista dos “portugueses que foram notavelmente opostos ao sistema da Independência e
que são capazes ainda de transformar o sossego público” e que, em razão disso, deveria ser
expulso da Província. Cf. ATA da Câmara Geral do dia 15 de setembro de 1823. Arquivo
Nacional, Coleção Diversos, caixa 741, A, 1, 3.

87
Entre a província e a nação

Conselho dos Procuradores, falava em tomar medidas que garantissem


a “prosperidade do Brasil”, mas também fazia referências ao “Bem
do Reino-Unido”6 e, de igual maneira, o de 3 de junho justificava
a convocação da “Assembleia Luso-Brasiliense” na necessidade
de se tomar medidas urgentes “para a mantença da integridade da
Monarquia portuguesa e justo decoro do Brasil”.7
De qualquer forma, mesmo não se tratando de um discurso de
independência, não se pode deixar de considerar que o mesmo decreto
que tratou sobre a Assembleia Constituinte no Brasil trouxe no bojo de
suas justificações a referência à “soberania, que essencialmente reside no
Povo deste grande e riquíssimo Continente”. Essa alusão à “soberania”
torna latente uma discussão que já se via presente na imprensa carioca
e compunha aquele escopo de questões que ajudaram a despertar nos
cidadãos do Rio de Janeiro a percepção de possuírem certos direitos,
o que acabou por se refletir nas suas atuações em lutas pelo respeito
desses direitos, uma verdadeira “vontade de cidadania”.8 Nesse sentido,
a discussão em torno de uma soberania que “reside no Povo”, mesmo
que não seja aqui entendida como sinônimo de cidadania, o que de fato
não era, alimenta a ideia de que este “Povo” se constituía um corpo que
é coletivo, mas, ao mesmo tempo composto por indivíduos que passam
a se perceber, ainda que numa fase de definição de significados, como
cidadãos. Essa discussão não obteve o mesmo encaminhamento nas
páginas do Conciliador.
Não se trata de negar a existência da discussão em torno da
temática da soberania nas páginas do periódico maranhense, posto
que fosse alvo de muitas reflexões feitas por seus redatores. Entretanto,
sempre que abordado o tema, tratavam de rechaçar qualquer discurso
que pleiteasse colocar em suspeição a legitimidade soberana das Cortes
reunidas em Portugal. Ali, e tão somente ali, residia esta soberania. Por
fidelidade a esses princípios era que o jornal se movia. Mesmo quando
publicou as deliberações de fevereiro e junho de 1822, não houve debates
ou ainda qualquer movimentação em torno dos direitos individuais.
Falava-se sempre numa perspectiva mais ampla como, por exemplo,

6 Decreto de 16 de fevereiro1822 - cria o Conselho de Procuradores Gerais das


Províncias do Brasil. Cf. José Paulo de Figueirôa Nabuco de Araujo (1937, p. 258-259).
7  Decreto de 3 de junho de 1822 – manda convocar uma Assembleia Geral Constituinte
e Legislativa composta de Deputados das Províncias do Brasi, p. 286.
8 LUSTOSA, Isabel. O debate sobre os direitos do cidadão na imprensa da
Independência... Op. cit., p. 11, nota 1.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

sobre o “pacto social” que fora selado entre os “irmãos e membros da


grande família lusitana”:
os projetos do Príncipe Real contra a Suprem Soberania Nacional,
progridem com passos de gigante; e este jovem Príncipe, cego pela
sedução dos perversos demagogos, nem já duvida de comprometer
o decoro e interesse de seu Augusto Monarca, e Pai, nem de soprar
vulcões de discórdia e da guerra civil entre Portugueses Brasileiros
e Portugueses Europeus, que a Natureza e o mas solene Pacto Social
constituíram Irmãos e Membros da Grande Família Lusitana!9

Ainda para satisfazer ao propósito de clarear o cenário


contrastante entre Rio de Janeiro e Maranhão, destaca-se outro ponto
importante da conjuntura política que foi determinante na atuação
do Conciliador: o alinhamento do Maranhão a Portugal se manteve
inalterado mesmo no correr do primeiro semestre de 1823, situação
que justificava sua oposição a todas as deliberações de d. Pedro para o
Brasil já independente. Assim, durante o intervalo entre a convocação
da Constituinte e seu real estabelecimento, quando no Maranhão
celebrava-se ainda o juramento da recém-chegada Constituição
produzida pelas Cortes reunidas em Portugal, o jornal registrava
com satisfação as decisões da Junta Provisória e Administrativa da
província relativas aos preparativos para que no dia 12 do mês de
Janeiro10 se procedesse ao ato solene de juramento da Constituição,
do qual participaram autoridades e cidadãos de “todas as classes” da
província.
O documento foi exaltado como símbolo da “liberdade”, “clarão
da heroicidade”, obra dos “pais da Pátria” que por sua proeza mereciam
que lhes fossem dados “culto incenso”.11 A edição seguinte, que saiu às
ruas em 15 de janeiro, foi dedicada a destacar sonetos, poesias e hinos
criados especialmente para comemorar a festividade pela tão aguardada
Constituição.
Na importante Vila de Alcântara, o ato que se processou também
em 12 de janeiro mereceu destaque por parte do Conciliador que
publicou um Suplemento, especialmente para registrar as festividades
naquela Vila:

9  O Conciliador, n. 126, p. 3, 25 set. 1822.


10  A Portaria nº 752, de 07 de Janeiro de 1823, determinava entre outras coisas que a
cidade fosse iluminada por um período de três dias. Cf. Conciliador, n. 157, p. 4, 11 jan.
1823.
11  O Conciliador, n. 157, p. 4, 11 jan. 1823.

89
Entre a província e a nação

não havia senão dois dias para os preparativos; contudo não faltou
para o regozijo fosse completo e tudo apareceu como por encanto.
Quanto pode o entusiasmo em peitos portugueses, e de quanto
é suscetível o seu abalizado patriotismo! Até o tempo parece que
respeitou a santidade deste dia; porque havendo entrado a estação
chuvosa, se apresentou mais alegra que o mais lindo dia da primavera.

Pelas nove horas da manhã, apareceu nas Casas da Câmara o


Anjo Tutelar da Nação, vestido em grande gala, de azul e branco,
e esmaltado de preciosa pedraria, sustentava na mão direita o
maravilhoso Código da Constituição Portuguesa, encadernado
em capa de veludo azul; bordado à prata; e pendente ao colo uma
rica medalha, na qual se lia em letras de prata, sobre campo azul
a palavra CONSTITUIÇÃO. Mandou logo a Câmara convidar o
Povo para que fosse de perto ouvir o melodioso Canto do formoso
Serafim, e imediatamente se encheu de Povo a Sala das Sessões;
postou-se então o Anjo defronte do Corpo Municipal e aí ao som
da música entoou o seguinte hino:

Vem, oh Código Sagrado

Afortunar a Nação:

Recebei, gentil Alcântara,

A lusa Constituição.12

A narrativa do texto que acabamos de transcrever apresenta um


evento marcado fortemente por uma mística religiosa. A “santidade”
daquele dia foi observada até mesmo pelas forças da natureza que,
contrariando a lei natural, transformou a estação chuvosa no mais
“lindo dia de primavera”. As referências ao sagrado expostas no texto
são capazes de promover, mesmo no leitor mais atento, a sensação
de se tratar da descrição de um cortejo religioso. Todos os vivas à
Constituição acompanhados de vivas à Religião são, na visão de Lúcia
M. Bastos Pereira das Neves,13 expoentes da cultura política luso-
brasileira, fortemente marcada pela religiosidade que, no âmbito das
transformações vivenciadas naqueles últimos tempos, mesclava-se ao
“espírito racional do século”. No Maranhão não era diferente.
12  O Conciliador. n. 161, p. 5, 29 jan. 1823.
13 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Constituição: usos antigos e novos
significados de um conceito no Império do Brasil. In.: CARVALHO, José Murilo de;
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das (org.). Repensando o Brasil dos oitocentos.
Cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 192.

90
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Toda essa movimentação observada no Maranhão em torno


da Constituição, em pleno ano de 1823, passava ao lado das questões
que envolviam o estabelecimento e o funcionamento da Assembleia
Constituinte no Rio de Janeiro, que uma vez instalada, encontrou nos
jornais cariocas o instrumento de ampliação dos debates ali travados.
Desse modo, ao opinar, criticar ou comentar a atuação dos deputados
e senadores congregados, os periódicos levavam o povo14 para o centro
dos debates políticos.15
Como já dissemos, essa dinamicidade da imprensa carioca não
foi observada no Maranhão que, para além da decisão de não enviar os
quatro deputados que deveriam representa-lo na Assembleia, viu ainda
um verdadeiro hiato nas atividades impressas regulares na província
desde que o Conciliador encerrou suas atividades em 23 de julho de
1823, pouco antes da adesão à independência. Aliás, o período entre
1823 e 1825 é uma grande lacuna na história da imprensa maranhense.
Depois do Conciliador, a província teve que esperar até o ano de 1825,
quando os jornais Amigo do Homem, Argos da Lei e Censor surgiram e
inauguraram um novo período, muito mais dinâmico e vertiginoso do
que os tempos da exclusiva atividade do Conciliador. Como destacou
Marcelo Cheche Galves, “Tal retração da atividade tipográfica dificulta
a apreensão dos debates em torno da Constituição, como aqueles, por
exemplo, travados na imprensa do Rio de Janeiro”.16 Deste modo,
14  Atento à polissemia do termo, a menção que se faz aqui a “povo” é tão somente para
destacar que as discussões políticas que, no período anterior à Revolução Constitucionalista
do Porto, se faziam em caráter particular, nos salões e espaços privados, após 1821 passaram
a ganhar espaço junto às ruas, praças, comércio etc. No que tange especificamente à
composição social dos indivíduos que direta ou indiretamente tinham acesso aos debates
travados nas folhas periódicas, não se pode deixar de considerar que esse “povo” representa
uma pequena parcela da população brasileira. Cumpre destacar o fato de que durante esse
processo de construção da identidade nacional brasileira, nos jornais que circularam no
Maranhão nos primeiros anos após a independência não há qualquer discussão que se
preocupasse em trazer para o espaço dos debates sobre diretos civis ou da própria definição
da cidadania categorias como “pobres”, “índios”, “mulatos” e “pretos”. Como lembrou
Maria Lúcia Bastos P. das Neves, o temor de “qualquer alteração brusca da ordem social”
levou o Brasil a um “modelo de nação do qual a maioria ficou excluída”. Cf. NEVES, Lúcia
Maria Bastos Pereira das. Cidadania e participação política na época da Independência do
Brasil. Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 58, p. 60, 2002.
15 Para uma melhor compreensão de como a imprensa do Rio de Janeiro
participou avidamente das discussões políticas que movimentaram o Brasil desde os
dias que antecederam ao retorno de D. João a Portugal até o fechamento da Assembleia
Constituinte do Brasil, em novembro de 1823, Cf. LUSTOSA, Isabel. Insultos Impressos:
a guerra dos jornalistas na independência 1821-1823. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
16  GALVES, Marcelo Cheche. O Maranhão e a transição constitucional no mundo
luso-brasileiro - 1821-1825. In.: RIBEIRO, Gladys Sabina; FERREIRA, Tânia Maria Tavares

91
Entre a província e a nação

Somente em 1825, portanto, pós-dissolução da Assembleia


e efetivação da Constituição de 1824, os novos preceitos
constitucionais, por intermédio da imprensa, tomaram corpo na
cena política provincial.17

Sinalizando o novo cenário que se desenhava, o Argos da Lei18 e o


Censor19 ganharam as ruas em janeiro de 1825, respectivamente nos dias
07 e 23, trazendo como tema central, já na abertura de seus primeiros
números, a problemática relação entre “brasileiros” e “portugueses”
que já movimentava a província desde os tempos da independência.20
Inaugurava-se ali, no Maranhão, aquele processo que Isabel Lustosa
verificou no Rio de Janeiro.
A imprensa maranhense passou então a figurar também
como protagonista das discussões em torno de direitos e garantias
constitucionais que tinham no sentimento antilusitano o pano de fundo
das agitações políticas que dominaram a atmosfera do Maranhão, que
desde a guerra pela independência havia escancarado as querelas já
existentes entre as famílias mais importantes da província na disputa
pelo poder. A cada edição publicada o tema do antilusitanismo ganhava
contornos mais fortes.
Assim, quando em 1824, Cochrane retornou ao Maranhão e
empossou Manuel Teles da Silva Lobo na presidência da província em
Bessone (org.). Linguagens e práticas da cidadania no século XIX. São Paulo: Alameda,
2010, p. 116.
17  GALVES, Marcelo Cheche. O Maranhão e a transição constitucional no mundo
luso-brasileiro... Op. cit., p. 111.
18  Saindo sempre às terças e sextas-feiras, escrito em duas colunas e costumeiramente
composto de quatro folhas, o Argos da Lei iniciou suas atividades em 07 de janeiro de 1825 e
manteve-se em circulação até a 10 de julho de 1825, com um total de 45 edições. Tomando por
base os registros catalográficos da Biblioteca Pública Benedito Leite, em São Luís, consolidou-
se na historiografia maranhense mais recente, a ideia de que teriam sido publicados apenas
42 números, sendo este último datado de 07 de junho de 1825. Cf. JORGE, Sebastião. Política
movida à paixão: o jornalismo polêmico de Odorico Mendes. São Luís: Departamento de
Comunicação Social da UFMA, 2000, p. 63. Por exemplo, não obstante tenha feito o registro
de que César Marques, “estudioso da nossa história”, atestara a publicação de mais três
números, continuou a afirmar que o fim do jornal se dera em 07 de junho. Mais recentemente,
com o acesso ao acervo digital da Hemeroteca da Biblioteca Nacional, que conserva os três
números que faltavam do Argos, tem-se a constatação que o jornal se estendeu até 10 de julho.
19  O Censor circulou no Maranhão em 16 edições, entre janeiro de 1825 e julho de
1826, com uma importante pausa entre as edições 07 e 08, de 24 de março e 29 de dezembro
de 1825, respectivamente.
20  Também nesse período, exatamente no dia 01 de janeiro, deu-se início à publicação
de outro periódico, o Amigo do Homem, entretanto, como já registrado no primeiro
capítulo deste trabalho, com exceção do nº 05, de 16 jul. 1825, não existem edições
preservadas daquele periódico referentes ao ano de 1825.

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Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

substituição a Miguel Ignácio dos Santos Freire e Bruce, de quem era


secretário, estabeleceu-se o cenário em que as disputas periódicas seriam
travadas.
Não obstante o relativo clima de segurança que se estabeleceu, o
tão desejado sossego público e o fim das desavenças que estagnaram o
comércio no final de 1824, não foram plenamente conquistados com a
mudança do governo provincial. Na prática, o processo que resultou
na adesão à Independência, significou também o alvorecer de um
novo arranjo político. Destituída a Junta do Governo que governava
a província, junta essa presidida pelo Bispo D. Fr. Joaquim de Nossa
Senhora de Nazaré, que representava os interesses dos que defendiam a
manutenção dos laços com Portugal, perderam espaço as figuras ligadas
ao capital mercantil, fruto da intensa rede de comércio Maranhão/
Portugal. Neste novo cenário, contrapondo-se aos grupos que regiam
a província, outras figuras da elite política de São Luís e também
agricultores da região do Vale do Itapecuru passaram a disputar o poder.
Atento a isto, em correspondência “Secreta e Confidencial”,
Cochrane sugeriu ao Imperador que em prol da harmonia e felicidade
daqueles povos, se enviasse alguém de fora da província para ali governar
e assim garantir que as vantagens daquela união não se perdessem pela
falta de um eficaz governo local. Um governante de fora estaria distante
da influência das grandes famílias que habitavam o Maranhão. Lembrava
que a distância geográfica dificultava o contato com a Corte, o que
acarretava maior estorvo quando da necessidade de serem dirimidas
as querelas que viessem a ser praticadas. Em contrapartida, a maior
facilidade de comunicação com Lisboa, também não passou despercebido
por Cochrane. Apesar de não fazer presunções sobre o caráter dos atuais
membros da Junta Provisória ou dos que lhes pudessem suceder, não
via neles competência nem tampouco os predicados necessários para
exercer um bom governo.21 Desse modo, a escolha de Manuel Lobo ia
ao encontro das avaliações de Cochrane que, como dito, por diversas
vezes já havia sinalizado que o grande problema do Maranhão eram as
disputas das famílias mais abastadas pelo acesso ao governo provincial,
razão pela qual defendia a necessidade de que para aquele cargo fosse
indicado alguém de fora da província. Lobo, nascido na Bahia, não era,
necessariamente, ligado a nenhuma daquelas famílias. E, pelo menos em
termos oficiais, deixou registrado seu desapego ao poder.
21  Arquivo Nacional, Coleção Diversos, Correspondência “Secreta e Confidencial” de
Cochrane, de 14 de agosto de 1823, encaminhada a José Bonifácio, CX. 741 A, 1, 3.

93
Entre a província e a nação

Numa leitura semelhante à já feita por Cochrane, oficiou ao


Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, João Severiano
Maciel da Costa, as questões por trás da sua interinidade. Naquele
ofício, informava que substituía Bruce, mas que a situação conturbada
da província exigia a nomeação de um novo presidente que atendesse
às peculiaridades do lugar. O problema das disputas internas pelo poder
de governar o Maranhão havia levado a província a um “melindroso
estado”, que exigia uma imediata intervenção por parte do Imperador
que deveria nomear um novo presidente,
cuja eleição nunca deverá recair em indivíduo que seja oriundo
dessa província, por isso que este é um dos principais motivos
que tem originado as desordens de que tem sido tão abundante a
província do Maranhão.22

Como se verá mais adiante, isso não impediu que os interesses políticos
locais ainda fossem sentidos durante sua administração.
O governo de Lobo foi marcado pela tentativa constante de
fazer parecer que uma nova era se estabelecia no Maranhão, em que os
tempos de desmandos e atropelos das normas legais, presenciados e até,
em certa medida, incentivados pelo antigo presidente, não encontravam
mais espaço. Como parte desse processo, encaminhou uma série de
Ofícios aos Juízes de lugares específicos da província, como as vilas de
Guimarães, Viana, Alcântara e seus respectivos distritos, acusando o
público e notório conhecimento dos “muitos roubos, arrombamentos
de portas e grandes desordens”, que incluíram até mesmo assassinatos,
como o “de um europeu João Jacintho”, de “um tal Estevão” e do
“Coronel Francisco Lopes Calheiros”. O governo dizia que estes casos
não deveriam ficar impunes, de modo que ordenava que fossem feitas
“com urgência” a abertura de devassa para apurar os crimes cometidos.
Da mesma forma, ciente da indisposição do antigo governo com os
consulados estrangeiros, escreveu também a P. de Pallières, Vice-
cônsul da França, em 21 de janeiro de 1825, informando ter tomado
conhecimento dos espancamentos praticados contra vários cidadãos
franceses, durante o governo passado. Pedia ao vice-cônsul que
encaminhasse uma lista dos que foram maltratados e, se fosse possível,
dos autores dos crimes.23
Igualmente, Lobo teve que dar encaminhamento a uma série de
22  O argos da lei, n. 2, p. 3, 11 jan. 1825.
23  Idem, n. 8, p. 2 et. seq., 1 fev. 1825.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

matérias jurídico-administrativas que nos últimos meses do governo


Bruce acabaram por ser deixadas de lado. Muitas dessas demandas eram
determinações vindas direto da Corte, no Rio de Janeiro e, em alguns
casos, resultaram em cobranças cada vez mais insistentes como, por
exemplo, a questão das eleições dos deputados e senadores da província.
Apenas seis dias depois de ter assumido o comando da província, Lobo se
viu obrigado a dar uma resposta às imperativas ordens para que o governo
da província procedesse às ditas eleições. Em 31 de dezembro, respondeu
ao ministro João Severiano Maciel da Costa, atestando que das “diversas
secretarias de Estado” já havia recebido diferentes ordens, para se por em
execução as imperiais determinações “sobre a eleição dos Deputados e
Senadores”, mas, apesar disso, até a data de 25 do corrente, pelo anterior
governo “se não tinha dado passo sobre esse objeto”. Garantia que, não
obstante a distância entre os distritos da província dificultasse a imediata
execução, no dia 20 de fevereiro todos os deputados e senadores24 estariam
prontos para embarcar para o Rio de Janeiro.25
De fato, em ocasião ulterior, 20 de dezembro de 1824, o novo
ministro da Secretária dos Negócios do Império, Estevão Ribeiro de
Rezende, já havia reiterado a urgência no cumprimento das ordens
imperiais, do qual dependia a “instalação do corpo Legislativo no prazo
fixado pela [...] Constituição”.26 O mesmo ministro lembrava ainda outra
portaria que com as mesmas determinações já havia sido encaminhada
há oito meses. Em 2 de março de 1825, o já presidente Lobo ordenou o
registro e o cumprimento daquelas ordens, o que por si só já indicava
que o compromisso firmado com o antigo ocupante daquele ministério
não havia sido cumprido. E, de fato, o mesmo Estevão Rezende ainda
escreveu em outras duas ocasiões para tratar deste mesmo assunto. Em
1º de fevereiro, recomenda “novamente” o governo do Maranhão, que
em atenção ao que “foi ordenado em portaria de 20 de dezembro, do
24  No que se refere aos Senadores, importa lembrar que o parágrafo 43, do capítulo III
da Constituição de 1824, estabelecia que a eleição para o Senado fosse feita a partir de listas
tríplices que eram encaminhadas ao Imperador a fim de que escolhesse para cada província a
quantidade proporcional à metade do número de seus deputados, sem que necessariamente
fosse observada a ordem de maioria de votos. Do Maranhão, para a primeira legislatura,
foi encaminhado a D. Pedro um total de seis nomes, dentre os quais escolheu João Ignacio
da Cunha – depois Barão e Visconde de Alcântara – e Patrício José de Almeida e Silva,
segundo e terceiro mais votados, respectivamente. Cf. Regimento Interno do Senado. Rio
de Janeiro(1883).
25 Ofício de Manuel Teles da Silva Lobo ao Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios do Império, José Severiano Maciel da Costa, em 31 de dezembro de 1824, apresenta
explicações sobre o atraso nas eleições. Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9- 553.
26  O argos da lei, n. 17, p. 2, 4 mar. 1825.

95
Entre a província e a nação

ano passado, faça promover a ultimação das eleições dos Deputados,


e senadores, e remetendo imediatamente as respectivas atas” ao
Imperador dois dias depois, a nova representação, desta feita num tom
muito mais imperativo e, em certa medida, ameaçador:
sua majestade o Imperador, querendo atalhar os muitos
inconvenientes que podem resultar da falta de pronto cumprimento
às suas Imperiais determinações, e evitar que se confunda o
direito de petição com o que é verdadeiramente pouco respeito e
desobediência à lei, de que ele é o supremo guarda: há por bem que
os Presidentes das províncias cumpram e façam cumprir logo o que
lhes for determinado [...]. E assim o manda pela Secretaria d’Estado
dos negócios do império participar ao Presidente da província do
Maranhão para sua inteligência e execução.27

Diante das pressões que vinham constantemente recebendo por


parte do governo central, Lobo decidiu transferir a cobrança às Câmaras
dos distritos, como fez em 26 de abril, em ofício encaminhado ao juiz
presidente, vereadores e oficiais da Câmara da Vila de Caxias. Nele,
Lobo dizia “estranhar severamente” a “omissão” que faziam as muitas
cobranças que ele já os havia encaminhado sobre a urgência do tema.
Dizia que as recomendações do Imperador tratavam da premência na
execução de suas ordens, visto que a Assembleia deveria ser instalada
em 4 de maio. Por esta razão, Lobo dizia àquela Câmara que sua letargia
era “assaz repreensível” e ordenava “muito positivamente” que, o mais
breve possível, remetessem “as respectivas listas e as atas como lhe
cumpre, na certeza de que os responsabilizo perante S. M. I. e a Nação
por qualquer inconveniente que resultar desta demora”.28
A verdade é que toda essa discussão em torno das eleições e
da morosidade para que se fizessem cumprir as ordens imperiais se
desenrolava num Maranhão em que as questões políticas de ordem
mais imediatas estavam inseridas num ambiente ainda profundamente
fracionado, tanto pelos interesses de famílias que disputavam o poder
como pelas querelas que dividiam brasileiros natos e portugueses.
Durante as disputas eleitorais estas duas questões vieram à tona, com se
pode verificar em cartas publicadas pelo Argos da Lei.
O “Amigo das instruções”, ao denunciar os atropelos às leis
cometidos durante as disputas eleitorais em Itapecuru, vociferou “é
forte teima” não se pode em Maranhão fazer uma eleição em que se
27  O argos da lei, n. 28, p. 1 et. seq., 12 abr. 1825. Grifos nossos.
28  Idem, n. 36, p. 1 et. seq., 10 mai. 1825.

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Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

não quebre a lei”. A denúncia recaia no fato de que pelo menos dois dos
quatorze que concorreram ao Senado estavam legalmente inabilitados
para tal cargo, a saber Lourenço de Castro Belfort e Sebastião Gomes da
Silva Belfort. De igual forma, na disputa para a Câmara dos Deputados
outros dois, dentre os doze, Antônio Nunes Belfort e o Dr. Leocádio
Ferreira encontravam-se também impedidos legalmente de concorrer
às eleições. Contrariando as “instruções aprovadas por S.M.I.”, os
três primeiros “estão criminosos em devassas” e o último “não tem
quatrocentos mil réis de renda”.29 Como se pode constatar, para os
dois cargos concorriam nomes ligados à família Belfort, mas também à
família Burgos. A historiografia já registrou que as disputas entre estas
duas famílias, somada à família Bruce, marcaram os primeiros anos do
Maranhão independente.30
Nessa mesma linha, ainda que não se tratasse das eleições para
deputado ou senador, outra denúncia anônima, desta feita sobre as
eleições para o Conselho de província e para o Conselho Presidial,
questionava a parcialidade dos “Juízes Belfortinos”, que pareciam
cometer erros “muito gordos” a favor da “cabala belfortina”.31
Todavia, como já sinalizado há pouco, se as querelas entre as
famílias estavam por trás do moroso processo das eleições, a atmosfera
política também era influenciada por uma questão igualmente
controversa: a ainda latente animosidade entre e os brasileiros nascidos
no Brasil e os nascidos na Europa. A indisposição entre os brasileiros
natos Odorico Mendes, decidido a disputar as eleições, e Joaquim
Antônio Cardoso, igualmente inclinado à disputa eleitoral, ajuda a
visualizar melhor como aquelas questões compunham aspectos de uma
mesma trama.
Depois de algumas rusgas entre os dois, numa edição inteiramente
dedicada a rebater seu adversário, Odorico acusava Cardoso de ser
um “velho”, “homem de tretas”, cujas posições políticas sempre se
acomodavam ao rumo dos acontecimentos. Dizia que não obstante o
seu atual apoio aos “nossos irmãos adotivos”, há pouco, quando ainda
era contrário à Independência, viu seu filho e genro serem presos
a mando de portugueses, levando-o a chamá-los de “vil canalha,
infames, indignos, que deviam ser exterminados da província”. Depois,
29  O argos da lei, n. 24, p. 3, 29 mar. 1825.
30 Cf. MEIRELES, Mário. História da Independência do Maranhão. Rio de Janeiro:
Editora Artenova, 1972.
31  O argos da lei, n. 31, p. 1, 22 abr. 1825.

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Entre a província e a nação

continuava Odorico, quando se viu envolto em dívidas para com estes


mesmos portugueses, tomasse novamente a defesa destes.32
Pelo que se verifica, há aqui o fortalecimento da constatação
de que as posições, muito mais do que a fidelidade a uma ideia, eram
adotadas de acordo com as conveniências do momento. Até porque,
importa lembrar, a configuração do momento era justamente de
redefinição das ideias que até então fundamentavam a retórica política.
Na visão de Odorico, a atual filiação de Joaquim Antônio Cardoso aos
portugueses, muito embora fosse ele próprio um “brasileiro nato”, não
passava de uma tentativa de “atrair para Senador os votos dos europeus,
já que os brasileiros, escarmentados dos seus bens feitos [sic], não irão
muito longe para aí”.33
Ainda na esteira das ações de Lobo para demarcar seu governo
como o início de uma nova fase, passou para a ordem do dia a apuração
dos crimes imputados ao governo antecessor, que sob muitos aspectos
também se inseria no mesmo contexto das disputas de algumas famílias
pelo poder e nas rivalidades entre “brasileiros” e “portugueses”. Assim,
em 11 de janeiro de 1825, Lobo escreveu ao Desembargador Ouvidor
Geral do Crime, solicitando que se fizesse uma minuciosa investigação
sobre os crimes cometidos nos últimos tempos, identificando os
“principais agentes, autores e cúmplices dos movimentos anárquicos
e revolucionários, que tanto tem devorado esta província, durante a
administração daquele ex-presidente”. Justificava o pedido na alegação
de aqueles crimes terem sido responsáveis por destruir os “princípios,
fundamentos e harmonia” da sociedade, a ponto de serem vistos, “por
todas as partes da província as terríveis e sanguinárias cenas da Ilha do
Haiti”.34 Por tudo isso, no referido decreto, Lobo listou nominalmente
pelo menos uma dúzia de crimes que deveriam ser apurados.
Não se pode perder de vista que a nomeação de Lobo acontecera
pela exclusiva vontade de Cochrane, como uma resposta imediata às
muitas reclamações que lhe chegava aos ouvidos, como, por exemplo,
o “Discurso das Senhoras”, que foi apresentado ao Marquês na ocasião
de seu retorno ao Maranhão em meio à profusão de acontecimentos
que haviam tomado a província no correr do ano de 1824. No referido
documento, denunciavam a “cruenta perseguição contra nossos pais,

32  O argos da lei, n. 25, p. 1 et. seq., 1 abr. 1825.


33  Ibidem, p. 2.
34  Idem, n. 9, p. 1, 4 fev. 1825.

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nossos filhos, nossos maridos e nossos irmãos”, todos europeus. Citava


os desmandos liderados por Bruce desde o instante em que Cochrane se
retirara da província, no final de 1823, após a adesão. Dizia ainda:
não tem havido um só dia, uma só noite, uma só hora em que ninguém
pudesse respirar sossego em seu domicílio sagrado: os Cidadãos
espancados barbaramente pelas ruas, as portas dos melhores
edifícios escavacadas a golpes de machado escandalosamente sem
o menor rebuço, os ladrões carregando impunemente as fazendas
aos braçados (sic.) das lojas e armazéns, os assassinos no coração
da Cidade tão encarniçados que enchiam de cutiladas a inocentes
vítimas, depois de os haverem matado a tiros, mesmo no centro
de suas casas e em seus leitos; por outra parte, grossos tumultos
comandados por agentes assalariados perturbando o sossego
público, levando consigo negros carregados de pedras com que os
mesmos pérfidos quebravam as vidraças das casas dos Cidadãos
mais ilustres, insultando de palavras injuriosas suas aflitas mulheres,
que davam dolorosos gritos para livrarem da morte seus maridos
consternados, alguns dos quais arrombando-lhe as portas foram
macerados à vista de suas magoadas mulheres e de seus inocentes
filhinhos com cargas de pau a que os malvados por facecia chamam
= lustro =.35

Já interino no governo da província, Lobo registrou a intervenção


de Cochrane como a salvação “do naufrágio em que [o Maranhão] ia
submergir”.36 Considerando que as acusações imputadas ao governo de
Bruce não eram novas, no ofício de 11 de janeiro, retomava-se mais uma
vez a questão das eleições, com a determinação de que fosse apurado
se “houve abusos nas eleições para Representantes da Nação e para
os Membros do Governo Provincial”, bem como as velhas denúncias
de que Bruce havia premiado seus comparsas com empregos e altas
patentes de oficiais, “inclusive a de Coronel”.

35  A íntegra do texto foi publicada nesta mesma edição do Censor. A leitura deste
documento remete-nos a outro publicado aproximadamente um ano antes, no Rio de
Janeiro. No Requerimento Rasão, e Justiça, assinado por “uma terça parte das Senhoras
Brasileiras”, mulheres brasileiras casadas com homens nascidos em Portugal rogavam ao
Imperador que tomasse providências contra a ameça de se verem na condição de “casadas
sem esposo, viúvas com marido” e de terem “filhos sem pais”. Cf. CARVALHO, José Murilo
de; BASTOS, Lúcia; BASILE, Marcelo. Guerra Literária: Panfletos da Independência (1820-
1823). v. 3. Belo Horizonte: EdUFMG, 2014, p. 789. Enquanto as senhoras do Maranhão
tratavam de questões mais imediatas, situações já vividas, as do Rio de Janeiro previam o
perigo que se aproximava. Embora os dois textos guardem semelhanças, não há qualquer
indicação de que a ação iniciada na Corte tenha servido de inspiração às senhoras do
Maranhão. Cf. Censor, n. 8, p. 132 et. seq., 29 dez. 1825.
36  Oficio de Manuel Telles da Silva Lobo a João Severiano Maciel da Costa, em 31
de dezembro de 1825, comunica a chegada do Marquês do Maranhão, Lord Cochrane.
Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-553.

99
Entre a província e a nação

De modo geral, a narrativa por trás dessas ações vinha ao


encontro da conveniência de fazer com que a normalidade da vida
cotidiana prontamente se estabelecesse. Isso passava inclusive pela
premente necessidade de apresentar soluções concretas às querelas
que envolviam “brasileiros” e “portugueses”. Por esta razão, Lobo
não deixou de registrar os conturbados Bandos de 1º e 2 de abril que
implicavam diretamente sobre os portugueses. Nada podia ser deixado
sem investigação, sobretudo as denúncias de roubos, assassinatos,
lustros e deportações de cidadãos que teriam acontecido mesmo “sem
processo se sem sentença”.37
Na proclamação38 que escreveu aos “patrícios e amigos” que
habitavam a província, tão logo assumiu o governo, dizia que o “tempo
de traçar novo rumo” havia chegado e este só poderia se efetivar na
medida em que a província aprendesse com a “recente lição do
passado”, quando a província se viu diante de inúmeros males, como “a
fraqueza, os roubos e assassinatos perpetrados por monstros humanos,
o desalinho das nossas desoladas famílias, o esmorecimento da lavoura,
o intervamento [sic] do giro do comércio”. Agora, o governo se
comprometia a fazer valer a obediência às Leis e o fiel cumprimento
da Constituição do Império, questões até ali vistas como minimizadas.
Todavia, a tônica principal da mensagem enviada por Lobo dizia
respeito à afirmação de um discurso de conciliação, o fim das “odiosas
distinções e rivalidades”. Era necessário “amainar a efervescência dos
partidos”.
Lobo adotava o epíteto “Irmãos” para se referir àqueles que haviam
cometido os erros no passado. Mesmo que não aponte exatamente a
quem se refere quando acusa, nos parece que a referência a tais erros
indica muito mais a ação dos “portugueses” que se posicionaram
contrários à adesão do Maranhão à independência do que aos aliados
de Bruce a quem mandara investigar seus crimes. A estes “Irmãos”,
cujos erros deviam ser lamentados, cabia tão somente à justiça aplicar
as sanções no caso de serem comprovadamente tido como criminosos.
Não concernia aos demais cidadãos, ainda que ressentidos pelos crimes
do passado, aplicar a justiça por conta própria, fazendo uso do “ferrete
do crime”. A insistência em demarcar um novo tempo em que a Lei seria

37  O argos da lei, n. 9, p. 2, 04 fev. 1825.


38  Proclamação de Manuel Telles da Silva Lobo, em 27 de janeiro de 1825, em que
pede aos cidadãos que esqueçam as vinganças pessoais e deixem que a justiça encontre os
criminosos. Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-553.

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obedecida e aplicada para a implantação da ordem se fazia importante


na medida em que, mesmo já passados o conturbado tempo do governo
Bruce, os portugueses ainda eram vítimas de muitos dos crimes de
roubo, espancamento e assassinato.
Merece destaque o fato de que embora as questões envolvendo
os crimes imputados a Bruce e seus partidários passassem a ser
investigadas, isso não bastava para consolidar o cenário da mudança.
Não obstante a troca do governo, essa nova realidade ainda não estava
assentada no Maranhão de 1825. Circulares encaminhadas por Lobo,
em abril daquele ano, aos Juízes Ordinários dos Distritos da Província,
revelavam que estes mesmos juízes já haviam comunicado ao governo
a grande dificuldade de fazerem cumprir a lei, sobretudo por conta das
ameaças que sofriam, de modo que se mostravam “omissos ou talvez
atemorizados pelo estado do látego, da desenfreada anarquia” que
dominou o Maranhão durante o governo de Bruce.39
A este respeito, escreveu Marcelo Cheche:
a nova ordem incluía a abertura de devassas e a promessa de
punições rigorosas para os envolvidos nos tumultos da era Bruce.
Comportava, também, o manuseio de centelhas e feridas ainda
abertas. Em janeiro de 1825, Lobo ordenou devassas as vilas de
Guimarães, Viana e Alcântara [...]. No mês seguinte, obteve como
resposta um relato ainda amedrontado do juiz de Alcântara, João
Francisco Mendes, que confessou ter atrasado o cumprimento
da ordem por receio. Na memória das autoridades da região,
permanecia as lembranças dos roubos e espancamentos ocorridos
na vila de Viana - mesma jurisdição de Alcântara -; a morte do juiz,
seu antecessor, Inácio Antônio Mendes, por instaurar uma devassa
e prender homens ligados a Bruce; e, por fim, em julho de 1824,
ameaças a outro juiz, seu colega, soltura de presos condenados e
saques a mais de vinte lojas. Assustado, Mendes assumiu ter se
escondido na mata, assim como fizeram outros cidadãos de bem.40

Se o governo agora parecia dar garantias para que estes juízes


pudessem por em prática o exercício de suas funções na investigação
dos crimes pretéritos, a atuação destes se estendia à necessidade de
fazer com a Lei também fosse estabelecida naquele momento. Por
esta razão, Lobo ordenou ao Juiz Ordinário do Itapecuru-mirim, que
procedesse “com toda a vigilância e rigor na conformidade das leis
39  O argos da lei, n. 28, p. 2, 12 abr. 1825.
40 GALVES, Marcelo Cheche. Ao público sincero e imparcial: Imprensa e
Independência na província do Maranhão (1821-1826). São Luís: Café & Lápis; Editora
UEMA, 2015, p. 326.

101
Entre a província e a nação

policiais do império contra todo indivíduo, que ousar transtornar, a


social harmonia, e bem-estar dos habitantes do seu distrito”. Não se
tratava apenas da “desenfreada anarquia” do passado, mas do ainda
complicado cenário de presente.
Naquele momento, embora não se falasse mais em ataques diretos
à integridade física dos portugueses, pelo menos no que se refere aos
limites geográficos da província, o clima de disputa subsistia e acabava
por alimentar denúncias, por parte dos europeus, que, no âmbito dos
direitos e garantias constitucionais, estariam sendo preteridos.
Em conformidade com o que se disse na abertura deste capítulo,
foi exatamente em meio a essas questões que giravam em torno do
respeito às garantias constitucionais que veio à luz a primeira edição do
jornal O Censor, já como uma resposta às publicações do Argos da Lei
que desde 7 de janeiro daquele mesmo ano já vinha dissertando sobre
as relações entre “brasileiros” e “portugueses”.
Corriqueiramente apresentado pela historiografia como um
legítimo defensor da causa portuguesa, o Censor protagonizou,
juntamente com Odorico Mendes, seu maior rival, grandes embates
que acabaram por alçar a história da imprensa do Maranhão ao mesmo
patamar de outros exemplares desta fase marcadamente apaixonada de
se fazer jornalismo no Brasil, como foram A Malagueta (18.12.1821 –
06.1822), de Luís Augusto May, o Correio do Rio de Janeiro (10.04.1822 –
31.07.1823) de João Soares Lisboa e o Typhis Pernambucano (25.12.1823
– 12.10.1824), do Frei Joaquim do Amor Divino Caneca.
Natural da Villa de Cea, em Portugal, García de Abranches, o
homem por trás do Censor, tinha aproximadamente 52 anos de idade e
há mais ou menos 30 anos vivia no Maranhão com sua esposa e filhos.
Era mais um dos muitos portugueses que, ao longo da história colonial,
vieram ao Brasil e aqui se estabeleceram definitivamente. Suas ideias
giravam, sobretudo, em torno da defesa do cumprimento dos direitos
que a Constituição concedia aos cidadãos brasileiros nascidos na Europa.
Odorico Mendes, por sua vez, nascido em São Luís, em 1789,
era filho de uma importante família da província. Seguindo a tradição
entre boa parte das famílias mais abastadas que habitavam a colônia,
ainda jovem foi enviado para estudar em Coimbra, de onde retornou
mesmo antes de concluir seus estudos. À época, fins de 1824, Odorico
encontrou a província ainda tomada pelas agitações que marcaram

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

profundamente a organização político-social do Maranhão. O fato de


ter ficado três dias a bordo do navio, mesmo depois de já chegado, por
conta de ordens de Cochrane, que também há pouco regressara, já era
um indicativo do que Odorico encontraria nesse seu retorno.

Considerações finais
Como se pode ver, as querelas políticas que dominaram o
Maranhão desde os tempos das guerras pela adesão à independência, não
foram resolvidas naquele 28 de julho de 1823. Os ânimos permaneciam
aflorados e a luta pela delimitação dos espaços a serem ocupados por
“brasileiros” e “portugueses” tornava o cenário ainda mais instável.
Aliás, a própria definição da cidadania brasileira caminhava à medida
que este embate entre os nascidos no Brasil e na Europa se conformava
à realidade político-social da província. O Argos da Lei e o Censor
passaram a ser o principal canal de debate acerca das grandes questões
em torno da definição da cidadania e, consequentemente, dos direitos e
das garantias constitucionais. Todavia, a compreensão desta realidade
que se apresentava no pós-independência, requer um breve retorno
ao passado quando a concepção do “ser brasileiro” ou “ser português”
possuíam significados muito distantes da que foi sendo forjada nos anos
posteriores ao grito de independência.
Até o momento definitivo da ruptura, em fins de 1822,
os significados associados à noção de “brasileiro” e “português”
não incorporavam ainda o sentido das rivalidades que foram se
desenrolando ao longo do primeiro reinado. O período imediatamente
posterior à independência era de profunda instabilidade do ponto de
vista político, mas também social. Apesar das constantes referências
que a historiografia faz às rivalidades entre brasileiros e portugueses,
a configuração social das províncias brasileiras iam muito além
dessa simples dicotomia. Não obstante os discursos proferidos por
significativa parte da imprensa do Rio de Janeiro fazerem referência à
‘autonomia’ e/ou ‘independência’, nos primeiros meses de 1822, havia
ainda o compartilhamento de um projeto de união dos portugueses
de ambos os lados do oceano. Como já destacado, no Maranhão,
mesmo depois da adesão da maioria das províncias do Brasil à ideia
de ruptura total dos laços de união a Portugal, o Conciliador ainda
pregava o discurso da união:

103
Entre a província e a nação

o Brasil não pode ser livre e feliz na sua liberdade, sem viver unido
fraternalmente a seus irmãos europeus [...]; uma união geral das
províncias a Portugal é por hora que lhe pode ser mais útil [...].
Cuidem unicamente de reunirem-se ambas a famílias, lembrando-
se que os Portugueses Europeus sempre foram os seus parentes e
amigos. Brasileiros, Povo Ilustre, abri os olhos, e identificai-vos com
vossos irmãos; é com eles que vos fareis grande.41

Vê-se, aqui, que o Conciliador entendia a “liberdade” reclamada pelo


Brasil como algo que poderia ser alcançada plenamente dentro da união
com Portugal. Esse discurso, aliás, já vinha sendo adotado pelos redatores do
jornal, desde os primeiros meses de 1823. Tezinho culpava os “dissidentes
do Brasil” de não aceitarem qualquer proposta de reconciliação. Dizia que
a única solução ainda possível seria uma “íntima aliança entre o Português
Brasileiro honrado e Constitucional: e o Português Europeu fiel à sua
Pátria”.42 Na ocasião de sua despedida da redação do Conciliador, visto
que havia sido eleito para compor a nova deputação que iria representar
o Maranhão nas Cortes Portuguesas, voltou a falar da união entre os
“Brasileiros Portugueses, e Portugueses Europeus”, como a única maneira
de, pela “confraternidade, e concórdia”, afastar de vez o “aluvião de males,
em que o monstro da discórdia tenta submergir-vos”.43
Mais uma vez, a referência ao discurso da conciliação abre espaço
para o entendimento de que as relações de conflito na Independência
caminhavam muito além da simples dicotomia: brasileiros versus
portugueses. Não se resumia a isto. Não havia homogeneidade nesses
grupos. O que era ser brasileiro? O que era ser português? Estas
respostas não estavam prontas. Até porque, antes da independência,
como lembrou André Machado, “a distinção entre quem é português e
quem é brasileiro foi algo que se construiu durante a luta política e não
um dado anterior a ela”44. Nesta mesma linha de pensamento, Gladys
Ribeiro já destacou que foi à medida que a ideia de total ruptura dos
laços que uniam Portugal e Brasil ganhava corpo que a indisposição
entre “brasileiros” e “portugueses” se tornou mais latente, ou seja, as
“hostilidades foram se acentuando aos poucos”.45
41  O conciliador, n. 194, p. 6, 21 mai. 1823.
42  Idem, n. 179, p. 3, 29 mar. 1823.
43  Idem, n. 188, p. 1, 30 abr. 1823.
44  MACHADO, André Roberto de A. As esquadras imaginárias. No extremo norte,
episódios do longo processo de independência do Brasil. In.: JANCSÓ, István (org.).
Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec-Fapesp, 2005, p. 322.
45  RIBEIRO, Gladys. A construção da liberdade e de uma identidade nacional. Corte
do Rio de Janeiro, fins do XVIII e início do XIX. Anais do XIX Simpósio Nacional de

104
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Não se pode perder de vista que se tratava de um processo em


construção. A reconfiguração política em curso no Brasil acontecia
concomitantemente e, numa relação recíproca de causa e efeito, a uma
redefinição de sua configuração social. Neste processo, a construção
de uma identidade brasileira prescindia de um distanciamento do
componente lusitano e isto, como já dissemos, não estava posto
anteriormente à própria independência. Tratava-se de algo que foi sendo
forjado ao longo deste processo – do grito do Ipiranga à Constituição de
1824 - e que perdurou até pelo menos a abdicação de d. Pedro I.

Referências:
Fontes:
(O) Argos da Lei – MA (1825).
(O) Censor – MA (1825-1830).
(O) Conciliador – MA (1821-1823).
ATA da Câmara Geral do dia 15 de setembro de 1823. Arquivo Nacional, Coleção
Diversos, caixa 741, A, 1, 3.
OFÍCIO de Manuel Teles da Silva Lobo ao Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios do Império, José Severiano Maciel da Costa, em 31 de dezembro de 1824,
apresenta explicações sobre o atraso nas eleições. Arquivo Nacional, Série Interior,
IJJ9 - 553.
OFÍCIO de Manuel Telles da Silva Lobo a João Severiano Maciel da Costa, em
31 de dezembro de 1825, comunica a chegada do Marquês do Maranhão, Lord
Cochrane. Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-553.
PROCLAMAÇÃO de Manuel Telles da Silva Lobo, em 27 de janeiro de 1825, em
que pede aos cidadãos que esqueçam as vinganças pessoais e deixem que a justiça
encontre os criminosos. Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-553.

Obras de Apoio:
CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILE, Marcelo. Guerra Literária:
Panfletos da Independência (1820-1823). v. 3. Belo Horizonte: EdUFMG, 2014.
GALVES, Marcelo Cheche. O Maranhão e a transição constitucional no mundo
luso-brasileiro - 1821-1825. In.: RIBEIRO, Gladys Sabina; FERREIRA, Tânia
Maria Tavares Bessone (org.). Linguagens e práticas da cidadania no século XIX.
São Paulo: Alameda, 2010.
GALVES, Marcelo Cheche. Ao público sincero e imparcial: Imprensa e
Independência na província do Maranhão (1821-1826). São Luís: Café & Lápis;
Editora UEMA, 2015.

