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Salvador
2019
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Salvador
2019
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CDD 374
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AGRADECIMENTOS
RESUMO
compreensão das condições de vida e de estudo desses (as) atores (atrizes) sociais
curriculantes, bem como para promover a permanência. Os resultados indicam, pois,
que é na potência do inexistente que residem as micropolíticas, ou seja, a produção
das micropolíticas dos (as) jovens e adultos trabalhadores (as) que re(existem), ten-
sionando a criação de políticas públicas de permanência estudantil na Educação
Básica que se aproximem de suas necessidades.
ABSTRACT
The present thesis takes as its core the understanding of macro / micropolitics and
ethnomethods for permanence of young people and adults in Basic Education. At the
theoretical level, it is guided by the concepts of ethno-methods and macro / mi-
cropolitics and, at the methodological level, by ethnographic research practices,
through Contrastive Ethnopooking. Taking as its starting point two case studies, the
objectives of the study are as follows: 1) to understand the perspective of the various
segments that make up the EJA with regard to training in this type of education and
student permanence policies; 2) to understand how life and school trajectories are
interwoven in the experience of the youth and adults of the EJA, as well as the sur-
vival and work times, so typical of youth and adult life in poverty; 3) describe the eth-
nomethods that are built by the young people and adults throughout their formation in
the context of the EJA in order to stay and conclude their educational process; and 4)
to recognize, in the actions of the different segments that make up this modality of
education, indicators for the formulation of student stay policies in the EJA. The re-
search was carried out in two schools of the state education network, which are lo-
cated in the city of Salvador, and were taken as cases from which the research was
developed; one of them offered EJA courses in the day and night shifts, while the
other worked exclusively at night and was created to offer Basic Education courses
for youth and adult workers. Through contrastive research, it was sought to identify
relationally and, therefore, among the cases, singularities and contrasts, where it was
possible to perceive in the narratives of the social actors (actresses) peculiar ways to
deal with student permanence in Basic Education. The understanding of the ethno-
methods produced by the social actors, as well as the micropolitics produced by the
schools investigated in favor of the stay of young students and adults for the comple-
tion of the studies in Basic Education, are the path taken for this analysis, which re-
sulted in the construction of comprehensive categories. Among other aspects, it was
noticed that the conditions by which the student workers continue their studies in
Basic Education still requires an individual effort, which, in many cases, leads to re-
currence in the dropping out os school. Thus, many ethnomethods produced by
working students to overcome these challenges need to be identified, understood,
and contemplated in both the school micropolitics and macro policies within the state.
They act as an index, pointing not only to the creativity and resilience and struggle of
social actors and actresses, but also to absences from public policies. An example of
this is when the student workers report the displacement between home / work /
school, because they are talking about ethnomethods produced to deal with this ur-
ban mobility, as well as touching on issues related to them , such as the number of
schools that offer EJA courses in these localities, as well as refer to the EJA courses
offered in various shifts of the school, as well as the maintenance of bus lines sched-
uling compatible with study routines, denouncing absences in the field of mobility pol-
icies. In the context of the micropolitics produced by the schools, in turn, it can be
noticed, from the reports of the ethnomethods, the importance of including the study
on the listening process as well as the teacher training and managers who work in
youth and adult education, a fundamental condition for understanding the living con-
ditions and the study of these social actors, as well as to promote permanence. Re-
sults suggest, therefore, that micropolitics, that is, the production of micropolitics by
working youths and adults that re (exist), should lead to the creation of public policies
of permanence in basic education that are close to their needs.
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RESUMEN
AC Atividades Complementares
Ceneb Centro Noturno de Educação da Bahia
CFESS Conselho Federal de Serviço Social
CJA Coordenação de Educação de Jovens e Adultos
CONFITEA Conferência Internacional de Educação de Adultos
CPA Comissão Permanente de Avaliação
DPAEJA Diretoria de Políticas de Educação de Jovens e Adultos
EJA Educação de Jovens e Adultos
EP Educação Profissional
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
FEBA Faculdade de Educação da Bahia
FAC Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Candeias
FORMACCE Grupo de Pesquisa em Currículo e Formação
HRW Human Rights Watch
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDEB Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
IFG Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás
Incra Instituto Nacional de Colonização e de Reforma Agrária
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Nacionais Anísio
Teixeira
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Avançada
MEC Ministério da Educação
MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetização
MOVA Movimento de Alfabetização de Adultos
ONG Organização Não Governamental
OSBA Orquestra Sinfônica da Bahia
OSID Obras Sociais Irmã Dulce
RMS Região Metropolitana de Salvador
Parfor Programa Nacional de Formação de Professores da Educa-
ção Básica
PAIP Projeto de Monitoramente, Acompanhamento, Avaliação e
Intervenção Pedagógica
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................ 16
2 UM APROXIMAÇÃO ÀS PRODUÇÕES NO CAMPO DA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS ...................................................................... 30
2.1 Historiando a educação de jovens e adultos no Brasil ..................... 30
2.1.1 O cenário da EJA estadual na Bahia ...................................................... 37
2.2 Políticas da EJA e políticas na EJA .................................................... 41
2.2.1 A política de EJA NA Bahia ..................................................................... 53
2.3 A formação de jovens e adultos: o fundante na EJA ........................ 56
3 ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA DA PESQUISA .............. 62
3.1 A etnopesquisa implicada .................................................................... 64
3.1.1 Os etnométodos como possibilidades de compreensão ......................... 66
3.1.2 Os micro/macropolíticas como possibilidades de compreensão ............ 68
3.2 A pesquisa contrastiva ......................................................................... 70
3.3 Dispositivos de Produção de Saberes ................................................ 72
3.3.1 A observação participante ....................................................................... 73
3.3.2 A entrevista semi-estruturada ................................................................. 75
3.3.3 Diário de campo ...................................................................................... 76
3.3.4 Diálogos formativos ................................................................................. 78
3.4 Os (as) atores (atrizes) sociais e o locus da pesquisa .................... 79
3.4.1 O Centro Noturno de Educação Joana Angélica .................................... 82
3.4.2 O Centro Estadual de Educação Zumbi dos Palmares ........................... 84
4 COMPREENDENDO AS DIFERENTES PERSPECTIVAS .................... 86
4.1 O pensamento multirreferencial como abordagem teórica .............. 86
5 ANÁLISE DOS CONHECIMENTOS PRODUZIDOS NO CAMPO ......... 90
5.1 Contrastando as políticas de permanência de jovens e adultos na
Educação Básica ................................................................................... 92
5.1.1 Caso 1: o Centro Noturno de Educação da Bahia Joana Angélica ........ 92
5.1.2 Caso 2: o Centro Estadual de Educação Zumbi dos Palmares .............. 119
5.2 O relacional e o contraste em ato: estudo de casos - Centro No-
turno de Educação da Bahia Joana Angélica e Centro Estadual de
Educação Zumbi dos Palmares ........................................................... 154
5.2.1 O Centro Noturno de Educação da Bahia Joana Angélica e suas singu-
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1 INTRODUÇÃO
letivo, levava-me a “sonhar” em estudar em escolas particulares para poder dar con-
tinuidade aos estudos sem interrupções. Afinal de contas, o (a) filho (a) do (a) traba-
lhador (a) que se encontra na escola pública, muitas vezes não tem opção de estu-
dar em outra escola, quer seja em virtude da distância, quer seja em virtude da vio-
lência urbana, o que muitas vezes tem impedido a mobilidade dos (as) estudantes
das escolas da rede pública na Educação Básica.
Interessante notar que, apesar de ter apenas 17 anos quando finalizei o curso
de magistério, essas questões me angustiavam muito: tanto as constantes interrup-
ções das aulas em virtude das condições físicas das escolas, quanto as condições
de trabalho dos (as) professores (as), que tinham de paralisar as aulas, por meio das
greves, para verem seus direitos minimamente assegurados.
Foi esse o cenário familiar e estudantil que me levou à Educação de Jovens e
Adultos e mobilizou, de forma mais ou menos consciente, o meu desejo de compre-
ender a luta de tantos atores (atrizes) sociais1 que vivem cotidianamente os desafios
da conciliação: tempo de estudo e tempo de trabalho.
A escolha de uma trajetória profissional não é nada fácil para um (a) jovem
que ainda não tem dimensão do mundo que o (a) espera; esse, contudo, não foi o
meu caso. Desde cedo soube o que desejava: tornar-me professora. Na condição de
adolescente, tinha muito claro que necessitava fazer uma escolha profissional, então
resolvi fazer o curso de Magistério. De toda experiência vivida nesse período, as
mais significativas estão associadas às discussões teóricas proporcionadas por al-
guns (as) professores (as), além dos laços afetivos construídos. A lembrança desse
tempo me faz pensar no poema de Paulo Freire2, particularmente do trecho em que
diz que “escola é o lugar onde se faz amigos, não se trata só de prédios, salas, qua-
dros, programas, conceitos... Escola é, sobretudo, gente, gente que trabalha, que
estuda, que se alegra, que se conhece e se estima...” Foi em especial no cenário
da(s) escola(s) que construí toda a minha trajetória, ora na condição de estudante,
ora na condição de professora, coordenadora, dentre outras funções já exercidas no
campo profissional. Dessa experiência, conservo amizades que perduram no tempo,
sempre corrido, nada tedioso, de quem decide fazer da escola – mais ainda, da edu-
1 Utilizo esse termo, a partir das leituras realizadas de Macedo (2002, 2005, 2010, 2012, 2015, 2017,
2018) ao me referir aos (às) estudantes jovens e adultos (as) e demais colaboradores (as) dessa
pesquisa. Esse termo será aprofundado posteriormente no capítulo sobre metodologia.
2 A escola é – poesia do educador Paulo Freire, disponível no site do Instituto Paulo Freire
(www.paulofreire.org).
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cação – a sua vida. Foi nesses trilhos, melhor ainda, nessas trilhas que, após con-
cluir o Curso de Magistério passei a lecionar em algumas instituições de ensino da
rede privada. Nessa ocasião, dei-me conta que faltava aprofundamento teórico-
metodológico para o exercício de uma docência que hoje entendo como, necessari-
amente, reflexiva.
