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LORELAI KURY

No calor da
pátria

LORELAI CURY
é professora da Casa
de Oswaldo Cruz e
da UERJ.
a
“ Chaque latitude a son empreinte,
chaque climat a sa couleur”
(Cabanis,1802).

tualmente, considerar a produção de conhecimento no Brasil


significa refletir, por exemplo, sobre redes internacionais,
instituições de ensino, pesquisa e fomento. Há dois séculos,
quando o campo das atividades científicas começava a se
instituir como instância autolegitimada, a própria situação
física e geográfica da América portuguesa era vista como empecilho
para a realização das atividades ditas “do espírito”. Essa opinião
não era nova, mas foi alvo de debate científico e filosófico a partir
do momento em que alguns letrados nascidos no Brasil passaram
a considerar central seu pertencimento ao espaço público de uma
pátria situada nos trópicos.
Em 1791 o pernambucano Manoel Arruda da Câmara (c. 1752-
1811) defendeu uma tese na Faculdade de Medicina de Montpellier
intitulada “Disquisitiones Quaedam Physiologico-chemicae, de
Influentia Oxigenii in Oeconomia Animali”1, na qual desenvolve o
argumento de que o oxigênio é responsável pela diversidade das
cores da espécie humana. Segundo ele, os negros nascem brancos
e adquirem gradualmente cor mais escura pelo contato com o ar.
Como prova desse fato – afirma – bastaria observar que a pele que
se esconde sob o prepúcio dos homens negros é branca. Os agentes
responsáveis pelas diferentes cores humanas seriam a menor ou
a maior quantidade de oxigênio, decorrente da temperatura e da
intensidade da luz solar, e qualquer outro fenômeno que interfira
na atuação do oxigênio, como a alimentação. Em seguida, discorre
sobre a necessidade que os seres humanos têm de “calórico”. Os
indivíduos que vivem em regiões onde o ar é frio ou rarefeito têm, 1 M. A. da Câmara, “Disquisi-
tiones Quaedam Physiologico-
chemicae, de Influentia Oxigenii
segundo o naturalista, pulmões maiores para abarcarem mais in Oeconomia Animali…”,
Montpellier, Joannem Martel
oxigênio e suprirem a falta de calor. Além disso, os habitantes dos nato Majorem, 1791, in M. A.
da Câmara, Obras Reunidas,
Recife, Fundação de Cultura
climas frios chegariam ao ponto de ter que se vestir com peles de Cidade do Recife, 1982.
Acervo Biblioteca Nacional de França.

Personagens
famosos do
Iluminismo,
dentre os
quais Voltaire,
reúnem-se em
jantar filosófico

animais para poder sobreviver. Daí Câmara devemos tomar o modelo ou a unidade com
conclui que a cor “natural” dos homens não a qual contrastar todos os demais matizes
seria a branca e sim a daqueles que habitam de cor e beleza”4.
as regiões intertropicais, os quais podem As concepções de Câmara, que contra-
sobreviver sem o auxílio de artifícios. riam idéias bastante difundidas no Século
O brasileiro chama em favor de sua das Luzes, acompanham-no ao longo de
asserção o célebre Lineu. Trata-se de uma sua vida. Em memória sobre a utilidade
tese, de 1763, sobre vegetais comestíveis, dos jardins, que escreveu quase 20 anos
em que se pode ler: depois, insiste na mesma tese: os primeiros
homens habitavam regiões intertropicais.
“Ao homem, saído inteiramente nu da nature- Nesse texto ele dá ênfase à facilidade de
za, parece com toda a verossimilhança terem alimentar-se nas zonas mais próximas do
sido destinadas as regiões tropicais, mais Equador, argumento – afirma ele – corro-
2 Johannes Salberg [Linnaeus],
quentes, ainda que por meio de sua indústria borado por Lineu:
“Fructus esculenti de”, in Amoeni-
tates Academicae, Upsala, v. 6 e sagacidade fizeram as regiões mais frias
(119), 1763. Salberg era aluno
de Lineu. Tradicionalmente, as habitáveis. O eterno estio tropical faz crescer “Se lançarmos um golpe de vista filosófico
teses são atribuídas ao mestre plantas verdes, flores e frutos por todo o ano, sobre a superfície do globo, veremos que os
e defendem seu ponto de vista.
Trecho traduzido do latim por C. e neste seu lugar natal, por conta disso, fez o países situados entre os trópicos parecem
Z. Camenietzki.
homem se alimentar das plantas”2. ser os únicos destinados pela Natureza para
3 Câmara não indica sua fonte.
Sobre os autores que refleti-
habitação dos homens; pois que só ali é que
ram acerca do estatuto das Ao evocar a autoridade de Lineu, Câ- ele pode viver comodamente sem o socorro
Américas, ver o clássico: An-
tonello Gerbi, La Disputa del mara opõe-se explicitamente a autores d’Arte, e nutrir-se dos inumeráveis frutos
Nuevo Mundo. História de como Buffon e Valmont de Bomare3, que, que a terra prodigamente lhe liberaliza, e
Una Polémica, México, Fondo
de Cultura Económica, 1960. segundo ele, levados pelo amor a sua pátria, que se não encontram nos países vizinhos
4 Buffon, Histoire Naturelle, consideravam que a cor natural dos homens dos pólos”5.
Générale et Particulière, 1749-
1767.
seria o branco. Para Buffon, com efeito, o
5 M. A. da Câmara, Discurso
habitat inicial da espécie humana seria sob O mesmo tema está presente em seu mais
sobre a Utilidade da Instituição um clima temperado, entre 40 e 50 graus famoso escrito: Memória sobre a Cultura
de Jardins nas Principais Provín-
cias do Brasil, Rio de Janeiro, de latitude. Segundo esse autor “é também dos Algodoeiros, de 1797, publicado em
Impressão Régia, 1810, in M. nesta zona que se encontram os homens mais Portugal pela tipografia do Arco do Cego
A. da Câmara, op. cit., p.
198. belos e mais bem feitos; é neste clima que em 1799, e também estampado, com ligeiras