História – ANPUH, Belo Horizonte, junho 1997, p. 498.

105
Entre a província e a nação

JORGE, Sebastião. Política movida à paixão: o jornalismo polêmico de Odorico


Mendes. São Luís: Departamento de Comunicação Social da UFMA, 2000.
LUSTOSA, Isabel. Insultos Impressos: a guerra dos jornalistas na independência
1821-1823. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
LUSTOSA, Isabel. O debate sobre os direitos do cidadão na imprensa da
Independência. In.: RIBEIRO, Gladys Sabina; FERREIRA, Tânia Maria Tavares
Bessone (org.). Linguagens e práticas da cidadania no século XIX. São Paulo:
Alameda, 2010.
MACHADO, André Roberto de A. As esquadras imaginárias. No extremo norte,
episódios do longo processo de independência do Brasil. In.: JANCSÓ, István
(org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec-Fapesp, 2005.
MEIRELES, Mário. História da Independência do Maranhão. Rio de Janeiro:
Editora Artenova, 1972.
NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Cidadania e participação política na época da
Independência do Brasil. Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 58, p. 47-64, 2002.
NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Constituição: usos antigos e novos significados
de um conceito no Império do Brasil. In.: CARVALHO, José Murilo de; NEVES,
Lúcia Maria Bastos P. (org.). Repensando o Brasil dos oitocentos. Cidadania,
política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
RIBEIRO, Gladys. A construção da liberdade e de uma identidade nacional. Corte
do Rio de Janeiro, fins do XVIII e início do XIX. Anais do XIX Simpósio Nacional
de História – ANPUH, Belo Horizonte, junho 1997.
SERRA. Joaquim (Ignotus). Sessenta anos de jornalismo: a imprensa no
Maranhão 3 ed. São Paulo: Siciliano, 2001.

106
Parte 3
Sistema representativo e práticas
políticas
Muito além do voto: eleições, participação
popular e regulação do sistema eleitoral na
província de São Paulo (1840-1850)
Rodrigo Marzano Munari1

Em sessão de 16 de agosto de 1839, Antônio Carlos Ribeiro de


Andrada Machado e Silva apresentou à Câmara dos Deputados um
projeto de reforma eleitoral, que foi por ele assinado e por Rodrigo de
Souza da Silva Pontes, deputado pela província de Alagoas, e Francisco
Álvares Machado, por São Paulo. Comentando o resultado dos trabalhos
da “comissão especial das eleições”, Andrada Machado iniciava sua fala
fazendo referência a discussão mais geral sobre o caráter do sistema
representativo que a Carta de 1824 estabelecera no país. Segundo o
deputado paulista, que estava longe de representar uma opinião isolada
– pois encontrava aderência entre os principais teóricos e formuladores
dos “princípios” desse modelo de governo2 –, a representação não fora
adotada para se adequar a democracia às circunstâncias do mundo
moderno; ao contrário, ela viera para se opor ao “governo do povo” e
corrigir os defeitos considerados típicos de um regime democrático, no
qual o “povo” (ou uma parcela dele, o “corpo de cidadãos”, a exemplo
da pólis ateniense) tomava parte diretamente nos negócios públicos e
nos processos decisórios:
a comissão está convencida da importância de uma representação,
maravilhoso invento dos povos modernos, não tanto como meio de
tornar praticável a deliberação de grandes nações em um lugar; pois
isto talvez não seria próprio senão para colher convenientemente,
ou para cegamente executar todas as perniciosas e injustas
decisões de multidões ignorantes. Outras são as vantagens de
uma representação, segundo a opinião da comissão. Corrigir as
faltas do governo democrático, base das eleições populares, é de
mais importância do que estender a esfera a que este governo se
pode aplicar. Uma representação apresenta ao poder da multidão
um contrapeso na influência das outras classes: ela substitui
legisladores hábeis a outros inteiramente incapazes de qualquer
função legislativa; e continua a confiança uma vez depositada

1 Bacharel, licenciado e mestre em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e


Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), onde atualmente é
doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social. É colaborador da
Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul, onde atua na área de pesquisa.
2  A esse respeito, é central a obra de MANIN, Bernard. The principles of representative
government. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

109
Entre a província e a nação

por todo o tempo suficiente para salvar a legislatura das ilusões e


frenesi temporário do povo.3

O projeto apresentado pela comissão criava uma junta de


qualificação prévia dos votantes e elegíveis, instância que seria de fato
estabelecida pelas instruções de 4 de maio de 1842 e, em definitivo,
pela lei eleitoral de 19 de agosto de 1846. Se os pontos definidos no
projeto não reclamavam medida mais drástica, tal como uma reforma
constitucional – o murus ahenus que a comissão não devia transpor
–, Antônio Carlos não escondia sua insatisfação quanto às “bases da
elegibilidade consignadas na constituição do império”. Tais bases
eram, por exemplo, o “sufrágio quase universal” que a Constituição
definira, e de que resultava “sujeitar todos os mais interesses sociais
à só discrição do mesmo”; e as eleições indiretas4, das quais decorria
o desinteresse dos votantes ou eleitores primários em relação aos
deputados, que não eram escolhidos diretamente. O deputado
também se opunha ao voto secreto, que, embora não fosse definido
constitucionalmente, trazia como benefício “destruir” os tumultos
que amiúde acompanhavam as votações; em contrapartida, amortecia
o “amor da liberdade”, introduzia a indiferença e acobertava vícios
de natureza moral. A comissão ainda desejava prescrever o sistema
de pluralidade absoluta de votos na eleição dos deputados, só não o
fazendo por “motivos de conveniência”; pois,
a ordenar-se isto no sistema de eleições provinciais seguido entre
nós, seria mister um processo repetido de eleições que arrancariam
o povo a seus misteres, e não poderiam deixar de ser por ele olhados
como uma aborrecível corveia, e tenderiam a aliená-lo cada vez
[mais] do exercício do direito de votar, exercício a que só por
compulsão de penas pecuniárias se sujeitam.5

A análise de Andrada Machado para justificar a dificuldade em


tornar efetiva a pluralidade absoluta fundamentava-se na existência de
um “povo” que, em essência, não compreendia o valor do voto e não
3  ANAIS da Câmara dos Deputados, sessão de 16 de ago. de 1839, p. 636. Disponível
em: <http://imagem.camara.gov.br/>.
4 As eleições indiretas foram estabelecidas pelo Art. 90 da Constituição de 1824,
pelo qual se determinava que “a massa dos Cidadãos ativos em Assembleias Paroquiais”
escolheria “os Eleitores de Província, e estes os Representantes da Nação, e Província”.
Os artigos subsequentes estabeleciam os requisitos necessários para ser votante, eleitor,
deputado e senador. Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886, p. 19 et seq. Disponível em: <http://www2.camara.
leg.br/atividade-legislativa/legislacao/doimperio/colecao2.html>.
5  ANAIS da Câmara dos Deputados, sessão de 16 de ago. de 1839, p. 636.

110
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

se conscientizara da importância de escolher “bons” representantes;


razões pelas quais o seu comparecimento às votações comparava-
se a uma corveia ou a um trabalho forçado, motivados por “penas
pecuniárias” – isto é, multas –, com dispêndio de seus próprios meios
de subsistência diários. Em outras palavras, multiplicar o número de
processos eleitorais tornaria o voto ainda mais repugnante àqueles
cidadãos que já se encontravam virtualmente alienados desse direito.
Na fala do ilustrado deputado paulista achavam-se bem
sólidos alguns elementos que justificariam – nas falas de muitos
coevos, ao longo das décadas subsequentes e até o final do Império –
maiores restrições ao exercício do voto, que, consoante os preceitos
constitucionais, era concedido a extensas parcelas da população
brasileira: um “povo” sem ilustração, inapto para a prática do voto livre
e consciente, arregimentado, na qualidade de “massa de manobra”,
nas mãos de potentados, autoridades locais e agentes do governo. Não
foi outro o sentido da argumentação de um dos mais acerbos críticos
do sistema eleitoral do Império, o conservador fluminense Francisco
Belisário Soares de Souza. Advogando, em obra publicada em 1872, o
fim das eleições indiretas, Belisário em verdade defendia a supressão
do votante, tendo em vista um sistema de eleições diretas com critérios
censitários mais rigorosos e exigência de alfabetização.6 Só poderia
existir verdadeiro sistema representativo com eleições verdadeiras e,
para tanto, deveriam ser excluídos do direito de eleger aqueles que,
não sendo capacitados para o voto, davam ensejo e oportunidades
fartas para os abusos das autoridades e dos partidos que manipulavam
os pleitos:
o votante pode ser um homem ilustrado e importante; mas não é
este o votante em cujo poder está decidir das eleições primárias,
porque nelas os votos se contam pelo número e não pela qualidade.
Os votantes são a grande massa arrolada nas listas de qualificação,
a turba multa, ignorante, desconhecida e dependente. O votante
é, por via de regra, analfabeto; não lê, nem pode ler jornais; não
frequenta clubes, nem concorre a meetings, que os não há; de política
só sabe do seu voto, que ou pertence ao Sr. fulano de tal por dever de
dependência (algumas vezes também por gratidão), ou a quem lho
6  Belisário escreveu que o exercício do voto exigia duas condições imprescindíveis, pelas
quais se poderia presumir “certa capacidade” no eleitor: saber ler e escrever (censo literário)
e pagar um imposto direto (censo pecuniário). Para o autor, “estas duas condições nos
parecem indispensáveis e podem satisfazer todas as exigências da democracia. Conquanto
tênues, nos parecem, ainda assim, garantidoras de certa solidez e estabilidade social”. Cf.
SOUZA, Francisco Belisário Soares de. O sistema eleitoral no Império. Com apêndice
contendo a legislação eleitoral no período 1821-1889. Brasília: Senado Federal, 1979, p. 132.

111
Entre a província e a nação

paga por melhor preço, ou lhe dá um cavalo, ou roupa a título de ir


votar à freguesia.7

A obra de Belisário, como qualquer outra, aliás, não pode ser


apreendida de forma descontextualizada; e, portanto, não pode deixar
de ser referida à derrota dos conservadores na luta contra a Lei do
Ventre Livre (1871). Esposada, muitas vezes, sem o devido critério,
já foi incorporada como um relato fidedigno das fraudes eleitorais
epidêmicas que lavravam no país. Além disso, informou algumas
interpretações sobre os significados da chamada Lei Saraiva, promulgada
na década seguinte (1881), que estabeleceu o regime de eleições diretas
no Brasil. Sérgio Buarque de Holanda, em seu famoso quinto volume
do segundo tomo da História Geral da Civilização Brasileira, não
deixou de mencionar Belisário de Souza quando se referiu aos traços
mais característicos das nossas eleições primárias ou paroquiais, “a
violência e a turbulência”, um ostensivo espetáculo por vezes descrito
“com pormenores mais ou menos escabrosos em estudos sobre o nosso
sistema eleitoral”.8 E ao tratar das exclusões do projeto que finalmente
resultaria na lei eleitoral de 1881, o mesmo autor salientou que aquela
tentativa de correção dos males que desvirtuavam as eleições se deu por
meio da supressão das chamadas “massas inconscientes”, dando lugar a
uma verdadeira “aristocracia eleitoral sob a imediata direção do Poder
Público e a serviço da centralização administrativa”, bem de acordo
“com os desejos e costumes dos dirigentes e representantes da nação”
e afinada com as tendências (íntimas) de uma sociedade de origem
plebeia, mas de timbre aristocrático.9
É certo que o projeto político marcadamente excludente
e “aristocrático” de Belisário não é o mesmo que culminou na
aprovação da Lei Saraiva; e ele também não é suficiente para explicitar
as disputas políticas que circundavam o problema da eleição direta,
refletindo “expectativas distintas para o país” e esposando “modelos
conflitantes de organização do Estado”, como apontou Filipe Nicoletti
Ribeiro.10 Entretanto, o que importa sublinhar aqui é que o caráter
7  Francisco Belisário Soares de. O sistema eleitoral no Império... Op. cit., p. 33.
8 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Do Império à República. História Geral da
Civilização Brasileira: O Brasil monárquico. t. II, v. 7. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005,
p. 261.
9  Ibidem, p. 264.
10  Fruto desses embates entre os partidos políticos, que tinham posições dissonantes
a respeito de distintos temas relativos ao sistema eleitoral, a lei que estabeleceu a eleição
direta (1881) no Brasil, nota o autor, “se não foi uma lei “democrática”, como exigiria o

112
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

“aristocrático” desse projeto, manifestado em diversos outros


autores da época e revelado por variadas outras fontes, sobretudo
jornalísticas, contribuiu para lançar luzes sobre um passado que se
caracterizava como tragicamente deturpado e falseado em termos
de práticas eleitorais; mormente quando se tratava de atentar para o
voto do homem simples, que não poderia se expressar, em quaisquer
circunstâncias ou lógicas que se pudessem estabelecer, sob algum
conceito de “liberdade” ou “espontaneidade”, sem peias ou entraves
variegados e consistentes. O voto nem sequer expressaria qualquer
identidade, excetuando-se as vontades ou os interesses daqueles que
controlavam a massa dos votantes.
Desse estado de coisas se presume que, como escreveu
Raymundo Faoro, o sistema representativo brasileiro, desde seu
nascedouro, com a Constituição de 1824 e as primeiras eleições
para o parlamento, e da “reação centralizadora de 1837 até o último
ato de 1889”, constituiu-se como “a imensa cadeia do “cabresto” e
do comando da vontade do eleitor”.11 Um eleitor (ou votante) que,
independentemente da legislação em vigor, “não acorria aos pleitos
movido para a defesa de seus interesses e aspirações”, mas que se
deixava guiar pelos funcionários (autoridades policiais e magistrados)
que faziam a eleição, sob o comando da principal peça do maquinário
eleitoral, o presidente de província.12 Se, perante a lei, eram cidadãos
políticos, esses votantes e/ou eleitores não podiam escolher (direta
ou indiretamente) com um mínimo de liberdade e discernimento
– segundo os critérios que são próprios das democracias liberais, o
voto como uma “escolha consciente” do “indivíduo” – aqueles que
os representariam como deputados ou senadores: eram “cidadãos em
negativo”,13 conforme expressão utilizada por José Murilo de Carvalho
para designar todas essas pessoas que, embora tivessem direito a voto
olhar de um observador do século XX, foi uma lei liberal. Não apenas por ter sido realizada
num país de instituições liberais, mas por ter sido realizada pelo partido político que, ao
defender uma agenda marcadamente reformista, assim se intitulava”. Sem desconsiderar
que o Partido Conservador tenha logrado, por sua posição privilegiada no Senado, “impor
restrições e moderar o caráter descentralizador e levemente igualitário da lei”. Cf. RIBEIRO,
Filipe Nicoletti. Império das incertezas: política e partidos nas décadas finais da monarquia
brasileira (1868-1889). Dissertação (Mestrado em História). Programas de Pós-Graduação
em História da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 67.
11  FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro.
São Paulo: Globo, 2001, p. 430.
12  Ibidem, p. 432.
13 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 64-83.

113
Entre a província e a nação

e pudessem participar formalmente do arcabouço institucional por


meio dos pleitos, não eram cidadãos plenos e não tinham condições
de imprimir qualquer direção à política nacional.14
Baseada em tais premissas, a maior parte da historiografia
consagrou imagem passiva e débil da atuação das classes populares
no sistema eleitoral por intermédio do voto, ainda que alguns
trabalhos já tenham demonstrado que a participação do “povo”, em
termos numéricos, era bastante expressiva; isto é, muita gente tinha
direito de voto (pelo menos até a Lei Saraiva).15 Já diversas pesquisas
mostraram e têm mostrado que essa imagem de “passividade”
não corresponde à atuação propriamente política de muitos livres
pobres e libertos, homens e mulheres, que habitavam em distintas
regiões do Império e que, em variadas ocasiões, organizaram-
se para patentear publicamente suas insatisfações ou apresentar
suas demandas aos poderes legalmente instituídos. Muitas vezes,
pessoas com distintas ocupações e condições de vida, artesãos,
oficiais mecânicos, lavradores e comerciantes, mulheres – pobres
ou pertencentes às camadas intermediárias – e até mesmo escravos
recorriam à Justiça para verem seus conflitos solucionados ou suas
pretensões atendidas, graças à capacidade desse aparato judiciário
14  É verdade que Carvalho também rebate a visão, consolidada por muitos escritos
do XIX, de um povo “incapaz de discernimento político, como apático, incompetente,
corrompível, enganável” (CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil...Op. cit., p.
67). O autor considera a existência de um eleitor que, dentro de suas limitações, era capaz
de usar o voto como instrumento de negociação e que, participando continuamente das
eleições, passava ainda por um processo de aprendizado: “Pode-se mesmo argumentar que
os votantes agiam com muita racionalidade ao usarem o voto como mercadoria e ao vendê-
lo cada vez mais caro. Este era o sentido que podiam dar ao voto, era sua maneira de valorizá-
lo. De algum modo, apesar de sua percepção deturpada, ao votarem, as pessoas tomavam
conhecimento da existência de um poder que vinha de fora do pequeno mundo da grande
propriedade, um poder que elas podiam usar contra os mandões locais. Já havia aí, em
germe, um aprendizado político, cuja prática constante levaria ao aperfeiçoamento cívico”
(CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil...Op. cit., p. 44 et seq.). Maria Sylvia
de Carvalho Franco, em sua tese de doutorado defendida em 1964 e publicada em 1969,
obra hoje clássica, já havia notado que a política era a área em que especialmente se podia
observar “a dependência dos grandes proprietários em relação aos seus vizinhos menores”,
havendo certa reciprocidade no fato de que os serviços que os “clientes” prestavam eram
vitais para os grupos dominantes, conjugando-se aos deveres que estes deveriam assumir e
cumprir. “Nesse caso”, ressalta a autora, “em que estavam em jogo objetivos básicos como
apoio político versus auxílio econômico, consolidava-se a interdependência”. FRANCO,
Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ed. Unesp,
1997, p. 90 et seq.
15 Cf. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil... Op. cit., p. 29-31.
NICOLAU, Jairo. Eleições no Brasil: do Império aos dias atuais. Rio de Janeiro: Zahar,
2012, p. 23-28; DOLHNIKOFF, Miriam. História do Brasil Império. São Paulo: Contexto,
2017, p. 39 et seq.

114
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

“de tornar-se progressivamente acessível às camadas subalternas”,16


que podiam ser assim seduzidas para o campo da ordem, como
mostra o trabalho de Ivan Vellasco.17
Em outras e não raras ocasiões, essas pessoas lutaram por seus
direitos, por seus modos de vida ou por sua simples sobrevivência
empunhando armas e envolvendo-se em movimentos, de distintas
características e enquadramentos legais, que agitaram a tênue tranquilidade
do período monárquico em várias partes do país. A esse respeito, obra de
grande relevância historiográfica, que conta com a contribuição de vários
pesquisadores, foi organizada pela historiadora Monica Duarte Dantas e
publicada pela primeira vez em 2011.18 O objetivo expresso de Revoltas,
motins, revoluções, como escreveu a sobredita autora, além de apresentar
novas abordagens sobre alguns importantes movimentos que abalaram
distintas regiões do Brasil ao longo do século XIX, foi trazer à luz algumas
das tantas histórias de pessoas tradicionalmente pouco consideradas
pelas análises ou, de forma geral, estudadas apenas sob as perspectivas
das camadas dominantes:
trata-se de um imenso esforço para recontar uma parte da História
do Brasil a partir de um olhar invertido e necessariamente
multifacetado. Não mais uma história das elites que teriam, por
si, construído o país e, tampouco, de narrativas que, mesmo
reconhecendo a existência dessa vasta população, lhes adjudica um
papel secundário (até anômico), em um país supostamente dividido
apenas entre senhores e escravos. Seguindo o que já nos ensinava
Sérgio Buarque de Holanda, nos idos de 1980, o livro dá voz a uma
“multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama
da história [...], muitas vezes mais interessantes e mais importantes
do que os outros”.19

16  VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e


administração da justiça – Minas Gerais, século 19. Bauru: Edusc, 2004, p. 225.
17  Em sua pesquisa, centrada na comarca do Rio das Mortes (MG), o autor conclui
que a Justiça, numa reflexão interessante também para se pensar a respeito do sistema
eleitoral no Brasil oitocentista, “ao mesmo tempo em que representou um espaço de
efetivação de certos aspectos da cidadania e apresentou-se como a face visível e tangível
do Estado para os não dominantes, desempenhou papel importante na ampliação e
consolidação da base social de sustentação do Estado Imperial, mais larga do que se
supõe, quando se toma o conjunto da população como alheio ao que se passava na esfera
pública; ela foi uma das engrenagens na montagem do campo de legitimação do poder
imperial e, ao Império e aos seus homens de Estado, em suas ambições monopolizadoras,
não passou desapercebida a sua função nem seu potencial de sedução para o campo da
ordem”. Ibidem, p. 225 et seq.
18 DANTAS, Monica Duarte (org.). Revoltas, motins, revoluções: homens livres
pobres e libertos no Brasil do século XIX. 2 ed. São Paulo: Alameda, 2018.
19 DANTAS, Monica Duarte. Prefácio à segunda edição In.: DANTAS, Monica

115
Entre a província e a nação

Não eram poucos os que pertenciam a essa população descontente


que lutava por seus “direitos” e que sabia também reclamá-los nos
momentos em que tivesse de depositar seus votos nas urnas. Eleições
frequentes, que praticamente ocorriam todos os anos – para juízes de
paz, vereadores, eleitores que deveriam escolher deputados provinciais,
gerais ou senadores –, envolviam todo tipo de gente simples, tanto do
campo quanto da cidade,20 como já foi mencionado. Elas também, como
outros instrumentos ou canais de participação nas instituições do Estado,
propiciavam uma experiência de aprendizado da cidadania política, uma
vivência construída “conjuntamente com a própria construção do Estado-
nacional (tão cheia de percalços, mas ainda assim lentamente efetivada
a partir da década de 1820)”.21 Em São Paulo, mesmo num movimento
eminentemente “elitista” como foi a denominada “Revolução Liberal
de 1842”, não estiveram ausentes os “homens simples e do interior” –
pequenos produtores, lavradores, além de trabalhadores urbanos – que
seriam justamente os guardas nacionais engajados ao lado dos revoltosos
ou do governo imperial, conforme o estudo de Erik Hörner.22 A Guarda
Nacional, como nota este autor, não deve ser pensada só como uma
instituição de controle social, mas também de exercício de cidadania e de
ação política, devendo-se considerar que o critério censitário (100$000 réis
anuais) para ser alistado em seus contingentes era o mesmo exigido para
ser votante nas eleições.23 Assim, mesmo que lutassem sob as bandeiras
e programas de seus superiores, esses guardas poderiam ter motivações
outras ou visões próprias dos acontecimentos. Do mesmo modo, há
que se pensar que nem sempre acorressem às votações unicamente por
pressão do bacamarte ou da espada de seus oficiais.
Se muitos cidadãos votantes eram, simultaneamente, guardas
nacionais ou indivíduos potencialmente recrutáveis em suas fileiras,
eles estavam sob o comando de oficiais que em geral pertenciam às
classes abastadas, amiúde proprietários de terras aos quais prestavam
serviços em troca de auxílio e proteção. O voto era sua maior moeda
Duarte. Revoltas, motins, revoluções... Op. cit., p. 4.
20 Cf. NUNES, Neila Ferraz Moreira. A experiência eleitoral em Campos dos
Goytacazes (1870-1889): frequência eleitoral e perfil da população votante. Dados (online),
Rio de Janeiro, v. 46, n. 2, p. 311-343, 2003.
21  DANTAS, Epílogo – Homens livres pobres e libertos e o aprendizado da política
no Império. In.: DANTAS, Monica Duarte. Revoltas, motins, revoluções... Op. cit., p. 531.
22  HÖRNER, Erik. Cidadania e insatisfação armada: a “Revolução Liberal” de 1842
em São Paulo e Minas Gerais. In.: DANTAS, Monica Duarte (org.). Revoltas, motins,
revoluções... Op. cit., p. 331-354.
23  Ibidem, p. 344.

116
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Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

de troca na relação com esses mandatários. Figurava-se um tipo


de subordinação geralmente caracterizado (negativamente) como
clientelismo, que servia para manter e reproduzir os interesses das
camadas dominantes, cumprindo a função essencial do próprio Estado,
na definição da obra clássica de Richard Graham.24 Se essas relações
clientelísticas, de favores e compadrios, que ligavam os indivíduos
entre si, explicam a fidelidade que os comandados ordinariamente
mantinham sob as ordens de seus chefes, elas não podem ser reduzidas a
redes simplistas e unívocas de mando que pressupõem “uma diferença
gigantesca entre o poder econômico das partes”, como aponta
Miquéias Mugge.25 O clientelismo envolve uma dinâmica relacional
mais complexa e formada por redes de acordos que, ao invés de serem
estanques, “eram sempre renegociadas, modificadas, e afetavam a
prática e a mobilização política”;26 variando, evidentemente, de acordo
com as especificidades políticas e econômicas de cada localidade. A
massa mobilizada era constituída, e não somente seus superiores, por
atores políticos que tinham vontades próprias, interesses e expectativas
em que se baseavam e que informavam suas ações.
Entre os desafios de que se ocupam os pesquisadores na
análise sobre as eleições do século XIX encontra-se a necessidade de
compreendê-las consoante as concepções e os modos de atuação dos
atores políticos da época, evitando-se, desta feita, o risco de recorrer
24  Cf. GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
25  Estudando as listas da Guarda Nacional e o processo-crime relativo ao assassinato
do Comendador Antonio Vicente da Fontoura, o autor aponta que entre os dois grupos
políticos que, a inícios da década de 1860, dominavam o cenário da cidade de Cachoeira,
no Rio Grande do Sul, “ligações menos formais – que não envolviam parentesco ritual ou
consanguíneo, por exemplo – também ali constam: o grosso da rede, que abarca indivíduos
situados entre os dois grupos, revela que entre ambos os bandos políticos circulavam
pessoas comuns. Eram dependentes com interesse pela dependência, parafraseando Roberto
Guedes – agências, lavradores e outros mais, presentes nas listas da Guarda Nacional.
Ou seja, apresenta pobres livres com capacidades de cognição e articulação política. O
“meio” da rede era, portanto, dominado por pessoas provenientes do populacho, que
acabaram conectando os dois grupos adversários, jogando em dois lados – numa espécie
de jockeying –, tentando angariar a maior quantidade de recursos possíveis (materiais ou
não). Apresenta-se, portanto, uma espécie de clientelismo, se assim queiramos, bastante
competitivo – que não apenas contava com homens, soldados e oficiais, mas mulheres por
onde fluíam informações importantes, boatos eleitorais e familiares, sempre estratégicos”.
MUGGE, Miquéias Henrique. Apareceram na véspera da eleição, como que se oferecendo:
vozes e lealdades no assassinato do Comendador. In.: MOREIRA, P. R. S.; RIBEIRO, J. I.;
MUGGE, M. H. A Morte do Comendador: eleições, crimes políticos e honra (Antonio
Vicente da Fontoura, Cachoeira, RS, 1860). São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2016,
p. 57 et seq.
26  Ibidem, p. 59.

117
Entre a província e a nação

a conceitos ou entendimentos que, além de reforçarem determinados


estereótipos, podem ser vistos como anacrônicos. Nesse sentido, a
pesquisa que deu origem a este artigo vincula-se à perspectiva alentada
por Miriam Dolhnikoff, segundo a qual “a monarquia constitucional
brasileira preenchia os critérios definidos como essenciais para a
existência de um governo representativo, tal como ele era entendido
no século XIX”, em harmonia com os modelos vigentes na Europa e
nos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, com as especificidades ditadas
pelo contexto brasileiro.27 A historiografia latino-americana, deixando
para trás a especificamente brasileira, já produziu grandes avanços a
esse respeito, desvelando um panorama complexo e multifacetado de
disputas políticas e operações eleitorais que envolviam amplas camadas
da sociedade e que, opondo-se à visão consagrada pela maior parte dos
historiadores, não podem ser reduzidas a um tumultuado quadro de
fraudes, violências e práticas clientelísticas.28 Os próprios conceitos
de fraude e clientelismo precisam ser tomados com cautela. Eduardo
Posada-Carbó ressalta que a fraude ou a corrupção eleitoral – tal como
a falsificação pura e simples de resultados, bem como o uso de práticas
de violência e intimidação dos eleitores – não eram equivalentes
às práticas clientelísticas, de deferência ou patronagem; e estas não
implicavam, necessariamente, a distorção da vontade dos eleitores.
Fraude e clientelismo são categorias distintas que exigem diferentes
tipologias de análise.29 O clientelismo não pressupõe submissão cega
nem obediência servil, como já foi apontado. E a fraude, mesmo sendo
um atentado frequente à verdade e à legitimidade das eleições, não pode
ser efetivamente medida ou mensurada, em seu alcance e extensão, com
razoável confiabilidade. Mais seguro é dizer que o nível (ou a alegação)
de fraude tinha relação direta com a amplitude e o acirramento das

27  DOLHNIKOFF, Miriam. Império e governo representativo: uma releitura. Cad.


CRH (online), Salvador, v. 21, n. 52, p. 13-23, 2008.
28 Para a América Latina, existem numerosos trabalhos sobre casos particulares
e algumas compilações que reúnem estudos sobre vários países da região, como a obra
organizada por: ANNINO, Antonio (Coord.). Historia de las elecciones en Iberoamérica,
siglo XIX: de la formación del espacio político nacional. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 1995.
29 POSADA-CARBÓ, Eduardo. Electoral Juggling: A Comparative History of the
Corruption of Suffrage in Latin America, 1830–1930. Journal of Latin American Studies,
v. 32, n. 3, p. 611-644, 2000.

118
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
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disputas políticas e da competição eleitoral.30


Além disso, é preciso considerar que o voto e o votante do século
XIX tinham outras conotações e significados.31 Ter como paradigma
o exercício do voto nas democracias do século XX pode favorecer um
olhar enviesado sobre as condições em que ele se efetivava durante o
primeiro século de nossa existência como nação. Tratando das eleições
na Primeira República (1894-1930), Paolo Ricci e Jaqueline Zulini
destacam a noção de que o eleitor, como sujeito individual, não existia
naquela época. O ponto central, e que pode também ser mobilizado, por
outras pesquisas, para o entendimento dos pleitos no Império, “é que o
ato realizado nas urnas era intrínseco à comunidade local”. O processo
de alistamento do eleitorado, segundo testemunhos, era percebido como
um fenômeno coletivo, organizado pelos partidos a nível municipal.
Mobilizava-se as pessoas conjuntamente, formava-se a consciência
coletiva no município. Tudo porque se votava em grupo. Assim, ao
invés de pensar no indivíduo, a compreensão do voto deveria focar
as dinâmicas societárias do consenso e a construção das identidades

30  Como salientam Paolo Ricci e Jaqueline Zulini, a denúncia de fraude, tal como ela
é geralmente oferecida pelas fontes de que se servem os historiadores para comprovar a
existência de uma série de vícios e irregularidades (tanto nos pleitos do Império quanto
nos da Primeira República, mais particularmente), “não pode ser tomada como evidência
do acontecimento apontado em si”. Através de exame pormenorizado das contestações
dirigidas à Câmara dos Deputados por candidatos derrotados nas eleições para essa Casa
legislativa, durante a Primeira República brasileira, os autores concluem “que é a disputa
interpartidária em litígios acirrados que causa a denúncia da fraude. Quando os mais bem
votados são do mesmo partido, dificilmente o provável desconforto pessoal se converte na
formalização de contestações”. O estímulo elementar dessa competição político-partidária
era a concorrência pelo controle do aparato burocrático relativo à realização das eleições,
controle este que, mostrando-se falho, fazia com que a fraude se manifestasse com maior
contundência. Nesse sentido, tais “práticas de deturpação do voto deveriam ser repensadas,
enquadrando-as num modo de competir em voga naquele momento. Isso não significa
menosprezar a fraude, mas reconduzi-la ao tema da incapacidade de controle sobre a
máquina administrativa dos pleitos”. RICCI, Paolo; ZULINI, Jaqueline Porto. Partidos,
competição política e fraude eleitoral: a tônica das eleições na Primeira República. Dados
(online), Rio de Janeiro, v. 57, n. 2, p. 443-479, 2014.
31  François-Xavier Guerra chamou atenção para esta discussão ao tratar da gênese
do cidadão no mundo latino-americano: mesmo que a fraude não houvesse existido e as
eleições fossem totalmente “livres”, não existiria ainda assim o “cidadão moderno”: “Un
voto libre no es necesariamente un voto individualista, producto de una voluntad aislada.
Inmerso en una red de vínculos sociales muy densos, el ciudadano se manifiesta libremente a
través de su voto como lo que es: ante todo, miembro de un grupo, sea cual fuere el carácter
de éste (familiar, social o territorial). El elector escoge con libertad a aquellos que mejor
representan a su grupo, normalmente a sus autoridades o a los que éstas designan, como
lo corroboran los resultados electorales de que disponemos”. GUERRA, François-Xavier.
El soberano y su reino. Reflexiones sobre la génesis del ciudadano en América Latina. In.:
SABATO, Hilda (Coord.). Ciudadanía política y formación de las naciones. Perspectivas
históricas de América Latina. México: Fondo de Cultura Económica, 2002, p. 52.

119
Entre a província e a nação

coletivas que se manifestavam desta forma no momento eleitoral,


perpassando a figura do coronel e de “seus” eleitores.32

Nas freguesias ou paróquias, rurais ou urbanas, os chefes


partidários e seus sequazes buscavam atrair e convencer eleitores de
primeiro grau, publicando chapas, distribuindo circulares, proferindo
discursos, formando meetings ou comícios;33 e as campanhas eleitorais,
que efetivamente mobilizavam os votantes, ganhando as ruas e os jornais,
demonstram a existência de disputas políticas acirradas ao nível local.34
Não há por que supor que os homens simples do campo ou da cidade não
atribuíam sentidos próprios a essas manifestações públicas, nas quais eles
eram os alvos das atenções e dos esforços dos partidos políticos; ocasiões
em que, certamente, a cidadania política devia valorizar-se a ponto de
ser objeto das ambições que se digladiavam na arena eleitoral. O voto
também expressava certas identidades, pelas quais muitos cidadãos
se reconheciam pertencentes a uma comunidade, a um segmento da
sociedade ou a uma categoria socioprofissional.35 Em algumas situações,
mesmo que pouco frequentes, alguns artífices ou trabalhadores urbanos
alcançavam a condição de eleitores e, como cidadãos plenos, tinham uma
atuação política e buscavam eleger representantes afinados com suas
demandas.36

32  RICCI, Paolo; ZULINI, Jaqueline Porto. As eleições no Brasil republicano: para
além do estereótipo da fraude eleitoral. Histórica: Revista Eletrônica do Arquivo Público
do Estado de São Paulo, ano 11, n. 63, 2015, p. 55.
33 Cf. GALDINO, Antonio Carlos. Campinas, uma cidade republicana: política
e eleições no Oeste Paulista (1870-1889). Tese (Doutorado em História). Programa
de Pós-graduação em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006,
especialmente cap. 4.
34  A respeito do tema das campanhas políticas e demais práticas e ritos eleitorais, no
contexto da província do Espírito Santo, Cf. MOTTA, Kátia Sausen da. Eleições no Brasil
do Oitocentos: entre a inclusão e a exclusão da patuleia na cidadela política (1822-1881).
Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em História, Universidade
Federal do Espírito Santo, Vitória, 2018, especialmente cap. 3.
35  Tratando dos meetings ocorridos em 1866 no bairro de São José, no Recife, Suzana
Rosas menciona uma convocatória, publicada no jornal O Tribuno, para uma reunião cuja
pauta, entre outras referidas, seria a organização de “comícios eleitorais”; ocasião em que se
trataria de “convencer o povo da necessidade de não abandonar à eleição, sendo condição
indispensável não receber chapa de caixão: devendo conferenciarem nas freguesias para
fazerem eleitores os artistas, e não os fidalgos, e nem a algum agente da polícia”. Assim,
no evento, tratariam os oradores de convencer esse eleitorado, sempre identificado como
“os pobres”, a eleger candidatos que no parlamento pudessem representá-lo e atender
às suas demandas mais prementes. ROSAS, Suzana Cavani. Cidadania, trabalho, voto e
antilusitanismo no Recife na década de 1860: os meetings no bairro popular de São José.
In.: RIBEIRO, Gladys S.; FERREIRA, Tânia M. T. Bessone da Cruz (org.). Linguagens e
práticas da cidadania no século XIX. São Paulo: Alameda, 2010, p. 166.
36  A esse respeito, Cf. CORD, Marcelo Mac. A reforma eleitoral de 1881: artífices

120
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Eleições e regulação do processo eleitoral em uma província do


Império
É certo que, se o grosso da população masculina livre (em
âmbito rural ou urbano) tinha condições reais de participar dos pleitos
e, por conseguinte, do próprio sistema representativo, não lhe era
dado participar do processo mais amplo de construção e organização
das instâncias de representação política, tarefas que competiam às
elites dirigentes nacionais, aninhadas nos poderes políticos de que se
constituía o aparato institucional do Império.37
Mas a participação do cidadão comum não se limitava ao ato do
voto propriamente dito. Uma parcela heterogênea da sociedade, mesmo
sendo efetivamente muito mais restrita do que supõe a quantidade
de cidadãos políticos que votavam nas eleições primárias, tomava
parte no processo das eleições através de ofícios, petições,38 queixas
e representações enviadas a autoridades locais, ao presidente, ao
parlamento ou ao próprio governo central em busca de respostas para
diversos problemas que apareciam na execução das leis. Ao tomarem tal
atitude, esses cidadãos também adquiriam um papel na regulação dos
procedimentos eleitorais estabelecidos pela legislação. Assim sendo, a
compreensão e mobilização das normas eleitorais para fins políticos não
eram apanágios de uma elite política ou de alguns poucos privilegiados.
Como foi possível chegar a essa conclusão? Nesse ponto é conveniente
especializados de pele escura, associativismo, instrução, comprovação de renda e eleições
no Recife oitocentista. In.: Anais do 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional, Porto Alegre, 2011; CASTELLUCCI, Aldrin Armstrong Silva. Muitos votantes
e poucos eleitores: a difícil conquista da cidadania operária no Brasil Império (Salvador,
1850-1881). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 30, n. 52, p. 183-206, 2014.
37  Quatro foram os poderes políticos estabelecidos pela Constituição de 1824 em seu
Art. 10º: o Legislativo, o Moderador, o Executivo e o Judicial. Os “Representantes da Nação
Brasileira” eram o Imperador, a quem foi delegado privativamente o Poder Moderador, e
a Assembleia Geral, constituída pela Câmara dos Deputados (temporária) e pelo Senado
(vitalício). Constituição Política do Império do Brasil...Op. cit., p. 9.
38 Roberto Saba destacou a importância da atividade peticionária, a inícios do
Segundo Reinado, para o funcionamento do sistema representativo fundado na Carta de
1824, estabelecendo um canal de diálogo entre “governantes” e “governados” que teve
implicações relevantes para o processo legislativo: “Este diálogo deu as diretrizes para
as ações dos legisladores quando importantes assuntos políticos foram debatidos. As
demandas contidas nas petições não determinaram as decisões dos parlamentares, contudo
esclareceram-lhes acerca das expectativas dos cidadãos brasileiros. Constituiu-se no Brasil
imperial uma relação típica de representação já que a definição da vontade geral, ainda que
conduzida por um grupo de notáveis, se pautou sobre um complexo debate público que
transcendia os palácios da Corte”. SABA, Roberto N. P. Ferreira. As Vozes da Nação: a
atividade peticionária e a política do início do Segundo Reinado. São Paulo: dissertação de
mestrado apresentada à Universidade de São Paulo, 2010, p. 199.

121
Entre a província e a nação

retomar, de maneira muito geral, o problema das eleições no Império,


alvo de algumas indagações feitas em minha pesquisa de mestrado.39
De acordo com grande parte dos historiadores que se debruçaram
sobre o Brasil do século XIX, um abismo profundo existia entre o
Estado e a sociedade em matéria de eleições; e igual ou maior distância
entre “representantes” e “representados”. A despeito da diversidade
das interpretações que se dedicaram a explicar as características e os
perfis desse Estado e das elites que o construíram, predominante é a
visão de que as eleições refletiam os interesses do poder, das altas esferas
decisórias nacionais (imperador e seus ministérios), que, via presidentes
de província e outras autoridades locais (de nomeação de governo),
faziam eleger os candidatos que desejassem. Nessa lógica, a legislação
eleitoral, cada vez mais distante do povo à medida que avança o século,
apenas regularia os procedimentos de uma disputa cujos vencedores
seriam já conhecidos antecipadamente.40
Procurando investigar até que ponto os pleitos eram dominados
e definidos pelo governo, iniciei uma pesquisa com o objetivo de
estudar a atuação eleitoral dos presidentes provinciais de São Paulo nas
eleições que se seguiram a dois regulamentos bastante distintos, em
termos de concepção e organização de todo o processo: as instruções
de 4 de maio de 1842, decreto do governo conservador de 23 de março
de 1841 – publicado pouco após a dissolução da Câmara liberal eleita
sob as denominadas “eleições do cacete” –, e a lei de 19 de agosto de
1846, grande vitória liberal do “Quinquênio” e primeira lei eleitoral de
lavra dos parlamentares brasileiros. A opção por focalizar um estudo
do processo eleitoral na figura do presidente, máxima autoridade
provincial, deve-se ao fato de ser esse agente considerado o principal
responsável pela vitória dos ministérios nas eleições de cada parte do
39  Cf MUNARI, Rodrigo Marzano. Deputados e delegados do poder monárquico:
eleições e dinâmica política na província de São Paulo (1840-1850). Dissertação (Mestrado
em História), Programa de Pós-graduação em História, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2017.
40  Entre outros trabalhos que corroboram essa perspectiva, encontram-se os clássicos
de HOLANDA, Sérgio Buarque de. Do Império à República...Op. cit.; CARVALHO, José
Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial (1980). Teatro de Sombras:
a política imperial (1988). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010; GRAHAM,
Clientelismo e política no Brasil do século XIX... Op. cit. Destoando desses trabalhos e
avalizando a hipótese da existência de um regime representativo no Brasil do século XIX,
Cf. DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São
Paulo: Globo, 2005. E, entre outros artigos publicados pela mesma autora, Cf. Governo
representativo e eleições no século XIX. In.: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, v. 474, p. 15-46, 2017.

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Império. Percorrendo a correspondência presidencial (ativa e passiva)


no decorrer dos pleitos, foi possível acompanhar a realização de cada
etapa do processo, bem como suas variadas dificuldades práticas, o
que possibilitou perceber, ao fim e ao cabo, que o objeto da pesquisa
transcendia em muito a figura do chefe do Executivo provincial. O
presidente era parte integrante de um maquinário político complexo,
que envolvia instâncias de poder locais, regionais e nacionais. Sozinho,
ou sem o apoio dos chefes partidários provinciais, o presidente não
conseguia eleger todos os nomes cujas candidaturas escolhesse defender
– como não conseguiu fazê-lo nas eleições gerais de 1842 e 1847,
guerreando com lideranças do mesmo partido que, em nível provincial,
outorgava seu apoio ao partido dominante no centro do Império.41
Na correspondência dos presidentes revelou-se abundante e
notável a existência de certo tipo de ofício relativo a matérias eleitorais:
o presidente resolvendo dúvidas enviadas por autoridades diversas da
província (juízes de paz, párocos, vereadores, delegados, subdelegados
e, entre outros, os próprios eleitores), versando, a maioria delas, sobre
detalhes práticos a respeito da execução da lei – o decreto de 1842
e, posteriormente, a lei de 1846 – ou acerca da indevida inclusão ou
exclusão de cidadãos da lista de qualificados de determinada freguesia.
O presidente centralizava todas as dúvidas e queixas que apareciam
no decorrer do processo de organização das eleições, do alistamento à
apuração, porque era instado por aquelas autoridades a oferecer soluções
para os problemas que lhe eram apresentados. Todavia, o presidente
achava-se em comunicação frequente com, entre outras secretarias, a do
ministério do Império, que diretamente era responsável pelo problema da
execução das leis e decretos referentes a eleições. Muitas questões foram
dirimidas por esta secretaria, por intermédio das presidências provinciais,
sobretudo a partir de 1846. A presidência de São Paulo recebia resoluções
pertinentes a ocorrências verificadas por todo o Império, a fim de que
essas ordens fossem aplicadas em situações similares, pois elas adquiriam
força de lei em toda a extensão do país. Não era apenas uma ou outra
autoridade isolada que se remetia, por vezes diretamente, ao governo
imperial em busca de soluções para problemas eleitorais, como aponta
claramente um ofício de 1849, no qual o ministro do Império tachava de:
abusiva, e prejudicial à regularidade do serviço público, a prática
por várias vezes censurada, de as autoridades, empregados públicos,
41  Cf MUNARI, Rodrigo Marzano. Deputados e delegados do poder monárquico...
Op. cit., especialmente cap. 3 e 4.

123
Entre a província e a nação

e até mesmo meros funcionários, se dirigirem diretamente ao


Governo Imperial por meio de ofício, sobretudo em matéria de
eleições, em que ou se há de dar uma decisão precipitada, para que
ela possa chegar a tempo de ser aproveitada, ou há de se tornar
extemporânea pela demora nas informações que se tiverem de
exigir, como já tem sucedido, por se omitir ou desfigurar fatos e
circunstâncias que essencialmente alteram a espécie sobre que se
representa ou consulta.42

Pôde-se então constatar que a mobilização em torno de matérias


eleitorais envolvia número significativo de autoridades distribuídas
por São Paulo e outras províncias do Brasil. O que, por si só, constitui
dado expressivo, pois tais homens se tornavam corresponsáveis pela
tarefa de regulamentar e colocar em prática as disposições que os
legisladores formulavam e que eram tributárias, em certa medida,
de todas as dúvidas, queixas e representações oferecidas aos poderes
estabelecidos para terem o devido encaminhamento legal.43 Mas
não eram somente as autoridades que se faziam ouvir, diante do
presidente provincial, em questões atinentes à execução da lei de
eleições. Cidadãos comuns, de diferentes condições sociais, também
representavam ao governo contra o que consideravam “infrações”
ou “esbulhos” cometidos pelas autoridades que tinham parte nos
procedimentos eleitorais.
Em uma representação, enviada ao presidente de São Paulo
nas proximidades das eleições primárias de 7 de novembro de 1847
e assinada por onze cidadãos (cujas ocupações ou empregos não são
mencionados) residentes na vila de Ubatuba, reclamava-se contra
o juiz de paz que presidiria a mesa paroquial. Asseverava-se que esta
autoridade, em desacordo com a lei, teria designado a sala das sessões
da Câmara Municipal do termo para se fazer a eleição, embora houvesse
espaço suficiente para receber centenas de indivíduos na Igreja de N. S.
do Rosário, que naquela circunstância servia de igreja matriz. Arguia-
se que o juiz de paz, Antônio Egídio da Cunha, ocultava intenções
escusas e havia escolhido o lugar mais impróprio e que opusesse

42  Ofício do ministro do Império ao presidente da província de São Paulo, 26/01/1849


– CO5246. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).
43  Além das já mencionadas petições, podemos pensar, especialmente, em todas as
contestações de resultados eleitorais enviadas à Câmara dos Deputados e que eram tomadas
em consideração no momento da verificação de poderes dos deputados eleitos (o mesmo
ocorria no Senado). Não resta dúvida de que as diversas situações e dificuldades expostas
por esses papéis eram encaradas pelos legisladores nas ocasiões em que se debatiam assuntos
eleitorais e, sobretudo, mudanças na legislação.

