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CURRÍCULO EM AÇÃO: PRÁTICAS E DESAFIOS EM CLASSES

MULTISSERIADAS EM ESCOLAS RURAIS DO MUNICIPIO DE ÓBIDOS-PÁ

Marta Travassos de Farias


Nataly Michelly da Silva Batista
Natasha Paiva Ramos
Patrícia Kellen Ferreira de Sousa
Raquel Souza Alves

RESUMO: O presente artigo faz uma análise sobre as classes multisseriadas que surgem
no contexto da educação campesina, oriundas da escassez de alunos. Tendo como
objetivo compreender o currículo em ação e a dinâmica pedagógica educacional de
turmas de professores que exercem sua profissão dentro do sistema multisseriado em
escolas municipais Rurais do Município de Óbidos-Pará. Compreender o currículo em
ação e a dinâmica educacional de turmas multisseriadas, analisando as dificuldades
enfrentadas por professores que exercem sua profissão dentro do sistema multisseriado.
A metodologia utilizada foi questionários aplicado a professoras de três escolas rurais: a
Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Antônia Carvalho de Moraes
localizada na Comunidade Quilombola Muratubinha em área de várzea, Escola Municipal
São Sebastião localizada na Comunidade Castanhanduba (terra Firme) e a Escola
Municipal Osvaldo Cruz na Comunidade Cuecé (terra firme). Os resultados indicam que
as classes multisseriadas têm em comum a precariedade do ensino, implicando na
necessidade de formação para professores, políticas públicas voltadas para suprir suas
necessidades educacionais. Conclui-se que são as possiveis soluções até o momento para
garantir o direito a educação dos povos existentes nas localidades da zona rural,
ribeirinhas, e quilombolas do campo.
Palavras-chave: Educação do campo; multisséries; escolas; currículo.
ABSTRACT:

Keywords:
INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo compreender o currículo em ação e a


dinâmica educacional de turmas multisseriadas, analisando as dificuldades enfrentadas
por professores que exercem sua profissão dentro do sistema multisseriado em escolas
campesinas no Município de Óbidos-Pará. O ensino multisseriado é uma realidade
existente em todo o país inclusive em nosso município, ainda é uma situação ampla que
percorre o país a fora.
Ao analisarmos a situação atual das escolas do campo percebemos o descaso com
as classes multisseriadas, a desvalorização vinculada ao abandono contribui ativamente
para a não permanência dos sujeitos no campo por lhes ser negada escolarização de
qualidade no lugar em que vivem, porém estagnar a experiência precarizada da educação
efetivada nessas escolas do campo é um passo que precisa ser dado.
O presente trabalho constitui uma pesquisa desenvolvida acerca das concepções e
práticas de alfabetização de professoras de salas multisseriadas. Das entrevistas
semiestruturadas realizadas com três professoras, extraímos respostas às questões que se
referem ao currículo educacional e à organização do trabalho pedagógico nas turmas
multisseriadas, para subsidiar nossa discussão neste texto. Além disto, trazemos ao longo
deste, alguns relatos de professoras do campo sobre suas práticas pedagógicas e seus
desafios frente a um currículo que não é especifico as classes multisseriadas. O currículo
não é um conceito, mas uma construção cultural, isto é, não se trata de um conceito
abstrato que tenha algum tipo de existência fora e previamente a experiência humana. É
antes, um modo de organizar uma série de práticas educativas (GRUNDY, 1987). Para
Sacristán (2000) o currículo em ação são as práticas pedagógicas desenvolvidas pelos
professores. É o fazer pedagógico propriamente.
Nosso objetivo com esse texto é, a partir das entrevistas realizadas na referida
pesquisa e dos relatos de experiências de diferentes professores do campo, buscar refletir
sobre as possibilidades de construção da Educação do Campo e seus currículos,
particularmente nos anos iniciais do ensino fundamental ou ciclo de alfabetização, e
analisar alguns impactos do processo de nucleação escolar sobre as escolas do campo .A
título de exemplo, três experiências mostram-nos que é possível desenvolver boas práticas
contextualizadas em salas multisséries das escolas do campo, porém inúmeros fatores
devem ser melhorados.
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

A educação é um direito garantido em lei pela Constituição Federal de 1988. Art.