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modificações, no periódico O Patriota (no atitude corrente, a valorização dos indígenas
Rio de Janeiro) ao longo do ano de 1813. com base em argumentos científicos, sobre-
Nessa memória desenvolve diversos as- tudo químicos, é uma apropriação bastante
suntos relacionados ao algodão, inclusive original da história natural da época.
reflexões filosóficas sobre sua utilidade. A Outros naturalistas luso-americanos
produção de tecidos a partir da planta impõe das Luzes sustentavam a idéia de que as
a consideração das relações da humanidade cores da pele humana dependiam apenas
com as roupas em termos de uma lógica de do ambiente e não alteravam a essência
desenvolvimento das ciências e das artes do ser humano. No entanto, Arruda da Câ-
baseada na necessidade e no acaso. Segun- mara vai a um nível de explicação muito
do ele, a tecelagem não deve ter sido das mais complexo, apontando como se daria
primeiras artes a serem inventadas, já que a ação física e química do ambiente sobre
no início não haveria necessidade de panos o corpo humano.
para esquentar o corpo, pois os primeiros Seu contemporâneo Alexandre Rodri-
homens certamente teriam vivido em um gues Ferreira (1756-1815) defendia de
clima ameno. Um dos desdobramentos forma genérica o ponto de vista de que as
da reflexão sobre o “homem natural” e o cores dependem do clima e não seriam o
tecido foi a relativização do pudor. Afirma
Câmara em nota: Acervo da Biblioteca de Guita e José Mindlin
Gravura de
“O pudor, que hoje nos parece tão natural máquina para
em um e outro sexo, não podia decidir
destilação
o homem a inventar, nem dar o mínimo
para a invenção da arte de tecer; porque a publicada no
maior parte do povo selvagem, que vive periódico
nos bosques do Brasil em um estado bem
vizinho ao natural, anda inteiramente nua:
O Patriota,
eu vi na Aldeia de S. Gonçalo na minha 1813
viagem do Piauí, 160 índios, Gamelas de
nação, desentranhados há pouco daqueles
vastos matos, andarem inteiramente nus, e
tão despojados, que se apresentavam assim
mesmo à maior publicidade, tanto mulheres,
como homens”6.

