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No calor da
pátria
LORELAI CURY
é professora da Casa
de Oswaldo Cruz e
da UERJ.
a
“ Chaque latitude a son empreinte,
chaque climat a sa couleur”
(Cabanis,1802).
Personagens
famosos do
Iluminismo,
dentre os
quais Voltaire,
reúnem-se em
jantar filosófico
animais para poder sobreviver. Daí Câmara devemos tomar o modelo ou a unidade com
conclui que a cor “natural” dos homens não a qual contrastar todos os demais matizes
seria a branca e sim a daqueles que habitam de cor e beleza”4.
as regiões intertropicais, os quais podem As concepções de Câmara, que contra-
sobreviver sem o auxílio de artifícios. riam idéias bastante difundidas no Século
O brasileiro chama em favor de sua das Luzes, acompanham-no ao longo de
asserção o célebre Lineu. Trata-se de uma sua vida. Em memória sobre a utilidade
tese, de 1763, sobre vegetais comestíveis, dos jardins, que escreveu quase 20 anos
em que se pode ler: depois, insiste na mesma tese: os primeiros
homens habitavam regiões intertropicais.
“Ao homem, saído inteiramente nu da nature- Nesse texto ele dá ênfase à facilidade de
za, parece com toda a verossimilhança terem alimentar-se nas zonas mais próximas do
sido destinadas as regiões tropicais, mais Equador, argumento – afirma ele – corro-
2 Johannes Salberg [Linnaeus],
quentes, ainda que por meio de sua indústria borado por Lineu:
“Fructus esculenti de”, in Amoeni-
tates Academicae, Upsala, v. 6 e sagacidade fizeram as regiões mais frias
(119), 1763. Salberg era aluno
de Lineu. Tradicionalmente, as habitáveis. O eterno estio tropical faz crescer “Se lançarmos um golpe de vista filosófico
teses são atribuídas ao mestre plantas verdes, flores e frutos por todo o ano, sobre a superfície do globo, veremos que os
e defendem seu ponto de vista.
Trecho traduzido do latim por C. e neste seu lugar natal, por conta disso, fez o países situados entre os trópicos parecem
Z. Camenietzki.
homem se alimentar das plantas”2. ser os únicos destinados pela Natureza para
3 Câmara não indica sua fonte.
Sobre os autores que refleti-
habitação dos homens; pois que só ali é que
ram acerca do estatuto das Ao evocar a autoridade de Lineu, Câ- ele pode viver comodamente sem o socorro
Américas, ver o clássico: An-
tonello Gerbi, La Disputa del mara opõe-se explicitamente a autores d’Arte, e nutrir-se dos inumeráveis frutos
Nuevo Mundo. História de como Buffon e Valmont de Bomare3, que, que a terra prodigamente lhe liberaliza, e
Una Polémica, México, Fondo
de Cultura Económica, 1960. segundo ele, levados pelo amor a sua pátria, que se não encontram nos países vizinhos
4 Buffon, Histoire Naturelle, consideravam que a cor natural dos homens dos pólos”5.
Générale et Particulière, 1749-
1767.
seria o branco. Para Buffon, com efeito, o
5 M. A. da Câmara, Discurso
habitat inicial da espécie humana seria sob O mesmo tema está presente em seu mais
sobre a Utilidade da Instituição um clima temperado, entre 40 e 50 graus famoso escrito: Memória sobre a Cultura
de Jardins nas Principais Provín-
cias do Brasil, Rio de Janeiro, de latitude. Segundo esse autor “é também dos Algodoeiros, de 1797, publicado em
Impressão Régia, 1810, in M. nesta zona que se encontram os homens mais Portugal pela tipografia do Arco do Cego
A. da Câmara, op. cit., p.
198. belos e mais bem feitos; é neste clima que em 1799, e também estampado, com ligeiras
Gravura da
viagem de
Alexandre
Rodrigues
Ferreira. Os
indígenas são
retratados
em ambiente
tropical
biente. Qualquer que seja a posição política, de mais moderno e confiável em termos 18 Cf. Renato Braga, História
da Comissão Científica de
filosófica e científica a que se chegasse, o de instrumentos científicos. Compraram Exploração, s.l., Imprensa
enfrentamento do “efeito Montesquieu”17 também uma biblioteca científica, enco- Universitária do Ceará, 1962,
p. 52; e carta de Gonçalves
era inevitável. mendada ao livreiro Brockhaus, de Leipi- Dias a Antonio Henriques Leal,
Ceará, 17 de julho de 1859,
As gerações posteriores, que viveram zig, contendo uns 2.000 volumes de livros in Anais da Biblioteca Nacional
o período de estabilidade do Império, de e periódicos, em grande parte ilustrados, (Correspondência ativa de Gon-
çalves Dias), vol. 84, 1964, p.
consolidação de instituições e de fixação escolhidos a dedo. 258.
com a compra de livros e material para a arfam acordes convosco num sentimento 21 Idem, “Brazil e Occeania”, in
Obras Posthumas, São Luiz, s.
comissão, Dias comprou um craniômetro invisível de amor da pátria e benevolência edit., 1869.
e buscava um cefalômetro que constava recíproca”25. 22 Reproduzidas em Braga, op.
de sua lista, embora achasse que ambos se cit., pp. 202 a 209.
equivalessem, já que não há como medir Gonçalves Dias não se libertara do “efeito 23 Nos documentos relativos às
suas viagens, Gonçalves Dias
o cérebro propriamente dito. Esses instru- Montesquieu”. Estava em jogo na valoriza- se refere aos índios como
“caboclos”.
mentos seriam necessários para seguir as ção da natureza brasileira a possibilidade de
instruções da seção etnográfica22, estabe- produção local de conhecimento e de cultu- 24 Carta de Gonçalves Dias a
Capanema, Paris, 3 de setem-
lecidas em 1857, fortemente impregnadas ra. Nesse sentido, o indianismo romântico bro de 1857, in Anais…, vol.
84, op. cit., p. 227.
pelas teorias raciais então em voga, em que ou a reflexão sobre o homem natural dos
25 Carta de Gonçalves Dias
são citados Camper e Gall. O poeta, de todo ilustrados podem ser compreendidos como a Antonio Henriques Leal,
modo, não parece totalmente convencido movimentos de redefinição da tradicional Manaus, 20 de dezembro de
1861, in Anais..., vol. 84, op.
da pertinência dos métodos de medição divisão climática das competências. cit., p. 314.