205 e 210 da Carta Magna -1988, e inspirada, de alguma forma, numa concepção de
mundo rural enquanto espaço especifico, diferenciado e, ao mesmo tempo, integrado no
conjunto da sociedade, a Lei 9.394/96-LDB estabelece que:
Art.28. Na oferta da educação básica para a população rural, os sistemas de
ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação as
peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente:
I. conteúdos curriculares e metodologias apropriadas as reais
necessidades e interesses dos alunos da zona rural;
II. organização escolar própria, incluindo a adequação do calendário
escolar as fases do ciclo agrícola e as condições climáticas;
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
De acordo com o decreto nº 7.352 de 4 de novembro de 2010, que dispõe sobre a política
de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária –
PRONERA, em seu Artigo 1º ressalta que: A política de educação do Campo destina-se
à ampliação e qualificação da oferta de educação básica e superior às populações do
campo. Em geral as Constituições dos Estados abordam a escola do campo, determinando
a adaptação dos currículos, dos calendários e de outros aspectos do ensino rural as
necessidades e características de cada região (Arroyo, Caldart, Molina,2011). A partir das
décadas de 1990 e 2000, a denominação ‘’educação do campo’’ vem se ampliando para
destacar o papel dos sujeitos e a importância da educação em sua formação e em seu
desenvolvimento (BRASIL, 2004). Nesse contexto as multisséries são vistas como
estratégia para solucionar o acesso à escolarização de um número reduzido de crianças e
jovens presentes nas comunidades rurais que compõe as escolas do campo. No Brasil ao
longo da sua história, esse modelo de ensino teve início com a chegada dos portugueses
ao Brasil, quando estes trouxeram os missionários jesuítas que implantaram o sistema
educacional nas colônias, das quais tinham como objetivo implantar entre os povos
indígenas e os povos das colônias o ensino religioso (catequese) e a educação escolar.
(NEMI, 2009:10). A partir daí essa modalidade de ensino tornou-se um elemento
favorável para a permanência dos alunos de área rural em suas comunidades, contribuindo
com o desenvolvimento de sujeitos envolvidos na sua própria história, porém,
necessitando de metodologias que favoreçam o processo de aprendizagem mesmo que
em turmas multissérie. A multissérie é conceituada por Menezes e Santos (2002), como
a organização de ensino em que o professor trabalha concomitantemente com várias séries
em uma mesma sala de aula. Os autores destacam que esse tipo de organização existe
predominantemente nas escolas do meio rural, buscando diminuir a evasão escolar. Souza
e Santos (2007) ao refletirem sobre a realidade das escolas no campo relatam a ausência
de matérias didáticos e o esforço de professores que trabalham no limiar da infraestrutura
física, salarial e de formação profissional.
Voltando ao que preconiza o inciso II do artigo 28 da LDB, podemos compreender
como e por quais motivos as escolas do campo se organizam de uma maneira
completamente diferente daquela que se observa nas escolas tradicionais, principalmente
no que se refere a seriação do ensino, que devido ao número reduzido de alunos a escola
busca adaptar-se para continuar educando. Amorim (2019) esclarece que “as escolas do
campo não tinham a quantidade de estudantes para formar turmas seriadas, foi a partir daí
que começou a multisseriação”.
Hage (2014) reitera que:
Essas escolas reúnem estudantes de várias séries e níveis em uma mesma
turma, com apenas um professor responsável pela condução do trabalho
pedagógico. As mesmas se constituem geralmente na única alternativa para os
sujeitos estudarem nas comunidades rurais em que vivem, encontrando-se
expostos a um conjunto de situações que não favorecem o sucesso e a
continuidade dos estudos, evidenciando, inclusive, o descumprimento da
legislação vigente, que estabelece parâmetros de qualidade a serem alcançados
na Educação Básica nas escolas do campo.