Assim, a partir desses exemplos, es- resultado de nenhum processo de degenera-


colhidos dentre os seus mais importantes ção, como pensavam diversos philosophes.
6 O Patriota, Rio de Janeiro,
escritos, pode-se perceber que Câmara É importante ressaltar que sua crença na jan./1813, p. 24.
norteia suas investigações filosóficas no sen- universalidade do homem não acarretava ne- 7 Sobre a noção de pátria, cf.
tido de valorizar o Brasil e seus habitantes cessariamente a defesa “humanitária”8 sem O Patriota (1813-1814): Luzes
Imperiais, Fiocruz/Biblioteca
indígenas. O “patriotismo” de Câmara não mediações dos indígenas ou dos africanos. Nacional, 2007 (no prelo).
deve ser confundido com o nacionalismo Durante sua estada no Brasil por ocasião da 8 O caráter “humanitário” das
ideologias da época não
posterior. Homem da esfera de influência de assim chamada “viagem filosófica”, teve acarretava necessariamente
D. Rodrigo de Souza Coutinho, o naturalista oportunidade de recomendar a guerra con- concepções de igualdade civil
ou política. Cf. Michèle Duchet,
provavelmente valorizava a natureza e os tra os muras. Acreditava também ser útil o 1995.
habitantes do Brasil como sendo uma porção envio anual de pelo menos 1.500 escravos 9 Eduardo Galvão e Carlos
privilegiada do Império português7. Muitas africanos para a Amazônia e Mato Grosso, Moreira Neto, “Introdução”,
in Alexandre Rodrigues Fer-
vezes suas referências são Pernambuco e aparentemente seguindo o modelo adotado reira, Viagem Filosófica pelas
Capitanias do Grão-Pará, Rio
a América, muito mais que um genérico nas Antilhas9. Apesar disso, do ponto de Negro, Mato Grosso e Cuiabá.
Brasil. É importante ressaltar que, embora a vista da história natural, ou seja, da des- Memórias – Antropologia. S. l.,
Conselho Federal de Cultura,
exaltação da natureza americana fosse uma crição física e moral das “variedades” da 1974, p. 19.

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A. R. Ferreira. Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, RJ, Conselho Federal de Cultura, 1971

Gravura da
viagem de
Alexandre
Rodrigues
Ferreira. Os
indígenas são
retratados
em ambiente
tropical

espécie humana, Ferreira parece considerar as características da região tropical como


a cor dos homens como uma característica naturais. Sua geração foi identificada por
circunstancial. Sobre os negros africanos Maria Odila da Silva Dias como a primeira
escreveu pouco e nunca como tema central que buscou adequar os conhecimentos eu-
das memórias. Já os indígenas brasileiros ropeus à vida nas terras brasileiras. Dessa
mereceram descrições mais cuidadosas experiência advieram, em muitos casos,
e criteriosas, tanto em textos escritos em soluções próprias e originais, adequadas
função de um mapeamento físico e polí- ao meio11. Creio que, justamente por causa
tico da população da América portuguesa, desse processo de assenhoramento das terras
quanto em reflexões mais teóricas acerca da brasileiras, a avaliação das influências do
espécie humana. Sobre esse ponto, redigiu clima foi um dos pontos básicos sobre o
uma interessante memória sobre a “classe qual essa geração refletiu.
dos mamíferos”, em que afirma: Algumas décadas depois, em período
no qual os homens de letras e de ciências
“A diversidade de sua cor, os diversos se dedicaram ao processo de construção de
10 Alexandre Rodrigues Ferreira, lugares em que habita, os seus usos e uma identidade nacional, a questão ganhou
“Observações Gerais e Par- faculdades corporais, indicam que, como contornos mais nítidos e maior centralidade.
ticulares sobre a Classe dos
Mamíferos Observados nos em outros animais, também a sua espécie Em 1836, alguns brasileiros publicaram
Territórios dos Três Rios das Ama-
zonas, Negro, e da Madeira:
apresenta variedades. Nesse sentido o índio em Paris dois números de uma revista, que
com Descrições Circunstancia- tapuia é uma delas. Ele é tão homem como se tornou posteriormente um dos marcos
das, que Quase Todos Eles,
Deram os Antigos, e Modernos o europeu, o asiático e o africano; em razão iniciais de nosso Romantismo: Nicteroy.
Naturalistas, e Principalmente, da diversidade de sua cor e do país de sua Domingos José Gonçalves de Magalhães,
com a dos Tapuios”, in Viagem
Filosófica pelas Capitanias do habitação, nós pelo nome de sua própria no texto que se tornaria famoso, Ensaio
Grão-Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuiabá. Memórias língua os denominamos de tapuias […]. sobre a História da Literatura no Brasil,
– Zoologia e Botânica, S. l., Os tapuias não têm outra diferenças senão aborda o tema do clima tropical, passagem
Conselho Federal de Cultura,
1972, p. 74. as que são acidentais ao ser humano”10. obrigatória para quem, no Brasil, desejasse
11 M. O. da Silva Dias, “Aspectos se afirmar como homem de letras, poeta ou
da Ilustração no Brasil”, in
Revista do IHGB, primeiro
Ferreira e Câmara, apesar das diferen- qualquer atividade que demandasse qualida-
trimestre, 1968, pp. 105-70. ças de método e de enfoque, buscam tratar des do “espírito”. Magalhães expressa, nesse

