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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

Ângelo Custódio Néri de Oliveira


Claudia Maisa Antunes Lins
Edmerson dos Santos Reis
Edineusa Ferreira Sousa
Eliene Rodrigues Silva
Ivânia Paula Freitas de Souza
Josemar da Silva
Lucineide Martins Araújo
Luzineide Dourado Carvalho
Vanderléa Andrade Pereira

Secretaria Executiva da RESAB


Selo Editorial RESAB
Editor responsável: Secretaria Executiva RESAB
Capa e Ilustração: Vanderléa Andrade Pereira
Impressão: Gráfica Gutenberg

RESAB. Secretaria Executiva


Educação para a Convivência com o Semiárido: Reflexões teórico-práticas. 3ª Edição
Juazeiro\Ba: Secretaria Executiva da Rede de Educação do Semiárido Brasileiro, Selo
Editorial-RESAB,2006.

156P.II
1.Brasil- regiões semiáridas. 2. Educação- Brasil- Regiões semiáridas I. Título.

3ª Edição
Todos os direitos dessa edição reservados ao Selo Editorial RESAB
Telefone: (E-mail: sec.exec-resab@gmail.com

Sumário
Autores e Autoras 05
Apresentação 08
Educação para a convivência com o Semiárido e para o Combate á Desertificação
11
Prefácio 13
Mirtes Cordeiro
A Emergência da Lógica da “Convivência com o Semiárido e a Construção de uma Nova
Territorialidade” 17
Luzineide Dourado
Anotações em torno do Conceito de Educação para a Convivência com o Semiárido
37
Josemar Martins
Anotações sobre a interação em rede 69
Josemar Martins
Desafios e Bases para a Construção de uma nova política de Gestão Educacional no
Semiárido Brasileiro e no Brasil 63
Edmerson dos Santos Reis

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Reflexões sobre formação continuada de professores na perspectiva da educação para a


convivência com o semiárido 97
Ângelo Custòdio Neri, Eliane Rodrigues Silva, Ivânia Paula Feita de Souza, Lucineide Martins
Araùjo

Educação para Convivência com o semiárido- A proposta de elaboração de um livro


didático 115
Claudia Maisa Antunes Lins, Edneusa Ferreira Souza, Vnderléa Andade Pereira
O lugar da arte no espaço cotidiano da convivência como Semiárido 148
Vanderléa Andrade Pereira

Os Autores e Autoras:

Ângelo Custódio Neri de Oliveira

Possui graduação em Curso: Pedagogia com Habilitação Educação de Jovens Adultos pela
Universidade do Estado da Bahia (2001). Especialização em Gestão Pública Contemporânea pela
Universidade do Estado da Bahia (2005), Especialização em Educação Contextualizada ao
Campo pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (2012). Experiência na área de
Educação escolar, educação ambiental, educação popular, Educação para Convivência com
Semiárido, Educação do Campo, atuando principalmente nos seguintes temas: Desenvolvimento
territorial, Diagnostico rural participativo, Educação do campo, Educação para a Convivência
com o Semiárido, Educação de Jovens e Adultos, Práticas Pedagógicas Contextualizadas.

Claudia Maisa Antunes Lins

Graduação: Licenciatura em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia (1996). Mestre


em Educação, Linha de pesquisa: Educação, Currículo e (In) Formação, FACED/UFBA
(Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia). Atuou no projeto de elaboração
dos materiais didáticos "Conhecendo o Semi-árido 1 e 2". Professora da Universidade do
Estado da Bahia, lotada no Departamento de Ciências Humanas, Campus III, Juazeiro - BA.
Concursada na UNEB para "Arte e Educação", no Campus VII Senhor do Bonfim. Hoje atua no
DCH III Juazeiro, com os componentes curriculares "Arte e Educação"; "Arte e Comunicação";

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

"Estética e Mídia"; "Estágio". Tem atuação no Programa de Formação de Professores da


Educação Básica Plataforma Freire cursos: Licenciatura em Arte componente: Fundamentos da
Ação Pedagógica I e II; e Licenciatura em Pedagogia componente: Arte e Educação no
município de Curaçá. Atuação em projetos artísticos artes visuais e literatura com participação
nas produções de vídeos documentais e artísticos; curadoria de exposição fotográfica; membro
de equipe de edição e autoria de crônicas literárias para publicação. Doutoranda no CES pelo
Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global - Centro de Estudos Sociais - Coimbra
Portugal. Projeto de tese: A arte e a educação.

Edmerson dos Santos Reis

Possui graduação em Pedagogia Habilitação Em Educação de Adultos pela Faculdade de


Filosofia Ciências e Letras de Juazeiro (1995), Mestrado em Educação - Université du Quebéc
a Chicoutimi (2003) e Doutorado em Educação pela Universidade Federal da Bahia (2009).
Atualmente é Professor Adjunto do Departamento de Ciências Humanas - DCH-III/Universidade
do Estado da Bahia, Membro do Fórum Nacional de Educação - FONEC, Membro da Rede de
Educação da Semiárido Brasileiro - RESAB e Sócio-Presidente da Associação de
Desenvolvimento e Ação Comunitária - ADAC, Professor Permanente e Coordenador do
Programa de Pós-graduação - Mestrado em Educação, Cultura e Territórios Semiárido da
Universidade do Estado da Bahia - UNEB ofertado no Departamento de Ciências Humanas -
DCH-III, em Juazeiro - BA. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Política
Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: Educação Contextualizada,
Educação do Campo, Desenvolvimento Sustentável, Convivência com o Semiárido e Formação
de Professores, áreas temáticas sobre as quais possui vários livros e artigos publicados de sua
autoria e em coautoria. Líder do Grupo de Pesquisa em Educação Contextualizada, Cultura e
Território - EDUCERE; Pesquisador do NEPEC-SAB e Coordenador do Subprojeto de
Pedagogia do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - PIBID no Campus III
da UNEB.

Edineusa Ferreira Sousa

É educadora, pedagoga, pós-graduada em Educação Básica de jovens adultos pela


Universidade do Estado da Bahia-UNB. Possui experiência docente em Educação Infantil,
Fundamental I E II. Foi Gestora Educacional de 1998 a 2001, no Município de Curaçá,
município pioneiro na elaboração da proposta político-pedagógica pautada na convivência com
o Semi-Árido. Desde 2002 compõe a equipe do IRPAA e é uma das autoras do livro Didático
“Conhecendo o Semi-Árido”.

Ivânia Paula Freitas de Souza

É educadora, pedagoga, pós-graduada em Gestão Pública Contemporânea pela Universidade


do Estado da Bahia - UNEB. Possui experiência docente nas áreas de educação infantil,
ensino fundamental I, médio e superior. Foi durante três anos membro da equipe técnica da
Secretaria de Educação de Curaçá, município pioneiro na elaboração da proposta político-
pedagógica pautada na convivência como Semi-Árido. De 200 a 2003 foi assessora
pedagógica do IRPAA\PRO-CUC (Programa de Convivência com o Semi-Árido em Canudos,
Uauá e Curaçá) e de 2004 a 2005 compôs a equipe pedagógica de IRPAA desenvolvendo a
formação continuada de professores e professoras, implementando a proposta de Educação
para a Convivência com o Semi-Árido nos municípios em que a instituição presta assessoria.

Josemar da Silva Martins

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Possui graduação em Pedagogia, Habilitação em Educação de Adultos pela Faculdade de


Filosofia, Ciências e Letras de Juazeiro/BA (FFLCJ), da Universidade do Estado da Bahia,
UNEB (1993); Especialização em Gestão de Sistemas Educacionais pela PUC-MG (1997);
Mestrado em Educação pela Université du Quebec à Chicoutimi, UQAC (2003); e Doutorado
em Educação pela Faculdade de Educação, FACED, da Universidade Federal da Bahia, UFBA
(2006). Atualmente é Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) no
Departamento de Ciências Humanas III (DCH III, Juazeiro, BA, onde é docente desde 09 de
agosto de 1994), e professor do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em
Educação, Cultura e Territórios Semiáridos (PPGESA), do Departamento de Ciências Humanas
do Campus III da UNEB, em Juazeiro - BA. Tem experiência na área de Educação,
Comunicação e Cultura, com ênfase em Educação de Adultos; Educação do Campo; Currículo;
Gestão Educacional; Educação Ambiental e Ecopedagogia; Educação & Comunicação;
Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) e Mídia e Cultura, temas e campos nos quais
vem atuando, seja realizando estudos e pesquisas, seja através das aulas que ministra nos
cursos de Pedagogia e Comunicação Social da UNEB, no DCH III, incluindo a pós-graduação,
ou eventualmente em outras instituições de Ensino Superior.

Lucineide Martins Araújo

É educadora, graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado Da Bahia- UNEB.


Atualmente é pós-graduada em Ensino Superior e Docência no Contexto do Semi-Árido, na
UNEB\Campus VIII. Atua no IRPAA desde 1994, tendo assumido inicialmente o Setor de
Mulheres. De 1997 a 2001, atuou como coordenadora do setor pedagógico, hoje compõe a
equipe pedagógica do IRPAA desenvolvendo a formação de professores e professoras,
implementando a proposta de Educação para a Convivência com o Semi-Árido nos municípios
em que a instituição presta assessoria. Membro da secretaria Executiva da RESAB- Rede de
Educação do Semi-Árido Brasileiro.

Luzineide Dourado Carvalho

Graduada em Geografia, Bacharelado (1990) e Licenciatura (1992) pela UERJ, Mestrado em


Geografia pela UFRJ (1997) e Doutorado em Geografia pela UFS (2010). Atua com Geografia
Regional e Agrária do Nordeste, Ensino de Geografia, Educação Ambiental e Educação
Contextualizada para a Convivência com o Semiárido Brasileiro. Desenvolve projetos de
pesquisa em Gestão Socioambiental e de Planejamento Territorial para a Convivência com o
Semiárido Brasielro, com foco nas ações de prevenção e combate à Desertificação. Foi
representante da Rede de Educação do Semiárido Brasileiro no Grupo de Trabalho
Interministerial (GTIN) para Elaboração do PAN-Brasil - Eixo Redução da Pobreza e da
Desigualdade Social/Educação. Coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação
Contextualizada, no qual abriga dentre outras pesquisas, o Projeto Verde Urbano e Mobilidade
Sustentável na cidade de Juazeiro/BA, parceria UNEB/DCH III/NEPEC-SAB e UFBA/LACAM,
com apoio da FAPESB. É membro permanente dos Programas de Pós-Graduação: Educação,
Cultura e Territórios Semiáridos (UNEB/DCH III) e da Educação e Diversidade (UNEB/DCHIV).

Vanderléa Andrade Pereira

Possui graduação em Pedagogia com Hab. em Educação de Jovens e Adultos e


Especialização em Educação de Pessoas Jovens e Adultas pela Universidade do Estado da
Bahia. Professora Assistente da Universidade Federal do Vale do São Francisco - Colegiado de
Ciências Sociais - Juazeiro-BA. Mestra em Educação pela Universidade Federal do Piauí.

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

Coautora dos livros didáticos Conhecendo o Semiárido 1 e Conhecendo o Semiárido 2 e do


livro infanto juvenil Mundinho do Rio. Pesquisadora na área de Educação, com ênfase em
currículo, cultura, prática pedagógica e livro didático no Semiárido, atuando também em áreas
como: arte-educação, meio ambiente, formação de professores, arte, cotidiana e convivência.
Integra as discussões da Rede de Educação do Semiárido Brasileiro- RESAB.

Educar para a convivência, um desafio partilhado em rede à visão do UNICEF

O UNICEF participa dos inúmeros processos que fundamentam a construção dos conteúdos
desta publicação, a partir do seu programa de país “Fazer Valer os Direitos das Crianças e
adolescentes, na perspectiva da educação para adolescentes nascidos na região Semi-Árida
de onze Estados Brasileiros. As pessoas que aqui escreveram são parte de uma historia que
trilhamos juntos, desde a década passada, defendendo uma nova política de gestão
educacional, observando as necessidades de formação continuada de educadores\as, de
parceiros governamentais e não governamentais para uma atuação integrada.
As experiências aqui relatadas foram incentivadas pelas ações de desenvolvimento humano e
sustentável das diversas instituições do Semi-Árido que abraçaram essa causa para a
construção de uma nova educação nessa região. A partir delas, ensejamos outros avanços,
articulando novas parcerias como a mantida com o CENPEC e a Fundação Itaú-Social, através
do programa Melhoria da Educação no município. “Investimos numa iniciativa de mobilização
dos Estados para avanço das metas do Milênio, chamada ‘Um Mundo para a Criança e o
Adolescente do Semi-Árido”. O objetivo é reunir todos os segmentos organizados para a
promoção da mudança dos indicadores sociais que nos demonstram a necessidade de
políticas públicas permanentes e de valorização da convivência com o clima e as pessoas da
região. Hoje temos a RESAB- Rede de Educação do Semi-Árido brasileiro. Uma rede que
pactua a equidade, o respeito á pluralidade e á diversidade de culturas, credos, raças idéias e
opções metodológicas no processo de ensino-aprendizagem e outros princípios que visam
garantir o respeito e a promoção dos direitos das crianças, adolescentes e suas famílias. E
também podemos registrar o muito que está sendo feito por uma nova política de gestão
democracia e compartilhada.
O UNICEF compõe com a RESAB, uma articulação que reconhece a problemática da escola
pública, buscando a sustentabilidade e retomada da auto- estima das populações da região. A
experiência de formação continuada nos diz que o saber transcende a escola, na medida em
que os educadores\as fortalecem suas ações como sujeito social, re-significando e ampliando
saberes. Os professores e as professoras vistos como investigadores do seu saber fazer,
conhecendo melhor suas alunos, suas famílias, o ambiente-mundo.

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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

Esta publicação, parte para a Coleção “Convivência com o Semi-árido”, é, para o UNICEF
uma demonstração dos resultados positivos das articulações pela educação no Semi-árido
brasileiro, uma forma de contribuir para o avanço da humanidade, garantindo que toas as
crianças e adolescentes tenham saúde, educação , igualdade e proteção.
Boa leitura!
Fábio Atanásio
Ana Azevedo
UNICEF- Escritório Zonal Recife\ Pernambuco- Alagoas- Paraíba

Educação para a Convivência com o Semi-Árido e para o combate á Desertificação

No marco do Programa de Ação Nacional de Combate á Desertificação PAN-Brasil, é com


grande satisfação que o Governo brasileiro, através da Secretaria de Recursos Hídricos do
Ministério do Meio Ambiente SRH\MMA, e o Ministério Federal de Cooperação Econômica de
Desenvolvimento do Governo alemão- BMZ, por meio da Agência de Cooperação Técnica
Alemã GTZ, apoiam a segunda edição dessa publicação.
Como signatário da Convenção das Nações Unidas de Combate á Desertificação -UNCCD-
desde 1997, o país tem o compromisso de gerar mudanças no uso e conservação dos seus
recursos naturais nas regiões secas e, principalmente, nas condições de vida de seu enorme
contingente populacional. Nas suas áreas suscetíveis á desertificação, que englobam o
Semiárido mais povoado do mundo, o Subsumido seco e as áreas em torno, vivem 30 milhões
de habitantes em uma área de 1.338.076 km², respectivamente cerca de 19% da população e
16% da área do território brasileiro.
A Educação, naturalmente, é de fundamental importância para esse grande desafio, desde
que ofertada como um processo de formação e construção do conhecimento que estimule a
reflexão-ação das crianças, jovens e adultos em virtude de suas problemáticas
socioambientais, políticas e econômicas, como propõe a Educação contextualizada ou
Educação para a Convivência com o Semiárido . Esse é um caminho viável para a promoção
do desenvolvimento sustentável e que certamente contribui para reduzir a pressão das ações
antrópicas potencializadoras dos processos de desertificação.
Essa é a compreensão que norteia os diálogos e parcerias que o PAN-Brasil procura
estabelecer com o Ministério da Educação – MEC, com a RESAB e com outras instituições é a
forma mais eficaz de contribuir com a promoção das bases para um futuro sustentável e,
conseqüentemente, do combate a desertificação e á pobreza. A Educação Contextualizada

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

para a Conivência com o Semi-Árido Brasileiro é portanto uma proposta válida e de extrema
importância.
Esperamos que essa publicação sirva de estimulo para que cada vez mais educadores\as e
outros\as atores e atrizes sociais sintam-se convidados a atuar nessa direção.

João Bosco Senra


Secretário de Recursos Hídricos do Ministério
do Meio Ambiente Ponto Focal Nacional
da CCD no Brasil.
Annette Bckhaus
Coordenadora do Programa Nordeste da Agência de Cooperação Técnica Alemã – GTZ

PREFÁCIO

“... a educação não pode se dar


ao luxo de ignorar o chão que pisa”.
(Pinzoh)

Nas minhas andanças mundo afora, tentando contribuir para as políticas públicas possam ser
implementadas a partir das necessidades da população, para melhoras seus níveis de vida, fui
bater em Ouricuri, Petrolina, Juazeiro, Curaçá, Uauá e Canudos. Estes municípios estão
localizados no sertão de Pernambuco e Bahia, na região do semiárido nordestino, pedaço di
Brasil que ao longo dos últimos 500 anos, contando do inicio da colonização, sofre com as
conseqüências provocadas pelo desconhecimento sobre a riqueza do seu ecossistema e “sua
diferenciação ecológica marcante que na verdade é mais uma colcha de retalhos” (Luzineide),
pelo modelo de desenvolvimento dependente do sul do país, o semi-árido abriga uma
população de quase 20 milhões de habitantes.
Naquele período, meados de 1996, eu trabalhava no UNICEF e a nossa presença no Semi-
árido se devia a necessidade de se apoiar alguns municípios interessados em ampliar as suas
políticas voltadas para a criança, sobretudo a educação. Foi aí que encontrei outras pessoas
que também tinham a mania de querer consertar o mundo, para que o povo pudesse viver
melhor. O que unia essas pessoas era o compromisso com o processo de mudança que reunia
um conjunto de ações voltadas para “praticas de convivência com o Semi-árido”. A discussão
sobre a “ Conivência com o Semi-Árido” ganhava espaço entre os participantes dos
movimentos sociais nas áreas rurais da região, especialmente entre os educadores sócias que
atuavam junto ás famílias de agricultores. Havia em curso um amplo processo educacional
voltado para a adoção de práticas tecnológicas para as melhorias da vida das pessoas na
região. No entanto havia a ausência da participação da escola, enquanto instrumento também
responsável pela melhoria da qualidade de vida da população.
Até aquele momento, envolvidos com toda essa historia, estiveram entre outras,
organizações da sociedade civil, como IRPPA, CAATINGA e MOC, que, com a paciência
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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

pedagógica e a perseverança histórica de Paulo Freire, conseguiram difundir a discussão sobre


uma nova forma de pensar a vida no semi-árido, considerando a lógica da convivência para
transformar as condições soio-ambientais de vida na região. Juntaram-se a essa luta, alguns
dirigentes municipais e professores da UNEB.
Na verdade, o caminho traçado para que se construísse a parceria entre ONGs, Prefeituras
Municipais, UNEB, UNICEF e outros organismos nacionais e internacionais na pespectiva do
desenvolvimento de políticas publicam sob a lógica da “ Convivência com o Semi-Árido”, foi
gestado no campo dos direitos a educação publica, universalizada com qualidade e equidade.
A escola, espaço privilegiado competências de socialização e produção de conhecimento, de
formação de competência e habilidades, não poderia estar fora dessa discussão e como diz
Pinzoh, foi convocada a dar a sua parcela de “ contribuição aos esforços de implementação do
desenvolvimento sustentável”.
Daí surgiu a RESAB- Rede de Educação do Semi-Árido Brasileiro, cujo objetivo maior é
articular os desejos, as vontades, as possibilidades e a prática política para definição de
diretrizes para “Políticas Educacionais para a Convivência com o Semi-Árido Brasileiro”.
Este livro representa a primeiro esforço para construir o marco teórico desta caminhada,
reunindo vários trabalhos dos professores e professoras envolvidos neste processo, que
combina reflexões e praticas, a partir das varias experiências desenvolvidas nos municípios
que compões o espaço de atuação da Rede.
As reflexões aqui contidas sobre o conceito de convivência, função social da escola,
formação continuada de professores, formação de rede, ate e formação continuada de
identidade e gestão educacional, enriquecem o debate nacional sobre política educacional e a
mudança de rumos para o nosso país.
Por isso mesmo esse livro-coletanea de artigos, resultado de vivencia pratica\teórica de
Luzineide, Pinzoh, Vanderleia, Ângelo, Eliene, Ivânia, Edmerson, Maisa, Edilene e Neide que
vivem na região, convivem com sua gente e com eles dididem suas preocupações, deverá
ganhar espaço privilegiado nas mentes e nos corações de todos que querem viver num Brasil
com mais justiça e liberdade.
Tomara que, dele tomem conhecimento os acadêmicos e os políticos.

Mirtes Cordeiro - Pedagoga, amiga

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

A Emergência da Lógica da “Convivência Com o Semi-Árido” e a


Construção de uma Nova Territorialidade
Luzineide Dourado Carvalho1

A delimitação geográfica do Semi-árido Brasileiro a partir do critério climatológico, ou seja, das


áreas de ocorrência de secas, tem sido muito variável ao longo das décadas, ampliando ou
reduzindo a área, conforme a incidência de secas, da aplicação de recursos e da
implementação de políticas públicas/assistenciais às áreas atingidas. Novos enfoques, por
exemplo, o processo de desertificação, tem favorecido para uma nova delimitação do mapa do
Semi-árido Brasileiro. Segundo LOPES DE SOUZA (1995), os territórios são estáveis ou
instáveis, podem formar-se ou dissolver-se em rápido intervalo de tempo, podem ser
periódicos ou regulares, e isso nos permite compreender as diferentes fronteiras territoriais
que ao longo do século XX foram estabelecidas para o Semi-árido Brasileiro.
Desse modo, o Semi-árido atual pode ser definido a partir do Fundo Constitucional de
Financiamento do Nordeste _ FNE. Corresponde a área oficial de ocorrência de secas no
Nordeste, que em 2000, abrangia uma superfície de 895.254,40 km² e integrada por 1.031
municípios dos estados do Piauí, Ceará, Rio grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas,
Sergipe, Bahia e norte de Minas Gerais. Na mesma data, sua população era de 19.326.007
habitantes. Desse total, 56,5% residiam em áreas urbanas e 43,5% em áreas rurais e sua
densidade demográfica era de 21,59 hab/ km² . (MMA, 2004).
A Região Semi-árida do FNE é o Semi-árido oficial, trabalhado pelo Banco do Nordeste do
Brasil, para efeitos da aplicação dos recursos financeiros do FNE.
Também a área geográfica do Semi-árido Brasileiro é delimitado como território do Nordeste
da SUDENE, área de sua atuação, integrada pelo Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do
Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, e norte de Minas Gerais. Atualmente,
compreende uma superfície de 1.797.939,70 km². Desta forma, a SUDENE passou desde
1989 a produzir informações para a Região Semi-árida do FNE e não mais para o ‘Polígono
das secas’, deixando esta de ser área de referencia naquela data.
Uma outra denominação/delimitação já está em uso, e refere-se às Áreas Susceptíveis à
Desertificação _ ASD, que são espaços climaticamente caracterizados como semi-áridos e
sub-úmidos secos, incluídos para as ações do PAN-BRASIL (Programa de Ação Nacional de
Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos das Secas), tendo relação as ASD com o
Bioma Caatinga, o Polígono das Secas e a Região Semi-árida do FNE, ou seja, inclui os
estados do Piauí, Ceará, Rio grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia,
norte de Minas Gerais, caracterizados como espaços semi-áridos (além de uma ampliação do
número de municípios desses estados) e as áreas do estados do Maranhão e do Espírito
Santo onde as características ambientais hoje sugerem a ocorrência de processos de
degradação tendentes a transformá-las em áreas também sujeitas à desertificação,
consideradas Áreas de Entorno das Áreas Semi-áridas e das Áreas Sub-úmidas Secas. Estas
compreendem uma superfície de 207.340 km² distribuídos ao longo de 281 municípios.

O Contexto Sócio-Ambiental
O Semi-árido Brasileiro apresenta uma diferenciação ecológica marcante, que na verdade é
mais uma “colcha de retalhos”, do que um espaço homogêneo e olhado apenas a partir das
condições climáticas, leia-se semi-árida, e tal aspecto foi desconsiderado na perspectiva dos
processos econômicos. Nessa heterogeneidade apresentam-se “grandes pediplanos,
drenados pelos principais rios da região_ Rio São Francisco, Parnaíba, Piranhas-Açu,
Jaguaribe, etc._ora com serras e chapadas que se alteiam sobre o pediplano e apresentam
um clima úmido ou sub-úmido”(ANDRADE, 1988, pp.: 62).

1 Mestra em Geografia/UFRJ, Doutora em Geografia pela UFS, Profª


UNEB/DCH III e membro da Secretaria Executiva da RESAB

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São ás áreas conhecidas como “Brejos”, que formam verdadeiros “oásis” onde existe uma
grande concentração populacional _ Cariri, Garanhuns, Triunfo e outros.
O bioma Caatinga é o principal ecossistema existente no Nordeste, estendendo-se pelo
domínio de clima semi-árido, numa área de aproximadamente 11% do território nacional. É um
bioma único por estar localizado em área de clima semi-árido e apresenta grande variedade
de paisagens, riqueza biológica e endemismo.
Os ecossistemas do bioma Caatinga encontram-se bastante alterados com a substituição de
espécies vegetais nativas por cultivos e pastagens. O desmatamento e as queimadas são
ainda práticas comuns.
Vale lembrar que seres humanos e animais viveram nesse ecossistema há mais de 40 mil
anos. Inúmeras são as testemunhas deixadas por estes homens e mulheres: fogueiras, com
pedras organizadas em círculos, junto com ossos de animais caçados, pinturas rupestres em
cavernas, jarros e vasos de barro, restos de funerários, utensílios de pedra lascada e ate
brinquedos de crianças. Estes sinais da presença humana se encontram em vários lugares do
Semi-Árido. Como exemplo no Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo
Nonato, Piauí, os vestígios humanos foram datados de 50 mil anos, os mais antigos da
presença do homem nas Américas.
Até 12 mil anos atrás, quando terminou a última era glacial, a região semi-árida era bastante
chuvosa, comparável com o clima atual da pré - amazônica do norte do Estado de Mato
Grosso.
Dados de média anual de chuvas no Semi-Árido Brasileiro, em comparação com outras partes
do mundo, levam a conclusão de que, as precipitações podem até ser maior, em algumas
vezes. Na verdade, nosso Semi-árido é o mais chuvoso do planeta, chove de 300 a 800 mm
por ano.
A característica desse domínio climático é apresentar as chuvas de modo irregulares no
espaço, no tempo e no volume da precipitação.
Os espaços afetados pelas secas na região semi-árida não ocorrem de forma uniforme. Pode
haver anos de seca total, com efeitos observados em toda as áreas da região, e anos de seca
parcial, em que os problemas da seca são verificados apenas em algumas áreas dos estados
do Nordeste. As diferenças físicas, climáticas e ambientais conferem regiões naturais que a
integra e respondem pela diversidade do Semi-árido.
Lado a lado ou integrando conjuntos variados, convivem na área de
ocorrência oficial das secas as regiões naturais do Sertão, do Seridó,
do Curimataú, da Caatinga, do Carrasco e dos Cariris Velhos
(DUQUE,1964 apud MMA, 2004).

Outro elemento importante e que determina quanto da água caída do céu e que ficará à
disposição das pessoas, dos animais e plantas, é a evaporação, e esta se apresenta em alto
nível, por força do sol e do vento, e pela falta de plantas e outras coberturas mais, hoje, mais
raras, por conta do intenso desmatamento e queimadas.
Por estar perto do Equador, isso contribui para que a evaporação por ano passe até dos 3.000
milímetros. Na média, a evaporação é sempre maior do que a precipitação.
Em relação ao subsolo, este é cristalino, no geral. São solos rasos muitas vezes aflorando a
terra e que guardam pouca água, já que no chão existe muita rocha de granito e gnaisse.
Encontra-se água em algumas fendas da rocha maciça, mas em pouca quantidade e quase
sempre salobra. É o subsolo de arenito. São áreas de antigas bacias marítimas, onde os
sedimentos trazidos pelos rios pré-históricos se compactaram, formando a pedra arenítica. As
camadas atingem às vezes mil metros ou mais e a estrutura esponjosa do arenito se encontra
abastecida de água. Existem lençóis freáticos, com água doce e abundante.
E há também o subsolo calcário, com solos normalmente muito férteis e água às vezes um
pouco salobra, mas em quantidade maior do que na região cristalina.

