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Ambientes de aprendizagem multisseriados: uma prática para conhecer e

experienciar.

Aline Leme da Silva


Anagilda Siqueira Sobral Cordeiro
Luiz Fernando Queiroz Melques

Com os processos de especialização e decomposição de tempos, espaços e


conhecimentos promovidos pela escola moderna, a existência de turmas multisseriadas
ficou cada vez mais ligada à educação no campo. Pensando na garantia de acesso à
educação em zonas rurais com grupos de alunos menores e de distribuição etária
heterogênea, a organização multisseriada tornou-se uma solução para contextos em
que o oferecimento de várias turmas seria inviável. Esse movimento, ao passo que
atendeu a uma importante demanda educacional, acabou acionando uma série de
estigmas associados a precarização e má qualidade de ensino. Segundo Parente
(2014), essa conotação deve-se em grande parte a condições de implantação marcadas
pela escassez de infraestrutura ou ausência de orientações.

Para superar essas visões, a defesa da “seriação” está longe de ser a resposta.
Devemos entender que a organização multisseriada não se restringe a uma
necessidade para um contexto de falta de recursos. Pelo contrário, ela pode e deve
ser considerada como opção pedagógica fundamentada para diversos contextos
(LITTLE, 1995) e é com essa abordagem que gostaríamos de pensar a
potencialidade dos ambientes de aprendizagem multisseriados, trazendo as
experiências para o nosso contexto educacional, que visa uma educação de
qualidade voltada para a diversidade (todos) e para a contemporaneidade.

Antes de dar continuidade à análise e importância dessa forma de organização


dos estudantes, cabe declarar o que são salas/classes multisseriadas. A palavra
multisseriada nos remete à organização em série, que já foi alterada no Brasil, porém,
o conceito permanece inalterado: agregação de estudantes de várias séries
(atualmente, anos escolares) e níveis de aprendizagem em uma mesma turma,
normalmente com um único professor responsável.
Dessa forma, gostaríamos de deixar clara a distinção entre turmas
multisseriadas e multietárias, por serem nomenclaturas parecidas, mas que diferem em

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relação à definição. No grupo multietário, os mesmos tópicos e objetos do conhecimento
são trabalhados de acordo com diferentes níveis de complexidade e de formas distintas,
de acordo com as etapas de desenvolvimento dos estudantes.
Ambas as formas de organização propiciam o planejamento em conformidade
com o Desenho Universal de Aprendizagem (DUA) - o qual visa a educação de todos -,
por oferecerem uma estrutura que respeita os tempos humanos, além dos diferentes
modos e ritmos de aprendizagem.
Nessa perspectiva, o SESI-SP já tem experienciado diferentes formas de
organizar os currículos, tempos e espaços de aprendizagem, de modo a considerar
também os valores éticos, culturais, sociais, identitários, além dos processos cognitivos
e motores de seus alunos. Mais adiante trataremos mais especificamente de tais
experiências.

• Contexto brasileiro e internacional


Antes de abordar a pluralidade dos ambientes de aprendizagem multisseriados,
gostaríamos de contextualizar a dinâmica das escolas multisseriadas, ou seja, as que
contam exclusivamente com esse tipo de organização.

Essas escolas são uma realidade em várias partes do mundo com


predominância no ensino “primário” em zonas rurais e afastadas devido às
especificidades de seu contexto. Estudiosos, como Angela Litlle, do Institute of
Education da University of College London, apontam para a abrangência de modelos e
experiências em diversos países e, reconsiderando as críticas realizadas ao modelo,
defendem a importância dessa organização para a garantia à educação para todos, bem
como que sua realização conte com apoio e formação adequada dos docentes.

A bibliografia sobre o tema por vezes tentou quantificar e comparar o


desempenho de estudantes de escolas seriadas e multisseriadas, entretanto os
resultados apresentados costumam ser irregulares e de difícil mensurabilidade, tendo
em vista o escopo, as habilidades avaliadas e as variáveis em questão.

A América Latina, por sua vez, conta com um exemplo que se destaca pelo
alinhamento significativo entre concepção e prática de escola multisseriada, reunindo
estudantes de até três anos escolares da Colômbia em turmas com um único professor.