124
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

maiores dificuldades à liberdade que o povo deveria ter no ato da


eleição. Justificando o seu procedimento com o abaixo-assinado que
enviavam ao governo de São Paulo, esses cidadãos da vila vinham, em
suas próprias palavras, peticionar e
implorar a expedição de uma medida, que torna-se de urgente
necessidade a fim de na dita Vila se evitarem distúrbios, ou desordens
nas próximas eleições que devem ter lugar no dia 7 de Novembro.
Essa medida, reclamada pelos abaixo assinados, acha-se consagrada
por Lei; mas nem sempre se respeitam as normas Legislativas; e
é o espírito de relutância, a tal respeito manifestado pelo Juiz de
Paz, Presidente das eleições, que obriga os Cidadãos infraescritos
a recorrerem a V. Exa. de quem esperam ser favoravelmente
atendidos, por isso que só pedem justiça.44

Os moradores também alegavam que o complexo de disposições


estabelecido pela lei de 19 de agosto assegurava um princípio
eminentemente salutar e garantidor do sistema representativo: a
proteção da liberdade do voto, possibilitada por meio de “garantias
aos votantes durante a quadra eleitoral, proibição do aparato de força
armada, localidade apropriada, e outras muitas circunstâncias”;
claramente manifestando o fato de que “o Legislador teve em vista
remover todos os obstáculos materiais ou morais, que pudessem obstar a
livre expressão da vontade Nacional”.45 Fazendo-se não só conhecedores
da lei, como intérpretes e portadores de seu significado, esses cidadãos
julgavam-se habilitados a representar ao governo provincial em nome
de um dos seus direitos mais “sagrados”, ou seja, o de votarem em lugar
apropriado ao exercício de sua vontade, livre de quaisquer empecilhos.
Os cidadãos que representaram ao governo parecem não
ter se conformado com os motivos alegados pelo juiz de paz para
transferir o lugar da eleição. Antônio Egídio da Cunha serviu-se do
que lhe facultava a lei em seu art. 4º, pelo qual o presidente da junta
de qualificação poderia convocá-la para se reunir “em outro edifício
por ele designado, se não puder ser na Matriz”, por insuficiência de
espaço; o mesmo se reiterando no art. 41, no tocante às eleições
paroquiais.46 O presidente da província, Manuel da Fonseca Lima e
Silva, anuindo ao pedido dos moradores de Ubatuba, decidiu que as
44  REPRESENTAÇÃO de alguns cidadãos residentes na vila de Ubatuba, dirigida ao
presidente da província de São Paulo, [s. d.] - CO1327. APESP. Grifos meus.
45  Ibidem.
46  Lei n. 387, de 19 de agosto de 1846. In.: SOUZA, Francisco Belisário Soares de. O
sistema eleitoral no Império... Op. cit., p. 209-215.

125
Entre a província e a nação

eleições próximas deveriam ser feitas na igreja que servia de matriz,


visto possuir a capacidade necessária e ser assim determinado pela lei
regulamentar; e ainda repreendeu o referido juiz de paz por não ser a
autoridade legalmente competente para presidir aqueles pleitos.47
Nesse mesmo ano de 1847, em outra localidade da província, um
caso ainda mais significativo pôde ser encontrado na documentação. Um
distúrbio de grandes proporções deixou em polvorosa os moradores da
freguesia de São José do Barreiro, pertencente à importante vila cafeeira
de Areias, no Vale do Paraíba. Os fatos ocorridos no dia da escolha dos
eleitores, a 8 de novembro, foram relatados pelo texto de um abaixo-
assinado, dirigido ao presidente provincial, de vários “habitantes da
infeliz Freguesia de S. José do Barreiro”, que reclamavam providências
para a punição dos indivíduos implicados nos crimes lá ocorridos e
para trazer tranquilidade e segurança àqueles espavoridos cidadãos.
O documento era assinado por cerca de oitenta moradores do lugar,
alguns dos quais foram identificados por suas funções, ocupações e/
ou empregos: quatro juízes de paz, quatro oficiais da Guarda Nacional,
um padre, doze fazendeiros, seis lavradores, um negociante, dois
administradores e um professor. Pelo menos outros doze cidadãos
tiveram seus nomes assinados “a rogo”, por meio de outrem, pois eram
provavelmente analfabetos.
O acontecido no dia da eleição foi um conflito virulento entre
algumas praças da Guarda Policial, sob o comando do subdelegado
Joaquim Francisco Teixeira, com outras da Guarda Nacional. Ambas
as forças foram requisitadas pela mesa paroquial para manter a
ordem diante dos boatos de uma ameaça orquestrada por uma família
poderosa da localidade – o coronel João Ferreira de Souza e seus filhos,
Antônio Ferreira de Souza, Joaquim Ferreira de Souza Leal e Luiz
Ferreira de Souza Leal – e seus agentes, que possivelmente se valeriam
da força para “transtornar as Eleições e ao mesmo tempo vingarem-se
dos que não quiseram votar com eles”. Segundo a representação dos
moradores, o subdelegado – “todo da facção do Coronel João Ferreira e
a ele dedicado” –48 e seus sequazes teriam iniciado uma discussão com
os guardas nacionais, o que logo em seguida se transformou em um
47  OFÍCIO do presidente da província de São Paulo ao juiz de paz mais votado da vila
de Ubatuba, 30/10/1847 – E00271. De mesmo teor e na mesma data ao brigadeiro Francisco
de Paula Macedo – E00565. APESP.
48 OFÍCIO com abaixo-assinado de vários habitantes da freguesia de São José do
Barreiro, dirigido ao presidente em exercício da província de São Paulo, 22/11/1847 –
CO0810. APESP.

126
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

confronto armado, do qual resultou a morte do próprio subdelegado


e de mais dois cidadãos, deixando outros dois feridos. Os trabalhos da
eleição foram interrompidos. Fora de tal monta o estado de calamidade
em que ficara a freguesia que, conforme o relato de seus habitantes,
apenas ações enérgicas de autoridades mais gradas e alheias às facções
locais poderiam pôr termo à desordem reinante:
não só o Juiz de Paz e Membros da Mesa como todos os habitantes
da Freguesia, e suas famílias abandonaram horrorizadas suas
casas, entranhando-se pelos matos, em busca de asilos, que só
conseguiram depois de inauditos incômodos, trabalhos e fadigas,
deixando a Freguesia em poder dos malvados, e até o presente não
se julgam de modo algum seguros nesses asilos, em que se acham,
porque aí mesmo temem ser processados e perseguidos por seus
inimigos exaltados pelos sucessos que obtiveram. No desalento
em que se acham os abaixo assinados com tão desgraçados
acontecimentos, vendo ainda rondar a Freguesia os mesmos
homens de faca e trabuco, dirigidos e sustentados pelos que
conceberam e mandaram executar o atroz plano de extermínio dos
principais Cidadãos [...] desta Freguesia, recorrem à Autoridade
de V. Exa. para verem remediados estes males.49

Em meio a essa situação, os moradores da localidade reclamavam


do presidente em exercício, Bernardo José Pinto Gavião Peixoto, a
demissão das autoridades policiais que tiveram parte nos atentados lá
acontecidos, bem como a escolha de “autoridade de maior graduação”
para tomar conhecimento dos fatos e levar a efeito as punições contra
os culpados, pois que eram justamente as autoridades do local as mais
comprometidas com os assassínios e tumultos perpetrados. Não ficando
alheio ou insensível a esses reclames, o presidente, além de ordenar
ao chefe de polícia a instauração de um processo, comunicou-se em
ofício reservado com o delegado de Areias, padre Francisco da Silva
Ribeiro, declarando querer ouvi-lo, com urgência, sobre as decisões
que seriam úteis a bem da segurança pública e desejando saber, mais
particularmente, se o delegado entendia “indispensável a mudança no
todo ou em parte das Autoridades Policiais”; em cujas circunstâncias
essa autoridade deveria indicar ao presidente as pessoas que fossem
mais aptas para fazer a substituição – e que não fossem implicadas nos
acontecimentos de 8 de novembro.50
49 OFÍCIO com abaixo-assinado de vários habitantes da freguesia de São José do
Barreiro, dirigido ao presidente em exercício da província de São Paulo, 22/11/1847 –
CO0810. APESP.
50  OFÍCIO reservado do presidente em exercício da província de São Paulo ao padre
Francisco da Silva Ribeiro, delegado da vila de Areias, 16/12/1847 – E00214. APESP.

127
Entre a província e a nação

Um número considerável de representações e documentos de


diversa natureza, remetidos por cidadãos das localidades, chegava às
mãos dos presidentes de província e, por intermédio destes, subia à
presença do governo imperial, que se ocupava diuturna e assiduamente
com questões referentes à nulidade de pleitos gerais e, sobretudo,
municipais. Isso porque o artigo 118 da lei de 1846 conferia ao governo
central a competência “para conhecer das irregularidades cometidas
nas eleições das Câmaras Municipais e Juízes de Paz, e mandar
reformar as que contiverem nulidade”. A mesma atribuição poderia
ser provisoriamente exercida pelos presidentes provinciais, quando da
demora pudesse “resultar o inconveniente de não entrarem em exercício
os novos eleitos no dia designado pela Lei”.51 Já em 1844, antes, portanto,
de estar em vigor o referido artigo da lei de 1846, um interessante
parecer conjunto das Seções do Conselho de Estado do Império e da
Justiça justificara o direito de o Executivo anular eleições municipais,
pois, “incumbido o Governo de guardar, e fazer guardar as Leis, inda
que solicitado não seja, é de razão reconhecer nele o direito de aprovar,
ou reprovar tais eleições, quando forem manifestamente nulas”.52
Devendo-se ainda considerar que, embora os ministros de Estado
também fossem, evidentemente, “homens políticos”, suas decisões,
por serem supostamente superiores a “influências” e “paixões locais”,
seriam mais conformes à “razão”; uma vez que, distantes dos interesses
locais, tais resoluções só poderiam se apoiar em um cuidadoso exame
das circunstâncias, em vista da estrita execução das normas legais.53
Servindo-se dessa atribuição, o governo poderia, teoricamente,
intervir no processo eleitoral através de simples anulação de eleições
municipais que não o favorecessem. Entretanto, como se pôde verificar
a partir do caminho percorrido pelas representações emitidas por
algumas localidades de São Paulo no ano eleitoral de 1848, esse papel
não era exercido arbitrariamente pelos ministérios ou pelos presidentes;
dado que havia um percurso institucional mais longo, que envolvia
vários atores, o que tornava mais complexo o empenho para influenciar
os resultados dos pleitos. Em todos os exemplos encontrados na
correspondência oficial, o presidente remeteu os papéis (documentos
51  Lei n. 387, de 19 de agosto de 1846. In.: SOUZA, Francisco Belisário Soares de, O
sistema eleitoral no Império... Op. cit., p. 229 et seq.
52  PARECER conjunto das Seções do Conselho de Estado dos Negócios do Império e
dos da Justiça, de 3 de dezembro de 1844, enviado em ofício ao presidente da província de
São Paulo, 18 de dezembro de 1844 - CO5241. APESP.
53  Ibidem.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

lavrados por autoridades ou assinados por cidadãos de suas respectivas


localidades, apontando supostas irregularidades) relacionados a casos
de nulidade das eleições de 7 de setembro ao ministério do Império;
e este, por solicitação do Conselho de Estado, considerou prudente
devolver, na maioria das vezes, as representações enviadas para sua
resolução, a fim de que o presidente da província pudesse fazer as
averiguações necessárias com as autoridades do lugar, anexando os
documentos e remetendo-os com sua opinião para que, enfim de posse
de todas as informações, os conselheiros de Estado pudessem interpor
o seu parecer e enviá-lo para a aprovação final do governo.
Essa prática, tornando-se recorrente – é provável que não só em
São Paulo como em outras províncias –, motivou um ofício do ministério
com data de 10 de novembro de 1848, no qual o governo pedia que se
lhe remetessem todos os papéis relativos a eleições, e mesmo nos casos
cujas resoluções tivessem já sido proferidas pela presidência:
sendo necessário, para que se possa formar juízo seguro, e resolver
com acerto tanto sobre as dúvidas que se suscitarem na execução
da Lei Regulamentar das Eleições, de 19 de Agosto de 1846, como
acerca das irregularidades no processo de eleições assim gerais
como municipais, que se tenha conhecimento exato das diversas
circunstâncias que ocorrerem para tais dúvidas, e por ocasião dessas
irregularidades: Há Sua Majestade o Imperador por bem Ordenar
a V. Exa. que faça acompanhar as representações, que por essa
Presidência forem enviadas ao Governo Imperial relativamente a
estes objetos, de todos os esclarecimentos e documentos que lhes
disserem respeito, quer tenha ou não V. Exa. resolvido sobre elas.54

O ofício da Secretaria do Império permite explicitar alguns pontos


importantes, que podem ser destacados de sua leitura. O primeiro deles
é que havia um trânsito significativo de representações sobre matéria
eleitoral entre os circuitos locais de poder e o centro político imperial,
costurando-se uma relação que se dava, em geral, por intermediação
do presidente de província, ao qual também era facultado o papel de
solucionar dúvidas e questões com teor similar – daí a sentença “quer
tenha ou não V. Exa. resolvido sobre elas”. O segundo ponto é que o
governo imperial tomou sobre si o encargo de fornecer respostas a essas
representações, deferindo ou indeferindo os pedidos nelas realizados e
tomando as medidas legais que cada caso lhe permitisse tomar – tudo
isso com base nos “esclarecimentos e documentos” produzidos pelos
54 OFÍCIO do ministro do Império ao presidente da província de São Paulo,
10/11/1848 – CO5246. APESP.

129
Entre a província e a nação

cidadãos e pelas autoridades das respectivas localidades, com eventuais


informações complementares do presidente provincial. Finalmente,
os problemas eleitorais relatados por esses papéis não se restringiam
a irregularidades porventura ocorridas no processo eleitoral, nem se
limitavam a possíveis casos de nulidade, abrangendo também as dúvidas,
bastante numerosas, que cercavam a execução da lei regulamentar das
eleições.
Por essa via e pelo estudo de tais dúvidas é que se pôde concluir que
as leis eleitorais, longe de interessarem apenas aos detentores do poder,
foram intensamente disputadas pelos atores locais, que aprenderam a
fazer usos políticos dessas leis.55 Assim sendo, atuavam em um sentido
que ia além do âmbito exclusivo do voto: interpretando os textos
legais ou apresentando problemas práticos a serem resolvidos, ainda
que não lograssem êxito em seus intentos, tais cidadãos interferiam e
envolviam-se diretamente na execução prática e, de modo mais indireto,
na confecção das normas (resultado de experimentações, tentativas
e esforços reiterados) aprovadas pelos legisladores ou baixadas pelo
governo para regulamentar o processo eleitoral.
Refiro-me aqui, evidentemente, a uma parte relativamente
pequena dos cidadãos políticos que tinham direito a voto nas eleições.
Se não era necessariamente uma população ignorante ou ingênua
em noções básicas de política, visto que anuir a essas considerações
equivaleria a dar razão aos argumentos daqueles que desejavam excluir
as massas do exercício do voto, a grande maioria não podia se ocupar
com tais questões e vivia completamente à margem, isto sim, da tarefa
de interpretar e executar as leis, removendo os obstáculos práticos que
se ofereciam à consecução daqueles fins. Refletir sobre essas matérias
era missão que competia, especialmente, às autoridades que as leis
incumbiram de organizar eleições. Não obstante, quando enfatizo
que uma parcela da sociedade participava, direta ou indiretamente,
desse processo – por meio de documentos como ofícios, petições e
representações –, também acentuo a hipótese de que as eleições não se
achavam tão distantes do “povo” a ponto de se reduzirem a espetáculos
elitistas, cujos resultados eram chancelados, invariavelmente, pela
cúpula do sistema político, altamente centralizado, que apenas
determinava os candidatos que seriam eleitos – deixando o restante
por conta da polícia e dos demais delegados do governo, sediados
55  Cf. MUNARI, Rodrigo Marzano. Deputados e delegados do poder monárquico...
Op. cit.

130
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

nas diversas localidades do país. Eleições eram processos fortemente


debatidos e disputados também ao nível da “aldeia”, envolvendo
ativamente um variado contingente de cidadãos políticos. Para muitos
deles, os pleitos não estavam definidos de antemão e, portanto, nada
perdiam da imprevisibilidade que lhes era (e é) característica.
Por fim, importa considerar a centralidade do voto e dos seus
resultados sem desconsiderar as expectativas e as práticas dos cidadãos
que tinham parte na realização das eleições ou delas participavam de
algum modo. Só assim é possível aprofundar-se no estudo do sistema
representativo oitocentista em suas diversas formas e manifestações, que
não se resumiam, no âmbito do processo eleitoral, ao importantíssimo
ato de votar.

Referências:
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LEI no 387, de 19 de agosto de 1846. In.: SOUZA, Francisco Belisário Soares de. O
sistema eleitoral no Império. Brasília: Senado Federal, 1979.
OFÍCIO do presidente da província de São Paulo ao juiz de paz mais votado da vila
de Ubatuba, 30/10/1847 – E00271. De mesmo teor e na mesma data ao brigadeiro
Francisco de Paula Macedo – E00565. Arquivo Público do Estado de São Paulo
(APESP).
OFÍCIO, com abaixo-assinado de vários habitantes da freguesia de São José do
Barreiro, dirigido ao presidente em exercício da província de São Paulo, 22/11/1847
– CO0810. APESP.
OFÍCIO reservado do presidente em exercício da província de São Paulo ao padre
Francisco da Silva Ribeiro, delegado da vila de Areias, 16/12/1847 – E00214.
APESP.
OFÍCIO do ministro do Império ao presidente da província de São Paulo,
10/11/1848 – CO5246. APESP.
OFÍCIO do ministro do Império ao presidente da província de São Paulo,
26/01/1849 – CO5246. APESP.
PARECER conjunto das Seções do Conselho de Estado dos Negócios do Império
e dos da Justiça, de 3 de dezembro de 1844, enviado em ofício ao presidente da
província de São Paulo, 18 de dezembro de 1844 - CO5241. APESP.

131
Entre a província e a nação

REPRESENTAÇÃO de alguns cidadãos residentes na vila de Ubatuba, dirigida ao


presidente da província de São Paulo, s/d. - CO1327. APESP.
SOUZA, Francisco Belisário Soares de. O sistema eleitoral no Império. Com
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Entre a província e a nação

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134
Minas em círculos: a reforma eleitoral de 1855
e as eleições de 1856 na província mineira

Ana Paula Ribeiro Freitas1

Introdução
Nos últimos anos, a historiografia mineira vem abrindo
importante frente de pesquisas relativas à sua história política no
Oitocentos, com foco na inserção da província no processo de
Independência, na participação das elites regionais no Primeiro Reinado
e período regencial. Tais investigações têm revisto interpretações até
então cristalizadas e abordado temas, durante muito tempo, esquecidos
pelos estudiosos de Minas Gerais.
É clássica a ideia de que a participação da província no processo
de emergência do Estado nacional baseou-se em suposta especificidade
mineira, delineadora de sua inserção no jogo político local e nacional,
que remonta à Conjuração Mineira. Oliveira Torres, por exemplo,
interpretou movimentos como a Independência, as insubordinações
da Junta Governativa e a Sedição de 1833 como prolongamentos da
Inconfidência Mineira.2 Para Maria Arminda Arruda, a ênfase no
“caráter libertário dos mineiros” contribuiu para construir o mito
da “rebeldia do mineiro” e da tendência política de suas elites, que
marcou as análises sobre a história política da província.3 Ana Rosa
Cloclet, também questionou esta tendência, por considerar que tal
ideia imputava aos mineiros os sucessos dos principais acontecimentos
que marcaram a consolidação da liberdade e unidade nacionais. Neste
sentido, tal abordagem contribuía para nivelar excessivamente as
diversas tendências políticas que conviveram no interior de Minas,
respaldadas na diversidade econômica e social de suas “microrregiões”.4
1  Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é Técnica
em Assuntos Educacionais do Departamento de História da Universidade Federal de
Viçosa e pesquisadora vinculada ao Laboratório de História da Família.
2  Cf. TORRES, J. C. de O. História de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Record, 1963. Ver
também: LATIF, M. de B. As Minas Gerais. 3 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1991; BARBOSA,
W. de A. A verdade sobre Tiradentes. Belo Horizonte: Instituto de história, Letras e Arte,
[s. d.]; CAMPOS, M. S. O papel de Minas no Brasil. Segundo Seminário de Estudos
Mineiros. Belo Horizonte: Universidade de Minas Gerais, 1956, p. 227-239.
3  Cf. ARRUDA, M. A. N. Mitologia da Mineiridade. O imaginário mineiro na vida
política e cultural. São Paulo: Brasiliense, 1990.
4  SILVA, A. R. C. da. De comunidades a nação: regionalização de poder, localismos e
construções identitárias em Minas Gerais (1821-1831). Almanack Braziliense, n. 2, 2005.

135
Entre a província e a nação

Francisco Iglesias adotou outra perspectiva considerada clássica


nos estudos mineiros, por enfatizar uma visão homogeneizadora do perfil
das elites mineiras.5 Para Iglesias, os movimentos contrários ao Estado ou
ao apoio liberal-moderado mineiro à Regência e Primeiro Reinado eram
inconsistentes. O autor retratou o desenvolvimento da história mineira
como tranquilo e indistinto das demais províncias, contribuindo para
a percepção de que o Estado centralizado se impôs e uniformizou suas
províncias, no quadro de unidade do Segundo Reinado.
A partir da última década do século XX, novos estudos se
empenharam lançar novas luzes no entendimento do papel de Minas na
estruturação do Estado nacional e restituir a complexidade e dinâmica da
formação das tendências políticas presentes no interior da província e em
sua relação com a política imperial.6 É o caso do estudo de Irene Nogueira
de Resende, que analisou a participação política de fazendeiros da Zona
da Mata, entre 1821 e 1840 na configuração dos poderes provinciais e do
Estado monárquico. Segundo a autora, a estruturação do Estado nacional
se constituiu num processo complexo, assinalado por variados projetos,
com diferenças profundas, formando um verdadeiro mosaico de dificílima
administração. Em crítica à Iglesias, Irene Resende rechaçou a ideia de que
Minas teria sido um mar de serenidade e homogeneidade política.7
Judy Bieber também procurou desfazer certa visão
homogeneizadora de Minas no cenário político nacional, ao analisar
a participação dos sertanejos da Comarca do Rio São Francisco (norte
mineiro) nos debates políticos desenrolados nos centros do poder entre
1831 e 1850. Para a autora, a vida política da região integrava-se ao
âmbito nacional, de modo que a elite e, às vezes, o povo da Comarca
do Rio São Francisco participaram das tendências políticas da mesma
maneira que seus colegas litorâneos.8
5  Cf. IGLESIAS, F. Minas Gerais. In.: HOLANDA, S. B. de (org.). História Geral da
Civilização Brasileira. t. II. v. 2. São Paulo: Difel, 1964.
6  Sobre a participação dos mineiros na política imperial do Primeiro Reinado e Regência,
ver: LENHARO, A. As Tropas da Moderação. O abastecimento da corte na formação política
do Brasil: 1808-1842. 2 ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1993; SILVA,
Wlamir. Liberais e povo: a construção da hegemonia liberal-moderada na Província de
Minas Gerais (1830-1834). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em
História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002; SILVA, A. R. C. da.
Identidades Políticas e a Emergência do novo Estado Nacional: o caso mineiro. In.: JANCSÓ,
I. (org.). Independência: história e historiografia, São Paulo: HUCITEC/FAPESP, 2005.
7 Cf. RESENDE, I. N. de. Negócios e participação política: fazendeiros da Zona
da Mata de Minas Gerais: 1821-1841. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-
graduação em História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
8  BIEBER, J. A Visão do Sertão: Party Identity and Political Honor in Late Imperial

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Em outra chave analítica, Patrícia Falco Genovez enfatizou a


análise de redes sociais das elites políticas mineiras no Segundo Reinado
e identificou os principais “clãs” familiares envolvidos na política mineira
ao longo do Segundo Reinado.9 Para a historiadora, por trás do poder dos
gabinetes ministeriais situava-se uma proeminente rede de influências,
constituída por uma teia de amizades e laços familiares que partia
do interior da província mineira em direção à Corte. A historiadora
enfatizou que todos estes políticos miravam no imperador para atingir a
almejada influência política. Sua análise pode ser representada pela figura
do monarca como uma força centrípeta, diante da qual gravitava as elites
imperiais, em busca de honrarias e títulos.
Luiz Fernando Saraiva considerou que a visão de Genovez
contribuiu para enfatizar excessivamente o papel do imperador na política
imperial, ao considerar que a figura do imperador era quem decidia as
nomeações dos cargos e as eleições de liberais e conservadores na Câmara,
o que contribuía para reforçar a visão de que o sistema representativo no
Império era um engodo. Saraiva sustentou que a expansão da cafeicultura
na Zona da Mata ocorreu concomitantemente ao aumento das disputas
pelo poder político dentro da província e na busca pelo poder junto à
Corte e considerou que a província (e estado) mineira foi marcada por
divisões internas e uma ligação profunda dos territórios mais periféricos
com outras regiões do país. Assim, o autor reforçou a tese de que as
sucessivas tentativas de fragmentação tornaram a história mineira algo
singular em relação às demais unidades administrativas.10
Como se vê, pesquisas recentes têm examinado abordagens
niveladoras das tendências políticas presentes em Minas Gerais,
questionamento este que vem sendo corroborado por profícuos estudos
que diagnosticaram a própria diversidade econômica e social das
regiões mineiras. Há um leque de possibilidades a serem exploradas nos
estudos sobre o papel das elites regionais na política imperial. Pesquisas
mais recentes têm nos colocado diante da necessidade de aprofundar a

Minas Gerais, Brazil. Hispanic American Historical Review, v. 81, n. 2, p. 309-342, 2001.
Ver também: BIEBER, J. O sertão mineiro como espaço político (1831-1850). Revista
Mosaico, v. 1, n. 1, p. 74-86, 2008.
9  Cf. GENOVEZ, Patrícia F. O espelho da monarquia: Minas Gerais e a Coroa no
Segundo Reinado. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2003.
10  Cf. SARAIVA, Luiz F. O Império das Minas Gerais: Café e Poder na Zona da
Mata mineira, 1853-1893. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em
História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.

137
Entre a província e a nação

compreensão do papel das elites mineiras na implementação de políticas


a nível nacional, que claramente afetavam os interesses da província.
Para além da historiografia mineira, há uma tendência revisionista
nos estudos sobre a política imperial, que têm questionado a ênfase no
papel exclusivo do poder Moderador, ao destacar a importância da força
de decisão da Câmara dos Deputados e do contexto político em que tais
decisões ocorriam. Há uma clara tendência em afastar-se de abordagens
que acabaram por limitar o campo de entendimento da dinâmica
política imperial. É preciso atentar para o fato de que a Câmara dos
Deputados era o espaço de formulação de políticas nacionais, através
da negociação, confrontos e debates entre diversos setores das elites
regionais.
E para além do Parlamento brasileiro, estudos pioneiros
(como os desenvolvidos por Maria de Fátima Silva Gouvêa e Miriam
Dolhnikoff) trouxeram importante inovação, ao propor reflexão sobre
o papel desempenhado pelas Assembleias Legislativas Provinciais
para o entendimento da dinâmica política imperial.11 A historiografia
mais tradicional desconsiderou a importância desta instituição na
compreensão da formação do Estado brasileiro, colaborando para que
a visão do período fosse menos complexa, como fruto da vitória dos
interesses de um Estado centralizador sobre os interesses das diversas
regiões brasileiras.12 Neste aspecto, concordo com Miriam Dolhnikoff
que asseverou que foi no Parlamento que o Estado e a nação brasileiros
foram simultaneamente moldados pelas elites regionais, oriundas
de espaços e culturas políticas distintas. Se esse desafio permanente
de montagem e preservação do mosaico nacional contava com a
participação da Câmara dos Deputados, outro ocorria no interior
das províncias. Segundo Claus Rodarte, se no Parlamento buscava-se
sintetizar a nação, as províncias precisavam, quando da escolha de
seus porta-vozes na Assembleia Geral, sintetizar também a si mesmas,
tendo em vista a pluri-tonalidade de vozes que nela existiam.13
11  Cf. GOUVÊA, M. de F. S. O Império das Províncias. Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira/Faperj, 2008; Cf. DOLHNIKOFF, M. O pacto imperial:
origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005.
12  Cf. MATOS, I. R. de. O tempo saquarema. A formação do Estado Imperial. 4 ed.
Rio de Janeiro: Acces, 1999; CARVALHO, J. M. de. A construção da ordem. A elite política
imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980.
13  Cf. RODARTE, C. R. Partidos políticos, poderes constitucionais e representação
regional na 1ª Legislatura da Assembleia Geral do Império do Brasil: Minas Gerais
(1826-1829). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em História,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Em suma, o revisionismo historiográfico destacou a importância


do Parlamento como instituição no interior do qual as grandes questões
de interesse nacional eram debatidas pelas elites regionais, oriundas de
espaços e culturas políticas distintas.14 Abre-se um caminho profícuo
em direção à necessidade de estudos a respeito da atuação das elites
regionais para além do período regencial. Nesta pesquisa, procurei
apreender a inserção dos deputados mineiros nos debates referentes à
reforma eleitoral de 1855, conhecida como Lei dos Círculos, bem como o
impacto da reforma nas eleições realizadas em 1856 em Minas Gerais. O
período marcado pela Política da Conciliação foi, na verdade, marcado
por divisões políticas e pela reformulação do perfil dos representantes
das províncias no Parlamento brasileiro.
A reforma do sistema eleitoral foi tema intensamente debatido
durante o Império. O primeiro sistema eleitoral brasileiro adotado desde
1824 foi o de eleição por maioria simples no âmbito da província. Os
eleitores reuniam-se em cada colégio eleitoral e apresentavam uma lista
de nomes - tantas quantas fossem as cadeiras da província na Câmara
- e eram eleitos os candidatos mais votados em toda a província. Este
sistema foi utilizado nas eleições de 1825, 1829, 1833, 1837, 1841, 1842,
1844, 1847, 1849 e 1852.15 A Lei n. 387 de 19 de Agosto de 1846 vigorou
até a adoção da lei eleitoral de 1855, que ficou conhecida como Lei dos
Círculos. A lei eleitoral de 1846 estabelecia que cada eleitor votava em
tantos nomes quantos deputados a sua província tinha direito de eleger e
eram eleitos aqueles que obtinham a maioria dos votos na província. Este
sistema eleitoral passou a receber uma série de críticas ao longo da década
de 1840, todas elas com ênfase na tese que o voto provincial contribuía
para ‘esmagar’ os grupos locais em favor das elites provinciais.
Duas propostas de reforma eleitoral foram debatidas no
Parlamento em 1846, durante o quinquênio liberal (1845-1849): a
primeira foi transformada na Lei Eleitoral de 19 de Agosto de 1846,

14  DOLHNIKOFF, M. Governo representativo e eleições no século XIX. Revista do


Instituto Histórico e Geográfico Brazileiro, v. 474, p. 15-46, 2017; Cf. FERRAZ, S. E. O
Império Revisitado: Instabilidade Ministerial, Câmara dos Deputados e Poder Moderador
(1840-1889). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em História,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
15  A Lei de 1855 alterou o sistema para o de maioria absoluta (em até três turnos
sucessivos) em distrito de um representante. Em 1860, houve nova alteração para o sistema
de maioria simples em distritos plurinominais. Em 1875, voltou ao sistema de maioria
simples na província (com voto limitado) e em 1881, para o de maioria absoluta (em dois
turnos) em distritos de um representante. Sobre sistemas majoritários, ver: NICOLAU, J.
Sistemas Eleitorais. 5 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2014.

139
Entre a província e a nação

alterada apenas em 1855. A segunda, foi apresentada ao Senado em


1846, engavetada e retomada apenas em 1855 para ser aprovada em
terceira discussão com emendas, tornando-se a Lei dos Círculos. Logo,
as duas principais ideias da reforma de 1855 já apareciam na década
de 1840 como demandas do partido liberal: a adoção do voto distrital
e o estabelecimento das incompatibilidades eleitorais. A proposta
apresentada por Paraná em 1855 era, portanto, originária do projeto
do liberal Paula Souza debatido entre 1847 e 1848. Em 1855, o projeto
substitutivo elaborado pela Comissão do Senado alterava alguns pontos
do projeto de Paula Souza, mas não modificava a sua essência, que era
as suas duas ideias capitais.16
Qual a importância de estudar Minas Gerais e a política imperial?
A província mineira possuía um expressivo colégio eleitoral que
resultava no maior número de representantes na Câmara e no Senado.
Assim, o seu papel na política imperial não pode ser desprezado, uma
vez que esta província possuía a maior bancada na Câmara - um total
de vinte deputados - quando várias províncias possuíam apenas um
representante. É preciso ressaltar que o número de deputados de cada
província se tornou a medida de seu grau de influência na política
nacional. Isto implicava na seguinte fórmula: ‘se’ os mineiros resolvessem
unir-se em torno de uma proposta, eles tinham o poder de decidir uma
votação. Além disso, constantes demandas por divisão da província mais
populosa do Império significavam também possibilidades de alterações
profundas no jogo político imperial. O número de representantes de
cada província era calculado pela sua densidade populacional e se a
província mineira fosse dividida, perderia representação, que passaria
a pertencer à nova província. Portanto, uma possível divisão de Minas
redefiniria o jogo de poder na Câmara dos Deputados e Senado.
Este estudo analisou as ideias de representação política veiculadas
pelos representantes mineiros nos debates referentes à reforma eleitoral
de 1855 e investigou o impacto da Lei dos Círculos no perfil dos
representantes eleitos em 1856 na bancada mineira, a mais expressiva
do Império. Parte-se do pressuposto que, para uma compreensão
mais aprofundada do processo de adoção das reformas eleitorais
no Segundo Reinado, é fundamental considerar a importância do
Parlamento enquanto instituição representativa, no interior da qual se

16 FERRAZ, P. R. O Gabinete da Conciliação: atores, ideias e discursos (1848-


1857). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2013.

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desenrolavam complexas relações entre diferentes setores da sociedade


brasileira. Parte-se do pressuposto de que a política imperial merece ser
compreendida em sua complexidade, levando em conta não apenas a
atuação do poder central, mas as relações entre Executivo e Legislativo.
Qual o impacto da reforma eleitoral de 1855 para a bancada
mineira (especificamente) e para o sistema representativo do Império,
de modo geral? Assim, além da análise dos debates sobre a adoção das
reformas eleitorais, analisei os resultados das eleições ocorridas no
período, de modo a traçar um perfil da bancada mineira, antes e após as
alterações no sistema eleitoral.

Os debates parlamentares de 1855: o projeto de reforma eleitoral


e as influências partidárias
Se aprovada a reforma, as províncias seriam divididas em
tantos círculos eleitorais quantos forem os seus deputados à Câmara
dos Deputados. Assim, Minas Gerais se dividiria em 20 círculos
eleitorais e cada um elegeria um deputado. O sistema de maioria
simples seria abolido, ou seja, o candidato precisava de uma maioria
absoluta de votos para ser eleito. Além do voto distrital, o projeto
de reforma eleitoral de 1855 também previa as incompatibilidades
eleitorais que impedia que presidentes de província e seus secretários,
comandantes de armas e generais em chefe, inspetores da Fazenda
Geral e Provincial, chefes de polícia, delegados e subdelegados, juízes
de direito e municipais fossem votados nos círculos eleitorais em que
exerciam autoridade ou jurisdição. A medida visava a evitar os abusos
de empregados públicos que costumavam se utilizar da influência
dos seus cargos para conseguir votos. Neste sentido, a proposta do
novo sistema eleitoral ambicionava garantir a autenticidade do
sistema representativo, estabelecendo uma nova relação entre eleitor
e candidato.
Apresentada a proposta no Senado, os debates foram marcados
pela oposição de um núcleo do partido conservador que não aderiu
à Política da Conciliação do Marquês de Paraná, frequentemente
apelidada por jornais liberais de saquaremas e por jornais governistas
de “jovem oposição”. Este grupo considerava que a reforma favorecia o
partido liberal nas próximas eleições. Parte dos conservadores e grande
parte dos liberais que ansiava por reformas apoiaram a proposta. A

141
Entre a província e a nação

proposta foi aprovada com maioria de apenas 3 votos, estando presentes


43 senadores.17 Já na Câmara dos Deputados, os debates foram marcados
por oposição ainda maior dos chamados saquaremas, de tal modo que
a votação final conseguiu ser ainda mais apertada, comparada à votação
na Câmara Vitalícia. Apesar da resistência, Paraná a transformou em
questão de gabinete e sua votação foi rápida.18
As divergências nos debates parlamentares foram também
pautadas por uma clivagem partidária.19 Liberais reivindicavam o voto
distrital e a adoção das incompatibilidades eleitorais como parte da
agenda do seu partido, que há tempos reivindicavam mudanças no
perfil representativo do Parlamento. O partido conservador se rompeu
em dois blocos, com saquaremas fazendo oposição e conservadores
‘conciliados’ defendendo o Gabinete e sua proposta. Por outro lado, a
defesa do voto distrital preocupava-se em mostrar que o projeto não
era partidário. Em meio ao debate, o próprio presidente do conselho
afirmara que a medida era fruto da reclamação de ambos os partidos
quando estavam fora do poder.20
Além da questão concreta da disputa política, a partir da análise
dos debates parlamentares foi possível apreender a existência de uma
tensão entre duas concepções distintas de representação. Opositores da
reforma defendiam o sistema eleitoral vigente por considerarem que
ele favorecia a eleição de representantes ilustrados, mais influentes e
melhor qualificados para definir os interesses nacionais. Este grupo
acreditava que o voto distrital suplantaria os interesses provinciais, ao
eleger “notabilidades” incapazes de pensar a província e a nação.21 Já os
defensores dos círculos eleitorais sustentavam a ideia de representação
por semelhança, baseada na crença de que cada representante deveria ser
uma espécie “espelho” dos seus representados. Para tanto, era imperativo
que se escolhesse os representantes a partir de um “universo pequeno de
eleitores”, os círculos eleitorais. A representação das minorias garantiria
a eleição de lideranças locais e a diversidade partidária, aproximando o
eleitor do candidato.

17  ANAIS do Senado Brasileiro, Sessões de 1855.


18  Ibidem, p. 234 et seq.
19  FREITAS, A. P. R. Minas e a Política Imperial: reformas eleitorais e representação
política no Parlamento Brasileiro (1853-1863). Tese (Doutorado em História). Programa de
Pós-graduação em História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
20  ANAIS do Parlamento Brasileiro, 1855, p. 226-234.
21  Ibidem, p. 265-306.

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Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Os defensores dos círculos eleitorais sustentavam que a proposta


acabaria com a coesão das “grandes bancadas provinciais”, que
frequentemente tem dificultado a aprovação de medidas caras aos
gabinetes. Entretanto, a defesa da medida alegava que o fim das grandes
deputações não significava a perda de influência das grandes lideranças
provinciais. Assim, a ideia era a de que o poder das grandes províncias
não deixaria de existir, uma vez que apenas o perfil dos membros destas
bancadas é que seria modificado e não o número de representantes das
bancadas. Minas continuaria com o maior número de representantes,
mas estes passariam a ser eleitos dentre os vinte distritos em que se
dividiria a província. Alterava-se apenas o desenho do poder provincial:
Minas se dividiria em círculos.
A votação final da proposta - 54 votos a favor e 36 contra -
confirmou que a medida, de fato, dividiu o Parlamento.22 O peso da
bancada mineira foi decisivo na aprovação da reforma e revelou uma
coesão dos seus membros no alinhamento ao Gabinete Paraná. No
cômputo geral, 54 deputados votaram a favor. Destes, 16 eram mineiros,
ou seja, cerca de 30% dos votos concentrados em apenas uma bancada,
a maior bancada provincial do Império. Não foi possível apreender até
que ponto a pressão do presidente do Conselho foi decisiva à tomada
de decisão dos mineiros. Mas fato é que sem o apoio dos mineiros, a
aprovação da Lei dos Círculos teria sido bem mais acirrada. No dia da
votação, dos vinte deputados mineiros, um encontrava-se licenciado e
um não foi votar. Dentre os dezoito que votaram, apenas dois foram
contrários à Lei dos Círculos.
Firmino Rodrigues Silva foi um dos únicos votos contrários à
reforma. Nascido em Niterói, Rodrigues Silva era magistrado, conhecido
por sua atuação na imprensa da Corte, alinhado ao grupo do Regresso.
Firmino não era mineiro, mas era casado com a filha de Francisco
Coelho Duarte Badaró, importante fazendeiro de Guarapiranga, na
Zona da Mata. Rodrigues Silva atuou na magistratura em diversas
comarcas mineiras.23 Rodrigues Silva era muito próximo ao saquarema
Euzébio de Queiroz, principal opositor da reforma eleitoral no Senado e
também muito próximo do Visconde de Uruguai. Em 1860, o jornal O

22  ANAIS do Parlamento Brasileiro, 1855, p. 340.


23  ALMEIDA, Gabriel Abílio de Lima Oliveira. Cronistas e Atlantes: Justiniano José
da Rocha, Firmino Rodrigues Silva e o Regresso Conservador (1836-1839). Dissertação
(Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de
São João del Rey, São João del Rey, 2013.

143
Entre a província e a nação

Sul de Minas revelou que Firmino era o principal adversário político dos
deputados mineiros Luiz Antônio Barbosa e Francisco Diogo Pereira
de Vasconcelos, ambos conservadores alinhados ao gabinete Paraná
e colegas de bancada em 1855: “Deputado mineiro nunca fez causa
comum com seus colegas, pertencendo na Câmara a outro grupo”.24 Sua
ligação com o Regresso e a oposição a colegas mineiros conservadores
definiram seu voto contrário à reforma eleitoral. O outro representante
de Minas que votou contrário à reforma eleitoral foi Francisco Soares
Bernardes de Gouvêa. Também membro do partido conservador e
magistrado, Bernardes de Gouvêa entrou para o Parlamento na vaga de
Herculano Ferreira Penna, que foi nomeado senador. Mas atuou apenas
nessa legislatura, não há indícios de sua atuação nos jornais pesquisados
e ele não se pronunciou nos debates. Natural de Paracatu, Bernardes de
Gouvêa morou em Itaboraí de 1846 a 1851. Entre 1851 e 1855, atuou
como magistrado na Comarca de Rio das Mortes, no mesmo período
em que foi eleito suplente e assumiu a vaga deixada por Ferreira Pena.
Em 1856, tão logo concluiu seu mandato, voltou a atuar como juiz de
direito em Itaboraí,25 fato que parece sugerir uma aproximação maior
do deputado com o grupo saquarema, cujos principais expoentes são
oriundos da região da baixada litorânea de Itaboraí e Saquarema, terra
de um dos membros da Trindade Saquarema, Joaquim José Rodrigues
Torres. Infelizmente, não há maiores indícios de suas relações políticas
com as lideranças do município de Itaboraí que nos permita corroborar
essa ideia. Há que se considerar também o fato de que seu voto
contrário pode ter sido motivado pela oposição às incompatibilidades
eleitorais, que restringia a candidatura de funcionários públicos como
os magistrados nas localidades em que exerciam seus cargos.
Apenas um deputado mineiro não foi votar: o conservador José
Joaquim de Lima e Silva Sobrinho substituiu Antônio Cândido da
Cruz Machado, após este ter sido nomeado presidente da província
do Maranhão. Assim como Rodrigues Silva, Lima e Silva Sobrinho era
fluminense, irmão do comandante Duque de Caxias.26 Foi deputado
por Minas de 1850 a 1852 e suplente na nona legislatura. A imprensa

24  A eleição de um senador por Minas. O Sul de Minas, Ano I, n. 14, Campanha,
Typographia Austral do Editor Proprietário João Pedro da Veiga Sobrinho, Sábado, 22
out.1859.
25 XAVIER DA VEIGA, J. P. (Dir.). Revista do Arquivo Público Mineiro, Ouro
Preto, 1896.
26  SISSON, S. A. Galeria dos Brasileiros Ilustres. v. 1. Brasília: Senado Federal, 1999,
Coleção Brasil 500 anos, p. 93-95.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

noticiou que Lima e Silva não foi votar por que estava doente.27 Já o
deputado Ribeiro da Luz se licenciou para assumir a presidência da
província do Espírito Santo, há menos de um mês e sua vaga não foi
substituída a tempo.28
Justiniano José da Rocha foi eleito deputado por Minas Gerais
em 1843, 1850, e em 1852, foi novamente eleito deputado geral.29
Reconhecido pela defesa do ideário e práticas políticas do grupo do
Regresso na imprensa da Corte, Justiniano José da Rocha fundou diversos
jornais ao lado do também saquarema e deputado por Minas, Firmino
Rodrigues Silva. Mas ao contrário de Rodrigues Silva, que permaneceu
alinhado aos saquaremas, Justiniano teve uma trajetória sinuosa: em
1853, Justiniano apoiou o Gabinete Paraná e elogiou as propostas
reformistas apresentadas em 1854; rompeu com o governo no final do
ano para apoiar os saquaremas e o Movimento de Vassouras; no início
de 1855, voltou a prestar apoio ao Gabinete Paraná, quando explicitou
na Câmara o seu rompimento com Euzébio de Queiroz; em maio de
1855, rompeu novamente com o Gabinete e se isolou politicamente,
não conseguindo mais reeleger-se.
A sessão de 19 de Maio de 1855 marcou o momento em que
Justiniano se declarou oposicionista e passou a criticar a ‘conciliação’
de Paraná e o fato de não ter apresentado a reforma do sistema eleitoral
com a adoção do voto distrital.30 O deputado argumentou que “era
preciso aproveitar a calma das paixões para trazer uma fusão dos
princípios práticos da ação e da reação”.31
Três semanas após romper com o Gabinete e semanas antes do
início dos debates que culminaram na votação da Lei dos Círculos,
Justiniano publicou “Ação, Reação e Transação”. O panfleto foi objeto
de análise de muitos pesquisadores e, recentemente, Tâmis Parron
considerou que sua escrita foi uma espécie de “prestação de contas” a
Paraná das suas constantes mudanças de posicionamento. Justiniano
continha uma visão heterodoxa da política do seu tempo: “adere em parte
aos amigos da Conciliação, adota em parte as críticas de seus amigos”.32
27  O Bom Senso. O Bom Senso, Ouro Preto, Ano 4, n. 345, quinta, 13 set. 1855.
28  ANAIS do Parlamento Brasileiro, 1855, p. 123.
29  XAVIER DA VEIGA, J. P. (Dir.). Efemérides Mineiras 1664-1897. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1998, p. 958 et seq.
30  ANAIS do Parlamento Brasileiro, 1855, p. 43-49.
31  Ibidem, p. 111 et seq.
32  PARRON, Tâmis. P. O Império num Panfleto? Justiniano e a formação do Estado

145
Entre a província e a nação

De fato, os debates revelaram que em maio de 1855, quando rompeu


com Paraná, Justiniano o acusava de omisso, por não ter realizado
ainda a reforma eleitoral. Justiniano ao romper com Paraná, Justiniano
continuou a defender a reforma eleitoral, mediante a adoção do voto
por círculos. Embora Justiniano soubesse que cedo ou tarde a reforma
seria introduzida nos debates, até fins de maio, a reforma ainda não
havia sido apresentada ao Parlamento. O próprio Justiniano teria dito,
após romper com Paraná, que não se considerava nem ‘ministerialista’,
nem ‘saquarema’ e nem liberal, mas oposicionista apenas.33 Como
afirmou Tâmis Parron a respeito do panfleto dirigido a Paraná:
condena o vocábulo “conciliação”, definindo-o como a prática de
cooptar indivíduos, corromper partidos e realizar sub-repticiamente
uma centralização nefasta (discurso que a liderança saquarema
endossaria); e sugere em seu lugar o conceito de “transação”,
entendido como o momento de reabertura relativa do Estado à
influência da sociedade – o que implicava criticar o projeto de
reforma da lei de 1841 (os saquaremas o apoiariam, o ministério
não) e instituir no país o voto distrital (o ministério o apoiaria, os
saquaremas não).34

Os dois únicos liberais da bancada mineira – os suplentes Manoel


de Mello Franco e José Pedro Dias de Carvalho se destacaram na defesa
da reforma eleitoral.35 Em sessão de 4 de Julho, Mello Franco enfatizou
a necessidade da realização da reforma eleitoral:
o ministério merece censuras não por ser reformador, mas justamente
porque tem deixado de o ser, porque não tem satisfeito a expectativa
pública, nem a necessidade das reformas geralmente reclamadas, e
mesmo prometidas pela atual administração (Apoiados).36

José Pedro Dias de Carvalho também reforçou a pressão para que


o Gabinete Paraná fizesse valer suas promessas de reforma eleitoral,
tema tão caro aos interesses do partido liberal:
tenho viva lembrança de que da parte do ministério se disse que
haviam tendências para adotar algumas das opiniões manifestadas
pelo partido contrário; creio até que se disse que o ministério tinha

no Brasil do século XIX. In.: ROCHA, Justiniano J. da. Ação; Reação; Transação. Duas
palavras acerca da Atualidade Política do Brasil (1855). São Paulo: EdUSP, 2016, p. 15-65.
33  ANAIS do Parlamento Brasileiro, 1855, p. 72 et seq.
34  PARRON, Tâmis P. O Império num Panfleto... Op. cit., p. 51.
35  XAVIER DA VEIGA, J. P. Efemérides Mineiras 1664-1897... Op. cit., p. 543-555.
36  ANAIS do Parlamento Brasileiro, 1855, p. 49-52, grifo nosso.