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ensaio, alguns pressupostos que funcionam O famoso naturalista do século das Luzes Abaixo,
como base para suas reflexões. Ele toma a fora um dos principais críticos da natureza
influência do clima sobre as pessoas como americana. Ele buscou explicar o que acre-
gravura de
fato estabelecido e remete o leitor à autori- ditava ser uma insuficiência canora das aves tipos indígenas
dade de Buffon e de Montesquieu: da América por meio da influência nefasta
referente
do clima e pelo fato de os pássaros terem
“Tão geralmente conhecida é hoje essa como modelo as vozes dos indígenas, que à viagem de
verdade que a disposição e caráter de um considerava desagradáveis. Spix e Martius
país grande influência exerce sobre o físico No século XIX, algumas das crenças
e o moral dos seus habitantes que a damos dos séculos anteriores foram renovadas.
ao Brasil
como princípio e cremos inútil insistir em Hegel foi um dos que ajudaram a fixar a (1817-1820)
demonstrá-la com argumentos e fatos, por imagem negativa da sonoridade do Novo
tantos naturalistas e filósofos apresentados. Mundo. Apoiado nos relatos científicos de
Aí estão Buffon e Montesquieu que assaz Johan Baptist von Spix e Carl Friedrich
o demonstram”. Philipp von Martius, o professor de Iena
estabeleceu a existência de uma oposição
Magalhães defende essencialmente dois entre calor e som:
argumentos nesse ensaio. Em primeiro
lugar, afirma que o clima e a natureza do “Nos pássaros tropicais é portanto o calor
Brasil teriam necessariamente influencia- que não preserva em si, mas funde e impul-
do a sensibilidade de seus habitantes, daí siona para o brilho metálico da cor este ser-
afirmar que os indígenas brasileiros eram em-si, este estado de sua idealidade interna
extremamente musicais: como voz; isto é, o som naufraga no calor.
A voz já é na verdade algo mais alto que
“[…] este abençoado Brasil com tão felizes o som, mas também a voz se mostra aqui
disposições de uma pródiga natureza, neces- nesta oposição ao calor do clima”12.
sariamente devia inspirar os seus primeiros
habitantes; os brasileiros – músicos e poetas Hegel cita em nota um trecho do relato
– nascer deviam. E quem o duvida? Eles da viagem de Spix e Martius ao Brasil, 12 Hegel, verbete “O Calor”, §
303, Enciclopédia das Ciên-
foram e ainda o são. Por alguns escritos realizada entre 1817 e 1820, no qual os cias Filosóficas em Compêndio:
antigos, sabemos que algumas tribos indí- viajantes descrevem o belo canto de um 1830, São Paulo, Loyola,
1997, vol. II (A Filosofia da Na-
genas se avantajam pelo talento da música pássaro brasileiro, embora, segundo eles, tureza), p. 197 (grifo meu).
e da poesia, entre todas, os tamoios, que
no Rio de Janeiro habitavam, eram os mais
talentosos.”

O segundo argumento diz respeito à


“imaginação” e ao talento dos novos ha-
bitantes do Brasil. Segundo ele: “A poesia
brasileira não é uma indígena civilizada; é
uma grega vestida à francesa e à portuguesa,
e climatizada no Brasil”.
Assim, Gonçalves de Magalhães resol-
ve uma questão fundamental: que tipo de
influência poder-se-ia esperar do clima do
Brasil? A tese do poeta é bem mais radical
do que parece à primeira vista. Boa parte
dos que escreveram sobre a natureza brasi-
leira e a musicalidade dos trópicos afirmava
exatamente o oposto, inclusive Buffon, a
quem Magalhães não deixa de se referir.
Spix, Johan Baptist von e Martius, Carl F. Phil. von. Reise in Brasilien, Munique, 1823-1832, 3 vols. e atlas.