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A Escuela Nueva colombiana é um programa nacional que integra “estratégias
curriculares, capacitação docente, gestão administrativa e participação comunitária”
para a oferta da educação primária com qualidade para alunos de origens culturais
diversas na zona rural e na zona urbana periférica. Esse modelo, considerado parte do
“patrimônio pedagógico da Colômbia”, teve início na década de 1970 e segue em
atividade em mais de 20 mil estabelecimentos escolares, incorporando práticas da
pedagogia ativa em sua metodologia e reduzindo as diferenças entre escolas rurais e
urbanas nos exames nacionais.

Podemos ver uma representação resumida das concepções do programa no


quadro abaixo desenvolvido pela Fundación Escuela Nueva, uma organização cuja
atuação é inspirada por essa metodologia.

Fonte: https://escuelanueva.org/teoria-del-cambio/

No Brasil, segundo dados do Censo Escolar de 2018, existem 80.601 turmas


multisseriadas de ensino fundamental em escolas públicas, o que representa 14% do
total. A Lei de Diretrizes e Bases, no artigo 23, prevê forma diversa de organização
“sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar” e o artigo
28, as possibilidades de adaptações à vida rural pelos sistemas de ensino, bem como
uma menção ao processo de fechamento de escolas do campo, indígenas e
quilombolas, mediante análise do órgão normativo.

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Destacamos este último ponto, pois o receio de nucleação é um sentimento
recorrente na fala das comunidades escolares, conforme relatado pela pesquisa de
Parente. Existe uma série de iniciativas para melhoria desses contextos, como ações
formativas e incentivos, contudo, diferentemente do modelo colombiano, tais propostas
são afetadas pelas várias descontinuidades de programas. Vale lembrar que essas
escolas adquirem um sentido de extrema importância para o contexto em que estão
inseridas, servindo como meios de transformação social para a comunidade.

Feito esse percurso, cabe pensar em como a interação entre estudantes de


diferentes anos escolares em uma mesma turma pode ser incorporada em escolas
seriadas de forma a promover ambientes de aprendizagem colaborativos e
significativos.

Na Inglaterra e em outros países europeus, por exemplo, existem escolas com


rolling programmes associados à organização em ciclos (PRIDMORE, 2007). Os ciclos,
como já debatido por Perrenoud e outros autores, tendem a ser mais tolerantes aos
diferentes ritmos de aprendizagem, concebendo-as em um processo mais contínuo e
menos fragmentário que a organização seriada. Para ciclos de dois anos, os currículos
dessas escolas preveem salas que abrigam estudantes de dois anos escolares. No
início do período letivo, a sala recebe novos estudantes para o primeiro ano do ciclo e,
ao final do período letivo, os estudantes concluintes do segundo ano deixam a turma.
Esse modelo pode ser usado para um conjunto integrado de componentes ou em
componentes curriculares e projetos específicos.

Para tanto, é necessário também um processo de flexibilização e adaptação


curricular coerente à proposta. Outra forma existente aparece em escolas que adotam
modelos pedagógicos centrados no aluno onde a participação ativa do estudante e a
organização do currículo e tempo escolar devem responder uma à outra. Nesses
modelos, o uso de metodologias ativas e estratégias de personalização do ensino fazem
com que a elaboração de projetos e a resolução de situações-problema sejam
indispensáveis para a construção do conhecimento por parte dos estudantes.

A complexidade dessas tarefas, por sua vez, possibilita o trabalho conjunto de


grupos de alunos oriundos de diferentes estágios em uma aprendizagem colaborativa.
Dessa forma, considera-se que a inclusão de momentos para o trabalho com
agrupamentos verticais, isto é, com alunos de diferentes anos escolares, traga
relevantes contribuições para a dinâmica escolar.