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caminhado para nós, e que era preciso nós caminharmos para o


ministério.37

Assim, os dois liberais da bancada mineira afinaram-se com os


demais liberais da Câmara, em apoio à adoção da Lei dos Círculos.
Em contraponto, dois conservadores mineiros votaram contra
a medida, por não pertencerem ao grupo conservador que estava no
Ministério e se alinharem aos saquaremas, e um deputado mineiro
não foi votar. Os demais membros da bancada mineira tornaram-se
conservadores ‘conciliados’, portanto, favoráveis à reforma.
Já do lado dos conservadores, o conselheiro Luiz Antônio
Barbosa era um notório ‘conciliado’, tendo presidido a província do
Rio de Janeiro por quatro vezes entre 1853 e 1857, fato que revela a
sua aproximação com o Gabinete Paraná. Naquelas sessões de 1855,
Barbosa se definiu como “amigo dedicado dos nobres ministros”, “amigo
do gabinete” e falou em nome de todos os conservadores da bancada
mineira, asseverando que estes apoiavam o Gabinete por ser este um
Ministério conservador, recebendo muitos “apoiados” dos seus colegas:
Continuarei, sr. Presidente a guardar o silêncio em que tenho estado
até hoje, silêncio mal interpretado seguramente por aqueles que o
atribuem ao cansaço em que nos achamos, nós os deputados por
Minas, de ser prudentes carregadores de ministros; [...] Somos pois
ministerialistas, porque somos conservadores, e porque o ministério
atual o é igualmente.38

Barbosa afirmou que o fato de ocupar um cargo de presidente


de tão importante província era prova suficiente de que ele seguia a
política adotada pelo Ministério: “Ocupando há dois anos uma dessas
posições oficiais que não se dão, que não se aceitam, nem se conservam
por um instante sem a mais completa confiança do governo”.39 Das
suas palavras, infere-se que os deputados conservadores de Minas
pertenciam ao grupo conservador que aderiu a Conciliação na ruptura
com os chamados saquaremas. Parece claro que o regressismo na
bancada mineira não teve a expressão que tivera no Rio de Janeiro, por
exemplo, sendo representado apenas por Firmino Rodrigues Silva, já
que Justiniano não comungava mais daquelas ideias.

37  ANAIS do Parlamento Brasileiro, 1855, p. 139-147.


38  Ibidem, p. 59-63.
39  Ibidem.

147
Entre a província e a nação

Neste cenário de pressão por reformas, Luiz Carlos da Fonseca


discursou em apoio ao Ministério e à reforma eleitoral. Fonseca foi
deputado geral por Minas em diversas legislaturas, era médico da
Imperial Câmara e professor da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, sendo colega do também deputado mineiro Francisco de
Paula Cândido nestas instituições. Ambos entretinham relações muito
próximas com a família imperial. Luiz Carlos tinha como sogros,
Joaquim José de Magalhães Coutinho e a Condessa de Belmonte, que
exerciam os cargos de guarda-roupa de D. Maria I e preceptora dos
príncipes, respectivamente.40 Já Paula Cândido também foi deputado
em várias legislaturas nas duas últimas décadas e era médico pessoal da
família do Imperador.41 Luiz Carlos da Fonseca afirmou sua confiança
no Gabinete em relação à concretização das reformas:
vejo, Sr. Presidente, dizer-se de um lado que o governo ainda não
entrou no segundo período do seu programa ou na realização de
ideias tendentes a conciliar os partidos, de outro lado pergunta-se
aos Srs. Ministros o que tem feito! O governo responde que muito
tem a fazer; eu, portanto estou resolvido a aguardar os fatos.42

As eleições de 1856: os mineiros e a renovação parlamentar


Um dos objetivos deste trabalho foi o de analisar o impacto da
primeira eleição em Minas regida pela Lei dos Círculos, no momento
em que a legislação foi testada na prática. Teria, de fato, ocorrido a
tão conclamada renovação parlamentar? Além desta questão central,
importa refletir sobre as consequências dos resultados eleitorais para
a província de Minas Gerais, uma província de notável peso político
e econômico no Império, marcada pela atuação de importantes
políticos liberais durante a Regência, mas recentemente representada
majoritariamente por conservadores na política nacional. Quais os
impactos causados no perfil destes parlamentares? Os liberais foram
beneficiados pela reforma eleitoral de 1855? Os deputados conservadores
conseguiram reeleger-se? Candidaturas de perfis localistas vingaram?
As incompatibilidades frearam o ingresso de funcionários públicos no
Parlamento, principal queixa atrelada ao problema da interferência
40 LUSTOSA, Isabel. Uma relação muito delicada. A correspondência da família
imperial com a Condessa de Belmonte, suas filhas e neta. Insight Inteligencia, Rio de
Janeiro, v. 27, n. 27, p. 38-54, 2004.
41  XAVIER DA VEIGA, J. P. Efemérides Mineiras 1664-1897... Op. cit., p. 357 et seq.
42  ANAIS do Parlamento Brasileiro, 1855, p. 85 et seq.

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do governo nas urnas? A bancada mineira votou em peso na Lei dos


Círculos, mas teriam eles conseguido preservar seus assentos na Casa?
Para alguns estudiosos que se detiveram a análise geral daquela
eleição, o impacto da Lei dos Círculos foi grande: cresceu muito o
número de padres e médicos, lideranças locais, entre os novos deputados
e apareceram mesmo alguns coronéis da Guarda Nacional.43 Segundo
José Murilo de Carvalho, a eleição de 1856 teria marcado também o início
da queda acentuada do número de funcionários públicos na Câmara e
o início do aumento de profissionais liberais. Para o historiador, houve
real progresso em distinguir as funções do governo, reduzindo o peso
do executivo no Parlamento. A presença de funcionários públicos na
Câmara, que em 1850 era de 48%, na última legislatura pelo sistema de
eleição indireta (1878-1881), reduzira-se a 8%. Mas José Murilo avaliou
que isto não impediu o governo de continuar a exercer influência e
eleger partidários seus.
Há escassez de estudos referentes às eleições nas províncias
diante de alterações importantes no sistema eleitoral. Uma exceção
é o artigo publicado em 2011, por Suzana Cavani Rosas que estudou
as eleições de 1856 em Pernambuco e destacou a interferência do
governo e conservadores nos resultados eleitorais. Os conservadores
pernambucanos elegeram nove representantes, muitos deles reeleitos.
Já os praieiros elegeram apenas um candidato, num universo de dez
círculos.44
Tal situação não ocorreu na província mais populosa do Império.
A análise da composição da bancada mineira confirma, em muitos
aspectos, as afirmações de José Murilo de Carvalho. As eleições de 1856
trouxeram uma profunda renovação parlamentar, com a entrada de
treze novos nomes em um universo de vinte deputados mineiros. Além
disso, é notável a presença de nomes inéditos na Casa. A comparação
entre a nona (1853-1856) e a décima (1857-1860) legislatura revelou que
dentre os vinte deputados que, em sua maioria, votaram a favor da Lei
dos Círculos em 1855, apenas sete conseguiram reeleger-se com a nova
legislação, todos conservadores e eleitos em diferentes regiões mineiras.
Foram eles: Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos (Ouro Preto), Luiz
Antônio Barbosa (Sabará), Antônio Cândido da Cruz Machado (Serro),
43  Cf. CARVALHO, J. M. de. A construção da ordem... Op. cit.
44  ROSAS, S. C. A dança dos círculos: guabirus e liberais e a disputa pelos distritos
eleitorais em 1856. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, São Paulo, p. 1-12,
2011.

149
Entre a província e a nação

Luiz Carlos da Fonseca (Montes Claros), Bernardo Belizário Soares de


Souza (Paracatu) e Agostinho José Ferreira Bretas (Caldas).
No círculo eleitoral de Ouro Preto, a disputa ficou entre nomes
já conhecidos do cenário provincial e nacional. O então deputado
conservador Francisco Diogo Pereira de Vasconcellos venceu por
considerável margem de votos (61 votos) o seu colega de bancada,
Manuel Teixeira de Souza, que teve 39 votos. Outro conservador,
Francisco de Paula Santos, também seu colega de bancada, foi eleito
suplente.45 Assim, no distrito que tinha a capital de Minas como cabeça
de círculo, a Lei de 1855 não trouxe novos nomes ao Parlamento, com
a eleição de políticos já conhecidos no cenário provincial e nacional.
Estes políticos lançaram suas candidaturas no círculo eleitoral em que
possuíam fortes relações políticas por serem naturais daquela localidade,
sendo nomes de destaque na política ouro-pretana.46
Ainda na região central mineira, no círculo eleitoral de Sabará (3º),
também foi reeleito um deputado da legislatura anterior: o deputado
conservador Luiz Antônio Barbosa foi reeleito por pequena margem
de votos (58 votos) em relação ao seu opositor, o deputado provincial
Anastácio Symphrônio de Abreu (52 votos). O liberal Modestino Carlos
da Rocha Franco foi eleito suplente.47 Já os círculos eleitorais do Serro,
Montes Claros e Paracatu, no norte mineiro, também elegeram nomes
já conhecidos da Câmara dos Deputados. No Serro (5º), o conservador
Antônio Cândido da Cruz Machado foi eleito com 83 votos, dos 124
eleitores que compareceram, derrotando Bento Alves Gondim. Simão
da Cunha Pereira - cunhado de Cruz Machado - foi eleito seu suplente,
vencendo o deputado provincial liberal Joaquim Ferreira Carneiro.48
A vitória de Cruz Machado foi atribuída pelo periódico liberal A
atualidade, ao enorme poder que sua família detinha na cidade de
Serro.49 Segundo o jornal, desde que Cruz Machado subiu ao poder,
as eleições gerais, provinciais e municipais naquela cidade eram feitas
“segundo seu bel-prazer”.50 O delegado de polícia da cidade do Serro
45  Correio Oficial de Minas, Ouro Preto, n. 6, p. 1-4, 26 jan. 1857.
46  Almanak Administrativo, Civil e Industrial da Província de Minas Gerais para
o ano de 1870, p. 18; 29-30; Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e
Província do Rio de Janeiro para o ano de 1856, p. 65.
47 Cf. Correio Oficial de Minas... Op. cit.; LIMA, A. de. Revista do Arquivo Público
Mineiro... Op. cit.
48 Cf. Correio Oficial de Minas... Op. cit.
49  MINAS Gerais. A Atualidade, Rio de Janeiro, n. 65, p. 2, 7 jan. 1860.
50  Ibidem.

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era seu tio. Os cargos policiais em todo o município eram atribuídos


a pessoas que se prestavam às exigências da família Cruz Machado e a
guarda nacional teria sido montada tendo em vista seus interesses:
desde que se pôs em execução a lei dos círculos, o lugar de deputado
geral, o de suplente, assim como os dois de deputados provinciais
foram distribuídos entre os membros dessa família. Ao Sr. Cruz
Machado coube em partilha a deputação geral, a seu concunhado
Dr. Simão da Cunha a suplência e a deputação provincial. O Sr.
Thomaz Teixeira de Gouvêa que também é ligado à família, teve
o segundo lugar de deputado provincial. Por vontade do Sr. Cruz
Machado, a ninguém era dado pretender um desses lugares que
estavam distribuídos pelos membros da família.51

Assim, Cruz Machado conseguiu manter-se como deputado


geral e sua influência no Serro teria sido a responsável pela sua vitória
na vigência da Lei dos Círculos. Por fim, a sua vitória foi dupla, pois seu
cunhado foi eleito suplente.
Em Paracatu (9º), o conservador Bernardo Belizário Soares de
Sousa (90 votos) venceu a eleição para o liberal Bernardo de Mello
Franco (77 votos).52 Bernardo Belizário nasceu em Paracatu, era irmão
de José Antônio Soares de Souza, médico formado em Paris e pai
do Visconde de Uruguai. Portanto, Belizário era tio do Visconde de
Uruguai. Formado em direito em Coimbra na década de 1820, Bernardo
Belizário foi desembargador da Relação da Corte. Na Câmara dos
Deputados, foi o representante que mais exerceu mandatos, atuando
em sete legislaturas ao longo das décadas de 1830, 1840 e 1850.53 Já o
liberal Bernardo de Mello Franco, natural de Paracatu, candidatou-se a
deputado geral em 1856, mas não obteve sucesso.54
Como exposto, quase todos os candidatos que se reelegeram em
1856 se candidataram nos círculos eleitorais onde nasceram. Este foi o
caso de Francisco Diogo Pereira de Vasconcellos, Luiz Antônio Barbosa,
Antônio Cândido da Cruz Machado e Bernardo Belizário Soares de
Souza. Em outros dois círculos eleitorais, Agostinho José Ferreira
Bretas e Antônio José Monteiro de Barros conseguiram a reeleição
em distritos eleitorais que haviam se estabelecido, embora não fossem
51  MINAS Gerais. A Atualidade, Rio de Janeiro, n. 65, p. 2, 7 jan. 1860.
52  Correio Oficial de Minas, Ouro Preto, n. 6, p.1-4, 26 jan. 1857.
53  Almanak Administrativo, Civil e Industrial da Província de Minas Gerais... Op.
cit., p. 37-39.
54  XAVIER DA VEIGA, José Pedro. Revista do Arquivo Público Mineiro... Op. cit.,
p. 54-95.

151
Entre a província e a nação

originários daquelas localidades. No Sul de Minas, no distrito eleitoral


de Caldas (11º), o médico e deputado geral conservador Agostinho José
Ferreira Bretas obteve vitória com larga margem de votos (63 votos),
derrotando Roque de Souza Dias (9 votos), Vicente Ferreira Carvalhais
(2 votos), José Joaquim Fernandes de Paula (1 voto) e Cônego João Dias
de Quadros Aranha (1 voto). O deputado provincial José Afonso Dias
de Souza fora eleito suplente com grande margem de votos (62 votos).55
Em Leopoldina (18º), na Zona da Mata mineira, o deputado
conservador Antônio José Monteiro de Barros venceu com enorme
vantagem de votos (56 votos), o Barão de Aiuruoca – o liberal Custódio
Ferreira Leite que teve 11 votos, seguido do liberal Teófilo Ottoni (3
votos), Domiciniano Matheus Monteiros de Castro (1) e o Comendador
Manoel José Monteiro de Castro (1). Monteiro de Barros foi eleito
suplente com larga margem de votos (60 votos).56 Monteiro de Barros,
o Visconde de Congonhas, possuía extensas fazendas em várias regiões
de Minas, era também irmão da Viscondessa de Uberaba, casada com o
senador Visconde de Uberaba. A família Monteiro de Barros formava,
portanto, uma extensa rede formada por políticos influentes, homens
de prestígio na Corte, detentores de títulos de nobreza e dos cargos
mais elevados a nível nacional. A partir de 1843, Monteiro de Barros
foi deputado geral em três legislaturas.57 O seu principal oponente, o
liberal Custódio Ferreira Leite (barão de Aiuruoca), também era um dos
maiores produtores de café da Mata mineira e envolveu-se na prestação
de serviços de infraestrutura à Coroa, como a construção de diversas
estradas.58

55  Correio Oficial de Minas... Op. cit.; XAVIER DA VEIGA, José Pedro. Revista do
Arquivo Público Mineiro... Op. cit., p. 23-53; TRINDADE, C. R. O. da. Velhos troncos
ouro-pretanos. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., 1951, p.
122; Almanach Sul-mineiro para 1874 organizado, redigido e editado por Bernardo
Saturnino da Veiga, Campanha, Typographia do Monitor Sul-mineiro. 1874, p. 148-
149; 362; 443-444.
56  Correio Oficial de Minas, Ouro Preto, n. 6, p. 1-4, 26 jan. 1857.
57  Cf. BROTERO, F. de B. A família Monteiro de Barros. São Paulo: [s. n.], 1951;
HORTA, Cid R. Famílias Governamentais de Minas Gerais. In.: I Seminário de Estudos
Mineiros. Belo Horizonte: UFMG, 1956, p. 12; TRINDADE, R. O. da. Breve Notícia dos
Seminários de Mariana. Mariana: Arquidiocese de Mariana, 1951.
58  LIMA, A. de (Dir.). O Barão D’Ayuruoca. Revista do Arquivo Público Mineiro,
Anno XIV, p. 429-437, 1910; SILVA, M. F. D. da. Diccionario biográfico de brasileiros
celebres nas letras, artes, política... desde o ano 1500 até nossos dias. Rio de Janeiro:
Laemmert, 1871, p. 33 et seq..

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Dentre os sete distritos eleitorais que reelegeram deputados


da nona legislatura (1853-57), apenas Montes Claros (8º) elegeu um
candidato que aparentemente não tinha maiores vínculos com a região
em que se candidatou. O médico e então deputado geral conservador
Luiz Carlos da Fonseca (82 votos) derrotou todos os liberais que
se candidataram naquele círculo. Foram eles: o cônego Antônio
Gonçalves Chaves (66 votos) - liberal e deputado provincial, o padre
Domingos Pereira de Oliveira (31 votos), Joaquim Felício dos Santos
(2 votos) – liberal e deputado provincial, e José Pedro Dias de Carvalho
(1 voto) – liberal e suplente de deputado geral.59 Foi eleito suplente por
aquele distrito, o também deputado geral e conservador Carlos José
Versiani.60 Portanto, neste círculo, um candidato conservador sem
registros de vínculos com a cidade, derrotou todas as lideranças liberais
da localidade. Luiz Carlos da Fonseca era médico da Imperial Câmara,
professor das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e foi deputado
geral em seis legislaturas.61 Luiz Carlos era estabelecido na Corte há
décadas e possuía relações familiares apenas com a capital da província.
Já o liberal Antônio Gonçalves Chaves era uma importante liderança
local, natural de Minas Novas. Foi ordenado padre em 1834, tornando-
se vigário de Montes Claros, e rapidamente se inseriu na política local,
sendo eleito vereador de Montes Claros em 1836 e, por doze anos, foi
presidente da Câmara de Montes Claros (1840-53). Chaves vivia em luta
constante contra os conservadores locais, representados pelas famílias
Veloso e Versiani. Foi deputado provincial em três legislaturas ao longo
da década de 1840.62 Assim, a eleição em Montes Claros representou
o único círculo eleitoral mineiro em que um deputado conservador
reconhecido nacionalmente e sem vínculos com a região, derrotou
um candidato liberal com forte influência na localidade. A vitória de
Luiz Carlos da Fonseca pode ser encarada como a grande exceção na
eleição regida pela Lei dos Círculos em Minas Gerais, pois foi o único
candidato a concorrer em um círculo que aparentemente não tinha
laços familiares e políticos com as elites locais, e ainda assim, conseguiu
reeleger-se, derrotando o liberal Antônio Gonçalves Chaves.
59  Correio Oficial de Minas, Ouro Preto, n. 6, p. 1-4, 26 jan. 1857.
60  XAVIER DA VEIGA, J. P. Revista do Arquivo Público Mineiro... Op. cit., p. 54-95.
61  Ibidem, p. 23-53; Cf. SETÚBAL, P. D. Mariana Carlota. In.: Ensaios Históricos, 5
ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1983; Almanak Administrativo, Mercantil e
Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro para o ano de 1856, p. 65.
62  FREITAS, A. P. R. Diversidade Econômica e Interesses Regionais: as políticas
públicas do governo provincial mineiro. Dissertação (Mestrado em História). Programa de
Pós-graduação em História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

153
Entre a província e a nação

Em síntese, alguns círculos eleitorais espalhados pelas diversas


regiões mineiras - região central (Ouro Preto, Sabará), Zona da Mata
(Leopoldina), Sul de Minas (Caldas) e Norte mineiro (Serro, Paracatu e
Montes Claros das Formigas) - reelegeram deputados conservadores da
bancada da nona legislatura (1853-1857). A maioria dos eleitos nestes
sete distritos era natural ou residia no distrito em que se candidatou.
A única exceção foi em Montes Claros, que elegeu um candidato que
não era natural da região nem residia naquela localidade. Além destes
deputados reeleitos, outros três tornaram-se suplentes dos distritos a
que se candidataram.63 No entanto, é digno de destaque o fato de que
apenas sete deputados conseguiram se reeleger. E destes sete, quase
todos eram oriundos da ‘cabeça do círculo’ ou tinham fortes vínculos
com as localidades em que se candidataram, de modo que é possível
dizer que a Lei dos Círculos dificultou profundamente a vida daqueles
políticos desconhecidos nas localidades mineiras, permitindo a entrada
de políticos mais comprometidos com suas regiões, por serem lideranças
que seus eleitores conheciam mais diretamente.
O número pequeno de deputados que conseguiram a reeleição
surpreendeu os contemporâneos que temiam a ineficácia da nova
lei e a continuidade da ingerência do Estado nas eleições. O quadro
abaixo revela os círculos eleitorais que trouxeram a renovação à
bancada mineira com nada menos do que 8 liberais em sua nova
composição:
Em relação à renovação partidária, José Murilo de Carvalho
considerou que o perfil partidário da Câmara mudou, com o aumento
do número de membros do partido liberal, tendo sido eleito “uns 23
liberais” numa Câmara formada por 116 deputados.64 Já o historiador
Sérgio Buarque de Holanda contabilizou “25 dos antigos luzias” e
destacou que a Câmara passara a ser composta por muitos deputados
“novatos, de tendências ainda mal pronunciadas” e por antigos que “se
achavam frequentemente divididos por despeitos e ressentimentos que
agora vão subir à tona”.65 Mais recentemente, Suzana Cavani Rosas
considerou que a Lei dos Círculos agradou os liberais pernambucanos,
especialmente, por seu caráter descentralizador, ao mesmo tempo em

63 Foram eles: Francisco de Paula Santos (1º distrito), Antônio Gabriel de Paula
Fonseca (7º distrito) e Carlos José Versiani (8º distrito).
64  CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem... Op. cit., p. 4.
65  HOLANDA, S. B. de. Capítulos de História do Império. São Paulo: Cia das Letras,
2010, p. 59.

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que trouxe insegurança aos conservadores pernambucanos, de modo


que muitos deles hesitaram em acompanhar o governo na votação.66

Quadro 1: Deputados eleitos “estreantes” e filiação partidária (1857-1860)

Distrito Deputados Filiação Partidária

2º Pitangui Francisco Álvares da Silva Campos Liberal


4º Itabira José Felicíssimo do Nascimento Liberal
6º Diamantina Pedro de Alcântara Machado Liberal
7º Minas Novas Antônio Joaquim César Conservador
Hermógenes Casimiro de Araújo
10º Uberaba Conservador
Brunswick
12º Pouso Alegre João Dias Ferraz da Luz
Domingos Teodoro de Azevedo e
13º Baependi Liberal
Paiva
14º Campanha Antônio Filipe de Araújo
15º Formiga Francisco Cirilo Ribeiro e Sousa Liberal
16º São João del
João das Chagas de Andrade Liberal
Rey
17º Barbacena Pedro de Alcântara Cerqueira Leite Liberal
19º Ubá Francisco de Assis Athaíde Conservador
20º Mariana Francisco de Paula da Silveira Lobo Liberal

É importante destacar que, embora minoritária, a representação


dos liberais na Câmara eleita pela lei eleitoral de 1855 rompia com
o padrão das ‘câmaras unânimes’ e, assim, cumpria o objetivo dos
defensores do voto distrital. E embora os conservadores ainda tenham
saído numericamente vitoriosos, era claro o sentimento de mal-estar
diante da nova legislatura que se formara em 1856. E nesse sentido,
Sérgio Buarque de Holanda arriscou uma hipótese aos planos de Paraná,
quando apresentou a proposta de reforma eleitoral:
se Honório não queria uma grande maioria para o partido
conservador que ele ajudou a formar e fortalecer, nada faz acreditar
que tivesse desejado uma grande vitória luzia. Jogando uma cartada
sumamente arriscada, o que pretendeu, e conseguiu, foi evitar
a formação de uma Câmara unanimemente conservadora (ou
unanimemente liberal), e isso lhe bastava.67
66  Cf. ROSAS, S. C. A dança dos círculos... Op. cit.
67  HOLANDA, S. B. de. Capítulos de História do Império... Op. cit., 2010, p. 61.

155
Entre a província e a nação

Se, de fato, foi esta a intenção de Paraná, não é possível saber.


Fato é que, para o caso de Minas Gerais, de um total de treze novos
deputados, pelo menos oito pertenciam ao partido liberal.
As eleições de 1856 em Campanha (14º) foram uma das mais
emblemáticas do Império. Ali, o próprio filho do presidente do Conselho,
o marquês de Paraná, foi surpreendentemente derrotado por um padre
desconhecido nacionalmente. A candidatura do filho do notável estadista
mineiro foi ostensivamente recomendada em circular firmada por todos
os ministros que governavam no período eleitoral. Apesar de todos
os esforços e notoriedade do pai e também pai da Lei dos Círculos, o
filho de Paraná foi derrotado pelo padre Antônio Filipe de Araújo. O
Marquês de Paraná chegou a ser censurado por oposicionistas como o
deputado Francisco, por ter emitido uma carta a uma influência política
da localidade de Campanha, recomendando a candidatura de seu filho,
recém-chegado da Europa e desconhecido naquelas paragens. Em julho
de 1856, o Correio da Tarde noticiou a fala do deputado:
recomenda o Sr. Marquês da candidatura de seu filho, que naquela
data estava a chegar da Europa. O orador diz que essa carta suscita-
lhe três observações capitais: [...] o Sr. Barão dedicado amigo como
se diz o que é, do que a de seu filho, moço há pouco formado, e ainda
não conhecido pelo que vale. Se a eleição de seu filho para deputado
por Minas, e a de seu genro pelo Rio de Janeiro tanto atraem os seus
esforços, não menos fará ele por seus amigos do peito. [...] serve isto
de desenganar aos que ainda acreditavam na lealdade do governo,
e na liberdade das eleições; porquanto montado oficialmente o país
como se acha, desde que um homem de posição importante do sr.
Presidente do conselho, e de vontade tão absoluta, interessa-se nas
eleições, desaparece toda a liberdade do voto, porque há coação.68

Para surpresa de todos, reunidos cento e dois eleitores no círculo


de Campanha, Antônio Filipe de Araújo ganhou com considerável
margem de votos (56), seguido de Honório Hermeto Carneiro Leão
(36), o deputado provincial José Feliciano Dias de Gouvêa (6), Roque
de Souza Dias (6) e Quintiliano José da Silva (2). Antônio Dias Ferraz
da Luz foi eleito suplente com 56 votos, derrotando José Feliciano Dias
de Gouvêa, que obteve 44 votos.69 Contrariando todas as previsões, um
padre desconhecido na política nacional conseguiu eleger-se e desbancar
a ‘candidatura oficial’. Sua vitória se torna ainda mais impressionante se
for considerado que, segundo Francisco de Paula Ferreira de Rezende,
68  Câmaras Legislativas. Correio da Tarde, p. 2, n. 178, 1856.
69  Correio Oficial de Minas, Ouro Preto, n. 6, p. 1-4, 26 Jan. 1857.

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Antônio Felipe de Araújo teria enfrentado desde a oposição do Gabinete


Caxias até os chefes locais dos dois partidos que se coligaram contra ele.70
Antônio Felipe de Araújo era natural de Campanha, filho do
farmacêutico português estabelecido em Campanha, Miguel Lopes da
Silva Araújo. Seu pai nunca se casou, mas o reconheceu em testamento
como herdeiro universal. Antônio Felipe de Araújo era cônego desde
a década de 1840, não foi deputado provincial e apenas foi eleito como
deputado geral na décima legislatura (1857-60), embora nem tenha
assumido o mandato, pois faleceu em 1857, antes da abertura das sessões.71
É possível que ele tenha exercido algum cargo político na localidade, mas
infelizmente não há indícios neste sentido, o que me leva a concordar
com as palavras de Cid Rebello Horta a respeito do cônego Araújo:
se fosse vivo, ao executar-se a sua lei eleitoral, Paraná teria visto o
seu filho derrotado na Campanha por um sacerdote que, no dizer de
Ferreira de Rezende, era uma acabada notabilidade de aldeia. Paula
Cândido, cientista famoso, preceptor e médico da família Imperial,
seria derrotado por um rábula em Ubá. No distrito de Sabará, o
Conselheiro Luiz Antônio Barbosa por pouco perderia o pleito para
outro rábula.72

Conclusões
Os debates que culminaram na aprovação da Lei Eleitoral de
1855 revelaram uma preocupação em garantir a representação das
minorias, com a entrada de lideranças locais e a diversidade partidária
no Parlamento. E a votação das Lei dos Círculos representou uma
derrota dos conservadores chamados saquaremas, por impedir que os
partidos formassem listas de candidatos apenas com grandes figuras,
pois cada círculo eleitoral elegia apenas um deputado. Minas continuou
com o mesmo número de deputados. Só que estes, agora, seriam eleitos
dentre os vinte distritos em que se dividiria a província. Minas Gerais
continuaria, portanto, como a maior bancada provincial, mas a nova lei
prometia uma renovação no perfil destes parlamentares.

70  REZENDE, F. de P. F. de. Minhas Recordações. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988, p.


306-312.
71  Almanak Administrativo, Civil e Industrial da Província de Minas Gerais...,
1864, p. 34; LEME, Luiz G. da S. (1852-1919). Genealogia Paulistana, v. V, p. 445-485,
1903-1905.
72  HORTA, Cid R. Famílias Governamentais de Minas Gerais. In.: II Seminário de
Estudos Mineiros. Belo Horizonte: UFMG, 1956, p. 12.

157
Entre a província e a nação

A aplicação da Lei dos Círculos em 1856 alterou profundamente


o perfil representativo da maior bancada provincial do Império. A única
eleição baseada no voto distrital uninominal favoreceu a formação de
uma bancada marcada pela diversidade partidária, com grande número
de estreantes, os chamados “tamanduás” ou “notabilidades de aldeia. Dos
20 assentos da bancada mineira, 13 passaram a ser ocupados por novos
deputados, ou seja, mais da metade das vagas (65%). E destes 13 novos
membros, 11 nunca haviam sido eleitos deputados gerais. Em outras
palavras, mais da metade dos deputados mineiros eleitos em 1856 eram
“estreantes” no cenário político nacional.
Em relação à questão partidária, apesar da maioria conservadora,
diversos liberais foram eleitos, alguns há muito tempo afastados
do legislativo. Em Minas Gerais, pelo menos 8 liberais foram eleitos
em 1856. Diversas regiões mineiras contribuíram com a eleição de
candidatos liberais: o sul de Minas elegeu dois liberais, dos seus cinco
círculos; o norte mineiro elegeu um liberal, dos seus quatro círculos;
a região central elegeu quatro liberais em seus seis distritos e a região
oeste elegeu um liberal em seus dois círculos eleitorais. Já as regiões
central e norte elegeram o maior número de conservadores (o centro
elegeu 2 e o norte elegeu 3) e as regiões sul e oeste elegeram 1 deputado
cada uma. Assim, Minas ocupou quase metade de sua bancada com
políticos liberais. Já em relação às incompatibilidades eleitorais, alguns
médicos e padres foram eleitos, embora o percentual de magistrados
tenha continuado relevante, sendo inclusive ampliado no caso da
bancada mineira.
Em síntese, o voto distrital permitiu a entrada de políticos mais
conhecidos da localidade, apelidados de “tamanduás” ou “notabilidades
de aldeia” e os resultados dos pleitos de 1856 assustaram a elite política
imperial a tal ponto que, já em 1860, a lei foi novamente reformada com
o alargamento dos círculos. A lei dos círculos uninominais só vigorou
em 1856. Seu alargamento representou uma tentativa de reduzir o
impacto dos interesses localistas na representação nacional.

158
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Referências:
Periódicos:
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159
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160
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Entre a província e a nação

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162
Pelo voto do cidadão: estratégias eleitorais na
Província do Espírito Santo1
Kátia Sausen da Motta2

A natureza das campanhas eleitorais no Império é pouco


conhecida na historiografia brasileira. Escassos são os estudos que
se dedicaram a analisar o fenômeno.3 Em grande parte, a razão para
tal desinteresse pode ser atribuído ao pressuposto de que a eleição
no século XIX configurava-se um teatro para legitimar o poderio de
autoridades locais que controlavam o corpo eleitoral. Nas palavras de
Richard Graham, “as eleições funcionavam de forma a alcançar fins
inteiramente congruentes com as necessidades e desejos dos senhores
da terra”.4 Nessa visão, portanto, haveria controle rígido sobre o voto de
grande parte da população e, por consequência, não havia motivos ou
interesse em convencer os votantes.
Neste capítulo se objetivou investigar como se configurava o
período pré-eleitoral e as relações estabelecidas entre os votantes e os
pleiteantes aos cargos políticos na Província do Espírito Santo. A leitura
das correspondências oficiais associada à imprensa periódica permitiu

1  Este capítulo é uma versão da seção 3.3, do capítulo III, de minha Tese de Doutorado
intitulada Eleições no Brasil do Oitocentos: entre a inclusão e a exclusão da patuleia na
cidadela política (1822-1881), PPGHIS-UFES, Vitória, 2018.
2 Doutora em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (2018) e
pesquisadora vinculada ao Laboratório de História, Poder e Linguagens na mesma
instituição. Atua no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
do Espírito Santo como bolsista do Programa de Fixação de Doutores da Capes/Fapes,
desenvolvendo pesquisa de pós-doutorado.
3 Entre os estudos que abordaram o tema até a década de 1880, encontram-se os
trabalhos de Suzana Cavani Rosas, sobre a realização de Meetings em Pernambuco, e de
Regina Horta, acerca da campanha de Teófilo Otoni na década de 1860. Após os anos de
1880, pode-se apontar a pesquisa de Alexandra do Nascimento Aguiar sobre a campanha da
primeira eleição posterior a Lei Saraiva, e, por fim, mas não menos importante, o estudo de
Angela Alonso sobre a campanha dos políticos abolicionistas. Cf. ROSAS, Suzana Cavani.
Cidadania, trabalho, voto e antilusitanismo no Recife na década de 1860: os meetings no
Bairro Popular de São José. In.: RIBEIRO, Gladys Sabina; FERREIRA, Tânia M. T. B. (org.).
Linguagens e práticas da cidadania no século XIX. São Paulo: Alameda, 2010, p. 153-
168; DUARTE, Regina Horta. Tempo, política e transformação: Teófilo Otoni e seu lenço
branco. Estudos Ibero-Americanos, v. 28, n. 1, p. 236-279, 2002; AGUIAR, Alexandra do
Nascimento. As eleições do mérito: campanha eleitoral de 1881. Dissertação (Mestrado
em História). Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009; ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento
abolicionista brasileiro (1858-188). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
4  GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1997, p. 139.

163
Entre a província e a nação

acompanhar como ocorriam as campanhas eleitorais nas paróquias


capixabas no período imperial.5

Peregrinação eleitoral
A legislação eleitoral da época não demarcava tempo específico
para a campanha eleitoral e nem previa o registro de candidaturas
oficiais. A palavra “candidato” apareceu pela primeira vez somente na
Lei Saraiva, em 1881.6 Na ausência de regimento sobre o assunto, cada
cidadão considerado elegível estava, portanto, suscetível a ser votado,
podendo ou não ter o interesse no cargo.
Em edital de convocação afixado na igreja matriz, informava-
se além da data e do horário de início das atividades eleitorais, a lista
dos cidadãos ativos habilitados a participarem do pleito. A listagem
configurava-se o principal instrumento de divulgação tanto dos
moradores qualificados simples votantes como dos elegíveis. Até 1828,
a legislação não havia definido prazo para sua divulgação. Por sua vez,
a Lei de 1º de outubro de 1828 (art. 5º) deliberou que a lista deveria ser
exposta no domingo que precedesse pelo menos 15 dias ao pleito. O
decreto nº 157, de 4 de maio de 1842 (art. 7º), determinou ainda que
a divulgação ocorresse antes da missa dominical. A movimentação
religiosa da freguesia, marcada por missas, festividades santas e ritos
sacramentais tornava a igreja o principal espaço de circulação da
paróquia e para onde confluíam todos os moradores, o que contribuía
para o disseminado conhecimento dos editais.7
Testemunhos dessa publicidade são as diversas reclamações sobre
os atrasos na divulgação dos respectivos registros, que abria espaço para
grandes lutas políticas. Em correspondência oficial ao Vice-Presidente da

5  Ao estudar as eleições municipais da França na primeira metade do século XIX,


Christine Guionnet reconhece que as campanhas eleitorais do século XIX diferenciavam-
se profundamente daquelas visíveis nas democracias contemporâneas. Dessa forma,
a autora emprega o termo “campanha eleitoral” como forma de facilitar a linguagem
e a compreensão do texto. GUIONNET, Christine. L’apprentissage de la politique
moderne: les élections municipales sous la monarchie de Juillet. Paris: L’Hamattan, 1997,
p. 48.
6  Decreto nº 3.029, de 9 de janeiro de 1881, art. 15, § 16. “Cada candidato à eleição de
que se tratar, até ao número de três, poderá apresentar um eleitor para o fim de fiscalizar os
trabalhos em cada uma das assembleias eleitorais do distrito. Na ausência do candidato, a
apresentação poderá ser feita por qualquer eleitor”.
7  BASTOS, Ana Marta Rodrigues. Católicos e Cidadãos: a igreja e a legislação eleitoral
no Império. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1997, p. 26.

164
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

província, datada de 1836, o promotor público da Freguesia de Linhares


denunciou o suplente de juiz de paz daquela localidade que “só afixou
a lista geral oito ou dez dias antes das eleições, compreendendo nesta
lista tudo quanto é cidadão sem distinção alguma”. Pela ausência de
zelo do magistrado em discriminar os cidadãos habilitados à condição
de elegíveis, o promotor explicou que “recaiu a maioria de votos em
3 ou 10 cidadãos para Vereadores e Juiz de Paz, uns com ilegítimo
impedimento, outros sem rendimento próprio para juízes, além da falta
dos conhecimentos”.8
Padre Ignacio Rodrigues Bermudes, proeminente político da
província,9 ofereceu denúncia devido ao não atendimento do prazo
de afixação do edital das eleições. Em 1844, o sacerdote encaminhou
um conjunto de três petições ao governo provincial entre 6 e 11 de
setembro observando que, apesar da proximidade do pleito de escolha
dos eleitores, “não existe na porta da Matriz lista por qual os cidadãos
possam conhecer se seus nomes estão inscritos”.10
No papel de denunciante, Bermudes argumentava que, caso algum
morador não estivesse incluído na listagem, o atraso impossibilitaria
reclamações legais, tendo em vista que o prazo deveria se encerrar a
oito dias do escrutínio, naquele caso, agendado para 22 de setembro.
Nos documentos seguintes, o autor esclareceu que se anexou cópia
do documento na matriz logo após a missa. No entanto, por conter
informações falsas, a lista fora “totalmente rasgada” naquela mesma
noite. Por ausência de resposta, o Padre Bermudes insistiu em sua
reclamação, encaminhando, então, um abaixo-assinado subscrito por
mais 13 paroquianos.11

8  APEES, Série Accioly, Livro 41. Ofício do Promotor José Maria Nogueira da Gama
ao Vice-Presidente de Província, 155 de novembro de 1836.
9  Ignácio Rodrigues Bermudes era líder do grupo político denominado “bermudistas”.
Após a década de 1860, desse grupo se originará o Partido Liberal de Vitória. VIANNA,
Karulliny Silverol Siqueira. Imprensa e Partidos Políticos na Província do Espírito Santo,
1860-1880. Vitória: IHGES, 2013, p. 65 - 73.
10  APEES, Série Accioly, Livro 41, Ofício ao Presidente de Província enviado por
Ignacio Rodrigues Bermudes, 1844.
11 Além de Ignácio Rodrigues Bermudes, também assinaram o abaixo-assinado
Manoel Nunes Pereira, Domingos Rodrigues Santos, Manoel Caetano Simões, Manoel
Goulart de Souza, Capitão Serafim José dos Anjos Vieira, João Teixeira Maia, Francisco de
Amorim Machado, Manoel Pinto Ribeiro, João da Silva Moraes, Francisco Caetano Simões,
Manoel da Motta Franco, João Moreira da Motta e Venceslau da Costa Vidigal. APEES,
Série Accioly, Livro 41, Abaixo-assinado dos cidadãos votantes e elegíveis da Freguesia
de Victória ao Presidente da Província, 1844.

165
Entre a província e a nação

A preocupação do clérigo não pode ser desvinculada de seu


interesse político na disputa. É o que confirmam os três ofícios contendo a
resposta dos membros da junta paroquial. Notificada pela presidência da
província, o juiz de paz, José Ribeiro Coelho, e o subdelegado, Francisco de
Borja Braga, demonstram ironicamente não compreender a insatisfação
de Bermudes, já que não fora “feito [sic] injustiça ao suplicante, cujo
nome está inscrito com a nota de elegível”. Com efeito, relatam que
é de admirar que o suplicante ao mesmo passo que queixa a V. Exa.
da não existência da lista, por onde [sic] os Cidadãos saibam se
foram inscritos apresente à Junta reclamações, atribuídas a diversos,
e por ele firmadas como Procurador!!!

Pelo relato, as autoridades observam que Bermudes não apenas


sabia da listagem, como intercedeu em prol da inclusão de alguns
moradores, atitude que reprovaram, por não reconhecer “no Suplicante
o direito de Procurador universal da atual eleição”. Segundo a Junta
Paroquial, alguns componentes do abaixo-assinado, como Manoel
Caetano Simões e Venceslau da Costa Vidigal, atuaram no mesmo
sentido. Em um dos ofícios, a Junta informou que o suplicante era um
“aspirante à deputação” nacional, como se lê abaixo:
o padre aspirante, que tendo já em seu poder, segundo consta, um
enxame de cédulas apanhadas a torto e a direita pelos seus agentes,
não vendo, talvez qualificados os indivíduos de que dispunha
(embora fossem desconhecidos da Junta) recorreu ao meio de
fascinar o Reverendo Coadjutor, que logo depois disto declara-se
desagradado da Qualificação.12

Ao que tudo indica o Padre Joaquim de Santa Maria Madalena


Duarte, membro da junta paroquial, forneceu a lista original dos cidadãos
ativos a Ignácio Rodrigues Bermudes, que, ao avaliá-la, se mostrou
descontente pela ausência de alguns votantes que já haviam se manifestado
simpáticos a sua eleição. Segundo o ofício, a relação de amizade entre
os sacerdotes pesou na atuação do Padre Joaquim em exigir a confecção
de nova listagem O registro dos cidadãos ativos pareceu constituir uma
espécie de termômetro eleitoral, sob o qual o candidato podia avaliar as
possibilidades de sucesso ou fracasso nas urnas. Apesar dos esforços do
padre Bermudes, a eleição daquele ano não lhe foi favorável.13
12 APPES, Série Accioly, Livro 41, Ofício ao Presidente de Província da Junta
Qualificadora da Cidade de Victoria, 1844.
13  Para a vaga de deputado geral, foi eleito o Coronel José Francisco de Andrada
Almeida Monjardim. BARÃO DE JAVARY. Organizações e Programas ministeriais

166
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Como se vê nesse caso, a busca por votos iniciou-se antes


mesmo da publicação do edital. Não é difícil imaginar que os homens
públicos daquela época buscassem se antecipar no convencimento
dos votantes. Uma das práticas eleitorais mais frequentes consistia
no encontro intencional entre os candidatos e seus aliados com a
população. Nos ofícios enviados à autoridade provincial, nota-se com
frequência tal reclamação, geralmente encaminhada por adversários
políticos. Esse, por exemplo, foi o tema do abaixo-assinado datado
de 1843 e subscrito por oito “fregueses da Paróquia da vila de Nossa
Senhora da Conceição da Serra”. Por ocasião da nomeação de um
deputado geral pela província, os autores do documento reclamaram
que, muito antes de haver marcado as eleições primárias para
eleitores, já se encontravam candidatos de porta em porta atrás de
votos. O confronto entre as datas da petição, 1º de abril, e do pleito, 30
de abril, revela que a campanha eleitoral se iniciou naquela localidade
cerca de um mês antes da votação. Abaixo, podemos acompanhar a
reclamação dos moradores:
ainda Excelentíssimo Senhor não se havia marcado as eleições para
Deputado por esta pobre província, ainda os povos não haviam
meditado no modo, como Livre, e voluntariamente sufragariam
a este, ou aquele indivíduo com desencargo de sua consciência,
como a Lei recomenda; quando um adjunto de cinco indivíduos,
constituídos hoje nos maiores empregos do país, quais o Delegado,
Subdelegado, Juiz Municipal e Órfãos, e dois Vereadores da Câmara
Municipal caminhavam de porta em porta, dentro e fora da Vila
e fizeram assinar um número considerável de listas, nas quais se
conheceu os nomes dos mesmos empregados acima declarados,
servindo-se para suplicação de suas premeditadas intenções não só
do poder e do respeito, como da ignorância e timidez do povo.14

Da leitura do documento, pode-se observar que a crítica era


direcionada à chapa de eleitores composta por empregados públicos e
políticos locais. Os reclamantes não viam com bons olhos a antecipação
daqueles indivíduos à definição oficial do processo eleitoral. Alegavam
que os moradores ainda não haviam “meditado” sobre o assunto e
“voluntariamente” tomado a decisão, elementos que consideravam
fundamento até legal. Nessa perspectiva, a atitude daqueles homens
públicos em pleitear o voto, entregando as listas já preenchidas e
solicitando a assinatura dos moradores era avaliada negativamente.
desde 1822 a 1889. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, p. 305.
14  APPES, Série Accioly, Livro 41. Abaixo-assinado dos fregueses da Paróquia da
vila de Nossa Senhora da Conceição da Serra ao Presidente de Província, 1843.