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

Em função das características apontadas, as políticas públicas historicamente implementadas


nessa região conferiram prioridade à acumulação das águas provenientes das chuvas em
reservatórios, de grande, médio e pequeno porte, como forma de garantir o abastecimento
humano e animal, a agricultura, a pesca, o uso industrial e o lazer. Dada a premência em
ofertar água e em promover o desenvolvimento, as intervenções governamentais tenderam a
se concentrar em obras hídricas pontuais (construções de barragens, adutoras, perfuração de
poços e implantação de projetos de irrigação), desvinculadas de um processo efetivo de
desenvolvimento integrado e sustentável para a região. Essas obras nem sempre ocorreram
de forma articulada entre os diversos atores sociais regionais ou se basearam em premissas
técnicas, econômicas, sociais, ambientais e culturais compatíveis com a realidade local.
A tentativa de um modelo de desenvolvimento baseado na intensificação do uso dos solos e
na irrigação teve como conseqüência direta o aumento da demanda por água (um dos fatores
mais limitantes na região), a ampliação dos processos de erosão e salinização dos solos, a
degradação da vegetação natural e a redução da diversidade biológica do bioma Caatinga,
entre outras.
Grande parte do Semi-árido encontra-se impactada pelo processo de desertificação, desde
muito alta a moderada suscetibilidade, ou seja, sujeita a uma intensa degradação da terra,
resultante de vários fatores, entre eles as variações climáticas e as atividades humanas.
Atrelados a estes aspectos, derivam-se os fatores físicos, biológicos, políticos, sociais culturais
e econômicos. Os impactos ambientais deste processo podem ser observados por meio da
destruição da biodiversidade regional (flora e fauna), da disponibilidade dos recursos hídricos
– assoreamento dos rios e reservatórios – e da diminuição da produtividade agrícola o que
provoca conseqüências danosas à população local.
Já referida acima, as Áreas Susceptíveis à Desertificação - ASD, cobrem uma superfície de
1.338.076,0 km², representando 74,46% da superfície do Nordeste da Sudene. Os processos
de exploração agrícola, em regime de agricultura irrigada ou de agricultura de sequeiro, como
também a expansão da pecuária, em bases mais modernas, têm contribuído para produzir
impactos ambientais capazes de potenciar os processos de desertificação.(MMA, 2004)
Desde os anos de 1960 que a taxa de degradação aumentou, e nesse processo, ocorreram
significativas mudanças sociais, tecnológicas, e dos padrões de uso da terra. Essas mudanças
provocaram ajuste ou adaptação das populações às condições impostas, resultando em
intensos processos migratórios, de urbanização acelerada, da ampliação de investimentos
públicos em infra-estrutura física e social e a intensificação de consumo dos recursos naturais,
principalmente da vegetação e da água.
Em suma, a inserção de espaços selecionados do Semi-árido a bases produtivas mais
modernas, produziu novas pressões sobre o ambiente, com efeitos e impactos (agronômicos,
sociais e ambientais) ainda não avaliados devidamente. E que por conta das condições de
degradação já observadas, põe a “capacidade ideal de suporte” desse ecossistema,
principalmente do bioma Caatinga, em um ritmo de perda gradativa de sua “capacidade
produtiva”, têm levado à discussão e à mobilização tanto da sociedade civil organizada quanto
do Governo Federal, uma revisão do conceito de desenvolvimento e do enfoque das políticas
públicas implementados e um movimento em torno da convivência com o Semi-árido
Brasileiro.
A lógica do “Combate à Seca” conformando a Dinâmica Capitalista e a Inserção do Semi-Árido
ao Cenário Nacional/Global
A questão climática, especificamente a seca, é praticamente o aspecto que tem sido
ressaltado como à problemática do Semi-árido. Depois da chamada grande seca, de 1877 a
1879, em diante e durante todo o século XX, especialmente nas primeiras décadas, o clima
semi-árido justificou uma série de ações de governo, entre elas, a própria criação da região
Nordeste, tendo à frente, inicialmente, as ações da IFOCS_ Inspetoria Federal de Obras
Contra a Seca (criada em 1919) e que mais tarde vira DNOCS_Departamento Nacional de
Obras Contra a Seca). O aparato discursivo vigente desenha uma geografia das secas e da
miséria, desenvolvendo como base de ações e políticas a lógica do combate à seca.
Não que tivesse havido secas até 1877, pois há registros de secas em 1790/1792 (ANDRADE,
1988, pp.:62), mas a intervenção estatal no período Imperial (1822 a 1889) não se deteve à
questão como prioridade, afinal tratava-se de uma área pouco povoada, comunicações muito
lentas entre a metrópole e o restante do território nacional e sobretudo, uma área dominada
20
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

pelo latifúndio, com poderes mais suficientes para barrar a expropriação de terras para
construção dos açudes. O governo Imperial ficou impossibilitado de desenvolver uma política
social.
Em 1936, através da Lei Federal número 175 de 06/01/1936, as áreas oficialmente
reconhecidas como de ocorrência comum de secas no Nordeste foram delimitadas e
denominadas de Polígono das Secas para fins de atendimento às populações residentes
afetadas. Naquela época a área do Polígono compreendia uma superfície de 672.281,98 km²,
e considerada como área oficial de ocorrência de secas no Nordeste até 1989, quando nova
delimitação foi realizada e o Polígono passa para uma área de 1.085.187 km² (ampliando para
além dos sertões do Piauí, Ceará, Rio grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas,
Sergipe, Bahia o Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais).
A figura do Polígono, como dito, já está substituída pela Região Semi-árida do Fundo
Constitucional de Financiamento do Nordeste_ FNE. Esta expande ou reduz a área oficial de
ocorrência das secas, conforme os limites da seca, ou seja, atua sobre os municípios mais
afetados pela escassez e irregularidade das chuvas, justificando a implementação de medidas
emergenciais de atendimento às populações submetidas.
A seca eleva-se a um problema econômico e político do Nordeste respaldando-se enquanto
arma política, como argumento quase incontestável, quase irrefutável para conseguir
benesses, investimentos, carreamento de recursos, construção de obras, frentes de trabalho,
cestas básicas e etc., favorecendo uma elite nordestina que passa a mobilizar e capitanear
ações para a região. É a conhecida “indústria da seca”!
Ao iniciar a década de 1950, havia um forte interesse do Governo Federal de modernizar o
sertão através da reorganização da agricultura do Vale do São Francisco, da construção de
grandes barragens e da exploração de minerais. Exemplo, a Constituição de 1956 previa a
destinação de 1% da renda do país na recuperação do vale, que em 1967 cria-se a
Companhia do Desenvolvimento do Vale do São Francisco e em 1975 na CODEVASF -
Companhia de desenvolvimento do Vale do São Francisco e atualmente, agrega também o
Vale do Parnaíba.
Ao longo de todo século XX, várias grandes secas ocorreram. A de 1958 faz o governo de
Kubitschek criar um Grupo de trabalho para estudar a “problemática regional”; em 1970 uma
grande campanha assistencialista é apresentada para o Nordeste, e cria-se um Programa
chamado de Projeto Sertanejo, visando, sobretudo transformar em empresas as pequenas
explorações agrícolas, voltando-as para o mercado (ANDRADE, 1988, pp.: 66-67). Outros
Programas surgiram nas décadas seguintes, com destaque para o POLONORDESTE.
Muitos significados foram dados à seca, mas de fato esta sempre
recobriu cada necessidade que as elites do Nordeste tinham. As secas
iriam ser resolvidas com a construção de ferrovias, a partir dos
interesses de se construírem estradas de ferro para escoar os produtos
da elite agro-exportadora. Depois os açudes; as frentes produtivas de
trabalho; a industrialização. Portanto, a seca terá mil soluções e mil
faces, dependendo do interesse do momento. A seca, portanto, é uma
metáfora a partir da qual se nomeia a necessidade e a carência, na
verdade, das elites desse espaço Semi-árido Brasileiro.
(ALBUQUERQUE Jr, 2000).
Ao se instituir uma política de combate à seca uma série de políticas assistenciais de
emergência foi empreendida, não atentando para produzir um conhecimento mais
aprofundado desta região do país e de suas potencialidades e como também de entender
como essa região se articula em sua pluralidade e com o mundo. Pelo contrário, não gerou
ações integradas e intersetoriais, deixando, por exemplo, o campo educacional de fora das
preocupações políticas para a região.
Tratou-se de uma lógica linear, mutilante e simplificadora que só
conseguiu se expressar na vinculação dos problemas do Semi-árido à
ação das secas (PIMENTEL, 2000).
Essa lógica de ver e desenvolver o Semi-árido não se configurou recentemente, ela parte da
própria inserção capitalista sobre o território ao longo de sua história econômica, incluindo ou

21
Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

excluindo espaços deste e mesmo incluindo ou excluindo o Semi-árido na organização geo-


econômica do Brasil. Ou seja, à medida que o capital avança em cada etapa de sua dinâmica,
mantém uma relação espacial/temporal especifica, criando e recriando novas paisagens no
Semi-árido, integrando o rural e o urbano.
O período após a Segunda Guerra Mundial veio acelerar o processo capitalista no Brasil,
refletido na construção de grandes obras públicas e na expansão do crédito fornecido às
várias atividades econômicas, em nome do desenvolvimento. Assim, as primeiras grandes
represas no rio São Francisco, visando a produção de energia elétrica e a criação da
SUDENE_ Superintendência de Desenvolvimento da Região Nordeste, a fim de modernizar as
atividades agrícolas e pecuárias da região.
A formação do espaço geo-econômico do Semi-árido foi organizada inicialmente com a
pecuária extensiva e a policultura. Sobressaíram alguns produtos de maior expressão no
mercado, como foi o caso do algodão, lembrando aqui, que sempre presente, uma estrutura
fundiária pautada na concentração de terras que beneficia, sobretudo as classes dominantes e
provoca a espoliação das massas trabalhadoras, fato que ao longo da história sertaneja várias
ligas camponesas e movimentos sociais do campo se organizaram.
Até meados dos anos de 1970, parte central do Semi-árido, chamado de “miolão do semi-árido”
(CARVALHO, apud MMA, 2004), era ocupada pelas atividades do consórcio gado-algodão-
lavouras alimentares. A desorganização dessas atividades foi desencadeada pelos impactos
das secas de 1979-83, reforçada pela entrada da praga do bicudo nos algodoais do semi-árido.
Desde então a agricultura dessa região perdeu uma de suas principais fontes de renda e
emprego.
A organização geo-econômica atual comporta realidades diversas do Semi-árido marcando um
desenvolvimento diferenciado. Isso é evidente ao se comparar às regiões que foram
incorporadas ao ritmo urbano-industrial e que receberam um aparato técnico-informacional e
infra-estrutural para sua inserção ao mercado, tornando-se ultimamente palco do
desenvolvimento tecnológico e de novas formas de organização da produção, especialmente
da produção agrícola irrigada para exportação. Por exemplo, a tecnologia na agricultura, a
agroindústria e as técnicas de irrigação presentes no pólo Juazeiro – Petrolina.
Por um lado às transformações sócio-espaciais no Semi-árido configuram espaços cuja base
produtiva é eficiente e vantagens competitivas próprias, com produtores capazes de identificar
nichos de mercado e adaptar-se a eles, bem como se inserir com forte competitividade dentro
do dinamismo das redes produtivas e comerciais a que pertencem quanto o setor
agropecuário tradicional ainda se faz predominante na paisagem. Este se mantém responsável
pela ocupação de grande parte da mão-de-obra regional e, por conseqüência, produtor de
significativa parcela das mercadorias que integram a balança comercial nordestina. Vale
lembrar que a modernização agrícola pouco integrou a população envolvida em padrões
melhores de vida.
Nosso Semi-árido é um dos espaços semi-áridos mais povoados do mundo, além disso,
apresenta maior abrangência físico-territorial comparada aos outros espaços naturais que
conformam e estruturam o Nordeste Brasileiro. E por se tratar de um espaço densamente
povoado, têm se notabilizado também por seu elevado grau de pobreza.
No geral, a expansão urbana se faz de forma desordenada, além do que os municípios com
baixa urbanização às condições de infra-estruturas sociais são as mais precárias, afetando
diretamente a vida da população.
Como um todo, é ainda bastante rural, sendo urbanizadas realmente aquelas cidades com
mais de 100.000 habitantes.
O perfil municipal do Semi-árido mostra que dos 42% dos municípios
têm menos de 10.000 habitantes, a taxa de urbanização de 45%.
(GOMES FILHO, 2003).
Atualmente o Semi-árido vive os mesmos velhos problemas de sempre, apresentando os mais
baixos índices sociais, educacionais e de desenvolvimento humano colocando essa região
numa desproporcionalidade de desenvolvimento às demais regiões brasileiras.
Os indicadores sociais apresentam extrema carência e desigualdade, falta de acesso aos
recursos de infra-estrutura social (aceso à água, rede de esgotos, energia, infra-estrutura e

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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

comunicação etc) por parte de uma população que representa 15% da população brasileira,
comprometida no seu cotidiano.
Os piores índices de Desenvolvimento Humano Municipal_ IDH-M do país em sua maioria
estão no Semi-árido: 75% dos 1.000 piores.
Dos 26,4 milhões de habitantes do Semi-Árido, quase 11 milhões são
crianças e adolescentes e têm até 17 anos, representando 41,3% da
população total. Parte de uma população que é mais jovem do que a
média brasileira, mas com o futuro bastante comprometido. (GOMES
FILHO, 2003).
Investir em educação é um dos passos mais decisivos para a superação de tal realidade: os
dados indicam que cada quatro anos de estudo da mãe corresponde à redução de 20 pontos
na pobreza das crianças e adolescentes, sendo que os primeiros quatro anos de estudo da
mãe são o que causa o maior impacto, reduzindo a pobreza em 27 pontos.
As áreas semi-áridas do Nordeste têm sido marcadas pela geografia da fome e da
insustentabilidade econômica, estereotipadas, deturpadas e apropriadas nas imagens da
mídia em tempos de seca, principalmente.
Reconhecer a existência de uma “região pobre” dentro de um país é reconhecer as
disparidades econômico-sociais de um determinado espaço geográfico submetido à dinâmica
da acumulação capitalista. A “problemática regional” do Semi-árido é um produto sociocultural
das disparidades geográficas no processo de desenvolvimento econômico capitalista, vale
dizer, empreendidas com maior “rigor” em países periféricos, como no caso do Brasil.
As políticas públicas de desenvolvimento regional nasceram de
grandes propostas nacionais, oriundas de uma elite dirigente que se
impunha à missão de combater as disparidades, integrar
economicamente as regiões e fortalecer os vínculos da comunidade
nacional: o ideal de nação, povo, identidade regional. (ZAIDAN FILHO,
2001).
Entender o esforço empreendido hoje pelas organizações da sociedade civil, dos movimentos
sociais e de alguns setores do Estado, exemplos ministério e secretarias federais/estaduais de
meio ambiente, para converter através de um outro discurso e de novas práticas de
desenvolvimento do Semi-árido, a proposta da convivência, possibilita identificar a cara do
Nordeste contemporâneo e os desafios deste no século XXI.
Se a lógica do combate construiu “emblemas nordestinos_ o cangaço, o messianismo, o velho
engenho ou a seca, temas que pertencem à saga cultural-simbólica das oligarquias
nordestinas” (ZAIDAN FILHO, 2001), a lógica da convivência busca apresentar que não há
mais um nordeste, mas sim, nordestes, e que nessa nova conformação, o Semi-árido não
pode mais ficar enquanto reduto da pobreza nordestina e brasileira. Ele é potencial, é
competitivo, solidário e possui antes de tudo uma identidade cultural comum que o faz único.
É a emergência do local se sobrepondo à dinâmica global. Para tanto uma política de
desenvolvimento pautada na inserção de cidadãos, direitos universais (educação, saúde,
moradia, alimentação etc) e na valorização da identidade cultural passam a ser exigidos na
pauta dos novos programas e ações para o Semi-árido Brasileiro.

A Nova Territorialidade em Construção

O movimento que hoje se procede no pensar, agir e conduzir os debates acerca de um modelo
de desenvolvimento apropriado para o Semi-árido aponta para a falência da lógica do combate
à seca e a emergência da lógica convivência com o Semi-árido, ou em, a falência da lógica
técnico-economicista para a emergência da lógica ambiental –sistêmica.
Esse movimento promove ainda que de forma pontual, uma re-organização sócio-espacial do
Semi-árido. E nesse novo contexto, um campo de força é estabelecido entre os “atores
sociais”, em suas relações de poder com o espaço, possibilitando a re-elaboração de novo

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

recorte territorial, novas formas de inserir esse território às outras escalas espaciais e de
demandar políticas públicas, já denominadas de apropriadas, às novas formas de produzir, ver
e viver o Semi-árido Brasileiro.
O processo produtivo e as práticas sociais nas quais o território do SAB se configurou através
da lógica do combate à seca, promoveu uma dinâmica geo-econômica e cultural pressuposta
na existência de um sistema de tessitura, nós e redes que sustentavam as elites nordestinas
em sua hegemonia político-econômica, fomentava a dinâmica urbano-industrial do Centro-sul
enquanto espaço periférico e subordinado a este, e estabelecia limites, fronteiras, vizinhanças,
acessos, convergências em prol de um modelo de subordinação econômica.
A imposição do ritmo capitalista em bases mais modernas sobre a economia tradicional, agro-
exportadora por um lado e de subsistência por outro (atividades do consórcio gado-algodão-
lavouras alimentares) traz mudanças na base técnico-informacional, demandando novas
atividades, novas técnicas, novos saberes e novas necessidades na relação dos indivíduos
com o meio_ uma relação mediada pela estranheza.
O projeto de desenvolvimento apoiado na racionalidade da natureza criou imagens do SAB
enquanto o espaço da seca, da pobreza, do êxodo rural, dos flagelados, do chão rachado, do
ambiente hostil_ os resultados têm sido evidentes nos indicadores sociais negativos, no
processo de degradação dos solos, na produção de imagens e discursos preconceituosos do
“ser sertanejo”.
Ao contrário, a lógica da convivência com o Semi-árido visa focar a vida nas condições sócio-
ambientais desta região, em seus limites e potencialidades, pressupondo novas formas de
aprender a lidar com esse ambiente, na busca de alcançar e transformar todos os setores da
vida. Portanto, não é apenas viver no semi-árido e supostamente aceitar as agruras da
natureza, mas um viver estabelecido como a comunhão que os indivíduos mantém com o
lugar, oportunizando organizar e criar alternativas de produção a partir dos limites e
possibilidades que a natureza oferece.
A construção do território ganha uma outra dimensão, pois passa a pautar-se pelo
estabelecimento da consciência de pertencimento dos grupos, à região, ao substrato. A relação
de comunhão com o lugar não se dá somente no viver ou de um simples conjunto de objetos,
mediante os quais se trabalha, circula, mora, mas no conjunto simbólico do universo no qual os
indivíduos atuam. A forma de comunicação do indivíduo e do grupo com esse universo se faz
pela herança, pelo reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio, um
resultado obtido através do próprio processo de viver. (SANTOS, 2000).
Conseqüentemente, a leitura de Semi-árido passa a ser redimensionada. Ele passa a ser o
território das possibilidades de práticas, vem á tona as idéias do desenvolvimento integrado e
sustentável, que vai se efetivando aqui e ali, através da agroecologia; das cisternas familiares
de captação da água de chuva nos telhados, garantido água de chuva para o consumo
humano e também visando a produção; barragens subterrâneas; cisterna na roça;
associações de fundo de pasto; produção de caprinos e ovinos; apicultura etc, e todos
baseados na agricultura familiar e na busca de segurança alimentar e nutricional. Essas novas
formas de produzir no Semi-árido e conseqüentemente, de viver e de se planejar, possibilita
sutilmente abrir caminhos para a emergência de uma nova racionalidade.
A convivência com o Semi-árido também se apresenta na busca de uma nova dinâmica sócio-
cultural e educativa, redimensionando o lugar dos sujeitos e das imagens produzidas sobre
esses e sobre o ambiente. E traz, sobretudo, um novo recorte territorial, incluindo novas áreas
para o Semi-árido. Esse último aspecto possibilitará às áreas incluídas no Semi-árido receber
aportes do FNE e ganhar maior visibilidade regional.
O que muda na construção dessa nova territorialidade é o enfraquecimento das elites
oligárquicas e o surgimento de novos e diferentes atores, fomentando uma mudança de
paradigma de desenvolvimento.
Nesse novo campo de forças entre os atores que atuam no ou para o SAB, cabe indagar qual o
peso de cada um: a sociedade civil, as ONG´s, as agências internacionais de cooperação
técnica, o Estado etc.

24
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

Segue abaixo pelo menos o esforço de pontuá-las:

- O poder público com seus Órgãos historicamente presentes na região como o DNOCS, por
exemplo, passa por reformulações de ordem institucional, muda gradativamente seu discurso,
de combate para a convivência com a seca, e aponta para a elaboração de políticas públicas
apropriadas para a região. Exemplo é o Programa Conviver.
A re-criação da SUDENE com outro enfoque de desenvolvimento regional, a criação do
Instituto Semi-árido, ou seja, são mudanças institucionais que se apresentam. Outro exemplo,
é a busca por uma visão sistêmica de Semi-árido expressa no PAN-BRASIL – Programa de
Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca_ documento
proposto como instrumento de promoção de desenvolvimento integrado e sustentável para as
regiões semi-árida e sub-úmida do Brasil.
O PAN-BRASIL visa reverter o processo de desertificação a partir da congregação do acúmulo
de experiências de intervenções sociais e governamentais consolidadas pelo paradigma da
convivência. Sua elaboração foi conduzida pelo Ministério do Meio Ambiente/Secretaria de
Recursos Hídricos, e com a participação da sociedade civil mobilizada pela Articulação do
Semi-árido Brasileiro _ ASA e da RESAB_ Rede de Educação do Semi-árido Brasileiro,
instâncias estaduais também do poder público (chamados de pontos focais estaduais) e da
inserção de parlamentares.
Enquanto tentativa de gestão pública do Estado brasileiro, o PAN-BRASIL se refere à
proposição de quebrar ações pontuais e desarticuladas de políticas públicas, provocar a
transversalidade intersetorial e interministerial. Estará aí a emergência de um novo paradigma
de gestão pública se configurando?
- As Instituições Internacionais através de cooperação técnica afirmam ações e programas em
desenvolvimento sustentável, mas também traz as marcas do novo ritmo da sociedade
contemporânea, articulada em rede, globalização da economia, seletividade dos espaços. Ou
seja, a cooperação técnica não chega pura, ela traz em si interesses e discursos próprios,
cabendo aos movimentos de origem destas uma identificação de seus propósitos.
- A presença marcante das Organizações Não-Governamentais (ONG´s) desde os anos de
1980, principalmente quando começam a chegar na região e passam a articular recursos e
experiências na base da sociedade, ganham visibilidade enquanto novos espaços de
participação cidadã e de articulação, vide a criação da ASA_ Articulação do Semi-árido
Brasileiro, que já congrega mais de mil ONG´s, de pequenas associações de produtores rurais
à grandes e reconhecidas entidades.
As ONG´s têm facilitado o encontro entre a lógica governamental, marcada pela permanência
e universalidade das políticas, e a lógica da sociedade civil, marcada pela defesa de
interesses específicos; lógicas diversas; caminhos de interlocução e de parceria.
As organizações do 3º setor ganham a cada dia competência no modo de se relacionar com e
intervir junto a grupos sociais específicos, deliberando ações junto a esses grupos. Entretanto
ressalvas devem ser feitas, pois às vezes torna-se questionável seu papel, principalmente
quando se assumem portadoras das lutas sociais, carreiam recursos e demandam sozinhas as
ações.
- A inclusão da sociedade civil em seu papel ativo e no movimento de democratização dos
programas de desenvolvimento para a região semi-árida é um aspecto novo e importante para
se entender os rompimentos ao paradigma de combate à seca. As novas formas de
posicionamento da sociedade civil, sua busca em abrir espaços de participação e
experimentação de novos modos de pensar e agir sobre a realidade social e local, no sentido
de criar uma independência constituída pela emergência de uma cidadania através de suas
organizações comunitárias.
Certo é que o envolvimento e participação popular mostram um movimento de criação ou de
valorização de relações sociais baseadas na cooperação, solidariedade e gestão participativa.
Trazem à tona discussões e propostas presentes em Encontros, Seminários, Conferências
etc., para os diferentes setores da vida: produção com base na agricultura familiar, segurança
alimentar e nutricional, questão de gênero, protagonismo infanto-juvenil, educação para a

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

convivência com o semi-árido e outros/as questões. Afirmando nesses espaços de discussão


e diálogo entre sociedade civil e poder público, parcerias para o reconhecimento e
fortalecimento das experiências exitosas já em desenvolvimento por todo SAB e construindo
em conjunto diretrizes de políticas públicas a serem implementadas.
Enfim, há de se ampliar às discussões e identificar quais os meandros pelos quais a lógica da
convivência vem sendo construída e mediada, sendo de fundamental importância nas
análises, superar a ordem técnica dos enfoques das políticas públicas para o Semi-árido.
Identificar mudanças de atitudes, comportamentos e valores na relação
homem-mulher-natureza, ou seja, visualizar as formas destes em lidar
no Semi-árido, em seus diferentes espaços, seja no rural ou urbano,
que não serão apenas conformados a partir do novo discurso_ da
convivência, mas conformados no dia-a-dia, no conhecimento
elaborado pelo cotidiano da vida nesse ambiente e este sendo o lugar
de gênese da convivência e das experiências cotidianas, processando
dinâmicas através das quais os sujeitos se movem na e para a
convivência.(PIMENTEL, 2000).
A direção do olhar para o Semi-árido a fim de romper com a grandiosa lógica do combate à
seca e converter as ações para a convivência necessita ir a fundo nas múltiplas questões de
ordem econômica, ambiental, social, política e cultural que estão associadas aos ecossistemas
do Semi-árido. Ou senão estaremos falando de convivência e realizando o combate!

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26
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

ANOTAÇÕES EM TORNO DO CONCEITO DE EDUCAÇÃO PARA A CONVIVÊNCIA COM O


SEMI-ÁRIDO2

Josemar da Silva Martins (Pinzoh) 3

É preciso que saibamos ocupar nosso lugar na história


contemporânea. Num mundo que se dividiu num combate só,
não há lugar para neutros e anfíbios.
(Oswald de Andrade)

A Rede de Educação do Semi-Árido Brasileiro (RESAB) vem atuando e se constituindo em


torno de um conceito que nem sempre é explicitado ou, quando isto é feito, em geral é operada
uma redução de perspectiva, que mais atrapalha do que ajuda. Trata-se da noção de
“educação para a convivência com o semi-árido”. Na verdade não chega a ser um conceito, no
duro do termo, mas uma idéia, um discurso, uma perspectiva de qualificação de ações
educativas que, em que pese a falta de uma definição mais precisa, não é uma coisa
totalmente nova e já vem orientando práticas variadas no campo da educação, se desdobram
no Semi-Árido Brasileiro (SAB), especialmente no setor não-governamental.
Especialmente no âmbito não-governamental e em setores rurais, em vários pontos do SAB,
esta perspectiva tem inclusive se estendido até outras áreas de atuação política, como as
políticas de recursos hídricos, de combate à desertificação e de fomento ao desenvolvimento
(sobretudo quando qualificadas de desenvolvimento rural/local sustentável), inclusive porque
tais ações tendem a estar cada vez mais conjugadas de alguma forma com a educação. Neste
sentido mesmo a noção de “educação para a convivência com o semi-árido”, goze desta
enorme indefinição ou desta pluralidade de sentidos, já está inserida numa linguagem
reconhecida entre muitos atores coletivos que reconhecem que a educação não pode se dar ao
luxo de ignorar o chão que pisa. Aliás, tanto a noção quanto as práticas que ela anima e
inspira, advém da crítica feita a esta “descontetxualização” da educação escolar, de suas
práticas e saberes.
Neste sentido, o nosso problema aqui será o de tentar uma caracterização da noção de
“educação para a convivência com o semi-árido brasileiro”, situando-a em um tripé
fundamental: a) a questão contextualização/descolonização do ensino; b) a questão da noção
de “convivência com o semi-árido” na perspectiva do desenvolvimento sustentável do SAB; e c)
o fato de que tais questões implicam na produção de outra racionalidade.

I. O PONTO DE PARTIDA: CONTEXTUALIZAÇÃO/DESCOLONIZAÇÃO

O que tem motivado a crítica ao currículo formal e oficial e tem motivado a ação concreta de
transformação da prática educacional no semi-árido brasileiro, baseando-se na noção de
“educação para a convivência com o semi-árido”, é antes de qualquer coisa, a consideração de
que os currículos, os saberes e as práticas escolares, de uma forma geral são
demasiadamente descontextualizados, o que os torna aparentemente um tanto “sem
propósito”, e desobrigados de explicarem a serviço de quê e de quem estão.

2 Este texto é também parte do estudo que o autor vem fazendo no seu curso de Doutorado, cuja
tese tomará a RESAB como objeto de tematização.

3 Professor da UNEB no Departamento de Ciências Humanas III (Juazeiro, BA); Mestre em


Educação pela UQAC (Québec, Canadá); Doutor em Educação na FACED/UFBA.

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

Portanto a constatação mais corriqueira é a de a educação escolar que se dirige aos vários
pontos da imensidão do território brasileiro, é uma educação descontextualizada e, por sê-lo, é
também colonizadora, ou seja, ela se dirige hegemonicamente de uma determinada realidade –
atualmente majoritariamente esta realidade é a do sudeste urbano do Brasil – e, a partir desta
“sua realidade” e de uma narrativa pronunciada por um tal sujeito universal e abstrato
denominado “nós brasileiros”, ela toma todas as outras realidades que compõem a imensa
diversidade brasileira, como sendo seus “Outros”: “eles”, “aqueles” que estão “lá” e devem ser
integrados à sua narrativa.
Não há ressentimento algum nesta constatação. Há apenas a constatação de que é aí neste
sudeste urbano onde atualmente se concentra a indústria editorial e midiática que produz e
distribui esta narrativa hegemônica e seus enunciados. E, evidentemente, a raiz disso nem é o
fator regional, porque esta mesma narrativa também não inclui entre o seu “nós” os tantos
“Outros” que estão no mesmo recorte regional de onde ela emana, como os índios, populações
quilombolas, populações rurais, mulheres, populações periféricas, que também aí são
transformados em seus “Outros”: “eles” ou “aqueles” que devem ser integrados à mesma
narrativa hegemônica.
Supomos que o fato de esta narrativa que fala em nome de um “nós brasileiros” abstrato, nem
se limita ao fato de emanar de um núcleo que concentra as maquinarias técnicas editoriais
para, por exemplo, fazer proliferar livros didáticos que daí se dirigem aos Diversos do Brasil. De
fato esta tradição parece ter raízes mais profundas, ancorando-se nos processos da
colonização do Brasil, e até de antes, quando toda a diversidade deveria ser perseguida em
nome de uma mesma verdade oficial, ortodoxa, canônica. Fui assim que fomos inaugurados no
contexto dos ímpetos religiosos da Contra-Reforma e de suas maquinarias de fazer silenciar
qualquer diversidade. As bulas papais diziam: reduzi todos à fé católica. Nem precisamos
lembrar aqui o tamanho das atrocidades, a amplitude dos massacres de saberes, de culturas e
de pessoas em nome desta ortodoxia crista.
Depois que a conjunção Clero-Nobreza foi destronada pelo triunfo da empresa racionalista do
iluminismo positivista, que funda a ciência moderna, a antiga ortodoxia foi substituída por outra.
E, mais uma vez, a narrativa que vem substituir a anterior – ou seja, agora o argumento
científico-racional em lugar do argumento religioso – tendo valorizado excessivamente o intuito
de limpeza, de assepsia, deixa de fora aquilo que considerou como “sujeira”: os saberes
tradicionais, locais, particulares, étnicos, sexuais, etc.
E ainda se pode adicionar a isto o fato de que, no caso do Brasil, de uma ponta a outra, o que
foi sendo desenhado como sendo a “cultura brasileira”, se restringiu às clausuras da estética de
uma elite localizada nos centros urbanos das províncias da colônia – e depois do império e da
república –, em geral com as costas viradas para o restante do país e os olhos fixos nas luzes
das metrópoles européias, localizadas do outro lado do Atlântico. Neste caso ainda, este
pedantismo fez com que virássemos as costas também para os nossos irmãos de dores e
destino, os outros países e povos latino-americanos. Tais contradições não apenas fundam o
Brasil, mas constroem suas narrativas oficiais.
Portanto, é bem de lá de longe, pois, que herdamos este pedantismo que olha para o resto do
país e para todas as questões locais, regionais e de contexto, como questões menores, que
não merecem qualquer atenção. Pedantismo este reforçado pela concentração da indústria
editorial e dos chamados “centros de excelência” no sudeste do país, sabidamente no Ri de
Janeiro e em São Paulo.
É este complexo que fez e faz com que a educação que se dirigiu e se dirige para escolinhas
situadas nas brenhas dos sertões semi-áridos do Brasil (ou em outros “sertões”), aonde não
chega luz elétrica, água encanada, esgoto, calçamento, médico, dentista, cambista, carteira de
reservista, correio... Onde a escola está enfiada numa casinha da professorinha, sem formação
adequada, formada no cabo da enxada; casa de chão batido e santo na parede; cabra no
terreiro, galinha no poleiro, berro de cabrito faminto na cozinha, água de cacimba no pote, sem
coar, sem filtrar, sem ferver; verme nos buchos dos meninos e mosqueiro na cozinha... A
educação escolar que se dirige para este “fim de mundo” – (como pode bem dizer a narrativa
hegemônica que deixa de fora tal realidade) – não dê ouvidos a este “barulho”.
Nem importa mesmo se esta realidade componha os modos de vida, as formas de produção da
existência de milhões de pessoas. Não importa se a seca e todas as formas de injustiça a ela
ligadas, expulsem um mundaréu de gente todo dia para ir se engalfinhar nos barrancos