METODOLOGIA

A metodologia empregada foi do tipo qualitativa e utilizou-se na investigação a


pesquisa de campo, com aplicação de um questionário, diálogos e observação com as
professoras das referidas escolas citadas abaixo. Trabalhar em turmas multisseriadas
consiste num enorme desafio para professores que lecionam no campo. Esses
profissionais da educação sentem o peso de carregar a responsabilidade de exercer suas
práticas docentes dentro de salas de aula com alunos de faixa etária e séries diferentes,
sendo alunos de 1º ao 5º ano.
Figura 1: Escola Municipal de Ensino Fundamental de Ensino
Fundamental Professora Antonia Carvalho de Moraes
(Comunidade Quilombola Muratubinha)

Fonte: Paiva,2023

Figura 2: Escola Municipal de Ensino Fundamental São


Sebastião (Comunidade Quilombola Castanhanduba)

Fonte: Souza, 2023

Figura 3: Escola Municipal de Ensino Fundamental


Osvaldo Cruz (Comunidade Quilombola Cuecé)

Fonte: Figueira, 2023

REALIDADE DAS ESCOLAS MULTISSERIADAS NO MUNICÍPIO DE


ÓBIDOS-PÁ
No município de Óbidos, na Região do Baixo Amazonas no Pará, ainda prevalece
o sistema de ensino multisseriado, sendo utilizado apenas nas escolas rurais segundo
dados da SEMED (Secretaria Municipal de Educação de Óbidos). Tivemos a necessidade
de utilizar essas escolas como lócus de pesquisa para aprimorar e reforçar o nosso trabalho
e as nossas ideias sobre o currículo em ação em salas multisseriadas. Aplicamos
questionários para as professoras de três escolas rurais: a Escola Municipal de Ensino
Fundamental Professora Antonia Carvalho de Moares localizada na Comunidade
Quilombola Muratubinha em área de várzea, a Escola Municipal São Sebastião localizada
na Comunidade Castanhanduba (terra firme) e a Escola Municipal Osvaldo Cruz na
Comunidade Cuecé (terra firme). Para preservar a identidade das professoras que
contribuíram para a realização da pesquisa, denominaremos como: P1 (professora 1), P2
(professora 2), P3 (professora 3).
A primeira escola em que analisamos a realidade do multisseriado foi a Escola
Municipal Professora Antonia Carvalho de Moraes, localizada na Comunidade
Muratubinha, onde pudemos observar a precariedade da sala de aula e a falta de materiais.
Alguns materiais estavam amontoados num canto da sala devido à ausência de armários
para guardar livros didáticos e outros materiais. A escola possui 6 salas de aulas, 1
secretária, 1 cozinha e, dois sanitários (masculino e feminino).
A P1, graduada e licenciada em Matemática e Física, é docente nas séries do
Ensino Fundamental Menor 1° ao 3° ano multisseriado. É importante afirmar que o
docente do chamado Ciclo I do Ensino Fundamental, o qual abrange o 1°, 2°, 3°, 4° e 5°
ano desta etapa da Educação Básica, deveria ser formado em curso de pedagogia de nível
superior, porém cumpre ressaltar que os dispositivos da Lei 9.394/96 não preveem a
estruturação rígida em Anos Iniciais e Anos Finais do Ensino Fundamental, daí
entendemos ser legal à docência de portadores de licenciatura especifica em todo ensino
fundamental, dependendo sempre da necessidade e proposta pedagógica de cada escola.
Em entrevista perguntamos qual é a maior dificuldade enfrentada dentro de uma sala com
12 alunos. Ela respondeu da seguinte forma: “não encontro dificuldades em lidar com os
conteúdos diferentes para cada série, mesmo se tratando de uma turma multisseriada,
meus alunos não estão com uma aprendizagem boa também devido a pandemia da Covid
19, minha maior dificuldade é quando os alunos não acompanham o ano que estão
cursando, devido não terem a habilidade na leitura e muitas vezes as crianças não tem o
atendimento especializado (laudo)’’. Abordamos em seguida a questão da elaboração dos
planos de aula. Ela afirmou que o plano é feito quinzenalmente de acordo com cada ano
ou com cada serie e seguindo a BNCC.
Figura 4-Atividades realizadas por alunos da Escola Antonia
Carvalho de Moraes

