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SILVA, Adelaide Pereira; MENEZES, Ana Célia Silva; REIS, Edmerson dos Santos.
Educação para a convivência com o Semiárido: desafios e possibilidades de um novo fazer.
In: ROCHA, Maria Izabel Antunes (Org.). Territórios educativos na educação do
campo: escola, comunidade e movimentos sociais. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2012.
Introdução
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Professora Aposentada da Universidade Federal de Campina Grande, Mestre em Sociologia Rural, Membro
do Conselho da Rede de Educação do Semiárido Brasileiro ( RESAB ) e da Comissão Nacional de Educação
do Campo. e-mail: ade_cpt@yahoo.com.br .
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Mestranda em Educação pela Universidade Federal da Paraíba, Membro do Conselho da Rede de Educação
do Semiárido Brasileiro (RESAB0e do Fórum Nacional de Educação do Campo. e-mail:
acsmenez@yahoo.com.br .
3
Professor do Departamento de Ciências Humanas – Campus III da Universidade do Estado da Bahia,
Pedagogo, Mestre em Educação, Especialista em Desenvolvimento Local, Doutor em Educação pela
Universidade Federal da Bahia – UFBA, Membro da Coordenação Executiva da Rede de Educação do
Semiárido Brasileiro (RESAB) e do Fórum Nacional de Educação do Campo - FONEC. e-mail:
edmerson@oi.com.br
A Educação para a Convivência com o Semiárido manifesta-se em contraposição a
todo processo educacional e práticas educativas que, salvo as exceções, vêm acontecendo
nesta região, se pautando em um currículo colonialista/descontextualizado e em modelos
de gestão autoritária que desvalorizam os/as educadores/as através da precarização do
magistério; não investindo na formação dos profissionais da educação e nas condições
materiais de trabalho que são fundamentais na arte de educar. Portanto, descolonizar o
currículo e contextualizá-lo nas questões reais do mundo em que a escola está inserida e
nas questões presentes na contemporaneidade parece ser um dos caminhos a serem
trilhados pela ECSA na construção de uma educação escolar que tenha sentido e
significado na vida das pessoas.
Muitas são as experiências que se pautam pelos princípios da contextualização dos
processos educativos nas especificidades do Semiárido (Escola Rural de Ouricuri -
ERO/Caatinga, Movimento de Organização Comunitária – MOC, Escola Rural de
Massaroca – ERUM, Serviço de Tecnologia Alternativa – SERTA, Escolas Família
Agrícola – EFA, entre outras).
Porém, a compreensão de ECSA foi uma construção/proposição do Instituto
Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA). Este assumiu a defesa da
educação escolar na perspectiva da convivência com o Semiárido propondo uma nova
concepção de educação trazendo a expertise acumulada nas práticas de educação popular
desenvolvidas na escola de lavradores/as e agentes e inserindo esses saberes no currículo
escolar. Dessa iniciativa surgiu o que hoje se compreende por Educação para a
Convivência com o Semiárido4 que, a partir de 1997, passa a ser mais uma importante
bandeira de luta daquela instituição na semeadura de outro projeto de desenvolvimento
integrado, sustentável e apropriado à região. É essa também a gênese da Rede de Educação
do Semiárido Brasileiro (RESAB).
Dizemos que essa é uma proposta insurgente, pois ela é um compromisso com a
possibilidade de uma educação escolar que se propõe pública, gratuita, de qualidade e
socialmente referenciada, alicerce do desenvolvimento humano, social, econômico,
cultural e político do Semiárido. A educação para a convivência com o Semiárido se opõe
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Vale lembrar e ressaltar, que o conceito passa a ser construído e fundamentado coletivamente por diversas
instituições que já desenvolviam práticas educativas contextualizadas, onde foram fundamentais para a
consolidação do conceito, os seguintes momentos: o processo de construção da proposta pedagógica do
Município de Curaçá – BA; O simpósio de Educação e Convivência com a Seca, realizado em Juazeiro –
Bahia em 1998; e o I Encontro Regional de Educação no Contexto do Semiárido Brasileiro, também
realizado em Juazeiro com o apoio da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) através do Departamento de
Ciências Humanas – Campus III, que contou com a participação de Educadores/as de todo o Semiárido
Brasileiro.
a qualquer forma de educação que negue o contexto do Semiárido, ignorando ou
secundarizando as inúmeras possibilidades que essa região comporta e os saberes aí
construídos. Dessa forma, essa proposta preconiza uma educação que contemple as
especificidades e as potencialidades da região, tanto as naturais como as culturais e,
especialmente, as diferentes formas de enfrentamento dos problemas gerados pelas
condições climáticas que são peculiares nessa região - as estratégias de convivência com o
Semiárido -, materializadas nas mais diferentes tecnologias sociais que vêm sendo
construídas no cotidiano dos sujeitos que vivem nesse lugar. Toda essa riqueza ignorada
pela escola deve ser transformada em objeto de estudo mediante a pesquisa e a
problematização.