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seja “costume negar aos cantores da floresta as extremidades das fibras exteriores do
americana toda expressão harmoniosa e corpo, o que as diminui e aumenta sua força
conceder-lhes somente como vantagem o e elasticidade. Isso favoreceria o retorno do
esplendor das cores”. O exemplo que dão, sangue das extremidades para o coração. O
apesar de não se igualar ao canto do rouxinol, ar quente, ao contrário, relaxa as extremi-
demonstraria que há melodia no canto das dades das fibras e as alonga, diminuindo
aves brasileiras. Os bávaros acrescentam, sua força e sua elasticidade. Daí, conclui
entretanto: que nos climas frios o coração tem mais
potência. Os efeitos disso são: maior vigor,
“De resto é imaginável que, se um dia dei- mais coragem, consciência de sua superio-
xarem de ressoar pelas florestas do Brasil ridade e menor desejo de vingança, maior
os quase inarticulados sons de homens de- franqueza. Além disso, o frio contrai a pele
generados [os indígenas], também muitos e fecha seus poros, reduzindo a sensibili-
dos emplumados cantores hão de produzir dade das terminações nervosas, que ficam
refinadas melodias”13. protegidas da ação dos objetos exteriores.
O argumento prossegue:
Assim, Spix e Martius sugerem que as
vozes dos animais sejam uma espécie de “Nos países frios ter-se-á pouca sensibili-
imitação da fala humana. Como, de acordo dade para os prazeres; ela será maior nos
com as teorias de Martius, os indígenas países temperados; nos países quentes,
brasileiros seriam os descendentes dege- ela será extrema. Como distinguimos os
nerados de povos mais desenvolvidos, o climas pelo grau da latitude, poder-se-ia
canto dos pássaros brasileiros não teria distingui-los, por assim dizer, pelos graus
modelo de beleza para inspirá-lo. Em He- de sensibilidade”.
gel, homens, pássaros e calor articulam-se
organicamente nesse lugar essencialmente Nos países quentes reinaria, assim, a
tropical, alheio à história e ao desenvolvi- busca pelo prazer sensorial e sexual, em
mento do espírito14. detrimento da moral. A conclusão a que
Nada mais distante da poesia dos tamoios chega estabelece um perfil dos habitantes
de Gonçalves de Magalhães do que os gru- do planeta em consonância com o lugar em
nhidos atribuídos aos indígenas por Martius. que habitam:
13 Trechos citados por Hegel, No entanto, em todos os autores citados há
loc. cit. A primeira edição
do primeiro volume da Reise uma certeza: não há discordância quanto ao “Encontraremos nos climas do norte povos
in Brasilien é de 1823. Cf. a
edição brasileira: J. B. von Spix
império do clima sobre a arte, a beleza, o com poucos vícios, bastante virtudes, muita
e C. F. Ph. Von Martius, Viagem caráter, os costumes e as aptidões dos ho- sinceridade e franqueza. Aproximemo-nos
pelo Brasil. 1817-1820, 1981,
p. 115, vol.1. mens e animais. Gonçalves de Magalhães se dos países do meio-dia, acreditaremos es-
14 Além de várias referências remete a Buffon e Montesquieu no que diz tar longe da própria moral: as paixões as
extraídas da obra de Spix respeito à existência das determinações do mais vivas multiplicarão os crimes: cada
e Martius, outros relatos de
viajantes ao Brasil serão fontes clima, já que o poeta faz a inversão do pólo qual buscará a tomar sobre os outros todas
importantes para Hegel a
propósito do “retardamento”
negativo para o positivo e não uma crítica as vantagens que possam favorecer essas
histórico-cultural dos povos aos pressupostos desses autores. Montes- mesmas paixões. Nos países temperados,
nativos tropicais como produto
das condições “adversas” do quieu é a principal referência dos séculos encontraremos povos inconstantes em suas
meio geográfico e biológico, XVIII e XIX no que se refere ao caráter dos maneiras, nos seus vícios e virtudes; o cli-
entre eles os de Maximiliano
de Wied-Neuwied e Henry povos que habitam os países quentes. ma não possui qualidade suficientemente
Koster.
Em seu famoso livro De l’Esprit des determinada para fixá-los”16.
15 Pierre Bourdieu, “A Retórica da
Cientificidade. Contribuição Lois, de 1757, embora não se refira dire-
para uma Análise do Efeito tamente aos americanos – seu alvo são os As palavras de Montesquieu sintetiza-
Montesquieu”, in A Economia
das Trocas Lingüísticas. O que habitantes da Ásia –, o filósofo sintetizou ram de forma tão convincente as relações
Falar Quer Dizer, São Paulo,
Edusp, 1996.
e sistematizou diversos elementos tradicio- entre climas e povos, que seus ecos se fazem
nais e modernos, numa espécie de “teoria sentir não apenas na época das Luzes. Por
16 Montesquieu, O Espírito das
Leis, 1757, livro XIV. das fibras”15. Segundo ele, o ar frio contrai exemplo, os textos médicos que tratavam