Fonte: Paiva,2023
A segunda escola em que analisamos de acordo com o questionário, foi a realidade
do multisseriado foi na Escola Municipal São Sebastião na Comunidade Castanhanduba.
A professora P2 possui Ensino Médio Completo, Magistério e Curso de Formação em
Educação Especial, e aceitou contribuir para a nossa pesquisa. Segundo a P2 sua maior
dificuldade é repassar os conteúdos para cada série diferente. É importante ressaltar que
para formar esse profissional é necessário um conjunto de disciplinas científicas e um
outro de disciplinas pedagógicas que vão fornecer as bases para sua ação (Pereira, 1999).
A falta de experiência é outro fator que contribui para um ensino e aprendizagem
insatisfatório visto que a mesma possui apenas 2 anos de experiência atuando com
multisséries.
De acordo com o questionário, a mesma respondeu que suas maiores dificuldades
ao trabalhar com multisséries é passar atividades diferentes para cada série, avaliar o
desenvolvimento de cada aluno em conformidade com as mesmas e adaptar a
compreensão dos mesmos a cada um conforme sua série e que sua dificuldade estava
também em administrar o pouco tempo em sala de aula para muitas séries. Perguntamos
qual sua análise sobre a qualidade do ensino em classes multisséries. Ela relatou da
seguinte forma: “desafiante, porém em certas situações se torna dificultoso pelo fato de
existirem alunos com dificuldade de aprendizagem e outros mais evoluídos. O que faz ser
um desafio é o fato de não poder dar mais atenção para o aluno com mais dificuldade,
assim como explorar e impulsionar os conhecimentos dos mais evoluídos.” Perguntamos
ainda como é feito o planejamento das aulas. A P2 responde que: com a orientação da
coordenadora pedagógica, e usando conteúdos repassados nos treinamentos, adaptamos
os assuntos condizentes com cada série. Perguntamos para a P2 como você acredita que
a estrutura de sua sala de aula está adequada para atender alunos nas multisséries?
Porquê? Sua resposta foi; sim, porque procuro desenvolver o máximo os conhecimentos
e habilidades que possuo para torná-la tanto acolhedora quanto educativa, através de
cartazes, dinâmicas entre outras.
Ferri (1994) em meio a uma pesquisa em escolas rurais destacou que nas classes
mutisseriadas o professor sofre algumas limitações, afirmando que a própria escola é um
ambiente isolado devido a distância e a própria locomoção dos alunos e, por isso, há
dificuldade de atendimento individual por aluno, além das dificuldades de acesso ao
material didático e às bibliotecas, leva em conta ainda que atender quatro séries ao
mesmo tempo é muito trabalhoso; ressaltando também que as crianças de 1ª série, no
processo de alfabetização, são muito prejudicadas, pois não têm a atenção de que
necessitam; e outra limitação está voltada para o planejamento, elaborar diariamente
quatro planos de aula, cada plano para sua respectiva série.
Figura 5-Atividades realizadas por alunos da
Escola São Sebastião