É desse espaço que tratamos neste trabalho destacando os desafios e possibilidades
de se construir outro projeto de desenvolvimento onde a educação deva exercer um papel
significativo na formação dos sujeitos, na perspectiva da transformação. Ao referirmo-nos
à educação contextualizada, estamos fazendo alusão à educação baseada nos princípios da
Convivência com o Semiárido e ao mesmo tempo, aos princípios da Educação do Campo –
paradigma ainda em construção - considerando que a maioria dos municípios, nessa região,
apresenta características rurais.
Nesse sentido nos amparamos nos estudos do professor José Eli da Veiga (2002).
Para esse autor, se fôssemos classificar os municípios brasileiros, entre o que é rural e o
que é urbano a partir dos critérios defendidos pela Organização de Cooperação e de
Desenvolvimento Econômico (OCDE), teríamos que fazer uma nova demarcação, uma
nova compreensão do campo brasileiro, pois nesta nova perspectiva, apenas 411 dos 5.507
municípios brasileiros existentes no ano de 2000, possuiriam o estatuto de urbano. Ou seja,
a maioria desses municípios seria classificada como rural principalmente se for
considerada a principal atividade econômica. A classificação é feita por critérios adotados
pelo IBGE, herança do período Varguista. A distorção chega a tal ponto que mesmo
populações indígenas ou guardas-florestais de áreas de preservação são considerados
urbanos caso suas ocas ou palhoças estejam no interior do perímetro de alguma sede
municipal ou distrital (VEIGA, 2002, p.63-66).
Quando nos referimos ao contexto, estamos falando do Semiárido Brasileiro com
toda a sua diversidade, singularidade, complexidade, problemáticas e potencialidades, o
que implica considerar todas as especificidades, mas principalmente, todas as
possibilidades de se pensar e promover políticas públicas que, contemplando esse universo,
apontem para a convivência nesse espaço singular. Falamos aqui de uma iniciativa que
vem propondo outro jeito de fazer educação nesse lugar, somando esforços na construção
do projeto de desenvolvimento dessa região na esteira da contra-hegemonia com inúmeras
entidades que congregam a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA-BRASIL), que vêm
construindo o paradigma da convivência.
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Em 2005 mediante a portaria nº 89 do Ministério do Interior, foi instituída nova delimitação do Semiárido,
levando-se em consideração os seguintes critérios: I- precipitação pluviométrica média anual inferior a 800
milímetros; II. Índice de aridez de até 0,5 calculado pelo balanço hídrico que relaciona as precipitações e a
evapotranspiração potencial, no período entre 1961 e 1990 e III - risco de seca maior que 60%, tomando-se
por base o período entre 1970 e 1990. (Nova delimitação do Semiárido Brasileiro, 2005, p.3). Esses critérios
foram aplicados consistentemente a todos os municípios que pertencem à área da antiga SUDENE, inclusive
os municípios da região setentrional de Minas Gerais (85 municípios).
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Palestra proferida por ocasião do Seminário “O Semiárido na pauta das Universidades Públicas”.
Cajazeiras, 15 de março de 2007.
intuito de atender apenas aos seus projetos e interesses pessoais dando fundamento para a
criação desta região como foi difundida. Ensina que foi esse ranço da elite nordestina que
forjou a criação do Nordeste na contramão da história, suportado na ideia de calamidade
atribuída ao clima e, principalmente, à manifestação do fenômeno da seca.
O uso desse fator climático permitiu criar a ideia de calamidade pública até hoje
ainda está presente no imaginário social da população do Nordeste e do Brasil e que
fomentou a compreensão de Semiárido, apenas pela representação idealizada da fome e da
miséria quando muitos outros aspectos que identificam essa região, em outra perspectiva,
geralmente não são visualizados. A imprensa não mostra o Semiárido das possibilidades;
quando o noticia, fala exatamente das regiões do agreste onde as imagens de ossadas
focalizadas, especialmente nos períodos de grandes estiagens, não retratam o bode7, animal
resistente à vulnerabilidade do clima. Retratam o gado bovino que logo na primeira
escassez de chuva, se os criadores que não possuírem reservatórios ou outras fontes de
água, perdem-no.