Vivenciei nesse período sentimentos diversos, desde as alegrias das aprendi-
zagens construídas aos desânimos inevitáveis frente à realidade da educação públi-
ca brasileira. Devo dizer que, não obstante todo o meu desejo de formar e logo leci-
onar, não estive imune às interrupções de ano letivo (por greves, paralisações ou
reformas) que desde essa época faziam parte da rotina das escolas públicas de
nossa cidade/país, que há muito vem sofrendo com a precarização da educação.
Esses períodos desanimadores, oportunizaram, contudo, a leitura de obras que
marcaram a minha trajetória. Eram leituras em geral indicadas pelos (as) professores
(as), e que me davam a sensação de ainda estar na escola, estudando. Em meio às
leituras indicadas, uma marcou-me de forma particular: A importância do ato de ler
(FREIRE, 1985), indicada pela professora de Metodologia da Alfabetização. Foi meu
primeiro diálogo com o pensamento paulofreireano. Um pensamento altamente revo-
lucionário, porque marcado pelo ideário de uma prática pedagógica dialogada e poli-
tizada que, sem dúvida alterou e orientou o meu olhar em relação à docência e ao
papel relevante que a alfabetização de jovens e adultos (as) possui na formação de
cidadãos (ãs) críticos (as). Decidi, então, aprofundar essas questões no ensino su-
perior, optando por permanecer no campo da educação e cursar Pedagogia.
Na graduação experienciei o ápice do deleite em relação aos estudos. No ano
de 1991, aos dezoitos anos de idade, ingressei no curso de Licenciatura em Peda-
gogia, na Faculdade de Educação da Bahia (FEBA). O curso proporcionou reflexões
importantes para minha formação, além da construção de laços afetivos fortemente
alimentados e sedimentados, pautados nos princípios de companheirismo e lealda-
de, laços que até hoje fazem parte da minha vida. Durante os quatro anos do curso,
tive a oportunidade de conviver com colegas que possuíam diversas experiências
acadêmicas e profissionais: professores (as) das redes pública e privada, dirigentes
sindicais, militantes de movimentos sociais, enfim, pessoas como eu, trabalhadores
e estudantes de um curso noturno que via, naquele espaço, um celeiro fecundo para
o aperfeiçoamento profissional e o crescimento pessoal, um espaço formativo de-
marcado por ideais em prol de uma educação de qualidade para a população brasi-
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leira, particularmente para aquela porção desde muito excluída ou incluída de forma
perversa, como observam alguns teóricos.
O currículo do Curso foi produzido a partir das discussões fomentadas pelos
diversos componentes curriculares, que transitavam por temáticas muito enferves-
centes na época, como a discussão acalorada da pedagogia histórico-crítico social
dos conteúdos, o processo de democratização da escola pública, a influência do so-
ciointeracionismo na educação, os constructos teóricos de Ferreiro e Teberosky
(1986) sobre o processo de alfabetização, as discussões acerca da Educação de
Jovens e Adultos enquanto um direito e campo de estudo que encontrava-se em
processo de consolidação, a relevância da formação docente para a melhoria da
qualidade da educação, enfim, temáticas que acirravam discussões no cenário for-
mativo e que saltavam aos meus olhos como possibilidades de melhoria da educa-
ção.
Devo dizer que, na condição de professora da Educação Básica no diurno e
estudante da graduação no noturno, levava muitas vezes, para a sala de aula do
curso de Licenciatura em Pedagogia, saberes construídos na prática de professora
do ensino básico, ao tempo em que também alterava a minha atuação no contexto
da educação básica, graças às alterações provocadas por tudo que aprendia na
formação superior. Assim, fui tecendo minha trajetória acadêmica e profissional, ca-
da vez mais ciente dos desafios da formação docente, uma formação que nunca es-
tá acabada e que se nutre da vida vivida.
Ainda na metade do Curso de Pedagogia, fui aprovada no processo seletivo
para estagiária da Escola de Educação Infantil do Serviço Social do Comércio
(SESC), em Salvador, meses depois sendo efetivada na condição de docente dessa
instituição. Essa experiência me trouxe intensos aprendizados e aquisição de novos
conhecimentos. Criamos, nesse ambiente profissional, um grupo de estudos com
todos os profissionais que atuavam na Educação Infantil, forjando um espaço de re-
flexão da própria prática, sempre alimentado por meus aprendizados no contexto da
formação superior.
Fui me apaixonando, nesse processo, pelo Curso de Licenciatura em Peda-
gogia, apesar das discriminações que já sentia na pele em função dessa escolha.
Cada componente curricular possibilitava o aprofundamento de questões que não
haviam sido contempladas no Magistério. Tudo que pulsava vida dentro da Faculda-
de me chamava a atenção, compondo o que costumo considerar como uma geração
21
3 Alguns trechos desse texto introdutório integram o artigo de minha autoria, intitulado “A formação de
jovens e adultos e a educação noturna: compreensões formativas de uma experiência baiana em
movimento”, publicado em Educação, territorialidade e formação docente: contextualizando
pesquisas.
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do-se ao fato de que, embora nossa Constituição afirme que a Educação Básica é
um direito de todos, o que se verifica, na prática, é que nem sempre o estado assu-
me as suas responsabilidades no que diz respeito à oferta e à qualidade da educa-
ção pública, especialmente para jovens e adultos trabalhadores. Ao formular políti-
cas para esta população, muitas vezes o estado negligencia suas condições de exis-
tência e suas reais necessidades, mantendo a Educação de Jovens e Adultos traba-
lhadores numa posição que, nas palavras de Rummert e Ventura (2007), é de subal-
ternidade.
Vale sublinhar que, para estes jovens e adultos brasileiros, a conclusão da
Educação Básica depende do retorno a um processo formativo que demanda não
apenas o investimento individual enquanto sujeito aprendente, mas também apoios
institucionais que frequentemente são desconsiderados pelas políticas públicas para
a Educação de Jovens e Adultos, de modo que estes apoios não se fazem ver no
cenário atual do sistema educacional brasileiro. É bom lembrar que a conclusão
dessa etapa de escolarização pode significar, para um jovem ou adulto, tanto o
acesso a educação superior como a possibilidade de encontrar melhores oportuni-
dades de emprego e viver um futuro com melhor qualidade de vida. Porém, para es-
tes jovens e adultos que ainda lutam pela elevação da sua escolaridade, não é sufi-
ciente o acesso à Educação Básica: fazem-se necessárias políticas de apoio estu-
dantil que contemplem as demandas destes atores, cuja condição de aprendizagem
tem suas particularidades.
Foi em face desse cenário que, em 2013, aceitei o convite para coordenar a
Educação de Jovens e Adultos no estado da Bahia, coordenação que, vinculada à
Superintendência de Políticas para a Educação Básica (SUPED), na Secretaria da
Educação (SEC), envolve a gestão pedagógica e administrativa da referida modali-
dade da educação, cujas origens remontam à década de 40 do século XX, após o
fim da II Guerra Mundial, quando questões relacionadas à educação básica passam
a adquirir relevância. A partir da referida experiência profissional nesta coordenação,
da qual já me desvinculei, fui movida intensamente em direção ao aprofundamento
crítico das questões que giravam em torno das políticas de apoio à formação dos
jovens e adultos que procuram as escolas públicas, motivo pelo qual pretendo inves-
tigar, através deste projeto de pesquisa: quais etnométodos e micropolíticas são
produzidas pelos (pelas) atores (atrizes) sociais da EJA, em particular pelos (as) es-
tudantes, a fim permanecer e concluir sua formação no nível da Educação Básica?
27
ressante notar que, embora a literatura sobre as políticas públicas para a EJA apon-
te para várias questões importantes para a constituição da EJA enquanto política
pública, não responde às questões básicas relativas aos apoios institucionais que
um estudante desta modalidade de ensino requer para dar continuidade à sua for-
mação. Além disso, não apresenta investigações mais voltadas para a atuação ativa
dos atores (atrizes) sociais curriculantes na construção de saídas para as ausências
nas políticas, ou seja, para a produção de micropolíticas por parte dos sujeitos da
EJA.
Ademais, não obstante autores como Arroyo (2013) façam referência ao en-
trelaçamento entre as trajetórias de vida e as trajetórias escolares na vivência dos
(as) discentes da EJA – sugerindo que a formulação de políticas para este segmento
da educação envolve pensar sobre os impasses da formação, ou seja, sobre as difi-
culdades de articular o tempo passado na escola, de estudo e de aprendizagem, e
os tempos de família e trabalho, tão típicos da vida jovem e adulta na pobreza –, o
fato é que as políticas públicas para esta modalidade da educação pouco têm con-
templado as políticas de permanência ao (à) estudante jovem e adulto (a) ao longo
do seu processo formativo na Educação Básica.
Em decorrência do contorno teórico-metodológico dessa investigação, dos ob-
jetivos e de minha implicação com o campo, essa pesquisa esteve inserida no cam-
po epistemológico e metodológico da fenomenologia, e desenhou-se com base na
abordagem multirreferencial de inspiração no contexto da etnopesquisa. O método
utilizado foi o da pesquisa contrastiva e dos estudos multicasos.
A presente investigação desenvolveu-se em duas escolas da rede estadual
de ensino da Bahia, localizadas no município de Salvador, tendo como atores (atri-
zes) sociais estudantes jovens e adultos (as) trabalhadores (as) e profissionais do
Ensino Médio na modalidade da Educação de Jovens e Adultos.
Desse modo, esse trabalho incialmente aborda o campo da Educação de Jo-
vens e Adultos no Brasil, por meio de uma breve contextualização, realçando aspec-
tos históricos e políticos. A partir dessa reflexão, problematizamos o campo das polí-
ticas públicas da/na EJA no Brasil e na Bahia, na tentativa de compreender as políti-
cas de permanência de jovens e adultos (as) na Educação Básica produzidas. Com
o intento de ir ao encontro dos (as) atores (atrizes) sociais da pesquisa, objetivando
compreender os etnométodos e micropolíticas produzidas para permanência na
Educação Básica, apresentamos as inspirações teórico-metodológicas que deram
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Nos últimos anos, mais precisamente durante o ano de 2016, o Brasil intensi-
ficou os questionamentos sobre a qualidade do Ensino Médio ofertado e sobre a re-
formulação deste, já que não tem cumprido efetivamente seu objetivo, haja visto que
não tem contribuído para o ingresso dos (as) estudantes no ensino superior, assim
como um número ainda tímido de jovens se encontram no mundo do trabalho.