Fonte: Souza, 2023

A terceira análise foi baseada na realidade da Escola Municipal de Ensino


Fundamental Osvaldo Cruz, Comunidade Cuecé, uma sala multisseriada composta por
14 alunos, sendo três no 1º ano, um no 2° ano, cinco no 3° ano, um no 4º ano e quatro no
5°ano. A P3 tem 33 anos de experiência o que é bastante relevante, a mesma é a única
docente da pesquisa a ter graduação em Pedagogia, sendo ela apta para lecionar na
educação básica, anos iniciais e ensino fundamental, mas não deixando de lado a
necessidade de uma formação continuada para seu melhor desempenho em sala de aula.
Paulo Freire reforça que a formação continuada é concebida como um processo
contínuo e permanente de desenvolvimento profissional do professor, onde a formação
inicial e continuada é concebida de forma inter articulada. A professora demonstrou que
sua dificuldade com a turma é não ter como dar a atenção necessária para as crianças; por
isso o aprendizado não ocorre como deveria. Acreditamos que a junção das turmas é
devido a quantidade reduzida de alunos numa única sala. Questionamos a P3 sobre qual
sua análise sobre a qualidade do ensino em classes multisséries no município de Óbidos.
Ela nos conta que a qualidade de ensino está péssima, pouco aprendizado. Ela nos afirma
que a sua turma não tem um bom desempenho, mas que poderia ser algo mais satisfatório
se fosse uma turma formada por uma série única, a mesma fica triste e aborrecida porque
algumas escolas do município trabalham com 7 alunos em uma única série e ela trabalha
com 14 alunos de 1° ao 5° ano em uma única sala. Ela reforça dizendo que: “se os pais
fossem mais responsáveis e ajudassem os alunos no processo de ensino-aprendizagem, os
alunos teriam um bom desempenho escolar e que também se essas turmas fossem
separadas ficaria melhor e teria mais aproveitamento.
Com a análise feita através das entrevistas e dos questionários pudemos constatar
que a situação das multisséries no Município de Óbidos nos mostram dados alarmantes e
que provavelmente se perpetuam em outras unidades escolares no nosso município.

Figura 6-Atividades realizadas por alunos da


Escola Osvaldo Cruz

Fonte: Figueira, 2023


PERFIL DAS DOCENTES

P1 P2 P3
39 anos 34 anos 52 anos
Sexo feminino Sexo feminino Sexo feminino
Escolaridade: Graduação Escolaridade: Ensino Escolaridade: Graduação
em Matemática e Física Médio, Magistério e curso em pedagogia
6 anos de experiencia em em Educação Especial 33 anos de experiencia em
multisséries 2 anos de experiencia em multisséries
22 anos atuando na multisséries 33 anos atuando na
docência 2 anos atuando na docência
40 horas semanais de docência 40 horas semanais de
trabalho 100 horas mensais de trabalho
trabalho