167
Entre a província e a nação

Cumpre observar que, segundo os autores da demanda, a “suplicação”


daqueles indivíduos fundamentava-se no prestígio de seus cargos que
envolvia além do poder, o respeito da população. Já o “povo”, por aceitar
as investidas, era adjetivado como ignorante e tímido. A depreciação da
prática política fica evidente ao verificarmos o seguinte excerto:
quando é público que muitos cidadãos reclamam por suas assinaturas,
porquanto pretendiam votar com liberdade e consciência naqueles
cidadãos que sempre foram de sua afeição e mereceram o conceito e
opinião pública, e nunca em outros indivíduos que não serviram em
tempo algum e não eram de sua confiança e adesão.15

Em oposição à prática de persuadir o “povo”, os reclamantes


avaliavam como legítimo o voto conferido a autoridades tradicionais do
lugarejo, essas merecedoras do “conceito e opinião pública”. A análise
da argumentação pode sugerir que se tratava de uma autodefesa dos
assinantes da petição que possivelmente se sentiam ameaçados diante
daquele costume que, por causar estranheza, era inclusive motivo de
protesto. Infelizmente, não se encontrou informações sobre eventual
ocupação política desses homens. Contudo, sabe-se que, em 1844,
todos foram qualificados cidadão elegíveis, isto é, poderiam ocupar
o posto de eleitor em disputa na eleição do ano anterior.16 O próprio
abaixo-assinado revela dados sobre suas ocupações, indicando que se
tratava de homens de condição social e riqueza, tendo em vista todos se
designarem fazendeiros, conforme nota-se no quadro a seguir:
Quadro 1. Ocupação dos peticionários da freguesia da Serra (1843)
Nome Ocupação
Luiz Vicente Loureiro Lavrador e Fazendeiro
Gonçalo Pereira Sampayo Fazendeiro
Manoel (ilegível) de Miranda Fazendeiro
Paulo Coutinho Mascarenhas Fazendeiro
Ignacio de Loiola Pereira Fazendeiro
Jose Ribeiro Pinto de Siqueira Fazendeiro
Manoel Rodrigues de Freitas Fazendeiro
Francisco Rodrigues Belmudes Fazendeiro
Fonte: APPES, Série Accioly, Livro 41. Abaixo-assinado dos fregueses da Paroquia da
vila de Nossa Senhora da Conceição da Serra ao Presidente de Província, 1843.
15  APPES, Série Accioly, Livro 41. Abaixo-assinado dos fregueses da Paróquia da
vila de Nossa Senhora da Conceição da Serra ao Presidente de Província, 1843.
16  APPES, Série Accioly, Livro 41, Lista de votantes da Freguesia da Serra, 1844.

168
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

De todo modo, o documento registra a prática política das


autoridades locais em percorrer tanto a área mais central do lugarejo
quanto o ambiente ruralizado em visitas informais na tentativa de
angariar a simpatia dos votantes. Nota-se ainda que o prestígio de
cargos e empregos públicos parecia constituir elemento de fiança do
candidato aos olhos dos cidadãos votantes. Infelizmente, não se conhece
o resultado da votação. No entanto, sabe-se que nenhum dos eleitores
nomeados pelos cidadãos da Serra naquele ano compareceu à eleição
secundária, responsável pela designação do deputado geral.17 Na Figura
3, apresenta-se a freguesia da Serra e parte dos caminhos percorridos
pelos candidatos daquela primeira metade do Oitocentos.

Figura 1: Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Serra (1875). Fonte: BARROS,


Paulo de. Memória Fotográfica da Serra: imagens de um município brasileiro. Vitória:
Ed. do Autor, 2002, p. 19.

Na década seguinte, fato semelhante também foi noticiado no


único jornal da Capital à época, o Correio da Victoria. Em 1850, por
ocasião da eleição senatorial, noticiava-se a ocorrência tranquila das
eleições primárias em grande parte das freguesias da província. Ao
denunciar a única exceção da região, as irregularidades cometidas pelo
juiz de paz na freguesia de Queimado, o autor do comunicado relatava
que, na freguesia de Vitória, as eleições ocorreram com “liberdade” e
membros de um grupo político solicitaram “votos de porta em porta
até alta noite e até fazendo tutus a certos votantes”.18 Da notícia pode-
se fazer algumas observações. A primeira refere-se ao apontamento da
intensa mobilização da freguesia às vésperas da eleição, cujas atividades
17 APM. Livro 417, ATA de eleição de Deputado à Assembleia Geral Legislativa para
a Quinta Legislatura, 1843, fl. 44v – 48.
18  Correio da Victoria, Vitória, n. 50, 22 jun. 1850.

169
Entre a província e a nação

narradas indicam certo nível de incerteza dos resultados da votação.


O horário prolongado das visitas também chama atenção, revelando
possível proximidade entre os cidadãos, para os quais eram, até mesmo,
oferecidos quitutes. Interessante é perceber que tais expedientes não
surtiram o efeito desejado. Segundo a notícia, apesar do empenho, o
grupo político foi derrotado naquela eleição.

Publicação de “chapinhas” na Imprensa


Outro modo de informar aos votantes sobre os indivíduos
interessados na eleição era a chapinha. Em relação às eleições de
Deputados Gerais, Jeffrey Needell observa que já em 1833 a prática era
comum.19 Segundo o autor, os líderes políticos na Corte formavam as
chapas de seus candidatos para ocuparem o lugar na Câmara. O registro
era encaminhando por carta ou via imprensa aos seus aliados nas
diversas províncias do país com o intuito de que os eleitores a seguissem
no pleito secundário.
Quanto a tal prática nas assembleias primárias – eleitores,
juízes de paz e vereadores – não há estudos exclusivos sobre o tema.
As pesquisas, em geral, citam a existência de combinações de grupos
políticos favoráveis a tal ou qual candidato, mas não especificam como
eram veiculadas ou analisam seu conteúdo. Na Província do Espírito
Santo, tão logo a imprensa se firmou,20 as indicações de aspirantes a
eleitores e autoridades municipais começaram a ser publicadas no
periódico. Já no primeiro ano de circulação do Correio da Victoria,
em 1849, as “chapas” tornaram-se item recorrente em suas páginas às
vésperas do período eleitoral. A presença de tais registros logo após a
inauguração da imprensa permite pensar que tal prática já era comum
na província na primeira metade do Dezenove, passando a ganhar a
publicidade nos periódicos. Fabiola Martins Bastos esclarece que as
tipografias existentes na capital no início da década de 1840 publicavam
pasquins e circulares que inflamavam as discussões políticas na capital.21
Apesar da ausência de registros específicos sobre episódios eleitorais,
19  NEEDELL, Jeffrey. D. The Conservatices, the State, and Slavery in the Brazilian
Monarchy, 1831-1871. Stanford: Stanford University Press, 2006, p. 176.
20 BASTOS, Fabíola Martins. A Política na antessala do Parlamento: Imprensa
e sociabilidades na formação da esfera pública de opinião em Vitória / ES, nos anos de
1840 a 1889. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2016, p. 33.
21  BASTOS, Fabíola Martins. A Política na antessala do Parlamento... Op. cit., p. 107.

170
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

a autora acredita que as tipografias trabalhavam intensamente nesse


período. Pode-se inclusive ponderar que as listinhas e folhas avulsas
constituíam repertório da propaganda eleitoral da época.
Até a década de 1860, as listas eram anônimas ou assinadas por
pseudônimos. A decisão pelo anonimato possivelmente tinha o intuito
de evitar desentendimentos com os residentes da localidade, fato que
permitia, por sua vez, a indicação e a apreciação livre de candidatos
às eleições de primeiro grau. Infelizmente, a ausência de identificação
das publicações não autoriza assegurar quem eram os autores e se eram
confeccionadas por grupos políticos ou enviadas espontaneamente pelo
corpo eleitoral das paróquias. De todo modo, acredita-se que ambas as
hipóteses são válidas.
A partir da década de 1860, quando os grupos atrelados à figura de
seus líderes começaram a ser substituídos pelas identidades partidárias
na província – Liberal e Conservador,22 verifica-se o início de publicação
de chapas identificadas com bandeiras políticas. Desse período em
diante, portanto, pode-se afirmar que se constituíam chapas partidárias
com cores políticas bem definidas.23 Para o estudo detido do conteúdo
desses registros do passado, a análise restringiu-se ao primeiro jornal da
província, o Correio da Victória.
Embora o jornal fosse impresso na capital da província,
notou-se que a propaganda extrapolava os limites de suas freguesias,
contemplando tanto localidades mais próximas de Vitória como Viana,
Serra e Nova Almeida, como paróquias localizadas nos extremos sul e
norte da província, Itapemirim e São Mateus, respectivamente.24 Diante
da ausência de outro jornal na província, observa-se o papel primordial
desse periódico na propaganda eleitoral das freguesias ao final da década
de 1840 e durante o decênio seguinte.
As chapinhas eram impressas na seção de “publicações a pedido”
ou “correspondências” dos jornais. Algumas se restringiam a informar
a lista de candidatos e o respectivo cargo pleiteado. Outras, por sua vez,
eram precedidas de uma minuta na qual o autor explicitava os motivos
de sua recomendação. Abaixo, é possível visualizar duas chapinhas

22  VIANNA, Karulliny Silverol Siqueira. Imprensa e Partidos Políticos na Província


do Espírito Santo... Op. cit., p. 92-161
23  Jornal da Victória, Vitória, n. 38, 17 ago. 1864.
24  Correio da Victoria, Vitória, n. 79, 11 out. 1856; Idem, n. 53, 18 jul. 1849; Idem, n.
57, 1 ago. 1849; Idem, n. 65, 23 ago. 1856.

171
Entre a província e a nação

impressas no Correio da Victoria, a primeira referente ao pleito de


eleitores e a segunda, às eleições municipais.

Sr. Editor,
No meio do nobre ardimento, que a porfia se manifesta por toda
parte à prol da reeleição do Exm. Sr. Dr. Pedreira, não deve a freguesia
de Vianna, que tantos e tão grandes bens recebeu da administração
desse Distinto Brasileiro ficar silenciosa, ou indiferente. – E pois que
o votante da cidade fez publicar a sua lista de eleitores, que realizem
o pensamento da província elegendo para deputado um cidadão,
que nos represente com dignidade e desinteresse; e não algum
ambicioso, que vá à troco de dinheiro, ou coisa que o valha sacrificar
o país; tenho também derrogar à V. S. a publicação das pessoas de
minha escolha para eleitores desta freguesia, as quais não deixarão
de agradar ao – Amigo do voto livre.
Os Srs.
Antonio Coutinho da Rocha Mello
Francisco Cardozo de Oliveira
Francisco Monteiro do Nascimento
Joaquim Coelho de Mello
José Pedro Rodrigues
Marcelino Pinto da Rocha
O votante de Vianna25

PUBLICAÇÕES A PEDIDO
Cariacica
Para Juízes de Paz
Os Srs.
José Joaquim Pereira Lima
Joaquim Pereira Pinto de Moraes
Fabiano Martins Ferreira Meirelles
João da Costa Bermude
_____

25  Lista para a eleição de eleitores (1849). Correio da Victoria, Vitória, n. 54, 21 de
julho de 1849.

172
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Villa da Serra
Para Juízes de Paz
Os Srs.
José Barbosa Meirelles
José Domingues de Ramos
Manoel Correia de Lemos
Francisco Rodrigues Bermude
Um votante
_____
Nova Almeida
Para Juízes de Paz
Os Srs.
Quintino da Roza Loureiro Pinto
José Joaquim de Almeida
(ilegível) Rodrigues de Jesus
Major Antonio Pinto Loureiro
_____
Villa da Serra
Vereadores da Câmara Municipal
Recomendo aos meus amigos os cidadãos abaixo mencionados para
vereadores da Câmara Municipal. Cidadãos independentes por
suas posições e fortunas, e cheios de bons desejos e de patriotismo,
podem prestar relevantes serviços a esta villa que tanto precisa
de uma Câmara ativa, zelosa e patriótica: eis pois os nomes dos
cidadãos em quem pretendo votar, e para quem peço os sufrágios
dos meus amigos.
Os Srs.
José Domingues dos Ramos
Joaquim Fernandes Franco
Manoel Cardoso Castello
José Correia de Azevedo Rodrigues

173
Entre a província e a nação

Francisco Fernandes de Miranda


Manoel da Rocha Pimentel
José Pereira de Barcellos.26

A análise das apresentações desses registros merece atenção.


Os motivos elencados pelos autores permitem perceber as estratégias
empregadas no convencimento dos votantes, bem como as qualidades
dos proponentes aos cargos.
Na descrição II, pode-se acompanhar a publicação do “votante
de Viana”. Motivado pela proximidade da escolha de deputado geral, o
autor resolveu compartilhar a lista de seis cidadãos elegíveis em quem
depositaria seu voto. Publicada em 21 de julho de 1849, quinze dias
antes do pleito,27 o autor justificava sua escolha pelo comprometimento
daqueles futuros eleitores com a reeleição de Dr. Pedreira ao cargo
representativo nacional. Dr. Pedreira era, na verdade, Luís Pedreira
do Couto Ferraz, bacharel em Direito e natural do Rio de Janeiro, ex-
presidente da província entre 1846 e 1848,28 quando assumiu assento
na Câmara dos Deputados, eleito pelos capixabas. Basílio Carvalho
Daemon registrou a ativa atuação de Couto Ferraz na gerência da
província, principalmente no incentivo à instrução pública, melhorias
em pontes e vias públicas e no desenvolvimento de estudos sobre
estradas.29 Nota-se que o argumento principal exposto pelo “votante de
Viana” não se concentrava em seus vizinhos, moradores de Viana, mas
recaía justamente sobre a figura de Pedreira com clara referência à sua
atuação administrativa naquela localidade. Assim, afirmava que “não
deve a freguesia de Viana, que tantos e tão grandes bens recebeu da
administração esse Distinto Brasileiro ficar silenciosa ou indiferente”.30
Ao lado do papel político do candidato, verifica-se também a
menção de suas qualidades pessoais. Cumpre observar, contudo, que,
neste caso, a discussão também vinha imbuída de certo sentido político,
já que era apresentada como primordial para o bom desempenho da
atividade legislativa. Dessa forma, a “dignidade” e o “desinteresse” de
26  Lista para as eleições de juízes de paz e vereadores (1856). Correio da Victoria,
Vitória, n. 65, 23 ago. 1856.
27  A eleição de eleitores ocorreu em cinco de agosto de 1849.
28  DAEMON, Basílio Carvalho. Província do Espírito Santo: sua descoberta, história
cronológica, sinopse e estatística. Vitória: Tipografia Espírito-santense, 1879, p. 370-373.
29  DAEMON,Basílio Carvalho. Província do Espírito Santo... Op. cit., p. 370.
30  Correio da Victoria, Vitória, n. 54, 21 jul. 1849.

174
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Pedreira foram citados como virtudes adequadas ao cargo, e, por esses


predicados, o candidato não sacrificaria o país em troca de benefícios
próprios.
Com efeito, as considerações pessoais ganhavam notoriedade
nas listas divulgadas na imprensa. O uso de adjetivos ou a menção
da condição social tornava-se comum na apresentação de homens
interessados nas eleições. Por ocasião da escolha de vereadores da
Serra, em 1856, a chapa escrita por um autor anônimo descrevia como
“independentes por suas posições e fortunas” os cidadãos para os
quais solicitava o voto. Além da independência também apontava o
“patriotismo” como característica para o préstimo de bons serviços à
vila. Abaixo, podemos acompanhar a sua recomendação:
recomendo aos meus amigos os cidadãos abaixo mencionados para
vereadores da Câmara Municipal. Cidadãos independentes por suas
posições e fortunas, e cheios de desejos e de patriotismo, podem prestar
relevantes serviços a esta vila que tanto precisa de uma câmara ativa,
zelosa e patriótica: eis pois os nomes dos cidadãos em que pretendo
votar, e para quem peço os sufrágios dos meus amigos.

Os Srs.

José Domingues do Ramos

Joaquim Fernandes Franco

Manoel Cardoso Castelo

Jose Correia de Azevedo Rodrigues

Francisco Fernandes de Miranda

Manoel da Rocha Pimentel

Jose Pereira de Barcellos.31

Se as publicações eram utilizadas como forma de promover


os cidadãos aos olhos dos votantes, por outro lado também eram
empregadas em prejuízo de determinadas chapas. Esse foi o caso da
publicação de “um votante de Cariacica”. Escrito em forma de diálogo
31  Correio da Victoria, Vitória, n. 65, 23 ago. 1856. Grifo nosso.

175
Entre a província e a nação

estabelecido com o editor do periódico, o autor descreve os dias


antecedentes à eleição de eleitores que designaria um senador, em 1850.
Abaixo, podemos acompanhar o seu relato.
Sr. Editor,

Tendo certo sujeito pedido meu voto para a eleição, a que se


deve proceder no dia 16 do corrente, dizendo-me que era para o
triunfo da chapa dos que advogam as candidaturas de três filhos
da província, dos quais um tem de ser escolhido para nosso
representante na Câmara dos Senadores, e fazendo bom conceito
desse sujeito, porque me parecia boa pessoa, e não o julgando capaz
de iludir-me, e acrescendo o meu fervoroso bairrismo, prometi-lhe
não só o meu voto, como também os de meus dois filhos, e cunhado.
Ontem, porém, indo a casa de um meu compadre e amigo, homem
sério, e respeitável, e falando acerca daquela eleição, perguntou-me
porque a chapa votava, eu fiz-lhe ver o meu compromisso; mostrou-
se incomodado com esta notícia, e declarou-me com sinceridade
que lhe é própria, que eu estava iludido, que tinham caçoado
comigo, por quanto os três filhos da província, em favor dos quais
o tal sujeitinho havia engajado meu voto, e os outros, que também
prometi são os seguintes:

1º Joaquim Francisco Vianna, filho do Rio de Janeiro

2º Padre Joaquim de Santa Maria Magdalena Duarte, Capichaba.

3º Padre Ignácio Rodrigues Bermudes, Capichaba

Que tal, Sr. Editor! Dei graças a Deus por ter encontrado com meu
compadre, a quem estou muito grato por livrar-me do logro em
que eu tinha caído, fiquei muito indignado com o procedimento do
rubicundo sujeito, e determinei logo votar com os amigos do governo
da província. Meu compadre tirou-me as cataratas dos olhos, não
quero ser mais bairrista, eu hoje volto para o meu sítio, e estou
disposto a contar a todos os meus amigos, e parentes o que se passou
comigo, e os que estiverem iludidos como estive ficarão desenganados.
Ei de gritar para que me ouçam. – Elejamos três capacidades,
galardoemos o saber e as virtudes: essa chapa composta de três
filhos da província com a qual querem iludir o povo é uma grande
mentira: ela não existe.

Um votante de Cariacica.32

32  Correio da Victoria, Vitória, 12 jun. 1850. Grifo nosso.

176
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Da mensagem, pode-se constatar que a avaliação do respectivo


votante em afiançar seu voto ao aspirante a eleitor se fundamentou em
dois princípios. O primeiro refere-se à chapa para a qual o solicitante
assumia o compromisso de votar, no caso, a candidatura ao Senado de
“três filhos da província”.33 Nesse quesito, o autor apontava ainda seu
“fervoroso bairrismo” como subsídio da sua decisão, em referência à
naturalidade dos candidatos e a uma possível identidade capixaba.34 Já o
segundo elemento versa sobre as características pessoais do indivíduo,
do qual observava “fazer “bom conceito”, o que também legitimava sua
escolha.
Outro ponto que vale destacar é a tematização das conversas sobre
o voto. Além da prosa com o aspirante a eleitor, diálogo sobre o assunto
também foi travado entre o votante e seu compadre, que, adjetivado como
“homem sério e respeitável”, ganhou relevância na narrativa pelo seu papel
de esclarecer a verdade sobre os respectivos candidatos. O autor então
se mostrou indignado com a situação pela qual foi enganado e por essa
razão opta por votar “com os amigos do governo da província”, chegando
até mesmo a abandonar sua convicção de “bairrista”. A partir do relato de
sua experiência, o votante de Cariacica mostrou-se disposto a convencer
amigos e parentes a seguirem sua deliberação e, principalmente, a não
votarem na chapa dos “três filhos da província”.
A partir da consideração dos candidatos mencionados à vaga
senatorial, observa-se que os membros capixabas, os padres Joaquim
de Santa Maria Madalena Duarte e Inácio Rodrigues Bermudes, já aqui
abordados, tinham notoriedade política na província.35 Por sua vez,
Joaquim Francisco Vianna era à época deputado geral pela Província do

33  A eleição do Senado era feita por lista tríplice. O Imperador, ao final, fazia a escolha
definitiva.
34 Na análise das discussões políticas empreendidas na imprensa da cidade de
Vitória, Fabíola Martins Bastos relata a ocorrência da estratégia política fundamentada
no “bairrismo”, isto é, na relação de pertencimento de candidatos à Província do Espírito
Santo, durante a década de 1870. BASTOS, Fabíola Martins. A Política na antessala do
Parlamento... Op. cit., p. 235.
35  Padre Joaquim desempenhou a função de deputado provincial doze vezes entre
1842 e 1872, de forma quase ininterrupta. Apenas não se elegeu para o cargo nas 7ª (1848-
1849) e 8ª (1850-1851) legislaturas. Nas eleições municipais, foi eleito vereador de Vitória,
em 1864. Já o Padre Bermudes, atuou como deputado geral, em 1842, e também ocupou
a cadeira legislativa provincial em quatro oportunidades, entre 1844 e 1857. Nesse último
ano, veio a falecer. Cf. DAEMON,Basílio Carvalho. Província do Espírito Santo... Op. cit.;
Arquivo Municipal de Vitória. Livro 420, Livro de Atas das eleições de Juízes de Paz e
Vereadores da Câmara Municipal da freguesia de Vitória, 1848-1865.

177
Entre a província e a nação

Rio de Janeiro.36 Se a publicação fora realmente escrita por um simples


votante ou por membros do grupo político adversário, não se sabe.
Mas, é nítida a intenção de deslegitimar uma das chapas envolvidas na
disputa e persuadir os cidadãos votantes.

Considerações finais
Ao investigar as eleições presidenciais na Venezuela da década
de 1830, cujo sistema de dois graus se assemelhava ao do Brasil,
Eduardo Posada Carbo revela a circulação de inúmeras folhas volantes
assinadas por candidatos a eleitores.37 Nelas, os pleiteantes expressavam
o compromisso em votar em determinado candidato à presidência,
caso fossem nomeados. Nas chapinhas que circulavam pelas paróquias
da província do Espírito Santo, percebeu-se afirmação de compromisso
equivalente.38 A constatação torna válida o questionamento da
interpretação de Miriam Dolhnikoff sobre a natureza das eleições
primárias no Brasil,39 fundamentada nos estudos de Pierre Rosanvallon
para a França do século XIX.
Para o caso francês, Rosanvallon afirma que o processo de votação
em graus era marcado por dois momentos distintos: autorização e
deliberação.40 Nessa perspectiva, as assembleias de primeiro grau, ao
designarem os eleitores, desempenhavam apenas a função de legitimar
o procedimento representativo. A verdadeira eleição, segundo o autor,
residia nas assembleias ou colégios eleitorais de segundo grau, tendo em
vista seu papel de deliberação final. Para o Brasil oitocentista, Dolhnikoff
adota tal interpretação para reafirmar que somente a segunda etapa da
votação possuiu o caráter de decisão política.41
36  Joaquim Francisco Vianna foi deputado geral pela província do Rio de Janeiro nas
Legislaturas de 1834-1837; 1843-1844; e 1850-1852. BARÃO DE JAVARY. Organizações
e Programas Ministeriais desde 1822 a 1889. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889.
37 POSADA-CARBO, Eduardo. Alternancia y República: Elecciones en La Nueva
Granada y Venezuela, 1835-1837. In.: SABATO, Hilda (org.). Ciudadania Politica y
Formacion de Las Naciones: perspectivas históricas de America Latina. México: Fondo de
Cultura Económica, 1997, p. 166.
38  Ao contrário do que afirma Richard Graham, o conhecimento dos candidatos aos
deputados não ocorria, na Província do Espírito Santo, somente no dia da eleição.
39 DOLHNIKOFF, Miriam. Representação na monarquia brasileira. Almanack
Braziliense, n. 9, mai. 2009.
40 ROSANVALLON, Pierre. Le sacre du citoyen: histoire du suffrage universel en
France. Paris: Gallimard, 1992, p. 245.
41  DOLHNIKOFF, Miriam. Representação na monarquia brasileira... Op. cit., p. 44.
Vale mencionar que havia distinção importante entre as assembleias secundárias no Brasil e

178
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Como visto, as campanhas pelas paróquias capixabas e,


principalmente, as publicações direcionadas aos votantes demonstram
o papel relevante das assembleias primárias no processo decisório tanto
nas eleições municipais como secundárias, seja na esfera legislativa
nacional ou provincial. A campanha centrada na figura dos candidatos
e não dos eleitores fornece subsidio para a afirmação.
Com efeito, a paisagem das paróquias às vésperas das eleições
revelou intensa mobilização dos candidatos. A disputa pelo voto dos
cidadãos é testemunhada por práticas políticas tecidas no cotidiano
e nos diversos espaços da paróquia. Caminhadas pelas ruas e visitas
previsíveis evidenciam uma peregrinação eleitoral em busca do
convencimento de “patrícios e concidadãos”.42

Referências:
Fontes:
AMV (Arquivo Municipal de Vitória). Livro 420.
APEES (Arquivo Público do Estado do Espírito Santo). Série Accioly, Livro 41;
417.
BARÃO DE JAVARY. Organizações e Programas Ministeriais desde 1822 a
1889. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889.
BIBLIOTECA NACIONAL. Jornal da Victória, anos indicados.
BIBLIOTECA NACIONAL. Correio da Victoria, anos indicados.
DAEMON, Basílio Carvalho. Província do Espírito Santo: sua descoberta, história
cronológica, sinopse e estatística. Vitória: Tipografia Espírito-santense, 1879.

Obras de Apoio:
BARROS, Paulo de. Memória Fotográfica da Serra: imagens de um município
brasileiro. Vitória: Ed. do Autor, 2002.
BASTOS, Ana Marta Rodrigues. Católicos e Cidadãos: a igreja e a legislação
eleitoral no Império. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1997.
BASTOS, Fabíola Martins. A Política na antessala do Parlamento: Imprensa e

na França. Pierre Rosanvalon explica que as eleições secundárias na França não constituíam
técnica de simplificação do processo eleitoral. Os colégios tinham função política própria,
recebiam deputados nacionais, discutiam ações do poder executivo e, muitas vezes,
poderiam substituir algumas autoridades administrativas ou judiciais. Como se vê, tratam-
se de funções que os colégios eleitorais no Brasil não desempenhavam.
42  Esse termo foi utilizado em uma das chapinhas da época. Correio da Victoria, n.
79, 11 out. 1856.

179
Entre a província e a nação

sociabilidades na formação da esfera pública de opinião em Vitória / ES, nos anos


de 1840 a 1889. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em
História, UFES, Vitória, 2016.
DOLHNIKOFF, Miriam. Representação na monarquia brasileira. Almanack
Braziliense, n. 09, mai. 2009.
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
GUIONNET, Christine. L’apprentissage de la politique moderne: les élections
municipales sous la monarchie de Juillet. Paris: L’Hamattan, 1997.
NEEDELL, Jeffrey. D. The Conservatices, the State, and Slavery in the Brazilian
Monarchy, 1831-1871. Stanford: Stanford University Press, 2006.
POSADA-CARBO, Eduardo. Alternancia y República: Elecciones en La Nueva
Granada y Venezuela, 1835-1837. In.: SABATO, Hilda (org.). Ciudadania Politica
y Formacion de Las Naciones: perspectivas históricas de America Latina. México:
Fondo de Cultura Económica, 1997.
ROSANVALLON, Pierre. Le sacre du citoyen: histoire du suffrage universel en
France. Paris: Gallimard, 1992.
VIANNA, Karulliny Silverol Siqueira. Imprensa e Partidos Políticos na Província
do Espírito Santo, 1860-1880. Vitória: IHGES, 2013.

180
Voto, votante, partido e representação: a
eleição municipal no Brasil Imperial (Recife,
1829-1849)
Williams Andrade de Souza1

Este texto versa sobre a eleição no Brasil oitocentista a partir


da leitura e narrativa do processo de escolha dos vereadores que
compuseram os quadros da Câmara Municipal do Recife (CMR)
na primeira metade do século XIX. Por meio da análise das atas das
apurações de votos, listas de votantes e róis de eleitos para aquela
instituição nas seis disputas ocorridas entre os anos de 1829 e 1849,
apresentamos alguns apontamentos sobre o perfil eleitoreiro e de
ingresso ao governo local e as nuances da representatividade e dos
vínculos partidários nas disputas e exercício do cargo camarário na
capital de Pernambuco no Império.
Desde os tempos coloniais, as câmaras municipais tiveram
papel expoente na estrutura político-governativa local. Mesmo com
as reformas impetradas no contexto de formação do Estado liberal
brasileiro oitocentista, parte de seu brio não foi de um tudo execrado,
quiçá foram confirmadas enquanto instâncias da administração
imperial nos seus mais longínquos rincões territoriais.2 No limite,
acessando seus quadros por meio do voto direto, por elas passava uma
gama de indivíduos pertencentes às diversas elites que circularam
para além das esferas paroquiais, alçando voos até mesmo aos escalões
da política da corte. Portanto, aquelas instituições estavam também
inseridas na base eleitoreiro-representativa de então, sendo os seus
membros atuantes nas disputas políticas do período. O caso da CMR
é tomado aqui como exemplo para discorremos sobre algumas dessas
premissas.

1  Doutor em Estudos Históricos Latino-americano pelo programa de pós-graduação


em história da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2019). Atualmente é professor pela
Secretaria de Educação, Cultura e Esporte de Pernambuco, e Professor Pesquisador UAB/
UFRPE.
2  SOUZA, Williams Andrade de. O bom governo da municipalidade: notas sobre
a Câmara Municipal do Recife e sua organização para a administração da cidade (1829
– 1849). In.: PINTO, Luciano Rocha (org.). A arte de governar: o poder local no Brasil,
séculos XVIII- XIX. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2014, p. 168-187; SOUZA, Williams
Andrade de. A administração local no Brasil imperial: notas preliminares sobre as
municipalidades nos debates parlamentares. CLIO: Revista de Pesquisa Histórica, Recife, v.
1, n. 34, p. 245-265, jun. 2016.

181
Entre a província e a nação

No limiar da independência do Brasil, a municipalidade da capital


pernambucana se dizia ser um “mero órgão do povo, representante e
tutela a patentear a sua vontade”.3 Se com essa afirmação os vereadores
dela estivessem se referindo apenas aos seus representados abastados,
os chamados homens bons, esse panorama paulatinamente passaria
por mudanças. Como nos tempos coloniais, a eleição para o cargo
da vereança nos municípios brasileiros oitocentistas continuou sendo
direta, mas o seu exercício foi ampliado, trazendo à cena política uma
gama maior de cidadãos que passaram a influenciar o jogo eleitoreiro
e a demandar uma interação responsiva por parte dos representantes
locais então eleitos. Assim, ao longo da primeira metade do Oitocentos,
o discurso e o governo camarário foram sendo moldados para uma
espécie de governar os e para os habitantes do município.
O mesmo votante qualificado para participar das eleições
primárias e votar no eleitor que elegeria o conselheiro/deputado e
o senador, era também o que decidia quem se assentava na cadeira
municipal.4 Nesse processo, conforme observou Maria Odila
Leite da Silva, grupos sociais outros se inseriam na pluralidade de
possibilidades de participação até então negadas para o conjunto
da sociedade.5 Em interpretação semelhante e mais alargada,
3  INSTITUTO Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).
Livro de Atas e Acordos da Câmara Municipal do Recife, n. 6, (1817-1829). Termo de
ajuntamento da tropa e povo no senado para o que nela se contém, ata de 17/09/1822, p. 98.
4  Para mais detalhes sobre as juntas e qualificações eleitorais, votantes e eleitores, Cf.
LIMONGI, Fernando. Revisitando as eleições do Segundo Reinado: manipulação, fraude
e violência. Lua Nova, São Paulo, v. 91, p. 13-51, 2014. Disponível em: <http://www.
scielo.br/pdf/ln/n91/n91a02.pdf>; MOTTA, Kátia Sausen da. Os impasses na definição da
participação política local no início do Oitocentos (1827-1828). In.: OLIVEIRA, Camila
Aparecida Braga [et al]. XVIII Encontro Regional Anpuh-Mg: dimensões do poder na
história, Mariana, MG, 2012. Anais Eletrônicos, Mariana: ANPUH, 2012. Disponível em:
<http://www.encontro2012.mg.anpuh.org/site/anaiscomplementares>; CAVALCANTI
JUNIOR, Manoel Nunes. “Praieiros”, “Guabirus” e “Populaça”: as eleições gerais de 1844
no Recife. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001. Ver também: BRASIL. Decreto de 1º
de dezembro de 1828. Dá instruções para as eleições das Câmaras Municipais e dos Juízes
de Paz e seus Suplentes. Coleção de Leis do Império do Brasil - 1828. Disponível em: http://
www2.camara.leg.br; Idem. Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834. Faz algumas alterações e
adições à Constituição Política do Império, nos termos da Lei de 12 de outubro de 1832.
Coleção de Leis do Império do Brasil - 1834. Disponível em: http://www2.camara.leg.br;
Idem. Lei nº 387 - de 19 de agosto de 1846. Regula a maneira de proceder as Eleições
de Senadores, Deputados, Membros das Assembléas Provinciaes, Juizes de Paz, e Camaras
Municipaes. Disponível em: http://legis.senado.leg.br; SOUSA, Francisco Belisário Soares
de. O sistema eleitoral no Império. Brasília: Senado Federal: Univ. de Brasília, 1979.
5  DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sociabilidade sem história: votantes pobres no
Império, 1824-1881. In.: FREITAS, Marcos Cézar (org.). Historiografia brasileira em
perspectiva. 7 ed. São Paulo: Contexto, 2014, p. 58.

182
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Richard Graham destacou que uma importante parcela da população


masculina e livre participava como votante ou eleitora nas eleições
oitocentistas no Brasil, pois o voto censitário não figurava como
cláusula de barreira de absoluta exclusão do processo de escolha dos
representantes.6 Contudo, sua interpretação se assenta na tese de
que uma “ideologia clientelística” crivava todo o processo político
de então, fazendo com que o “alargamento” da participação eleitoral
não significasse a liberdade plena de escolha do votante/eleitor.
Nesse entendimento, a experiência de um amplo sufrágio funcionava
“para consolidar, entre uma população móvel, a ordem hierárquica
nitidamente estratificada”.7
Privilegiando o olhar a partir da perspectiva elitista, o autor diz
que “o clientelismo constituía a trama de ligação da política no Brasil do
século XIX e sustentava virtualmente todo o ato político”, estabelecendo e
fortalecendo o vínculo da elite com o exercício do poder. O paternalismo
e a deferência faziam parte da regra do jogo, competindo aos potentados
“expressar a dimensão de sua autoridade com muito cuidado” para
não inflamar a “potencial resistência dos pobres”. Em uma concepção
na qual tudo girava em torno da lealdade, da rede de dependência, do
apadrinhamento e do toma-lá-dá-cá,8 o expediente eleitoral seria só
mais um instrumento de acesso e manutenção do poder pelos grupos
dominantes, e, portanto, da consecução dessa lógica clientelar.
Nessa dualidade, o autor dá ênfase à ação vertical e de cima para
baixo de uma elite dirigente sobre o séquito em sua volta. A leitura tem
uma base empírica que lhe dá algum lastro, mas é limitada em si mesma,
à medida que em generaliza e enrijece a interpretação, desconsiderando
6  Calculando a taxa de participação mediana de 1.157 paróquias na década de
1870, o autor afirma que “50,6% de todos os homens adultos livres, de 21 anos ou mais,
independente de raça ou instrução, constavam dos róis de votantes qualificados”. A leitura
de Adriana de Campos Pereira e Ivan Vellasco, a partir do estudo de Mircea Buesco,
foi mais sisuda em relação a essa participação, mas também indica ter sido “modesta a
limitação proporcionada pela restrição censitária no Brasil oitocentista”, pois, pelo menos
um quarto da população masculina, livre e maior de 25 anos entrava no processo eleitoral
do período. GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ, 1997, p. 147; CAMPOS, Adriana Pereira de; VELLASCO, Ivan
de Andrade; Juízes de paz, mobilização e interiorização da política. In.: CARVALHO, José
Murilo de; CAMPOS, Adriana Pereira (org.). Perspectiva da cidadania no Brasil Império.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 377-408.
7  GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX... Op. cit., p.
139.
8  GRAHAM, Richard. Toma lá, dá cá: Clientelismo na cultura política brasileira.
Braudel Papers, n. 15, p. 107, 1996. Disponível em: http://pt.braudel.org.br/publicacoes/
braudel-papers/downloads/portugues/bp15_pt.pdf.

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Entre a província e a nação

as margens, peculiaridades e desvios do processo. Não obstante a


prática do toma-lá-dá-cá, do curral e do voto de cabresto perpassando a
relação clientelar e encurralando boa parte dos votantes aos desejos da
escolha do candidato do potentado local, algumas brechas no sistema
possibilitavam certa flexibilização na escolha do representante pelo
representado.
É isso o que nos dizem Adriana de Campos Pereira e Ivan de
Andrade Vellasco, pois, ao apresentarem “a mobilização política em
torno das eleições de juízes de paz mesmo diante da barreira de renda
para a qualificação do eleitor”, nas províncias do Espírito Santo e Minas
Gerais na primeira metade do século XIX, destacam a interiorização dela
e “a participação do homem comum” e suas vontades próprias frente às
escolhas que tinham. No processo eleitoral analisado, observou-se que
a esfera política não reproduziu “necessariamente o poder privado e sua
capacidade de gerar dependências e lealdades”, havendo também uma
significativa “dispersão de votos” sugerindo o “grau de mobilização e
liberdade de escolha dos eleitores”. Essa leitura “não descarta o fato de
que as redes de compadrio e clientela pesavam [...], mas se constituía
apenas em uma das variáveis e, talvez, a julgar pelos dados, não atuavam
de forma decisiva”.9
Em estudo mais recente e voltado especificamente para a
questão das eleições no Brasil oitocentista, Kátia Sausen da Motta
aprofundou o debate sobre a preocupação da elite imperial com a
definição da cidadania política face à presença do homem ordinário
na esfera pública no período em tela. Sua leitura identificou que
houve uma importante ampliação da participação dos cidadãos nas
eleições, revelando um perfil eclético dos participantes, pois que os
pleitos eleitoreiros reuniam tanto abastados quanto despossuídos de
riqueza. A autora também destacou que a experiência sufragista na
província do Espírito Santo, entre os anos de 1822-1881, foi marcada
por “forte mobilização política e participação ativa dos votantes”.10
9 Cf. CARVALHO, José Murilo de; CAMPOS, Adriana Pereira. Perspectiva da
cidadania no Brasil Império... Op. cit., p. 377-408; VELLASCO, Ivan de Andrade. Juízes
de paz, mobilização e interiorização da política: algumas hipóteses de investigação das
formas de justiça local e participação política no Império (1827-1842). In.: CARVALHO,
José Murilo de [et al]. Linguagens e fronteiras do poder. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2011, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.
10  MOTTA, Kátia Sausen da. Eleições no Brasil do Oitocentos: entre a inclusão e
a exclusão da patuleia na cidadela política (1822-1881). Tese (Doutorado em História).
Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória,
2018, p. 205.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Demonstrando, assim, uma importante amplitude do corpo eleitoral


e adesão não manietada daqueles atores nas práticas eleitoreiras, o
estudo evidencia que os pleiteantes a cargos políticos investiam em
campanhas eleitorais a fim de conquistar o voto. Isso aproximava os
candidatos e seus aliados com a população, e requeria que os primeiros
dessem a conhecer as suas qualidades e capacidades para assumir os
quadros da representação.11
A verificação dessas premissas para a província de Pernambuco
da primeira metade do XIX não é tarefa fácil.12 Contudo, são possíveis
ao menos algumas aproximações. Para tanto, remontamos uma
amostragem mínima sobre o perfil ocupacional de quem votava nos
vereadores do Recife, a partir de três pequenas listas de votantes das
freguesias da Boa Vista, São José e Santo Antônio para o ano 1847.13
Apesar de limitadas, elas trazem os nomes de 101 indivíduos e enumeram
26 ocupações diversas entre eles, a saber: 6 advogados, 1 agricultor,
8 Artistas, 1 boticário, 1 cirurgião, 1 contador, 1 depositário geral, 2
despachantes, 15 empregados público, 3 escrivães, 1 farmacêutico, 1
fiscal, 2 juízes de direito, 1 juiz de órfãos, 2 lentes, 2 médicos, 4 militares
da 1ª linha, 5 negociantes, 20 negócios, 1 oficial do exército, 1 procurador
e 1 secretário da Câmara Municipal, 1 procurador fiscal, 2 professores, 1
professor público e 17 proprietários.14
Essa classificação nos permite vislumbrar um pouco do “lugar
social” de uma parcela do grupo que participava do colégio eleitoral
do mundo da paróquia no Recife. De relance, constatamos que os
arrolados formavam um grupo eclético, que ia de nichos ocupacionais
consagrados à alta estirpe até classes não tão consolidadas na hierarquia
social. Dentre eles, por certo, havia muitos que engrossavam a fileira
11  MOTTA, Kátia Sausen da. Eleições no Brasil do Oitocentos... Op. cit., p. 118-
134. A palavra candidato aqui é empregada para designar os aptos a serem eleitos. Essa
nomenclatura só foi usada a partir Lei Saraiva, em 1881, segundo a própria autora.
12 Há alguns trabalhos na seara das eleições em Pernambuco, Cf. CAVALCANTI
JUNIOR, Manoel Nunes. “Praieiros”, “Guabirus” e “Populaça”... Op. cit.; ROSAS, Suzana
Cavani. A dança dos círculos: guabirus e praieiros e a disputa pelos distritos eleitorais
em 1856. In.: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; FERREIRA, Tânia Bessone da C.
Dimensões políticas do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012, p. 165-186.
13  Encontramos uma quarta lista referente à freguesia de Santo Antônio, mas para
o ano de 1857. Apesar de conter nela mais detalhes sobre nome, idade, cor, estado civil e
ocupação de 59 indivíduos do nono e décimo quarteirão daquele bairro, optamos por não
utilizar ela neste trabalho. Cf. Biblioteca Nacional (BN). Hemeroteca Digital. O Liberal
Pernambucano, n. 1312, p. 2, 23 jan. 1857.
14  BN. Hemeroteca Digital. O Lidador, n. 217, p. 3-4, c. 2-3, 18 set. 1847. Cf. lista
completa no ANEXO I.

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Entre a província e a nação

daqueles que Maria Odila Leite da Silva chamou de “votantes pobres”,


mas que integrados ao corpo da nação por meio da arregimentação
cidadã aberta desde os dias da independência.15
Os tipos de atividade ocupacional mencionados na listagem nem
sempre inspiram precisão, mas nisso também são indiciários da estirpe
social que podia exercer a cidadania do voto. Citemos os casos das
pessoas metidas nos empreendimentos capitalistas, para as quais eram
utilizadas duas categorias: negociante e negócio. O camarista Joaquim
Lúcio Monteiro da Franca, listado na amostra, aparece inserido nesse
segundo rol.16 Mas esta era uma classificação genérica que poderia
indicar desde atividades de subsistência até múltiplos negócios de
importante giro capital. No caso dele, sabemos que mantinha agências
mercantis, capitalistas e de produção, como sócio da Firma Franca
& Irmão, proprietário da Fábrica de Sabão Roostron Rooker & Cia e
Arrematante do Imposto sobre Cabeça de Gado do Município.17 Daí
ser arrolado em uma classe mais ampliada de ocupação. A atividade
de negociante, por sua vez, entrava na mesma lógica alargada, pois seu
portador poderia ser um mascate, um dono de botequim, um varejista
do comércio a retalho ou um vendedor em atacado nos negócios de
grosso trato.
Assim, tanto essa designação ampla quanto a série de ocupações
menos aquilatada indicam a inserção de pessoas mais modestas
nas fileiras de votantes, e que poderiam até ascender ao escalão do
eleitorado e, consequentemente, estarem aptas também à eleição para
funções legislativas, conforme propunha a listagem em apreço. O mais
importante para nós, contudo, é destacar esse perfil não tão paupérrimo,
mas também não necessariamente abastado, das figuras protagonistas
no processo que elegia os vereadores.
Portanto, temos um rol de indivíduos que só pelo fato de
exercerem um ofício e ter, nem que fosse hipoteticamente, uma renda
garantida e comprovada, já se destacavam do resto da população livre-
pobre desassistida desse penhor que lhe possibilitava participar da
cidadania ativa – direito de voto e de representação – ou de pelo menos

15  DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sociabilidade sem história... Op. cit., p. 68.
16  BN. Hemeroteca Digital. Diário de Pernambuco, n. 209, p. 2, c. 3, 17 set. 1847.
17  Idem, n. 110, p. 2, c. 2, 03 mai. 1854; O Liberal Pernambucano, n. 830, p. 3-4,
c. 4; 1, 18 jul. 1855; Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Província de
Pernambuco para o ano de 1861. Pernambuco: Typ. de Geraldo de Mira e C, 1861, p. 292,
540.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

escolher os titulares desses direitos. Por fim, isso sugere que parcela do
eleitorado local do Recife era composta por um público de escalonamento
social mediano, sendo este responsável por sufragar os vereadores. E,
possivelmente, o grupo que mais demandaria das ações governativas da
municipalidade. Sendo assim, pesavam significativamente na balança
político-eleitoral e deviam ser levados em consideração não só naquele
contexto, mas também no dia a dia da administração camarária.
Figurar entre votantes talvez não fosse algo muito difícil, conforme
Richard Graham falou e pudemos parcialmente ratificar acima. Mas ter
capital político para obter o cociente de votos necessário e conquistar
uma vaga entre os cargos eletivos disponíveis é que não era uma tarefa
muito fácil, mas também não impossível para os menos capitalizados
política e economicamente. Identificamos as atas contendo os nomes e a
votação recebida entre os nove a dezoito vereadores mais bem colocados
em cada uma das legislaturas aqui analisadas. Os dados permitem, entre
outras coisas, contabilizar o número mínimo de votos para ser eleito e
a evolução da média deles ao longo dos seis pleitos estudados, assim
como verificar que a posição econômica não necessariamente se refletia
em votos nas eleições.
Ainda que os registros das urnas nem sempre fossem o espelho
da realidade, por meio deles calculamos quantos votos eram necessários
para se alcançar um das vagas de titulares na CMR.18 Para tanto,
coligimos as listas com os resultados finais da apuração dos escrutínios
realizados na cidade nos anos de 1829, 1832, 1836, 1840, 1844 e 1849.
Tais listagens apresentam as relações nominais e os votos respectivos
dos homens que obtiveram sufrágio suficiente para assumir uma das
cadeiras como camarista.19 Foram 54 indivíduos, que juntos somaram
89.500 votos nas seis legislaturas contabilizadas. Uma média de 9.943
votos por candidato. Mas, para que os números vistos em monolítico
não nos engane, vamos reduzir a lupa da análise. O gráfico a seguir
traz um resumo apresentando o maior e menor número, média e
18  Não obstante os bons resultados que esse exercício nos proporcionou, esclarecemos
que a substituição de um vereador titular por seu suplente foi uma constante no período
estudado, fazendo com que pessoas com menos número de votos do que os que iremos
arrolar aqui pudessem ocupar o cargo de vereador. Por isso, face à carência de documentação
completa sobre o número de indivíduos qualificados e apuração de votos, a amostra em
apreço tem como objetivo descortinar um pouco o véu a respeito do tema, mas não pretende
revelar em um tudo o que estava por traz dele.
19  Em alguns casos, também foi possível arrolarmos os suplentes, mas preferimos
trabalhar apenas com os primeiros colocados, pois, para eles, pudemos contar com a série
completa dos dados para as seis legislaturas.

187
Entre a província e a nação

total de votos recebidos pelos nove primeiros eleitos em cada uma das
legislaturas.

Gráfico 1: Maior e menor número, média e total de votos por eleito. FONTE: Adaptado de
Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE). CM, n. 07, Recife – 1829. Ofício
de 26/05/1829; n. 10. Ofício de 17/12/1832; n. 14. Ofício de 19/10/1836; IAHGP. Livro das
Sessões da Câmara do Recife, n. 09 (1838-1844). Sessão ordinária de 02/10/1840, p. 80;
CAVALCANTI JÚNIOR, 2001, Anexo II, p. V; BN. Hemeroteca Digital. O Capibaribe, n.
82, 19 jun. 1849, p. 3, cc. 1-2.