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• A prática docente em turmas multisseriadas

A prática pedagógica tem sido cada vez mais desafiada pela


contemporaneidade, levando em conta os diversos recursos tecnológicos e habilidades
necessárias para a formação integral de um estudante que leia, intervenha e transforme
a realidade em que vive. Para isso, os professores precisam pensar em novas
estratégias de ensino, novos objetos de aprendizagem, buscar novos saberes, enfim,
precisam revisitar sua práxis constantemente.
Planejar-se para aulas que estimulem e promovam o engajamento dos
estudantes não é uma tarefa simples nem isolada, ao mesmo tempo que se deve
considerar a diversidade de saberes e as diferentes formas de aprender que há em uma
única turma. Para isso, é preciso ir além dos objetos de conhecimento, considerar
experiências de aprendizagem como aportes e estratégias que favoreçam a
(re)construção de conhecimentos. Conforme Zabala (1998, p. 28 apud MEDRADO,
2012, p. 134),
a capacidade de uma pessoa para se relacionar depende das
experiências que vive, e as instituições educacionais são um dos
lugares preferenciais, nesta época, para se estabelecer vínculos e
relações que condicionem e definem as próprias concepções pessoais
e as demais.

Desse modo, é papel da escola proporcionar situações que promovam o


desenvolvimento e a potencialização de competências e habilidades, cognitivas e
socioemocionais, e experiências que favoreçam a formação integral dos
estudantes, desafiando-os e fazendo com que suas aprendizagens sejam significativas.
Nesse sentido, é reiterada a importância de o estudante estar no centro do
processo, sendo ele o responsável pela sua aprendizagem e o professor o mediador
desse percurso, aquele que desenhará caminhos e possibilidades para que o estudante
encontre soluções e busque novos problemas e questionamentos.
Para isso, o planejamento e realização de aulas com turmas multisseriadas é
uma experiência de aprendizagem que favorece a autonomia e protagonismo estudantil.
Ao propor que alunos de um determinado ano realizem desafios/projetos com a turma
de outro ano, o compartilhamento e troca de ideias favorece a aprendizagem
colaborativa, já que, além do professor como mediador, outros pares mais experientes
também colaborarão com esse processo.

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Proporcionar momentos como esses contribui, também, para o desenvolvimento
de habilidades socioemocionais como empatia, resiliência, colaboração, entre outras.
Situações de convivência entre estudantes com faixas etárias, vivências e saberes
diferentes faz com que haja maior respeito pela diversidade e o reconhecimento de
pares que possuem as mesmas potencialidades e fragilidades, fortalecendo a relação
existente entre as práticas social e pedagógica. Segundo Veiga, a prática pedagógica
apresenta-se como
uma prática social orientada por objetivos, finalidade e conhecimentos,
inserida no contexto da prática social. A prática pedagógica é uma
dimensão da prática social que pressupõem a teoria-prática, e é
essencialmente nosso dever como educadores a busca de condições
necessárias à realização. (VEIGA, 1989, p.16 apud MEDRADO, 2012,
p. 135)

Além disso, pode ser uma oportunidade para a integração de saberes,


considerando que podem ser envolvidos mais de um professor/componente curricular
para o desenvolvimento de propostas que estimulem a inter e transdisciplinaridade. Os
objetos de conhecimento e aprendizagem, de cada componente curricular ou área de
conhecimento, podem ser ainda mais aprofundados quando colocados em situações
que exijam dos estudantes habilidades e saberes que vão além de um único ponto de
vista ou referência.
O trabalho com turmas multisseriadas possibilita diferentes experiências de
aprendizagem e para cada uma delas é preciso planejar tendo como foco quais
são os objetivos para aquele momento, o que se espera que o
estudante desenvolva/aprenda/construa/conheça ao final do processo, por isso, é uma
estratégia que pode ser experimentada e aprimorada em seu contexto escolar,
novos desafios engajam professores e estudantes em busca de um ensino cada vez
mais equitativo e de qualidade.

• A experiência com o Eixo Integrador Interáreas – Pesquisa em foco no SESI-SP

O Eixo Integrador Interáreas – Pesquisa em Foco é um componente curricular


que se diferencia pelo destaque dado à transdisciplinaridade por meio do
desenvolvimento de pesquisas científicas no ensino médio. Dando continuidade ao
trabalho já realizado e potencializando sua abordagem propositiva, o SESI-SP ousou
mais uma vez no ano de 2021 ao apostar na composição de salas multisseriadas para
acolher as práticas investigativas e as experiências de ensino e aprendizagem desse
componente.