Várias pesquisas têm apontado para a falta de atratividade dos currículos es-
colares, que, associada à baixa qualidade do ensino, tem sido um dos principais fa-
tores para o alto índice de evasão e de reprovação no Ensino Médio, isso no deno-
minado Ensino Médio seriado, frequentado por estudantes jovens, verificados atra-
vés das avaliações em larga escala aplicadas no país. As dificuldades que perpas-
sam o Ensino Médio foram comprovadas a partir da divulgação do Índice de Desen-
volvimento da Educação Básica (IDEB), referente ao ano de 2015, que se mostrou,
em sua maioria, abaixo da meta prevista.
Compreendendo que muitos dos jovens e adultos (as) que acessam o Ensino
Médio o fazem em busca da conclusão dessa etapa de escolarização da Educação
Básica, principalmente para fins de ingresso ou progressão em áreas profissionais
que possam garantir maior rentabilidade e, consequentemente, qualidade de vida
para si e para sua família, considerei que investigar de que maneira esses (as) estu-
dantes conciliam tempo de vida, de estudo e de trabalho seria importante para com-
preender essa problemática.
Pensando em toda essa questão, escolhemos investigar, através da escuta
sensível (BARBIER, 2007), alguns estudantes, professores (as), gestores (as) e ato-
res (atrizes) sociais que frequentam as escolas pesquisadas como espaços sociais
que têm contribuído para as políticas de permanência de jovens e adultos (as) na
Educação Básica no estado da Bahia.
Na contramão das políticas de permanência na EJA, desde 2013, a Secretaria
de Educação do Estado da Bahia vem desenvolvendo uma política de matrícula na
rede estadual de ensino, na qual se verifica uma redução significativa da oferta dos
anos iniciais da Educação Básica, que, numa escala de conversão, corresponderia
ao Ensino Fundamental, anos iniciais e finais, tendo como discurso e amparo legal o
artigo 11 , Inciso V, da LDB nº 9.394/1996 que afirma que:
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5 O termo território de identidade é aqui utilizado para referir-se ao espaço físico, geograficamente
definido, caracterizado por critérios multidimensionais, tais como o ambiente, a economia, a
sociedade, a cultura, a política e as instituições, e uma população com grupos sociais relativamente
41
A vinda, cada vez maior, dos (as) jovens nas salas de EJA tem modificado o
ambiente escolar, pois tem sido necessária a convivência dos (as) jovens com os
(as) adultos (as) e os idosos (as), cujas expectativas escolares e de vida são diferen-
tes, além de exigir uma nova postura do (a) professor (a).
distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, onde se
pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade, coesão social, cultural e territorial.
Disponível em: http://www.seplan.ba.gov.br. Acesso em: 02 abr. 2017.
42
Vale lembrar que, apesar da existência histórica de uma dívida social com os
(as) jovens e adultos (as) que não puderam continuar seus estudos em nível médio,
as políticas públicas existentes em nosso país, para esse campo de estudo, pouco
tocam questões nevrálgicas da formação de jovens e adultos (as) na Educação Bá-
sica.
Nessa pesquisa optei por utilizar o termo políticas de permanência à formação
de jovens e adultos (as), por considerar que o termo política assistencial estudantil6
carrega a histórica visão de assistencialismo, doação, benesse aos (às) estudantes
jovens e adultos (as) destinatários (as) dessas políticas. Nesse viés, as desigualda-
des são reduzidas às carências, os (as) diferentes são vistos (as) como atores (atri-
zes) sociais faltantes e não diferentes, que, portanto, necessitam de políticas que
realcem as especificidades de vida, orientação sexual, trabalho, vida, dentre outras.
Como bem observa Arroyo (2012), “as raízes estruturais, políticas, econômi-
cas da produção e reprodução da diversidade de desigualdades exige políticas mais
radicais e estruturais do que os tímidos programas de diminuição de distâncias soci-
ais.” (ARROYO, 2012, p. 167). Assim, é possível afirmar que a eliminação da dívida
social histórica desse país para com os (as) jovens e adultos (as), no que se refere
às condições para que o processo formativo na Educação Básica aconteça de forma
digna, terá lugar através da elaboração de políticas públicas a partir da escuta des-
ses (as) atores (atrizes) sociais.
Para Arendt (2010), agir, em seu sentido mais geral, significa tomar iniciativa,
iniciar (como indica a palavra grega archein, “começar”, “conduzir” e, finalmente,
“governar”), imprimir movimento a alguma coisa (que é o significado original do ter-
mo latino agere). Por constituírem um initium, por serem recém-chegados e iniciado-
res em virtude do fato de terem nascido, os homens tomam iniciativas, são impelidos
a agir. [Initium] ergo ut esset, creatus est homo, ante quem mullus fuit (para que
houvesse um início, o homem foi criado, sem que antes dele ninguém o fosse), diz
Agostinho, em sua filosofia política.
6 É importante distinguir acerca dos termos assistência e assistencialismo, que de acordo com o Con-
selho Federal de Serviço Social (CFESS), a assistência social é uma política pública prevista na
Constituição Federal e direito de cidadãos e cidadãs, tais como a saúde, a educação, a previdência
social, dentre outras. O assistencialismo, por sua vez, se constitui em uma: forma de oferta de um
serviço por meio de uma doação, favor, boa vontade ou interesse de alguém, e, não como um direito
assegurado normativamente.
44
[...] A crença popular de um ‘homem forte’, que, isolado dos outros, deve
sua força ao fato de estar só, é ou mera superstição, baseada na ilusão de
que podemos “produzir” algo no domínio dos assuntos humanos – “produzir”
instituições ou leis, por exemplo, como fazemos mesas e cadeiras, ou pro-
duzir homens ‘melhores’ ou ‘piores’ – ou é, então, a desesperança consci-
ente de toda ação, política e não política, aliada à esperança utópica de que
seja possível tratar os homens como se tratam outros ‘materiais’. (ARENDT,
2010, p. 235-236).
Esse trecho da obra de Arendt (2010) nos ajuda a refletir sobre tantas políti-
cas públicas pensadas e instituídas nos gabinetes institucionais, sem discussões
com o coletivo dos (as) atores (atrizes) sociais que serão impactados por elas. Políti-
cas que em muitas situações não levam em consideração os (as) atores (atrizes)
sociais diretamente envolvidos (as), tornando-se palavras ocas, sem eco, sem res-
sonância. É nesse sentido que pensar em políticas de permanência para jovens e
adultos (as) em processo de escolarização na Educação Básica deve, em primeira
instância, ouvir os (as) atores (atrizes) sociais envolvidos (as0: estudantes, professo-
res (as), família, órgãos colegiados, movimentos sociais, órgãos governamentais,
dentre outros (as).
Desse modo, para Arendt (2010, p. 220),
O discurso e a ação revelam essa distinção única. Por meio deles, os ho-
mens podem distinguir a si próprios, ao invés de permanecerem apenas dis-
tintos; a ação e discurso são os modos pelos quais os seres humanos apa-
recem uns para os outros, certamente não como objetos físicos, mas qua
homens. Esse aparecimento, em contraposição à mera existência corpórea,
depende da iniciativa, mas trata-se de uma iniciativa da qual nenhum ser
humano pode abster-se sem deixar de ser humano. Isso não ocorre com
nenhuma outra atividade da vita activa [...]
Política: 75% dos países relataram ter melhorado suas políticas na área
de aprendizagem e educação de adultos (as) desde 2009. 70% deles
promulgaram novas políticas;
Governança: 68% dos países relataram que ocorrem consultas entre as
partes interessadas na educação de adultos (as) e a sociedade civil, no
intuito de assegurar que os programas voltados à educação de adultos
(as) estejam vinculados às necessidades deste segmento;
Financiamento: foi identificado que a aprendizagem e a educação de
adultos (as) ainda recebem apenas uma ínfima parcela do financiamento
público, cerca de 42% dos países gastam menos de 1% dos seus orça-
mentos em educação pública na aprendizagem e educação de adultos
(as) e apenas 23% dos países gastam mais de 4%;
Participação: os índices de participação aumentaram em três entre cinco
países, mas uma grande parcela dos adultos (as) ainda está excluída da
aprendizagem e da educação de adultos (as);
Qualidade: 66% dos países compilam dados sobre índices de conclusão
de curso, e 72% compilam informações sobre certificação. 81% dos paí-
ses fornecem formação preparatória e formação em serviço para educa-
dores (as) e profissionais de aprendizagem e educação de adultos (as).
48
Esse pensar reflexivo sobre o cotidiano, expresso nas palavras dessa gesto-
ra, nos aponta para a retomada das ações coletivas pensadaspraticadas7 pelos (as)
atores (atrizes) sociais em prol da melhoria da oferta da educação proposta pe-
los/para os (as) jovens e adultos (as), que, em muitas situações, são afetados (as)
pelo alijamento dos seus direitos.
Macedo (2012) afirma que, quando a heterogeneidade coloca-se como condi-
ção humana, e o outro revela-se em dignidade e em conquistas igualitárias, as soci-
edades que se pautam na compreensão e na constituição social com o outro, a partir
de lutas políticas, se movimentam e se transformam, alterando-se por dentro, pois
compreendem que não existem leituras únicas do mundo, ou seja, cada um de nós
constrói identificações e, de forma articulada, produz pautas comuns, a partir de
análise e compreensões de suas realidades.
No prefácio da 49ª reimpressão do livro de Paulo Freire, Pedagogia da Auto-
nomia, o professor Ernani Maria Fiori inicia o texto falando do patrono da Educação
Brasileira; afirma que “Paulo Freire é um pensador comprometido com a vida: não
pensa ideias, pensa a existência” (FIORI, 2005, p. 7). Dito isso, posso afirmar que
Freire falava da necessidade de se pensar em formas de apoiar os (as) estudantes
trabalhadores (as) da EJA na sua vida existencial, o que implica conceber os (as)
jovens e adultos (as) com pessoas em sua totalidade.