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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

fedorentos e escorregadios dos centros urbanos mais ao sul. Não importa se há saberes; se há
dores e delícias; se há alegrias e belezas. A educação que continua sendo “enviada” por esta
narrativa hegemônica, se esconde por traz de uma desculpa de universalidade dos
conhecimentos que professa, e sequer pergunta a si própria sobre seus próprios enunciados,
sobre seus próprios termos, sobre porque tais palavras e não outras, porque tais conceitos e
não outros, porque tais autores, tais obras e não outras. Esta narrativa não se pergunta sobre
os próprios preconceitos que distribui como sendo seus “universais”.
Desde aí o que se pretende é, portanto, colocar em questão estes universais. O que está por
traz da idéia de “educação para a convivência com o semi-árido” é, antes de qualquer coisa a
defesa de uma de uma contextualização da educação, do ensino, das metodologias, dos
processos. Todos nós sabemos que, em meio a uma enorme carência de formação dos nossos
professores e professoras, o livro didático acaba assumindo o lugar do “senhor sabe-tudo”, e é
ele que acaba, por fim, por determinar o percurso de um ano letivo; e sabemos onde e como
estes livros continuam sendo elaborados e “vendidos” ao MEC; muitos deles trazem de autores
que sequer são nomes de pessoas reais; são nomes fantasias, certamente porque seus
autores se envergonham de expor seus próprios nomes em tais “obras”. Mas o pior é que estes
livros continuam sendo distribuídos aos quatro cantos do Brasil.
Portanto, o problema da contextualização é também um problema de ordem política. A
contextualização é, antes, um problema de “descolonização”. É uma questão de romper com
uma forma de nomeação operada “de fora” que sequer dá o tempo suficiente para que os
sujeitos possam organizar uma auto-definição e uma auto-qualificação. Antes disso, porém,
eles já estão nomeados, qualificados, representados numa caricatura na qual sequer podem se
reconhecer.
Como já sinalizamos em parte a justificativa para a descontextualização reside em um ideário
estruturado em torno de princípios como os de universalidade, objetividade, imparcialidade,
neutralidade, elementos caros ao projeto moderno. Tais foram os fundamentos da perspectiva
universalista do ensino, que pretendia vincular apenas “conteúdos sem contexto”: objetivos,
racionais, impessoais, qualificados como “neutros”, etc. No entanto, tais argumentos
esconderam a sua índole colonialista, sua pseudoneutralidade; esconderam que tais conteúdos
sempre foram acomodados em contextos particulares; nos códigos de uma elite dominante
(Bourdieu e Passeron); sempre foram contextualizados na realidade de uma elite e, em geral,
de uma prática colonizadora. Mas também, por outro lado, se negaram a ver os sentidos e as
apropriações diversas que cada pessoa e cada grupo humano, em suas particularidades, foram
construindo por baixo destes conteúdos sem contexto.
O problema é que estas contrariedades operadas pelos sujeitos aconteciam porque eram
inevitáveis, mas não havia qualquer espécie de valorização oficial e intencional do contexto.
Este é um típico problema da colonização: é preciso um saber que possa se fazer passar por
um saber “puro” e “neutro”, limpo de qualquer contexto, para permitir que ele seja um
dispositivo que “apague as pinturas de guerra”; para ser usado como instrumento de
esvaziamento de qualquer divergência, de qualquer resistência; e abra o caminho para a
colonização. E esta colonização se inicia com a nomeação e com a construção de uma
representação que é em suma uma primeira apreensão do Outro pelo colonizador.
Vemos isto em Luiz da Câmara Cascudo – que para Gilberto Felisberto Vasconcellos é o
filósofo do povo brasileiro, que esteve em toda a sua vida profissional ocupado de rastrear os
complexos percursos da formação da cultura brasileira, tecendo ele próprio suas próprias redes
de sentido. Cascudo nos lembra que os portugueses ao chegarem aqui não só nomeiam
equivocadamente os nativos de índios (pois era o caminho das índias que buscavam), como,
ao verem estes nativos deitados em uma espécie de maca cujo trançado se parecia com as
redes de pescar, já conhecidas dos portugueses, nomeiam tal utensílio de rede. Diz Cascudo:
Quem primeiro denominou a hamaca sul-americana de rede foi Pero Vaz de
Caminha e temos a data exata da nominação: segunda-feira, 27 de abril de
1500. É o padrinho da rede de dormir (CASCUDO, 2003, p.22).
Os portugueses sequer se deram ao trabalho de perguntar como os nativos já nomeavam
aquilo no qual dormiam. E Pero Vaz de Caminha, que jamais havia visto antes em sua vida
uma rede de dormir, ao nomeá-la com tal gramática portuguesa, pela semelhança das malhas
com a rede de pescar, a desapropria dos seus autores e lhe atribui uma nova autoria. O que

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

decorre daí é uma nova invenção da rede, que aos poucos vai deixando de ser “indígena” para
ser cada vez mais uma invenção da colonização portuguesa.
E nesta perspectiva colonialista, a o problema da contextualização não passa de algumas
poucas preocupações com métodos mais eficazes para garantir a assimilação mais rápida, por
parte dos colonizados, da mensagem do colonizador. Assim, quando a questão da
contextualização apareceu foi sempre por uma questão de método, como uma questão de
adequação, de adaptação. Por estas razões reafirmamos que, nestes termos, discutir a
contextualização da educação é também discutir sua descoloniazação. E agora não se trata
mais da relação de colonização de um país sobre outro, mas especialmente de grupos
humanos sobre outros, regiões sobre outras, de narrativas sobre outras. Trata-se de
reconhecer, portanto, miúdas colonizações que não se prendem às grandes oposições, mas
estão especialmente embutidas e consolidadas na linguagem cotidiana, na língua oficial, na
sexualidade, nas identidades, nas regionalidades, etc.
Nós já rompemos com a perspectiva universalista e pretensamente neutra, especialmente
desde que Paulo Freire apareceu entre nós. Não só isso, mas tantos rompimentos já foram
praticados que já não devemos mais nada à perspectiva universalista, objetivista, e à sua
pseudo-imparcialidade e pseudo-neutralidade; não devemos mais nada a uma suposta verdade
universal. Não devemos mais nada a estes cânones da modernidade racionalista, já derruída
pelos muitos ataques que tem sofrido por todos os lados nos últimos tempos. E até começamos
a ver que a colonização não se faz apenas explicitamente, mas é possível continuar
sorrateiramente e dissimuladamente entre nós, especialmente através dos mecanismos de
produção da dizibilidade e da vizibilidade que determinada categoria de sujeitos procede em
relação a um “Outro”, inclusive utilizando para isto as “suas próprias palavras” deste “Outro”.
Contextualizar, portanto, é esta operação mais complicada de descolonização. Será sempre
tecer o movimento de uma rede que concentre o esforço em soerguer as questões “locais” e
outras tantas questões silenciadas na narrativa oficial, ao status de “questões pertinentes” não
por serem elas “locais” ou “marginais”, mas por serem elas “pertinentes” e por representarem a
devolução da “voz” aos que a tiveram usurpada, roubada, negada historicamente.
Porém, ao fazer isto, não deveríamos cindir os profundos vínculos que este “dentro” tem com
seus “foras”, para que os sujeitos não se sufoquem em seus contextos, e evitando que o
contexto seja asfixiado em si mesmo. Deveríamos, especialmente, não reproduzir ou re-editar
oposições dualistas simplificadoras, típicas da prática colonialista. De qualquer modo
contextualizar (e descolonizar, portanto) deverá ser um trabalho de reconstruir vizibilidades e
dizibilidades instituídas, e de permitir que os “Outros”, excluídos da “narrativa hegemônica”,
recuperem sua palavra e tornem pertinentes suas questões.
Portanto não se trata estabelecer um ressentimento bairrista ou fazer inverter a situação de
colonização simbólica: o colonizado virar colonizador e vice-versa. Não se trata disto. Trata-se
de construir questões pertinentes não apenas de âmbito “regional” ou local; trata-se de
legitimar as lutas por reconhecimento que os sujeitos já sustentam. Trata-se, também, de ser
cosmopolita; de deixar de lastimação, de abandonar o discurso do “coitado”, “explorado”,
“marginalizado”, etc., e decidir ser de outro tamanho, nem que para isto tenhamos que nos
valer de uma atitude antropofágica em relação aos “conteúdos” colonizadores, para produzir as
condições que nos permitam postarmo-nos sobre nossos próprios ombros, para mirarmos o
nosso abismo humano, onde quer que estejamos.
Por outro lado, a contextualização que se pretende não é aquela que é sempre feita pelos
mesmos “intelectuais” ligados à narrativa hegemônica e a sua indústria editorial, que quando
pensa estar “contextualizando”, acaba por produzir adaptações que resultam em caricaturas e
estereótipos apressados; em fixidez caricatuarais, que se constituem em aprisionamentos
simbólicos. Nem se trata de uma adequação à pobreza, o que equivaleria e “dar educação
pobre para gente pobre”. Não se trata desta lógica das “cestas básicas para flagelados”.
Cestas básicas de saúde, de educação, de cultura, de lazer, de participação. A questão do
contexto é muito mais ampla.
Contexto é o conjunto de elementos ou de entidades, sejam elas coisas ou eventos, que
condicionam, de um modo qualquer, o significado de um enunciado, ou seja, que permitem a
um sujeito dotado de consciência, construir um entendimento, um sentido sobre uma coisa ou
evento, com os quais entra em contato. O contexto é, portanto, uma forma de habitat; é um
meio e define uma ecologia. Evidentemente, em se tratando de mundo humano este meio, este

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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

habitat e a ecologia aí implicada, dizem respeito à cultura, à linguagem, às formas de


comunicação humanas e ao regime de signos que rege esta comunicação, e não apenas às
coisas físicas e palpáveis.
O contexto, então, não é apenas físico e objetivo. Nem é fixo. Ele compreende regimes de
signos, materiais invisíveis, móveis, componentes de subjetividades. Ele se compõe de uma
espécie de atmosfera particular, que não compreende apenas camadas físico-químicas nem
uma natureza separada do homem, mas compreende especialmente uma outra camada que é
a noosfera, ou seja, a camada do pensamento, das idéias, dos valores; a camadas dos signos,
das entidades invisíveis, impalpáveis, semióticas. Então ele não encerra apenas uma ecologia,
mas uma ecosofia – termo cunhado pelo psicanalista francês Félix Guattari, em As Três
Ecologias, visando incluir na discussão ecológica a dimensão subjetiva.
Nesta perspectiva, o contexto também não diz respeito apenas ao local, à dimensão territorial
que nomeamos como o “aqui”, como a “nossa realidade”, sempre vinculada a um lugar, a um
território expressamente fixado que nomeamos como nosso, muito embora o inclua; contexto
encera, além disso, o próprio dilema das identidades e os materiais semióticos que as
compõem.
No mito da caverna que Platão dispõe no livro VII de A República, algumas pessoas que
passaram suas vidas inteiras presas numa caverna, e conhecendo do mundo apenas aquilo
que lhes chegava deste mundo através de sombras projetadas nas paredes da caverna, acham
que o verdadeiro mundo é este revelado pelas sombras; e acham que o mundo real é que é a
deformação. Esta passagem nos faz considerar que nossos modos de percepção estão
extremamente condicionados (embora não determinados) pelos contextos que nos acomodam.
E isto os gregos já discutiam há quase três mil anos.
Cosme Batista dos SANTOS (2003), afirma que contexto não se resume à situação imediata de
produção dos textos ou, para ser mais específico, de produção de leitura ou de escrita. Ele
também se estende até outros domínios de convenções nas quais os usuários da língua
procuram se adequar quando falam ou escrevem; se estende até outros regimes de signos,
nos quais também cada pessoa, com as suas histórias e projetos de vida particulares, não
somente se submete a tais convenções, mas as viola também, criando novas regras, novos
entendimentos, novos sentidos, novos contextos.
Sendo assim, contextos não se fixam apenas ao local, à sala de aula, à comunidade local, a
um território determinado. Ele se estende até um sistema de valores, que extrapolam qualquer
fronteira geofísica descuidadamente traçada, uma vez que se tecem em redes de conteúdos
que fundem o passado e o futuro; o local e o global; o pessoal e o coletivo; as objetividades e
as subjetividades fugazes. Mas tal tessitura e tais cruzamentos se dão numa determinada
situação, movidos a condições reais e a certos constrangimentos, em um dado tempo e chão;
não estão soltos no ar – senão não haveria sentido falar em contexto. Assim o contexto
também fornece os “algoritmos”, ou seja, os padrões, as regularidades e constâncias que
permitem a leitura do mundo, porque fornece o sistema de códigos lingüísticos que organizam
qualquer comunicação.
Leonardo Boff, em A Águia e a Galinha: uma metáfora da condição humana (BOFF, 1997),
começa seu texto com a frase: “cada ponto de vista é a vista de um ponto” e afirma que cada
pessoa lê o mundo com os olhos que tem e de onde seus pés pisam. Isso corrobora a nossa
posição de que os contextos, se não determinam, condicionam, compõem o modo como
enxergamos o mundo. No entanto este contexto nos permite diversos agenciamentos com os
elementos que constituem a complexidade de uma temporalidade e, portanto, os modos de ver
e de interagir com o mundo, serão sempre vários, diversos. Porém sempre circunstanciados
pelas multiplicidades que cruzam um dado tempo e lugar, uma chão, um território ao mesmo
tempo material e existencial.
Este aspecto nos permite fortalecer a idéia de que as pessoas não estão de forma alguma
soltas no ar, no tempo, à mercê das eventualidades. Elas estão inseridas numa cultura, num
modo de vida; estão ligadas a uma memória, a uma linguagem dotada de sentido prático, a um
conjunto de algoritmos com os quais organiza suas interpretações e suas formas de
intervenção no mundo; com os quais anima os modos com que produz sua existência. Esta é
sua temporalidade, sua existencialidade.

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

E este aspecto não é apenas um aspecto importante na perspectiva do interacionismo


simbólico, como também está presente na abordagem construtivista. Mas esta perspectiva
também está presente na obra de Bourdieu e Passeron, quando estes consideram que o
domínio simbólico é o domínio por excelência da cultura, da significação, constituindo aquilo
que eles chamam de cultura dominante como sendo a cultura. Qualificar este domínio como
sendo a cultura dominante, no entanto, não diz apenas que ela pertence a uma classe
dominante, mas, sobretudo, que é um “domínio dominante”, em um determinado meio social.
Estes traços estão também presentes em A invenção do cotidiano: 2. morar, cozinhar, de
Ceteau, Giard e Mayol (1996), quanto Pierre Mayol discute a encenação da vida cotidiana,
apresenta o conceito de conveniência como sendo, “no nível dos comportamentos, um
compromisso pelo qual cada pessoa, renunciando à anarquia das pulsões individuais, contribui
com sua cota para a vida coletiva, com o fito de retirar daí benefícios simbólicos
necessariamente protelados” (p. 39). Tais aspectos aqui elencados definem um modus vivendi
composto de regras bastante sofisticadas que também encerram o que estamos entendendo
por contexto.
Tal perspectiva ainda aparece em Basil Bernstein, quanto ele se interroga como se aprendem
as posições de classe, que se traduzem em estruturas de consciência. Para ele entra aí o
conceito de “código” que estrutura uma a gramática da classe. Mas não apenas de classe; de
grupo, gramática comunitária, gramática étnica, sexual, de categoria profissional, de grupo e
gueto. São tais elementos que nos sugerem com mais vigor que qualquer processo
educacional cruza e enfrenta tais circunstâncias contextuais, não havendo qualquer
possibilidade de tais elementos se ausentarem da experiência pedagógica. No entanto, a
direção que estamos apontando aqui é a de que eles sejam os materiais com os quais os
processos de ensino-e-aprendizagem sejam organizados. Materiais que não devem ser
desconhecidos, menosprezados ou hostilizados, e devendo constituir uma defesa mais ampla
da contextualização.

II. A QUESTÃO DA CONVIVÊNCIA COM O SEMI-ÁRIDO NA PERSPECTIVA DO


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Mas a discussão da contextualização se liga a outra questão: a convocação para que a escola
dê sua parcela de contribuição aos esforços de implementação do desenvolvimento, agora
qualificado como desenvolvimento sustentável – proposição que às vezes ainda soa muito
vaga, exatamente quando deixa de fora os próprios contextos.
Neste caso, considerando que este desenvolvimento deve ser de um tipo que crie as condições
que permitam melhorar as condições de produção da existência dos grupos humanos, é
preciso considerar que estas condições relacionam às potências existentes nos próprios meios
sócio-ambientais em que estes grupos humanos estão inseridos. Ou seja, os contextos
constituem ecossistemas com suas próprias potências, nas quais se assentará qualquer
proposta de desenvolvimento sustentável.
O professor Salvador TREVIZAN (2003), que estes ecossistemas são unidades espaciais ou
territoriais, e que estes são constituídos de fluxos. Segundo ele há basicamente três tipos
destes fluxos nos ecossistemas:
Fluxos de componentes naturais: clima (temperaturas, luminosidade e
energia solar, pluviosidade, ventos); os mananciais aquáticos (bacias
hidrográficas, nascentes, volumes de água, potencialidades para o consumo
e geração de energia); características (biodiversidade) e fluxo de produção
e reprodução da fauna e da flora; características topográficas, do solo e do
sub-solo (constituição física e química, fertilidade).
Fluxos de componentes socioculturais: mobilidade das pessoas,
individualmente ou em grupo, para atender suas necessidades, desejos,
obrigações (lazer, religião, saúde, cultura, arte, educação, compras, vendas,
etc.).
Fluxos de componentes econômicos e tecnológicos: produção (o que
se produz, como se produz – insumos e produtos, onde se produz, relações
de produção e tecnologia implicada); distribuição da produção (como é feita
a distribuição, destino da produção, como são formados os preços, quem
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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

fica com que parcela do preço final); industrialização/consumidor final (quem


são).
É diante destas indicações que podemos perguntar como a educação pode contribuir para a
dinamização destas potências e destes fluxos, visando melhorar as formas de produção da
existência humana. Não se trata de simplesmente dotar a educação de um sentido meramente
instrumental, mas é inaceitável que a educação não dê ouvidos aos reclames neste sentido.
Por esta razão, ao considerarmos os diversos fluxos, estamos levando em conta que as
unidades espaciais ou territoriais se constituem muito para além da mera capitalização dos
“recursos naturais”, para otimizar uma economia.
É por esta razão que temos discutido que a educação deve contribuir para o desenvolvimento
sustentável do Semi-Árido Brasileiro (SAB). Mas temos considerado igualmente que este
desenvolvimento deve levar em conta os fluxos, as potências e as fragilidades do SAB. Por
isso mesmo temos acatado a noção de “educação para a convivência com o semi-árido”. E ela
está posta porque, como já dissemos, jamais as nossas escolas foram espaços onde
circulavam deliberadamente “conteúdos” sobre “nossa realidade”. Neste caso, contextualizar a
educação implica admitir a particularidade do Semi-Árido Brasileiro e reconhecer como
pertinente a inclusão da tematização dos seus fluxos nas salas de aula aí localizadas.
Esta perspectiva, no entanto, não é meramente uma proposição que estamos organizando e
fazendo circular. Pelo contrário, ela já está em circulação e já organiza práticas variadas
experiências de educação, na diversidade do Semi-Árido Brasileiro. Todas elas, no entanto,
organizam-se com base em um fundo comum, que é a particularidade do semi-árido. Uma
particularidade que o faz um dos maiores e mais complexos do mundo.
O Semi-Árido Brasileiro envolve 11 Estados da Federação (Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito
Santo, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe).
Em sua área se concentram 26,4 milhões de habitantes (15,5% da população brasileira), sendo
que 10,9 milhões são crianças e adolescentes de 0 a 17 anos (GOMES FILHO, 2003), estando
excluídas aí as populações das áreas não semi-áridas dos Estados relacionados. Todo este
contingente populacional está submetido de algum modo aos efeitos decorrentes da
particularidade ecossistêmica do semi-árido e à forma como as políticas a trataram
historicamente, convertendo-a, na melhor das hipóteses, em uma potencia de exploração
política.
Essa particularidade ecossistêmica inclui o problema da água e das secas, que foi convertido
em seu principal dilema climático, ao invés de ter sido tematizado, estudado e discutido visando
extrair as potências que favorecessem as soluções sustentáveis de desenvolvimento. Pelo
contrário, serviu de pilar para a indústria da seca e para ações políticas baseadas no
assistencialismo, no clientelismo político, que sempre beneficiou as oligarquias locais e permitiu
a manutenção dos “currais eleitorais”. Além disso, o seu tratamento técnico foi feito
exclusivamente pela lógica do “combate à seca”, como ações emergenciais e paliativas que
ampliavam as situações de dependência política.
Enquanto isso a escola permaneceu alheia a tais problemáticas, a não ser pelas presenças dos
pés rachados dos seus alunos e alunas ou porque muitas vezes teve que fechar suas portas
por causa da estiagem ou dos (des)mandos políticos.
É curioso ver como nem mesmo o trabalho intelectual que fundou a região Nordeste e se
beneficiou muito da “imagem” da seca e do sertanejo para fundar uma suposta sua identidade,
foi capaz de tematizar as condições do Semi-Árido Brasileiro. Este permaneceu ausente tanto
dos seminários de tropicologia do Gilberto Freyre, quanto de seu manifesto regionalista de
1926 – um dos instrumentos que ajudaram a fundar a região Nordeste. Mais do que isto, o
discurso regionalista, assentado em obras como Nordeste, de Gilberto Freyre, não consegue
ultrapassar a zona da mata de Pernambuco e o modo de vida assentado nos engenhos de
cana de açúcar – e depois nas usinas –, essencialmente dependentes de fartas fontes de
água. Dependente de um modo de vida mais úmido, azeitado, gorduroso, como o próprio autor
sugere na referida obra. Uma visão que não consegue ultrapassar os montes da zona úmida
para alcançar os sertões, onde o grande problema é, em contrário, a imensa carência de água.
Menos ainda se pensou o semi-árido em termos de propostas de desenvolvimento sustentável.
O que se desdobrou desta matriz regionalista foi a proliferação de “obras” que retrataram a
imagem da penúria ligada às secas e às calamidades sociais, alimentando um discurso da

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

vitimização do sertanejo; produzindo um cultura do coitado, que deve ser merecedor da pena e
da ajuda das outras regiões do país. Mas nada mais se fez em termos de tematizações sérias
em nome deste vasto e rico ecossistema, de seus biomas e de suas potencialidades humanas.
Apenas muito recentemente estamos conhecendo estudos, especialmente desenvolvidos pela
EMBRAPA, que têm protagonizado tal reflexão.
Neste contexto, a idéia de “educação para a convivência com o semi-árido” como contraponto
ao descaso histórico para com o SAB, baseia-se nestas evidências e defende que a educação
dê sua parcela de contribuição, sendo espaço de tematizações pertinentes sobre o
ecossistema semi-árido, suas diversidades e sobre as possibilidades de um desenvolvimento
sustentável aí. É exatamente isto que vêm fazendo diversas organizações da sociedade civil
por todo o território semi-árido.
Variadas formas de capacitações atualmente levam conhecimentos técnicos sobre a natureza
climática do semi-árido e suas variações, desenvolvem tecnologias adequadas para a captação
e armazenamento de água da chuva, formas de manejo sustentável dos solos e da produção, e
escolha de espécies mais adequadas ao clima, etc.. São estes alguns exemplos de ações que
têm sido desdobradas por organizações da sociedade civil junto às populações mais pobres do
semi-árido, e que se inserem na idéia de que é possível desenvolver competências adequadas
às qualidades ambientais do semi-árido. Esta é a noção de “convivência”, vista enquanto
relação saudável e equilibrada, que se alia às potencialidades da natureza semi-árida,
otimizando-as e colocando-as em favor da melhoria das condições de vida da população
residente.
Isto, no entanto, ocorre ainda majoritariamente fora da escola pública formal e oficial, a não ser
em poucas experiências em que o sistema público de ensino se abriu para adotar em seu
interior experiências desenvolvidas e sugeridas por organizações da sociedade civil. Mas ainda
são iniciativas tímidas por parte dos sistemas de ensino, especialmente os sistemas estaduais.
A esta altura, porém, não há nenhuma desculpa ou justificativa lógica ou oficial e razoável para
tal atitude. A esta altura nem há também desculpa para o fato de as Universidades ainda
permaneçam preferindo discutir o sexo dos anjos, do que ajudando a produzir conhecimentos
pertinentes para mudar as situações reais de extrema pobreza. É como se existisse um
pensamento revestido de uma espécie de vergonha intelectual; que acha menos nobre desviar
os “acadêmicos” de seus nobres trabalhos de alta elaboração conceitual, para envolvê-los em
lutas sociais implicando em níveis maiores de engajamento prático. Há um ponto em que a
própria elaboração conceitual pode estar a serviço da “mudança”. Sem este reconhecimento
não há utopia possível; nem mesma há a possibilidade de se reconhecer que existe a fome, de
fato, e de que, além de conceitos há que haver comida. Mas como os conceitos podem ajudar
a produzi-la e a distribuí-la com mais justiça?
Nossas discussões na Rede de Educação do Semi-Árido Brasileiro (RESAB) pretendem
descortinar estes envergonhamentos injustificados, e elevar a discussão da contextualização
da educação status de uma discussão séria. Mas uma contextualização que se vincule
visceralmente às lutas já travadas em cada território; e que se dê “de dentro”; que gere estudos
e pesquisas sérias e variadas, que ajudem a fortalecê-la tecnicamente, cientificamente e
academicamente – até para ver se se desfaz o pedantismo acadêmico que ainda prevalece
nos espaços de educação superior e de pesquisa.
É preciso considerar que há de fato uma particularidade, ou seja, a precipitação média anual
fica em geral entre 250 e 800 mm por ano. No entanto, devido à proximidade do equador e às
conseqüentes altas temperaturas durante o ano todo, a evaporação potencial é de até 3.000
mm por ano (Cf. SCHISTECK & MARTINS, 1998). Tais índices produzem um déficit hídrico
acentuado, ou seja, a precipitação não consegue restituir a quantidade de água evaporada,
decorrendo mais na frente nas secas. Estas, no entanto, não se resumem aos indicadores
climáticos. As secas são também humanamente e culturalmente produzidas, seja pelas formas
de capitalização das secas em benefício das oligarquias locais, seja pelo fato de que não
houve o desenvolvimento de atitudes e de aparatos técnicos que permitissem uma convivência
instruída e preventiva em relação a elas.
Estas, no entanto, não são questões menores e que mereçam ser desconsiderada. Elas não
somente definem um ecossistema, que comporta em seu interior outros ecossistemas, mas
definem também modos de vida, já que regulam e modulam os movimentos, as ações, as
interações, as reações, etc. Por isto mesmo deveriam ser levadas a sério na hora de pensar a

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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

política, de priorizar os recursos para estudos e os investimentos infra-estruturais; e também na


hora de produzir novas aprendizagens escolares. É isto que está em questão!
Pensando desta forma temos nos colado no esforço de tentar construir saídas pedagógicas. Há
atualmente muitas saídas sendo produzidas por variadas instituições. Estamos mais próximas
de uma, em especial, onde propusemos o ensino organizado a partir de cinco eixos básicos,
que levassem em consideração os fluxos dos quais já falamos. Tais eixos, no entanto, não
querem constituir uma receita; querem apenas apontar um rumo.
Quatro deles foram extraídos de um trabalho da professora da UFBA, Terezinha Fróes
Burnham (BURNHAM, 1993, p. 26), e são eles:
A NATUREZA – entendida como estrato natural da ocorrência da vida e, em
particular, como o meio ambiente onde ocorre o desenvolvimento de
diferenciadas manifestações de vida.
O TRABALHO – entendido como processo através do qual o homem
transforma a natureza, ao mesmo tempo em que reconstrói, continuamente,
a si mesmo e a realidade histórico-social que integra.
O CONHECIMENTO – tomado como construção coletiva, histórico-social da
relação homem-natureza-homem, mediada pelo trabalho.
A HISTÓRIA DA HUMANIDADE – entendida como um processo de
transformação que envolve desde dimensões filogenéticas e sócio-culturais,
até econômicas e políticas, e que inclui tanto a relação com a natureza,
quanto os mecanismos de produção da humanidade, que mediam trabalho
e conhecimento.
Estes eixos constam de uma proposta pedagógica que organizamos para as escolas do
município de Curaçá, na Bahia (MARTINS & LIMA, 2001), na qual ainda adicionado mais um
eixo a estes quatro, inspirado na obra As três ecologias, de Félix GUATTARI (1995). Este
quinto eixo é o das SUBJETIVIDADES HUMANAS, entendidas como as instâncias onde se
produzem, no cruzamento entre as outras diversas instâncias da vida, domínios moleculares de
produção de sensibilidade, inteligência e desejo.
É especialmente neste eixo em que entram as instâncias da arte e da cultura, mas também da
propaganda e os dispositivos capitalísticos de mobilização do desejo, a serem tematizadas e
enfrentadas, considerando que também no Semi-Árido Brasileiro, como no mundo atual de uma
forma geral, existe um comprometimento da subjetividade em relação à sua exterioridade –
seja esta social, animal, vegetal, cósmica. Para Guattari a subjetividade se encontra
comprometida, numa espécie de movimento geral de implosão e infantilização regressiva, onde
a esfera das relações humanas se vê reduzida às mesmas redundâncias de imagens e de
comportamento, havendo, portanto, não apenas nocividades e poluições objetivas, mas um
comprometimento das relações da humanidade com o sócius, com a psique, com o prazer,
com a natureza, etc.
Tais reconhecimentos não apenas colocam de volta o Semi-Árido Brasileiro dentro do mundo,
estando sujeito às mesmas eventualidades que compõem um “mal de época”, mas implicam
pensar que além das ações voltadas para as potências objetivas, há que haver aquelas que se
voltem para o desenvolvimento de novas práticas.
Novas práticas sociais, novas práticas estéticas, novas práticas de si na
relação com o outro, com o estrangeiro, com o estranho: todo um programa
que parecerá bem distante das urgências do momento! E, no entanto, é
exatamente na articulação: da subjetividade em estado nascente, dos
socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser
reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época
(GUATTARI:1990, p. 55).
São todas estas as questões que nos fazem defender que a educação esteja atenta a estes
reclames e ajudando a desenvolver estas novas práticas. Neste caso a “educação para a
convivência com o semi-árido” não apenas deve dar ouvidos às questões objetivas ligadas ao
meio ambiente e ao ecossistema, mas deve ainda considerar que parte dos fluxos do
ecossistema é de natureza pouco objetiva: pertencem à ordem dos signos e, no entanto, tem

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

enorme poder, para o bem e para o mal, podendo desencadear aí também profundos
processos de poluição e de degradação humana.
O fato é que, todas as práticas atualmente em curso apontam para a necessidade de contar
uma outra história na educação realizada no Semi-Árido Brasileiro, com todas estas questões a
serem enfrentadas, a partir da produção de conhecimentos pertinentes e engajados numa luta
pela descolonização curricular das escolas do SAB.

III. PARADOXOS DA PRODUÇÃO DE UMA NOVA RACIONALIDADE


Todos estes pontos, porém, da discussão da “educação para a convivência com o semi-árido”
nos levam a um paradoxo fundamental, ou seja, esta noção pressupõe não apenas que a
educação até então oferecida no semi-árido brasileiro foi descontextualizada, mas que a
própria vida que se estabeleceu no SAB, não se fez pelas formas mais adequadas de convívio
com o ecossistema. E isto é, ao mesmo tempo, uma verdade e um paradoxo.
É uma verdade porque não somente no semi-árido, nossa civilização tem se caracterizado por
ser fundamentalmente depredadora. Nos sertões semi-áridos, por exemplo, a exploração se
deu pela instalação de currais de gado, de sesmarias, de fazendas espaçosas, pela criação
extensiva, com o criatório solto nos pastos, comendo tudo e pisoteando o resto. A abertura de
novas áreas de ocupação se deu – como descreve Euclides da Cunha, em Os Sertões – pelo
ateio de fogo na vegetação nativa, produzindo áreas que após exauridas eram abandonadas
em caapueras. Há um trecho em Euclides da Cunha que merece destaque, porque descreve
um procedimento de exploração dos recursos naturais que tanto foi utilizado por indígenas
quanto pelos seus colonizadores.
Entalhadas as árvores pelos cortantes djis de diorito; encoivarados, depois
de secos, os ramos, alastravam-lhes por cima, crepitando, as caiçaras, em
bulcão de fumo, tangidas pelos ventos. Inscreviam, depois, nas cercas de
troncos combustos das caiçaras, a área em cinzas onde fora a mata
exuberante. Cultivavam-na. Renovavam o mesmo processo na estação
seguinte, até que, de todo exaurida aquela mancha de terra fosse,
imprestável, abandonada em caapuera – mato extinto – como denuncia a
etimologia tupi, jazendo dali por diante irremediavelmente estéril porque, por
uma circunstância digna de nota, as famílias vegetais que surgiam
subsecutivamente no terreno calcinado, eram sempre de tipos arbustivos
enfezados, de todo distintos dos da selva primitiva. O aborígene prosseguia
abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas, alargando o círculo
dos estragos em novas caapueras, que ainda uma vez deixava para formar
outras noutros pontos, aparecendo maninhas, num envolver enfezado,
inaptas para reagir com os elementos exteriores, agravando, à medida que
se ampliavam, os rigores do próprio clima que as flagelava, e entretecidas
de carrascais, afogadas em macegas, espelhando aqui o aspecto
adoentado da caatanduva sinistra, além a braveza convulsiva da caatinga
brancacenta (...).Veio depois o colonizador e copiou o mesmo proceder
(CUNHA, 1998, p. 64).
Tal procedimento ainda hoje é repetido por milhares de pessoas e retrata uma cultura que olha
para o meio ambiente como “coisa de ninguém” e que, portanto, pode ser apropriada da forma
mais prática possível para satisfazer a necessidades particulares, individuais e imediatas. Este
raciocínio coincide com a postura depredativa e irresponsável. E nesta lógica, as dificuldades
ecossistêmicas já existentes no SAB tendem a gravar-se mais ainda. No entanto, tais
elementos não constituem uma exclusividade das populações do SAB.
Mas a noção de “educação para a convivência com o semi-árido”, ao afirmar que a própria vida
que se estabeleceu aí não se fez pelas formas mais adequadas de convívio com o
ecossistema, ao expor uma verdade expõe também um paradoxo. E é um paradoxo porque, de
certo modo as pessoas que vivem nos sertões semi-áridos, aprenderam, sim a conviver com o
meio ambiente. E aprenderam tanto que desenvolveram formas sutis de comunicação com a
própria natureza, com seus sinais, com suas eventualidades. Sem contar as profundas formas
de coletividade, as solidariedades mútuas, os particulares sistemas de dádivas e de obrigações
comunitárias, que se estenderam e se consolidaram por várias gerações.