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Ao reunir alunos de diferentes turmas e anos escolares em uma mesma sala,
torna-se possível a criação de grupos de trabalho mais heterogêneos. E qual seria sua
vantagem para o desenvolvimento de uma pesquisa? Considerando diferentes pontos
de vista e acionando outros repertórios, bagagens e experiências de vida, permite-se
chegar a lugares não previstos inicialmente e compreende-se de forma mais significativa
que o conhecimento é uma construção coletiva que precisa da validação de diferentes
pares, pensando tanto na sua abrangência quanto na sua profundidade. Dessa forma,
incentiva-se ainda o delineamento de soluções mais representativas e complexas para
os problemas identificados.
Para a efetividade dessa proposta, optou-se por complementar, reformular e
evidenciar orientações do guia do Eixo Integrador Interáreas – Pesquisa em Foco, bem
como oferecer o curso Pesquisa em Foco: práticas de pesquisa científica na
Universidade Corporativa. Destacam-se nesse movimento os seguintes aspectos:
• a ênfase nas práticas da aprendizagem colaborativa para o processo de resolução
de problemas a partir do trabalho conjunto de grupos com estudantes de diferentes
níveis de aprendizagem;
• a intensificação do trabalho com as habilidades socioemocionais, explorando,
principalmente, a autorregulação, a empatia, a tomada de decisões, a comunicação
interpessoal e a gestão de conflitos;
• a diversificação e a combinação de estratégias, visando à personalização do ensino;
• o incentivo à cooperação entre todos os docentes responsáveis por esse
componente.

• A experiência com Práticas sociais e culturais (4º e 5º anos) no SESI-SP

O SESI-SP busca inovar e proporcionar novas experiências de aprendizagem


aos seus estudantes constantemente, assim, em 2020, foi realizada a implantação do
Novo Integral com uma proposta pedagógica mais integrada e tendo como uma das
novidades o componente curricular Práticas sociais e culturais.
Esse componente é direcionado às turmas de 4º e 5º ano do ensino fundamental
e tem como principais características a multidisciplinaridade e seu desenvolvimento em
turmas multisseriadas, dessa forma, os projetos são desenvolvidos em conjunto pelos
alunos das turmas supracitadas.

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A metodologia que orienta o componente curricular é a Aprendizagem Baseada
em Projetos (Project Based Learning – PBL). É mais uma proposta que visa o aprender
a aprender por meio da construção ativa da aprendizagem pelo estudante, tendo o
professor como mediador/facilitador do processo.
Para isso, são organizados pequenos grupos onde mais de um professor atua a
fim de mediar/facilitar a integração de diferentes saberes e desafia/instiga a busca por
soluções criativas e inovadoras para os problemas vivenciados, além disso, orienta e
colabora com o planejamento e proposição dos caminhos que cada grupo poderá seguir.
Nessa perspectiva, a aprendizagem acontece colaborativamente, já que cada
integrante do grupo tem sua participação ativa na construção do conhecimento, além de
colaborar com o colega, desenvolvendo novas habilidades e competências e
potencializando outras.
A proposição de projetos é feita a partir de pesquisas com os estudantes e as
escolhas finais, qual o projeto que interessa mais, é feita pelo estudante, desse modo,
a autonomia e o protagonismo é ainda mais fortalecido pela valorização das
predileções dos alunos.
Já há práticas com turmas multisseriadas muito interessantes e promissoras na
rede SESI-SP, o que reitera ainda mais a importância de ampliar essa experiência e
proporcionar vivências em que os estudantes sejam cada vez mais os responsáveis
pela sua formação e aprendizagem.

Referências

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996.


LITTLE, Angela. Multigrade teaching: a review of practice and research. London:
Overseas Development Administration, 1995.
MEDRADO, Carlos Henrique de S. Educação, escolas e movimentos sociais do/no
campo. In: Entrelaçando, Bahia, v.2, n. 6, p. 133-148, ano III, Set. - Dez. 2012.
PARENTE, Cláudia. Escolas Multisseriadas: a experiência internacional e reflexões
para o caso brasileiro. In: Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.22, n. 82, p.
57-88, jan./mar. 2014.
PRIDMORE, Pat. “Adapting the primary-school curriculum for multigrade classes in
developing countries: A five-step plan and an agenda for change”. In: Curriculum
Studies, v. 39, p. 559-576, out. 2007
SESI-SP. Eixo Integrador Interáreas: Pesquisa em Foco. São Paulo, 2021.
______. Manual de implementação do Novo Integral. São Paulo, 2020.

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