No campo das pesquisas sobre as políticas públicas para a Educação de
Jovens e Adultos no Brasil, Pierro (2005) aborda o processo de redefinição da
identidade da Educação de Jovens e Adultos, desencadeado pelo reconhecimento
da identidade sociocultural dos (as) educandos (as), bem como pelo embate do pa-
radigma compensatório e da educação continuada ao longo da vida. Discute tam-
bém os desafios e impasses das políticas públicas para superar a posição marginal
ocupada pela EJA na reforma política realizada na segunda metade dos anos 90 do
século XX. Aponta ainda os principais desafios a serem respondidos pelas políticas
públicas no presente, tais como a articulação entre alfabetização e escolarização, as
estratégias de financiamento público e a colaboração entre as instâncias do gover-
no, assim como a formação e a profissionalização dos (as) educadores (as).
Ainda com o foco nas políticas públicas, Rummert e Ventura (2007) apontam
para o fato de que os principais programas para a educação de jovens e adultos (as)
7 O termo pensadopraticado é cunhado por Alves, ao se referir aos currículos escolares que são
criados no plano das ideias e se corporificam no cotidiano das escolas.
50
Médio). O primeiro Tempo Formativo é organizado em três Eixos Temáticos e tem a duração de 03
anos, os demais Tempos Formativos estão organizados em Eixos IV e V; VI e VII, respectivamente,
com duração de dois anos cada um desses Tempos.
54
9
O MPEJA apresenta três grandes áreas de concentração: educação, meio ambiente e trabalho; formação de
professores e políticas públicas; gestão educacional e tecnologias da informação e da comunicação.
57
[...] existimos compreendendo para poder viver e com isso, nos formamos.
Obviamente, a luta por uma melhor compreensão do mundo, de nós mes-
mos, de nossa formação, de nossas invenções e dos problemas que cria-
mos, deverá fazer parte do nosso trabalho do dia-a-dia, seja em termos
cognitivos, políticos, éticos, estéticos e espirituais. (MACEDO, 2010, p. 41).
Macedo (2010) nos faz refletir sobre a relevância da pessoa que se forma, em
toda sua complexidade11, do humano ser que carrega consigo marcas experienciais
próprias do mundo dos (as) jovens e adultos (as), as quais não podemos descartar.
O referido autor (2010) ainda fala da etnoformatividade, que se constitui em
um conjunto de experiências e condições envolvidas na formação dos (as) atores
(atrizes) sociais que vai se constituindo e incorporando seus etnométodos.
10 O conceito de do-discente é cunhado por Freire (2002), que considera a capacidade de ensinar e
aprender do docente, ou seja, ele tanto ensina quanto aprende ao ensinar.
11 O termo complexidade será tratado nesse texto de qualificação a partir da perspectiva moriniana.
58
Nesse aspecto, destaco que é nesse cenário de escuta clínica, ou seja, a es-
cuta que interpreta a singularidade dos (as) atores (atrizes) sociais, que se acentua
uma importante ação educativa – a “ex-posição do (a) ator (atriz) social”, ou seja, é
quanto ele (a) põe para fora aquilo que pensa e sente sobre o fenômeno formativo, o
que muito contribuirá com as condições das formações. Penso inclusive que as di-
versas condições pelas quais o processo formativo acontece interferem sobremanei-
ra na qualidade da formação realizada.
A formação aqui em pauta afina-se com a inspiração paulofreireana, na medi-
da em que assume um caráter político e ético, em níveis de existência cidadã em
aprendizagem, que requer reflexão e explicitação ampliadas e aprofundadas, esco-
lha, compromisso, corresponsabilidade, que vai além da informação, do aprender
simplesmente, do conhecimento e da ilustração.
É inspirada em Ardoino que darei relevância, nessa pesquisa, ao conceito de
negatricidade, ao discutir sobre o processo formativo de jovens e adultos (as), cada
um dos quais, à medida que se constitui em um Ser que se coloca diante do outro
como diferença, teria, portanto, as condições de re-existir ao constrangimento de ser
transformado em um pretenso produto fabricado em série, compondo estatísticas de
produção, mediante a qual trabalham a lógica do acúmulo e da “qualidade” cultiva-
das pela mercoeducação (MACEDO, 2010, p. 56-57).
Para Macedo (2010), o conceito de formação está intrinsecamente relaciona-
do com a noção de alteração, isto é, “a transformação em face da presença de um
Ser singular na presença de outro Ser singular; a possibilidade de ser um outro. Vale
ressaltar que no processo de formação nos alteramos com o outro e sem o outro.”
(MACEDO, 2010, p. 57).
Desse modo, podemos afirmar que formar-se implica, em termos de possibili-
dades, dar sentido à vida, a partir do que somos enquanto atores (atrizes) sociais e
o que vivemos enquanto atores (atrizes) sociais aprendentes, que nos formamos. É
provocar interrogações acerca da própria existência e das experiências dos (as) ou-
tros (as). Conforme Freire (1997), é compreender o estar no/com o mundo.
Sobre alteridade em Arendt (2010, p. 220), “a alteridade é, sem dúvida, as-
pecto importante da pluralidade, a razão pela qual todas as nossas definições são
distinções, pela qual não podemos dizer o que uma coisa é sem distingui-la da outra
[...]”.
59
O referido autor (2010) apresenta aspectos fundamentais que não podem ser
desconsiderados nas discussões sobre formação. No entanto, considero necessário
acrescentar a perspectiva da formação enquanto condição político-existencial, como
condição de sobrevivência da espécie humana. Desconsiderar essa condição é ne-
gar a capacidade inerente dos seres da formação de interpretarem o mundo, de in-
dagarem, de filtrarem e reconstruírem incessantemente suas experiências formati-
vas, que são tecidas também fora dos espaços oficialmente eleitos como formativos,
nos movimentos sociais, nos espaços de luta e de sobrevivência, de forma intuitiva,
por derivas.
É mediante as palavras de Macedo (2010) sobre a temática da formação que
nos aproximamos do dilema da formação de jovens e adultos (as), que, concebidos
como atores (atrizes) sociais, não podem ser desconsiderados em sua dimensão da
autoformação, muito presente nas discussões sobre formação de jovens e adultos
(as), e que por vezes apresenta-se denominada de autodidaxia; autoaprendizagem,
dentre outros termos.
É a condição da autoformação que impulsiona muitos (as) jovens e adultos
(as) a retornarem a seus estudos em virtude de novos rumos da vida, inclusive da
vida profissional, de novos desafios e projetos de vida, que na juventude e na fase
adulta foram se (re)definindo.
60
Essa sessão tem como objetivo descrever e esclarecer minhas opções epis-
temológicas, metodológicas e políticas. As reflexões que compartilho sobre minhas
itinerâncias durante essa pesquisa doutoral apresentam meu olhar enquanto pesqui-
sadora implicada no campo da EJA. Dialogo “de dentro” deste campo, e, portanto,
das minhas “dobras”, o que se constitui em um grande desafio, pois minha aproxi-
mação com esse campo, quer na condição de professora, gestora, militante ou pes-
quisadora, me ofereceram condições singulares de interpretação da realidade, tor-
nando “familiar” este meu olhar em relação ao campo, exigindo de mim um exercício
de “estranhamento” para que fosse possível compreender para além do “familiar”.
Para Velho (2006), “[...] o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar
mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser
exótico mas, até certo ponto, conhecido.” (VELHO, 2006, p. 126). Foi nessa pers-
pectiva que minha inserção no campo exigiu de mim o exercício de transformar o
familiar em conhecido, na medida em que avançava na pesquisa.
Velho (2006, p. 133) considera que “[...] o processo de estranhar o familiar
torna-se possível quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo
emocionalmente, diversas versões e interpretações a respeito de fatos, situações”.
Esse confronto intelectual e emocional das diversas versões que se apresentam a
respeito de situações no/do cotidiano exige de nós muita maturidade e ética, acima
de tudo para perceber que se trata das perspectivas dos atores sociais envolvidos
(algumas das muitas referências em que se pautam pesquisas no modelo multirrefe-
rencial), eles “falam”, expressam suas “verdades” a partir do lugar em que se encon-
tram.
Sobre essa questão, lembro-me que, no contexto da gestão estadual da EJA,
estive no lugar de vários confrontos: comigo mesma, com a legislação e com as in-
terpretações dos outros a respeito das políticas públicas estaduais, que ora conduzi-
am para o fortalecimento dessa modalidade de educação, ora fragilizavam as políti-
cas públicas já existentes, principalmente quando inúmeras turmas de EJA foram
fechadas, sob a justificativa do reduzido número de estudantes, desconsiderando-se
as especificidades desses atores (atrizes) sociais, suas condições de vida, de estu-
do e de trabalho.
63
Boumard (1999) sinaliza que o olhar etnográfico define uma postura e não
somente uma técnica. Nessa perspectiva, a ideia foi ir a campo, registrar, escutar,
sentir de que maneira os (as) atores (atrizes) sociais produzem sentidos sobre a vi-
da, sem fazer disso “a administração da prova”, como o próprio autor indica, mas sim
elementos para que o discurso do outro faça sentido.
Assim, Boumard (1999) considera que, para compreender o sentido complexo
da situação, é preciso nela própria penetrar e apreendê-la nas interações entre os
(as) diferentes atores (atrizes), sem prejuízo das consequências para o (a) investi-
gador (a).
Desse modo, podemos dizer que essa pesquisa se constituiu em uma etno-
pesquisa de inspiração fenomenológica, já que, “[...] para a fenomenologia, a reali-
dade é o compreendido, o interpretado e o comunicado. Não havendo uma só reali-
dade, mas tantas quantas forem as interpretações e comunicações, a realidade é
perspectivas.” (MACEDO, 2010, p. 15).
Nesse lugar de provisoriedade do conhecimento em que se assenta essa
pesquisa, compreende-se o caráter de provisoriedade e transitoriedade da realidade,
que é sempre coconstruída através do olhar. O conhecimento é resultado de um
processo de significação que não é só do (a) pesquisado (a), mas também do (a)
pesquisador (a).
De acordo com Macedo (2010, p.15), uma pesquisa de orientação fenomeno-
lógica parte do princípio de que é impossível “pleitear o conhecimento fora dos âmbi-
tos existenciais”. É na existência e “(re) existência” (PAIM, 2013) dos (as) estudantes
jovens e adultos (as), no cotidiano da escola e na escuta das suas condições de vida
que essa pesquisa se robustece. Não há como pensar sobre isso fora do contexto
desses (as) atores (atrizes) sociais, e aqui é importante dizer que esse contexto se
confunde com minhas itinerâncias profissionais e acadêmicas.