PLANO DE CURSO DE ESCOLAS QUILOMBOLAS: ETERNIZANDO


QUILOMBOS

O plano de curso Eternizando Quilombos é um tipo de currículo planejado e


elaborado pelas comunidades quilombolas do município de Óbidos em parceria com a
SEMED. O mesmo foi construído para se trabalhar as relações étnico-raciais e também
como forma de implementação da Lei 10.639/2003 nas escolas quilombolas.
O currículo é “uma prática social, discursiva e não discursiva, que se corporifica
em instituições, saberes, normas, prescrições morais, regulamentos, programas, relações,
modos de ser sujeito”. Em tal direção, alegamos que “um currículo é sempre uma
imposição de sentidos, de valores, de saberes, de subjetividades particulares”
(CORAZZA; TADEU; 2003). O currículo é o conjunto das atividades nucleares
desenvolvidas pela escola, porque tudo que acontece na escola é currículo (SAVIANI,
2008), com seus conteúdos sobre educação situados no tempo e espaços que lhe são
destinados. Defende-se a escola como socializadora do conhecimento científico para
todas as classes, contra currículos escolares que se apoiam no cotidiano pragmático e
alienado que habita em cada um de nós.
Em vista disso, para as escolas com classes multisseriadas, não cabe pensar a
organização curricular partindo da concepção da organização da educação seriada. Faz-
se necessário organizar o tempo didático considerando-se um único planejamento para os
alunos com diferentes idades e níveis de aprendizagem como forma de propiciar a
aquisição dos conhecimentos científicos, mesclando tarefas individuais, duplas e em
grupo (menores ou maiores) com níveis de conhecimento parecidos ou não, mas sempre
respeitando o objetivo de cada atividade dentro de uma perspectiva de unidade
integradora dos saberes. Sendo o currículo pensado para direcionar o trabalho educativo,
no tocante à organização do trabalho pedagógico e seleção de conteúdos, devemos
escolher as melhores formas de transmiti-los. Cabe ao professor, ao planejar suas aulas,
considerar a prática social que vivem os alunos do campo, estabelecendo a relação com o
contexto geral da sociedade na qual ele está inserido.
De acordo com Saviani (2008), o currículo deve partir do “conjunto de atividades
nucleares desenvolvidas na escola”. A educação no campo, em especial para as escolas
multisseriadas, deve-se levar em conta o que é essencial na escola para a promoção do
conhecimento científico dos alunos. Tal seleção não pode ser aleatória: deve-se partir da
prática social inicial dos alunos que vivem no campo, problematizando sua realidade de
forma que se apresentem, para eles, os conteúdos científicos, filosóficos e artísticos. Isso
implica o direcionamento do professor no processo de planejamento e ensino, visando à
superação do conhecimento espontâneo por meio do conhecimento elaborado.
Exemplos de conteúdo a serem trabalhados dentro do currículo quilombola:
Quadro 1: Projeto Escolar Eternizando Quilombo
Eixo Objetivos Conteúdo/Temática Sugestões de Recursos
Atividades
Pesca Conhecer diversidades de Pesca artesanal, Trazer para sala Linhas de pesca,
pescado, período de pesca. industrial e predatória de aulas anzóis, agulhas,
pescadores alunos,
promover pescadores,
oficinas para quadro branco,
confecções de etc.
materiais de
pescas: caniços,
malhadeiras,
etc.
Músicas Conhecer o repertorio Cantigas, ritmo, letra, Construção de Humanos:
quilombolas- internacional e nacional melodia, sonoridade, parodias, alunos,
musicalidade africano e afro-brasileiro canção. confecção de funcionários e
como instrumento de instrumentos comunitários da
aprendizagem musicais, escola e
entrevistas, comunidade.
seminários, Materiais
rodas de pedagógicos e
conversa. eletrônicos,
instrumentos
musicais.
Personalidades Pesquisar e conhecer Atores da educação, Pesquisas Humanos:
Negras personalidades negras no artistas, escritores, biográficas de alunos e
cenário mundial, nacional e músicos, poetas, etc. personalidades funcionários da
local. negras, escola. Materiais
entrevistas, pedagógicos e
seminários, eletrônicos.
rodas de
conversa.
Artesanato Conhecer e produzir Pesquisar classificação Pinturas, Recursos
artesanatos das comunidades produção de Materiais: barro,
adjacentes. objetos argila, palha,
artesanais. cipó, cuia,
sementes, cola,
tinta, papel, etc.
História das Conhecer e valorizar a Resgate histórico da Pesquisa de Moradores
Comunidades cultura do lugar onde vivo comunidade: social, campo na antigos da
Quilombolas cultural, territorial, comunidade, comunidade,
político e econômico. roda de alunos,
conversa, professores,
entrevista com tecnologias,
pessoas idosas, celulares,
confeccionar internet, etc.
álbuns, livros
de contos, etc.
Agricultura Conhecer e valorizar a Produção de farinha e Conversas Moradores
Familiar importância da seus derivados, dialogadas, antigos da
sustentabilidade e da hortaliças, leguminosas, textos comunidade,
agricultura familiar nas colheitas de frutos informativos, alunos,
comunidades quilombolas. nativos. pesquisa sobre a professores,
produção de técnico agrícola,
farinha, notebooks, livro
entrevista com didático, celular
moradores da etc.
comunidade,
produção
textual, visita
ao barracão de
farinha, etc
Poesia, Conhecer a cultura local, Poetas, poesias, receitas, Produções Recursos
culinária, regional e nacional, mitos e lendas textuais, humanos,
estória e causos objetivando a valorização leituras, matérias,
dos mais diversos tipos de pesquisas, didáticos e
saberes contador de pedagógicos.
estórias,
exposição de
práticas
culinárias
Medicina Viva Conhecer e valorizar os Plantas Medicinais Pesquisa de Recursos
saberes tradicionais campo, rodas de humanos:
conversas sobre Moradores
os benefícios e antigos da
malefícios das comunidade,
medicinas alunos,
tradicionais, professores,
produção de ervas
álbuns de medicinais,
receitas com papel, pincel,
orientação folhetos e
pesquisa
Fonte: Semed, 2023
RESULTADOS