A linha ascendente no gráfico projeta o aumento dos sufrágios


pleito a pleito. Observamos que nas três primeiras eleições o número
de votos manteve-se estável. A partir da década de 40, o quadro mudou,
apresentando uma expansão no volume apurados. A linha se torna abrupta
em 1844, voltando a cair na eleição seguinte, que, por sua vez, superou o
patamar de 1840 em 1.399 cédulas eleitorais. Ainda se excluirmos esta
singularidade, por sua atipicidade na série analisada, os outros dois anos
apresentam picos de votos em dobro em relação aos períodos anteriores.
Sobre a subida brusca, não pudemos estabelecer paralelos explicativos
plausíveis. A comparação com uma base de censos eleitorais poderia
lançar luz a respeito, pois a possível oscilação aguda do número de votantes
poderia produzir aumento significativo da quantidade de votos. Outra
questão seria o contexto político e as trapaças eleitorais influenciando
nessa variação.20 Ainda assim, a diferença numérica é gritante.
Contudo, olhando para a evolução eleitoral nos seis pleitos
elencados, além das conjeturas acima, inferimos que uma série de
fatores aglutinados contribuiu para esse alargamento no número de
votos a partir da segunda década em apreço no gráfico. No período
20  Cf. SABA, Roberto N. P. F. As “eleições do cacete” e o problema da manipulação
eleitoral no Brasil monárquico. Almanack, Guarulhos, n. 02, p. 126-145, 2011. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2236-46332011000200126&lng
=en&nrm=iso>. Como adverte o artigo, se as manipulações eleitorais pesavam no resultado
dos pleitos, “o contexto social, político e ideológico no qual as disputas por votos ocorriam”
sobrepunha tal conjuntura.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

entre 1828 e 1855, o número populacional do Recife aumentou em


40,3%. Apesar de ser um crescimento razoável, ele não explicaria por si
só o pico de votos das últimas três legislaturas mais do que o dobro em
relação às primeiras. Portanto, muito provavelmente, as melhorias das
condições materiais em Pernambuco no período foram preponderantes
para gerar novas fontes de ganhos e/ou a elevação da renda per capita,21
possibilitando que número maior de indivíduos pudesse ser qualificado
para tomar parte na cidadania política. Por último, conjecturamos que
a inclinação para o exercício do direito ao voto paulatinamente foi se
ampliando, face ao entendimento maior do que ele passou a representar
para uma porção também maior da população. Contribui para essa
leitura a conjuntura de ascensão da ala política liberal na província e
sua proximidade e agenciamento com aqueles setores sociais de menor
cabedal econômico, mas com potencial eleitoreiro, estreitando a posição
limítrofe do acesso destes ao voto e, assim, ampliando o número de
novos votantes.22
21  Cf. ARRAIS, Raimundo. O pântano e o riacho: a formação do espaço público no
Recife do século XIX. São Paulo: Humanitas /FFLC/USP, 2004; CARVALHO, Marcus J. M.
de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. 2 ed. Recife: Editora
Universitária da UFPE, 2010; DANTAS, Ney Brito. Entre Coquetes e Chico-Machos: uma
leitura da paisagem urbana do Recife. Dissertação (Mestrado em História). Programa de
Pós-graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1992; GUERRA,
Flávio. O conde da Boa Vista e o Recife. Recife: Fundação Guararapes, 1973; ZANCHETI,
Sílvio Mendes. O Estado e a Cidade do Recife, (1836-1889). Tese (Doutorado em
Arquitetura). Programa de Pós-graduação em História , Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1989.
22  As pesquisas sobre a participação política em Pernambuco na década de 1840
em diante têm dado conta de inúmeras mobilizações e reivindicações “como forma de
pressão popular para alcançar determinados objetivos sociais”. Estas manifestações eram
apropriadas oportunamente pelos políticos e suas instituições que, em tempos eleitorais,
valiam-se de meetings como forma de cooptação e conquista de votos. O Partido Nacional
de Pernambuco, mais conhecido como Partido Praieiro ou da Praia, uma ala dissidente do
Partido Liberal, foi o principal deles, pois contava não só com a simpatia de proprietários de
engenhos e mercadores de medianas posses, mas também de artesãos, canoeiros, alfaiates,
carpinteiros, pedreiros, jornaleiros, funcionários públicos de baixo escalão, pequenos
comerciantes, entre outros, como suas bases eleitorais. No período de sua ascensão e queda
em Pernambuco, 1844-1848, deram continuidade a algumas políticas de melhorias da
vida material local fomentada no governo do Conde da Boa Vista (1837-1844), conforme
vimos, sendo o Estado “o maior agenciador de grandes e pequenos negócios”, beneficiando
não só os proprietários e capitalistas, mas também a “obra social” que contemplava certas
demandas populares e corroborava para o agenciamento de parte de seu contingente que
lhe era útil à base de sustentação político-eleitoral, conforme depreendemos das leituras de:
ROSAS, Suzana Cavani. Cidadania, Trabalho e antilusitanismo no Recife da década de 1860:
os meetings no bairro popular de São José. In.: RIBEIRO, Gladys Sabina; FERREIRA, Tânia
Maria Tavares Bessone da Cruz (org.). Linguagens e práticas da cidadania no século XIX.
São Paulo: Alamenda, 2010; MARSON, Izabel Andrade. Monarquia, empreendimentos e
revolução: entre o laissez-faire e a “proteção à indústria nacional”: origens da Revolução
Praieira (1842-1848). In.: MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de

189
Entre a província e a nação

O fato é que os dados arrolados aqui ajudam a refletir também


sobre os potenciais eleitorais dos candidatos nas disputas paroquiais. Na
eleição para os quadros camarários, observa-se que o fator eleitoral nas
três primeiras legislaturas foi mais modesto do que nas seguintes, sendo
516 votos a média mínima para o acesso ao cargo da vereança entre
1829 e 1836. Isso sugere, portanto, uma razoabilidade de votos para
se alcançar uma vaga na disputa municipal nesse primeiro momento.
Um dado alarga ainda mais esse entendimento: o grande número de
vereadores substitutos que assumiram os postos camarários em lugar
dos nove titulares iniciais para os três primeiros ciclos sublinhados.
Para uma rápida leitura, registramos um número de 32, 34 e 26
vereadores para a 1ª, 2ª e 3ª legislatura, respectivamente. A diferença de
sufrágios entre o primeiro e o nono colocado de cada um desses pleitos
foi de 525, 380 e 336 votos. Imaginem essa variação se compararmos
com os colocados no trigésimo segundo, trigésimo quarto e vigésimo
sexto lugar!? Ou seja, em termos de votação, e para o trio legislativo
mencionado, os dados sugerem que o cenário da eleição edil não era tão
inexequível para os menos aquilatados em capital político, mas, para a
década seguinte, o caldo engrossou, foi preciso melhorar o know how
perante a clientela em crescimento.
Conforme sugerem os dados, paulatinamente o acesso à Câmara
do Recife passou a exigir mais votos, sem, contudo, significar um
“luxo” ou exclusividade de poucos e ricaços. Tomando apenas como
base o cenário das listas de votação acima, os concorrentes ao senado
local precisaram evoluir em seus potenciais eleitorais, ampliando a
capacidade para angariar votos ou permanecer entre os elegíveis, mas
isso, por outro lado, não se associou estritamente à posição econômica
que tivessem.
O abastado proprietário Manoel de Souza Teixeira, presidente
da CMR em parte da quarta legislatura, obteve, na eleição de 1840, o
total de 1.753 votos. Mas, com 4.772 no pleito de 1844, só conseguiu o
primeiro lugar na suplência para o quadriênio de 1845 a 1848, chegando,
contudo, a assumir como vereador principal naquela legislatura. Já em
1849, ficou do 4º melhor lugar no pleito com quase dois mil votos a
menos que na eleição anterior, mas ainda assim com admiráveis 2.875
cédulas eleitorais a seu favor. No que diz respeito à ocupação dos eleitos,
os comerciantes de grosso trato, Francisco Antônio e José Ramos de
Salles. Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2013.

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Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Oliveira, permaneceram nas primeiras colocações das eleições que


disputaram, enquanto que José Pires Ferreira e Gaudino Agostinho de
Barros, de mesma monta ocupacional, só conseguiram a suplência. Por
outro lado, temos o exemplo do empregado público de baixo escalão,
Rodolfo João Barata de Almeida, fiscal de freguesia que aparece suplente
de vereador em 15º lugar nas eleições de 1844, mas sobe para o 8º de
titular em 1849.
Considerando o perfil de 70 indivíduos, entre os 77 titulares e
suplentes presentes na listagem dos mais votados em análise,23 em
termos globais, a premissa de “políticos porque proprietários”24 em
parte parece se sustentar, pois, em relação à amostra, pelo menos 64%
dos arrolados aparecem como donos de algum tipo de propriedade.
Numa primeira leitura, ocupação e posição econômica mais aquilatada
aparentemente também se colavam à representatividade nos quadros
locais, pois proprietários e negociantes somavam juntos 63%25 das
ocupações entre os mais votados.
Contudo, olhando qualitativamente o perfil dos homens na
amostragem em apreço, é possível relativizar tal questão. Muitos
dos identificados como negociantes não passavam de taverneiros e
pequenos lojistas, assim como havia alguns proprietários arrolados que
complementavam suas rendas com outras atividades de subsistência.
Portanto, não estamos, em absoluto, diante de categorias ocupacionais
que tivessem em si mesmas as garantias que acimassem seus praticantes
como abastados. Por fim, tirando essas duas classes – proprietários e
negociantes – ainda restavam entre os 70 vereadores arrolados, 37%
deles vivendo de: emprego público (16), medicina (04), arrematação de
impostos ou obras públicas (04), advocacia (01) e negócios (01). Ou
seja, funções que poderiam render ou significar muito, mas também só
um pouco mais além do nada. Entre os empregados públicos pudemos
identificar de Tesoureiro da Alfândega à Fiscal de Freguesia, dois
23  Consideramos apenas os 70 indivíduos dos quais pudemos traçar o perfil
socioeconômico.
24  Segundo Alcir Lenharo, ao estudar o fenômeno do abastecimento urbano da Corte
do Rio de Janeiro no período da formação do Estado liberal brasileiro, os indivíduos
imiscuídos naquele processo formativo eram “políticos porque proprietários”. LENHARO,
Alcir. As tropas da moderação. O abastecimento da Corte na formação política do Brasil:
1808-1842. 2 ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esporte,
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração,
1993, p. 100.
25  Considerando da listagem os 21 proprietários e 23 negociantes que classificamos
como tendo nessas agências sua principal fonte de renda.

191
Entre a província e a nação

extremos em termo de prestígio e rendimento salarial em uma mesma


categoria ocupacional.
Portanto, entre esses mais votados, temos uma representatividade
bem eclética, sendo boa parte dos escolhidos possuidora de algum
cabedal econômico. Mas este não era o fator hegemônico em absoluto
para o voto e o acesso àquele cargo, pois nossa amostra inicial já sinaliza
para uma direção no mínimo divergente. Sendo assim, tais casos sugerem
que era preciso mais do que riqueza para uma boa eletividade, fazia-se
necessário a ampliação de certo capital político colado aos concorrentes
locais, sendo este um dos expedientes para que eles permanecessem
no raio de atenção da representatividade no mundo da paróquia e
até ascender às funções políticas como deputados provincial, geral ou
presidente de província, o que nos faz pensar sobre a necessidade de
se formar um lastro eleitoral inclusive por meio do acesso aos cargos
eletivos menos expressivos como os municipais.
O contexto de transformação em que novas figuras foram se
integrando à política ativa, e, mesmo que timidamente, atingindo a
configuração dos grupos dirigentes, o acirramento da disputa pelos
postos eletivos locais foi se agudizando. O furdunço na paróquia em
dias eleitorais que o diga. Aliás, esses pleitos eram tão renhidos que
Richard Graham chamou-os de “teatro das eleições”, no contrapé da
beleza que é a dramaturgia teatral. Ao contrário do que assevera aquele
autor, as eleições não eram terminantemente encenações “congruentes
com as necessidades e desejos dos senhores da terra”,26 a vontade do
eleitor também contava, daí serem comuns as manifestações e disputas
dos aspirantes políticos nos sufrágios paroquiais, inclusive fazendo uso
da força e da instauração do medo.
A eleição para a primeira legislatura camarária da capital
pernambucana foi sintomática disso, pois ocorreu em meio aos
alvoroços da “República dos Afogados”, envolvendo pasquinadas,
alardes, rusga militar e prisões. As mobilizações daqueles manifestantes
influenciaram o processo eleitoral, saindo eleito para vereadores alguns
ex-rebeldes de 1824, Antônio Joaquim de Mello e Antônio Elias de
Moraes, e um simpatizante da sociedade Coluna do Trono e do Altar,
José Ramos de Oliveira.27 Outros dois metidos naquele contexto foram
26  GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX... Op. cit., p.
139.
27  CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. A “República dos Afogados”: a volta dos
liberais após a Confederação do Equador. In.: Simpósio Nacional de História, Florianópolis,

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Rodolfo João Barata de Almeida e Bento José da Costa. Este, pai do


homônimo camarista, teve seu nome citado naquele evento por conta
de um escravizado seu que daquele assanhamento político participou
e acabou indo parar no xilindró. Seu filho sairia eleito como suplente
naquele primeiro pleito e 6º colocado no que o sucedeu. Barata de
Almeida, por sua vez, também logrou prisão, mas não teve bom êxito
eleitoral no período. Contudo, mais tarde, viria a ser empregado e
vereador da Câmara do Recife.
Os fatos ocorridos e sua estreiteza relacional com o pleito eleitoral
apontam que, além de capital político e econômico, também se fazia uso
de um expediente do caos e da força para se acessar os postos de poder
local, ou influenciar os resultados da disputa para ver apaniguados
ascender aos postos eletivos e de mando. Sugerem, portanto, que se
havia um “teatro das eleições”, ele era improvisado, nada estava dado
por antecipação. Os potentados locais recorriam às armas possíveis
para tentar ocupar os espaços representativos, pois estes não estavam
de pronto garantidos a eles.
Ao que nos parece, tais embates se tornaram prática comum no
jogo político de então, como uma estratégia ou recurso para se tentar
ganhar ou minimizar as derrotas nas urnas. A cada novo escrutínio a
história parece que se repetia. Aliás, Afogados também sempre figurava
como palco para tais “encenações”, como se tivesse um chamariz por
embates, rixas e quebra paus nos enredos eleitoreiros locais. No pleito
de 1844, bicaram-se o liberal Francisco Carneiro Machado Rios e o
conservador Manoel Joaquim do Rego Albuquerque Cavalcante por um
punhado de eleitores no quinhão de seus domínios afogadenses. Este,
juiz de paz naquela freguesia, foi acusado de provocar tumultos e caluniar
o adversário político. Segundo se noticiava, o seu pai, ex-vereador do
Recife, Manoel Cavalcante de Albuquerque e Mello, participou dos
repuxos. O patriarca, além da pertença à família Cavalcante,28 tinha
uma rede de contato e influência ali, e não era pouca coisa: agricultor e
proprietário, arrematante há 8 anos do pedágio de barreira da passagem
do Jiquiá, arrendador de muitos quinhões de terras e sítios no entorno
do seu engenho na mesma povoação, tenente-coronel comandante do
20, 1999, História: fronteiras. Anais do XX Simpósio da Associação Nacional de História.
São Paulo: Humanitas – FFLCH-USP/ANPUH, 1999, p. 490-494.
28  Laço familiar esse que, por si só, já lhe colocava em uma posição privilegiada na
província. Sobre isso, Cf. CADENA, Paulo Henrique Cadena. Ou há de ser Cavalcanti,
ou há de ser cavalgado: trajetórias políticas dos Cavalcanti de Albuquerque (Pernambuco,
1801-1844). Recife: Editora Universitária da UFRPE, 2013.

193
Entre a província e a nação

Batalhão de Milícia do Cabo e, depois, do Corpo de Guarda Municipal.


Daí, com certa facilidade, aquele chefe político arregimentava levas
de gente armada, dentre elas, uma “multidão” de escravos seus, e as
conduzia para as seções eleitorais a fim de obter os votos na marra ou
afugentar os oponentes de seu filho e sectários.29
Não é difícil crer que foi assim. As más línguas diziam não
ser o velho flor que se cheirase, a ponto de acusá-lo de ter matado a
Ignácio Papada por simplesmente pescar sem seu consentimento
em um viveiro de peixe de sua pripriedade nos Afogados. Mas, à
época, sendo o seu filho o subdelegado daquela freguesia, o processo
contra o coronel não vingou.30 O fato é que o perrengue da eleição e
as querelas em torno das queixas e denúncias de fraude não deram lá
muito certo para os conservadores no resultado geral das urnas. Ainda
assim, o marrento Albuquerque e Mello saiu como 2º eleitor mais bem
votado dos Afogados; Francisco Carneiro Machado Rios foi eleito
vereador suplente com 4.629 votos; já Rego Albuquerque amargou ser
substituído justamente por este último no comando do batalhão da
Guarda Nacional.31
As farpas não voavam publicamente apenas no dia da eleição, elas
também se manifestavam no recinto camarário em outros momentos.
Após um pleito eleitoreiro, o lado perdedor ou ameaçado de ser
desbancado geralmente era o que mais alto fazia berrar, buscando no
alvoroço arrepiar os ânimos, pôr em evidência as diferenças internas
dos membros da Casa Local e, assim, ao menos, desestabilizar o
processo da apuração dos votos. Como foi o caso do conservador Luiz
Francisco de Mello Cavalcante, declarado anti-praieiro e eleito como
2º vereador mais votado do Recife em 1844, que peitou o presidente da
CMR, o liberal Manoel de Souza Teixeira, nos dias da contagem dos
votos naquele mesmo ano.32

29  Cf. BN. Hemeroteca Digital. Diário Novo, n. 78, p. 2-3, c. 3, 09 abr. 1845; Idem, n.
80, p. 2-3, c. 3, 1, 11 abr. 1845. Os números 202 e 208 de 1844 do Diário de Pernambuco e
os 201 de 1844, 67, 79, 80 e 126 de 1845 do Diário Novo espicham o leva e traz da contenda
entre esses dois indivíduos.
30  BN. Hemeroteca Digital. Diário Novo, n. 94, p. 2-3, c. 3, 1, 28 abr. 1845.
31  BN. Hemeroteca Digital. Diário Novo, n. 189, p. 1, c. 3, 2 set. 1844; Diário Novo, n.
198, p. 2-3, c. 3, 1, 12 set. 1844; n. 207, p. 2, c. 1-3, 19 set. 1845; Diário de Pernambuco , n.
253, p. 1, c. 4, 12 nov. 1844; Idem, n. 78, p. 2, c. 4, 09 abr. 1845.
32  CEPE. O Guararapes, n. 11, 06 set.1844, p. 3, c. 2; BN. Hemeroteca Digital. Diário
Novo, n. 170, p. 2, c. 2-3, 07 ago. 1844; Idem, n. 239, p. 3, c. 3, 02 nov. 1844; Diário de
Pernambuco , n. 255, p. 2, c. 4, 12 nov. 1844.

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Mello Cavalcante já havia testado semelhante expediente em


1841, sem muito sucesso. Desta vez, ele quis travar a apuração dos
33

votos, arrastando para a contenda a Manoel Coelho Cintra, acusado


de bajular Manoel Teixeira ao mandar fazer uma cocheira para ele.34
Mas aquele outro Cavalcante esbarrou desta vez em um velho cacique
de maior peso. Souza Teixeira era proprietário e comendador, foi
candidato do Partido Nacional35 e saiu eleito suplente de vereador e
eleitor pela freguesia de Santo Antônio, e, valendo-se de sua posição na
câmara municipal, buscou preservar o interesse do seu grupo, fazendo
frente ao seu adversário, especialmente porque estava em jogo não só
os postos paroquiais, mas a definição das primárias que escolheriam os
eleitores dos deputados provinciais e gerais do futuro ciclo legislativo.36
Sem entrar nas filigranas dessa contenda, pois o que queremos
destacar é o ar de disputa político-partidária intrincado no seio
camarário, o causo acima, além desse primeiro ponto, também revelou
traços dos laços e proximidades entre os vereadores que atuavam
naquela legislatura, assim como, os usos e abusos da esfera institucional
em benefício dos projetos privados, individuais ou coletivos, dos
homens que ali atuavam e seus grupos. Nesse sentido, observamos
que os vereadores utilizavam as páginas dos periódicos, levando para
a cena pública seus engalfinhamentos internos, sendo esta também
uma estratégia para arregimentar séquitos de todos os naipes sociais
em torno dos projetos eleitorais que colocariam figuras estratégicas das
elites municiais nas posições de poder local, provincial e geral.
Esse pequeno apanhado nos ajuda a pensar os postos de mando e
representação política a nível paroquial dentro de uma perspectiva mais
complexa, e a questionar interpretações reducionistas ou genéricas
que secundarizam o universo político dito local. Aliás, as polarizações
políticas flertadas nos círculos da Corte e nos umbrais provinciais
também se manifestavam no município, e vice-versa. E este é outro
aspecto da representatividade que pudemos vislumbrar em nossa
documentação. Porém, para o caso camarário, deslindar a identidade
33  BN. Hemeroteca Digital. Diário de Pernambuco , n. 232, p. 2, c. 1-4, 25 out. 1841.
34  Idem, n. 273, p. 2-3, c. 3-4, 1, 06 dez. 1844; Diário Novo, n. 267, p. 2, c. 1-3, 06 dez.
1844; Idem, n. 114, p. 2, c. 1-2, 27 mai. 1845.
35  Partido da Praia ou Praieiro, dissidente do Liberal, e que mais tarde estaria na
vanguarda da revolução Praieira.
36  BN. Hemeroteca Digital. Diário Novo, n. 183, p. 2, c. 3, 26 ago. 1844; Ibidem, n. 189,
p. 3, c. 3, 2 set. 1844; Idem, n. 210, p. 3, c. 1-2, 27 set. 1844; Diário de Pernambuco, n. 253,
p. 2, c. 4, 12 nov. 1844; Idem, n. 128, p. 2-3, c. 3-4, 1-2, 14 jun. 1845.

195
Entre a província e a nação

ou posicionamento partidário dos seus componentes ao longo de suas


trajetórias não é uma tarefa fácil. Seja pela opacidade ou ausência das
informações, seja pela dubiedade dos indícios presentes no cruzamento
de algumas fontes, seja pela metamorfose dos próprios indivíduos e
suas redes de aliança ou dos “partidos”, coligações e tendências políticas
daquele período.37
A própria característica partidária em Pernambuco do
Oitocentos, as filigranas em similitudes ou diferenças e de vínculos
ideológicos e suas mutações, especialmente nas figuras de suas
lideranças,38 travam ainda mais uma definição clara da partidarização
de alguns dos vereadores do Recife na primeira metade do século
XIX. Na documentação impressa consultada, entre a elite camarária
encontramos nomes arrolados em nomenclaturas das mais diversas. Do
“lado liberal”, o Partido: Liberal, depois, Nacional de Pernambuco, da
Praia ou Praieiro, que também é citado como, Nacional, Oposicionista
e Chimango, surgido em 1842 como dissidente local do Partido Liberal
ou Luzia do Império, conforme dissemos.39 Do “lado conservador”, o
Partido: Conservador, Baronista, Guabiru, da Ordem, Anti-praieiro,

37  Erik Hörner nos diz “que os ‘rótulos’ Partido Liberal e Partido Conservador são
frutos de projeção e não correspondem à complexidade da cena política da Regência
e dos primeiros anos do Segundo Reinado”. HÖRNER, Erik. Partir, fazer e seguir:
apontamentos sobre a formação dos partidos e a participação política no Brasil da
primeira metade do século XIX. In.: MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília
Helena L. de Salles. Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil... Op. cit., p. 237;
Cf. NEEDELL, Jeffrey D. Formação dos partidos políticos no Brasil da Regência à
Conciliação, 1831-1857. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 10, p. 5-22, nov. 2009.
Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/alb/article/view/11719/13492>; MOREL,
Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e
sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). [s.l]: Ed. Hucitec, 2005. especialmente
o capítulo 3: as três soberanias: Exaltados, Moderados e Restauradores; HOLANDA,
Sérgio Buarque de [et al]. O Brasil Monárquico: dispersão e unidade. 4 ed. t. II, v. 2.
São Paulo: DIFEL, 1978, História Geral da Civilização Brasileira; IGLÉSIAS, Francisco
[et al]. O Brasil Monárquico: reações e transações. 4 ed. t. II, v. 3. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2004, História Geral da Civilização Brasileira.
38  A esse respeito, Cf. CAVALCANTI JUNIOR, Manoel Nunes. O egoísmo, a
degradante vingança e o espírito de partido: a história do predomínio liberal ao
movimento regressista (Pernambuco, 1834-1837). Tese (Doutorado em História).
Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
2015.
39 Cf. BN. Hemeroteca Digital. Diário de Pernambuco, n. 70, 29 mar. 1836; Diário
Novo, n. 183, p. 2, c. 3, 26 ago. 1844. Segundo Cavalcanti Júnior, após o 7 de abril de 1831,
surgiram em Pernambuco os partidos locais ligados aos grupos centralistas e federalistas da
Corte: restauradores, moderados e exaltados. Dessa última classe é que saíram os praieiros.
Contudo, a documentação impressa que utilizamos só dá conta com mais propriedade das
nomenclaturas que listamos neste parágrafo. CAVALCANTI JUNIOR, Manoel Nunes. O
egoísmo... Op. cit., p. 20.

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Absolutista, Trapicheiro e Ordeiro-constitucional, pois aparece como


representante local do Conservador ou Saquarema da Corte.40
Essas são algumas das alcunhas, muitas delas pejorativas, daquelas
duas tendências hegemônicas que aparecem nos jornais pernambucanos
do período. Embora saibamos não haver trivialidade ou inocência
na variação etimológica das classificações dos “partidos” imperiais,41
optamos por identificar as tendências políticas da nossa amostra de
vereadores dentro das duas vertentes hegemônicas e que se polarizavam
no período: conservadores e liberais. Isso não quer dizer que não
houvesse uma terceira ou mais via,42 nem significa que superamos os
problemas a respeito da (im)precisão das duas terminologias adotadas,
nem que, mesmo identificando um personagem em um desses polos,
isso fosse parâmetro de grande diferenciação das elites dirigentes
de então. Contudo, se ao menos pudermos lançar luz sobre o perfil
partidário da Câmara Municipal do Recife a partir dessa polarização,
teremos uma contribuição que vislumbre a existência dessa dualidade
e se uma dessas alas preponderava sobre a outra na localidade, como
réplica da realidade provincial ou nacional.
Comecemos com a já mencionada eleição de 1844. Identificamos
a lista da apuração dos votos para vereadores do Recife por partido e
freguesia para aquele ano e elaboramos um gráfico contendo o resultado
do escrutínio para vinte candidatos mais votados na disputa daquele
ano, nove conservadores e onze liberais, e que obtiveram as melhores
colocações como titulares e suplentes de vereador.

40 CEPE. O Maccabêo, n. 18, p. 1, c. 1, 31 ago. 1839; O Guararapes, n. 15, p. 1, c. 1-2, 21


set. 1844; O Conservador, n. 08, p. 1-2, c. 2, 1 31 nov. 1856; BN. Hemeroteca Digital. Diário de
Pernambuco, n. 187, p. 2, c. 3, 30 ago. 1844; A União, n. 126, p. 3, c. 1, 26 jun. 1849; O Liberal
Pernambucano, n. 1184, p. 1, c.1, 18 set. 1856; Idem, n. 1228, p. 1, c. 1-4, 11 nov. 1856.
41  Cf. FONSECA, Silvia Carla Pereira de Brito. A ideia de República no Império
do Brasil: Rio de Janeiro e Pernambuco (1824-1834). Jundiaí: Paco Editorial: 2016, p.
85-102; NEEDELL, Jeffrey D. Formação dos Partidos Brasileiros: questões de ideologia,
rótulos partidários, lideranças e prática política, 1831-1888. Almanack Braziliense, São
Paulo, n. 10, p. 54-63, nov. 2009. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/alb/article/
view/11722>.
42  Ainda na primeira metade do XIX, havia uma terceira ala, de caráter mais radical,
liderada pelo republicano exaltado, Antônio Borges da Fonseca. Grosso modo, os indivíduos
dessa pesquisa que apareceram na chapa borgista foram incluídos na fileira liberal de
nossa classificação. Cf. FONSECA, Silvia Carla Pereira de Brito. O ideário republicano de
Antônio Borges da Fonseca. XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo,
julho, 2011. Anais Eletrônicos... São Paulo: ANPUH, 2011. Disponível em: <http://www.
snh2011.anpuh.org>. Sobre esse indivíduo: SANTOS, Mário Márcio de A. Um homem
contra o Império: Antônio Borges da Fonseca. João Pessoa: Conselho Estadual de Cultura,
A União Editora, 1994.

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Entre a província e a nação

Gráfico 2: Total dos votos para vereadores do Recife por partido e freguesia, 1844
Fonte: BN. Hemeroteca Digital. DP, n. 263, p. 3, c. 1, 23 nov. 1844.

Como é possível ver no gráfico, temos representado o


desempenho eleitoral de cada partido nas respectivas freguesias
do município e o total geral de votos obtidos por eles no pleito. A
diferença de sufrágios entre uma ala e outra não foi tão significativa,
os liberais ficaram atrás dos conservadores em apenas 3.308 votos do
montante total de 85.348, o que naquele ano não elegeria nem sequer
um vereador para uma das nove vagas titulares. Também é possível
observar que os conservadores foram majoritários em votos nas
freguesias rurais, enquanto que os liberais se saíram bem na cidade,
onde sua base eleitoral, composta em boa parte por trabalhadores
livres, pequenos empreendedores, profissionais liberais, entre outros,
era forte. A amostra por freguesia também oferece outro dado que
chama a atenção: as rurais – Boa Viagem, Jaboatão, Poço da Panela
e São Lourenço – foram responsáveis por 40% do total de votos
apurados. Ainda assim, os 60% restante estavam no cetro urbano,
atraindo os olhares e a dedicação dos candidatos.
Na amostra, a cidade aparece como principal círculo eleitoral.
Ainda que o campo apresentasse um bom número de votos, o centro
urbano concentrava expressivo volume eleitoral capaz de garantir
maioria de “bancada” aos partidos em disputa. Não por acaso, as
intervenções físicas e ações administrativas eram investimentos mais
notados no espaço urbano, introduzindo nele o “desassombramento” e
a “reeuropeização” de que nos falou Gilberto Freyre.43 Por certo, lugar
de maior demanda social e presença de uma elite que por lá se firmou,
a aristocracia dos sobrados.

43 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e


desenvolvimento do urbano. 15 ed. São Paulo: Global Editora, 2004, p. 126; 135; 187; 557;
712.

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Esse potencial eleitoral das freguesias era explorado de acordo com


a posição geográfica de moradia e de atividade exercida pelo candidato.
Podemos citar o caso de José Ramos de Oliveira, senhor de engenho,
agricultor e negociante, que obteve mais votos nas duas freguesias rurais
e fronteiriças uma da outra, Poço da Panela e São Lourenço. Enquanto
que Rodolfo João Barata de Almeida, fiscal de freguesia, cuja atividade
predominante era no centro urbano, obteve dali 97% dos votos que o
elegeram vereador suplente naquele ano. Mas na freguesia dos Afogados,
seu domicílio temporário, teve apenas 21 votos. O que não é muito de se
estranhar, haja vista ser de lá o chefe Manoel J. do Rego Albuquerque,
com votação majoritária de 5.576 votos.
Em termos de representatividade real das alas políticas na CMR,
teríamos a seguinte composição camarária na legislatura de 1845-
1848:

Tabela 1. Eleitos para vereadores do Recife em 1844.


Titulares Votos Suplentes Votos
10. Manoel de Souza
1. José Ramos de Oliveira* 5.175 4.772
Teixeira*
2. Manoel Joaquim do Rego 11. Francisco Carneiro
5.576 4.629
Albuquerque* Machado Rios**
3. Manoel do Nascimento da 12. Antônio José Alves
5.346 4.236
Costa Monteiro* Ferreira***
4. Luis Francisco de Mello
5.381 13. José Egídio Ferreira* 4.150
Cavalcante*
5. Francisco Antônio 14. Joaquim d’Aquino
4.946 4.100
d’Oliveira* Fonseca*
6. Manoel Caetano Soares 15. Rodolfo João Barata de
5.020 4.041
Carneiro Monteiro* Almeida*
16. Gaudino Agostinho de
7. Manoel Coelho Cintra* 4.822 3.420
Barros*
8. José Camello do Rego 17. Francisco Luis Maciel
4.828 3.234
Barros* Vianna*
18. José Higino de
9. Ignacio Nery da Fonseca* 4.847 2.369
Miranda***
19. Antônio Ricardo do
2.303
Rego**
20. M. Pimentel*** 2.153
Total de votos dos titulares 45.941 Total de votos dos suplentes 39.407

199
Entre a província e a nação

Média de votos por eleitos Média de votos por eleitos


5.105 3.582
titulares suplentes
Total de votos dos eleitos Total de votos dos eleitos
44.328 41.020
conservadores liberais
Média de votos por eleitos Média de votos dos eleitos
4.925 3.729
conservadores liberais
Média geral de votos por
Total geral de votos 85.348 4.267
vereador
* Eleitos que assumiram; ** Eleitos que não assumiram; *** Eleitos sem passagem pela
CMR.
Fonte: Adaptado de BN. Hemeroteca Digital. DP, n. 263, p. 3, c. 1, 23/11/1844.

Na tabela anterior, representamos os eleitos pela ordem dos


votos apurados, conformando-os na posição em que ocupariam
as vagas e destacando os nomes dos conservadores em itálico e o
dos liberais em negrito. Muito embora a maioria dos listados seja
do partido liberal, se essa fosse a composição permanente daquela
legislatura, teríamos uma câmara hegemonicamente conservadora,
pois este segundo grupo teve parcela maior de votos e ocupou
as primeiras oito vagas de vereadores titulares. Portanto, nessa
configuração a casa local estaria em antagonismo com o cenário do
governo provincial liberal que imperou em Pernambuco naquele
quadriênio. Mas, destacando-se em asterisco os vereadores que
atuaram ao longo daqueles quatro anos, tivemos nove conservadores
para seis liberais.44 No mais, conforme veremos a partir da análise
geral, houve equilíbrio e não verificamos um reinado absoluto para
uma das alas naquele quadriênio.
Para não ficarmos nesse sugestivo, porém, pontual exemplo,
tentemos um exercício global sobre a posição partidária da CMR ao
longo dos vinte anos aqui estudados. Se a precisão sobre os partidos
políticos em Pernambuco oitocentista não era tarefa fácil, a identidade
dos seus correligionários era ainda mais difícil de ser rastreada. Era o
caso de José de Barros Falcão de Lacerda, um expoente dos movimentos
liberais e emancipacionista das duas primeiras décadas na província,
a respeito de quem não identificamos o vínculo partidário nos anos
em que ele foi eleito vereador do Recife. Nesse mesmo período, aquele
coronel reformado do Estado Maior do Exército transitou nos postos
empregatícios públicos entre os governos conservadores e liberais – o de
44  Dezesseis homens circularam na vereança naquela legislatura. O 16º foi o
conservador Francisco Mamede de Almeida, que não constava na listagem dos primeiros
colocados.

200
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Francisco do Rego Barros (1837-1844) e o de Antônio Pinto Chichorro


da Gama (1845-1848), respectivamente, tendo sido estes presidentes de
província amigos ou companheiro de farda dele no passado.45
Não obstante, foi possível trazer um balanço para cada ciclo de
mandato a partir da recomposição do perfil partidário por legislatura.46
Para o período, identificamos a “posição partidária” de 59 dos 95
vereadores que atuaram ao longo das seis legislaturas estudadas, o que
nos deu uma amostragem real de 62%, percentual interessante para se
traçar um panorama sobre o tema. Segue-se um gráfico com o perfil:

Gráfico 3: Perfil político-partidário por legislatura.


Fonte: Elaborado pelo autor a partir das atas e ofícios da CMR e dos jornais do século XIX
publicados na hemeroteca digital da BN e da CEPE.

Representamos nele o somatório do número de liberais e


conservadores identificados e a quantidade total de vereadores que
circularam em cada legislatura. O último conjunto de colunas do
gráfico traz o total de cada uma dessas entradas. Como um mesmo
vereador poderia se perpetuar em mais de uma legislatura, a soma de
posições partidárias na totalidade dos mandatos foi de 88 identificados,
ou seja, 64% das 137 participações contabilizadas para a edilidade
no período. Assim, entre os identificados, tivemos 47 “mandatos” de
liberais contra 41 de conservadores. Se considerássemos apenas estes
números poderíamos falar em hegemonia liberal. Mas não era bem
assim. Olhando o balanço de cada uma das seis legislaturas, teríamos
45  Nesse período, seu filho mais novo, Pedro Alexandrino de Barros Cavalcanti de
Lacerda, saíra candidato pela chapa baronista, conservadora. BN. Hemeroteca Digital.
Diário de Pernambuco, n. 187, p. 2, c. 3, 30 ago. 1844.
46  Esta não é conclusiva, nem permite um vislumbre preciso da realidade de cada
sessão, ou ano, ou legislatura como um todo, face à natureza da rotatividade dos homens
eleitos para a Casa Local e da não totalidade da amostragem documental que apreciamos.
Alguns casos nos permitem precisar, outros apenas inferir a pertinência política de alguns
vereadores. Quando a dubiedade falou mais alto, optamos por registar a posição de partido
daqueles cujos registros foram possíveis verificar na documentação utilizada. Contudo,
temos uma aproximação da composição política da câmara local, mesmo que parcamente.

201
Entre a província e a nação

um empate na contagem de vitórias: a 1ª, 5ª e 6ª legislatura a favor dos


conservadores, e as outras três para o adversário.
Ainda nesse raciocínio, comparando o número de vereadores que
circularam em cada quadriênio com o dos que conseguimos especificar a
inclinação de partido no nosso quadro acima, não foi possível identificar
a “sigla” de 11, 16 e 13 indivíduos nos três primeiros ciclos eleitorais,
respectivamente. Ou seja, por esses dados, não é possível definir qual
das alas foi vitoriosa em cada um dos quadriênios especificados. Para
as legislaturas seguintes, o número de não identificados se reduz
significativamente, 4, 1 e 4. Nesses casos, é possível arriscar que pelo
menos houve algum equilíbrio de representação de ambas as alas. Por
exemplo, na 4ª legislatura, foram identificadas as inclinações partidárias
de 11 dos quinze vereadores que ocuparam o cargo no período.
Daqueles, sete eram liberais e quatro conservadores. Como ainda
restaram quatro sem identificação, e supondo que todos eles fossem
desse segundo grupo, teríamos uma vitória magra para ele. O quinto
ciclo segue a mesma lógica; já no 6º, a possibilidade de vitória ampla dos
conservadores foi mais plausível, especialmente por conta da derrocada
da Praieira e o interregno de mornidão política dos liberais na província
a partir de então.
A precisão quantitativa dos dados não é animadora, sua análise
não nos permite concluir que uma força hegemônica preponderou na
Casa governativa local, ainda que os indícios apontem para um ensaio
de tendência conservadora. Ademais, interpretação mais qualitativa
desse panorama, somada aos demais perfis e, principalmente, a atuação
dos vereadores e suas correlações com os munícipes em suas demandas
diárias, sugere que a pertença e declaração pública a uma ala partidária
específica tinha mais peso do ponto de vista político-eleitoreiro do que
em seus resultados prático-governativos.
Ainda sobre a tendência partidária, lembremos também que
as principais famílias que atuavam na política local levavam ao pé da
letra o adágio: “dividir para conquistar”, distribuindo seus membros
entre todas as alas partidárias existentes. Como no caso de Joaquim
Carneiro Machado Rios, que aparece como conservador na tabela de
votantes trabalhada anteriormente, mas que era parente dos irmãos
liberais Antônio e Francisco Carneiro Machado Rios. Ademais, havia
certa aproximação e flexibilidade “ideológico-partidária” entre as alas
e no próprio seio familiar a elas pertencente, adotando-se entre os

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

envolvidos as estratégias políticas que ora faziam um indivíduo migrar


para uma ala partidária de oposição, ora compartimentava membros
de uma mesma árvore genealógica entre os partidos existentes. Isso,
aliás, ajuda a compreender parte de outro adágio: “não há nada mais
liberal do que um conservador no poder”. Em todo o caso, adotando-se
esse expediente no palanque ou balança da força, seja de que lado fosse,
sempre poderia ter um representante familiar acenando para os seus.
A análise é parcial, mas vislumbra a heterogeneidade dos
protagonistas em questão – eleitores e vereadores, o alargamento
da participação na política ativa para escolha dos representantes
da municipalidade e a ampliação do acesso aos postos de mando da
cidade no período. O fazer e o viver político não apenas retóricos, mas
manifestos nas linguagens e práticas da cidadania de uma parcela maior
dos indivíduos daquela sociedade, despontaram como empuxo, curto-
circuito ou efeito catalizador de peso e “incentivo” para o processo
(trans)formador e de conquista de direitos civis, e, dentre eles, a
ampliação da participação na escolha dos representantes. Isso passou
a influenciar a balança do poder político-governativo, seja porque uma
gama maior de pessoas poderia fazer parte do jogo político-eleitoreiro,
influenciando com o seu voto os destinos das elites, seja ampliando o
acesso aos postos de comando via representatividade, possibilitando
que indivíduos pertencentes a níveis menos escalonados da sociedade
pudessem ascender a eles. Tudo isso produzia a dialética entre eleição
e representação, sendo ela perceptível aos agentes de ambos os lados da
dominação política: votantes e votados.

Referências:
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Coleção de Leis do Império do Brasil - 1834. Disponível em: <http://www2.
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203
Entre a província e a nação

Acesso em: 06/06/2018.


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COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO (CEPE). O Guararapes.
OMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO (CEPE). O Maccabêo.
HEMEROTECA DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL. A União, anos
indicados.
HEMEROTECA DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL. Almanak
Administrativo, Mercantil e Industrial da Província de Pernambuco para o ano
de 1861. Pernambuco: Typ. de Geraldo de Mira e C, 1861.
HEMEROTECA DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL. Diário de
Pernambuco, anos indicados.
HEMEROTECA DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL. Diário Novo, anos
indicados.
HEMEROTECA DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL. O Capibaribe, anos
indicados.
HEMEROTECA DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL. O Liberal
Pernambucano, anos indicados.
HEMEROTECA DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL. O Lidador, anos
indicados.
INSTITUTO ARQUEOLÓGICO, HISTÓRICO E GEOGRÁFICO
PERNAMBUCANO (IAHGP). Livro de Atas e Acordos da Câmara Municipal do
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Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989.

ANEXO I – Lista de votantes do Recife em 1847 – Boa Vista, S. José e S.


Antônio
Freguesia da Boa Vista
1. Tenente-coronel Antônio Carlos de Pinho Borges Empregado Público
2. Francisco Ignácio de Atahyde Escrivão
3. Dr. Antônio Peregrino Maciel Monteiro Médico
4. Capitão Luiz Antônio Rodrigues de Almeida Proprietário
5. Padre Venâncio Henrique de Almeida Professor
6. Dr. Jerônymo Martiniano Figueira de Mello Juiz de Direito
7. Capitão Maximiano Francisco Duarte Negócio
8. Pedro José Cardoso Escrivão
9. Anacleto José de Mendonça Proprietário
10. José Xavier Faustino Ramos Professor
11. Nicolao Tolentino de Carvalho Artista
12. Antônio Lopes Guimarães Artista
13. Dr. José Thomaz Nabuco de Araújo Júnior Juiz de Direito
14. Capitão Joaquim Carneiro Machado Rios Proprietário
15. José Alves Guerra Negociante
16. Comandante Francisco Antônio de Oliveira Proprietário
17. Tenente Joaquim Correia da Costa Negociante
18. José Maria Freire Gameiro Boticário
19. Tenente Domingos de Sillos Thomé Artista
20. José Ignácio Soares de Macedo Proprietário
21. Manoel Paulo Quintella Proprietário
22. José Victorino de Lemos Duarte Contador

207
Entre a província e a nação

23. Rufino José Correia de Almeida Proprietário


24. Dr. José Nicolao Rigueira Costa Juiz de Órfãos
25. Dr. Vicente Jerônymo Wanderley Médico
26. João Pinto de Lemos Júnior Negociante
27. Dr. Francisco João Carneiro da Cunha Proprietário
28. Antônio Bernarde Rodrigues Sette Negociante
29. Dr. Francisco Rodrigues Sette Advogado
30. Barão de Itamaracá [Tomás Antônio Maciel Proprietário
Monteiro]
31. Capitão Antônio Benedicto de Araújo Oficial do Exército
Pernambuco
32. José Joaquim Bezerra Cavalcanti Proprietário
33. Grigório Antunes de Oliveira Negociante
34. Vicente Antônio do Espírito Santo Proprietário
Freguesia de São José
1. Tenente Thomaz Pereira Pinto Negócio
2. Severino Henrique de Castro Pimentel Negócio
3. Miguel José da Silva Artista
4. Manoel Félix Alves da Cruz Negócio
5. Manoel Ferreira Acciole Empregado Público
6. Manoel José Teixeira Bastos Negócio
7. Manoel de Almeida Lima Proprietário
8. Luiz Francisco Moreira de Mendonça Empregado Público
9. João de Deus Cabral Negócio
10. João Moreira de Mendonça Empregado Público
11. Joaquim José dos Santos Empregado Público
12. José Carlos de Souza Lobo Negócio
13. João Baptista de Sá Artista
14. Joaquim Pedro dos Santos Bezerra Empregado Público
15. João Rodrigues de Moura Negócio
16. José Lúcio Monteiro da Franca Negócio
17. João Domingues da Silva Cirurgião
18. João Saraiva de Araújo Galvão Negócio
19. José Higino de Souza Peixe Farmacêutico
20. Capitão Joaquim Lúcio Monteiro da Franca Negócio
21. João de Brito Correa Artista

208
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

22. Joaquim Clemente dos Santos Artista


23. José Lourenço Bastos Proprietário
24. Joaquim Maria de Carvalho Proprietário
25. José Lopes Rosa Empregado Público
26. Bacharel Joaquim Elviro de Moraes Carvalho Advogado
27. Alferes Ignácio dos Reis Campello Empregado Público
28. Francisco Baptista de Almeida Depositário Geral
29. Francisco Martins dos Anjos Paula Artista
30. Francisco José Vianna Proprietário
31. Caetano Pinto de Veras Empregado Público
32. Antônio Francisco Dias Empregado Público
33. Antônio Francisco Xavier Empregado Público
34. Amaro Benedicto de Souza Negócio
Freguesia de Santo Antônio
1. Padre Vicente Ferreira de Siqueira Varejão Professor Público
2. Tenente-coronel Domingos Affonso Nery Ferreira Empregado Público
3. Coronel Cipriano José de Almeida [Coronel] de 1ª Linha
4. Major Sérgio Tertuliano Castello Branco [Major] de 1ª Linha
5. Capitão Sebastião Lopes Guimarães [Capitão] de 1ª Linha
6. Tenente João Evangelista Nery da Fonseca [Tenente] de 1ª Linha
7. Capitão Claudino Benício Machado Negócio
8. Capitão Mattias de Albuquerque Mello Fiscal
9. Capitão José Joaquim Antunes Despachante
10. Tenente Joaquim Henriques da Silva Negócio
11. Tenente Antônio José Bandeira de Mello Júnior Negócio
12. Tenente Firmino José de Oliveira Empregado Público
13. Alferes Antônio José Rodrigues de Souza Júnior Negócio
14. Dr. Joaquim José da Fonseca Advogado
15. Dr. Affonso de Albuquerque e Mello Advogado
16. Dr. Antônio José Pereira Advogado
17. Dr. Francisco Carlos Brandão Advogado
18. Dr. João José Ferreira de Aguiar Secretário da CM
19. Dr. José Bento da Cunha Figueiredo Lente
20. Dr. Francisco de Paula Baptista Lente
21. Victorino Francisco dos Santos Negócio
22. Luiz Francisco Barbalho Negócio

209
Entre a província e a nação

23. João Antônio de Paula Rodrigues Negócio


24. Antônio Joaquim de Mello Pacheco Procurador da CM
25. Antônio Joaquim de Mello Procurador Fiscal
26. Manoel Camillo Pires Agricultor
27. Luiz Francisco Correa de Brito Escrivão
28. Caetano Gomes de Sá Empregado Público
29. Francisco Lucas Ferreira Despachante
30. João Manoel de Castro Empregado Público
31. Vice-cônsul Antônio da Cunha Soares Guimarães Proprietário
32. Joaquim Teixeira Peixoto Proprietário
33. Alferes Caetano José Mendes Negócio
Fonte: BN. Hemeroteca Digital. O Lidador, n. 217, p. 3-4, c. 2-3, 1, 18 set. 1847. Aparece
também em: BN. Hemeroteca Digital. Diário de Pernambuco, n. 209, p. 2, c. 3, 07 set. 1847.