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da aclimatação de pessoas a climas estran- de monopólios de saber, construíram a
geiros, ao longo de todo o século XIX, identidade dos homens de letras e de ciên-
baseavam-se nas mesmas premissas do cias nacionais em diálogo permanente com
grande homme de lettres. É claro que idéias a tradição. No Brasil, a questão nacional
semelhantes às de Montesquieu, como forjou-se intimamente associada à questão
já foi dito, estão presentes em diversos do clima. Ao reavaliar de forma positiva o
outros autores, inclusive no médico grego determinismo ambiental e ao inverter as
Hipócrates, sem o julgamento negativo dos concepções eurocêntricas, muitos conce-
climas quentes. beram a idéia de que só um brasileiro pode
O que têm em comum os textos dos bra- conhecer o Brasil.
sileiros? A sombra de Montesquieu, ou seja, Um exemplo significativo da afirmação
a reflexão sobre a possibilidade da existên- de que só o saber produzido por brasileiros
cia de instituições civilizadas no Brasil. As é autêntico vem da primeira expedição
considerações sobre os indígenas não tratam científica nacional: a Comissão Científica
exclusivamente dos primeiros habitantes do de Exploração (1859-61). Idealizada pelo
Brasil: os naturalistas e homens de letras e IHGB e patrocinada pelo governo imperial,
de ciências falam também de si, da possi- a expedição percorreu regiões do Nordes-
bilidade de sua própria existência. te brasileiro, principalmente do Ceará. A
Gonçalves de Magalhães, ao afirmar que equipe era composta por Francisco Freire
a poesia brasileira era uma européia acli- Alemão, Guilherme Schüch Capanema,
matada no Brasil, resguarda, no entanto, a Manuel Ferreira Lagos, Giacomo Raja
possibilidade de inserção da cultura nacional Gabaglia, Antonio Gonçalves Dias e pelo
no universo das nações ditas civilizadas. pintor José dos Reis Carvalho, além de
Além disso, traça uma linhagem grega para diversos ajudantes.
a cultura brasileira e seus porta-vozes. A Malfalada, de reputação duvidosa, alguns
imagem da aclimatação é bastante signifi- chegaram a referir-se a ela como comissão
cativa: o meio deixa suas marcas em uma “defloradora”18, em alusão às incursões
matriz que vem do exterior. sexuais dos participantes pelos sertões. Seu
Assim, da Ilustração à primeira geração principal apelido foi, no entanto, “Comissão
romântica, os homens de ciência locais das Borboletas”, o que desvia a crítica da
forjaram sua identidade e legitimaram sua moralidade para a inutilidade da empreitada.
demanda para produzir saber enfrentando Atualmente, a memória da expedição ficou
conceitualmente a idéia de que os climas associada à presença do poeta Gonçalves
quentes não são adequados para a produção Dias e à malograda tentativa de naturalização
de conhecimento válido. Além disso, espe- de dromedários no Ceará promovida pelos
rava-se que no Brasil o modo de vida e a pro- viajantes, em associação com a Société Im-
dução artística e intelectual encontrassem périale d’Acclimatation, de Paris.
formas particulares de existência, fugindo, Diversos brasileiros já haviam percor-
dessa maneira, da imitação da civilização rido o país com propósitos científicos; a
européia; caso contrário, as características Comissão Científica de Exploração, no
culturais locais estariam condenadas a ser entanto, caracterizou-se por sua dimensão
caricaturas do original bem-sucedido. Como inusitada e por abarcar diversas áreas do
pano de fundo desses desejos, reside a crença conhecimento. Gonçalves Dias e Raja Ga- 17 Expressão de Bourdieu, op.
na adequação da natureza humana ao am- baglia compraram, na Europa, o que tinha cit.

biente. Qualquer que seja a posição política, de mais moderno e confiável em termos 18 Cf. Renato Braga, História
da Comissão Científica de
filosófica e científica a que se chegasse, o de instrumentos científicos. Compraram Exploração, s.l., Imprensa
enfrentamento do “efeito Montesquieu”17 também uma biblioteca científica, enco- Universitária do Ceará, 1962,
p. 52; e carta de Gonçalves
era inevitável. mendada ao livreiro Brockhaus, de Leipi- Dias a Antonio Henriques Leal,
Ceará, 17 de julho de 1859,
As gerações posteriores, que viveram zig, contendo uns 2.000 volumes de livros in Anais da Biblioteca Nacional
o período de estabilidade do Império, de e periódicos, em grande parte ilustrados, (Correspondência ativa de Gon-
çalves Dias), vol. 84, 1964, p.
consolidação de instituições e de fixação escolhidos a dedo. 258.