Nos estudos de Macedo (2012) sobre a etnopesquisa implicada, ele nos con-
voca à condição de pesquisadora que se autoriza de forma implicada. Para o referi-
do autor (2012), a etnopesquisa é um caminho metodológico que valoriza os estudos
de campo. Assim, inspirada na etnografia, no interacionismo simbólico, nos sociólo-
gos da Escola de Chicago, a etnopesquisa implicada contribuiu para a presente in-
65
vestigação, por meio da escuta sensível12 (BARBIER, 2007) dos (as) atores (atrizes)
sociais. Procura-se compreender, por meio dos etnométodos, ou seja, das maneiras
pelas quais significam e resolvem situações do cotidiano – no caso dessa pesquisa,
como os (as) estudantes (as) jovens e adultos (as) produzem maneiras particulares
para permanecerem nos estudos na Educação Básica.
Nas palavras de Macedo (2012, p. 89), “[...] o etnopesquisador caminha fun-
damentalmente entre as compreensões de compreensões.” dos (as) diversos(as)
atores(atrizes) sociais e suas formas peculiares de resolver questões do cotidiano.
Nesse sentido, através dessa investigação pretendi, no contexto da etnopesquisa,
uma abordagem multirreferencial.
No caso dessa pesquisa, a opção pela etnopesquisa implicada foi, acima de
tudo, uma opção política de quem acredita que a pesquisadora em formação e sua
trajetória de vida não podem e não devem ser desconsideradas durante o processo
de pesquisa – sua leitura compreensiva é implicada.
Nessa pesquisa, o termo implicação é concebido como um modo de criação
de saberes (KOHN, 2002; DEVEREUX, 1980). Macedo (2012) considera que o valor
vinculante significará não só o comprometimento e o compromisso, mas também,
12 O conceito de escuta sensível (BARBIER, 2007) será aprofundado no próximo tópico, em que
abordarei os dispositivos metodológicos da pesquisa.
66
derar o (a) ator (atriz) social e sua capacidade de produção de saberes, Garfinkel
(1984) inaugura o conceito de etnométodos, que se constitui em seu objeto de estu-
do: “[...] os procedimentos intersubjetivamente construídos que as pessoas na sua
cotidianidade empregam para compreender e edificar suas realidades.” (MACEDO,
2006, p. 70).
Nessa pesquisa, o conceito de etnométodos apresenta relevância, conside-
rando que a compreensão dos etnométodos produzidos pelos (as) estudantes jo-
vens e adultos (as) para darem continuidade aos estudos na Educação Básica cons-
titui o cerne dessa investigação.
Para Silva, Devide, Ferraz, Peterei e Peçanha (2015), o corpus da pesquisa
etnometodológica é o conjunto dos etnométodos. Ainda de acordo com os (as) refe-
ridos (as) autores (as), o termo etnometodologia significa o estudo dos etnométodos,
que são os métodos de que todo (a) ator (atriz) social se utiliza para descrever, in-
terpretar e construir o mundo social. Desse modo, a sociologia de Garfinkel (1984)
se institui sobre o reconhecimento da capacidade reflexiva e interpretativa própria
dos (as) ator (atrizes) sociais.
Sob essa perspectiva, o conceito de etnométodos anuncia que os (as) atores
(atrizes) sociais constroem maneiras particulares para resolver os problemas dos
cotidianos. Para Macedo (2012), os etnométodos produzidos pelos (as) atores (atri-
zes) sociais nos possibilitam compreender como estes (as) constroem as realidades
em que estão envolvidos (as) /implicados (as) e marcam essas realidades com todas
as condições sob as quais foram edificadas.
Dessa maneira, Silva, Devide, Ferraz, Peterei e Peçanha (2015) destacam
que a etnometodologia interessa-se pelo papel criativo desempenhado pelos (as)
atores (atrizes) na construção de sua vida cotidiana, atribuindo relevância aos por-
menores dessa construção.
Assim, para Garfinkel (1984), num processo dialético e dialógico, os (as) ato-
res (atrizes) sociais produzem seus etnométodos, quer dizer, suas maneiras de per-
ceber para compreender e intervir propositivamente na vida, o que nos leva a perce-
ber que os etnométodos são impregnados de histórias singulares. Macedo (2015, P.
30), considera que “[...] só a narrativa dos agentes-atores-sujeitos pode, via a expe-
riência irredutível deles, descrever e atualizar esses modos de pensarfazer a vida”.
68
13 É importante destacar que as expressões molar e molecular, macro e micropolítica, como Guattari
declara, são suas contribuições oriundas da formação em Farmácia (GUATTARI; ROLNIK, 2007, p.
149).
69
Sob essa perspectiva, Guattari e Ronilk (2007, p. 154) consideram que o pro-
blema de uma análise micropolítica é “justamente de nunca usar um só modo de
referência”. Os referidos autores ressaltam ainda que “a questão da micropolítica é a
de como reproduzimos (ou não) os modos de subjetivação dominantes.” (GUATTA-
RI; RONILK, 2007, p.155). Significa dizer, pois, que o que está em foco é a dinâmica
dos processos de subjetivação e de agenciamento da vida realizada por diferentes
sujeitos e grupos humanos, realizado no acontecer da vida de relação. São estes
processos moleculares, na sua relação com os molares, que movimentam a vida, e
que, no tempo, podem mobilizar mudanças, mais ou menos significativas.
Ferreira Neto (2015) ressalta que o princípio de que ambas as dimensões es-
tão intimamente entrelaçadas nos conduz à compreensão de que não se deve subs-
tituir a análise macropolítica pela micropolítica, mas que se deve agregar a segunda
à primeira, mais explorada. Contudo, a presença de agenciamentos complexos na
dimensão molecular entrelaçados com a molar torna seu manejo mais suscetível a
erros de avaliação tanto no nível prático quanto no nível teórico.
Deleuze e Guattari (1995) falam de uma “potência micropolítica ou molecular”
como um campo de intensidades que tende a agitar e manejar os segmentos ma-
cropolíticos. É interessante ressaltar que, para os referidos autores (1995), na pers-
pectiva micropolítica, uma sociedade não se define por suas contradições, mas por
“suas linhas de fuga […] Sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organi-
zações binárias” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 94). E esse vazamento deve-se,
justamente, a esta movimentação que se dá no plano molecular.
Para Ferreira Neto (2015), podemos considerar que a macropolítica molar e a
micropolítica molecular podem ser distinguidas no nível analítico, mas são sempre
inseparáveis em seu acontecer. Nesse sentido, nosso foco não deve ser unilateral-
mente, a micropolítica, mas as articulações entre micro e macropolítica.
Lazzarato (2011) afirma que as noções de macro e micropolítica possuem
uma fecundidade heurística ainda a ser explorada, especialmente no período em
que as análises macropolíticas revelam certo esgotamento.
70
Desse modo, Ferreira Neto (2015) compreende que Deleuze e Guattari bus-
caram, incessantemente, construir um olhar sobre a política do ponto de vista da
micropolítica. Para o referido autor (2015), “[...] dado o caráter inovador desse con-
ceito forjado diretamente no núcleo em que a política ‘acontece’, isso não é pouco.”
(FERREIRA NETO, 2015, p. 405).
Guattari e Ronilk (2007, p. 157) afirmam ainda que,
Inicialmente considero pertinente falar sobre minha opção pelo termo disposi-
tivo. O conceito de dispositivo tratado aqui é inspirado em Ardoino (2003, p. 80), co-
mo “[...] uma organização de meios materiais e/ou intelectuais, fazendo parte de
uma estratégia de conhecimento de um objeto.”
Trago-o aqui, inspirada em Macedo (2012), quando diz que a ideia de disposi-
tivo é tomada como práticas e criações humanas, abrindo mão da concepção aplica-
cionista. Para o autor (2012), um dispositivo é o prolongamento da capacidade hu-
mana de interferir nas realidades. É desse modo que compreendo que, ao pensar
em dispositivos de produção de informações, ou de saberes, como prefiro, encontro-
me aberta à dinâmica relacional do campo, ao inusitado, ao devir, ao que o campo
pode me proporcionar.
Para Paquay, Chahay e Ketele (2006 apud MACEDO, 2018, p. 35),
73
Esse foi meu maior desafio: olhar o campo da EJA, prestar atenção com o
olhar do estrangeiro em espaços que me são familiares. Para Boumard (1999), o
etnógrafo, definido como tal em função de seu olhar, é ao mesmo tempo implicado.
Para Velho (2006, p. 123),
É justamente desse campo situado e dinâmico que pretendo falar, pois aten-
der ao cronograma de pesquisa determinado por um prazo acadêmico nem sempre
é tarefa fácil, considerando que estamos no campo das ciências humanas. Portanto,
adiamentos de entrevistas em virtudes de outras demandas da gestão ou remarcar
as observações porque a escola suspendeu aula em virtude de intempéries traba-
lhistas, em prol de reivindicações de seus direitos, nos impõe outro ritmo e outra
qualidade de vida na produção.
Concordo com Velho (2006, p. 127), quando ele afirma que,
Em sua obra Etnografia crítica, Etnografia Formação, Macedo (2006) nos ins-
tiga a refletir sobre a escuta do outro, impulsionando-nos a sair de nós mesmos e
nos deslocar do nosso lugar, já que
Minha inspiração pela produção de saberes por meio dos diálogos formativos
deu-se a partir das leituras das obras de Paulo Freire (1974, 1997, 2005), pois en-
contrei nos princípios epistemológicos do referido autor, a possibilidade de fomentar
o diálogo entre os (as) atores (atrizes) sociais colaboradores (as) dessa pesquisa,
realçando um tom de respeito aos saberes por eles (as) produzidos. Para Dalmolin,
Faria, Perão, Nunes, Meirelles e Heidemann (2016), a concepção dialógica freirea-
na, por meio de um olhar político/filosófico, demonstra que a vida humana tem um
significado, enquanto razão de ser, e está além das relações de opressão presentes
na sociedade.
Freire (1974) falava em Círculos de Cultura quando estava incentivando a
realização de encontros didático-pedagógicos ou a outras vivências culturais e edu-
cacionais, pautados no processo de ensino e de aprendizagem. Podemos considerar
que os círculos de cultura se constituem dispositivos de formação na medida em que
favorecem o diálogo, a participação, o respeito e o trabalho em grupo, em torno de
um tema especificado por um ou mais mediador (a).