210
Parte 4
Linguagens e ideias políticas
Linguagens e práticas do republicanismo: a
propaganda republicana e seus impactos na
Província Do Espírito Santo
Karulliny Silverol Siqueira1

Trajetória e consolidação do Partido Republicano no Brasil


As ideias republicanas já permeavam o pensamento político
brasileiro durante a primeira metade do século XIX. Entretanto,
como destacou Marcello Basile, é necessário que não se vincule os
movimentos de teor republicano ocorridos no Primeiro Reinado e na
Regência como precursores do republicanismo que aflorou na década
de 1870, já que foram formulados em contextos históricos específicos.2
A crise política que envolveu liberais radicais na década de 1860,
posteriormente culminou no Manifesto Republicano já no ano de 1870.
No entanto, a partir das análises historiográficas é possível afirmar que,
naquele momento, a aceitação do republicanismo não foi homogênea
em todo o Império. Percebe-se que adesão das províncias ocorreu de
forma gradual e paralela à dinâmica política regional. Neste sentido,
este estudo pretende destacar os principais conceitos utilizados pela
propaganda republicana e a identificação de um destes conceitos na
linguagem local, por meio do estudo de jornais da província do Espírito
Santo.
Foi no Rio de janeiro, em 1870, que o movimento republicano
teve seu ponto de partida com os criadores do primeiro clube. Entre os
nomes que compunham a formação inicial do grupo, estavam Aristides
Lobo, Saldanha Marinho, Limpo de Abreu e Francisco Rangel Pestana.
De acordo com José Murilo de Carvalho, a atuação dos republicanos
foi geograficamente diversificada, sendo a Corte e a província de São
Paulo os principais núcleos no início do movimento. O republicanismo
também foi sentido em algumas províncias como Minas Gerais, Rio
Grande do Sul, Pernambuco e Pará, embora somente em São Paulo
1 Professora de História do Brasil da Universidade Federal do Espírito Santo e
pesquisadora vinculada ao Laboratório de História, Poder e Linguagens na mesma
instituição. É Doutora em História Social pela Universidade Federal do Espírito Santo
(2016) e Visiting Scholar na University of Illinois-EUA durante o estágio de Doutorado
(2015).
2  BASILE, Marcello. O bom exemplo de Washington: o republicanismo no Rio
de Janeiro (c.1830 a 1835). Varia História, Belo Horizonte, v. 27, n. 45, p. 17-45, jun.
2011.

213
Entre a província e a nação

houvesse a formação de um verdadeiro partido que demonstrou


capacidade de organização e de influência eleitoral.3
É importante destacar que autores como George Boehrer,4 José
Murilo de Carvalho e Renato Lessa discutiram e problematizaram
o conteúdo do Manifesto de 1870. Estes autores identificaram que a
maioria das propostas do grupo republicano já estava inserida nos debates
promovidos pelos liberais na década de 1860. A maioria das reformas
discutidas pelos republicanos, como a descentralização administrativa
prevendo a autonomia das províncias, bem como a separação entre Igreja
e o Estado, já eram defendidas pelo Partido Liberal. Além da preexistência
desses ideais na década anterior, Lessa também analisou o caráter retórico
do manifesto e identificou duas características principais: a moderação e
o tom inespecífico do documento. A tática, argumenta o autor, visava
ganhar adesão de diferentes grupos que iam de liberais descrentes com a
monarquia a fazendeiros insatisfeitos com o processo abolicionista.5
Ao longo da propaganda republicana, no Rio de Janeiro e em São
Paulo, surgiram linguagens republicanas bastante distintas. Na Corte,
havia dissidências internas no partido sobre a forma de se alcançar
a República. Era visível a existência de uma linha de pensamento de
caráter moderado liderada por Quintino Bocaiúva, ligada à ideia de que
se atingiria a República de forma gradativa, que, por sua vez, contrastava
com a ala mais radical guiada por Aristides Lobo, defensor de mudanças
políticas imediatas. O conflito era visto até mesmo na redação do jornal
A República, órgão do partido, quando ideais republicanos opostos
abriram muitas vezes espaço para o surgimento de discordâncias dentro
do grupo.6
Além das dissidências internas que existiam no partido da capital
do Império, Marieta Moraes assinala que houve pequena aceitação do
Manifesto de 1870 em outras regiões da província do Rio de Janeiro.

3  CARVALHO, José Murilo de. República, democracia e federalismo Brasil, 1870-


1891. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 27, n. 45, p. 141-157, Junho 2011.
4 BOEHRER, George C. A. Da Monarquia à República: história do Partido
Republicano do Brasil (1870-1889). Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1954,
p. 226 et seq.
5  Renato Lessa salienta ainda que a emergência da propaganda não configurou um
processo de amadurecimento da uma ideia utópica do republicanismo. De acordo com o
autor, o movimento em 1870 exibia a prevalência da ponderação no lugar da utopia que
anos antes esteve presente no discurso republicano dos anos de 1830. LESSA, Renato. A
invenção republicana. Rio de Janeiro: Toopbooks, 1990, p. 38 et seq.
6  BOEHRER, George C. A. Da Monarquia à República... Op. cit., p. 39.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

A autora aponta que, ainda que importantes lideranças republicanas


nacionais fossem daquela província, a atuação dessas figuras se deu
muito mais centrada na Corte. Curiosamente, somente em 1888 foi
fundado o Partido Republicano da Província do Rio de Janeiro.7 Havia,
neste sentido, a distinção entre o movimento republicano no município
neutro com relação ao restante da província.
No mesmo sentido, Sérgio Buarque de Holanda destacou que
na Corte, berço do movimento, o republicanismo alcançou certa
repercussão e receptividade popular. Já no âmbito eleitoral, Buarque
indica que o grupo estava longe de ser expressivo.8 George Boehrer
também assinala as limitações do grupo, ao evidenciar que a atuação
do Partido Republicano na Corte não se consolidou logo no momento
de sua criação. O autor aponta que as dificuldades impostas ao grupo
derivavam do fato de que propagavam um novo ideal de governo para
público que não possuía grande apego ao sentimento republicano.
Com o passar dos anos, o partido teria adquirido maior força política,
contudo, muito menos pela adesão às prerrogativas expostas em seu
programa, do que pelo contexto político propício à difusão da crítica
monárquica.9
Mesmo alguns anos após divulgação do Manifesto de 1870,
ainda não havia indícios de consolidação do movimento republicano
na província fluminense. Nas afirmações de Hildibrando Albuquerque
Junior,10 as dificuldades de organização encontradas pelos republicanos
eram consequências de fatores como o tradicionalismo encontrado
naquela região, além da problemática em torno da escravidão e, ainda,
a falta de orientação filosófica. As proposições de Marieta Moraes
para explicar a lentidão da qual sofria o partido também se mostram
relacionadas a algumas características sociais locais. Para a autora,
era de se supor que a província do Rio de Janeiro, baluarte
do Estado Imperial escravocrata e centralizado, não fosse um

7  Para a autora, foi a abolição o fator crucial para a adesão de muitos monarquistas
insatisfeitos. FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). A República na velha Província:
oligarquias e crise do estado do Rio de Janeiro (1889-1930). Rio de Janeiro: Rio Fundo,
1989, p. 14.
8  HOLANDA, Sérgio Buarque de. Do Império à República. t. 2, v. 5. São Paulo: Difel,
1972, História Geral da Civilização Brasileira, p. 265 et seq.
9  BOEHRER, George C. A. Da Monarquia à República... Op. cit., p. 29.
10  JUNIOR, Hildiberto R. C. O Republicanismo fluminense: 1887-1891. Dissertação
(Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 1974, p. 15.

215
Entre a província e a nação

terreno particularmente fértil para as ideias liberais e vagamente


democráticas defendidas pelos propagandistas republicanos.11

Em 1873, ao perceber a necessidade de remodelação do grupo,


uma comissão central dos republicanos foi organizada visando o
planejamento da União Republicana Federal, com a qual pretendiam
centralizar um clube principal no Rio de Janeiro, onde haveria reuniões,
além de ações em prol da educação popular por meio de conferências
públicas. No entanto, o plano da União Republicana não foi levado à
frente.
Como destacou José Murilo de Carvalho, os republicanos
utilizavam os mesmos meios de propaganda que os partidos
monárquicos, concentrando-se em livros, panfletos, jornais e
conferências públicas.12 A difusão da ideia republicana, no entanto,
ainda parecia carecer de maior organização. Foram várias as tentativas
de consolidação de um partido em nível nacional, mas a própria divisão
do partido Republicano em sessões provinciais acabava destacando as
especificidades do movimento em diferentes localidades.13
No ano de 1878, com a volta dos liberais ao poder, vários membros
do partido Republicano retornaram ao partido Liberal, que agora
estava liderando a situação política. Durante os dez anos de ostracismo,
liberais e republicanos tinham um inimigo comum, os conservadores.
Entretanto, como destacou Campos Sales, com a emergência do gabinete
Sinimbu, o grupo republicano adentrou em novo contexto político que
alarmou os propagandistas para a necessidade de reformulação do
grupo.14
A partir de 1880 novos membros ingressaram no Partido
Republicano na Corte. Dentre eles, destacavam-se Lopes Trovão, José
do Patrocínio, Silveira Lobo, Teixeira Mendes e Miguel Lemos. O grupo
tentou novamente eleger republicanos para os cargos do governo.
Novos jornais como O Republicano e O País passaram a incorporar
a propaganda republicana no Rio de Janeiro, mas, somente em 1888,
11  FERREIRA, Marieta de Moraes. A República na velha Província... Op. cit., p. 34.
12  CARVALHO, José Murilo de. República, democracia e federalismo Brasil... Op. cit.,
p. 142.
13  FERNANDES, M. F. L. A Esperança e o Desencanto: Silva Jardim e a República.
São Paulo: Humanitas, 2008, p. 54.
14  George Boehrer assinala que, a partir desse contexto político, os membros que ali
permaneceram viram na assinatura de um termo de compromisso e adesão à solução para
fortificar o grupo e cessar tais deserções.

216
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

durante o Congresso Republicano Provincial, foi fundado o Partido


Republicano da Província.
Foi com a nova organização do grupo que os republicanos criaram
também novas estratégias para acelerar a divulgação do republicanismo,
afirma Boehrer.15 Nesse período foi fundado um comitê executivo na
Corte e uma assembleia constituinte que discutiu a criação da função de
delegados que atuariam nas paróquias, a fim de recrutar membros para
o partido. Outra novidade na estratégia dos republicanos foi a divisão
do grupo em unidades, o que parecia destoar das ações anteriores, que
viam a fragmentação dos republicanos como uma ameaça à coesão do
partido.
Apesar da difusão do republicanismo na Corte, a maioria dos
autores citados neste estudo aponta São Paulo como a província mais
importante em termos de propaganda republicana e organização do
movimento contra a monarquia. Desde a década de 1870, já muito
unificado, o grupo republicano paulista teve forte adesão, optando pela
atuação independente do grupo localizado no Rio de Janeiro. Sérgio
Buarque destacou São Paulo como a localidade com maior número
de republicanos, e, sobretudo, com maior capacidade de organização
política.16 A partir das alianças políticas que ocorreram no período, o
grupo paulista passou a influenciar os resultados eleitorais. Na visão
de Joseph Love,17 mais importante do que a publicação do Manifesto
em 1870, a obra A Província, escrita por Tavares Bastos, teve papel
crucial na divulgação do ideal federalista dos paulistas, pois apresentava
um programa político baseado na autonomia provincial que atraiu os
cafeicultores de São Paulo.
Foi no Congresso realizado em Itu, no ano de 1873, que ocorreu
de fato a formação estratégica e organizacional do Partido Republicano
Paulista. Além das bandeiras levantadas no Manifesto publicado na
Corte, como a liberdade e os direitos individuais, o republicanismo
em São Paulo assumiu firmemente a bandeira do federalismo. Nesta
reunião os republicanos decidiram pela representação dos municípios
por meio dos delegados e elegeram uma comissão permanente que
guiaria o partido. Entre os nomes de peso do grupo paulista estavam
Campos Sales, João Tibiriçá e Assis Brasil. Na visão de Boehrer, o
15  BOEHRER, George C. A. Da Monarquia à República... Op. cit., p. 30.
16  HOLANDA, Sérgio Buarque de. Do Império à República... Op. cit., p. 265.
17  LOVE, Joseph. A locomotiva: São Paulo na federação brasileira 1889-1937. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 150.

217
Entre a província e a nação

republicanismo em São Paulo não se caracterizava como um mero


movimento intelectual, sublinhando a atuação e a organização partidária
do grupo quando comparado ao Rio de Janeiro.
A literatura que enfatiza a coesão como fator de desempenho
do partido paulista foi problematizada por Silvana Mota Barbosa.18
Nas indicações da autora, após suas pesquisas sobre o movimento
republicano na imprensa de Campinas, tal ideia lhe pareceu fundada
a partir da leitura unilateral da política. Esses relatos foram, segundo
Barbosa, subsidiados pela versão oficial do movimento que foi construída
pelo próprio Partido Republicano Paulista. A narrativa empreendida
pelo grupo visava acentuar a individualidade do republicanismo em
São Paulo e destacar a importância do Partido Republicano de São
Paulo. O argumento de coesão, destaca a autora, embasou a maioria das
explicações sobre o movimento naquela província, retirando de cena
possíveis vestígios que indicassem divergências internas no pensamento
republicano paulista.
De acordo com Casallecchi, que também fortifica a tese da
supremacia paulista, a trajetória proeminente do republicanismo em
São Paulo indica que as diferenças com o movimento da Corte não se
davam somente no fator organizacional, mas também pela distinção de
propostas do Partido de São Paulo:
o Rio se apegava às reivindicações do manifesto de 1870, relativas
aos direitos e liberdades individuais, à soberania do povo, à verdade
democrática. São Paulo dava ênfase ao federalismo, à autonomia
provincial, medidas que se vinculavam aos interesses dos grandes
proprietários.19

Embora os dois partidos tenham enfatizado propostas políticas


que corroboravam suas necessidades locais, é necessário salientar que
as propostas mencionadas por Casallecchi não seriam conflitantes.
O estudo de Daiane Elias sobre as linguagens políticas republicanas
demonstra que, dentre as três correntes que disputavam espaço na
discussão sobre a República, a proposta exibida pelos republicanos
de matriz liberal americana mostrou-se vitoriosa na consolidação
da República, exatamente por apresentar linguagem e pensamento
18 BARBOSA, Silvana Mota. República das Letras: discursos republicanos na
província de São Paulo (1870-1889). 1995. Dissertação (Mestrado em História). Programa
de Pós-graduação em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995, p. 13.
19  CASALECCHI, José Ênio. O Partido republicano paulista: 1889-1926. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 45.

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coesos.20 As propostas do republicanismo liberal americano conseguia


abarcar tanto o grupo de Quintino Bocaiúva na Corte, como também as
ideias federalistas de Alberto Sales e Assis Brasil em São Paulo.

A linguagem política republicana durante a propaganda


Durante a propaganda republicana, é possível afirmar que
algumas ideias em comum deram a tônica do debate que criticou os
malefícios da monarquia nos últimos anos do Império. Concordamos
aqui com as premissas dadas por José Murilo de Carvalho ao enunciar a
variação de linguagens políticas entre os propagandistas republicanos
– liberal americana, positivistas e jabobinista –, pois nos permite
evidenciar projetos políticos diferenciados. Cada grupo formulou um
modelo de República distinto cabível em suas demandas próprias.
Dentre os termos mais abordados pelos republicanos das diferentes
vertentes, serão discutidos brevemente os de maior peso nos debates
políticos a fim de apresentar as características básicas da linguagem
republicana.
Os primeiros conceitos a serem destacados são democracia e
representatividade. Como assinala Carvalho, os conceitos de república
e democracia estavam amplamente relacionados no Manifesto de 1870.
Para os republicanos, a democracia significava o “governo do país
por si mesmo” e a soberania popular alcançada pela representação.21
Assim, era inconcebível acreditar no sistema misto de governo que
agregava representação popular e hereditariedade do chefe de estado
na Constituição. Dos teóricos republicanos que enfatizaram o caráter
democrático da República, destaca-se o grupo dos republicanos
de matriz liberal americana. Na obra de Assis Brasil, A República
Federal, por exemplo, república e democracia podem ser entendidas
como sinônimos. De acordo com Assis Brasil, republicano paulista, a
República seria o único regime em que se encontra a democracia, em
que se tem, de forma clara, o governo de “todos por todos”.
Por isso, só ha democracia na república; por isso deixo já de
considerar a distinção, admitida por alguns, entre república

20  Cf. ELIAS, Daiane. Imagens Opostas: a nova linguagem política republicana e a
queda do Brasil Império (1870-1891). Dissertação (Mestrado em História). Programa de
Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
21  CARVALHO, José Murilo de. República, democracia e federalismo Brasil... Op. cit.,
p. 145.

219
Entre a província e a nação

democrática e aristocrática. Toda república é democrática, isto é, é o


governo de todos por todos, sem distinção de classes, de fortunas ou
de qualquer outro gênero.22

Para Quintino Bocaiúva, republicano da Corte, a democracia e a


República também eram conceitos similares. Já o ideário republicano
de Silva Jardim que, embasado na matriz jacobina, mesclava a filosofia
histórica comteana agregada a ideias radicais, contrastava com o
posicionamento conciliatório e evolucionista do presidente do partido,
Quintino Bocaiúva. Em 1889, Jardim indicou a falta de legitimidade
de Bocaiúva como líder do partido, acusando-o de representar ideias
republicanas retrógadas, ainda atreladas às propostas do Manifesto de
1870.23 A preocupação de Jardim, segundo José Murilo de Carvalho,
era denunciar a falta de clareza entre os ideais do Partido Republicano
e os do Partido Liberal, pois na maioria das vezes, confundiam-se
exatamente no que se relacionava ao conceito de democracia.
A representatividade era também assunto que dividiu os republicanos.
Para Renato Lessa, o discurso republicano foi bastante moderado diante
das propostas de redução do eleitorado e sobre a participação do povo no
debate político. No modelo de república liberal americano, a participação
popular não demonstrou ser a maior prerrogativa das aspirações do
grupo. Nas palavras de Assis Brasil, “na democracia todos os poderes
públicos são delegações do povo, que, para tal fim, elege funcionários por
tempo indeterminado [...]. O povo, neste sentido, delega o poder para ser
representado”.24 A incorporação do povo na política e as atitudes mais
contundentes com relação à participação popular vieram, na verdade, dos
republicanos mais radicais como Silva Jardim, que defendiam a participação
popular direta, embasada no conceito de liberdade dos antigos.25
Um outro conceito a ser analisado neste contexto é o vocábulo
abolição. Embora a abolição estivesse presente nas propostas dos liberais
radicais desde a década de 1860, o movimento que levou os radicais ao
republicanismo acabou por afastá-los da discussão. De acordo com José
Murilo de Carvalho, a passagem para o republicanismo demonstrou um
retrocesso com relação à profundidade das reformas antes propostas

22  BRASIL, Assis. A república federal. Rio de Janeiro: G. Leuzinger, 1881, p. 3.


23  CARVALHO, José Murilo de. República, democracia e federalismo Brasil... Op. cit.,
p. 148.
24  BRASIL, Assis. A república federal... Op. cit., p. 3.
25  LESSA, Renato. A invenção republicana... Op. cit., p. 37.

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pelos radicais.26 Entre diversos temas que desapareceram da agenda


republicana a partir de 1870, a escravidão figurou uma das principais
ausências.
A preocupação dos republicanos residia na provável rejeição dos
proprietários de escravos, o que levou o partido a não se posicionar
claramente sobre a escravidão, a fim de garantir a participação de
fazendeiros no grupo, como sustentou José Maria Santos.27 Com o
crescimento do movimento abolicionista, o grupo republicano da Corte
precisou se posicionar diante do debate. O pensamento evolucionista
do republicano liberal Quintino Bocaiúva também se traduzia em suas
falas sobre a abolição, indicando que a solução para a questão servil
se daria de forma gradual, no momento oportuno.28 Até meados de
1887, tanto republicanos da Corte, quanto os paulistas, pareciam evitar
compromisso com a resolução do problema. O Partido Republicano de
São Paulo chegou a assinalar o caráter social da questão, na tentativa de
retirá-lo do debate partidário dos republicanos:
a questão não nos pertence exclusivamente porque é social e não
política: está no domínio da opinião nacional e é de todos os
partidos, e dos monarquistas mais do que nossa, porque compete
aos que estão na posse do poder, ou aos que pretendem apanhá-lo
amanhã, estabelecer os meios do seu desfecho prático.29

Em trechos da obra A República Federal, Assis Brasil também


identifica a escravidão como assunto que demandaria análises específicas
de cada província, como parte de sua autonomia e, por isso, talvez,
não caberia ao partido resolver o problema. Destacava o republicano
de São Paulo: “Tenho plena convicção de que a questão do elemento
servil já não existiria no Brasil, si nós fossemos uma republica federal.
A escravidão seria primeiramente abolida pelos estados que dela menos
precisarem”.30
26  CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lucia Maria. Radicalismo e republicanismo.
In.: CARVALHO, José Murilo de. NEVES, Lucia Maria (org.). Repensando o Brasil do
oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.
41.
27  Cf. SANTOS, José Maria dos. Os republicanos paulistas e a abolição. São Paulo,
Livraria Martins, 1942.
28 BOCAIÚVA, Quintino. Idéias políticas de Quintino Bocaiúva: cronologia,
introdução, notas bibliográficas e textos selecionados. v. 1. Brasília: Senado Federal; Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986, p. 568.
29  Manifesto do Partido Republicano Paulista de 1873. In.: PESSOA, R. C. A idéia
republicana através dos documentos. São Paulo: Alfa-Ômega,1973, p. 65.
30  BRASIL, Assis. A república federal... Op. cit., p. 229.

221
Entre a província e a nação

O grupo dos republicanos de matriz positivista parecia dar peso


maior à questão abolicionista. Como argumenta Angela Alonso, a
reprovação filosófica da escravidão por parte dos positivistas ortodoxos
vinha da ideia dessa instituição como reminiscência colonial, o que
negava a cidadania plena na sociedade brasileira. A extinção da
escravidão adquiria, desta forma, o sentido de retirar o elemento arcaico
do meio social, em direção ao progresso.31
Foi somente durante o Congresso Republicano Federal, em 1887,
que os republicanos passaram a apoiar a abolição, sem, contudo, tocar na
questão da indenização dos proprietários.32 Após o 13 de maio, assinada
a Lei Áurea, os republicanos se viram preocupados com a popularidade
alcançada pela princesa Isabel. Como destaca Milene Costa,33 foi o
momento em que os republicanos paulistas voltaram seu foco para a
descentralização como arma política contra a ordem imperial.
Por fim, mas não esgotando o arcabouço linguístico fomentado
pela propaganda republicana, destaca-se o conceito de federalismo.
A demanda pelo federalismo foi uma ideia unânime dentro dos
republicanismos fluminense e paulista, e, foi, inclusive, anos anteriores,
bandeira política do liberal Tavares Bastos ao discutir a temática da
descentralização.34 Ao comparar a atuação dos núcleos republicanos
na Corte e em São Paulo, torna-se interessante ressaltar a afirmação de
José Murilo de Carvalho, ao indicar o liberalismo como fio condutor
do movimento republicano no Rio de Janeiro, enquanto o federalismo
compôs o repertório principal do republicanismo paulista.35 São Paulo,
a província mais próspera do Império, necessitava agora de ampliação
de seu poder político, requerendo autonomia política e administrativa.
O Manifesto de 1870 já mencionava a necessidade do princípio
federativo. Tal prerrogativa aparecia no documento como demanda da
territorialidade brasileira, acentuando que a autonomia das províncias

31 ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-


Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 212.
32  CARVALHO, José Murilo de. República, democracia e federalismo Brasil... Op. cit.,
p. 144.
33 COSTA, Milene Ribas da. A implosão da ordem: a crise final do Império e o
Movimento republicano paulista. 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência Política).
Programa de Pós-graduação em Ciência Política, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2006, p. 34.
34  Ibidem, p. 149.
35  Cf. CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados: escritos de história e política.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

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facilitaria o crescimento da nação e resguardaria as particularidades


locais. Já em São Paulo, os republicanos viam no federalismo o fim da
exploração por parte do poder central.36 Dentre as correntes republicanas
que estavam disputando espaço no debate político, os republicanos
liberais foram os que mais enfatizaram a necessidade do federalismo e
da autonomia provincial. A ênfase a este ideal, no entanto, foi dada pelos
republicanos paulistas. Alberto Sales foi um dos principais defensores
do ideal federalista entre os republicanos.
Embora o aspecto econômico seja destacado pela historiografia
como fator crucial na busca pelo federalismo dos republicanos
paulistas, Milene Costa destaca que sozinho esse elemento não é
capaz de explicar a defesa do federalismo por parte de Sales.37 Na obra
Cathecismo Republicano,38 Sales evidenciou o papel das províncias e
do poder central dentro da federação. O autor denominou o Estado
como órgão especial do poder político, o “cérebro no indivíduo”, cuja
finalidade estava na execução das relações gerais. Já as províncias e
municípios estariam incumbidos da inspeção e direção de seus próprios
negócios. O republicano paulista afirmava, em A Política Republicana,
que a federação seria o único regime político capaz de unir a ordem e o
progresso.39
É possível também encontrar referências ao federalismo nos
escritos de Assis Brasil. Na obra A República Federal, o autor destacou
que a federação seria o único sistema político que garantiria autonomia
nos assuntos privativos de uma localidade. Para Assis Brasil, Estado,
município e província, possuíam interesses em esferas diferenciadas.
Por isso, a federação, em sua visão, seria a única forma de garantir a
unidade do país:
assim, a federação firma a união naquilo em que ela realmente existe
e deve existir, e garante a autonomia naquilo em que ela é necessária
para a própria existência da união. É o único modo natural, e,

36  VASCONCELOS, Rita de Cássia. O Partido Republicano do Rio de Janeiro e o


Partido Republicano de São Paulo: uma análise sobre o(s) conceito(s) de república(s) 1870-
1889. Cadernos de História, ano IV, n. 2, p. 26, 2009.
37  COSTA, Milene Ribas da. A implosão da ordem... Op. cit., p. 12.
38 SALES, Alberto. Catecismo Republicano. In.: VITA, Luiz Washington. Alberto
Sales ideólogo da República. São Paulo: Nacional, 1885, p. 59 et seq.
39 SALES, Alberto. A Política Republicana. In.: CARVALHO, José Murilo de.
República, democracia e federalismo Brasil, 1870-1891. Varia hist, Belo Horizonte, v.
27, n. 45, p. 149, jun. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S010487752011000100007&lng=en&nrm=is>.

223
Entre a província e a nação

por isso, o único possível, de efetuar-se a verdadeira unidade. É a


unidade sem prejuízo da variedade, como no seio da natureza ela
existe e se manifesta em todos os seres vivos.40

A partir do empenho dos autores, é perceptível que o


Partido Republicano de São Paulo tendia a valorizar a temática da
descentralização. Nas proposições de José Murilo de Carvalho, a
busca pelo federalismo naquela região evidenciou o real interesse
dos paulistas diante do fator econômico, em detrimento da luta pela
liberdade do povo.41 Para o autor, a defesa, por parte dos paulistas, do
liberalismo como praticado na Inglaterra do século XVII aponta que a
aspiração do grupo era um governo a serviço de seus interesses, e não a
ausência de governo. Demandas como os direitos individuais e governo
representativo não eram suas maiores preocupações.
Como acentua Milene Costa, o grupo republicano de São Paulo
era formado majoritariamente por proprietários de terra ligados à
produção de café. A centralização monárquica, neste sentido, era
vista como empecilho para esses homens.42 Além disso, havia um
descompasso entre o poder econômico e a representação política paulista
nas instituições políticas imperiais.43 Para os republicanos de São Paulo,
a República representava o início de maior representatividade política
e a tomada de decisões por parte do poder local, em prol de melhorias,
retirando os empecilhos para sua ascensão econômica. O vocabulário
político propagado pelos impressos e intelectuais paulistas e também
os elementos vindos da Corte adentraram as demais províncias.
Analisamos, deste modo, como a província do Espírito Santo interpretou
parte do repertório linguístico da época, direcionando a linguagem para
suas demandas políticas internas.

A república como municipalidade: o conceito de federalismo na


província do Espírito Santo
Concordamos neste estudo com autores que identificam
a continuidade dos elementos de 1860 nas propostas do grupo
republicano que emergiu em 1870. Destacamos, no entanto, que na
província do Espírito Santo, as discussões políticas se deram de forma
40  BRASIL, Assis. A república federal... Op. cit., p. 201.
41  CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados... Op. cit., p. 180.
42  COSTA, Milene Ribas da. A implosão da ordem... Op. cit., p. 32.
43  Ibidem, p. 51.

224
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

bastante específica. Contrastando com a Corte, o radicalismo não se


destacou nas propostas e na linguagem política da província, agindo
como entrave à discussão de tais ideias reformistas ainda em 1860. De
fato, no Espírito Santo, as “ideias novas” e a linguagem de crítica ao
Império só se sobressaíram a partir de 1870, com a ampliação da esfera
literária e da atuação de nova geração política na imprensa.
Foi por meio da imprensa, sobretudo no jornal O Cachoeirano que
os republicanos indicavam falhas e incompetências na administração
provincial, criticando a rotatividade dos presidentes de província, e,
ao mesmo tempo, apontavam irregularidades na divisão das rendas
provinciais por parte desses administradores. Na visão dos republicanos,
o presidente direcionava a renda quase sempre para os seus partidários.
Uma das questões mais discutidas pelos críticos da monarquia na
região sul da província foi a desvalorização das municipalidades. Para
os propagandistas, o Império fazia das câmaras municipais verdadeiras
nulidades, dependentes do poder monárquico.44 Com maior autonomia
no âmbito municipal, os republicanos acreditavam que problemas, como
o desprezo à instrução primária, por exemplo, poderiam ser sanados.
Em relação a esse assunto, o jornal republicano apresentou o exemplo
de São Paulo para mostrar que a melhor solução para os problemas na
instrução primária seria, procedendo como aquela província, entregá-
la à esfera das municipalidades.45
A condução das discussões sobre o orçamento municipal por
parte da Assembleia provincial também gerou diversas denúncias na
imprensa republicana. Em 1884, por exemplo, o legislativo votou pelo
aumento de alguns impostos e criou novas taxações.46 Os redatores
d’O Cachoeirano formularam a comparação entre os impostos do
orçamento municipal dos biênios de 1883/1884 e 1884/1885, indicando
não somente a elevação das taxas, como também a inconstitucionalidade
de novos impostos.47 A proposta da Assembleia para a arrecadação
das municipalidades causaria prejuízo em diversas áreas, afetando
o comércio em geral, como farmácias, drogarias, lojas de fotografias,
tipografias, açougues e, sobretudo, os que trabalhavam com qualquer
gênero de exportação. Revelavam ainda que alguns impostos eram
cobrados de forma diferente a depender da localidade. A taxa sobre abate
44 Cf. O Cachoeirano, n. 31, 20 jul. 1888.
45 Cf. Idem, n. 5, 5 fev. 1888.
46 Cf. A Província do Espírito Santo, n. 489, 22 abr. 1884.
47 Cf. O Cachoeirano, n. 24, 22 jun. 1884.

225
Entre a província e a nação

de animal, por exemplo, em Vitória era menor que em Itapemirim.48


Evidenciava-se, neste sentido, o prejuízo dos municípios se comparados
à situação da capital.
Durante a propaganda, a fim de intensificar a necessidade da
autonomia administrativa, os republicanos acusavam os monarquistas
de promoverem um governo irresponsável, repleto de “parasitas”.
Na visão dos propagandistas, a República era o governo das
responsabilidades individuais, o governo dos que trabalham para o
bem geral, o qual geraria nobreza aos cidadãos brasileiros. Além disso,
afirmavam que os partidos monarquistas não possuíam elementos
necessários para implementar uma reforma no Brasil. A reorganização
do país precisava ser feita pelos republicanos. O único sistema no qual
as ideias se tornariam realizáveis seria aquele que garantiria a ampla
autonomia dos municípios:
no Sistema republican há um todo de ideias homogêneo, coordenado;
a realização delas implica a inauguração do sistema. Na engrenagem
monárquica as ideias tornam-se verdadeiramente irrealizáveis [...].
Federadas as províncias, é de mister restituir às municipalidades
a vidaa mpla que devem ter; ora, imprimir-lhes semelhante
movimento, é fracionar ou anular completamente a solidariedade
que a uneao centro de opressão e tanto basta para que a monarquia
se oponha. Ou a província representará em escala menor o estudo
com todo o cortejo de vexações, ou reviver nas municipalidades as
comunas; no primeiro caso há federação e no segundo há federação,
mas incompatível com o imperialismo. [...] A república é a solução
única, imediata e necessária do problema atual, queira ou não queira
a liga monárquica.49

O federalismo era usado na linguagem política republicana de


O Cachoeirano para denunciar a centralização excessiva do estado
monárquico e evidenciar a demanda por autonomia que não estaria
restrita apenas à província, mas também aos municípios. Para os
republicanos do sul do Espírito Santo, a retórica que engajava o
federalismo na propaganda local trazia também em si a valorização
das câmaras municipais diante das prerrogativas políticas, o que
demonstra a demanda pela valorização do município de Cachoeiro
de Itapemirim. Assim como na linguagem federalista paulista, os
republicanos de Cachoeiro também padeciam do descompasso entre
48  Dentre os aumentos nos impostos para aquele ano, houve ainda a criação da taxa
que instituia imposto de 50 réis a cada 50 kilos ou 80 litros de produto exportado. Cf. O
Cachoeirano, n. 34, 31 ago. 1884.
49 Cf. Idem, n. 37, 09 set. 1888. Grifo nosso.

226
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

poder econômico e poder político. Mesmo com posição de destaque


na produção cafeeira, a tomada de decisões ainda era feita por políticos
da capital.
Os partidários da causa republicana explicavam ao povo capixaba
que desejavam a república federal porque apenas nessa forma de governo
as províncias possuiriam a prerrogativa de nomear seus governadores,
assim como administradores nos municípios. Era a federação, segundo
eles, que definia a função do Estado como garantidor de direitos,
respeitando as autonomias, derrubando a prevalência do centralismo
político, que, para os republicanos, apenas sustentava a aristocracia
burocrática: “a república federal é a distribuição da vida por todo corpo
social”.50
É interessante destacar a significação do conceito de federalismo
para os republicanos que redigiam O Cachoeirano. Se por um lado
a federação passa a compor a tônica do debate requerendo maior
autonomia provincial, por outro, seu uso também denuncia que, para a
consolidação de tal autonomia, também era necessário o fortalecimento
das municipalidades, por meio do redirecionamento da condução da
política local para Cachoeiro de Itapemirim, e não para a capital. As
indicações de Renato Lessa auxiliam na compreensão do conceito
de federalismo para republicanos.51 Para o autor, ao contrário dos
americanos, os republicanos no Brasil apresentaram o federalismo sem
relação alguma com a tradição liberal e individualista. Lessa ressalta que
na perspectiva republicana brasileira os direitos não eram requeridos
pelos indivíduos, mas transferida da centralização imperial para as
províncias. A ideia federalista, no sentido brasileiro, significava novas
formas de domesticação e exclusão do demos. Em O Cachoeirano,
destaca-se, na maioria das vezes, esse mesmo ideal, no qual o federalismo
concebia a maior representação política do sul em detrimento dos
interesses políticos da capital.

Os republicanismos ressignificados
Destaca-se, neste sentido, as trajetórias distintas do republicanismo
em diversas províncias. A historiografia acerca do movimento
republicano evidencia que a formulação deste ideário não teria se dado

50 Cf. O Cachoeirano, n. 8, 24 dez. 1889.


51  Cf. LESSA, Renato. A invenção republicana... Op. cit.

227
Entre a província e a nação

de forma homogênea. Foi de forma gradual e destacando características


locais que os grupos republicanos consolidaram sua agenda política e
as críticas à monarquia. As especificidades salientadas relacionavam-se
diretamente com as demandas de cada província, e até mesmo com a
composição da elite política vigente. Além disso, a província do Espírito
Santo, destacada aqui como estudo de caso, demonstra a ressignificação
dos elementos presentes na propaganda divulgada na província de São
Paulo e na Corte. Assim, no ambiente local, o republicanismo compôs
a linguagem política que apresentava também os conflitos políticos
internos da província e não somente a derrubada do Imperador.

Referências:
Fontes:
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Espírito Santo, anos indicados.
HEMEROTECA DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL. O Cachoeirano,
anos indicados.

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229
“Um sonho impossível”: o fim da escravidão no
Brasil nas páginas de O Constitucional – órgão
do Partido Conservador do sul do Espírito
Santo
Geisa Lourenço Ribeiro1

A edição do dia 20 de maio de 1888 do jornal O Constitucional foi


especialmente dedicada à abolição da escravatura. A primeira página
foi reservada à impressão da “imorredoura” Lei 3.353, de 13 de maio.
No início da página seguinte, há um artigo intitulado “A Pátria Livre”
dedicado ao fim da escravidão no Brasil que ocupa mais da metade das
colunas reservadas às notícias. Vejamos alguns trechos selecionados:
Não há mais escravos no Brazil, eis a exclamação que irrompe de
todas as boccas! [...]

Tudo isso parece um sonho, um impossível. [...]

Ninguem mais se recusará á emigrar para a nossa terra natal.

O trabalho nobilitou-se, só tem um estimulo: a ambição da


independência.

Desátaram-se as correntes que entorpecião o caminhar do carro do


progresso.

[...] A abolição da escravidão se fez sem que fosse derramada uma


só gota de sangue. [...]

Que lição sublime demos a humanidade![...]

Ressurgi de vossos túmulos manes [sic] de Eusebio de Queiroz, Rio


Branco e José Bonifácio. [...]

O que se está passando é fructo de vossa obra também.

Sete de Novembro de 1831 e 28 de Setembro de 1871 são os

1  Professora de História do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) - campus Viana,


doutoranda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo e pesquisadora
vinculada ao Laboratório de História, Poder e Linguagens (UFES).

231
Entre a província e a nação

precursores de 13 de Maio de 1888. [...]

Os tres golpes de morte da escravidão por honra nossa se deram


pela propaganda pacifica e prudente que incutiu no animo do povo
a convicção da necessidade da extirpação de um cancro que nos
corroía. [...]

O acontecimento cresce de vulto si attentarmos que elle representa


grande diminuição na fortuna particular, porquanto o facto se
realisou sem imdemnização por parte do Governo e acutalmente
nenhuma voz a reclamou.

[...] Felicita os libertos de 13 de Maio e incita-os a que trabalhem


para que cada vez mais se eleve o nosso caro Brazil.2

Considerando apenas este artigo, o fim da escravidão no Brasil


parece ter resultado da vontade geral da população brasileira que
reconhecia os malefícios daquela instituição para o país: uma barreira
para o progresso e para a imigração. Superado esse obstáculo, o
trabalho estaria nobilitado e o país aparecia mais do que regenerado
diante do mundo civilizado, pois havia lhe dado uma sublime lição.
Diferentemente dos Estados Unidos, onde a escravidão acabou em
meio à “guerra fratricida”, e das colônias europeias, onde também
houve conflitos, sublevações e/ou ou ressarcimento aos proprietários,
no Brasil a instituição fora abolida “sem sangue” e sem indenização
pela generosidade dos brasileiros. Repousa nesse “sonho impossível”,
mas tornado realidade graças ao caráter pacífico e benevolente do povo
guiado por estadistas como José Bonifácio, Eusébio de Queiroz e Rio
Branco, a felicidade geral da nação. Essa é a impressão que uma leitura
individual do artigo ou da edição especial deste jornal sugere. Afinal,
todas as exclamações de júbilo e alegria quase ocultam as contradições
presentes no próprio texto.
O articulista faz um resgate histórico do processo, lembrando
dois pontos fundamentais: a proibição do tráfico, ocorrido em 1831, e a
libertação do ventre, em 1871. Rio Branco, presidente do Governo que
aprovou a lei de 28 de setembro, é lembrado; bem como se relaciona
Eusébio de Queirós à proibição do tráfico no período regencial, sendo
que ele está diretamente envolvido na repressão a esse comércio somente
a partir de 1850. O patrono da Independência é citado de forma geral,
já que antecipou ideias sobre essas duas leis, na década de 1820, mas o
2  O constitucional, n. 5, p. 2, 20 mai. 1888.

232
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

ministro Feijó, que emprestaria o nome à lei de 1831, foi ignorado –


possivelmente por não integrar o grupo dos Saquaremas, que dariam
origem ao Partido Conservador e que possuíam posição pró-escravista
naquele momento. Para além da narrativa que liga a felicidade geral
da nação ao trabalho de um único partido, destaca-se que o articulista
relaciona a abolição da escravidão em 1888 a eventos iniciados há mais
de meio século ao mesmo tempo em que afirma que o preconceito que
impedia o golpe final contra a instituição desvaneceu “bem depressa”.
Estaria ele afirmando que os cinquenta anos passaram rapidamente
ou se referia apenas aos últimos anos da década e, desta forma,
estabelecendo uma divisão em relação ao período anterior? Seja como
for, essa contradição é ressaltada, mas, de certa forma compreendida,
quando se considera a posição do jornal pouco antes daquela edição.
O Constitucional, publicado no sul da província do Espírito Santo
entre os anos 1885 e 1889, declarava-se “órgão do Partido Conservador”.3
De fato, seu conteúdo refletia a posição do Partido, que não pode ser
compreendida apenas pela edição comemorativa de 20 de maio de 1888.
Se as principais leis emancipacionistas foram produzidas em gabinetes
conservadores, o esforço do Partido esteve durante todo o período na
direção de preservação da escravidão. As reformas, pressionadas por
uma combinação de elementos internos e externos, foram realizadas
no intuito de dar novo fôlego à instituição. Os antiescravistas eram,
então, criticados pelos conservadores como antipatriotas, uma vez que
procurava-se vincular a defesa da escravidão à segurança e riqueza
da lavoura. A oposição ferrenha à abolição só é alterada quando
a instituição se revela insustentável e, ainda assim, houve quem a
defendesse até a última hora e cobrasse após a consumação do fato seus
“direitos” como proprietário. Um artigo de 1885 evidencia a posição
crítica dos conservadores aos antiescravistas. O articulista lamentava a
“Suprema Degradação” do país naquele momento no qual o Governo
Dantas insistia na reforma da escravidão contra a suposta vontade
pública e o Imperador nada fazia para removê-lo do poder ou para frear
a “propaganda da anarchia”, isto é, o abolicionismo.4 O Constitucional,
3 O jornal O Constitucional foi publicado durante seu primeiro ano de vida no
município de Itapemirim e, pelo menos a partir de agosto de 1886, de acordo com as
edições preservadas e disponibilizadas pela Biblioteca Nacional, no município vizinho
de Cachoeiro de Itapemirim. Vale ressaltar que as notícias, artigos e anúncios publicados
pelo jornal ao longo de sua existência, bem como os locais de moradia de seus agentes,
indicam sua abrangência em toda a região sul desde sua inauguração. Os arquivos podem
ser consultados em: <http://memoria.bn.br>.
4  O constitucional, n. 5, p. 1, 10 mai. 1885.

233
Entre a província e a nação

publicado na região mais rica e dependente da mão de obra escrava do


Espírito Santo, nasceu na fase mais intensa da campanha abolicionista
nacional e refletiu a posição do Partido Conservador, bem como dos
escravistas em geral.
No dia 29 de abril de 1888, O Constitucional publicou um artigo
intitulado “O dia de amanhã”. Nele, o jornal admitia a inevitabilidade
do processo em curso, mas apresentava esperança de que o Partido
Conservador o conduziria dentro de certos limites que beneficiariam
os fazendeiros. O gabinete de João Alfredo, chamado em março de
1888 para solucionar a crise, seria um demonstrativo da mudança dos
tempos. Diante desse quadro que aumentava a ansiedade da lavoura e
sua preocupação com a mão de obra, buscava-se acalmar o público. O
governo não se limitaria a declarar a liberdade dos escravos. Completaria
essa medida assegurando os braços necessários através de
meios indirectos, taes como prohibindo dentro de dous annos a
mudança do liberto do seu domicilio actual para outro, aggravando
as penas para a vagabundagem e talvez creando colônias
penitenciarias, localisar os libertos nas actuaes fazendas. Além disso
como medida complementar e de um resultado pratico espantoso
animará o mais que puder a vinda de immigrantes para o paiz,
creando núcleos coloniaes em todas as províncias.5

Mesmo diante de conjuntura crescentemente desfavorável,


os escravistas procuravam meios de limitar a liberdade futura dos
escravos que ainda estavam sob seu poder. Esta liberdade sui generis
que intencionava manter o domínio senhorial sobre os libertos não foi
uma invenção brasileira, uma vez que no mundo colonial britânico foi
estabelecido um período de aprendizado após a emancipação, em 1833,
na qual os novos livres foram submetidos a seus ex-senhores por certo
período.6 Os cinco decênios que separavam as duas propostas não foram
suficientes para que os brasileiros refletissem sobre o fracasso do projeto
de manter os libertos sob controle dos ex-senhores, tendo em vista que
o prazo estabelecido pela Lei de Emancipação britânica fora antecipado
pela pressão abolicionista e pela manifestação coletiva dos aprendizes.
No Brasil, especialmente na região Centro-Sul onde fora concentrada
a população escrava após o fim do tráfico atlântico, os fazendeiros não
estavam convencidos da submissão voluntária de homens livres ao

5  O constitucional, n. 2, p. 1, 29 abr. 1888.


6  DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo.
São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 373.

234
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

trabalho pesado dos eitos. A suposta rejeição ao trabalho deveria ser


punida severamente, estabelecendo-se como pena o próprio trabalho.
Não parecia haver alternativa para os mais aferrados à escravidão. Essa
preocupação em submeter os libertos esteve presente no discurso dos
conservadores e O Constitucional refletia esse cenário. Todavia, o jornal
não seguia apenas as correntes nacionais como diretrizes.
A economia do Espírito Santo baseou-se na cafeicultura desde
meados do século XIX quando a rubiácea africana se tornou febre
entre os lavradores, substituindo em algumas regiões os velhos
canaviais, infiltrando-se nas roças ao lado da mandioca e do milho ou
ocupando matas virgens. O impulso econômico foi acompanhado por
incremento na população, que passou de 49.092, em 1856, para 81.889,
em 1872.7 Em termos absolutos, são números modestos, mas quando
são desdobrados, compreende-se a proximidade de seus interesses das
outras três províncias cafeeiras, priorizadas nas discussões políticas
pelos contemporâneos e, posteriormente, pela historiografia.
Na década de 1850, o Espírito Santo contabilizava 12.269 escravos,
o equivalente a 25% de sua população. Em 1872, quando foi realizado o
primeiro censo no Império e registraram-se 1.510.806 cativos no Brasil
– um decréscimo superior a 100 mil em relação à década de 1850 –, os
capixabas registraram 22.552 escravos em suas posses.8 Considerando-
se que o período após a lei Eusébio de Queirós foi de perda de escravos,
de intensificação do tráfico interno, de concentração regional (e social)
da propriedade cativa, é notável que a população escrava provincial
tenha quase duplicado. É verdade que em 1872, a população cativa
representava menos de 1,5% dos escravos do país, mas esses números
qualificavam a província como a segunda em concentração escrava.
Enquanto se registrava em âmbito nacional 5,5 pessoas livres para cada
escravo, o Espírito Santo possuía 2,6 livres na mesma situação.9
O crescimento da população escrava representava as mudanças
econômicas vividas pela província na segunda metade do Oitocentos
proporcionadas pela cultura cafeeira que invadira, de forma
diferenciada, suas terras. Ainda que tenha se espalhado por todas as

7  ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição, 1850-1888. Rio de


Janeiro: Edições Graal, 1984, p. 69.
8 IBGE. Censo do Brasil, 1872. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/>.
Acesso em 05 mai. de 2010.
9  O primeiro lugar pertencia ao Rio de Janeiro que registrava 1,6 habitantes livres para
cada escravo. Cf. IBGE. Censo do Brasil... Op. cit.