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Tamanha despesa só pôde ser feita por descrição do Rio Amazonas e seu entorno,
causa do interesse do imperador pela ex- que ele diz lembrar um imenso arquipélago:
pedição e por ter o patrocínio do Instituto “O Amazonas! Ao pronunciar esta palavra
Histórico e Geográfico Brasileiro, uma das todo o coração brasileiro estremece.” Em
mais respeitadas instituições da Corte. Di- seguida, descreve a vegetação, “vigorosa
zem os documentos oficiais que a expedição e rica”, que perfuma os ares. Diante de tal
nasceu por proposta de Manuel Ferreira natureza, o descrente abandonaria a ima-
Lagos, secretário do IHGB e assistente de ginação sombria e sentiria orgulho de se
zoologia do Museu Nacional. Seu principal chamar “brasileiro”. Porém, o reverso da
argumento ao convocar os sábios brasileiros moeda é “todo o arsenal do diabo em número
para a realização de uma expedição cientí- infinito de instrumentos”: Meruins, micuins,
fica era a necessidade de pôr fim aos erros piuns, mosquitos, mutucas, aranhas, lacraus,
difundidos pelos naturalistas estrangeiros. cobras, etc. Assim,
Na sessão do IHGB em que fez sua proposta,
o secretário atacou o relato de viagem de “Nesta Babel de pragas, a poesia, como
Castelnau, que estivera no Brasil entre 1843 passarinho ao cair da tarde, esconde-se,
e 1847. Com a proliferação de viajantes a que ninguém sabe mais notícias dela. En-
partir de 1808, com efeito, muitos relatos gano-me: a poesia do naturalista, botânico
traçam panoramas fantasiosos das cidades ou zoólogo, principalmente se é alemão,
visitadas ou, então, descrevem aspectos da resiste a tudo. Martius no Japurá ou Grão-
sociedade que muitos preferiam relativizar, Caquetá, como melhor se chame, fez um
tais como a escravidão e os costumes popu- poema à solidão das florestas”.
lares. Num contexto de afirmação das elites
imperiais, as instituições locais reivindicam Não que deixasse de admirar a musa
para si o status de produtores de conheci- alemã, ao contrário, ele a desvela da se-
mento sobre a natureza e a sociedade. guinte maneira:
Um corolário da crítica ao trabalho dos
estrangeiros foi a exaltação do gênio nacional “É uma dessas donzelas, um pouco intei-
e a crença de que só um brasileiro seria capaz riças, mas cheias de poesia e dignas de
de compreender o Brasil e suas regiões. acatamento, atravessando as vastas salas
Gonçalves Dias, membro da Comissão de um antigo castelo feudal, entre retra-
Científica de Exploração, também criti- tos que amedrontam e amplos rases, que
cou, à sua maneira, os cientistas europeus. movidos ao sopro de vento frígido numa
Depois de ter percorrido o Ceará, o poeta noite de inverno, dão vida e movimento a
foi para a Amazônia dar prosseguimento a um mundo fantástico, ideal e para sempre
suas pesquisas etnológicas, pois não achara desvanecido!”
quase índios em suas andanças sertanejas.
De Manaus, pouco antes de voltar ao Rio, e Do mundo ideal povoado por Kant,
de lá para a Europa, Dias escreve uma longa Fichte ou Schelling, a musa alemã é evocada
carta a seu amigo Antonio Henriques Leal19, pelo poeta e convidada a descer: “Musa,
para ser publicada. Nessa missiva, um dos onde me sobes?! – Desce, vadia, senta-te
seus melhores escritos sobre a Amazônia, com propósito, e conta-nos…/ Ai! Já me
Dias estabelece uma comparação entre esquecia que se tratava de pragas, micuins,
a observação de um brasileiro e a de um e miudezas quejandas!”. Desse modo, Dias
estrangeiro, representados por ele e pelo ironiza a metafísica alemã e traça para o
naturalista Martius. Vale lembrar que o conhecimento brasileiro um caminho que
bávaro em nada se assemelha a um viajante é o de conhecimento sensorial, concreto, de
19 Carta de Gonçalves Dias a An- superficial e mentiroso; ao contrário, é con- quem, à beira dos rios e em meio às florestas,
tonio Henriques Leal, Manaus,
20 de dezembro de 1861, siderado um dos maiores especialistas em convive com os males que reinam no país:
in Anais, vol. 84, op. cit., p. história natural e cultura brasileiras do sé- doenças, insetos, animais peçonhentos,
311-317 (publicada no jornal
amazonense O Progresso). culo XIX. O texto de Dias começa com uma povo ignorante, abandono, pobreza. Em