Durante a presente pesquisa, desejava realizar diálogos com o grupo de co-
laboradores (as) sem a formalidade requerida pelo grupo focal, e, para tanto, consi-
derei que nomear esse momento como diálogos formativos se aproximava mais
dessa perspectiva.
Ademais, é interessante ressaltar que, mesmo conferindo um tom de informa-
lidade a esse momento da pesquisa, tornou-se necessário revisitar os objetivos, a
organização da pesquisa, o quadro teórico e as formas de interação com os (as) ato-
res (atrizes) sociais colaboradores (as), sem perder de vista o construto dessa pes-
quisa.
Nessa investigação, em que problematizo saberes e experiências dos (as) jo-
vens e adultos (as), considero os diálogos formativos como espaços fecundos para
provocar a produção de novos saberes. Essa concepção ganhou “guarida” nessa
79
Concordo com o fato de o campo muitas vezes nos pregar “várias peças”, nos
impondo um ritmo outro. Em inúmeros momentos, tive de abrir mão da agenda já
estabelecida para dar conta de acontecimentos que se apresentavam sem um pla-
nejamento prévio, mas que prometiam ser muito ricos para o escopo da pesquisa,
pelo menos na ótica de uma pesquisadora interessada em se aventurar nas discus-
sões sobre as políticas de permanência de jovens e adultos (as) na Educação Bási-
ca.
Sempre busquei nas observações participantes, nas entrevistas semiestrutu-
radas e nos diálogos formativos, numa perspectiva de cuidado com rigor, uma apro-
ximação com meus (minhas) colaboradores (as) da pesquisa.
Inspirada em Macedo (2012), optei por utilizar o conceito de atores (atrizes)
sociais, considerando que os (as) participantes da pesquisa são “[...] instituintes or-
dinários das suas realidades; são teóricos (as) e sistematizadores (as) dos seus co-
tidianos e, com isso, edificam as ordens sociais em que vivem.” (MACEDO, 2012, p.
22), são sujeitos coletivos criadores (as) e recriadores (as) de conhecimento. Desse
modo, são produtores (as) de descritibilidades, inteligibilidades e analisabilidades
relacionadas às bacias semânticas.
Assim, os (as) estudantes trabalhadores (as) da EJA, os (as) professores (as)
que atuam nessa modalidade de educação, bem como gestores (as) escolares, são
os (as) atores (atrizes) sociais centrais desta pesquisa, que na presente tese optei
em não revelar seus nomes, preservando a identidade dos (as) mesmos (as), bem
como das escolas investigadas. Desse modo, nomeei personalidades nacionais que,
em sua trajetória de vida lutaram em prol dos direitos humanos. Mas a atenção foi
destinada também às pessoas que em certa medida influenciam o campo da EJA na
Bahia, tais como: gestora estadual da EJA, coordenadora do Mestrado Profissional
de EJA, conselheira do Conselho Estadual da Bahia, bem como a coordenadora do
Fórum Estadual da EJA Bahia. Assim, o conjunto de entrevistas, diálogos formativos
e observações participantes caracterizaram-se como dispositivos de produção de
saberes sobre o campo e seus atores e suas atrizes sociais. Importante dizer que,
em face do tempo exíguo para a finalização da tese, não pude fazer uma análise
cuidadosa dos relatos destes (as) últimos (as) atores e atrizes sociais do campo da
EJA, o que será criteriosamente feito em artigo a ser publicado após a tese. Na tese,
optei por dar destaque aos etnométodos e às micropolíticas das duas instituições
escolares estudadas e, sobretudo, a seus atores e atrizes curriculantes.
81
14 Esse texto constitui parte integrante do capítulo elaborado por mim, intitulado “A formação de
jovens e adultos e a educação noturna: compreensões formativas de uma experiência baiana em
movimento”, integrante da obra Amorim, Silva e Castro, Educação, territorialidade e formação
docente.
83
15 A Península de Itapagipe é uma região localizada na Cidade Baixa, que agrega diversos bairros,
dentre eles: Bonfim, Ribeira, Uruguai, Massaranduba, Vila Rui Barbosa, Caminho de Areia, Boa
Viagem, Dendezeiros, Mont Serrat, Roma, dentre outros.
84
16 Os municípios da Bahia que fazem parte da Região Metropolitana de Salvador são: Salvador,
Camaçari, São Francisco do Conde, Lauro de Freitas, Simões Filho, Candeias, Dias d’Ávila, Mata
de São João, Pojuca, São Sebastião do Passé, Vera Cruz, Madre de Deus e Itaparica, totalizando
cerca de 4 milhões de habitantes. Disponível em:
https://www.suapesquisa.com/geografia_do_brasil/regiao_metropolitana_salvador.htm. Acesso em:
12 fev. 2019.
86
prefiro ponderar que atuar na EJA é um campo complexo. Nesse sentido, parto da
concepção de complexidade assumida por Morin (1982, p. 221), segundo o qual,
a complexidade é uma noção cuja primeira definição não pode deixar de ser
negativa: a complexidade é aquilo que não é simples. O objeto simples é o
[...] que pode ser concebido como uma unidade elementar indecomponível. A
noção simples é a que permite conceber este objeto de forma clara e distinta,
como uma entidade isolável do seu ambiente. [...] A causalidade simples é a
que pode isolar a causa e o efeito e prever o efeito da causa segundo um es-
trito determinismo. O simples exclui o complicado, o incerto, o ambíguo, o
contraditório. Os fenômenos simples correspondem a uma teoria simples. To-
davia, pode-se aplicar a teoria simples a fenômenos complicados, ambíguos,
incertos. Faz-se então simplificação. O problema da complexidade é o que é
levantado por fenômenos não redutíveis aos esquemas simples do observa-
dor. É certo, pois, supor que a complexidade se manifestará primeiro, para
este observador, sob forma de obscuridade, de incerteza, de ambiguidade e
até de paradoxo ou de contradição.
É interessante atentar que ao mesmo tempo que Morin afirma que a comple-
xidade é a negação da simplicidade, afirma que ela também não se reduz à compli-
cação. Para Morin (2011, p. 69),
Esse mesmo autor afirma ainda que “[...] estamos condenados ao pensamen-
to incerto, a um pensamento trespassado de furos, a um pensamento que não tem
nenhum fundamento absoluto de certeza.” (MORIN, 2011, p. 69).
Nas palavras de Macedo (2015, p. 91),
Para Macedo (2012, p. 92), “[...] o saber criado emerge de uma recontextuali-
zação, de um entre-nós, de um entre-dois, da intercrítica compósita, híbrida, constru-
ída pelo etnopesquisador, fazendo esforços para evitar conclusões integrativas e
assimilacionistas.” Acreditamos, a partir dessa perspectiva formativa da pesquisa,
que o (a) ator (atriz) social não é anulado (a) pelo (a) pesquisador (a), mas é produ-
zido nesse encontro, diálogos compreensivos que potencializam tanto o (a) partici-
pante da pesquisa quanto o (a) pesquisador (a).
Creio que analisar a complexidade do campo da EJA requer uma leitura do
fenômeno a partir de diferentes perspectivas, a partir da compreensão de diferentes
sistemas de referência. Inspirada nessa perspectiva, intento nesse capítulo compre-
ender os relatos do campo a partir de uma postura de reflexividade, requerido pelo
objeto de estudo, a partir de vários referenciais. Assim, a escuta aos (às) estudantes
da Educação de jovens e Adultos de duas escolas públicas estaduais se constituí-
ram em momentos importantes da pesquisa, bem como a escuta dos (as) profissio-
nais dessas escolas, através dos diálogos formativos.
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Início essa sessão com o registro que fiz em uma aula do Prof. Roberto Ma-
cedo (2015), no componente curricular Métodos e Técnicas da Pesquisa, do Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação. Ao iniciar a aula sobre interpretação dos
conhecimentos produzidos no campo de pesquisa, o referido professor citou o poe-
ma de Eduardo Galeano (2002, p. 12), para realçar a relevância da nossa percepção
com “os achados da pesquisa”:
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadlof, levou-o para que des-
cobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das
dunas altas, esperando.
- Me ajuda a olhar!
Macedo (2006, p. 139) destaca algumas operações cognitivas que são ne-
cessárias para a análise e interpretação dos conhecimentos:
Difícil não iniciar essa análise reafirmando que nossos (as) colaboradores (as)
eram, em sua grande maioria, mulheres e homens negros (as), oriundos(as) das
camadas populares, cujas trajetórias de vida são marcadas pela luta pela sobrevi-
vência e, como a composição de Dona Yvonne Lara expressa, “negro sem emprego,
fica sem sossego”. E é na falta dessa paz – quando as necessidades diárias “batem
à sua porta” – que muitas mulheres e homens jovens e adultos (as) criam alternati-
vas informais para sobreviver, tendo que optar pelo trabalho (que para a grande
maioria exige esforço físico diário), em detrimento dos estudos. Aqueles (as) que
conseguem conciliar trabalho e estudo para concluir a Educação Básica trazem con-
sigo marcas de superação ao longo de sua trajetória escolar.
Lembro-me de uma amiga que conheci na época em que trabalhei na SEC,
que dizia que “[...] toda vez que a escola tenta medir forças com o trabalho, ela per-
de.” (CASTRO, 2013). Isso nos faz compreender, de alguma forma, as sucessivas
tentativas malsucedidas de continuidade dos estudos que jovens e adultos (as) tive-
ram ao longo de suas vidas, nas quais a escola talvez tenha tentado medir forças
com o trabalho, sem êxito do ponto de vista da continuidade da vida escolar. Para os
jovens e adultos (as) das camadas populares, as demandas externas à escola –
que, nesse caso, podemos dizer que é o correspondem ao trabalho – competem for-
temente com a escolarização, exercendo sobre este ambiente uma força muitas ve-
zes descomunal, capaz, não raro, de retirar estes atores sociais do fluxo contínuo da
vida estudantil. Sobre a questão de sobrevivência da produção da vida material,
condição sine qua non da existência humana, Marx e Engels (2007, p. 53) diziam:
E são essas condições de viver a que Marx e Engels (2007) se referem que
funcionam como marcas identitárias dos sujeitos da EJA. Não considerá-las em seu
processo formativo é negar a sua existencialidade, sua condição de estudante-
trabalhador.