235
Entre a província e a nação

regiões e provocado transformações de uma forma geral, é no sul da


província que se verificou o maior incremento, conferindo-lhe o título
de reduto das grandes propriedades cafeicultoras.10 Na região central da
província, aos arredores da Capital, Vitória, o café dividiu espaço com
as roças de alimentos que abasteciam a província e algumas vizinhas.
Foram para as margens do rio Itabapoana e parte do Itapemirim que
se deslocaram em meados do século muitos senhores fluminenses e
mineiros – além de homens livres pobres – junto de seus escravos,11
em busca de terras virgens e férteis para a nova cultura, que seria o
carro chefe da economia capixaba pelo restante do século. A chegada
de novos escravos contribuiu para que a proporção desse segmento na
população aumentasse para 27,5% em 1872, mas não alterou os traços
gerais da demografia escrava na província: durante todo o período se
manteve o equilíbrio sexual, a predominância de crioulos e um alto
índice de crianças – características que combinadas apontam para a
importância da reprodução natural para a reprodução da sociedade
escravista espírito-santense.12 A região sul, de acordo com análise
realizada em inventários post-mortem para o período entre 1850 e 1871,
acompanhou a tendência capixaba verificada na região central desde o
período colonial de crescimento pela via natural: nesse intervalo, 39%
das escravarias eram compostas por menores de 14 anos.13
A lei de 28 de Setembro de 1871, destacada na capa de O
Constitucional naquela edição comemorativa da Lei Áurea e no
artigo transcrito no início deste texto, foi realmente capital para a
desestruturação do escravismo no Espírito Santo, por abolir uma
das importantes vias de sua reprodução – além de contribuir para
aumentar as oportunidades dos escravos buscarem legalmente a sua
libertação e, portanto, para transformar a cultura escravista local.14 A
objeção dos capixabas à aprovação dessa legislação pode ser indicada
pela posição dos jornais locais que ignoraram o debate nacional sobre
a reforma enquanto a maioria dos periódicos do país se manifestava a
10  Cf. ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição... Op. cit.
11  Ibidem.
12  Cf. RIBEIRO, Geisa Lourenço. Enlaces e desenlaces: família escrava e reprodução
endógena no Espírito Santo (1790-1871). Dissertação (Mestrado em História). Programa de
Pós-graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, 2012.
13  Ibidem, p. 71.
14  Cf. COSTA, Michel dal Col. Rastros da sociedade senhorial: senhores, negócios,
redes sociais e relações de trabalho nos últimos anos da escravidão capixaba (1871-1888).
Tese (Doutorado em História), Programa de Pós-graduação em História, Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

236
Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

favor, bem como pela totalidade dos votos negativos dos representantes
da província na Câmara.15 Antes das mudanças ocasionadas pela lei,
vejamos a situação do principal reduto cafeeiro da província, que com
uma população jovem em 1871, perdeu uma alternativa aparentemente
viável de manutenção do sistema.
No relatório apresentado pelo presidente da província, o barão
de Itapemirim, em 1857, o distrito de Caxoeiro, até então integrante
do termo de Itapemirim, registrava 2.739 almas, sendo 1.254 delas
escravizadas.16 Quando o censo foi realizado em 1872, o antigo distrito
já havia se tornado o poderoso município de Cachoeiro de Itapemirim
e contabilizava 18.495 habitantes. Destes, cerca de 40% da população,
ou 7.482, eram escravos.17 O aumento superior a 500% no segmento
escravo em 15 anos é fantástico, especialmente considerando-se a
conjuntura vivida pelo país de retração da população cativa. Em âmbito
local, esse valor significava um terço da população escrava do Espírito
Santo e oferece indícios para refletir sobre a dependência em relação à
mão de obra compulsória.
Assim como ocorrido no restante país, o apego à escravidão
também foi variável na província espírito-santense. Os dados sobre a
população escrava produzidos a partir do levantamento previsto pela
lei nº 3.270, de 28 de Setembro de 1885, e determinado pelo decreto nº
9.517 de 14 de novembro do mesmo ano, que estipulava a matrícula dos
menores de 60 anos e arrolamento daqueles que tivessem a partir de 60,
são representativos das forças que atuaram a favor e contra o escravismo
no período de desagregação dessa instituição. Acompanhemos as
informações da tabela a seguir que especificam a distribuição dos
escravos por município.
Os dados foram coletados a partir da nova matrícula de escravos
determinada pela Lei dos Sexagenários, cujo prazo final seria 30 de março
15  ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição... Op. cit., p. 190.
16  O Relatório do Barão de Itapemirim não distingue a população escrava da livre. No
entanto, é possível estimar essa informação com base no Relatório de José Mauricio Fernandes
Pereira de Barros, produzido poucos meses antes. No documento, o Presidente informa a
existência de 1.494 livres e 1.254 escravos, totalizando 2.748 indivíduos (número ligeiramente
diferente do informado pelo Barão de Itapemirim). Cf. ARQUIVO Público do Estado do
Espírito Santo. Relatório com que o Exmo. Sr. Presidente da Província do Espírito Santo, o
Doutor José Mauricio Fernandes Pereira de Barros, passou a administração da Província
ao Exmo. Sr. Comendador, José Francisco de Andrade e Almeida e Monjardim, segundo
vice-presidente, em 13 de fevereiro de 1857. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito
Santo, 1857, p. 13. Disponível em: <http://www.ape.es.gov.br>. Acesso em: 07 ago. 2011.
17 IBGE. Censo do Brasil... Op. cit., p. 76 et. seq.

237
Entre a província e a nação

de 1887. Entretanto, assim como a primeira matrícula, exigida pela Lei


Rio Branco, a de 1885 enfrentou problemas para seu cumprimento. Na
edição de 10 de maio de 1887, o jornal indicaria resultado diferente e
que não pode ser justificado pela informação anterior das 16 matrículas
pendentes, já que o número saltou para 13.402. Mesmo com essa
imprecisão, os dados da tabela permitem vislumbrar o quadro espírito-
santense de uma forma geral.
Tabela 1. População escrava na Província do Espírito Santo – 1887
Matriculados Arrolados
Municípios
(< 60 anos) (> ou = 60 anos)
Victoria e Villa do Espírito Santo 1127 8
Vianna 399 -
Santa Leopoldina 544 2
São Matheus 1146 22
Barra 215 9
Santa Cruz 560 8
Serra e Nova Almeida 728 6
Benevente 388 5
Guarapary 252 2
Itapemirim 1078 40
Cachoeiro de Itapemirim 6965 259
Total 12.275 361
Total geral 12.636
Fonte: O Constitucional, ano II, n. 31, p. 2, 26 abr. 1887. Observação: o jornal informa
que ainda havia 16 matrículas pendentes: 5 em Vitória e 11 na Serra/Nova Almeida.

Em relação ao censo de 1872, percebe-se que a província perdeu


cerca de 40% dos escravos. Exceção feita por conta dos escravos que
acompanharam os senhores fluminenses e mineiros em meados do
Oitocentos para a região sul do Espírito Santo, a participação da
província no tráfico interprovincial intensificado após a lei Eusébio de
Queiroz parece ter sido pequena.18 Com a impossibilidade da reposição
das escravarias pelo nascimento a partir de 1871, a mortalidade, a venda
e as alforrias, a tendência só poderia ser o encolhimento, tornando
compreensível a queda sensível verificada nos 15 anos que separam
os dois registros. Contudo, os dados da tabela permitem observar que

18  RIBEIRO, Geisa Lourenço. Enlaces e desenlaces... Op. cit., p. 122.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

a redução não foi homogênea entre as regiões capixabas. Em 1872,


Vitória possuía 3.687 escravos e a Vila do Espírito Santo, 511.19 Juntas,
as duas localidades totalizavam 4.198 escravos.20 De acordo com os
dados produzidos pela nova matrícula, houve diminuição próximo
a 70%, mesmo considerando no cálculo a perda dos cativos de Santa
Leopoldina que era freguesia de Vitória no registro anterior. Enquanto
isso, no reduto das grandes propriedades cafeicultoras, a redução entre
os dois registros foi inferior à 10%.
Como explicar essa diferença abismal entre as duas regiões? A
resposta passa pela atividade econômica e o grau de dependência em
relação à mão de obra escrava. O encarecimento dos escravos na segunda
metade do século aumentava a probabilidade das grandes fazendas
voltadas ao mercado de exportação a concentrarem escravos, inclusive
movimentando o tráfico intraprovincial. Uma análise de amostras
de inventários post-mortem de Vitória demonstrou a dificuldade dos
pequenos lavradores para manter a posse escrava na segunda metade do
Oitocentos. Enquanto na passagem do século XVIII para o XIX, 90% da
amostra continha escravos, no período entre 1850 e 1871, a proporção
caiu para 66%. No mesmo intervalo, em Cachoeiro de Itapemirim, 95%
dos inventários registraram a presença escrava.21
A ocupação da região sul do Espírito Santo por fazendeiros que
migraram em busca de terras férteis e virgens para a expansão da cultura
cafeeira em meados do século XIX, lembra o fenômeno semelhante
ocorrido no Oeste Paulista. Tal como ocorreu nessa região, os migrantes
levavam, além de seus escravos, seu apego à instituição e ao seu modo
de vida, que defenderam da forma que puderam até a última hora, o
que rejeita as ideias de uma historiografia mais antiga que via na defesa
da imigração europeia por parte desses senhores a presença de um
avançado espírito capitalista.22 Já foi provado, entretanto, que sua defesa
da imigração não foi incompatível com a defesa da escravidão, que
ajudaram a fortalecer no sudeste cafeeiro, enquanto a instituição perdia
força no norte do país. A defesa da manutenção do regime escravista só
arrefeceu quando o controle sobre os escravos já se tornara impossível.

19  Cf. IBGE. Censo do Brasil... Op. cit.


20  O jornal fala no número de 4.089 matrículas primitivas para Vitória e Vila do
Espírito Santo. Cf. O Constitucional, ano II, n. 31, p. 2, 26 abr. 1887.
21  Cf. RIBEIRO, Geisa Lourenço. Enlaces e desenlaces... Op. cit.
22  Cf. GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1979.

239
Entre a província e a nação

Além disso, nota-se que houve a crítica ao modelo de colonização em


núcleos de pequena propriedade e a defesa da imigração como fonte
de trabalhadores para complementar e, posteriormente, substituir os
braços escravos. Foram, portanto, convertidos ao abolicionismo pelos
próprios escravos e somente na última hora.23
No caso espírito-santense, obviamente, os senhores também
migraram com suas convicções em relação ao trabalho escravo. Sua
postura em relação ao escravismo e suas condições materiais de existência
no Espírito Santo, conduziram-nos à indiferença quanto à colonização
europeia até a abolição. Suas práticas cotidianas demonstraram uma
esperança na manutenção do regime. O Constitucional, por exemplo,
publicou até 1887 notícias de venda de escravos, bem como de fugas,
debates sobre a necessidade de matrículas de escravos próximos dos
65 anos e sobre as garantias legais para a manutenção de africanos
importados ilegalmente.24 Se recuamos um ano no tempo, encontramos
um indício da base de sua esperança. No dia 07 de março de 1886, o
jornal publicou artigo transladado do Diário do Brazil intitulado “A
Palavra do Governo” no qual se relatava “com prazer” uma declaração
do gabinete Cotegipe se comprometendo a não apresentar projeto de
lei para extinção do elemento servil dentro de um prazo de cinco anos.
Segundo o articulista, “essa declaração vem restabeleser a confiança da
lavoura e do paiz na palavra do governo”.25
A resistência tenaz do Barão de Cotegipe animava os fazendeiros
mais conservadores por todo o país e, de maneira especial, no Espírito
Santo. A importância atribuída à propriedade escrava é ressaltada quando
se observa seu valor dentro do patrimônio dos senhores do reduto cafeeiro
capixaba. Mesmo diante do processo de mercantilização das terras a partir
de meados do século XIX e a desvalorização dos cativos como garantia
para hipotecas na década de 1880, os escravos continuavam a representar
uma parcela significativa do capital. Em algumas ricas fazendas da região,
equivaliam a um quarto do patrimônio em 1887.26

23  Cf. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil (1850-1888). 2


ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade:
uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
24  Especialmente sobre a garantia legal e os receios que envolviam a matrícula de
africanos menores de 60 anos, Cf. NOVA matrícula de escravos. O constitucional, ano II,
n. 6, p. 3, 29 ago. 1886.
25  Idem, ano I, n. 47, p. 1, 7 mar. 1886.
26  ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição... Op. cit., p. 89.

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Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Somado à defesa do regime que se encarnava no Barão de


Cotegipe, deveria haver outro motivo, para além dos econômicos, que
balizavam a esperança dos senhores capixabas. Por mais paradoxal
que pareça, seu fundamento pode ter vindo do abolicionismo. Não do
movimento como ocorrera em outras províncias e que se radicalizou
na década de 1880 se aliando às lutas escravas e pressionando de forma
nunca vista o governo,27 mas no movimento conforme praticado nas
terras capixabas.
De acordo com Maria Stella de Novaes, o Espírito Santo
acompanhou atentamente os debates sobre o fim do tráfico de escravos
no início da década de 1850. A província, cujas praias desertas foram
usadas durante alguns anos após a Lei Eusébio de Queiroz por traficantes
que insistiam em manter o infame comércio, chegou a ser visitada pelo
oficial da marinha inglesa e abolicionista, Eduardo Willberforce, tendo
as notícias sobre o combate ao tráfico animado os capixabas. Segundo
a autora, “todos, ou quase todos, se tornaram abolicionistas, embora
conservassem seus escravos”.28 A afirmação, por mais contraditória que
pareça, é representativa do histórico capixaba em relação ao movimento
antiescravista.
Se nos anos 1850, os jornais do Espírito Santo revelavam a
animação em relação à proibição do tráfico, somente no final da década
seguinte é que ocorre de fato alguma ação em oposição ao regime
escravista. Conforme discutido anteriormente, a comoção em relação
à abolição do tráfico não significou uma tomada de posição contrária à
escravidão em si. Aliás, houve esforço discursivo no sentido de separar
os dois temas. Mais uma vez acompanhando o debate nacional, que nos
anos 1860 incluía tanto questões internas – como o envolvimento na
Guerra do Paraguai – quanto externas – como a abolição dramática da
escravidão nos Estados Unidos após violenta guerra civil –, o Espírito
Santo aprovou a Lei n. 25, de 4 de dezembro de 1869. Essa legislação
autorizava o Presidente da Província a usar anualmente até 6:000$000
para alforriar meninas de cinco a dez anos de idade, desde que o
pedido fosse realizado por seus protetores ou proprietários até o dia
sete de setembro de cada ano e não ultrapassasse o valor individual de

27  Cf. ALONSO, Angela. O abolicionismo como movimento social. Novos estudos, n.
100, p. 115-137, nov. 2014.
28  NOVAES, Maria Stella de. A abolição e a escravidão no Espírito Santo. 2 ed.
Vitória: Secretaria Municipal de Cultura, 2010, p. 89.

241
Entre a província e a nação

600$000.29 No mesmo ano, em 17 de outubro, seria criada a Sociedade


Abolicionista do Espírito Santo, cujo nome reforça o argumento de
Angela Alonso sobre a inutilidade de diferenciar os termos abolicionista
e emancipacionista no movimento brasileiro.30 Embora carregasse o
nome de abolicionista, essa sociedade não pretendia o fim imediato da
escravidão e resgate de todos os escravos e ingênuos, mas tão somente
“alforriar o maior número possível de escravos de ambos os sexos e de
qualquer idade, e fazer deles úteis”.31 A primeira associação de caráter
antiescravista no Espírito Santo possuía, portanto, caráter moderado,
filantrópico e legalista. Com vida efêmera, ela é representativa do perfil
do movimento na província capixaba.
Sem dúvida, na província do Espírito Santo, foram os homens mais
abastados e educados da sociedade que impulsionaram a campanha
libertária. Por meio dos jornais e das associações, promoveram
entre os menos favorecidos as ideias de contenção da escravidão.
Grande parte dos idealizadores do movimento cumpriu mandato de
deputado provincial, ou ocupou algum posto político municipal.32

O movimento abolicionista foi iminentemente urbano no


Espírito Santo, a exemplo do restante do país, e se concentrou na capital
da província. Os vitorienses aproveitaram o repertório nacional do
movimento e a campanha ganhou popularidade devido ao uso das vias
públicas pelos idealizadores do movimento para realização de comícios
e meetings. Os jornais foram importantes como meio de divulgação
das ideias antiescravistas. Embora ateste a popularidade da campanha,
Mariana Pícoli admite que ela foi conduzida por parte da elite política e
econômica local, ocorrendo principalmente em espaços formais da elite,
com destaque para a Assembleia Legislativa Provincial e para a Câmara
Municipal, ainda que outros espaços frequentados pelos membros
mais privilegiados da sociedade também fossem usados, como a loja
Maçônica União e Progresso e irmandades religiosas.

29  NOVAES, Maria Stella de. A abolição e a escravidão no Espírito Santo... Op. cit.,
p. 90. No primeiro ano da lei foram apresentadas 15 petições de alforria e 11 meninas foram
contempladas. No entanto, a lei foi criticada pelo presidente da província, pois as libertas
permaneciam com as mães e, portanto, em poder dos ex-senhores. ALMADA, Vilma
Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição... Op. cit., p. 189.
30  Cf. ALONSO, Angela. O abolicionismo como movimento social... Op. cit.
31  NOVAES, Maria Stella de. A abolição e a escravidão no Espírito Santo... Op. cit.,
p. 93.
32  Cf. PÍCOLI, Mariana. Ideias de liberdade na cena política capixaba: o movimento
abolicionista em Vitória (1869-1888). Dissertação (Mestrado em História). Programa de
Pós-graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

A condução do movimento foi realizada por pessoas que


não tinham interesse em uma transformação da sociedade por
meio popular. O interesse em superar esse regime, além da questão
humanitária, parecia relacionada à ideia de progresso que não poderia
ser alcançado em uma sociedade escravista, na qual o trabalho ocupava
lugar degradante.33 O mais famoso líder abolicionista capixaba é
simbólico dessa postura. Afonso Cláudio de Freitas Rosa, ex-aluno
da Faculdade de Direito de Recife, a mesma instituição onde estudou
Joaquim Nabuco, integrante da geração beneficiada pela reforma do
ensino superior na década de 1870, era membro da elite capixaba, filho
e neto de fazendeiros proprietários de escravos. Ele possui importância
inegável para o abolicionismo local, tendo participado ativamente da
campanha de diversas formas: contribuição para os jornais, formação
de sociedades abolicionistas, conferências em Vitória e no interior,
atuação como advogado em defesa da liberdade de pessoas mantidas
no cativeiro “ilegalmente”. Todavia, como notado por Adriana Campos
ao analisar sua obra sobre a mais importante revolta escrava do Espírito
Santo, Insurreição de Queimados, seu abolicionismo estava desvinculado
da população escrava, a quem via como incapaz de promover a própria
liberdade graças aos preconceitos raciais que ele compartilhava com a
sociedade de sua época. Seu combate ao escravismo ocorreu de acordo
com sua visão de mundo legalista e jusnaturalista. A liberdade era
um direito natural, mas ela não poderia ser alcançada ofendendo-se a
propriedade privada. A escravidão era uma vergonha e uma barreira ao
progresso, mas deveria ser promovida de “forma gradativa que desse
oportunidade aos senhores de escravos de acomodar seus interesses
sem prejuízo de suas posses”.34
Nesse sentido, buscava-se promover uma mudança de regime
de trabalho sem abalar as estruturas sociais. Por isso, sobressaiu
nas conferências de Afonso Cláudio e dos demais abolicionistas,
a preocupação com a mão de obra. Os discursos dirigidos às áreas
cafeicultoras da província destacavam a falta de infraestrutura
das estradas e dos portos – reclamação antiga e permanente dos
fazendeiros – e atrelavam a falta de braços à carência de investimentos
na imigração europeia.35 Mas suas propostas para o futuro não se

33  PÍCOLI, Mariana. Ideias de liberdade na cena política capixaba... Op. cit., p. 108.
34  CAMPOS, Adriana. Abolicionistas, negros e escravidão. Dimensões, n. 10, p. 33 et.
seq. jan./jul. 2000.
35  PÍCOLI, Mariana. Ideias de liberdade na cena política capixaba... Op. cit., p. 108.

243
Entre a província e a nação

limitavam a essas medidas. Defendia Afonso Cláudio, em 1884, que a


Lei de 28 de setembro de 1871 dispunha dos melhores elementos para
extinguir a escravidão e que o Poder Público deveria pensar no futuro
após a emancipação, criando legislação para impedir a vagabundagem
e tomando as providências para que o trabalho se tornasse um dever.36
Se na capital o movimento foi moderado, nas áreas mais afastadas
não parece ter sido mais radical. Na região Sul, não há conhecimento
sobre nenhuma instituição formada com fins emancipacionistas.
Enquanto os jornais apoiadores do movimento em Vitória começaram
a noticiar na década de 1880 a violência do cativeiro, apelando para
a compaixão dos leitores através de cenas da escravidão, no Sul os
conservadores criticavam esse tipo de estratégia. Em oito de agosto
de 1886, O Constitucional transcrevia matéria intitulada “Vergonha
Nacional”, publicada originalmente no Jornal do Commercio em defesa
da honra do país que teria sido manchada pelo jornal internacional
Cincinnali Weelcly Gazzete. Este jornal teria publicado uma ilustração
sobre os horrores da escravidão brasileira que evidenciaria uma
sociedade formada por “assassinos, ladrões e torpes”. A indignação
contra o estrangeiro era enorme, mas não maior do que com o periódico
O Paiz, que sendo brasileiro, teria reproduzido a figura feita por pessoas
que não nasceram no país e, portanto, não conheceriam a realidade
brasileira. Por isso, o articulista saía em defesa da honra nacional:
não discutimos o abolicionismo, nem é elle que vem ao debate
agora: sómente devemos salientar a nossa indignação diante de
tanta protervia!

Quantos conhecem a vida agricola n’este paiz, sabem que nunca


se praticaram os factos excessivamento barbaros que figuram nos
clichès da Imprensa americana. Ao carater brasileiro nimiamente
bondoso, repugnam similantes castigos.

É possível que em alguma parte os castigos tenham sido


immoderados, mas esses mesmos constituem crimes capitulados
em nosso Codigo penal, e não podem ser imputados ao caracter
nacional.

É inacreditável isso... Uma folha que se diz brazileira, não podia,


ser deshonra para a nação, acolher a Cincinali Gazette, com a
cordialidade que anima o O Paiz.
36  NOVAES, Maria Stella de. A abolição e a escravidão no Espírito Santo... Op. cit.,
p. 104.

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O caso é sério de mais para que se preste as interpretações.

[...] Isto é que é a verdade; o que fez, porém, o O Paiz é uma vergonha
nacional.37

A transcrição realizada pelo jornal conservador do sul do Espírito


Santo ilustrava seu posicionamento contrário às práticas abolicionistas
e, inclusive, a luta no espaço discursivo, ideológico. O movimento,
que procurava deslegitimar a secular instituição brasileira, deveria ser
combatido, e o foi até a véspera da abolição. As ações dos abolicionistas
eram contestadas, enquanto as ações dos senhores justificadas. É com
este intuito que se publica na sessão “À pedidos” uma carta endereçada
“Ao Sr. Dr. Promotor Público” no dia 24 de janeiro de 1886. O jornal
O Cachoeirano, também editado no Sul, havia publicado uma denúncia
contra um senhor da região acusando-o de causar a morte de seu
escravo por maus tratos. O Constitucional saiu em defesa do acusado,
senhor “estrangeiro probo, honesto trabalhador, homem humano”.
Nenhum escravo havia sido morto por castigos físicos naquela região.
O dito escravo morrera de morte natural, teria tido uma hérnia após
sofrer muito tempo de “oppilação”.
A alma generosa do povo não permitiria a prática de castigos
em exagero, por isso se indignava com a morte de José da Rosa
Machado, senhor da fazenda Serra por um de seus escravos no dia 30
de dezembro de 1886: “Consta-nos que um crioulo o qual encontrara
a victima distanciado dos outros que, iam para o trabalho, exprobara
e castigava-o com um pequeno relho que trazia, isso foi bastante para
o preto enfurecer-se a ponto de esfaquear o velho Rosa Machado”. O
“ótimo fazendeiro”, “estimado e respeitável pai de família”, não fizera
nada para provocar tamanha brutalidade por parte do escravo, “apenas”
o castigara. À essa altura, o escravo já não respondia mais com o corpo
pelos crimes praticados e, com o abolicionismo na fase mais radical em
outras províncias, seus crimes começavam a ser justificados pela violência
do cativeiro nos jornais que apoiavam o movimento. Carlos de Lacerda,
editor do jornal 25 de Março, publicado em Campos, província do Rio
de Janeiro, advertia aos leitores que a rebeldia negra era uma resposta às
misérias da escravidão e aos que se opunham ao abolicionismo festivo,
marcado por músicas, foguetes e discursos entusiasmados. Mas esse não
era o caso do Espírito Santo, muito menos dos conservadores.

37  O Constitucional, ano II, n. 3, p. 2, 8 ago. 1886.

245
Entre a província e a nação

A posição escravista de O Constitucional não era revelada apenas


nas críticas feitas ao abolicionismo, mas também na naturalidade com
a qual tratou a escravidão até 1887. Os anúncios de fugas e vendas de
escravos eram comuns, enquanto os jornais de posição antiescravista
já haviam deixado de publicar tais anúncios na capital desde 1885.
Todavia, era aceitável ler nas páginas sulistas notícias como a fuga de
Benedito, de 22 anos. O proprietário Francisco de Souza Monteiro
anunciou entre os dias cinco de setembro de 1886 e 22 de fevereiro
de 1887 a recompensa de 100$000 para quem o entregasse na fazenda
Monte Líbano.
A aparente naturalidade com que as notícias envolvendo escravos
eram divulgadas no jornal conservador, mesmo nos casos violentos,
indicam a confiança na sustentação do regime. Em nível nacional,
havia um governo forte até março de 1888 promovendo combate
aos abolicionistas mais exaltados. Localmente, a propaganda não se
radicalizava e parecia mais preocupada com o futuro da lavoura do
que com o liberto. Sendo assim, de acordo com Robson Martins, coube
aos escravos a resistência mais radical à escravidão em seus últimos
anos.38 O autor lembra que as conferências de Afonso Cláudio eram
procuradas por escravos, mas sua interpretação deve ter sido diferente
da visão legalista nelas defendida, já que as fugas começaram a ocorrer
em massa no auge do movimento.
As pesquisas sobre o abolicionismo no sul citam apenas
nomes de propagandistas, como o de João de Loiola e Silva, Antônio
Aguirre Novais e Bernardo Horta, que usavam as páginas do jornal
O Cachoeirano para convencer seus conterrâneos sobre os benefícios
do trabalho livre.39 São nomes importantes que serão lembrados na
comemoração da abolição e participarão dos debates sobre o futuro
dos libertos. Contudo, não fogem do padrão do abolicionismo espírito-
santense: legalista, gradualista, moderado. Sua ação foi importante, mas
no sentido de promover o debate e, desta forma não intencional, atingir
os escravos. Estes, quando passaram a resistir em massa, acabaram
despertando o espírito abolicionista dos senhores, manifesto naquela
edição comemorativa de O Constitucional.

38  Cf. MARTINS, Robson Luís Machado. Os caminhos da liberdade: abolicionistas,


escravos e senhores na Província do Espírito Santo 1884-1888. Dissertação (Mestrado em
História). Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 1997.
39  Ibidem, p. 21.

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Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro,
Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

Como afirmado por Vilma Almada, se os senhores paulistas


foram abolicionistas da última hora – incentivados por Antonio Bento,
os caifazes e, principalmente, por seus escravos – os capixabas só o foram
“depois de soada a hora da libertação”.40 O medo da desorganização
da produção e da perda de controle total sobre os trabalhadores
motivou as cartas de alforria que começaram a aparecer nos jornais
nos últimos meses do regime numa tentativa de conquistar a gratidão
dos futuros libertos. Até nisso, porém, nota-se a dificuldade de aceitar
o desmoronamento da instituição. Muitas alforrias, algumas cujo
compromisso fora tomado coletivamente pelos membros da lavoura,
não tinham validade imediata, eram programadas para o fim de 1890.41 A
data não deve ter sido uma escolha aleatória, devendo estar relacionada
àquela declaração de Cotegipe, em 1886, de que não se apresentaria
projeto de lei para a reforma do elemento servil durante cinco anos. As
justificativas para a posição senhorial merecem a atenção: sua própria
visão de mundo hierarquizada, sua defesa da manutenção do status quo,
a percepção do caráter moderado e elitista do abolicionismo capixaba,
a falta de condições econômicas para a adaptação imediata ao trabalho
assalariado. É difícil mensurar quais dos elementos teve mais peso, mas
é certo que agiram de uma forma conjunta para o posicionamento do
Espírito Santo, mais especificamente da região das grandes propriedades
cafeicultoras, diante da desestruturação do regime. A dificuldade para
“aceitar” o fim da escravidão pode ser percebida também nas práticas
violentas registradas até o último momento contra os escravos que
reivindicavam melhores condições de trabalho e/ou a liberdade.42 Um
desses eventos merece ser destacados pelo seu caráter simbólico.
No dia 13 de maio, em edição preparada anteriormente a chegada
da notícia da assinatura da Lei Áurea, O Cachoeirano denunciou um
administrador da fazenda Povoação, na freguesia do Rio Pardo, em
Cachoeiro do Itapemirim, na qual um escravo foi amarrado à cauda de
um animal e arrastado pela vila, aparentemente, sem interferências.43
Vale reforçar que essas notícias sobre a violência contra os escravos não
eram divulgadas pelo jornal O Constitucional. O veículo conservador
usava-o para defender os senhores, não para denunciá-los. Portanto,

40  ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição... Op. cit., p. 200.
41  Ibidem, p. 199.
42  NOVAES, Maria Stella de. A abolição e a escravidão no Espírito Santo... Op. cit.,
p. 119.
43  Ibidem.

247
Entre a província e a nação

a dificuldade que Warren Dean notou nos senhores de Rio Claro de


lidar com os proletários reais, que faziam exigências sobre condições
de trabalho e remuneração,44 parecem não ter sido um problema local.
É por isso que causa certa surpresa o tom festivo com que a
Lei Áurea foi recebida pelo jornal e seu elogio à propaganda pacífica.
No Espírito Santo, de fato, os abolicionistas foram moderados,
mas isso não impediu a postura crítica em relação ao movimento,
especialmente nacional. Dantas, Patrocínio, Nabuco são os nomes
preferidos do periódico que publicou em quase todas as edições até o
final de 1887 matérias nada elogiosas a esses personagens, e aos liberais
e propagandistas de forma geral, a quem chamava de comunistas,
desordeiros, irresponsáveis, criminosos, tiranos, amigos dos ingleses e
dos escravos.
Após a abolição, a preocupação constante com a disciplina da mão
de obra permaneceu, confirmando o caráter do movimento abolicionista
capixaba. Em junho de 1888, o abolicionista Horta de Araújo, um dos
militantes da propaganda na região Sul, escreveu uma série de artigos
intitulada “A Nova Bandeira” na qual expressava sua preocupação
principal: o futuro da lavoura. Ele “censurou” a “precipitação” com que
a lei áurea foi promulgada, além de apontar a “ineficácia da lei ante o
estado atual do país”. Ele afirmava que:
o ato legislativo como foi praticado ofende diretamente o brio da nação
brasileira... porque o proprietário perde inopinadamente um capital
reconhecido pelo governo, que dias antes ainda cobrava o imposto de
matrícula, porque falseou os contratos, títulos de dívidas, hipotecas...
que os particulares contraíram confiados nas leis da nação.45

Horta de Araújo não estava sozinho em sua preocupação com a


lavoura. Voltando uma vez mais à edição comemorativa da abolição
da escravidão produzida por O Constitucional, que ao assunto dedicou
praticamente todas as suas páginas, há uma notícia merecedora
de destaque. Intitulada “A boa nova”, a matéria versava sobre o
recebimento do telegrama com a informação sobre a aprovação da lei
3.353, de 13 de maio. Já se esperava por essa notícia devido à aceleração
dos fatos desde que a proposta do gabinete fora apresentada à Câmara
no início do mês, mas ainda assim ela foi aguardada com apreensão

44  DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 125.
45  ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição... Op. cit., p. 204.

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até ser confirmada no dia 15 por telegrama. Foi organizada uma festa
para o dia seguinte, à noite, que parece ter sido imponente. Um grande
grupo de pessoas percorreu as ruas iluminadas da cidade, parando
em frente aos edifícios mais importantes, inclusive na casa de pessoas
ilustres para os discursos. Os oradores felicitaram a nação pelo feito,
parabenizaram a princesa Imperial Regente Isabel, Dom Pedro II e
abolicionistas de renome nacional, como José do Patrocínio, Joaquim
Nabuco, Manoel Pinto de Souza Dantas e Carlos Lacerda – tão criticados
pelo mesmo jornal anteriormente por sua oposição ao escravismo – e
locais, como João Paulo Ferreira Rios. Dirigiram conselhos aos libertos
que estavam presentes. Em síntese, os oradores recomendavam o bom
comportamento, a abstenção de bebidas alcóolicas e, principalmente, a
dedicação ao trabalho. O Sr. Carlos Maciel, um dos que fizeram questão
de ressaltar a importância do trabalho, tomou José do Patrocínio como
exemplo a ser seguido pelos libertos: era “preto”, filho de ex-escrava,
iniciou a vida pobre, mas vencera na vida “à custa de seus esforços”.
Evidentemente, o fato de Patrocínio considerar a escravidão um roubo
e defender mudanças sociais profundas que apenas começariam com a
abolição, não fora lembrado. Silenciando suas críticas, ele era o modelo
de homem preto aceito pela sociedade branca.
O tom comemorativo por causa da Pátria Livre empregado
na edição especial de O Constitucional parece ser um esforço de
convencimento da opinião pública sobre o mérito do Partido
Conservador na solução da questão da escravidão. A homenagem a
conservadores importantes faz parte desse esforço para estabelecer
uma lógica própria e coerente ao complexo processo que resultou na
abolição. Mais do que colher os louros da vitória e vangloriar-se diante
do Partido Liberal, era importante narrar a história de uma maneira
que o Partido tivesse o controle da situação.
Desde sua publicação inicial, em 1885, até o ano de 1887, não há
publicações em O Constitucional incentivando a libertação particular de
escravos. As notícias sobre alforrias se referem às libertações judiciais,
promovidas pela Lei dos Sexagenários e àquelas realizadas pelo Fundo
de Emancipação – cuja participação de Cachoeiro de Itapemirim
iniciou-se apenas em 1881.46
Conforme sintetizado na Representação da Liga da Lavoura da
Paróquia do Itabapoana sobre o projeto do elemento servil enviada no dia

46  ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição... Op. cit., p. 55.

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Entre a província e a nação

quatro de junho de 1885 à Assembleia Geral, os fazendeiros reconheciam


a necessidade de medidas razoáveis para extinguir a escravidão, aliás,
eles as desejariam mais do que certos “azamafados abolicionistas”,
que, apressados, não se preocupariam com os resultados do processo.
Segundo eles, a “mancha negra” da escravidão não poderia ser
substituída por outra, a anarquia, a ruína e a miséria geral dos cidadãos
honestos. Por isso, demonstravam confiança no Gabinete Saraiva, que
se mostrava aberto ao debate com a nobre classe dos lavradores para
fazer a reforma, diferente do gabinete Dantas, que fora intensamente
criticado. A ideia da Representação repousava justamente na promessa
do Ministro liberal de agir de forma moderada para não prejudicar a
lavoura, algo que não parecia ser a preocupação de seu antecessor aos
olhos conservadores. O documento endossava um artigo publicado
no Jornal do Commercio no mês anterior com propostas para a dita
reforma, incluindo a completa liberdade de escolha pelos fazendeiros
dos escravos que seriam libertados e a obrigatoriedade de permanência
sob domínio dos ex-senhores por cinco anos sem remuneração ou sete
anos com remuneração de 5$000 mensais, descontadas as faltas por
doença ou fuga.47 Nestes termos, a reforma seria bem recebida, pois
não acarretaria queda na produção ou no valor da propriedade rural.
Caberia, portanto, ao poder público “apenas regular essa transformação,
apenas favorecendo-a sem precipitação, e deixando aos proprietários
do elemento servil, ó mais possível, tempo e liberdade para a realizarem
por si mesmos”.48
A preocupação com a mão de obra foi a linha mestra do jornal ao
longo de todo o período. Por isso, ao mesmo tempo que reafirmava a
legalidade da escravidão, alertando ao público sobre decisões judiciais
e administrativas que asseguravam seus bens de natureza humana,
procurava apresentar alternativas para a substituição dos braços
escravos. A imigração foi uma delas, especialmente a partir de 1887, mas
não foi a única. Procurou-se atacar a vadiação como uma maneira de
assegurar trabalhadores para a lavoura, assim como se divulgava a ideia
de formação de colônias com os nacionais. Chegou-se a propagandear
a ideia, que em 1888 seria tomada como missão pelo Juiz de Órphãos

47  Para se ter uma noção de valores, a assinatura anual do jornal custava 10$000. No
mês de setembro, o periódico publicou uma notícia denunciando a aposentadoria indevida
de um ex-administrador da Recebedoria com um salário anual de 1:200$000. Em outros
termos, o administrador recebia um valor médio de 100$000 por mês, ou seja, 20 vezes
o valor da sugestão de salário para o liberto. Cf. O constitucional, n. 22, p. 2, 7 set. 1885.
48  Idem, n. 12, p. 1, 28 jun. 1885.

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Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

do município de Cachoeiro de Itapemirim, de criar-se um “Asylo


Orphanológico”. Este estabelecimento, também chamado de Colônia
Orphanológica, já seria realidade em outras províncias, com destaque
para Pernambuco. Neles, as “desvalidas creanças, poderão, aprender
também a cultura da terra, agronomia emfim, e mais tarde o asylo
orphonologico virá a ser o empório de muitos braços aptos á lavoura.”
Lembrava o articulista que o ócio e o pauperismo produzem germens
de desorganização social, como o niilismo, o fenianismo, o comunismo
e as sociedades cooperativas, como se observava no velho mundo.
A preocupação com a mão de obra gerou sugestões de criação
de “empórios” de trabalhadores, o pedido recorrente de repressão à
“vadiagem” e denúncias que sustentam o relato do senador Otoni. O
Constitucional publicou em outubro de 1887, na seção “Á Pedidos”
uma pergunta interessante: “Não será crime seduzir escravos alheios da
província de S. Paulo (Bananal) e trazer em sua companhia como pessoa
livre e com o nome trocado?” Menos discreto sobre a situação vivida no
município foi o jornal O Cachoeirano, que publicou um “Novo Aviso”
no dia 13 de Maio de 1888 sobre ajustar libertos sem consentimento dos
ex-senhores. O aviso datado de 25 de abril de 1888 e assinado por Diniz
José Ferreira, informava que era proibido fazer esse tipo ajustamento
sob pena de 50$000 e a obrigação de assumir o trato que o liberto tivesse
feito com o ex-senhor.
Na mesma edição do dia 13 de maio, o jornal noticiava a
“Libertação Geral do Veado”. Os moradores dessa Freguesia de
Cachoeiro do Itapemirim haviam libertado incondicionalmente todos
os seus escravos no dia sete de maio, seguindo a luz espelhada por
São Paulo, terra natal de “quase” todos os pais e avós dos veadenses. É
interessante destacar que esse jornal, adepto das luzes abolicionistas, e
que reivindicava nessa notícia a necessidade de “uma metamorfose, uma
transformação de costumes, ideias e pensamentos” para o país, publicou
na mesma edição aquele aviso citado há pouco. A conversão tardia de
São Paulo pode ter influenciado os veadenses, mas estes parecem ter
tomado medidas preventivas para controlar os trabalhadores antes de
aceitarem o fato. Mais do que isso, elementos locais parecem ter tido
um peso maior em sua conversão já que muitos senhores, à exemplo
daqueles do Vale do Paraíba, não mudaram de posição mesmo quando
todos os jornais da época reconheciam que era apenas uma questão de
tempo.

251
Entre a província e a nação

Como dito antes, diferentemente de O Cachoeirano, o jornal


O Constitucional só publicou cartas de alforria a fim de incentivar
os senhores no ano de 1888. Uma dessas cartas foi de Carlos Maciel,
da freguesia de Rio Pardo, publicada no dia 13 de maio. O senhor
informava que havia concedido no dia 23 de abril de 1888 a liberdade
a mais um de seus escravos e mandava publicar no jornal para “activar
os senhores de escravos aqui fazerem o mesmo, pois negam-se a isso.”49
A dificuldade em aceitar a liberdade dos trabalhadores, ou em
confiar na própria capacidade de lidar com eles, pode ser apreciada em
uma denúncia realizada em 1887 em O Constitucional. O texto assinado
por “O Saptisfeito”, informava que na fazenda São Thiago, da freguesia
do Veado, haviam “saído” diversas cartas de alforria para sexagenários.
Entretanto, o fazendeiro não as entregava aos libertos e ameaçava-os: o
abandono da fazenda acarretaria o ingresso em uma ilha denominada
“das Enchadas”, onde o cativeiro seria “dobrado”. O autor da denúncia
informava que a situação causava ainda mais admiração por “haver uma
pessoa d’esta fazenda (genro) dizer a todos sou muito abolicionista!”.50
Não temos condições de apurar a veracidade da denúncia, mas
de acordo com o discutido até o momento, pode-se considerá-la ao
menos verossímil. Sendo assim, não causa estranheza a contradição
apontada pelo “Saptisfeito”. Em primeiro lugar, o fato de um membro
da família ser abolicionista, não implicava que todos os demais seriam
convertidos. Em segundo lugar, como visto, o abolicionismo capixaba
era formado por integrantes da elite, sendo alguns deles proprietários
de escravos ou parentes de senhores. Advogavam uma transição de
regime gradual e legalista, preocupados com o futuro da lavoura e da
propriedade privada.
A preocupação em assegurar a mão de obra acarretou a mudança
de postura por parte de alguns fazendeiros, que, no ano de 1888, passaram
a alterar os acordos realizados com os trabalhadores. No ano de 1888 as
alforrias tornaram-se de efeito imediato e/ou em curto prazo. Uma delas
apresenta uma peculiaridade interessante que merece ser destacada. De
acordo com a edição publicada em seis de maio por O Constitucional,
o Dr. Seabra havia libertado incondicionalmente dois escravos no dia
três do mesmo mês – Simplicio, seu pajem desde a mocidade, e David,
seu feitor há muitos anos. Tais libertações não são novidade, visto que

49  O constituicional, n. 4, p. 2, 13 mai. 1888.


50  Idem, n. 26, p. 3, 22 fev. 1887.

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Karulliny Silverol Siqueira, Kátia Sausen da Motta (org.)

haviam se tornado comuns a ponto do próprio jornal, em mudança


brusca de tom sobre o “Movimento Libertador”, afirmar na segunda
edição publicada no ano de 1888 que “não há festas de família, nem tão
pouco festejos públicos, em que se não registrem inúmeras libertações”,
pois estariam todas as províncias disputando entre si “a gloria da
primazia em extirpar de uma vez para sempre o cancro, que as tem
corroido”. A novidade, portanto, não estava nas alforrias a escravos
“especiais” concedidas pelo Dr. Seabra, nem na promessa de liberdade
aos demais acertada para iniciar-se no primeiro dia do ano seguinte e
no anúncio de contrato de trabalho “vantajoso” para os que desejassem
permanecer em sua fazenda. O elemento interessante da atitude do
fazendeiro foi o anúncio de que, a partir daquela data, os trabalhadores
escravos receberiam “salário proporcional a suas atividades”. O jornal
louvava seu procedimento, afirmando ser digno de imitação pelos
“nossos agricultores, pois o salário desde já marcado aos escravos é um
estímulo e incentivo para nobilitar o trabalho e os tornar adstrictos á
propriedade e lavoura que crearam”.51
A modalidade de trabalho que passara a existir na fazenda
do Dr. Seabra a partir de três de maio era difícil de encaixar-
se na definição de escravidão conhecida: trabalho forçado e não
remunerado. Era necessário, como se argumentou na discussão sobre
a lei de 13 de Maio, legalizar a situação para se retomar o controle
sobre o país, evitar a generalização da violência e impedir que o povo
determinasse seu fim e aprofundasse as reformas. Aos fazendeiros mais
conscientes da situação, isto é, da impossibilidade de prolongamento
da escravidão, e que possuíam condições de oferecer “incentivos”
financeiros aos trabalhadores, coube a tentativa de controlar a
situação, antecipando-se ao governo. Com a queda do Ministério de
Cotegipe, último a combater o abolicionismo, e a ascensão de João
Alfredo justamente para abolir a escravidão, como fora evidenciado
na Fala do Trono realizada pela Princesa Imperial Regente e na
apresentação do programa de governo realizada na Câmara, a questão
do elemento servil passou a ser uma questão de tempo. A fim de evitar
a intromissão do Governo em suas relações com os escravos, algo
criticado e temido desde a discussão para a reforma da instituição no
final da década de 1870, é que muitos senhores se converteram ao
abolicionismo e emanciparam seus escravos – ou prometeram fazê-lo.
Era mais uma tentativa de manter o domínio sobre os trabalhadores
51  O constituicional, n. 3, p. 2, 6 mai. 1888.

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Entre a província e a nação

que se reconheciam necessários para a sobrevivência da lavoura e de


seu estilo de vida. O artigo sobre as libertações e acordos promovidos
pelo Sr. Seabra traz uma explicação interessante sobre os fatos e uma
promessa para os fazendeiros:
O nosso amigo ao comunicar aos seos escravos a sua intenção fez-
lhes ver que o governo tractava da extinção imediata da escravidão
e que talvez antes do prazo que elle marcara ficariam libertos,
acrescentando que se quisessem continuar na fasenda, onde muitos
nasceram e outros se crearam estava prompto á lhes dar salario
remunerador ou parceria. Os escravos mostraram-se saptisfeitos
com as palavras de seu senhor e prometeram não abandonal-o no
dia em que lhes fosse restituída a liberdade.52

Se o posicionamento dos conservadores do sul do Espírito Santo


foi de defesa da escravidão até seu quase completo desmantelamento,
seguida de uma comemoração pela abolição do regime nas páginas de
seu órgão de imprensa, resta-nos averiguar as condições e motivações
para o cumprimento ou não dessas promessas por parte dos ex-escravos,
bem como seu posicionamento diante da Pátria Livre.

Referências:
Fontes
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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 3 ago. 2018.
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52  O constituicional, n. 3, p. 2, 6 mai. 1888.

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CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da


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Vitória, 2012.

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Sua capa foi impressa em papel Supremo 250g/m² e seu
miolo em papel pólen soft 80g/m² medindo 15.5x23 cm, com uma
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