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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

Tudo isso constitui um conjunto muito amplo de saberes que definem, sem dúvida, uma
convivência. Esses saberes, como outros, são frutos de um processo longo e se ligam ao
tempo da pedagogia jesuítica, embora tenham se desenvolvido no seio de uma mestiçagem e
de um hibridismo cultural, entre as matrizes que compuseram o perfil humano dos sertões,
misturando às doutrinas católicas os ingredientes nativos, de negros escravos, e de toda sorte
de estrangeiros e degredados que foram incluídos nos processos de ocupação e de
colonização, incluindo os mouros e tantas outros.
Estas misturas resultaram em saberes de uma longa convivência cuja lógica se estrutura por
um jogo de aproximação das coisas e dos mundos, dentro daquilo que Michel Foucault (1999,
23-61) chama de similitudes, e que estruturavam o pensamento medieval na Europa que nos
colonizou. E havia basicamente quatro tipos de similitudes, a partir dos quais era possível
decifrar e explicar o mundo: a conveniência, a emulação, a analogia e o par simpatia/antipatia.
A conveniência designa a aproximação, o avizinhamento, o emparelhamento das coisas entre
si, a ponto de tocarem-se nas bordas; uma aproximação entre dois, um parentesco não muito
nítido, como a alma e o corpo, de modo que o corpo se parece com a alma, e vice-versa. É
uma semelhança ligada ao espaço que faz próximos a terra e o mar, as plantas e os animais e
as coisas umas às outras – e, portanto há tantos peixes na água quanto sobre a terra há
animais... E para cada um, há outro.
A emulação é uma forma de explicar o mundo onde a semelhança é liberada da lei do lugar;
uma semelhança sem contato, como o reflexo do espelho, onde as coisas do mundo se
correspondem, como o rosto é êmulo do céu e como o intelecto do homem reflete a sabedoria
de Deus. Como o claro esclarece, explica, pacifica; e o escuro encerra as tormentas.
Uma terceira similitude é a analogia, que superpõe a conveniência e a emulação e executa
similitudes não visíveis, não maciças... mas as sutis semelhanças das relações (a planta é um
animal que se sustenta de cabeça para baixo; a noz-moscada serve para dor de cabeça
porque se parece com o encéfalo). A analogia pode voltar-se sobre si mesma sem, contudo,
ser contestada. Como o vermelho desperta a avidez dos desejos e os sonhos de guerra.
A última similitude é constituída pelo par simpatia/antipatia, e resguarda um princípio de
mobilidade: “atrai o que é pesado para o peso do solo e o que é leve para o éter sem peso;
impele as raízes para a água e faz girar com a curva do sol a grande flor amarela do girassol”
(FOUCAULT, 1999: 32). Assim, a simpatia completa-se com seu oposto a antipatia, para que
disperse tanto quanto atraia, e cumpra seu efeito mobilizador. E a soberania deste par
(simpatia-antipatia), prescreve também um movimento de dispersão que dá lugar a todas as
formas de semelhança.
É impressionante ver como nos ermos dos sertões semi-áridos (mas não só aí) estes critérios
de interpretação das coisas do mundo e da natureza (da terra e do céu), perfazem o conjunto
de saberes. E foram estes saberes, com tais critérios, que permitiu que as pessoas
sobrevivessem ali, aonde não chegou a luz elétrica, a água encanada, o esgoto, o calçamento,
o médico, o dentista, o cambista, a carteira de reservista...
Foi através destes mecanismos e critérios próprios de uma forma de conhecimento medieval,
que os elementos humanos que passaram a ocupar os sertões nos processos de colonização,
e que aí se consolidaram, desenvolveram também suas formas de conhecimento e de
convivência com o meio ambiente. Isso nos leva, portanto, a afirmar que já há uma forma de
“convivência” estabelecida desde longos anos.
Uma convivência estabelecida regida por outras formas de argumento e de explicação do
mundo, mais propriamente dentro daquilo que Gaston BACHELARD (1996), chama de espírito
pré-científico, pautado por uma forma mágica de conhecer o mundo. Estas formas de
conhecer, no entanto, antes de qualquer coisa indicam o desenvolvimento de uma espécie de
convivência entre homens e contexto ambiental nos ermos do sertão semi-árido, sendo apenas
uma convivência diferente, eminentemente mágica.
A magia, neste caso, é a ciência possível que, em si, não é lógica nem ilógica. É apenas um
saber que resolve conflitos, carências por explicações, por dotar de sentido e entendimento as
coisas do mundo. Assim, a magia é a imanência, ou seja, o princípio de que o todo está contido
na parte. Este mesmo princípio move, nos sertanejos semi-áridos, a produção de muitos dos
seus saberes; a construção de estratégias de sobrevivência e, portanto, de convivência; move
a relação das pessoas entre elas e com o meio, com a água, com a caatinga, com os animais e

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

com entes invisíveis, agregando valores simbólicos que fazem fronteira com o sagrado, com a
memória, com os ancestrais.
A prática da cura, por exemplo, se baseia nestes elementos. E mais “antigamente” se vivia de
curar pessoas, de reza, de benzimentos, de fazer beberagens fitoterapêuticas, artesanais e
caseiras; se vivia de remédios de “casca de pau”, como dizem eles. Temos que considerar que
isto tudo implica, de qualquer forma o desenvolvimento de uma convivência.
Porém, ao lembrarmos disso tudo reconhecemos que, em que pese a existência de uma
convivência já estabelecida, possivelmente aquilo do qual estamos falando agora se trata de
uma outra espécie de convivência. E de que nova espécie de convivência nós estamos
tratando agora?
É preciso antes de qualquer coisa considerar que os saberes também se desatualizam, porque
uma forma de vida pode também se desatualizar em essência, diante das novas questões que
o mundo apresenta. Então é possível intuir que estes saberes estão sendo cada vez mais
desatualizados pelo mundo contemporâneo. Ou melhor: estão sendo desbancados pelas
racionalidades modernas (e até pelas pós-modernas ou hipermodernas) e pelo que elas trazem
de bom e de ruim, especialmente quando colocam entre nós a questão de se ainda é possível
viver como se vivia há algum tempo, apenas se servindo destas “simpatias populares”, que
engendram todos estes espectros de relações das similitudes apontadas por Foucault. A
resposta pode ser: “SIM se desejarmos manter certos níveis de exclusão”.
Parece que agora, quando dizemos “convivência com o semi-árido”, estamos falando,
sobretudo, de uma convivência atualizada em função de novos saberes e de novas demandas
do mundo atual. Portanto é o presente o vetor de tais discussões.
De certo modo, portanto, há uma reivindicação de que se estabeleça “um uso mais racional dos
seus ‘recursos naturais’, especialmente dos recursos hídricos”. Neste caso, por um lado
estamos falando da instalação dos fundamentos da racionalidade modernidade, estamos
falando de modernização das experiências de vida. Num certo sentido, se pretende que as
populações do semi-árido ascendam até o ponto em que abandonem velhas práticas e
explicações mágicas do mundo (como “não chove porque Deus não quer”, por exemplo) e
aceitem os nossos novos argumentos técnico-científicos (a exemplo do esquentamento do
Pacífico Sul, do fenômeno El Nino, etc.).
Ora, diante disso estamos mais uma vez diante de um paradoxo. Por um lado fazer a defesa da
auto-suficiência dos “saberes populares” pode coincidir com um indesejável romantização do
passado, da desatualização dos saberes e dos estados de carência. Por outro, foi esta mesma
racionalidade moderna, técnico-científica, que produziu muitas formas de exclusão e de
massacre dos saberes (em nome de uma prática colonialista já discutida aqui), além de ter
logrado proceder a uma extrema degradação do meio ambiente, tendo sido ela mesma que fez
com que virássemos o milênio comemorando um estágio nunca visto em termos de
desenvolvimento científico e tecnológico e, ao mesmo tempo, lastimando uma erosão
igualmente jamais vista na natureza planetária (e na natureza humana). Por tais razões esta
mesma racionalidade tem sido atacada por todos os lados.
De certo modo podemos ser levados a nos debater entre duas perspectivas: uma que
romantiza o passado e os saberes populares tradicionais (pré-científicos, mágicos) e reluta
contra a entrada dos novos argumentos técnicos, contra as novas tecnologias, etc. E outra que
é ufanista em relação a estes novos aparatos técnicos e, sobretudo só consegue ver progresso
no abandono das “crendices” e na adesão ao argumento racional, matemático, estatístico,
pragmático. Para a educação este é um dilema especial, já que a escola é a mensageira
primordial da lógica formal, e a própria escolarização é, quer se queira ou não, um processo de
integração a esta mesmidade da sociedade letrada, integrada pela língua e pela matemática
oficiais a um modelo hegemônico mais amplo.
Esta questão é importante tendo em vista que o enfoque da “convivência com o semi-árido”
ainda é demasiadamente “técnico-ambiental”, na medida em que considera a questão climática
sobre todas as outras e a questão da adequação técnica como a solução mais palpável e mais
pragmática. É assim que a questão das tecnologias ligadas ao uso dos recursos hídricos e dos
solos, ganha mais relevância na discussão. A razão de ser disso é a própria trajetória das
calamidades que as populações têm vivido, em decorrência das secas, do abandono e da
manipulação política. Esta questão torna-se então a mais cara na discussão da “convivência” e,
portanto, se discute mais o uso dos recursos que seja mais ajustado racionalmente às
38
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

condições ecossistêmicas, do que outras questões (e, de fato, seria uma ironia discutir a
questão do semi-árido sem dar maior vizibilidade a estas questões).
No entanto, diante de tais dilemas, o que parece urgente e a produção de uma saída que nem
esteja localizada no pólo da romantização das carências, nem no pólo ufanista em relação à
racionalidae moderna e à matematização da vida. Neste sentido sequer é possível defender
uma alquimia impraticável: fazer o saber popular ascender ao status de saber científico, sem
ver que se tratam de duas naturezas distintas e, em certo sentido, incompatíveis.
Talvez haja lugar para uma abordagem ecossistêmica, contextualizada e amparada nos
argumentos ecológicos e ecosóficos (GUATTARI, 1990). Em todo caso a discussão da
“educação para a convivência com o semi-árido”, merece ser soerguida à condição de questão
pertinente (para a educação, para a pesquisa acadêmica, para as políticas públicas), e neste
sentido o seu desafio é de permitir que haja religação de saberes em seu percurso. Porém,
com a única condição de reconhecer que este esforço todo só tem sentido se considerarmos
que os saberes que temos –seja na ciência, seja nas tradições populares – não se bastam e
nem bastam ao atual esforço de mudança sociocultural, que a idéia de “convivência com o
semi-árido” implica. Neste caso, anda junto uma demanda de revisão dos próprios saberes com
os quais manipulamos e intervimos na realidade.
E é neste sentido que a questão da “convivência com o semi-árido” se liga a questões maiores,
mais amplas; se abre para que incluamos aí a questão da convivência humana em termos mais
amplos e mais complexos. As questões de gênero, as relações entre as gerações, as questões
étnicas e éticas; questões como o aumento da violência e da hostilidade entre as pessoas.
Questões como a banalização da cultura na Indústria Cultural cada vez mais idiotizada... Enfim,
o fato de estarmos no semi-árido atingidos por todos os episódios mundiais: os ambientais e
especialmente os políticos, tudo isto deve ser lançado para o âmbito da “convivência”. E isto
tudo também constitui o contexto do presente, quando as questões mundiais também
resplandecem no nosso cotidiano mais particular.
Então, não se trata de isolacionismo, de reducionismo ou de qualquer espécie e bairrismo.
Trata-se de nos pensarmos em termos mais cosmopolitas e mais amplos: temporais, espaciais,
ambientais, políticos, comunicacionais, pós-coloniais, neo-coloniais, etc.
A “educação para a convivência com o semi-árido” passa pela escolarização de temas locais
tomados em suas amplitudes, implicando não em tratar estes temas como temas prontos, nem
de recorrer ao “saber popular” e parar por aí mesmo. Trata-se de agregar novos saberes a
estes temas. Como se estivéssemos agregando valor a um produto, o valor a ser agregados
aos temas locais é o novo saber. É a tessitura de redes mais amplas como aquelas que
Câmara Cascudo traçou em seus estudos.
Já afirmei em outra ocasião que se o aboio do vaqueiro será escolarizado, não será apenas
para fazer filhos de vaqueiros aprenderem a abioar. Talvez eles aprendam isto melhor
convivendo com seus pais, na labuta com o gado. Escolarizar o aboio implica em tecer uma
rede de saberes em torno dele: sabres da poesia e da literatura, sabres das memórias coletivas
dos mais velhos, sabres técnicos de métrica e rima; saberes históricos – por exemplo, o aboio,
segundo Câmara Cascudo decorre de uma prática berbere medieval e era um recurso dos
mouros, exilados na Ilha da Madeira, na lida com o gado e daí veio até nós através de
degredados que foram povoar os currais das nossas sesmarias.
Aboio funde elementos arcaicos, matrizes gregas e contribuições de
prisioneiros mouros empregados em trabalhos rurais na Ilha de Madeira
(mourisca, oriental). Música subjetiva, solo, individual, entoado livremente.
Há contribuições da África muçulmânica, da Costa de Marfim, de negros
peuhls do Sudão. Origem fundamental moura, berbere, da África
setentrional, veio para o Brasil possivelmente da ilha da Madeira, dos
escravos mouros aí existentes (CASCUDO, 1984).
A mesma coisa serve a palavra MANDACARU. Podemos tomá-la como uma palavra-chave,
como o núcleo temático de um determinado trabalho. Mas não basta apresentá-la aos alunos e
alunas como todos e todas já a conhecem. Nem é suficiente fazer um desenho sobre o
mandacaru. É preciso tecer as redes de saberes necessária em torno da palavra. É preciso não
esquecer que ela é indígena e tem aí um significado. Em Língua Portuguesa ela tem suas
classificações próprias: é um substantivo concreto, simples, polissílabo, masculino, oxítono

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

que, independente disso, perfila muitas construções artísticas, seja na literatura, na poesia ou
na prosa, nas artes cênicas, fílmicas, plásticas, etc., e, sobretudo, habita um imaginário, um
regime de signos local.
No campo da biologia MANDACARU nomeia um cacto de porte arbóreo, que pertence a uma
família e a uma linhagem, que possui toda uma ancestralidade vegetal; que contém
propriedades químicas, substâncias classificáveis e utilizáveis pela cultura humana, e que se
permite ao agenciamento com muitas espécies animais, constituindo suas relações ecológicas,
incluindo o hábito humano de queimar o mandacaru nativo para alimentar o gado, sem
nenhuma preocupação com o seu replantio na natureza. E ainda se pode entrar nos “currais de
gado”, no feudalismo tardio que se instalou em nossos sertões no processo de colonização
que, para abrir espaços para os currais, operou amplos massacres indígenas, dos mesmos
índios que inventaram a palavra MANDACARU.
Talvez o que esteja em questão na contextualização, na descolonização, na adoção de uma
perspectiva mais engajada nos esforços de desenvolvimento sustentável seja esta ampliação
da abordagem: então não é isolar; é ampliar, é expandir. É tecer redes de saberes que se
vinculam visceralmente às nossas condições particulares de vida, sem, no entanto, se
encerrarem nelas. Por isso exige uma postura mais despojada e mais disposta a não aceitar os
conteúdos prontos, mas ir atrás de sua produção. Produzi-los com os sujeitos envolvidos nas
situações concretas de ensino-e-aprendizagem e fazer, por dentro disso, com que as histórias
negadas possam ser contadas, faladas, descritas e escritas. Devolver a voz aos que a tiveram
usurpada, reprimida, negada.
E neste sentido, não se trata de matematizar a vida. Nem mesmo a discussão da água merece
ser matematizada, uma vez que nossos agenciamentos com a água extrapolam sua explicação
científica e racional. A matemática, no entanto, faz parte da vida humana.
REFERÊNCIAS
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CADERNOS CEDES, n. 29 – Educação Ambiental – São Paulo: Papirus, 1993.
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GUATTARI, Félix. As três ecologias – Campinas, SP: Papirus, 1990.
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Estadual do FEEC e RESAB na Bahia. Ilhéus, 27.09.2003.

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

ANOTAÇÕES SOBRE A INTERAÇÃO EM REDE4


Josemar da Silva Martins (Pinzoh)5

Primeiramente é importante esclarecer mais uma vez (e não deve ser a última) sobre a
natureza da Rede de educação do Semi-Árido Brasileiro (RESAB), enquanto rede. Ora, a
RESAB não é uma instituição, embora seja um movimento instituinte. Ela até o presente se
negou a se transformar em mais uma ONG. Preferiu constitui-se como rede, agregando as
diversidades constitutivas das ações assentadas na perspectiva da “educação para a
convivência com o semi-árido brasileiro”.
Tais ações ligam sujeitos e instituições diversas, que atual em âmbitos também diferenciados,
indo deste a formação técnica de pequenos agricultores, com base em tecnologias
apropriadas, indo até as ações no campo dos direitos humanos, da erradicação do trabalho
escravo e da exploração do trabalho infantil, dos direitos das crianças e adolescentes (vide
programa Um Mundo Para a Criança e Adolescentes do Semi-Árido Brasileiro levado a cabo
pelo UNICEF e implicando os governadores de todos os Estados constitutivos do SAB).
Se ela não é uma instituição, e sim uma rede, sequer tem natureza jurídica, estando sempre
órfã de instituições que a ela se vinculem e a ela agreguem recursos humanos e materiais para
que, de fato, possa prosseguir articulando a variedade de ações e projetos que filiadas à
mesma perspectiva que a fundou. Neste sentido, é preciso achar uma definição mais
esclarecedora do que seja a RESAB, sobre sua natureza de rede, para que não estejamos
fazendo a manutenção de interpretações equivocadas e reproduzindo, na rede, a expectativa
de uma estrutura fechada e hierarquizada.
Encontramos uma definição de rede que nos parece razoável para constituir um entendimento,
mesmo que inicial e provisório. Trata-se da definição fornecida por Manuel Castells, em A
Sociedade em Rede. Segundo ele,
Rede é um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma
curva se entrecorta. Concretamente o que um nó é depende do tipo de
redes concretas de que falamos. São mercados de bolsas de valores e suas
centrais de serviços auxiliares avançados na rede de fluxos financeiros
globais. São conselhos nacionais de ministros e comissários europeus da
rede política que governa a União Européia. São campos de coca e de
papoula, laboratórios clandestinos, pistas de aterrissagem secretas,
gangues de rua e instituições financeiras para lavagem de dinheiro, na rede
do tráfico de drogas que invade as economias, sociedades e Estados no
mundo inteiro. São sistemas de televisão, estúdios de entretenimento,
meios de computação gráfica, equipes para cobertura jornalística e
equipamentos móveis gerando, transmitindo e recebendo sinais na rede
global da nova mídia no âmago da expressão cultural e da opinião pública,
na era da informação (CASTELLS, 1999, p. 498).
Algumas pessoas se assustariam por encontrar aqui, nas referências de Manuel Castells, esta
referência a “campos de coca e de papoula, laboratórios clandestinos, pistas de aterrissagem
secretas, gangues de rua e instituições financeiras para lavagem de dinheiro, na rede do tráfico
de drogas”. Certamente é um exemplo estranho. Mas há outros igualmente estranhos: a
propagação de vírus nas redes de computadores que acessam a Internet e o próprio vírus da
AIDS.
Entendemos que não seja preciso dizer que a RESAB não é este tipo de rede, nem trabalha
com estas mesmas substâncias. No entanto também não está de todo livre delas. A RESAB,
enquanto rede, está apenas incluída em formatos parecidos de funcionamento e de
propagação, conforme a noção oferecida por Castell. Não há aqui o que temer: o fato de tais
palavras – tráfico, drogas, vírus, etc. – estarem presentes neste texto, não significa que elas

4 Este texto é também parte do estudo de Doutorado, cuja tese tomou a RESAB como objeto de
tematização.

5 Professor da UNEB no Departamento de Ciências Humanas III (Juazeiro, BA); Mestre em


Educação pela UQAC (Québec, Canadá); Doutor em Educação na FACED/UFBA..
42
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

deliberadamente contaminarão este texto ou a rede. O fato, porém, de haver pessoas que se
assustam com tais palavras, significa que não devemos menosprezar os seus poderes.
De acordo com Manuel Castells, a sociedade funciona cada vez mais em redes. Evidentemente
isso não é uma qualidade apenas do presente. No passado também sempre existiram
complexas redes de intercâmbio, como as de parentesco, as de comércio, as de trocas
materiais e simbólicas; as redes funcionando como congregação; as igrejas, etc. Ocorre que
dizer rede hoje tem um sentido completamente diferente, já que esta pronúncia no presente,
inevitavelmente inclui a atualidade tecnológoca.
É neste sentido que vem Pierre Lévy, em As Tecnologias da Inteligência (LÉVY, 1993, p. 25-
26). Este autor considera as redes, especialmente aquelas suportadas nas novas linguagens
informacionais, nas Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC), como sendo
estas redes aquilo que ele nomeia como hipertexto.
Os hipertextos são estruturados, segundo Lévy, em seis princípios fundamentais. O primeiro
dos seis é o princípio de metamorfose, ou seja, uma rede está em constante construção e
renegociação, podendo permanecer estável por algum tempo, como fruto de um trabalho, mas
seu sua extensão, sua composição e seu desenho, lhe confirmam um destino de mudança
constante. Aquilo que por ela circula lhe atribui novas propriedades constantemente e, por isto,
a rede estará sempre mudando.
O segundo é o princípio de heterogeneidade. Isto quer dizer que as ligações, ou seja, os nós e
as conexões (das quais nos fala também Manuel Castells) serão sempre de natureza
heterogênea. Podem ser imagens, sons, palavras, sensações, modelos, idéias, etc., as
conexões se realizarão e se farão motivadas por estes diversos elementos, dispostos e em
contato com pessoas, grupos, artefatos, tipos de associação, forças e interesses variados.
Certamente algumas redes procurarão definir um “ambiente” de interesses, mas assim mesmo
sua natureza será sempre heterogênea.
O terceiro dos princípios é o princípio de multiplicidade e de encaixe das escalas, ou seja, uma
rede (ou um hipertexto), sempre se organiza de modo “fractal”, quer dizer, qualquer nó ou
conexão pode ser composto de uma outra rede; pode ligar a outra rede, e assim por diante,
indefinidamente, sendo que os efeitos podem se propagar nestas várias escalas e redes
conectadas, como ocorre com os vírus da informática, ou com os boatos que provocam
reações imprevisíveis em cadeia. Assim um “ruído” ou uma interpretação errada de uma vírgula
em um texto, pode repercutir na vida de milhões de pessoas nas escalas atingidas pela rede.
O quarto princípio é o princípio de exterioridade. Ele indica que uma rede não possui unidade
orgânica, nem motor interno. Seu crescimento e sua diminuição, sua composição e sua
recomposição permanente dependem sempre de um exterior indeterminado: depende da
adição de novos elementos, de novos membros, de novas conexões estabelecidas
especialmente com outras redes; depende desta excitação dos seus terminais. Depende desta
alimentação entre parceiros e interessados; da busca de realização de objetivos sempre
renovados.
O quinto princípio é o princípio de topologia, que indica que nas redes (e nos hipertextos), tudo
funciona por proximidade, por vizinhança, pela fricção de fronteiras. O curso dos
acontecimentos é uma questão de topologia, de caminhos, de comunicação entre caminhos.
Como diz Lévy “não há espaço universal homogêneo onde haja forças de ligação e separação,
onde as mensagens poderiam circular livremente” (1993, p. 26). Tudo que se move e se
desloca o faz na rede e, ao fazer, vai também lhe acrescentando, lhe modificando, enfrentando
suas resistências. Mas a fricção de fronteiras nos lembra que há também na rede, a disposição
dos interesses, a ligação indentitária de variada natureza. Para Lévy não é a rede que está no
espaço; ela é o próprio espaço: aonde tal mobilidade acontece, se expande ou se encolhe,
estabelecendo e modificando seus próprios algoritmos.
O sexto e último princípio é o princípio de mobilidade dos centros, ou seja, a rede não tem um
centro; ela está fadada a ter permanentemente diversos centros...
que são como pontas luminosas perpetuamente móveis, saltando de um nó
a outro, trazendo ao redor de si uma ramificação infinita de pequenas
raízes, de rizomas, finas linhas brancas esboçando por um instante um

43
Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

mapa qualquer com detalhes delicados, e depois correndo para desenhar


mais à frente outras paisagens do sentido (LÉVY, 1993, p. 26).
Lévy nos fornece uma bela metáfora para entendermos o que é uma rede. Pode ser que
tenhamos dificuldade de interpreta-la, já que muito de nós está acostumado ao pragmatismo,
ao praticismo. Questões assim, como estas, teórico-conceituais não interessam muito. Mas
aqui não se trata de facilitar demais as coisas. Trata-se de deixa-las inseridas na mesma
complexidade que as compõe. O que Lévy está dizendo é que numa rede os centros se movem
e podem mesmo ser disputados, podem ser estrategicamente assegurados em centos pontos
da rede, mas também estão fadados a moverem-se sempre.
O desenho traçado por Pierre Lévy serve para muitas realidades. E sobretudo está muito de
acordo com o momento atual em que vivemos, que tem sido denominado de pós-moderno,
mas que pessoas como Zigmunt Bauman preferem nomeá-lo de modernidade líquida – um
tempo em que as coisas e as relações adquirem um sentido escorregadio, deslizante, líquido
mesmo, e vão para onde a situação pender; assumem o formato que o contexto possibilitar.
Outros, como o filósofo Gilles Lipovetsky, preferem chamá-lo de tempos hipermodernos, tendo
em vista que os três pilares básicos da modernidade – o indivíduo, o mercado e a dinâmica
tecnocientífica – não foram ultrapassados, pelo contrário, foram acirrados com globalização,
com o ultraliberalismo e com as novas tecnologias de comunicação, sobretudo a Internet.
De qualquer modo, no meio do redemoinho, apenas podemos confirmar que nosso tempo está
fundado nesta característica movediça, e continua escapando, inclusive, a uma classificação –
sendo esta, precisamente, a principal das características do seu “espírito da época”. Tais
características situam-se em um plano que não é mais o do bem ou o do mal, separadamente,
mas tais formatos constituem, servem a, e sevem-se, tanto de uma coisa quando da outra.
Assim também existem as redes, e vamos ver que elas jamais poderão reconstruir as certezas
e os modelos duros, fixos e precisos do passado, exatamente porque nos situamos nesta
encruzilhada: a encruzilhada do presente, que funde o mundo distante e os traços do mundo
local; funde o passado e o presente; funde o brega e o chique, o feio e o belo; funde o rural e o
urbano; funde a direita e a esquerda (cujos critérios que possibilitavam uma distinção já foram
confundidos), enfim, um tempo que nos deixa um tanto à deriva.
Discutir uma rede, especialmente como a RESAB, será sempre discutir a vida nesta
encruzilhada. As redes de agora são formatos assim, nada definidos totalmente. Contrapõe-se
aos formatos anteriores que eram mais arborescentes, ou seja, estavam presos a uma
hierarquia que como na árvore, põe numa seqüência hierarquizada a raiz, o caule, os galhos,
as folhas, as flores, os frutos. Este modelo-árvore (modelo arborescente) é o que vigorou (e
ainda vigora) no estabelecimento de organogramas de instituições das mais variadas,
especialmente as mais conservadoras, que continuarão funcionando assim ainda por muito
tempo. Em tais formatos é preciso ter certeza do que vem antes e do que vem depois, de quem
manda e de quem obedece.
A forma arborescente admite uma explicação topológica. (...) Num sistema
hierárquico, um indivíduo admite somente um vizinho ativo, seu superior
hierárquico. (...) Os canais de transmissão são preestabelecidos: a
arborescência preexiste ao indivíduo que nela se integra num lugar preciso.
(DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 27).
Digamos que esta seja a principal ruptura operada pelo modelo-rede. Ele não prevê uma
hierarquia seqüenciada, tipo raiz, caule, galhos, folhas, flores, frutos (que os organogramas
reproduzem de cabeça para baixo).
Se colocarmos a conversa no campo da Biologia, dos seres vegetais pelo menos, vamos ver
que o modelo que surge é mais próximo de uma natureza rizomática, de um rizoma, aonde não
há uma clara hierarquia, como a natureza das árvores, mas possui uma complexidade
fundante. Um rizoma é uma espécie vegetal que não obedece à hierarquia raiz – caule, galho...
mas que em cada ponto, galho ou caule, pode proliferar uma nova raiz, novos galhos, etc.
Um rizoma como haste subterrânea distingue-se absolutamente das raízes
e radículas. Os bulbos, os tubérculos, são rizomas. Plantas com raiz ou
radícula podem ser rizomórficas num outro sentido inteiramente diferente: é
uma questão de saber se a botânica, em sua especificidade, não seria
inteiramente rizomórfica. Até animais o são, sob sua forma matilha; ratos

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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

são rizomas. As tocas o são, com todas suas funções de hábitat, de


provisão, de deslocamento, de evasão e de ruptura. O rizoma nele mesmo
tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em
todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos. Há rizoma
quando os ratos deslizam uns sobre os outros. Há o melhor e o pior no
rizoma: a batata e a grama, a erva daninha. Animal e planta, a grama é o
capim-pé-de-galinha (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 15).
Uma rede, nestes termos rizomáticos, é um organismo em cadeia, aonde se conectam outras
cadeias; cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito
diversos; cadeias biológicas, cadeias políticas, cadeias econômicas, cadeias psíquicas, etc.,
colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos e
estados de coisas diferentes. É uma natureza que se faz pela proliferação. Tudo a ver com a
imagem fornecida por Pierre Lévy, ainda há pouco.
Para forçar uma facilidade de entendimento, vamos simplificar: há um formato que conhecemos
que é o formato dos aguapés – estas plantam aquáticas que estão nos lagos e rios e que
tomam, às vezes, toda a superfície das águas. Elas não têm um caule. Não são verticais: ao
contrário são horizontais e estão aparentemente soltas. Caso se apoiassem em um caule
(vertical), seriam arrancadas e levadas pela correnteza das águas. Por isso elas só se
sustentam porque não são arborescentes e sim rizomáticas, ou seja, não se organizam pela
seqüência RAIZ → CAULE → GALHOS → FOLHAS → FLORES → FRUTOS... mas, ao
contrário, cada fiapo de raiz pode dar origem a um caule e este a outros galhos, que servem de
caule a outros, de onde proliferam novas raízes e galhos e caules e troncos por todas as
partes.
Não há aí uma hierarquia arborescente e linear, mas há uma complexidade que, exatamente
pelo fato de estar conectada de diferentes formas a diferentes componentes (a uma
exterioridade, especialmente), não está solta; ao contrário, está firme e, por isso, não é levada
pela correnteza. Sendo desta forma, cada fiapo de raiz ou cada galho-caule, se enlaça em
outras espécies de plantas, de onde também proliferam novos galhos, caules, raízes. Assim
também fazem as trepadeiras. Transformam galhos de outras plantas em seus caules por
empréstimo e, sem serem parasitárias, forjam um equilíbrio temporário, provisório, para em
seguida buscar o equilíbrio em outro ponto. Possuem assim uma natureza proliferante.
E esta é a diferença: não existem pontos ou posições fixas num rizoma, como se encontra
numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas e pontos de conexão
(DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 17). Ao mesmo tempo temos aí todos os princípios
reunidos: metamorfose, heterogeneidade, multiplicidade e encaixe das escalas, exterioridade,
topologia, mobilidade dos centros.
Seria prudente que, se a RESAB é uma rede – e, sobretudo, se não é uma rede monolítica, já
que em seu interior não habitam apenas instituições de um mesmo setor ou categoria, mas ao
contrário, ela busca (e objetiva) congregar instituições muito variadas, do setor público, da
esfera Estatal, da sociedade civil organizada, instituições multilaterais e agências de
financiamento; instituições monorreferenciais e outras tantas mais multirreferenciais; algumas
mais ortodoxas e outras mais heterodoxas, etc. – entendêssemos que não há como ela ser
nutrida sempre da mesma substância; não há como ela não se mover pelos princípios até aqui
apresentados, que são essencialmente a expressão de uma heterogeneidade.
Não há como a RESAB não ser plural e heterodoxa se ela lida exatamente com os diversos,
com a pluralidade – e isto é constitutivo mesmo de sua natureza e seu principal desafio. Daí
que a RESAB só poderá se dar como rizoma, nos formatos apresentados aqui conforme
Castells, Lévi, Deleuze e Guattari, e não num modelo arborescente, fechado, preciso. Mas
como o aguapé: criando conexões variadas e diferenciadas (as suas parcerias), acasalando-se
a “galhos” de outras instituições que lhe podem dar amparo e fortalecimento. Este é o seu
princípio de exterioridade.
A RESAB está predestinada a ter vários caules, galhos, raízes... a ter centros móveis e a se
proliferar de diferentes formas. A dar diferentes flores e frutos. É uma espécie de ser híbrido, e
quanto a isso parece não haver redenção.
Deleuze & Guattari nos fornecem outros exemplos de rizoma que ainda podem ser
esclarecedores, desta condição. Eles dizem:

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

É impossível exterminar as formigas, porque elas formam um rizoma animal


do qual a maior parte pode ser destruída sem que ele deixe de se
reconstruir. Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as
quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído,
etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele
foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares
explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma.
Estas linhas não param de se remeter umas às outras. É por isto que não se
pode contar com um dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo sob a forma
rudimentar do bom e do mau. (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 18).
Isto nos confirma que, até certo ponto – e independentemente de nossas vontades – a RESAB
é uma espécie de “acontecimento sem-controle total”, comportando várias entradas, conforme
uma de suas características mais importantes. Constituída de um formato de mapa que se
move, e mesmo quando em certos pontos do rizoma se formarem fenômenos de massificação,
de burocracia, de liderança (leadership), de endurecimento e fascistização (como será sempre
possível), etc., novas linhas surgirão, mesmo subterrâneas, continuando a regenerar o rizoma.
Seguramente aqui e ali surgirá e se reproduzirá também uma estrutura arborescente, já que
isto não está de todo eliminado da rede e do seu formato-rizoma.
A rede rizomática também se parece muito com uma coisa que todos nós conhecemos bem: a
fofoca, o fuxico. São exemplos de coisas que funcionam perfeitamente dentro dos modelos
aqui discutidos: sem centro, sem tronco, com várias entradas e saídas, sempre se movendo,
sempre escorregando, sempre se expandindo pela exterioridade, pela agregação de + 1
fofoqueiro. Sempre proliferando. Esperamos que a RESAB prolifere.
Mas é preciso que se diga também que as redes só se formam porque algo em comum faz
congregar nelas os diferentes (o motivo da fofoca, por exemplo). Neste sentido, as redes são
estruturas que se expandem ao criarem sempre novas conexões, novos nós; novos ligamentos
de coisas e substâncias, porém com apenas uma condição: a de que estas conexões sejam
conexões motivadas e sustentadas pelo compartilhamento dos mesmos códigos de
comunicação (ver CASTELLS, 1999 p. 498). Isso indica que uma rede compartilha não
apenas uma linguagem, mas valores comuns. Evidentemente haverá sempre a possibilidade
de que outros valores possam circular numa rede e modifica-la, bifurca-la, etc., mas certamente
estes se encaminharão no sentido de criarem sua própria ramificação e sua própria rede.
Uma rede como a RESAB, que não parece disposta a ser liberal (e por isso será menos
proliferante, talvez), deve esclarecer sobre seus códigos de comunicação; sobre os valores que
pretende sustentar. Deveríamos saber minimamente que signos e que códigos
compartilhamos; que valores e que interesses nos “ligam” e animam nosso rizoma. Isto é
importante para que a RESAB não seja apenas uma anarquia, uma “casa de mãe Joana”.
A RESAB deveria ter, mesmo respeitando e se beneficiando do seu formato de rede (de
hipertexto, de rizoma), clareza dos seus discursos, mesmo que sejam eles expressão de sua
diversidade. O espaço da diversidade, a proliferação de idéias novas (incluindo as danosas ou
daninhas, como ervas), só terá alguma força política, se souber ainda porque ela se colocou
em curso, ou seja, se mantiver o espaço de uma memória. Isso parece contradizer os
princípios ainda há pouco apontados.. Mas o que não deveria ser reproduzido na rede (e isto já
é uma proposta de restrição) é um ambiente de pós-modernidade liberal ou neo-liberal, em que
não se sabe mais com que valores lidar. O espaço de uma profunda prostituição político-
conceitual e prática.
Seria importante não esquecer que todos os esforços humanos para constituir sua humanidade
foram no sentido de inaugurar uma ordem em pleno domínio desordem fundadora. Mesmo que
esta ordem seja provisória e dela se espera que finde, para mais na frente ser possível que
outra seja fundada.
De todo modo não deveríamos reproduzir na rede uma tal confusão de espírito, em “um mundo
confuso e confusamente percebido”, como nos disse Minton Santos (2000). A rede, portanto,
pelo contrário, poderá se constituir neste espaço onde circulem esforços de esclarecimento,
que nos livre do mal do “pensamento único” e até da “confusão como caminho único”, incluindo
o “caminho da confusão” como constitutivo do caminho único.
É apenas a partir disso que a RESAB, enquanto rede possa gerar e gerir suas conexões
diversas, que possibilitem a produção do capital social necessário para tranformar a realidade
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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

que a fez erigir. Tendo isso minimamente claro, a RESAB poderá proliferar, bifurcar-se se for o
caso, mas crescer, ecoar, resplandecer, ressoar. E para não ficar apenas na imagem do rizoma
e do fuxico, aqui fica outra metáfora, que é inclusive uma das substâncias com as quais
poderemos nutris a nossa rede.

TECENDO A MANHÃ
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(João Cabral de Mello Neto)

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. In: Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de
1928.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1998.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. – Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. – (A era da informação: economia, sociedade e
cultura; v. 1) São Paulo: Paz e Terra, 1999.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1 - Rio de
Janeiro: Editora 34, 1995.

GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional: novas políticas em


educação. – Porto Alegre: Artes Médicas Sul,1999.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da Inteligência – O Futuro do pensamento na era da Informática –
Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
McLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. 3a. edição. São Paulo: Cortez editora: Instituto Paulo
Freire, 2000.

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade


2ª ed. – São Paulo: Cortez, 1996.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal –
3ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2000.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. –
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

Desafios e bases para a construção de uma nova política de Gestão Educacional no


Semi-Árido Brasileiro e no Brasil
Edmerson dos Santos Reis6

1- Introdução
Ao iniciar uma discussão sobre a importância do processo de gestão educacional, não
podemos ter a pretensão de acreditar que apresentaremos os postulados finais ou as bases
concretas e infindáveis de um projeto de gestão. Ou seja, não estaremos aqui assumindo uma
postura de tentar reinventar uma roda que ao longo da sua história e vivências, a cada dia vem
sendo aprimorada. Nesse sentido, traremos apenas algumas reflexões que podem contribuir
com o debate acerca desse grande desafio que pouco aprendemos na prática a lidar com ele,
já que muitos são os artigos, livros e escritos que abordam essa problemática, mas poucas são
as experiências concretas que se fazem práticas do que ao longo desse trabalho estaremos
chamando de gestão democrática e compartilhada.

2- As nossas lutas pela construção de uma gestão compartilhada na educação


Não nasceram exatamente com a escrita desse artigo os elementos que irei abordar a partir de
agora. As lutas em defesa de uma escola pública e de qualidade, oriundas desde muito antes
dos anos 60, mais intensificadas a partir dessa década pelos diversos movimentos sociais
(estudantis, docentes, intelectuais, culturais, religiosos entre outros), que não se esgotam
apenas em reivindicar a melhoria do ensino, mas trazem também no seu âmago, a defesa de
uma educação pública, gratuita e mais democrática.
Percebemos, que apesar de muitas andanças, a gestão educacional, tem sido ao longo da
nossa história um dos componentes básicos da educação que pouco evoluiu, principalmente
no que se refere à democratização das gestões e do gerenciamento de todas as práticas
educativas. Nesse sentido, é mais do que importante o desenvolvimento de uma nova
concepção das relações que estabelecemos com a educação pública enquanto espaço de
participação e da gestão compartilhada dos seus processos.
Tourraine (1996), vai compreender, que o processo de democratização das relações sociais
está intrinsecamente ligado ao processo da construção de um desenvolvimento auto-
sustentado das sociedades modernas, quando afirma que:
A democracia está diretamente associada ao desenvolvimento
auto-sustentado. Esse elo não vem do fato de que uma
sociedade já modernizada tem a capacidade de produzir novas
mudanças sem impor pesadas exigências sobre seus
membros, mas pelo fato de que o caráter auto-sustentado da
modernização implica a existência de um sistema de gestão
democrática das relações sociais. Pelo contrário, os países
cuja modernização é exógena estão submetidos a um agente
exterior onipotente, Estado ou capitalismo estrangeiro. Até
mesmo ajuda internacional, que não permite a formação de um
sistema político pluralista e se torna, mais cedo ou mais tarde,
um obstáculo tanto à democracia, quanto ao desenvolvimento.
(P.220).
A gestão democrática dos processos educativos não foge a este entendimento, até porque, ela
vai ter origem justamente na insurgência da quebra do velho e ultrapassado paradigma da
centralização do poder, marca preponderante dos sistemas totalitários, que a história tem
demonstrado que não nos serve mais de parâmetro. É aliado a este novo paradigma que nos
situamos enquanto Rede de Educação do Semi-árido Brasileiro – RESAB, trazendo como um
dos principais elementos, a gestão da política compartilhada, envolvendo os atores e atrizes
Governamentais, Não–Governamentais, os Movimentos Sociais, os Sindicatos e demais

6 Pedagogo, Educador, Mestre e Doutor em Educação, Professor do Departamento de


Ciências Humanas/UNEB, Membro da Secretaria Executiva da RESAB.

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

segmentos ligados à sociedade civil organizada. Para isso, são princípios inalienáveis da
RESAB:
• Integridade dos atores e atrizes do processo educacional;
• Equidade na distribuição de renda e no acesso do conhecimento cultural, científico,
moral, ético e tecnológico em todos os níveis da educação;
• Intersetorialidade na definição das políticas públicas educacionais;
• Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade na construção do conhecimento;
• Sustentabilidade ambiental, social, econômica e cultural como elementos de
sustentação dos processos e projetos educacionais;
• Respeito à pluralidade e à diversidade de culturas, credos, raças, idéias e de opções
metodológicas no processo de ensino-aprendizagem;
• Descentralização, transparência e gestão compartilhada;
• Autonomia financeira e pedagógica dos sistemas educacionais e unidades escolares;
• Valorização do magistério e favorecimento das condições de aperfeiçoamento e de
formação continuada e permanente dos/as educadores/as;
• Respeito aos princípios e direitos constitucionais, aos direitos humanos e ao meio
ambiente;
• Aplicabilidade dos instrumentos legais que visam à construção de uma educação
pública , gratuita e de qualidade no Semi-árido e no Brasil;
• Respeito e promoção dos direitos das crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos.

Entendemos que com a defesa e luta intransigente para fazermos desses princípios a
concretização das práticas da gestão educativa no seio da sociedade e das nossas unidades
escolares, estaremos saindo de um discurso que se faz geral, mas que tem camuflado as
práticas e tentado silenciar os educadores e movimentos sociais comprometidos com os reais
interesses da educação em uma sociedade como a nossa, marcada efetivamente pelas
desigualdades sociais e pela defesa do poder a qualquer custo.
Tem sido no cotidiano das gestões educacionais, onde percebemos a grande contradição entre
os discursos oficiais e as acirradas práticas clientelistas e perseguidoras que são
desenvolvidas no seio das administrações públicas, que com raras exceções, tem contribuído
mais ainda, para que tenhamos ouvido da população, dos educadores e dos diversos fóruns de
discussão da educação, quase sempre uma descrença nas instituições (partidos, organizações
públicas, poderes constituídos entre outros) e o fortalecimento da crença nos indivíduos,
revertendo assim os discursos que norteavam os movimentos sociais e setores de esquerdas
desde os anos 60 até o início deste século, uma vez que empiricamente o que têm
sobressaído, são práticas que colocam em xeque todos os referenciais construídos até então.
Quando estamos defendendo como princípios fundamentais da RESAB a descentralização, a
transparência e a gestão compartilhada da educação e das políticas públicas, estamos
entendendo que esses são elementos fundantes de todos ou quaisquer processos de
construção da política pública, onde os atores e as atrizes sociais são considerados/as nas
suas inteirezas, nas suas diversidades e particularidades, independente das suas marcas
ideológicas e cores partidárias.
Nesse entendimento, a co-participação política desses atores e atrizes sociais será capaz de
produzir uma bricolagem nas políticas educacionais, onde as diferenças impeditivas da
construção devem ser deixadas de lado se a intenção é a concretização de uma política
educativa democrática, auto-gestionária, inclusiva e com a marca da pluralidade dos sujeitos
sociais e não apenas uma luta pela manutenção do poder, o que se constituirá
automaticamente a partir das respostas negativas ou positivas dos envolvidos diretamente no
desenvolvimento desse projeto social. Se a sociedade é capaz de absorver as intenções de
uma política popular e participativa, na qual ela é parte, toma parte e faz parte dos momentos
de idealização, planejamento e execução das políticas públicas, dificilmente esta estará

50
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

defendendo uma proposição que anule este avanço, apesar da presença dos contrários e
contraditórios presentes em todas as sociedades.
Freire (1991), analisando a sua gestão frente a maior secretaria municipal de educação do país
(Município de São Paulo), sabiamente diz:
Na medida em que nos afirmemos na prática democrática da
participação, estaremos nos afastando cada vez mais, de um
lado, das práticas elitistas, antidemocráticas, de outro, das não
menos antidemocráticas, de outro, das não menos
antidemocráticas basistas. Bem sei que não é fácil encarar
projetos ou viver a participação popular como programa de
governo e como ideal político. Não é fácil sobretudo pelas
tradições autoritárias que precisamos superar o que não se
pode fazer no puro discurso contraditado por práticas
autoritárias. (P.75-76)
Investir nessa mudança de concepção parece ser o nosso maior desafio, uma vez que a nossa
história sempre foi marcada por processos colonizadores, não só nos campos econômico,
cultural, político, social, como no que se refere à especificidade da gestão educacional, onde
em boa parte dos municípios brasileiros ainda não se caminhou no rumo de uma gestão
compartilhada e muitas vezes a figura dos secretários educacionais, responsáveis pelo
gerenciamento dos recursos desse setor (uma das grandes fatias dos orçamentos dos
municípios) ainda assim, quase não possuem uma autonomia no que se referem ao
desenvolvimento da educação e valorização do magistério, já que na maioria das vezes, esses
recursos, apesar de todos os avanços da legislação, ainda são gerenciados palas secretarias
de finanças, ao bel prazer dos intentos dos prefeitos e dos interesses políticos dos governos
municipais, que fazem da educação, os seus feudos, para garantir o empreguismo, a
sustentação das bancadas parlamentares, a perseguição dos “desafetos”, entre outros
significados. Essa mudança será lentamente, como lentamente vamos interferindo na velha
concepção de combate à seca no SAB7 pela concepção de convivência com o semi-árido. Até
lá, muitas decepções e muitas batalhas ainda teremos que enfrentar.

3.0 – As formas de ocupação dos cargos de gestores escolares mais comuns entre nós...
O formato mais comum de escolha dos gestores escolares no Semi-árido Brasileiro, não tem
fugido ao modelo que vem sendo adotado em muitas regiões brasileiras, sendo que alguns
casos são apresentados quadros de evolução positiva no processo de ocupação desses
cargos, mas que na maioria dos casos ainda permanecem os velhos esquemas clientelistas e
politiqueiros, fazendo da instituição pública um instrumento particular de atendimento às
demandas pessoais dos prefeitos e seus aliados políticos, com o intuito de manter as bases
eleitorais. Eis algumas das maneiras como tem se configurado esse processo em muitos dos
municípios brasileiros:
a) Indicação política dos gestores – muitas vezes sem a formação necessária e fora do
quadro dos educadores efetivos;
b) Indicação política dos professores do quadro efetivo;
c) Processo seletivo de gestores entre os professores do quadro efetivo do magistério;
d) Eleição direta entre professores do quadro efetivo;
e) Eleição direta entre professores do quadro efetivo com lista tríplice para indicação final;
f) Concurso, certificação e posse dos gestores;
g) Processo seletivo de gestores com lista tríplice para indicação final.
Não faremos comentários detalhados dos formatos acima pois entendemos que eles falam por
si mesmos, demonstrando como foi dito anteriormente, os avanços e retrocessos ainda
presentes nos nossos sistemas educacionais.

7 Semi-árido Brasileiro.

51
Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

4.0- Fortalecendo a participação e construindo uma nova forma de gerir as políticas


públicas
Sabemos que o Semi-árido Brasileiro tem sido a marca preponderante na política nacional do
descaso a que foi submetida a sua população na trajetória histórica do Brasil rumo a
concretização do projeto de desenvolvimento da elite brasileira, que estava baseado no
enriquecimento de uns e no aumento cada vez mais da exclusão social de muitos outros. Isso
tudo é fruto da concepção de desenvolvimento e da forma como foram gerenciadas as nossas
políticas públicas no Brasil. Basta para isso uma rápida imersão em dados publicados em 2003,
pelo UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância, sobre a situação da infância e
adolescência no SAB, que iremos perceber que aqui é onde se encontram os maiores índices
de pobreza e desigualdades sociais. (Ver quadro 1).

Quadro 01
Alguns indicadores Educacionais do Semi-árido Brasileiro

Mais de 350 mil crianças, entre 10 e 14 anos, não freqüentam a escola

No Semi-árido Brasileiro, os alunos demoram 11 anos para concluir o ensino


fundamental

Mais de 390 mil adolescentes (10,15%) são analfabetos

Mais de 317 mil crianças e adolescentes trabalham no Semi-árido

Menos de 3% das famílias com crianças e adolescentes têm acesso a


computador

Fonte: Crianças e Adolescentes no Semi-árido Brasileiro 2003

Os indicadores educacionais acima mencionados, demonstram o quanto ao longo dos 500


anos do Brasil foi evidenciada a dualidade entre a educação ofertada aos filhos dos ricos e a
educação-pobre para os pobres, não se investindo concretamente num projeto de
desenvolvimento e inclusão do Semi-árido como território de desenvolvimento da nação,
submetendo-o ao descaso e às políticas assistencialistas, prevalecendo apenas o
enriquecimento da elite coronelista que até hoje domina a terra, água e maioria das riquezas
aqui existentes.
É preciso uma revolução no campo das concepções e no planejamento das políticas publicas
sociais e de desenvolvimento dessa região, no sentido de fortalecer e reverter o atual estado
da educação que aqui se encontra e os seus indicadores diversos.
Abrir espaços para a participação da sociedade civil organizada, movimentos sociais e
organizações não-governamentais nos colegiados de definição das ações governamentais,
parece ser o melhor caminho a trilhar na re-construção do Semi-árido e da educação que aqui
vem sendo desenvolvida. Não adianta termos ilhas de excelências nas experiências diversas
das ONG’s e Movimentos Sociais, se ao lado dessas se encontram escolas públicas em
estados terminais e moribundas, aonde não chegam os mínimos elementos necessários a uma
educação de qualidade.
É preciso construir um diálogo aprendente entre o poder público, a sociedade civil organizada e
as Ong’s, onde a meta principal seja a consolidação de uma educação pública, inclusiva, de
qualidade, que consiga empreender uma lógica inovadora de considerar a diferença, a
diversidade, a pluralidade, mas sem perder as suas especificidades.
O gestor educacional neste entendimento, passa a exercer um papel de articulador dos
anseios da população e das camadas mais desfavorecidas, sem deixar-se cair nem na ilusão

52
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

do espontaneísmo nem na incerteza do voluntarismo. O desafio aqui será fazer da contribuição


das diversas correntes, a mediação da construção de um projeto novo de educação e de
sociedade, o que não parece ser tão fácil. Como abordam Apple e Beane (2001),
Os que estão comprometidos com a educação democrática
vêem-se muitas vezes numa posição de conflito com as
tradições dominantes da escola. Praticamente a toda hora
suas idéias e esforços podem se deparar com a resistência
tanto daqueles que se beneficiam com as desigualdades das
escolas quanto daqueles mais interessados na eficiência e no
poder hierárquico do que no difícil trabalho de transformar as
escolas de alto a baixo. (...) Uma experiência democrática se
constrói mais por meio de seus esforços contínuos de fazer a
diferença. O empreendimento não é nada fácil; é cheio de
contradições, conflitos e controvérsias. Como diz o velho
provérbio, “São dez milhas para entrar na floresta, e são dez
milhas para sair”. (P.25)

Fortalecer a gestão educacional como instrumento da melhoria da educação do nosso povo só


será possível de verdade se nos desafiarmos a descentralizar o poder, a dividir a tomada de
decisões, a embasar os nossos projetos sempre no ideário concreto da realidade circundante
do processo educacional. É preciso a definição de uma intenção educativa no seio das políticas
públicas, passando a entender que a instituição dos mecanismos de participação coletiva
transformará decisivamente as relações de poder, possibilitando a inserção dos diversos
segmentos escolares nas decisões administrativas e pedagógicas da escola.
Comprometer e dar espaço aos segmentos dos pais, funcionários, alunos e comunidade local
na construção democrática dos conselhos escolares são maneiras de iniciar desde a escola
uma nova concepção de gestão horizontalizada, descentralizada e compartilhada do projeto
educativo e político das unidades escolares e da dimensão do poder e da responsabilidade no
trato com a instituição pública, onde cada um sentir-se-á parte dos seus destinos, objetivos e
intenções.
Entre as diversas experiências de políticas públicas educacionais que vem se arriscando a
fazer do processo educativo um espaço da gestão compartilhada, um exemplo é o da Escola
Rural de Massaroca – ERUM, localizada na Comunidade de Lagoinha, no Distrito Rural de
Massaroca em Juazeiro – Bahia. Essa unidade escolar que surgiu a partir do interesse das
comunidades locais em 1995, está pensada dentro de um projeto de desenvolvimento local
sustentável, fazendo com que a escola esteja a todo tempo integrada aos anseios da
comunidade, num processo constante e participativo de comunicação e construção, onde a
comunidade não se torna apenas o ponto de partida dos seus estudos, mais a fonte principal
das proposições, avaliações e redirecionamento das práticas coletivas e individuais ali
vivenciadas, sempre voltadas para o fortalecimento do desenvolvimento local sustentável, onde
pais, alunos, instituições públicas, religiosas e ong’s que atuam nas comunidades estão
integrados com vistas à melhoria da qualidade de vida de todos os seus habitantes.
Isso não pode ser reduzido apenas à escola, mais fortalecido nas comunidades diversas e no
âmbito da própria gestão da educação municipal, através da criação dos sistemas municipais
de educação, do fortalecimento dos conselhos de gestão e acompanhamento social, ampliando
as suas competências, representações e desaparelhando-os enquanto representação da
unanimidade e da concordância, mas transformando-os em verdadeiros espaços do exercício
das práticas democráticas e propositivas, palco das idéias mais avançadas da construção de
um projeto educativo vinculado às praticas sociais, em consonância com os processos sócio-
históricos do seu tempo, não descontextualizado e sem apego qualquer a preconceitos de
raça, cor, sexo, origem política, social, cultural ou econômica, nem também alimentando
quaisquer posturas xenófobas, bairristas ou separatistas.

53
Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

5.0 - Considerações Finais

É preciso fortalecer as instâncias colegiadas já existentes em nossas escolas e tentar colocar


em prática a legislação educacional existente, permitindo a cada dia a ampliação de novos
espaços abertos à participação dos/as alunos/as, pais, mães, docentes, funcionários e da
sociedade civil organizada para proposições, gerenciamento compartilhado e monitoramento
das políticas públicas e da aplicação dos recursos públicos tanto no âmbito das unidades
escolares, como também dos sistemas educacionais. Como já dissemos, se conseguirmos
avançar nessas ações, quando nos dermos conta teremos reconstruído a política
governamental desse país.
São essas posições que estamos defendendo na Rede de Educação do Semi-árido Brasileiro,
como um dos caminhos possíveis para um novo fazer, diferente e compromissado com uma
gestão educacional que seja desburocratizada e desburocratizante, não fragmentada, não
verticalizada e capaz de compreender a participação como uma capilaridade fortalecedora das
instâncias colegiadas e conseqüentemente das proposições instituintes de novas
possibilidades interdisciplinares e porque não, rizomáticas.

6- Referências
APPLE, Michael & Beane, James. (Orgs.). Escolas democráticas. 2a. ed. São Paulo: Editora
Cortez., 2001.
FREIRE, Paulo. A educação na cidade.4a. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2000.
GOMES FILHO, José Farias. Crianças e adolescentes no Semi-árido Brasileiro. Recife: Unicef,
2003.
REIS, Edmerson dos Santos & SOUZA, Ivânia Paula de Souza. Educação para a convivência
com o Semi-árido: reencantando a educação a partir das experiências de Canudos, Uauá e
Curaçá – BA. São Paulo: Peirópolis, 2003.
REIS, Edmerson dos Santos. Educação do campo e desenvolvimento rural sustentável:
avaliação de uma prática educativa. Bahia: Juazeiro: Editora e Gráfica Franciscana, 2004.
RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Educação. Princípios e diretrizes para a educação
estadual. Porto Alegre: Corag, 2000.
TOURAINE, Alain. O que é a democracia? 2a.ed. Rio de Janeiro: Petrópolis: Vozes, 1996.

54
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

Reflexões sobre a Formação Continuada de Professores na perspectiva da Educação


para a Convivência com o Semi-árido.

Ângelo Custódio Néri8


Eliene Rodrigues Silva9
Ivânia Paula Freitas de Souza10
Lucineide Martins Araújo11

Nas últimas décadas, a escola re-surge no cenário mundial como um dos espaços privilegiados
de socialização e construção do conhecimento, de formação de importantes competências e
habilidades para os cidadãos e cidadãs do novo milênio. Com isso, a figura do professor, da
professora ganha evidência e é re-colocada no centro dos debates educacionais, só que agora,
com nova roupagem. Há uma crescente (embora tímida) preocupação com a valorização
profissional, inclusive retomando a importância do professor como profissional da educação e,
sobretudo, vinculando à formação docente como um dos componentes da mudança da escola
e do ensino público do Brasil. Essa nova roupagem vem romper com o antigo (embora
presente) discurso que atribuía, exclusivamente, à formação docente, a responsabilidade pela
crescente deterioração da qualidade do ensino, centrando as atenções na figura do professor,
desviando a discussão da ausência de prioridade das políticas governamentais destinadas à
melhoria da educação.
Se durante muito tempo o papel atribuído ao professor à professora era de transmissor da
cultura acumulada pela sociedade, ao longo da história, nos dias de hoje o seu papel se
concentra, principalmente, na reflexão e análise dos conhecimentos produzidos dentro e além
da escola. Neste sentido o papel atribuído ao professor à professora na atualidade é de
construir uma educação que contemple a diversidade humana, provocando novos modos de
ser, sentir e agir de forma diferente. Uma educação que esteja comprometida com o prazer,
com a satisfação, com o respeito às diferenças, de cor, raça, sexo, religião, opção política, com
a felicidade, com a transformação social e acima de tudo uma educação comprometida com a
vida.
Sabemos que a qualificação oportunizada aos professores e professoras nos cursos de
formação (médio e superior) não dá conta de todas as exigências e atribuições destes
profissionais. Então, como qualificar melhor professores e professoras que hoje estão nas
escolas para dar conta de tais exigências? Certamente o caminho a ser seguido é a formação
continuada, que já vem sendo realizada em diversos municípios, inclusive, com a contribuição
de muitas instituições não-governamentais e Universidades.
No entanto, a formação do professor, da professora não pode ser vista somente como
habilitação para sua atuação, mas, acima de tudo, como processo de qualificação de uma
contínua retomada dos conhecimentos com os quais trabalha, possibilitando a reflexão em
torno de sua prática e a atualização constante das discussões sobre os processos pelos quais
a ação docente se dá. Neste sentido, a formação inicial e continuada são partes indissociáveis
e inerentes à carreira do professor.e da professora. A reflexão da prática docente torna-se,
portanto, indispensável para a sua formação e para o trabalho cotidiano na escola.
O processo de formação docente deve ajudar professor e professora a re-significar a sua
profissionalização, perceber-se como trabalhador e trabalhadora que procura autonomia em
sua atividade pedagógica, compreendendo a natureza dos conteúdos com os quais lida
diariamente e as relações destes com as vivências dos alunos, alunas e da comunidade onde
se inserem.
Os professores e professoras têm o desafio de conduzir alunos e alunas a produzirem novos
conhecimentos. É dada-lhe dada a missão de perceber no aluno e na aluna os movimentos
que realizam no sentido desta construção, perceber o sentido da sua busca e tendo a

8 Pedagogo, Especialista em Gestão Pública Contemporânea.


9 Pedagoga, Especialista em Psicopedagogia.
10 Educadora, Pedagoga, Especialista em Gestão Pública Contemporânea.
11 Educadora, Pedagoga.

55
Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

sensibilidade de "seduzí-lo" para as questões essenciais nesta busca, de modo que estes se
tornem estimulados, criativos, autônomos e críticos. Mas para isto, professores e professoras
precisam criar em si estas competências para ajudar o aluno e a aluna a construí-las em si
próprios.
Essa é uma das naturezas da formação continuada. Propiciar aos docentes ampliarem suas
competências. Não podemos esperar que os professores e professoras despertem nos alunos,
nas alunas o interesse pela busca do conhecimento se ele apenas recebe informações de
“especialistas” com a orientação de assimilar e aplicar em sua prática. É preciso incentivar
estes profissionais para produzir seus próprios instrumentos e discursos. Estimulá-los a refletir
sobre os problemas e as necessidades de uma prática condizente com as necessidades dos
alunos, e alunas discutir procedimentos, materiais didáticos apropriados de referenciais
teóricos que respondam às necessidades dessa prática e não se baseiem em condições
idealizadas de trabalho.
O processo de formação precisa ajudar professores e professoras a desenvolver suas
capacidades, construindo instrumentos de compreensão e transformação da sua realidade e da
realidade dos alunos; levá-los a agir a partir de uma reflexão teórica, que possa contribuir para
a reconstrução da ação pedagógica. Pensar um programa de formação continuada é essencial
à construção de um novo currículo que terá como referência à realidade do professor,
professora e do aluno, na sua complexidade e contradições.
É indispensável repensar e propor programas de formação em exercício que tragam uma
política de formação docente diferenciada, que imprimam mudanças de posturas para que os
argumentos pedagógicos não permaneçam na esfera do discurso. A preparação do professor,
da professora deve realizar-se de maneira a torná-los profissionais qualificados, conscientes do
significado da educação, para que possam estender essa consciência aos educandos e
educandas, dando-lhes uma dimensão coletiva e solidária de sua existência.
Portanto a formação continuada precisa fazer parte de um processo permanente de
desenvolvimento profissional, processo, que se dá com o professor a professora no exercício
de suas atividades profissionais, deixando de ser uma atividade deslocada das atividades
escolares ou uma ação eventual, descontínua e desvinculada da prática dos educadores e das
educadoras.