É essa uma das construções humanas que precisa ser desconstruída, pois esse ranço
cultural reacionário contribui para a fabricação de identidade forjada, de “inclinação
despótica”. Uma visão que encortina o verdadeiro Semiárido com todas as suas
possibilidades, mas com as suas especificidades, quase sempre transformadas em
necessidades, todas as vezes que essas podem servir de garantia ao atendimento dos
interesses das elites. A imprensa nacional e muitos dos que escreveram sobre esta região
tomaram e ainda tomam, por parâmetro, apenas uma época do ano, ou a enxergando
apenas por um ângulo de visão: o Semiárido dos miseráveis, dos Jecas, dos emergenciais -
o submundo da miséria brasileira.
Mas essa imagem criada para favorecer a elite nordestina, em detrimento dos reais
interesses da maioria da população foi um dos elementos que moveram a sociedade civil
para envidar esforços na tentativa de romper com esse cenário de artificialidade,
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Animal que mesmo diante das intempéries do clima , está sobrevivendo, resistindo e segurando as famílias
no Semiárido há séculos.
caricaturado. Desconstruir essa caricatura da região e das pessoas que nela vivem, tem sido
uma luta de inúmeras instituições, organizações e articulações que atuam no Semiárido
Brasileiro como a ASA e tantas outras não, necessariamente, no âmbito da educação
escolar, bandeira assumida pela RESAB nos últimos dez anos. Ou seja, o Semiárido
Brasileiro é visto por uma caricatura criada a favor de projetos de alguns, e não do coletivo
de sujeitos que habitam esse pedaço tão importante da nação brasileira.
Quando nos debruçamos na leitura dos processos educativos (leia-se da educação
escolar) presentes nessa região ao longo da sua constituição histórica, nos deparamos com
outro processo de colonização que se efetiva pelo viés curricular. Os livros didáticos que
circularam e circulam nessa região quase sempre afirmam essa caricatura, onde o sujeito
que vive no Semiárido é visto como “matuto”, um “sujeito sem saber, sem cultura”.
Perpetua-se assim, a ideia da impossibilidade de solução dos problemas, produzindo nos
sujeitos, o sentimento de impotência na superação de si mesmo e das condições de
vulnerabilidade em que vivem. Essa visão é reafirmada, inclusive na maneira de se fazer
política nessa região, forjando o estereótipo do oprimido sem saída.
O que quero dizer é que uma mesma compreensão da prática educativa e uma
mesma metodologia de trabalho não operam necessariamente de forma idêntica
em contextos diferentes. A intervenção é histórica, é cultural, é política. É por
isso que insisto tanto em que as experiências não podem ser transplantadas, mas
reinventadas. Em outras palavras, devo descobrir, em função do meu
conhecimento tão rigoroso quanto possível da realidade, como aplicar de forma
diferente um mesmo princípio válido, do ponto de vista de minha opção política.
(FREIRE, 2001, p.28).
Negar a realidade local foi uma das vertentes da educação que sempre se fez nesse
país, uma educação pautada nos princípios europeus. Uma educação universalista que
precisava chegar a todos os lugares do mesmo jeito como se as pessoas fossem exatamente
as mesmas em todos os lugares e em qualquer época. Porém, no momento que estamos
vivendo não dá para pensar e defender um modelo de educação que se paute pela
formalidade abstrata em uma única perspectiva universalizante. A universalidade não
considera o contexto, a particularidade, não dialoga com os atores locais e com os seus
saberes, porque estes são considerados menores e não devem entrar na escola. A proposta
de ECSA navega na corrente contrária a essa universalização e anuncia a
interdisciplinaridade como princípio para construção de aprendizagens significativas.
Pensemos com Morin
Considerações finais
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. Recife:
FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 1999.
BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. in: Revista
Brasileira de Educação, Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19, São Paulo:ANPEd, 2002.
FREIRE, Paulo, Política e educação.– 5. ed. (Coleção Questões de Nossa Época ; v.23)-
São Paulo: Cortez, 2001.
_______. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez,
2000.
VEIGA, José Eli da.Ciades Imaginárias: o Brasil e menos urbano do que se calcula.
Campinas, SP. Autores Associados, 2002.