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seu diário de viagem ao Rio Negro deixou da antropologia física. Diz que é possível
registradas algumas impressões aterradoras, que exista relação entre a capacidade do
como esta, quando saía de Tomar: crânio e a quantidade de matéria cerebral,
“ainda que há nisso muito que se lhe diga”.
“A igreja sem janelas e sem fechaduras – os Procurava, ainda, no comércio europeu, um
santos e alguns pobres paramentos fechados goniômetro facial, indicado por Lagos, mas
na sacristia. O professor não tem alunos. acrescenta: “[…] também se o não achar,
É tudo miséria e destruição. O diretor dos não é grande a perda, pois que não creio
Índios de Mariná está no Pará – não deixou muito no sistema. Seria preferível um dina-
quem fizesse as suas vezes”20. mômetro para ver que o caboclo23 tem mais
guzo”24. “Guzo”, segundo a definição do
A reivindicação de “realidade”, da parte Dicionário de Caldas Aulete, é palavra de
de Dias, não impede a exaltação da natureza origem africana que designa força. A defesa
pátria. Não faltariam exemplos de passagens do vigor físico e cultural dos indígenas se
em louvor das belezas e riquezas naturais do harmoniza com o que todos os brasileiros
Brasil. Sua abordagem foi, no entanto, bem possuem em comum: a beleza e o encanto
diferente do indianismo da primeira geração do país. Para a Amazônia, o poeta escreveu
romântica. A investida estética e intelectual uma espécie de hino em honra da pátria. A
do poeta maranhense, que transitou mais natureza preside à celebração. Lá
ou menos à vontade entre Paris, o Cariri e
o Amazonas, teve suporte antropológico. “[…] respira-se às largas, em ondas, a
Em sua memória apresentada ao IHGB, plenos pulmões, como se toda a atmosfera
Brasil e Oceania21, já havia defendido a não bastasse para satisfazer a sede de olfato,
tese de que os tupis brasileiros têm mais que se desperta sôfrega, que é poesia ainda,
capacidade de civilizar-se que os nativos que se converte em amor! – amor por todos
20 Antônio Gonçalves Dias, Diário
dos mares do Sul. quantos respiram sob este céu abençoado, da Viagem ao Rio Negro, Rio de
Quando ainda estava na Europa, às voltas e cujos peitos, se alguns tendes por perto, Janeiro, ABL, 1997, p. 46.

com a compra de livros e material para a arfam acordes convosco num sentimento 21 Idem, “Brazil e Occeania”, in
Obras Posthumas, São Luiz, s.
comissão, Dias comprou um craniômetro invisível de amor da pátria e benevolência edit., 1869.
e buscava um cefalômetro que constava recíproca”25. 22 Reproduzidas em Braga, op.
de sua lista, embora achasse que ambos se cit., pp. 202 a 209.

equivalessem, já que não há como medir Gonçalves Dias não se libertara do “efeito 23 Nos documentos relativos às
suas viagens, Gonçalves Dias
o cérebro propriamente dito. Esses instru- Montesquieu”. Estava em jogo na valoriza- se refere aos índios como
“caboclos”.
mentos seriam necessários para seguir as ção da natureza brasileira a possibilidade de
instruções da seção etnográfica22, estabe- produção local de conhecimento e de cultu- 24 Carta de Gonçalves Dias a
Capanema, Paris, 3 de setem-
lecidas em 1857, fortemente impregnadas ra. Nesse sentido, o indianismo romântico bro de 1857, in Anais…, vol.
84, op. cit., p. 227.
pelas teorias raciais então em voga, em que ou a reflexão sobre o homem natural dos
25 Carta de Gonçalves Dias
são citados Camper e Gall. O poeta, de todo ilustrados podem ser compreendidos como a Antonio Henriques Leal,
modo, não parece totalmente convencido movimentos de redefinição da tradicional Manaus, 20 de dezembro de
1861, in Anais..., vol. 84, op.
da pertinência dos métodos de medição divisão climática das competências. cit., p. 314.

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