Percursos da formação continuada nos municípios

A chegada da LDB juntamente com os Parâmetros Curriculares Nacionais, no final da década


de 90, às escolas, traz consigo novas demandas para os educadores e as educadoras em
todas as partes do país. Essa configuração no cenário nacional trouxe para as Secretarias de
Educação a necessidade de re-pensar a formação dos professores, das professoras, tendo em
vista um mundo de exigências que a partir daquele momento eram destinadas à escola.
Neste cenário há uma proliferação de Instituições de Assessoria que se colocam a serviço dos
municípios (a custos altíssimos) na tentativa de ajudar a compreender as exigências e as novas
nomenclaturas pedagógicas trazidas pelo contexto nacional e internacional.
Mesmo com a expansão da necessidade de investimento no processo de formação dos
professores, das professoras em muitos municípios, o acesso à formação ainda não é um
direito, visto que, professores e professoras não têm garantido esse tempo em sua carga
horária de trabalho.
Em outros casos, quando há esta garantia, vê-se que, em alguns municípios, este tempo é
utilizado de forma pouco organizada, com ações isoladas, pontuais, as quais não constituem
um programa sistemático de formação com ações vinculadas às metas e objetivos claros,
integrados e devidamente articulados com a política educacional mais ampla.
Como resultado, os municípios têm descoberto que mesmo tendo investido bastante recurso
em momentos de formação, não houve, substancialmente, uma mudança nos resultados
escolares, o que nos faz levantar diversas possibilidades que justificam essa afirmativa.

56
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

• Muitas das Instituições formadoras são contratadas geralmente para um único


momento do ano, sem que se estabeleça um vínculo mais sólido e contínuo entre a
equipe formadora, professores e professoras.
• As formações não partem de um diagnóstico preciso das reais necessidades dos
professores, professoras e não consideram suas práticas como ponto de partida,
ficando a formação, muitas vezes, restrita às abordagens que no momento estão em
evidência no cenário educacional;
• Não consideram os outros atores educativos da escola (coordenadores, gestores,
merendeiras) como formadores;
• As formações não discutem, efetivamente, o papel dos professores e das professoras
dentro da escola e na sociedade.
• As formações são realizadas fora do ambiente e horário de trabalho, causando grande
insatisfação por parte dos professores e das professoras.
• As formações não se articulam às ações políticas mais ampliadas por parte dos
municípios e não consideram as reais condições de trabalho dos professores, das
professoras, tais como a falta de manutenção das escolas, a superlotação das salas de
aula, a falta de material didático-pedagógico e de apoio para alunos, alunas,
professores e professoras.
• Não consideram as diferenças regionais e culturais que constituem o ambiente de
vivência dos professores e professoras;
• Não há uma avaliação sistemática dos impactos provocados pelas formações, na
aprendizagem dos alunos e alunas;
• Há alta rotatividade de professores e professoras devido a ausência e ou insuficiência
de concursos públicos;
• Há ausência de um acompanhamento sistemático por parte das equipes pedagógicas
ás escolas;
• A distância e isolamento das escolas da zona rural dificulta o acompanhamento
docente e sua formação.
• Ausência de continuidade das políticas de educação implementadas, devido à
finalização das gestões municipais, prejudicando o andamento das propostas.
Todas estas questões têm efetivamente, colocado em xeque o modelo de formação
historicamente utilizado pelos municípios, trazendo à tona, a necessidade de repensar os
instrumentos e finalidades desses momentos.

Algumas questões sobre a organização da formação

Geralmente, os municípios que dispõem de uma equipe pedagógica nas Secretarias de


Educação, têm, coordenadores, coordenadoras, na maioria das vezes, como responsáveis pelo
acompanhamento e formação docente. No entanto, uma questão que se coloca pelos
professores e professoras, é que, há uma grande dificuldade daqueles que exercem a função
de coordenadores pedagógicos, para assumir a formação docente. O que se pode verificar, é
que em boa parte dos municípios, coordenadores, coordenadoras (estejam eles nas equipes
das secretarias ou nas escolas) exercem inúmeros papéis de ordem administrativa, sobrando-
lhes pouco tempo para pensar, organizar e construir uma articulação mais forte e permanente
junto aos docentes.
Aliadas a estas dificuldades, as equipes técnicas das secretarias, enfrentam ainda, o problema
da falta de prioridade dos recursos a serem destinados à formação e ao acompanhamento da
prática pedagógica. Geralmente os 40% do Fundef conforme ressalta o inciso I, art. 70 da
LDB.- destinados à remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais
da educação - não são devidamente aplicados e utilizados na formação dos professores.

57
Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

Este, com certeza, é um dos fatores que contribuem para que ainda se encontrem municípios
onde professoras e professores não têm, ou tem acesso restrito, a planejamentos e a outros
espaços de formação continuada.
Conforme dados do MEC/INEP/SAEB /2001, 86,6% dos professores e professoras de 5ª a 8ª
da zona urbana têm acesso á formação continuada, enquanto na zona rural, este número
representa apenas 19,4%.
O estudo do MEC/INEP/SAEB /2001, não especifica, se a formação continuada é oferecida
pelos municípios ou se deve às iniciativas dos próprios professores e professoras em participar
de cursos, seminários oferecidos por outros órgãos, o que poderia, inclusive, justificar a
participação de 86% dos professores e das professoras da zona urbana. Trazemos esta
reflexão porque sabemos que muitos municípios têm de fato, a dificuldade em criar momentos
de formação para os docentes do Fundamental II, sendo que um dos fatores, é a pouca
disponibilidade de tempo destes, em virtude da maioria, atuar em várias escolas, em jornadas
duplas e até triplas de trabalho, dificultando a realização de momentos coletivos na escola ou
pelas secretarias. Uma outra dificuldade apontada por professores e professoras neste sentido,
é que geralmente, as formações têm conteúdos mais voltados para professores e professoras
de 1ª a 4ª série.
Diante dessa dificuldade de tempo, algumas escolas, tem encontrado meios de garantir a
formação, aproveitando os horários destinados as Acs (Aulas Complementares) e promovido
discussões dentro da própria escola, organizando as AC´s por áreas afins, sob a orientação da
coordenação pedagógica da instituição –quando esta dispõe.
Na tentativa de dar um maior suporte aos professores, professoras algumas Secretarias de
Educação têm investido em um processo contínuo de formação com os gestores e gestoras
escolares, o que vem se somando às ações de formação com os professores visto que, na
maioria das escolas, são estes gestores que acabam oferecendo o principal suporte
pedagógico para os docentes, direcionando os planejamentos e atividades escolares. Outros
municípios têm feito parcerias com Universidades as quais têm auxiliado as equipes
pedagógicas nas formações dos professores e das professoras, especialmente nas áreas
específicas, cuja demanda é cada dia mais crescente.

A importância das parcerias na qualificação da educação nos municípios do Semi-árido

Na busca pela qualificação do ensino-aprendizagem, os municípios têm procurado somar seus


esforços aliando-se a outros parceiros, que vão dando à educação, novos rumos.
Além das Universidades, vão surgindo outros atores sociais, como as Ong’s, que vem
contribuindo significativamente com a melhoria da educação nos municípios, a exemplo de
algumas organizações locais/regionais como IRPAA (Instituto Regional da Pequena
Agropecuária Apropriada), SERTA (Serviço de Tecnologia Alternativa), MOC (Movimento de
Organização Comunitária), CAATINGA (Centro de Assessoria e Apoio aos Trabalhadores e
Instituições não-governamentais Alternativas) Cáritas Brasileira, entre outras e Organizações
Nacionais e Internacionais como Fundação Abrinq, Unicef, Konrad Adenauer, CENPEC, etc.
Tais Organizações vem dando uma nova configuração ao cenário da educação, onde através
de parcerias com as prefeituras, têm sido fortalecidas as políticas municipais de educação nas
mais diversas áreas: organização dos conselhos, gestão escolar; ações complementares à
escola, sistematização de materiais didáticos e especialmente, na formação continuada de
professores, professoras, gestores, gestoras, coordenadores e coordenadoras municipais.
Essa construção coletiva tem sido um importante instrumento na luta pela qualificação do
ensino-aprendizagem, pela inclusão das populações menos favorecidas e pela ampliação da
função social da escola, construindo a possibilidade da escola vincular suas ações ao
desenvolvimento das comunidades, incentivadas pelas ações destas organizações, as quais,
geralmente atuam em outros setores do município.
Para as Ong´s, a parceria com os municípios, tem provocado mudanças significativas nas suas
constituições e colocado à educação como ponto focal nos seus projetos institucionais,
exatamente, por compreender, que não há possibilidade de se pensar projetos de

58
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

desenvolvimento desvinculados das ações educativas, especialmente daquelas que se dão nas
escolas.
O seu papel, contudo, não desresponsabiliza o poder público de suas obrigações. Por conta
desse entendimento, a maioria dessas Ong ´s, tem feito o papel de assessoria especialmente
na formação continuada, no intuito de se construir e ou fortalecer as competências locais, para
que os atores municipais, possam assumir a autoria necessária para dar andamento a seus
projetos e suas idéias.
Como resultado dessas parcerias, vê-se que os municípios têm tido a oportunidade de ampliar
as possibilidades da formação continuada dos professores e professoras, melhorar o
acompanhamento às escolas, incentivar a produção e registro de experiências e fortalecer suas
ações, por via de intercâmbios com outros municípios e entidades.
É nessa configuração que a RESAB vem tomando formato, unindo esses diversos atores, para
conjuntamente discutir e definir políticas públicas de educação mais inclusivas e apropriadas ao
contexto de vida das comunidades.
Princípios, Diretrizes de Formação Continuada no contexto do semi-árido.
É importante considerar que o papel dos diversos atores nos projetos de formação continuada
deve ter como princípios os saberes práticos dos professores, das professoras, pois é pela
tematização da prática docente (ação-reflexão) que são levados a problematizar a sua prática
confrontando os seus conhecimentos prévios com os novos conhecimentos técnicos-
pedagógicos adquiridos para a construção de novos saberes, novas representações e novos
significados que precisam refletir no seu cotidiano. Formar um profissional reflexivo significa
formar um sujeito autônomo, produtor de novas teorias, que invente novas formas significativas
de ensinar e de aprender, valorizando este fazer para, a partir dele, numa reflexão coletiva,
ajudá-los a avançar.
É pela tematização da prática docente (reflexão na ação) que professores e professoras são
levados a confrontar teorias e crenças com a prática imediata, tornando-se investigadores do
seu saber fazer. Acredita-se no potencial criador e criativo dos educadores, que diariamente
inventam formas eficientes e significativas de ensinar e aprender e produzir novas teorias. É
preciso, no entanto, conhecer essas experiências já desenvolvidas, as formas encontradas por
estes educadores para melhorar as aulas e promover a aprendizagem dos alunos e das
alunas. Para Rejane Maia (2004. p.52)

Não basta, portanto, ao professor conhecer diferentes teorias de


aprendizagem, identificando-se com determinada concepção de ensino-
aprendizagem. É fundamental que ele possa atuar de forma coerente com as
concepções e princípios educacionais que defende. Além de saber e de fazer,
ele precisa saber-fazer, ter clareza dos fundamentos teóricos, sociais, culturais,
organizacionais nos quais se dá a sua atividade docente, para neles intervir,
transformando-os”.
Um outro elemento importante a ser considerado no trabalho da formação docente é priorizar a
formação continuada para além dos espaços escolares. Não só se ensina e se aprende na sala
de aula. As experiências cotidianas precisam refletir o envolvimento dos professores, das
professoras com os outros elementos que compõe a escola (e também os que estão fora dela)
para que tenha significado e ocorra de forma prazerosa. Assim, os professores e professoras
devem ser levados a analisar a sua relação pedagógica além dos muros da sala de aula,
percebendo que os espaços extra-escolares também são espaços formativos. A comunidade, a
interação com a realidade e com o seu meio cultural, social, histórico, político são elementos
determinantes na construção de um projeto político-pedagógico que vise uma educação de
qualidade, pois a ação pedagógica não está separada de outras vivências, ela se constitui de
projetos de vida e de mundo.
Entendendo que a formação docente precisa ir além dos espaços escolares, o que não se
pode deixar de considerar é que os tempos e os espaços de formação se dão por diversos
caminhos, bem como ressaltar que a formação continuada é um direito do profissional
garantida pela LDB no artigo 67 inciso I e V:

59
Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

“Art. 67 – Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos


profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos
estatutos e dos planos de carreira do magistério publico”:
Inciso I – Aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com
licenciamento periódico remunerado para esse fim.
Inciso V – Período reservado a estudos, planejamentos e avaliação,
incluídos na carga de trabalho.”

Portanto, a formação continuada é direito do profissional e dever não só dele. Para isso, os
espaços e meios de formação precisam ser amplamente discutidos e integrar as políticas e
diretrizes municipais, de forma que garanta ao professor e a professora a participação nos
processos de decisão das diretrizes da escola, conforme ressalta a LDB também nos artigos 1,
2 e 13, entre os quais afirma-se que cabe ao professor, participar na elaboração do projeto
educativo de sua instituição, do conselho escolar, nas ações de articulação com a comunidade,
no planejamento da escola, além, obviamente, de gerir os trabalhos de classe, zelando,
sobretudo, pelo desenvolvimento da aprendizagem dos alunos e alunas.
Pensar os Programas de Formação Continuada na perspectiva da Educação para a
Convivência com o Semi-árido significa preocupar-se em estabelecer diretrizes que assegurem
aos docentes tempos e espaços de formação. A garantia desses direitos é o primeiro passo
para a re-qualificação do ensino público nessa região.
Essa tem sido uma das principais discussões da Rede de Educação do semi-árido brasileiro
(RESAB) que nas diversas conferências realizadas nos estados tem apontado importantes
diretrizes:
1. Garantir que nos cursos de formação continuada para professores e professoras, a
educação seja concebida como um processo permanente na formação humana, esteja
atrelada ao projeto de transformação social e contribua na construção do
desenvolvimento sustentável e solidário para o campo e para o semi-árido.
2. Incluir nos currículos de formação de professores e professoras cursos de pedagogia a
formação política, ética, incorporando as temáticas da proposta de Convivência com o
Semi-Árido e Educação do Campo.
3. Envolver as instituições (ONGs, Universidades, etc.), de formação de professores e
professoras nas discussões da Proposta de Convivência com o Semi-Árido.
4. Reafirmar, dentro do projeto pedagógico da escola a autonomia do trabalho
pedagógico do professor, da professora, como principio básico de ação educativa e
profissional.
5. Assegurar a presença do professor, da professora na escola de atuação, por mais de
três anos, visando garantir os laços de trabalho, a busca de resultados e o
envolvimento na comunidade.
6. O professor, a professora deverão ser contratados em regime de 40 horas, sendo
20horas para o ensino e 20 horas para pesquisa, extensão e formação continuada,
mediante as condições de financiamento e as peculiaridades de cada município,
incluindo professor e professora de 1ª a 4ª e Educação Infantil.
7. Dotar a escola de condições básicas (infra-estrutura física e pedagógica) para
desenvolver atividades didáticas pedagógicas.
Tais diretrizes apontam, evidentemente, para a discussão de que a formação continuada de
professores e professoras, não pode ser vista isoladamente das outras políticas de educação
dos/nos municípios e estados. Os outros fatores que estão relacionados às condições de
trabalhos e, sobretudo, às decisões de cunho político, precisam compor o Projeto de Educação
das Redes de Ensino, tendo a formação, como um dos elementos a serem qualificados.
Da mesma forma que as políticas educacionais precisam compor um todo orgânico e
articulado, a RESAB acredita que elas devem compor um conjunto bem mais ampliado de
intenções e direcionamento político. Ou seja, nenhum projeto de melhoria da educação avança,
se não, integrado às demais políticas de desenvolvimento do município.

60
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

Um espaço de exercício e de garantia dessa integração poderia ser o Plano Municipal de


Educação, o qual possibilita convergir diferentes ações (dos órgãos municipais), tendo em vista
potencializar não apenas o uso dos recursos públicos, como e, sobretudo, qualificar e ampliar a
abrangência e resultados das políticas públicas municipais.

Outros elementos que precisam compor os programas de Formação Continuada

Um dos aspectos relevantes na constituição dos Programas de Formação Continuada é a


clareza da sua vinculação com a concepção de educação, de sociedade, de escola. Estas
concepções definirão o perfil profissional que se pretende alcançar. Mais ainda é preciso que
se pense se os conteúdos da formação, previstos no plano, se articulam com as intenções a
que ele se pretende.
Partindo dessa premissa, é importante ter claro qual concepção de educação vem sendo
gestada na RESAB. Apesar de não ter uma única definição, esta concepção parte do
entendimento que a educação deve possibilitar nos sujeitos a formação de um olhar
diferenciado sobre sua realidade, contribuindo para a construção de uma ética na relação das
pessoas entre si e destas com o ambiente natural e social, visando contribuir no
desenvolvimento humano e sustentável do Semi-árido.
Este deve ser o ponto de partida dos Programas de Formação Continuada - articular os
conteúdos á realidade de vida dos alunos e alunas, possibilitando aos professores e
professoras terem acesso ao um conjunto de conhecimentos sobre as condições ambientais,
sociais, históricas, culturais e políticas, para compreenderem o contexto e as relações em que
está inserida a sua prática educativa.
Esta tem sido a pratica de diversas instituições que atuam na formação continuada do
professor, da professora no semi-árido, que organizam as suas formações, através de eixos ou
blocos temáticos, que trazem as discussões sobre o aspecto da natureza, do trabalho, da
cultura, da historia da humanidade, da sociedade traduzindo um repertório de conhecimentos,
que permitem aos professores e professoras re-significarem a sua pratica, tornando o ambiente
escolar um es paço participativo, inclusivo e contextualizado, garantido o principio onde todos
são aprendizes (professores e alunos) e construtores do processo ensino-aprendizagem. Para
Souza e Reis (2002)
A opção por eixos proporciona a compreensão de um contexto social
bem mais amplo e das relações que nele se estabelecem (local e
global, rural e urbano, micro e macro seca e chuva, homem e
mulher,conflitos de gerações, paz e guerra, entre outros.
Os eixos temáticos fazem parte de uma proposta metodológica das instituições, e constituem
parte das ações de formação continuada que vem sendo desenvolvida com professores e
professoras, e vem contribuindo de forma propositiva na elaboração das propostas político-
pedagógicas municipais, especialmente no que se refere à política de organização dos
conteúdos e da formação continuada dos docentes.
É importante considerar, que ao se definir os conteúdos, deve-se respeitar as características e
necessidades dos professores e professoras as diferentes concepções de currículo, bem como
um conjunto de saberes escolares, para o desenvolvimento de habilidades, capacidades e
atitudes, constituindo-se em saberes políticos pedagógicos que priorizem a construção de
valores éticos, estéticos e considerem os aspectos afetivos, físicos, sócio-culturais.
Um elemento fundamental na seleção desses conteúdos é não perder de vista a relação dos
conhecimentos regionais com os saberes universais, uma vez que é importante que os
professores interajam com os avanços e entenda a configuração do mundo atual. Compete aos
professores e professoras as reconhecerem as diferenças e as dimensões do contexto,
analisando as diversas situações e buscando soluções para cada uma delas.
O outro aspecto a ser considerado refere-se a metodologia, esta deve se basear:
• Na reflexão e analise da prática docente

61
Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

• No partilhar as experiências,
• Considerar as demandas trazidas pelos professores
• Priorizar a articulação entre ensino e pesquisa como fundamento para repensar a
relação escola e comunidade.
• Garantir a organização dos momentos de formação com uma seqüência lógica de
modo a favorecer a ampliação e reflexão dos conhecimentos trabalhados.
Vale ressaltar que esse trabalho deve ter um caráter intencional, que supõe uma direção
política, assegurando que a formação continuada não se restrinja as ações isoladas e
esporádicas, mas que esteja contemplada no projeto político municipal, de forma continua e
sistemática, visualizando a educação como instrumento de mudança na busca coletiva por
uma nova sociedade, onde os professores estejam comprometidos na construção de uma
escola mais humana e prazerosa que contribua na melhoria das condições de vida.
A intenção da proposta da ECSA, é contribuir na construção de conhecimentos e saberes
necessários que instrumentalizem a pratica dos professores e professoras, a fim de que
possam intervir e modificar a sua realidade, reconhecendo-se como sujeito histórico e
protagonista da sua ação, possibilitando que os alunos aprendam algo, que nem mesmo eles
tiveram a oportunidade de aprender. A conhecer e se re-conhecer no Semi-árido.12
Para tanto, faz-se necessário a ampliação das competências que se colocam necessárias para
professores, professoras que direcionam o currículo da formação continuada no contexto do
semi-árido.

Perfil professores e professoras


▪ Investigador da Realidade-Aquele busca conhecer a comunidade, de onde vêm os
alunos, como estes vivem sabendo aproveitar os elementos presentes na comunidade
para ajudá-los na busca da compreensão da sociedade em que vivem;
▪ Pesquisador-Que se encontra em busca de novas leituras, novos conhecimentos que
levam ao confronto com a própria prática; que se inquieta com a realidade, investiga e
busca diferentes possibilidades de respostas e que sabe da importância de
sistematizar e registrar seu fazer e os saberes construídos ao longo de sua prática.
▪ Problematizador - Que percebe a complexidade do mundo e junto com os alunos
levanta novas hipóteses; que reconhece que existem várias possibilidades para uma
mesma situação e que provoca questionamento nos alunos e alunas, incentivando-os à
descoberta.
▪ Aprendiz - Que compreende o público com que lida e reconheça no aluno, e na
comunidade, potencial e possibilidades para continuar aprendendo. É o tipo de
educador e educadora que não se conforma com o saber adquirido e insiste em
sempre aperfeiçoá-lo.
▪ Articulador – Capaz de relacionar e articular conhecimentos e situações que levem à
novas aprendizagens;
▪ Criador - Que inventa diferentes possibilidades de aprender e ensinar; que aproveita os
espaços de aprendizagem que estão fora da escola; que reconhece a importância do
saber popular; que valoriza as manifestações culturais da comunidade e extrai delas
aprendizagens prazerosas; que reinventa situações diferentes para ensinamentos
novos; que transforma todo e qualquer momento em aprendizagem significativa; que
possibilita o desenvolvimento de novas competências e habilidades nos alunos e em si
próprio; que percebe a ARTE como uma possibilidade de explicar a história da
humanidade e discutir a complexidade do mundo; aquele que investe no potencial
criativo de cada aluno e aluna.
▪ Democrático - Que se põe a aprender com as experiências; que reconhece a
necessidade de compartilhar e trocar idéias com outros educadores e educadoras; que
se sentem responsáveis pelos problemas da escola; que não se isola no seu saber;

12 Referencial de Educação para CSA.


62
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

que ouve o aluno e considera os seus anseios; que rever sua prática em benefício da
melhoria da aprendizagem; que reconhece que não há verdade única, que nada está
pronto e acabado, capaz assim, de re-planejar constantemente a sua ação.
▪ Comprometido com o fazer pedagógico - Que percebe o ensino-aprendizagem como
um fazer profissional; que se preocupe com o resultado do seu trabalho; com os
índices de evasão e de repetência; com a qualidade da aprendizagem; que se
questiona sobre a utilidade daquilo que ensina seu porquê e para quê; Que
constantemente se questiona sobre como os saberes ensinados contribuem com a vida
dos alunos e alunas; Que investe no melhoramento do seu saber-fazer e portanto, da
sua formação.
Para finalizar pretendemos ratificar que a qualificação dos profissionais é elemento
fundamental na construção de uma educação de qualidade e deve estar assegurada num
conjunto de políticas públicas municipais - nos planos de carreira e de salários, nos planos
municipais de educação, na proposta política pedagógica - num conjunto de ações
devidamente comprometidas com a inclusão, contextualização e democratização do ensino
público no Semi-árido.

Bibliografia:
ANTUNES, Celso. Como desenvolver as competências em sala de aula. 2ª ed. Petrópolis – Rio
de Janeiro: Vozes, 2001.
CENPEC- Ong: Parceria Da Escola, Coleção – Educação e Participação ––.. Centro de
Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária – CENPEC/UNICEF, 5ª Ed
São Paulo, 2002.
__________ Formação em Serviço - Guia de Apoio as Ações do Secretário da Educação.
Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária –
CENPEC/UNICEF, São Paulo, 1997.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 7ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996..
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL . Referenciais para a Formação de
Professores/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília. A Secretaria, 1999.
SOUZA E REIS. Educação para a Convivência com o Semi-árido - Reencantando a Educação
a partir das experiências de Canudos, Uauá e Curaçá – São Paulo: Peirópolis, 2003.
MAIA, REJANE, A Escola como uma Comunidade de Aprendizagem e a formação contínua do
professor. In: Revista da Associação de Educação Católica do Brasil – AEC – Natal, RN. 2004.

63
Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

Educação para a Convivência com o Semi-Árido – A proposta de Elaboração de um


livro didático.

13Claudia
Maisa A. Lins
14EdineusaFerreira Sousa
15Vanderléa Andrade Pereira

Escrever um livro didático a partir de uma Proposta de Educação Contextualizada no Semi-


Árido é antes de tudo comprometer-se no cuidado para não direcioná-lo a um material fechado,
estático, fragmentado, massificando culturas e sobrepondo valores e conceitos, considerando
apenas uma visão da história. Devemos inicialmente estar sensibilizados a compreender e
viver essencialmente o sentido e significado da palavra convivência, CONVIVÊNCIA como
compreensão e intervenção na realidade, a qual devemos buscá-la em qualquer lugar do
mundo, no Semi-Árido, no Sul, no frio, no seco, no molhado, no planeta Terra, no Universo.
Pensamos que esse livro possibilite a troca de saberes e a invenção de outros, abrindo
espaços para a problematização dos conceitos, disponibilizando informações até então
negadas.
A intenção da construção de um livro didático é poder termos a possibilidade de trabalhar com
um material que ofereça uma visão mais ampla do Semi-Árido (nos aspectos ambientais,
sociais, culturais, econômicos e políticos). É importante então propor um livro que possibilite
discutir melhor as peculiaridades da região e as relações desta com o mundo, contribuindo
para descobrirmos formas apropriadas de convivência, dando uma dimensão motivadora e
concreta da própria realidade em movimento, onde as situações de vida possam ser elementos
que possibilitem um espaço/tempo de estudo e aprendizagem.
O currículo escolar reproduz um discurso e uma prática que apresenta o semi-árido como
inviável, um lugar ruim de se viver e conseqüentemente isso é disseminado nas escolas
também por meio do livro didático que é um instrumento de poder que reforça essa idéia
através de suas atividades e imagens reproduzidas em sala de aula. Os livros didáticos (hoje)
utilizados nas escolas acabam por se distanciar do nosso contexto. As crianças não se vêem,
não se reconhecem nos livros, bem como em outros meios de difusão de informações. Os
conteúdos na maioria das vezes se apresentam sem sentido e significado para os alunos e
alunas, isso por abordarem e valorizarem regiões em detrimento de outras, alimentando ainda
a cultura do colonialismo, onde valores, gostos, gestos, linguagens, sentimentos se sobrepõem
a outros.
Outra reflexão a se fazer é a metodologia constituída historicamente para o livro didático: o
congelamento e fragmentação dos conteúdos onde o processo de ensino-aprendizagem se dá
através de modelos, ações repetitivas, inviabilizando a capacidade de pensamento que os
alunos, alunas, professores e professoras têm, o que se resume em uma legitimação da idéia
de que o SAB é esse lugar feio, seco e ruim de se viver, além de dissociar os conhecimentos
que possam ser produzidos nos espaços educativos. É compatível pensar outra forma
metodológica para o livro: trabalhar com pedagogia de projetos e dentro dessa proposta com
eixos temáticos locais e globais, partindo da problematização numa perspectiva inter e
transdisciplinar.
O desafio é propor um material didático que valorize a história de vida das pessoas, a
linguagem, percebendo a diferença e diversidade como riquezas para a construção de fazeres
e saberes, das diversas formas de expressão do povo que habita o semi-árido, ter essa história
como ponto de partida para a sistematização de conhecimentos. Valorizar as histórias contadas
pelo povo, as brincadeiras, as vivências, as opções de lazer, as possibilidades de convivência,
os desejos, as subjetividades, as relações com o ambiente (social, natural), tudo isso
aproveitado de forma significativa.