É importante salientar que, no caso dos estudantes da EJA, a entrada no
mundo do trabalho tem sido antecipada em virtude das necessidades de sobrevi-
vência. Felícia Madeira (2006), em artigo intitulado Educação e desigualdade no
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tempo de juventude, alerta para o fato de que, além de ser uma marca da transição
para a vida adulta, a antecipação da entrada do jovem no mundo do trabalho rever-
bera em outras questões:
Esse déficit educacional a que se refere Madeira (2006) foi observado nas
histórias de vida dos estudantes colaboradores desta pesquisa. Na fala de Custódia
Machado, compreendemos o quanto conciliar trabalho e estudo vem se constituindo
um grande desafio, na medida em que a permanência na escola requer esforço de
driblar o cansaço e continuar sua jornada no noturno:
Na sequência do seu relato, Custódia Machado ainda declara que, ainda que
com o cansaço inerente ao trabalho realizado, tem consciência da necessidade de
dar continuidade aos estudos, o que a faz buscar forças para ir à escola, pois, como
diz, “se eu não for para escola, quem vai se prejudicar sou eu”. Sobre a questão do
prejuízo de jovens que abandonam os estudos e sua relação com a pobreza, Madei-
ra (2006, p. 147) observa que,
Vários (as) jovens e adultos (as) vivenciaram períodos longos sem estudo,
muitas vezes por motivos que não foram produzidos por eles (as), mas pelas condi-
ções familiares, sociais e de gênero, o que os (as) faz estacionar em condições de
vida subumanas.
Constatamos isso no relato da história de vida de Custódia, quando afirma:
“Eu fiquei 8 anos sem estudar, mas não porque eu não queria, e sim porque eu fui
obrigada a parar de estudar”. Ela relata que não tinha um bom relacionamento com
a tia, o que a fez sair de casa e morar em um abrigo, passando por situações cons-
trangedoras na luta pela sobrevivência, fato esse que a distanciou ainda mais da
escola.
Conciliar trabalho e estudo para Custódia Machado tem sido tarefa deveras
complicada; nas palavras da própria colaboradora, “a mente fica cheia” – cheia de
preocupações e de conteúdos a serem estudados. É importante salientar que, para
muitos (as) jovens e adultos (as) que resolvem retornar à escola, a visão que possu-
em desse espaço educacional ainda é a mesma de anos atrás. Isso nos ajuda a
compreender a “mente cheia” a que Custódia se refere. Paivandi (2012) considera
que, na Educação Básica, os (as) estudantes muitas vezes são submetidos a uma
lógica de acumulação de conhecimentos e ausência de diálogo entre os componen-
tes curriculares, sendo que “[...] os alunos têm, frequentemente, a tendência de ado-
tar uma abordagem passiva em relação à aprendizagem, fundada na memorização
ou acumulação de conhecimentos destinados a fazer com que obtenham sucesso
nos exames [...]” (PAIVANDI, 2012, p. 32).
Para alguns (as) jovens e adultos (as), apesar dos esforços empreendidos pe-
lo coletivo de profissionais que atuam na instituição escolar no intuito de desenvolver
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que, conclui, chegar atrasada e perder parte da aula é melhor do que deixar de
comparecer e acabar por abandonar a escola.
Apesar de a escola investigada constituir uma instituição criada para ofertar
cursos de Educação Básica para estudantes trabalhadores que estudam no turno
noturno, a proposta curricular não logrou contemplar a mudança de horário de início
das aulas para o Ensino Médio Noturno, permanecendo um horário que, na prática,
não atende às necessidades dos (as) estudantes que estudam nesse turno, ficando
sob a responsabilidade tanto destes quanto do(a) docente criar acordos tácitos que
contribuam para a permanência dos (as) estudantes-trabalhadores (as) na escola.
Na tentativa de conciliar o trabalho com os estudos, alguns (as) estudantes
produzem outros etnométodos, tal como Maria da Penha, que consegue distanciar-
se mentalmente dos afazeres domésticos por fazer e concentrar-se nas tarefas es-
colares demandadas pelos (as) professores (as); com isso, garante sua aprovação e
evita a própria evasão:
Eu mesma, eu sou dona de casa, eu não ligo pra nada. Quando o professor
passa trabalho mesmo, foi ontem, passou trabalho de História. Eu acordei
cedo, eu não fiz nada em casa, só fiz malmente almoçar, peguei e descan-
sei um pouquinho e fiz o trabalho. Fiz 10 ou foi 12 pesquisas, tudo em um
dia só. Enfim, peguei e entreguei pra ele me dar nota, odeio tomar zero! [sic]
(risos gerais) (EC Maria da Penha).
Em seu relato, Lélia afirma que parou de estudar no 2º ano do Ensino Médio,
o que a impediu de estar trabalhando na área em que gostaria de atuar. Ao mesmo
tempo, relata que, em retornando aos estudos, percebeu o tempo que havia perdido
desde que os interrompeu. Na sua história de vida, Lélia relata que o marido tem
sido um apoiador para que conclua a Educação Básica, haja vista que ele também
não pôde concluir os estudos, mas considera que ela precisa dar-lhes continuidade.
Em sua fala, Lélia destaca o quanto o estudo “abre a mente” das pessoas e ninguém
“enrola a gente”, o que nos leva a crer que considera importante ampliar sua com-
preensão da vida, para que possa ter condições de definir o próprio destino. Lélia
nos fala sobre ampliação de conhecimentos, de liberdade de escolha, de tomada de
decisões, formação cidadã, enfim, questões fundantes para a educação emancipató-
ria, conforme preconizava Freire (1997).
O relato do único representante masculino presente ao diálogo formativo per-
tence a Mestre Moa, estudante que veio de outra experiência escolar recente 17 e
desenvolve atividades profissionais como garçom. Moa confessa que não pretende
interromper os estudos e afirma que, apesar das dificuldades de conciliar trabalho e
estudo, o que acarreta muito cansaço físico, deseja seguir lutando, ou melhor, no
“cabo de guerra”. Desse modo, podemos considerar que “seguir lutando” é um et-
nométodo adotado por dele, na medida em que não desiste das adversidades, que,
nesse caso, se corporificam no cansaço físico do labor e na indisposição mental pa-
ra estudar.
Eu sigo pelo mesmo caminho dela, não pretendo parar. As dificuldades que
eu tenho no trabalho são muitas, chego cansado [...] Mas não vou parar, eu
vou seguir porque eu quero crescer mais um pouquinho, não quero ficar
como eu tô não, quero ser maior. Aí eu tô igual a ela, lutando. [sic] (EC,
Mestre Moa)
17Mestre Moa estudava em uma escola que ofertava exclusivamente cursos e exames da EJA, mas
em 2015, frente à política de reordenamento da rede estadual, essa escola foi fechada e os
estudantes transferidos para o Centro Noturno de Educação da Bahia Joana Angélica.
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É recorrente, na narrativa de Moa, que ele não vai parar de estudar, o que
pode ser compreensível, já que encetou inúmeras tentativas de dar continuidade,
sem êxito, aos estudos. É interessante destacar o esforço que ele faz para se con-
vencer de que, apesar das dificuldades, prosseguirá em seus estudos.
Em sua grande maioria, os (as) estudantes jovens e adultos (as) envolvidos
(as) em atividades profissionais que lhe consomem grande parte do tempo e cujos
conhecimentos escolares não mantêm relação com a área profissional, enfrentam
grande dificuldade em conciliar os estudos com o trabalho, haja vista que o tempo
para se dedicarem à leitura de textos e realização dos trabalhos escolares é exíguo,
o que contribui para sua infrequência ou mesmo o abandono da escola.
Retomando a questão da migração de escola, experiência vivenciada por
Mestre Moa, importa lembrar que torna-se em alguns casos prejudicial para muitos
(as) jovens e adultos (as), pois vários fatores – dentre os quais mudança de endere-
ço da escola, ruptura de laços afetivos e troca de professores (as) – podem produzir
outra interrupção nos estudos. Por sua vez, o Ceneb Joana Angélica, escola que
recebeu esses estudantes no momento da extinção do turno noturno de várias esco-
las do entorno, necessitou produzir etnométodos que favorecessem a permanência
deles, por meio de práticas de acolhimento e encantamento.
É importante salientar que esse fato fez do Ceneb Joana Angélica uma escola
que, ao longo dos anos, não enfrentou tantos problemas relativos a baixa matrícula;
pelo contrário, foi consolidando marcas de êxito no acolhimento dispensado aos (as)
estudantes e no trabalho pedagógico desenvolvido. Esses resultados positivos acar-
retaram, em vários momentos de sua existência, a criação de lista de espera de jo-
vens e adultos (as) que pretendiam estudar na referida instituição.
Outro aspecto realçado no relato de Mestre Moa é a questão de que ele tem
uma meta que o mantém firme na escola: ele quer “ser maior”; para isso, sabe que
precisa da escola, local que, pelo que podemos subentender, lhe permite esse cres-
cimento. Crescimento aqui parece rimar com conhecimento: ele quer crescer, ser
maior, mas, para tanto, precisa do saber escolar. Percebemos então que Mestre
Moa formou para si mesmo um projeto de vida atrelado à continuidade dos estudos,
o que o tem levado a continuar lutando em prol da sua permanência na escola.
Para muitos (as) estudantes jovens e adultos (as), a permanência na escola
não é somente um meio de concretização do sonho inacabado, é também uma es-
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Tipo, ‘hoje eu não vou olhar seu filho’, vai ficar em casa? Não vai, é isso. Aí
no início do ano aqui eu fiquei chateada. Fui pra casa chorando, porque
aconteceu uma coisa comigo aqui [...] eu trouxe meu filho no primeiro dia de
aula [...]. Eu me sentei com meu filho e falei: ‘eu não quero depender de
ninguém, eu vou arrastar meu filho pro colégio comigo’ Levei o celular, car-
reguei o celular todo e deixei o celular com ele jogando, ‘vai ficar aqui comi-
go’. Só que me barraram logo no primeiro dia, falei: ‘Meu Deus do céu, vou
desistir!’. Eu fui acabada pra casa, porque eu vim toda empolgada pra esse
colégio, dizendo a mim mesma: ‘agora vai!’ [sic] (EC Marielle Franco)
Marielle explicita em seu relato uma crença: “não depender de ninguém”. A si-
tuação a fez reconsiderar sua crença, a fim de não interromper novamente os estu-
dos. Um aprendizado importante, na medida em que não há como viver sem depen-
der de ninguém em algum momento da vida. Com base no apoio de sua rede de so-
ciabilidade18, ela também constrói um etnométodo: conversar/negociar com os (as)
professores (as), deixando-os cientes de sua situação e de seus impedimentos.