Para Hage (2005), as classes multisseriadas podem contribuir para a permanência


dos sujeitos no campo por lhes oferecer uma escolarização no lugar em que vivem, basta
acabar com a experiência precarizada da educação efetivada nessas escolas.
Percebemos nas escolas pesquisadas que as classes multisseriadas tem em comum
a precariedade do ensino, é necessário a formação para professores, investimento por
parte do governo em políticas públicas voltadas a atender esse público, reforço escolar
aos alunos que sofreram e ainda sofrem com os resultados da pandemia, visto que foram
2 anos de aula remota que acabou não ajudando no ensino-aprendizagem dos alunos. A
falta de um apoio educacional para alunos suspeitos de deficiência citados em duas
escolas das três salas pesquisadas, que acarreta em um trabalho incompleto e
desqualificado do profissional docente.
A falta de um currículo especifico é um fator agravante pois os professores relatam
que o currículo é organizado para séries separadas, uma em cada sala, por exemplo 1°,
2°, 3°,4°, e 5° ano, cada turma tem seus planejamentos organizados pela SEMED
separado e o professor deve adaptar para trabalhar em classes multisséries.
Citando como exemplo a fala de uma professora pesquisada onde perguntamos se
existe um currículo e formação específica para atender as multisséries, a resposta foi que
não, mas existem vários cursos e formações para turmas especificas e nós professores
fazemos as adaptações. Por último, perguntamos a professora você acha que poderia
melhorar o processo de ensino aprendizagem de sua turma multisseriada? A mesma
respondeu “Sim, poderia tudo que vamos fazer depende do tempo e, trabalho de manhã e
de tarde, sobra o tempo da noite. Afirma ainda que é possível fazer um bom trabalho,
porém não depende apenas do professor.
As classes multisseriadas são uma forma de não deixar nem um aluno fora da sala
de aula, porém é preciso uma atenção maior a esse público e também aos docentes que se
sentem sobrecarregados quanto as horas de trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola multisseriada é uma forma de organização escolar predominante nas


áreas rurais. Essas escolas muitas vezes são compostas de uma ou duas salas de aula, que
atendem alunos de diferentes idades e séries aos cuidados de um único professor.
Nesse sentido, a presente pesquisa procurou demonstrar que o currículo em ação
é muito mais complexo do que se imagina com seus entraves e desafios, abrindo ao
pesquisador de educação um amplo conjunto de questões que precisam ser investigadas
e solucionadas, a fim de esclarecer que a não correspondência das propostas curriculares
com a realidade das escolas do campo que acarreta na inoperância no processo educativo
das salas multisseriadas.
Através de um currículo que atenda a diversidade de comunidades do campo, as
práticas curriculares conseguem promover a diversificação de experiências significativas
e de acordo com suas realidades e vivências, com diferentes linguagens, a leitura e a
escrita de diferentes gêneros textuais, ampliando as oportunidades de inserção das
crianças das áreas rurais em práticas letradas reais, vivas e desafiadoras.
A luta por uma educação que sirva às classes do campo, é uma proposta ainda
longe de ser realmente efetivada, visto que de acordo com a pesquisa muitos direitos ainda
são negados apesar da existência das leis que promulgam uma educação de qualidade e
ofertam o contrário.
Buscamos, em linhas gerais, contribuir com as discussões de uma proposta
curricular pautada por uma teoria que possibilite o desenvolvimento do educando de
forma que cada educando e professor possam se posicionar criticamente e assim aceitar-
se como pertencente diante da realidade que se apresenta.
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