13 Pedagoga, especialista em Gestão Educacional. Mestre e Doutoranda em Educaçao. Professora


da UNEB/DCH-III- Juazeiro - BA).
14 Pedagoga, especialista em Educação Básica de Jovens e Adultos, Técnica da Secretaria de
Educação de Curaçá- BA.
15 Pedagoga, Especialista em Educação Básica de Jovens e Adultos. Mestre em Educação e
Professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF.
64
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

É importante incentivar a pesquisa da realidade do lugar onde vivemos fazendo elo e conexões
para compreender o mundo a partir da nossa casa, da nossa história, da história do bairro,
cidade, país. Realizar projetos comunitários que se estendam para o planejamento de
atividades que possam ser desenvolvidas na e com a escola, uma proposta de incentivo a
pesquisa, exercitando o processo de conhecer, intervir e transformar. É preciso começar
partindo do local, do conhecimento concreto. As crianças precisam saber da viabilidade
política, econômica, social e cultural do Semi-Árido, da capacidade de desenvolvimento, bem
como da sua complexidade, da diversidade, da realidade constituída de diversas formas de ver,
sentir e viver.
É, portanto, nesta perspectiva que estamos elaborando um material didático a partir da
proposta de Educação Contextualizada. Este material vem sendo discutido coletivamente na
RESAB (Rede de Educação do Semi-Árido Brasileiro), através de fóruns de discussão.
Essa proposta inicial foi bastante discutida nas reuniões de comissão, onde se pensou a partir
do eixo central, na estruturação de temas, subtemas e conteúdos, a serem problematizados no
livro. Nesse processo de discussões esta proposta foi tomando um novo formato, trabalhando
com a perspectiva da idéia de um movimento circular, em que os temas e conteúdos aparecem
inter-relacionados, não hierarquizados, dialogando entre si. Por isso pensamos no formato do
GIRASSOL, como símbolo para representar a nova proposta metodológico do livro,
compreendida a partir de um movimento giratório e integrado.
Essa proposta abre possibilidades de abordar o Semi-Árido em sua complexidade/diversidade,
considerando os diferentes contextos que o compõe e que se relacionam, criam
interdependências e se influenciam mutuamente (o seco, o irrigado, o São Francisco, campo e
cidade, as diferentes formas de organização e de modos de vida das pessoas). Muitas vezes,
as pessoas que aqui se encontram não se percebem como parte dessa região, clima ou
ecossistema, uma vez que todo processo histórico-educacional tem tendenciado para isso. A
proposta do livro é aguçar também o sentimento de pertencer, de atravessar e ser atravessado
por todos os saberes, valores e conhecimentos que existem e possam existir no SAB.
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65
Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

Além do eixo central (Convivência com o Semi-Árido), a proposta tem como pilares
Subjetividade, Local/Global, Saberes, Complexidade, Multidimensional, Contexto que
funcionarão como pressupostos teóricos para respaldarmos as concepções acerca dos
conceitos presentes no livro e a forma como estaremos lidando com a articulação e construção
dos conhecimentos.
As temáticas Meio Ambiente, Sociedade e Poder, Arte, Cultura e Lazer, Trabalho e
Criação, História e Identidade se desdobrarão em diversas abordagens.
Na temática Meio Ambiente serão abordados: relações pessoas/meio, caracterização e estudo
dos rios localizados no SAB, caracterização do espaço (urbano e rural) nos aspectos
ambiental, geográfico, político e cultural, pesquisa sobre a localidade (comunidade, bairro,
município), convivência com/no SAB, conceito/histórico do SAB, localização, vegetação, clima,
solo, relevo, água no planeta, ciclo da chuva, animais, secas – aspectos climático e sócio-
político, convívio social, abordagem das diferenças, portadores de necessidades educacionais
especiais, relação social e biológica do corpo, infância, juventude, sexualidade, afetividade e
gênero.
Em Sociedade e Poder as abordagens serão: ética e cidadania, papel das pessoas na
construção da sociedade, relações de poder (família, comunidade, escola, município, estado e
país), conceitos e preconceitos, valores.
Na temática Arte Cultura e Lazer serão abordados: cultura local e diversidade cultural;
linguagem e usos artísticos, produção cultural, religiosidade, costumes, dialetos, valores
culturais, contos, lendas, festas, brincadeiras, histórias contadas pelo povo, saberes populares,
história e contextualização da arte, artistas e produções locais, relações éticas e estéticas.
A temática Trabalho e Criação abordará: potencialidades do Semi-Árido, relações com a terra
(agricultura, pecuária, reforma agrária), aproveitamento da água da chuva, formas de
abastecimento de água, preservação, pesquisa das diferentes formas de produção (campo e
cidade), geração d emprego e renda, conceito de trabalho.
Na temática História e Identidade: história da população do Semi-Árido, colonização, cultura
européia, indígena, e africana, povoação do SAB, êxodo/Migração, etnia.
Quando se pensou nos pilares, as pétalas menores (saberes, subjetividade, contexto,
local/global, multidimensional e complexidade) estariam interligando o eixo central (Convivência
com/no Semi-Árido) que se encontra na corola do girassol, com as pétalas maiores, onde se
encontram as temáticas principais. Procurou-se conceber os mesmos como base para
construção e desenvolvimento dos conteúdos que comporiam cada temática e sub-temática.
Os pilares, ou alicerces estariam presentes, garantindo a sustentação das pétalas em
consonância com a corola, evidenciando a pertinência dos conhecimentos/conteúdos que
estariam no livro e os que serão construídos a partir dele.
Pensar a elaboração de um livro didático que contemple os diversos aspectos da realidade do
Semi-Árido pressupõe perceber esse universo de forma ampla e plural, compreendendo que
existem múltiplas realidades e múltiplas formas de viver e dar sentido à vida. Os elementos que
permeiam esse espaço possuem características diversas que se constituem num processo
dinâmico, onde cada um é, ao mesmo tempo, uma pluralidade de coisas que se inter-
relacionam o tempo todo e se desdobram em outros elementos.
É preciso considerar que as relações constituídas em todas as dimensões da vida da
sociedade resultam de um movimento constante de redes, que se confrontam a partir de
diferentes formas de pensar, agir e produzir história, e que esta multiplicidade é necessária
para que novas formas de produção sejam criadas. Por isso, ao propor um material didático
que atenda a esta perspectiva, é fundamental compreender que as coisas não se encontram
estanques, fechadas em si, mas que são perpassadas permanentemente por um conjunto de
outras mais.
É pertinente ainda atentar nessa produção para a complexidade de todo processo da história
humana e do meio onde se vive. A história é tecida por elementos diferentes e
interdependentes e que juntos compõem o todo, o complexo.
Nesse processo de construção ocorrem relações diversas, onde cada elemento é único, e a
particularidade de cada um vai ganhando corpo, à medida que se relaciona com o outro, dando
um caráter de multiplicidade. Cada elemento é constitutivo de um todo que está ligado a uma

66
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

parte, e conseqüentemente, ligada ao todo. A sociedade, as pessoas, enfim, todas as relações


que se desdobram no meio ambiente decorrem desse movimento singular e múltiplo.
É nesse processo singular e plural que produzimos conhecimentos diversos. Portanto, é com
essa compreensão que se pretende olhar o Semi-Árido, um lugar onde uma infinidade de
coisas acontecem de dentro para fora e de fora para dentro e se formam na riqueza da
diferença.
O processo de ensino/aprendizagem numa perspectiva contextual significa reconhecer a
necessidade de provocar a percepção do mundo, através da união e inter-relação das áreas do
conhecimento, de forma que não se fragmente nem se segmente em gavetas os saberes
produzidos até então pela humanidade. E como diz Edgar Morin: “É insuficiente o
conhecimento dos dados isolados. O texto necessita do contexto”.
Considerando que a aquisição do conhecimento é uma necessidade vital, no sentido do que
conhecemos, pelo menos em tese, com o objetivo de buscar uma vida melhor, é que
percebemos que a educação contextualizada abrange essa perspectiva, pois parte do
pressuposto de que aprendemos aquilo que vamos necessitar para nos conhecermos melhor,
conhecermos o outro, bem como interagirmos com o externo, o diferente, que nesse processo
contextual ganha um significado diferenciado.
No cotidiano da vida, os problemas são dinâmicos, estão em movimento e se apresentam de
forma multidimensional, multidisciplinar, constituído por uma complexidade que vai se definindo
e se redefinindo num processo sempre contínuo. Pensando nessa dinâmica é que se vê na
proposta de educação contextualizada, a importância do menino e da menina estudarem
conteúdos que tenham sentido, significado, onde eles e elas tenham possibilidade de se
verem; que produzam uma reflexão sobre a localidade onde vivem, com perspectivas de
intervenção e mudança. Os conhecimentos específicos da matemática, das ciências, história,
geografia, língua portuguesa, artes, estudos da sociedade entram para ajudar a compreender o
problema em questão.
É nessa perspectiva que teremos oportunidade para perceber nossa subjetividade, nossa
singularidade. Produzimos nossa subjetividade na relação cotidiana com o ambiente natural,
cultural e com as pessoas, em nossas vivências na família, na escola, no trabalho, na
comunidade, estamos, o tempo todo, construindo a nossa maneira de estar no mundo, nossa
sensibilidade para lermos e colocarmo-nos diante dos fatos, do ambiente, das pessoas e de
nós mesmos. É o resultado dessa construção que vai se constituindo em nossa forma de lidar
com o mundo. De que forma o concebemos? Como interagimos? Como nos posicionamos? De
que forma percebemos a relação do local com o global?
O estudo da nossa história, do nosso espaço, a compreensão da constituição de uma cultura
formada a partir da contribuição de diversos fatores. O diálogo multicultural destes provoca
uma leitura diversificada, tanto no processo de acúmulo de conhecimentos como também na
construção de novas e diferentes formas de perceber o mundo, isso porque somos
atravessados e influenciados por um conjunto de coisas, e todo esse movimento vai produzindo
o processo de singularização e pluralização (ligado a um contexto maior, mais amplo.
A educação vivenciada na escola através do currículo e, conseqüentemente, o que vem
disseminado nos materiais didáticos, nos permite construir uma percepção do local, do mundo
em que vivemos? Sonhamos com uma proposta de um livro que permita isso, que seja possível
nos conhecermos, para então conhecermos o outro e qual a relação que se constitui.
Então quando Sr. Bernardino (Curaçá- BA) nos fala “Antes tinha seca, mas tinha fartura,
quando chovia, você plantava, se plantava o milho enchia as casas, tava aí tudo uma
hora dessa cheio de milho, abóbora, feijão, existia barriga cheia; e para mim hoje não
existe barriga cheia, só existe fome, a mercadoria está toda aí, os negócios estão tudo
cheio e não se pode comprar tudo que vê, que não tem condição. Está tudo fácil, não
precisa ir longe, mas comprar e difícil. Cadê o dinheiro,” ele nos traz uma análise social,
econômica, cultural incrível, observando o poder de aquisição das pessoas, a produção e forma
de produção, os valores que prevaleciam, e quais prevalecem hoje. Os saberes do Sr.
Bernardino geralmente não são valorizados, re-significados pela escola. Pelo contrário, essa
rica fonte de informação é desprezada, no sentido de não ser aproveitada. Diante desse
depoimento, é possível perguntar: qual a lógica da fome, se os negócios estão cheios? Que
sentimentos são produzidos nessa relação onde tudo tem um valor comercial? O paradoxo

67
Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

apontado por Edgar Morin: “O paradoxo do século XX produziu avanços gigantescos em


toda as áreas do conhecimento científico, assim como em todos os campos da técnica.
Ao mesmo tempo, produziu nova cegueira para os problemas globais, fundamentais e
complexos, e esta cegueira gerou inúmeros erros e ilusões, a começar por parte dos
cientistas, técnicos e especialistas. (Morin, 2001) é mostrado também pelo Sr. Bernardino:
produz-se tanto em termos de tecnologias e mercadorias, mas a humanidade está faminta e
aqui vale lembrar que não é só de comida, como diz a letra da música de Titãs: “A gente não
quer só comida/ A gente quer comida, diversão e arte A gente não quer só comida/ ...A
gente quer bebida, diversão, balé/ ... A gente não quer só comer/ A gente quer comer e
quer fazer amor/ A gente não quer só comer/ A gente quer prazer pra aliviar a dor/ A
gente não quer só dinheiro/ A gente quer dinheiro e felicidade/ A gente não quer só
dinheiro/ A gente quer inteiro e não pela metade”. Ainda existe um grande processo de
exclusão no que se refere ao acesso dos bens produzidos. Para quê servem então os
conhecimentos produzidos, senão para possibilitar melhores condições de vida?
Durante a nossa vida, relacionamo-nos com diferentes conhecimentos que acabam por
configurar uma espécie de “constelação” de saberes, nos quais nos apoiamos e que se
legitimam e se processam no nosso ambiente interno e externo. E os saberes estão aí na vida,
dentro e fora de todas as partículas que a formam.
“Eu estudei só seis meses. Agora eu fui me valer do livro. Que não era o
livro didático não. Eu não queria saber de categorias gramaticais não.
Queria saber de outras coisas... Eu queria era satisfazer minha
curiosidade, não era ler gramaticalmente como vocês por ai não. Foi a
natureza mesmo. Muito curioso para saber das coisas, tudo o que eu lia
eu gravava aqui na mente. Eu queria era ler histórias, a vida da pátria e
isso e aquilo, queria era saber das coisas...” (Patativa do Assaré)
Assim como Patativa de Assaré queremos assegurar que os saberes não se restrinjam
somente ao âmbito dos conhecimentos escolares, mas se ampliem. Poderemos, assim,
respeitar os saberes a partir das seguintes categorias:
1- Saberes Práticos - que podem ser representados por coisas que dizem respeito à
comunicação/ socialização das ações cotidianas, nos âmbitos da sobrevivência, da afetividade,
do lazer, da cultura. Os saberes práticos são ações fundamentais ao cotidiano de uma
existência efetivamente humana.
2- Saberes da Natureza Ético - Moral – considerando também o tom dos “ensinamentos
familiares”. Esses saberes deslocam-se para a esfera da conduta moral e da relação com o
coletivo, pautados no respeito, na solidariedade, na compreensão das diferenças e sobretudo
no compartilhar o espaço e fazer coisas juntos, sendo capaz de sorrir, de amar, de construir
sem que haja interferências nos espaços dos outros.
3- Saberes Teóricos ou Intelectuais – ler e escrever, e estudar. Conhecer teórico-
cientificamente as vivências práticas e fazer desses saberes instrumentos para aquisição de
outros saberes que, necessariamente, não se encontram só no espaço escolar.
Para considerarmos os saberes, precisamos antes nos despir do nosso limite social
que separa saber da escola e saber da vida. Por que foi necessário que Patativa buscasse o
conhecimento fora da escola? Que monstro de muro criamos entre a escola e a vida, se uma
está dentro da outra?

A vida é o lugar, por excelência, da aprendizagem. É na vida que os aprendizados ocorrem e é


nela que se podem compartilhar prazeres, “coisas proibidas”, e coisas possíveis e muitas
coisas. E, finalmente, é nessa vida que se encontram e se relacionam todas as instituições:
família, escola, trabalho, amizades, meio de comunicação, a rua, o bairro... os lugares físicos e
subjetivos. Instituições essas que desempenham um papel relevante no processo de formação
da nossa identidade e construção dos nossos saberes, considerando inclusive as nossas
incertezas, os nossos lados opostos e o nosso direito de ser diferente.
“A função dos homens de cultura numa sociedade democrática é
semear dúvidas e não recolher certezas; é ajudar a um lado entender as
razões do outro para melhor decidir.” (Norberto Nobbio).

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A nossa maior demanda é proporcionarmos um trabalho ético de “desarmamento” geral. Trata-


se de não negar as origens sociais do(a) educando(a), de não desconhecer sua cultura, de não
estigmatizar sua fala, de não condená-lo a viver no isolamento, tratando a cultura letrada não
como um mundo ameaçado, mas como um universo a conhecer para dele participar.
A escola precisa ser o espaço também de prazer e de encontro entre sujeitos que buscam
aprender e conviver. Daí, como diz Morin, (2002, 31). “... decorre a necessidade de destacar,
em qualquer educação, as grandes interrogações sobre nossas possibilidades de
conhecer... a incerteza, que mata o conhecimento simplista, é o desintoxicante do
conhecimento complexo”.
Comecemos imaginando o girassol no qual construímos a proposta, pensemos no seu todo e
em cada pétala que constituem esse todo. Perceber que, a exemplo do girassol, o todo sempre
é construído a partir de partes e estas, sintonizadamente, somam-se no todo, é o primeiro
passo para respeitar nos conceitos destrinchados no livro, as peculiaridades das partes, para
conhecer e compreender o todo.
A minha casa, a rua, o bairro, a cidade, o estado, o mundo, o universo precisam ser situados
geográfico e socialmente, pois é impossível compreender o global sem a propriedade do
conhecimento local, onde nossos pés estão e a que outros espaços e caminhos eles podem se
direcionar. Compreender a dimensão do semi-árido com toda a sua constituição ambiental,
social, cultural, política, histórica é, antes de tudo, conhecermos o pedaço semi-árido no qual
moramos, convivemos e nos relacionamos; é vivenciarmos o local para, a partir daí, ou
paralelamente, estarmos experimentando o global. A atividade cognitiva do principio de
Pascoal: “sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas ou ajudantes,
mediatas ou imediatas, e sustentando-se todas por um elo natural e insensível que une
as mais distantes e as mais diferentes, considero ser impossível conhecer as partes sem
conhecer o todo, tampouco particularmente as partes”, nos ajuda a compreender o
processo de inter-relação entre local e global de forma que esses conhecimentos sejam
contemplados nas abordagens/conteúdos laudados no livro.
As temáticas representadas pelas pétalas maiores do girassol (Meio Ambiente, História e
Identidade, Sociedade e Poder, Arte, Cultura e Lazer, Trabalho e Criação) compreendem as
abordagens principais do livro, das quais irão discorrer as subtemáticas e os conteúdos
relacionados às mesmas.

Sociedade e Poder
O estudo desta temática no livro didático permitirá fazer uma análise sobre a forma como a
sociedade se constitui, compreendendo as relações que aí se estabelecem.
Entender a sociedade e suas relações implica em saber, antes de tudo, que ela é feita de
pessoas, valores, coisas, sentimentos, informações, conflitos, processos de comunicação que
se cruzam constroem opiniões, que esta é um campo de lutas, constantes que comportam os
mais diferentes tipos de relações de poder.
As normas são fundamentais para a sociedade: cada um “deve” estar em conformidade com
certos ditos sociais, tanto mais limitados quanto mais livres forem os indivíduos. O que
percebemos é que, ao tempo que se reconhece os limites das normas, há sempre a
possibilidade de transgredi-las, de reeditá-las, daí a possibilidade da mudança social.
Compreender a sociedade enquanto um todo constituído por diversas partes que envolvem
sujeitos e construções éticas, de cidadania, democracia, valores, relações de poder, conceitos,
preconceitos, direito, deveres, participações e principalmente de solidariedade, deve ser
também uma instigação contemplada no livro. É necessário que os sujeitos conheçam a ação e
se reconheçam nela, para então reagir, transformando o que lhes for necessário e preciso para
a constante re-construção da sociedade da qual são e fazem parte. É necessário saber como
as coisas se comportam e também saber inventar comportamento para as coisas.
Quando falamos em sociedade, é preciso atentar para a discussão que existe hoje a respeito
da cidadania. Esta, só é possível com o diálogo das várias culturas sobre as possibilidades de
atuação comum, com o intuito de superar barreiras para compreensão e aceitação do outro,
que é hoje a principal dificuldade que as sociedades têm enfrentado na construção da

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

solidariedade entre os povos. Solidariedade esta que se constitui um elemento fundamental


para a sociabilidade, em contraponto ao individualismo e à competição instauradas em todos
os meios e relações sócio- culturais estabelecidas entre povos e coisas.
A cidadania não pode ser simplesmente pensada, uma vez mais, através da figura de um
cidadão autônomo, cujo poder soberano consiste em depositar um papel na urna. É, sobretudo,
algo da ordem de uma capacidade de participar na mudança social, que é, não só, constitutiva
da estabilidade do conjunto da sociedade, mas também da “estabilidade” e reflexão da
identidade, das relações de poderes existentes nas nossas relações, do compromisso social,
dos valores e da prática solidária, do saber cuidar e da liberdade individual. A cidadania
consiste também num reconhecimento mútuo das diferenças e diversidades que nos instituem,
na medida em que partilhamos o mesmo espaço social e político. Diferenças que permitem
entrar eventualmente em conflito ou em diálogo, mas num espaço cívico comum.

A pretensão é que se possa estar apontando caminhos a partir do livro, para as discussões que
levem à busca de possibilidades de refletir e até intervir em algumas questões que se
instauraram na nossa sociedade, por conta do simples funcionamento da técnica ou do capital,
do culto ao individualismo, da negação de valores e culturas, em detrimento de outras, da
própria relação de poder que se perpetua nos ambientes sociais, culturais e políticos.
Focalizando também um olhar mais atento na abordagem sobre a solidariedade e a prática da
mesma nas relações que ultrapassam os muros escolares, pois, se acreditamos que os “males”
sociais advêm do distanciamento entre o/a homem/mulher físicos e o/a homem/mulher
sentimentos, necessário se faz investir e acreditar que a possibilidade de mudança e
restauração desse diálogo está no reconhecimento dos indivíduos pelos próprios,
reconhecimento da existência dos diversos, diferentes e iguais, reconhecimento da
necessidade da construção coletiva e solidária da comunidade na qual vivemos e convivemos.
Através dessas reflexões, poderá o livro ofertar conhecimentos básicos para que os sujeitos do
semi-árido conheçam, compreendam e interfiram nos seus espaços individuais e coletivos,
construídos na sociedade a que pertencem e são pertencidos.

Arte, cultura e Lazer


“Como viver em um mundo, em um espaço cuja origem e contexto se
desconhece? Esse tipo de preocupação sempre perturba aqueles que
buscam conhecer suas origens, se situar no tempo, no espaço que
ocupam. Mas ela se acentua na medida em que mudanças e novas
formas de ser e viver vão sepultando velhas práticas, costumes,
histórias. E, de repente, toda a nossa história passa a jazer nos
cemitérios.
Nos cemitérios silenciosos, que também vão sendo sepultados pelo
tempo. E, quando um cemitério é sepultado pelo tempo, toda história
se resume a uma frase: “É coisa do outro século. A gente não sabe”. E
esse não saber nos distancia de nós. É o nascimento de um mundo
erguido sobre outro que, com o ocorrer do tempo, cada vez mais se
desconhece”. (Esmeraldo Lopes).
Partindo do dizer de Esmeraldo Lopes, enfatizamos que a cultura é, ao mesmo tempo, uma das
formas de “fazer falar” o real social, a memória passada, mas relida e reconstruída com a
história presente.
No livro, precisamos reconhecer a cultura como uma construção humana, que acompanha a
dinâmica da vida. Assim, compreendendo a cultura como “o todo mais complexo” estaremos
falando da diversidade cultural, local e global; a produção cultural, a religiosidade; os costumes;
os dialetos; os valores; as histórias contadas pelo povo, contos, lendas, festas, brincadeiras; os
saberes populares; as linguagens e usos da arte contextualizando a sua história, descobrindo
os artistas locais e estabelecendo uma relação ética e estética da produção e apreciação,
partindo do singular da cultura para um conjunto de significados, atitudes, valores e
manifestações das várias esferas da sociedade que pluralizaremos para “culturas”. Dentro
dessa ótica, é necessário não perdemos de vista a relação entre história e cultura.

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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

O conhecimento e o reconhecimento das culturas locais e universais nos seus aspectos e


características diversas ajudarão o aluno do semi-árido a compreender que toda construção
sócio-cultural também se dá a partir dos contrários, das diferenças, das especificidades. Como
diz Morin, “O homem somente se realiza plenamente como ser humano pela cultura e na
cultura”. E cultura também se constrói numa relação estética e de prazer.
Dentro desses dois focos, estética e prazer, estaremos discutindo o lugar da arte e do lazer nas
vivências e convivências de pessoas que povoam o semi-árido. Qual a importância que a arte
pode ter na vida das pessoas? As pessoas riem, sonham, gozam, brincam, correm, colorem,
inventam, cantam, contam, apreciam o belo e criam outros tantos? Que espaços são dados às
nossas crianças? Que possibilidades de criação são facilitadas para os alunos sem que eles
sejam mutilados e violados pelos mesmos traços e cores neutras?
“Não agüento ser sempre um sujeito que abre portas, que puxa
válvulas, que olha o relógio, que compra pão às seis horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis, que vê uva, etc, etc. Perdoai, mas
preciso ser outros. Eu penso renovar o homem usando
borboletas”.(Manoel Barros)
Carecemos ser outros e ser tantos, com tantas diferentes histórias, causos e vivências. Mesmo
geograficamente estando no mesmo limite que é o Semi-Árido, devemos reconhecer no livro
que cada pedaço é específico e que cada especificidade traz inúmeras diferenças. Somos pluri,
multi, trans, somos diversas pétalas em um mesmo girassol de gente. “(...) Gente quer
prosseguir, quer durar, quer crescer, gente quer luzir” (Caetano Veloso).
O enfoque da arte no livro deverá aparecer como uma experiência humana de comunicação.
Criar e realizar uma obra de arte é uma experiência de maravilhar-se, divertir-se, brincar com o
desconhecido, arriscar hipóteses ousadas, alegrar-se com as descobertas, pintar, esculpir,
interpretar, trançar, expressar, compor histórias.
A arte possibilita uma construção mais reflexiva das potencialidades individuais e do senso
estético; este ultimo é uma dimensão importante que nem sempre está presente no cotidiano
das crianças de escolas públicas. O que seria arte então, se não esse alto-falante onde o belo
pode denunciar também as ausências de serviços públicos básicos, a inexistência de espaços
coletivos seguidos de convivência e de lazer, a privação das pessoas da fruição estética, da
apreciação, do limite à sobrevivência e do esquecimento do prazer e da ousadia? “Mais vale o
incerto que embala do que o certo que basta, porque o que basta acaba onde basta e o
que acaba não basta”. (Fernando Pessoa).
Brincar com a realidade por meio do imaginário produzido na cultura e pela arte, oferece ao
indivíduo uma flexibilidade que lhe permite explorar e experimentar o conhecido e o
desconhecido, assim poderá se distanciar, colocar-se no lugar do outro e olhar as coisas de
outros ângulos, criando outras e novas possibilidades e transformando e acrescentando o que
não lhe basta. A discussão que acontecerá no livro sobre culturas, fundamentada também pela
arte e lazer, deverá remeter os sujeitos que devorarem em cada página, em cada texto, em
cada figura à indagação básica: sabemos qual a cor do nosso arco-íris?
A partir dessa compreensão, busca-se mudar o caráter monocultural da escola, construída
mediante um único modelo homogêneo. A escola, em qualquer lugar, em vez de ser apenas
um meio de transmissão dos saberes e valores da cultura dominante, pode configurar seus
processos educativos com base nas relações interculturais: a interação crítica e dialógica se
torna mais fecunda e educativa na medida em que as pessoas buscam compreender não só o
que cada uma quer dizer, mas também os contextos culturais a partir dos quais seus atos e
suas palavras adquirem significados.

Trabalho e Criação
Entende-se por trabalho e criação o processo através do qual homem e mulher interferem na
natureza, transformando-a, produzindo e reconstruindo a história do mundo. O trabalho não
está atrelado apenas à questão da intervenção na natureza externa, à produção de bens de
consumo, mas é também uma forma como as pessoas se inserem no contexto social,
produzindo saberes, culturas, novos contextos, construindo assim o processo de humanização.

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

Isso ocorre tanto pela mudança das relações entre si, quanto pela mudança das suas relações
com a natureza.
Essas formas de intervenção acontecem de diferentes modos, a depender das situações e
condições que são apresentadas. Às vezes, essas condições dependem da apropriação de
outros conhecimentos, que vão desde o lidar com as novas tecnologias até as relações
humanas que se estabelecem neste universo. Nesse caso, pensando na relação que cada
pessoa constrói no dia a dia ao lidar com o meio ambiente. Atualmente, com a introdução das
novas tecnologias, essa intervenção tanto pode promover uma melhoria de vida, como também
um processo de desumanização. É preciso que as pessoas comecem a pensar até que ponto
podemos dizer, por exemplo, que a irrigação é sinônimo de progresso e riquezas, uma vez que
esta ação tem provocado a degradação do meio ambiente e gerado um processo de
desumanização, onde famílias inteiras são desapropriadas de suas terras, formando um
exército de trabalhadores escravizados e injustiçados pelo capitalismo selvagem.
No Semi-Árido, como em outros espaços, precisa-se analisar como as relações de trabalho se
deram e vêm se dando ao longo da história, criando mecanismos para reflexão dos modos de
pensar e produzir nesta região, refletir os impactos das novas tecnologias sobre a saúde, a
segurança, as condições de vida das pessoas, não exclusivamente no âmbito da produtividade,
mas sobretudo no âmbito da qualidade de vida em todas as dimensões, incluindo-se aí a
preservação do meio ambiente e a dignidade humana.
É imprescindível que se problematize sobre os processos e relações que se estabelecem no
campo do trabalho, analisando as potencialidades do lugar, o que e como se produz, qual a
sua relevância, o papel que cada tipo de trabalho representa no âmbito da sociedade, na
incorporação e desenvolvimento da produção, a sua dimensão cultural, o seu sentido social
enquanto forma de ação das pessoas na sua formação e na construção do mundo. Observar
como as pessoas se organizam e interagem no meio onde vivem, para que assim seja
possível valorizarmos o SAB e podermos repensar outras formas de fazer e refazer as ações
aqui praticadas. É sobretudo buscar dar visibilidade a um conjunto de saberes e fazeres que
transitam nesse espaço e que dão um caráter peculiar a esta região, percebendo que toda e
qualquer ação que se desdobra, independentemente do modo de ser, resulta de relações
diversas que se cruzam entre pessoas e meio, pessoas e pessoas.
É preciso olhar e entender o SAB pela ótica das suas riquezas, investigar, fazer diagnósticos,
descobrir contextos variados, considerando que cada saber e fazer é parte importante, e que
cada um poderá estar contribuindo para a melhoria e viabilidade dessa região.

Meio ambiente
Trazemos aqui a abordagem do ambiente numa perspectiva multidimensional e complexa,
considerando os diferentes aspectos - natural, social e cultural - e ainda os diferentes contextos
- rural (ribeirinho, sequeiro, irrigado) e urbano (centro e periferia). Percebendo que os
ambientes compõem-se na diversidade e nas relações que se produzem nos diversos espaços,
que se constituem na proporção que fazemos a cultura uma vez que esta interfere
constantemente na produção de significações no ambiente onde estamos inseridos.
O ambiente se faz e se refaz a cada instante. São as características peculiares de cada lugar
que vão produzir uma cultura diferenciada, singular a um determinado local, que também é
perpassado por outros elementos produzidos em outros espaços, tornando-se também plural.
“A realidade brasileira é múltipla, em cada canto do Brasil há uma
realidade distinta, singularizada pelas condições físicas e
climáticas, pelo conjunto de bens simbólicos historicamente
construídos: o saberes, as artes, as técnicas, os usos, os hábitos,
etc”. (Martins e Silva,2001).
Podemos dizer isso também do Semi-Árido, no aspecto global e local. As características de
micro-regiões são peculiares e produzem realidades diferenciadas que vão compondo um todo
a partir de características comuns a esse espaço. As diversidades dos lugares, no que diz
respeito ao clima, vegetação, solo, às questões hídricas, fundiárias e outras favorecem uma
construção própria que vai constituir um processo de relação do homem e da mulher com o
meio natural e entre si, na produção da vida e da subjetividade humana.

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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

O SAB apresenta irregularidades pluviométricas onde o nível de evaporação excede ao da


precipitação, isso provoca um certa desregularização de tempo e espaço para a ocorrência das
chuvas. Essa oscilação dá variações diferenciadas em cada microclima que compõe o Semi-
Árido, e vai de 700 a 1000 mm/ano. Em decorrência disso, as pessoas que aqui habitam
precisam pensar em políticas que gerenciem os recursos hídricos a partir da captação da água
da chuva, armazenamento e reabastecimento de rios, riachos, implantação de açudes,
barragens, barreiros, que viabilizem a produção da economia e favoreçam a construção
cultural, social, humana, uma vez que a água é um elemento indispensável a toda espécie de
vida no planeta Terra.
Outra questão a ser observada é a flora do Semi-Árido. Os vegetais possuem mecanismos de
adaptação para conviver no Semi-Árido, num ciclo que apresenta irregularidade das chuvas e,
conseqüentemente, a escassez da água em alguns períodos. Além disso, a vegetação do
Semi-Árido é rica em potencialidades que, sendo aproveitadas e beneficiadas de forma
racional, poderão trazer perspectivas de vida melhor para as comunidades. Evidente que
colado a essa intencionalidade produtiva, precisa estar presente a proposta de preservação do
meio ambiente, estabelecendo aí uma relação não somente de exploração da natureza, mas
uma relação de sustentabilidade recíproca entre humanos e o espaço ambiental.
É interessante estar sensibilizado/a também para o aspecto da beleza da caatinga, pelo seu
potencial estético, no sentido de perceber o belo nas diversos tons de cores laranja
acinzentado e/ou do cinza alaranjado pelos reflexos do raios do sol, nos dias mais quentes e
secos do ano.
O solo do Semi-Árido é composto, em sua maior porcentagem, de granito, portanto a relação
com o solo para a produção agrícola deve ser permeada de cuidados, o que exige uma quebra
de hábitos e práticas, como a queima constante e o uso de agrotóxicos, passando a assumir
outras posturas, ou seja, no sentido de se adotar uma forma de produção menos agressiva
com a natureza, percebendo também outras possibilidades, a partir da criação de animais
adaptáveis ao clima predominante.
Ao abordar o espaço Semi-Árido, destacando os aspectos do clima, vegetação, solo, não
significa que o percebemos como espaço pronto e acabado, nem pretendemos abordar a
cultura numa perspectiva do determinismo geográfico, queremos destacar a importância que
essas questões ambientais têm e que devem ser consideradas para a implementação de
políticas públicas apropriadas para essa região, favorecendo um conhecimento onde as
pessoas possam compreender que a irregularidade das chuvas não trata-se de castigo de
Deus, mas de uma peculiaridade do Semi-Árido, assim como a neve faz parte da vida dos
canadenses, esquimós etc.
A produção de cultura no Semi-Árido Brasileiro se deu, ao longo desses anos, a partir de
hábitos, costumes, práticas e de tecnologias vindas de outras regiões que apresentam uma
diversidade de ambientes diferentes das que encontramos aqui no Semi-Árido Brasileiro.
Analisando esse contexto, estamos diante de grande paradoxo: se de um lado, esse conjunto
de políticas provoca como resultado índices sociais negativos, por outro lado, traz contribuições
na diversidade que constitui, de certa forma, uma identidade cultural que compõe esse espaço.

Uma outra preocupação que deve ser problematizada é a produção elevada de alimentos para
atender uma demanda de mercado. Isso mexe com todo o sistema produtivo, onde grandes
empresas agro-industriais interferem no processo natural de produção agrícola, utilizando, de
forma excessiva produtos químicos e modificando, geneticamente, as plantas com o objetivo de
aceleração e aumento da produtividade. Essa realidade está presente também no Semi-Árido.
Felix Guatarri nos possibilita uma reflexão acerca do que ele chama de ECOSOFIA (ecologia
social, mental e ambiental), que está ligado à discussão da ecologia, em três dimensões: da
subjetividade humana, do meio ambiente e das relações sociais. Guatarri trata justamente da
produção da subjetividade humana (conhecimento, cultura, sensibilidade e sociabilidade),
fazendo reflexões sobre o processo desumano e vazio de globalização, dos valores do
capitalismo/ mercado que se sobrepõem aos valores humanos, da usinagem produzida pela
mídia, da progressiva deterioração nas relações de solidariedade. Os grandes problemas da
humanidade como a fome, miséria, a opressão das pessoas, a degeneração dos sentimentos
acabam se naturalizando num mundo onde os valores da competição, do capital é que vão

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

definindo os rumos da relação das pessoas entre si e destas, com o ambiente. Daí a
abordagem do ambiente, da ecologia numa perspectiva planetária, onde todos somos
responsáveis pela produção da vida no planeta Terra, onde devemos buscar uma convivência
política, social, cultural, ambiental e eticamente sustentável para todas as pessoas e essa
mudança começa no chão onde estamos pisando.

História e Identidade
O que é identidade? O que nos identifica como brasileiros? Como nordestinos? E ainda como
povo habitante do Semi-Árido, do polígono das secas?Essa identificação está muito vinculada
ao que chamamos de rotulação, moldura identitária que nos prende a determinados tipos de
estereótipos. Poderíamos buscar essa reflexão por duas vertentes bem diferenciadas, que
nos trazem inquietações sobre a nossa formação enquanto pessoas: o que influencia e como
influencia essa construção dinâmica do nosso modo de ser, de estar no mundo em que
vivemos?
Primeiro, vivemos uma era de globalização onde se busca, o tempo todo, a partir dos valores
importados do mercado, um processo de homogeneização da cultura. É incentivado a cada
instante que as pessoas dancem, vistam-se, pensem, comam, gostem das mesmas coisas e aí
acaba acontecendo um processo de massificação, onde as pessoas passam a fazer, falar,
pensar as coisas só porque o “mundo” está fazendo, não por uma necessidade de
compreensão e construção do seu espaço e de sua própria história.
Por outro lado, tenta-se também enquadrar as pessoas e as diferentes culturas em modelos
estereotipados, produzindo uma espécie de culturas exóticas, onde, por exemplo, podemos
destacar aqui os sertanejos, coitadinhos nordestinos, os meninos e meninas de periferia, o
mocinho e a mocinha da cidade e do mato. E colado a esses estereótipos, vêm junto
preconceitos de quem são e o que fazem, de forma generalizada. E o que é pior, nesse
processo de globalização, a produção do exótico é uma intenção do mercado, há interesse
econômico de comercialização daquilo que é “diferente”. A globalização acelera e aprofunda a
produção de mercadorias, onde o mais importante é o valor de troca que as coisas e as
próprias pessoas possuem, criando necessidades de acordo com os interesses econômicos.
Pensar a nossa história, a nossa identidade é pensar sobre essas questões que implicam
também a formação da nossa subjetividade.
“Certamente o indivíduo se constrói no social, mas ele se constrói ao
longo de sua história, como singular. O indivíduo não é nem a simples
encarnação de um grupo social, nem a resultante das influências de
seu ambiente, ele é singular, quer dizer, síntese humana original
construída em sua história”. (Bernard Charlot).
O povo que habita o Semi-Árido foi constituído num processo de miscigenação de grupos
étnicos diferenciados, que foram se fazendo presentes nesse espaço, cada um com sua
trajetória histórica. Os povos que aqui habitavam tinham uma relação de convivência com os
aspectos que constituíam essa realidade (existem estudos que dizem: há mais de 10 mil anos),
desde uma caracterização geográfica bastante diferenciada (vegetação alta e verde, clima
úmido e com animais gigantes), até a uma caracterização mais próxima do que é o semi-árido
hoje. Essas pessoas passaram por transformações ocorridas no espaço geográfico onde
habitavam, que exigiram mudanças de hábitos e costumes.
O sentimento de pertencimento a um lugar, a uma cultura significa conhecer e viver sua própria
história, sua própria cultura. Embora que viver em um lugar não signifique necessariamente
estar fechado nele, mesmo porque, numa compreensão mais ampla, somos formados pelo que
é local como também pelo que é universal, global. Se analisamos a construção da nossa
história, enquanto povo, poderemos perceber, mais claramente, esse processo de formação
híbrida que ocorreu na América.
A cultura dos primeiros habitantes deste espaço foi brutalmente dizimada, ao passo que uma
cultura dominante se instalava, sem considerar, muitas vezes, as particularidades de um
contexto climático, geográfico encontrado. Os africanos, por outro lado, foram trazidos para cá
num processo desumano, onde antes de serem deportados (há históricos que afirmam) teriam
que dar uma volta em torno de uma árvore (a do esquecimento), simbolizando o esquecimento

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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

de sua história, de sua cultura, de sua terra, para que assim pudessem chegar aqui bem
humorados e não constranger com energias negativas os seus senhores.
Com a colonização, diferentes elementos foram acrescentados, bem como outros, foram
brutalmente retirados. Os habitantes que aqui já existiam (os índios) foram retirados da
convivência com o seu ambiente para serem escravizados e nesse processo de luta, para
garantir sua identidade enquanto povo, milhares foram mortos.
“Estes povos, provavelmente já haviam desenvolvido formas
adequadas de manejar a natureza, diante das particularidades
climáticas. Mas destas tribos, grupos ou nações, sobraram apenas
múltiplas frações misturadas a outras tantas frações de outras raças,
etnias, grupos, nações, etc., que compõem as feições dos vaqueiros
que vieram povoar a região, a partir dos currais de Garcia D’Ávila (Cf.
Gonçalves, 1997: 13-34)” (Martins e Silva,2001).
Nesse espaço também foi acrescida a cultura africana, onde pessoas (ou melhor, nem eram
consideradas como gente) desse continente foram trazidas para serem escravizadas,
exploradas. É em meio a essa mistura de etnias, bem como a um processo desumano, que o
Brasil e, conseqüentemente, o Semi-Árido, é povoado. E o Brasil, o Semi-Árido passam a ser
habitados a partir dessas histórias, das histórias das pessoas, que inclusive não aceitaram tudo
de maneira passiva, pois diversas formas de resistência e de luta foram vivenciadas ao longo
desse processo.
É nesse contexto que fomos constituídos enquanto povo, diante de uma “combinação”
diferenciada, de uma diversidade de culturas, produzidas, inclusive, em outros espaços, que
chegam aqui, se relacionam com o ambiente natural e cultural, vão se re-significando e se
constituindo em aspectos e pessoas muito particulares. É o resultado dinâmico do processo de
hibridismo, onde diferentes tradições culturais vão produzindo novas formas de cultura. É
importante acrescentar que o hibridismo é uma riqueza cultural, pelo entrelaçamento de hábitos
e de criações diferentes. Não há culturas sem misturas, sem trocas, sobretudo depois que
houve intensificação dos contactos entre os povos.
Basicamente, as três etnias que nos formaram enquanto pessoas foram os indígenas, africanos
e europeus. Hoje, nosso povo vem se constituindo com a presença, também, de outros povos,
bem como de seus elementos culturais.
Em História poderá se fazer um estudo sobre as relações de poder que se dão na sociedade e
suas implicações, o convívio social na família, escola, trabalho, que relações são construídas a
partir destes coletivos, problematizar o conceito de trabalho enquanto princípio de formação
humana, seus processos de relações, a importância que cada tipo de trabalho representa para
a sociedade, enfim, toda a sua dimensão cultural. Possibilitará ainda fazer uma reflexão sobre
o papel das pessoas na construção de uma sociedade mais solidária, discutindo os direitos e
deveres do cidadão e da cidadã como pessoas construtoras de um mundo e não no conceito
de cidadania a partir dos valores do mercado que valemos apenas pelo que significamos em
termos de custo. Pensar ainda quais políticas estão sendo articuladas, no sentido de assegurar
uma vida digna para as crianças e adolescentes, refletir sobre o papel da mídia e dos meios de
comunicação enquanto instrumentos de poder de formação de opinião e que influência estes
instrumentos trazem para formação das pessoas, ainda pensar os fatores que favorecem ou
desfavorecem o acesso a essa comunicação, como, e até que ponto, as pessoas têm acesso a
esses mecanismos. Poderá ser realizado também um estudo sobre as organizações sociais
(Sindicatos, Associações, Igreja) e o seu papel enquanto articuladores dentro da sociedade.
Pode-se discutir o processo histórico da comunicação e sua influência na vida das pessoas e
das comunidades, analisando de que forma as pessoas se apropriavam e se apropriam hoje
dos veículos de comunicação, rádio, televisão, computador, carta, telefone, telegrama, outros,
bem como a intervenção de cada um ao longo da história destas comunidades. “... As
dificuldades de transporte, os carros de boi é que iam para Bonfim era muito pouco, não
era todo mundo que possuía, era aquele seu fulano que tinha boi. O povo ia com estas
cangas buscar o carregadio no lugar que tinha uma lavrazinha, então tudo era assim
Quem tinha condições ia buscar o comestível para dentro de casa. Cansei de sair daqui
para Bonfim, dormir no caminho, acendia um foguinho, peava o jegue, e deitava embaixo
de um umbuzeiro. Tinha um rádio que chegou por aqui em 1950. Ás vezes para falar pra

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

São Paulo era preciso o telegrama. Tinha também o telégrafo, a gente ia para Barrinha(
povoado do município de Juazeiro-Ba) para falar, era um fio que passava na linha de
ferro, depois pegou a chegar outras coisas, o telefone, essa parte ai eu achei boa. Antes
rolava dias para receber notícias’’.(Sr.Bernardino, Mundo Novo – Curaçá – BA).
É importante a contextualização histórica da cultura e da arte, permitindo que os/as
educandos/as, a partir dessa noção mais ampla, possam construir seus próprios conceitos,
interagindo o conhecimento teórico com a prática local. A disciplina poderá realizar um
diagnóstico de realidade na comunidade sobre as manifestações artístico-culturais, valores e
origens das diversas expressões para então traçar uma análise comparativa, via construção da
linha do tempo, o que possibilitará um encontro das pessoas com a história local e geral. Esse
diagnóstico será base para as demais áreas do conhecimento.
Estará também abrindo possibilidades de estudar a história e saga dos primeiros habitantes, a
história do povo africano, de como chegaram aqui, bem como estudar o processo de
escravização e dominação de povos sobre outros. Conhecer também como se constituíram os
vaqueiros, nossos ancestrais mais próximos, e como o Semi-Árido foi povoado. Nesta
perspectiva, perceber a importância de muitas histórias que foram omitidas, esquecidas, como
a de Canudos na Bahia, onde Antonio Conselheiro liderou um processo de construção histórica
de uma comunidade alternativa à implantação da República no Brasil. Conhecer também a
participação, a de Antonio Virgulino Ferreira (Lampião) e suas andanças pelo sertão nordestino
entre outras. Tudo isso é importante para conhecimento de todo o processo de formação do
povo e é interessante que possamos fazer isso a partir da nossa própria história, da história de
cada um, desenhando a árvore genealógica e através de pesquisas, compor o nosso próprio
cenário de formação.
A Língua Portuguesa poderá contribuir para o entendimento do processo de comunicação ao
longo da história, tanto da modalidade falada quanto da modalidade escrita da língua, incluindo
aí a criação do nosso alfabeto, a invenção da escrita, enfim, os meios de comunicação
utilizados pelas pessoas nesse processo, sua função social e contribuições para a história da
humanidade. O estudo da língua possibilitará também o desenvolvimento da oralidade e isso
facilitará o processo de aquisição e apropriação da leitura e da escrita. Um estudo dos falares e
linguagens praticadas na comunidade ajudará na montagem de um cenário lingüístico local,
regional, reconhecendo também as influências externas. A partir da pesquisa, a construção da
história daquele lugar, na qual estarão envolvidas todas as disciplinas, trabalhando com os
contos e causos populares, literatura, histórias contadas pelas pessoas, lendas, festas,
brincadeiras, modos culturais e artísticos, tipos e gêneros textuais, seus usos sociais e a
construção do dicionário cultural da localidade. É importante constituir metodologicamente um
diálogo com a diversidade lingüística, apropriando-se das diferentes formas de expressões, o
coloquial, o formal, reconhecendo que, para isso, faz-se necessário conhecer e utilizar as
normas gramaticais e ortográficas, favorecendo dessa maneira o processo de letramento na
perspectiva dos usos sociais da língua, do respeito às diversidades e do desenvolvimento da
competência e da melhoria do desempenho lingüístico dos alunos.
Na área de Matemática, o processo de apropriação dos conhecimentos matemáticos pela
humanidade, como surge, atendendo a que necessidade, a compreensão através do mapa
cultural e aproveitando da linha do tempo, poderá fazer um estudo das épocas, onde arte e
cultura interferiram nos rumos históricos. Pode-se realizar um estudo sobre as noções de
tempo e espaço, utilização de pesos e medidas (tempo, distância, massa, capacidade) ao
longo da história, possibilitando uma compreensão dos tempos/espaços históricos. Realizar o
estudo sobre os conceitos, as construções de noções numéricas, num sentido representativo
simbólico e sua significação em termos de quantidade, contextualizando esses valores
numéricos, para que a criança possa trabalhar com o que tem significado para ela, possa
perceber o espaço através dos conhecimentos matemáticos. O trabalho realizado, por
exemplo, através de pesquisas possibilita quantificar, tabular dados e índices estatísticos,
representá-los com gráficos, conhecer a extensão territorial, a população de pessoas, animais,
plantas de uma localidade, o grau de escolaridade das pessoas, quais ocupações de trabalho
das pessoas, qual a renda e quais são geralmente suas despesas. Poderá contribuir também
para que as pessoas compreendam todo esse universo da produção e comercialização,
fazendo cálculos do que se produzem, investimentos, custos, prejuízos, lucros, quantidade
beneficiada e comercializada, de que forma isso pode ser revertido em benefício, renda para a
família, planejamento, através de planilhas e gráficos, contabilidades.

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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

O campo das artes poderá fazer uma reflexão sobre os programas de rádio e televisão,
equipamentos eletrônicos e programas de entretenimento, analisando a qualidade dos
mesmos, fazendo uma releitura do seu papel enquanto formadores de opinião. Pensar ainda
sobre a contribuição da arte na formação das pessoas, visualizando os princípios éticos e
estéticos que perpassam o fazer cotidiano, compreendendo a produção artística como meio
importante na constituição de outros processos nesse fazer.
A arte aparece como disciplina de expressão, contextualizando com o lúdico e a sensibilidade
das pessoas. Ela favorecerá um olhar sensível aos resultados do diagnóstico cultural, além de
trabalhar a produção de obras de arte (cênica, literária, música, dança, teatro, artes plásticas,
artesanato, etc) da cultura local, enfatizando a importância da arte como elemento cultural e a
cultura como elemento artístico, ambas como exercício de lazer. Pesquisar a história de cada
expressão artística no SAB e as interferêcias de outras manifestações de arte de outros
lugares. Num diálogo aproximado e constante com a língua portuguesa e com outras áreas do
conhecimento estará re-significando todo o acervo oral e escrito da cultura popular,
considerando aí as lendas, mitos, contos, brincadeiras, festas, crenças, superstições,
adivinhações, etc, compreendendo as influências dessas expressões culturais nas produções
artísticas locais, percebendo o lugar da arte na comunidade.

A área de Ciências dá uma contribuição no estudo dos tipos de plantas, como funcionam, quais
os mecanismos de adaptação ao clima, seu ciclo de vida, a água , qual sua composição,
origem e ciclo, qual a contribuição no ciclo de vida dos seres vivos e como os seres humanos
se apropriam e se beneficiam desses recursos, realizando assim um estudo da paisagem
natural do SAB, as plantas nativas e trazidas de outros lugares, bem como a sua importância
na viabilidade da produção e beneficiamento, o valor nutritivo destes produtos, os cuidados
com a saúde, o uso de agrotóxicos, a água no processo da produção, formas de utilização da
mesma. É importante, também, realizar um estudo sobre o corpo humano, a construção da
relações sociais com o corpo, na afetividade e sexualidade, como se estabeleceu ao longo da
história as relações de gênero, como as características naturais do sexo vão definindo o papel
do homem e da mulher e de que forma poderemos refletir essas verdades. Ainda em ciências,
abrir espaço para compreender as diferentes formas da composição física e psíquica do ser
humano, seja na diferença entre mulher e homem, na diferença a partir das características
étnicas, culturais, religiosas, bem como nas diferenças advindas da ausência de funções dos
órgãos dos sentidos ou falta de partes físicas do corpo, além do funcionamento mental.
É interessante também que tenhamos um conhecimento das posturas e condições dos hábitos
e costumes higiênicos e de como estes intervêm na promoção da saúde das pessoas e dentro
dessa perspectiva, pesquisar as doenças presentes neste contexto e quais as formas de
prevenção e tratamento. Perceber quais os avanços tecnológicos, quais as formas de acesso e
quais as influências na vida das pessoas, pensando de que forma estão lidando com esse
universo e que novas atitudes estão sendo incorporadas a partir disso. Refletir também sobre
as influências em nível de saúde cidadã, condições e qualidade de vida nas comunidades, as
indústrias farmacêuticas, os remédios, a produção natural, as pesquisas no campo da ciência,
os mitos e verdades, descobertas e entraves. Ciências poderá explorar também os saberes
populares e os elementos do meio que fazem parte das culturas identificadas no diagnóstico,
observando o desenvolvimento cultural, abrindo uma discussão sobre os mitos e verdades que
permeiam a cultura da alimentação, bem como trabalhar o meio como elemento fundamental
na produção artística.
A geografia poderá estudar o movimento migratório das pessoas de uma região para outra, de
um país para outro e de perceber as causas e conseqüências desse movimento, desde a saída
por procura de melhores condições de vida, até à imposição de situação por motivos de
projetos, como os de construções de barragens e usinas hidrelétricas, analisando aí de que
forma esse processo vai se constituindo e ou contribuindo para a formação da população do
Semi-Árido Brasileiro. Poderá ser feita ainda uma abordagem sobre trabalho e ecologia, que
implicações surgem nesse processo, pensando a qualidade de vida, a preservação do meio
ambiente, buscando compreender as formas de produção, a exemplo da agricultura, pecuária,
apicultura, piscicultura, de que forma estão sendo praticadas, quais as tecnologias implantadas
para viabilizar esta produção e os seus impactos. Estudar também de que forma os produtos
cultivados no SAB são beneficiados e comercializados, como é feito o escoamento dessa

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

produção, qual a infraestrutura, estradas, rodovias e ferrovias, a cadeia produtiva, a geração de


emprego e renda e discutir, sobretudo, as possibilidades que estas potencialidades podem
trazer no campo da criação e valorização do trabalho como princípio de formação humana.
De forma geral, e numa perspectiva trans e interdisciplinar, as áreas do conhecimento estarão
movimentando os saberes a partir das temáticas e subtemáticas, possibilitando um estudo
integrado dos conteúdos. Para intruduzirmos este estudo, é preciso compreendermos, antes,
que somos uma sociedade multiétnica, constituída historicamente a partir de uma imensa
diversidade cultural.
O primeiro passo para poder trabalhar inter ou trans-disciplinarmente os conteúdos da sub-
temática é reconhecer essa milti-diversa cultura, que se constrói, também, a partir das
diferenças e diversidades individuais e coletivas de cada nação. Assim, possibilitar que os
conteúdos “atravessem” as crianças e sejam “atravessadas” por elas, exige entender a
singularidade e a originalidade de linguagens, valores, símbolos e estilos diferentes de
comportamento que são tecidos pelas pessoas em seu contexto histórico e enxergando que
nenhuma cultura deve ser vista como melhor ou pior, mais rica ou mais pobre, uma vez que,
cada uma faz sentido em si mesma e pode ser enriquecida ou transformada na relação com
outras culturas.
È importante ressaltar que se pensa num movimento entrelaçado entre as diversas áreas de
conhecimento e quando do destrinchamento das temáticas, estas estarão a todo momento indo
e vindo e produzindo outros entrelaçares, a partir de cada ponto de encontro... é uma relação
rizomática! Cada disciplina com sua especificidade e interligadas, no entanto, pelo tema a ser
estudado e pesquisado.

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79
Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

O lugar da arte no espaço cotidiano da convivência com o Semi-Árido.

Vanderléa Andrade Pereira¹16

De pinceladas o mundo tosco e torno recupera um arco-íris enquanto o sol se põe,


põe os olhos no que há de mais mágico no SerTão, pois não há ó gente luar, nem
sol, nem gente como essa do sertão....E enquanto os nossos olhos encarnam a beleza
árida do nosso solo bradamos: “antes arte do que tarde!

Em que tempo olhamos interiormente para o nosso lugar.Esse pedaço de chão chamado Semi-
Árido? E quando olhamos, o que esse olhar nos revela? Enxergamos o belo no nosso cotidiano
para além de um óleo sobre tela? A arte pode ser uma janela por onde olhemos e nos vemos
outros, a janela que nos permite sonhar com a humanidade e, apesar das adversidades,
desejar o céu, o paraíso, o eldorado, o nirvana, a terra sem males, a utopia.
A busca do belo, isto é, a sintonia de certos e diversos elementos destinados a despertar o
prazer dos sentidos, surgiu com o próprio homem/mulher.De algum modo todos os
agrupamentos, por mais rudimentares que sejam seus meios intelectuais e técnicos, têm
procurado de uma forma ou de outra satisfazer essa necessidade do belo, nota-se desde as
primeiras manifestações artísticas identificadas no nosso processo histórico. E hoje
enfrentamos, no cotidiano, uma verdadeira epopéia do sentir e da pulsão de ter que ler com o
olhar, visto que o nosso imaginário é massacrado através de contínuas colonizações visuais e
sonoras. O cinza, que para o mundo, é a cor do Semi-Árido, está também no nosso modo de
conceber e construir as coisas, no modo como disseminamos os nossos conceitos e
preconceitos, na negação da nossa capacidade de sentir e permitir-se criadores e criativos, de
nos enxergarmos e enxergar o outro pelas frestas das possíveis possibilidades de sempre
poder olhar.
A reflexão que fazemos sobre o lugar da arte na nossa convivência, nos direciona para a
importância da educação do olhar.A educação do olhar torna-se, dentro da discussão de
convivência com o Semi-Árido, uma forma de humanização e de cultivo, o que demanda
compatibilizar imagens do cotidiano e sensibilidade estética sobre a arte e a cultura do Semi-
Árido. Mas demanda acima de tudo, a recuperação da arte do fazer, do refletir e do intervir,
pois no atual contexto, em que discutimos e vivemos o Semi-Árido, tudo que é visível é
potencialmente político, o que exige, como contraparte, uma ética e uma ecologia da
visibilidade. Essa ética sempre implicará em olhar, escolher, discriminar, apropriar-se e reeditar
imagens e formas do cotidiano que se ajustem à configuração estética de cada pessoa, à
estética social dentro de uma perspectiva de conhecimento artístico-coletivo da realidade que
se movimenta no tempo/espaço onde vivemos e convivemos.

A arte é modo de fazer, práticas, também de convivência, que revelam modos de pensar e
sentir indissociáveis de modos de usar.É importante ressaltarmos que nas interações
cotidianas, as artes, nas suas diversas linguagens – artes cênicas, artes plásticas, literatura,
artes gráficas, cinematográficas, música, estão ligadas à sobrevivência, a processos de
significação e simbolização, confrontos com os poderes dominantes, desenvolvimento das
capacidades sensível-sociais, formas de convivência e experiências de fruição e prazer.
Considerar a arte, assim como a cultura, como elemento contribuidor de desenvolvimento
sustentável ambiental e humano é, principalmente, olhar e discutir o cotidiano da convivência
nos diversos semi-áridos existentes no Semi-Árido Brasileiro- SAB, considerando também que
neste universo diverso confrontam e comungam os diferentes “tipos’ de nós, que povoam entre
rural, urbano, rios, secos, prédios, roças, favelas, que falam tantos linguajares, que se
diferenciam geográfica-social e culturalmente nos seus diversos modos de comer, vestir,
cantar, sofrer, contar, festejar, sonhar e querer, que constroem, destroem e reconstroem
processos identitários na sua nordestinidade e brasilidade.

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Pedagoga, Arte-Educadora, Especialista em Educação de Jovens e Adultos, Mestre em
Educação, Professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF, em Juazeiro – BA.
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REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

Vale ressaltar também que a percepção de si mesmo dentro do agir no cotidiano, é um aspecto
relevante que distingue a criatividade humana, movida pelas necessidades concretas sempre
novas. O potencial criador do homem e da mulher surge na história como um fator de
realização e constante transformação. Ele afeta o mundo físico, a própria condição humana e
os contextos sócio-culturais existentes em cada lugar. Daí a importância de fomentarmos,
enquanto movimento de discussão de uma educação para convivência, as possibilidades
criadoras e criativas que busquem capacidades de deixarmos enraizar no outro e o outro em
nós, sem destruí-lo ou destruir-nos e, principalmente, a capacidade de desenraizar e
reenraizar sempre que preciso for.
O fazer, os saberes, os símbolos e a interação dos indivíduos é que produzem cultura e essas
interações “moldam” a estrutura material e dão um estilo à história, aos acontecimentos, aos
fatos, aos modos de relação do homem e da mulher com o meio ambiente, ao encontramento
dos seres nos seus espaços locais e globais, nos seus contextos individuais e coletivos. Assim
a arte e os diversos elementos artísticos estão, e precisam ser reconhecidos, nos espaços de
convivência como elementos de tessitura, os nós que ligam os fios da teia sócio-cultural
constituída no SAB.
A arte é uma destas coisas que, como o ar, a terra, está ao nosso redor, em toda parte, em
tudo que fazemos para agradar nossos sentidos, mas que raramente nos detemos a
considerar. No entanto, enfatizamos, que a percepção da existência da arte está
intrinsecamente atrelada ao conhecimento o que nos remete agora um olhar para a educação,
principalmente, para os espaços de aprendizagens.Para se intervir, pragmaticamente, nesses
espaços faz-se necessário refletir: 1- Em que contexto esta arte está presente nos lugares de
convivência: família, escola, trabalho, comunidade, estado, País; 2- o que temos, enquanto
educadores e educadoras, Poder Público, Ong’s, instituições financiadoras, oferecido à nossas
crianças e jovens em termos de acesso aos bens artísticos; 3- o que de arte discutimos quando
bradamos a necessidade de uma educação contextualizada; 4- a que plano relegamos a arte
nos nossos currículos e experiências diferenciadas; 5- até que ponto o humano é considerado
na luta por um desenvolvimento sustentável; 6- com que possibilidades sensíveis-criadoras
estamos nos formando e “formando” os futuros e futuras educadores e educadoras; 7- até que
ponto a arte é tratada como área de conhecimento e não como entretenimento e passa-tempo.
A proposição de discutir, dentro desse movimento rizomático, o lugar da arte nos espaços
físicos e ideológicos de aprendizagens, é garantir que o foco da educação para a convivência
com o SAB esteja também preocupada com a construção de pessoas sensíveis-pensantes e
que a lógica do conviver melhor neste espaço não se restrinja ao campo físico, mas se amplie
para o universo humano. É preciso que nessa relação de convivência se garanta também o
lugar das crianças, dos/as jovens, dos negros e negras, dos índios e índias, dos/as
homossexuais, dos/as portadores/as de necessidades especiais, dos homens e mulheres
diferentes e diferenciados, o lugar das lutas sociais e dos movimentos de classes, dos que
acreditam e desacreditam num SAB viável, considerando o saber cuidar de cada um e uma que
aqui neste chão Semi-Árido constrói, de diferentes modos, a nossa história.
A arte pode estar presente na nossa relação cotidiana, mas, para que ela traduza valores
humanos, precisa contextualizar-se na ação das pessoas, tornar-se mediadora entre os seus
imaginários e o imaginário social, como algo inserido nas suas culturas e nas suas vidas. Aqui
entra o papel fundamental dos processos educativos, pois, diante da vasta oferta de “porcarias”
performáticas e espetaculares na sociedade, a escola encontra-se em desvantagem, visto que,
na maioria das vezes, a comunicação visual, corporal e a retórica dos/as educadores não
convencem. O mundo das escolas é um mundo cinza, parado, passivo, enquadrado. As
imagens, na escola, são manipuladas como se fossem neutras e inofensivas, além de serem
mal aproveitadas em termos de possibilidades educativas. Os ambientes escolares
desconhecem que o mundo em torno delas, tem movimento e vida, e arte. Há, pois uma
necessidade da recolocação do campo epistemológico da arte articulado e contextualizado
com toda a construção humana presente no semi-Árido Brasileiro. A urgência e luta de fazer do
SAB um lugar verde, deve ser a mesma de fazê-lo amarelo, vermelho, abóbora, rosa choque,
lilás, azul, violeta, salmon, grafite...um caleidoscópio!
Na discussão e reflexão sobre o lugar da arte e das pessoas nesse contexto de constantes
aprendizagens e diversas formas de convivências é preciso assegurar quatro processos
básicos que devem estar além das discussões intelectuais e teórica mas sim, lançadas para as

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Educação para a Convivência como Semiárido:
Reflexões Teórico-Práticas

práticas contextualizadas: 1- Pensar arte, como processo de constante reflexão e observação


dos motivos e coisas que são belas e as que podem tornarem-se belas e esteticamente
saudáveis; 2- Saber arte, sentir com conhecimento, apreciação e argumento, satisfação dos
porquês e busca de outros, compreensão e contextualização, e descoberta das possibilidades
humanas; 3-Fazer arte, produzir, criar sentidos, sem a responsabilidade de ser artista, mas sim,
de tornar-se sensível e permitir-se no processo de criação; 4- Crescer com arte, constante
desenvolvimento ético-sensível e estético no que há de mais completo na construção humana
e na “constituição” identitária dos nossos “eus”.
Assim nos espaços educativos e nas práticas da arte no processo cotidiano da convivência
devemos respeitar e legitimar quatro importantes focos:
AS PESSOAS: reconhece-las como seres conscientes-sensíveis-culturais, que atravessam e
são atravessadas pela sua história e pela história dos que a cercam, capazes de sentir, criar,
articular e expressarem seus próprios modos de significar e dizer as coisas. No momento em
que limitamos a expressividade das pessoas aos exercícios condicionados que de alguma
forma induza a reprodução do que já existe sem nenhuma reflexão do fazer, barbarizamos o fio
criador. Este mesmo fio que permite que as pessoas transportem o seu mundo para a sua
linguagem e reedite a forma de expressa-lo. É este equívoco que contribui para o
condicionamento dos homens/mulheres a uma ordem superior ou a uma eterna dependência
do outro.

Os espaços de aprendizagens por si só devem remeter as pessoas ao seu próprio


reconhecimento, um espaço que lhes reflitam e que as façam refletir por ele.
A SUBJETIVIDADE: elemento importante do desenvolvimento humano. A construção da
subjetividade depende de um reconhecimento da produção imaginária das pessoas, como elas
reconhecem e atribuem sentidos e significados às coisas do mundo, como elas processam
suas escolhas e seus comportamentos diante do que está proposto ou que elas mesmas
propõem. É a valorização do processo interno de cada um e uma para que este se exteriorize e
se coletivize no ambiente de aprendizagem. Pois é preciso reconhecer o ser no meio. O ser
que pelo desejo cria outros meios dentro de si e outros sis dentro do meio.
OS SABERES: considerar que a escola não é o único lugar onde as pessoas têm acesso ao
conhecimento. A relação familiar, com o ambiente externo, com a natureza, com o imaginário
também é propiciadora desses conhecimentos que se processam nos saberes que cada um e
uma legitima como seus. Respeitar os saberes que as pessoas “semiaridenses” adquirem nas
suas diversas relações de vivência e convivência, considerando-as como seres sociais e
sociáveis, é começar a colocar a educação como espaço de socialização e contextualização
desses saberes com outros diversos saberes que se constroem também além dos currículos,
cartilhas e entre quatro paredes.
O PROCESSO CRIATIVO: neste último foco está a revelação dos três anteriores. A educação
para convivência, como base para os outros processos educativos das pessoas que habitam o
SAB, deve reconhecer e favorecer o espaço e a liberdade de criação, como também legitimar
as pessoas como seres criadores, capazes de dar forma, criar algo novo sempre e reeditar o
que lhe é direcionado nos ambientes de suas relações. O homem e a mulher são criadores e
criativos por natureza, a presença da arte nesses processos de criação é uma discussão que
nos renderá ainda muita fiação de tecidos, principalmente para nós que teimamos contra o
inerte, o insípido, o inodoro, o incolor. Para nós que queremos pintar o nosso próprio arco-íris e
religar o tecido social que há muito tem sido danificado por ações bárbaras de quem não
acredita nos indivíduos e na coletividade que formam a geografia física e humana do Semi-
Árido Brasileiro.
A arte como forma de conhecimento é também forma de encantamento e encontramento do ser
consigo, com os outros e com seus arredores. Reconhecer a arte na relação de convivência
requer um pensar num todo, o espaço escolar, o espaço imaginário, o espaço social, cultural,
ambiental e principalmente humano. Reiteramos aqui a afirmação de que, através de uma
educação estética, ética e politicamente contextualizada, que vincule elementos artísticos e
extra-artísticos da realidade, que se enriquece com contribuições de outros campos do
conhecimento, poderemos ter a segurança de uma relação de convivência mais viável ,
“racional” e sensível entre os povos e o meio.

82
REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO RESAB

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