Aqui, novamente, a questão de gênero também reaparece em relação aos
cuidados com os (as) filhos (as). Percebemos no relato que Marielle fala da sua an-
gústia em ter que conseguir alguém para cuidar de seu filho, sem citar em nenhum
momento o pai da criança para ajudar nessa tarefa, o que nos leva a crer que mais
uma vez a tarefa do cuidado das crianças termina sendo exclusivamente da mulher.
A fala de Marielle remete-nos à discussão sobre a impossibilidade de um
apoio via creches e educação infantil durante o turno noturno, mas, ao mesmo tem-
po, convoca-nos a pensar que outras alternativas podem ser pensadas para acolher
os (as) filhos (as) dos (as) estudantes da EJA enquanto seus pais retomam a desafi-
adora tarefa de retornar aos estudos.
Sobre essa questão, ficamos a questionar: como o Estado poderia apoiar
nesses casos em que a necessidade de estudo da mãe ou do pai se choca com a
necessidade de cuidado dos (as) filhos (as)? Quais políticas seriam possíveis? Co-
mo os sistemas de ensino poderiam viabilizar a continuidade dos estudos dos pais
sem descuidar da criança que deles depende?
Sobre essa questão, destaco que, durante o Seminário Internacional sobre
Educação ao Longo da vida – Conferência Internacional de Educação de Adultos
(CONFITEA) BRASIL+6, realizado em 2016, na cidade de Brasília/DF, foi publicado
o caderno intitulado Coletânea de Textos CONFITEA BRASIL +6, um conjunto de
artigos sobre o tema central e oficinas temáticas do evento, organizado pela Secre-
taria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), por
intermédio da Diretoria de Políticas de Educação de Jovens e Adultos (DPAEJA).
Dentre os diversos textos da coletânea, o artigo Educação de Jovens e Adultos na
perspectiva do Direito à Educação ao Longo da Vida: caminhos possíveis (NACIF;
CAMARGO; SILVA; ANTUNES; QUEIROZ; 2016) aponta alguns caminhos interes-
santes para fortalecermos esse campo de educação, que para os referidos autores
poderia acontecer a partir da implantação da Política Nacional de Educação de Jo-
vens e Adultos, cujo objetivo era promover a elevação da oferta de oportunidades
educacionais para jovens, adultos e idosos por meio de um sistema brasileiro de
educação ao longo da vida. Assim, versa a proposta:
aos estudos, mas que precisam pensar também nas articulações que farão para cui-
dar da prole enquanto estudam. Desse modo, para muitos (as) jovens e adultos (as),
principalmente as mulheres, a desistência dos estudos está muito atrelada ao nas-
cimento do (a) filho (a).
Ainda sobre como conciliar a maternidade com os estudos, Mãe Stella de
Oxóssi, uma colaboradora que também é mãe e estudante, fala que quando a filha
adoeceu, mesmo dedicando-se aos cuidados da saúde dela, não faltava às aulas:
Ave Maria! No dia que eu não venho pra escola, eu fico triste, todo dia eu
quero vim pra escola! Minha menina ficou no hospital, ficou dez dias, mas
mesmo assim eu chegava, mesmo a aula já terminada, mas eu vinha, sem-
pre presente aqui. E não gosto de professor nenhum que me dê falta. [sic]
(EC Mãe Stella de Oxóssi).
Art. 37. A Educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não ti-
veram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio
na idade própria.
§ 1º Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e adul-
tos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades
educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus
interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames.
§ 2º O Poder Público viabilizará e estimulará o acesso e a permanência do
trabalhador na escola, mediante cursos e exames.
§ 3º A educação de jovens e adultos deverá articular-se, preferencialmente,
com a educação profissional, na forma do regulamento. (Incluído pela Lei
11.741, de 2008);
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19 O ensino regular a que se refere o gestor da instituição educacional é a oferta de Ensino Médio em
três anos letivos.
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tica de EJA da Bahia e, de acordo com esse documento, a oferta de EJA deve acon-
tecer a partir dos cursos Tempos Formativos e Tempo de Aprender, que visam a
atender às diversidades de sujeitos que frequentam a Educação de Jovens e Adul-
tos. O curso Tempo Formativo estrutura-se em aulas diárias e os componentes cur-
riculares organizam-se por áreas do conhecimento, cuja oferta é anual; o Tempo de
Aprender apresenta um portfólio de componentes curriculares semestrais, que po-
dem ser selecionados pelos (as) estudantes de acordo com a dinamicidade de sua
itinerância formativa no semestre em curso. Ao tratar dessa diversidade de organi-
zações curriculares, Arroyo (2006, p. 229) destaca que
Sobre essa questão, reporto-me a Freire (1997), quando afirma que “[...] é
preciso e até urgente que a escola vá se tornando um espaço acolhedor e multipli-
cador de certos gostos democráticos como o de ouvir os outros.” (FREIRE, 1997, p.
60). Nessa perspectiva, compreendo que a escuta do (a) estudante, realizada pela
escola, no momento em que aquele decide trancar o curso, é fundamental para uma
dinâmica democrática.
Escutar e acolher ajuda no trabalho de permanência. A escuta antes de um
trancamento é muito interessante, mostra a preocupação da escola com o (a) estu-
dante, com sua possível evasão. Uma preocupação em não deixar ir sem que se
tenha certeza de que a escola não tem mais nada a fazer sobre a situação apresen-
tada pelo (a) estudante.
Quando perguntei aos (as) estudantes sobre quais ações a escola está de-
senvolvendo que têm contribuído para a permanência deles (as), a colaboradora
Marielle Franco destacou de forma veemente a realização dos projetos. Na sua fala,
ela afirmou:
Essa ideia de criação de projetos que eles [equipe gestora e professores] ti-
veram está maravilhoso porque até colegas da gente que não quer saber de
nada, querem somente jogar bola e pronto, eles estão com a gente, estão
colados, tá todo mundo ajudando a gente pro projeto de amanhã. A minha
sala tá cheia de gente, todo mundo entrou no nosso grupo, todo mundo
quer saber o que tá acontecendo, querendo saber no que pode ajudar. Esse
projeto está fazendo com que pessoas gostem de algumas coisas [...] está
incentivando, tira a vergonha, tá unindo os alunos, unindo professores, pro-
fessor tem whatsapp do aluno, se encontra com o aluno pra conversar. Isso
111
faz com que a pessoa tenha vontade de ficar vindo pra cá. [sic] (EC Marielle
Franco).
força enquanto capital cultural, haja vista que pode constituir-se como algo supérfluo
ou imensamente relevante para a qualidade da vida familiar.
Conforme dito anteriormente, adoto o termo rede de sociabilidade ao me
referir ao sistema recíproco de relações estabelecidas entre pessoas para se
apoiarem mutuamente, tanto em termos materiais quanto emocionalmente, no intuito
de colaborarem para o desenvolvimento da autonomia e do crescimento pessoal.
Assim como Pinton e Marcon (2006), considero que o apoio produzido por
meio da rede de sociabilidade pode ser caracterizado por qualquer informação ou
ajuda oferecida por pessoas ou grupos com os quais temos contato habitual. Em seu
relato, Marielle Franco explicita o quanto a rede de sociabilidade das amigas foi fun-
dante para sua permanência na escola:
Umas amigas minhas que sabem que eu estou comprometida com esse co-
légio foram atrás de gente pra tomar conta de meu filho, iam juntar dinheiro
pra me ajudar pra botar alguém pra tomar conta, mas graças a Deus o povo
viu [...] porque assim, quando a gente está determinada, quem quer ver a
sua felicidade vê que você quer e tenta te ajudar. E graças a Deus eu final-
mente consegui, tem uns dias que não dá pra vim, mas como eu já conse-
gui aqui, conheço quase todos os professores, então eu explico, ‘não tenho
condição de vim hoje porque não tenho ninguém pra olhar meu filho’, e a
maioria dos alunos aqui tem esse problema, tem essa dificuldade. [sic] (EC
Marielle Franco).
Marielle visualiza nas amigas uma rede de apoio que a acolheu e se mobili-
zou para ajudá-la no momento em que não havia conseguido ninguém para olhar
seu filho. Ela faz questão de destacar seu grau de comprometimento com os estu-
dos, o que, pressupõe, foi decisivo para que a mobilização das amigas repercutisse
positivamente.
De acordo com o relato de Marielle, a mobilização das amigas desencadeou
um efeito “cascata” de solidariedade no intuito de apoiá-la para dar continuidade aos
estudos. Segundo a estudante colaboradora dessa pesquisa, “o povo viu”, sendo
que o povo a que se refere são seus familiares; e continua em seu relato, “porque
assim, quando a gente está determinada, quem quer ver a sua felicidade, vê que
você quer e tenta te ajudar.” Marielle ressalta a importância da determinação e força
pessoal, o que robustece a rede de sociabilidade, tão necessária para a realização
de projetos de vida.
É interessante destacar ainda que Marielle foi construindo outros etnométo-
dos que a ajudaram a ampliar sua rede de sociabilidade na escola, através do diálo-
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go com os (as) professores (as), pois, quando não dá para ir à escola porque não
conseguiu ninguém para cuidar do seu filho, lança mão da relação interpessoal já
estabelecida com os (as) professores (as) para explicar-lhes a situação e, desse
modo, angariar a compreensão deles (as).
No seu relato, a estudante colaboradora faz questão de destacar que essa si-
tuação não é específica dela, ou seja, vários (as) estudantes que possuem filhos
(as) passam pela dificuldade de conseguir alguém que cuide deles (as), enquanto
estuda, pois “a maioria dos alunos aqui tem esse problema, tem essa dificuldade”.
Essa questão nos impulsiona a pensar que, se grande parte dos (as) estudantes jo-
vens e adultos (as) que acessam a escola no noturno apresentam dificuldades em
deixar seus (suas) filhos (as) em casa aos cuidados de outras pessoas para estudar,
como podemos pensar em políticas de permanência que os (as) apoiem no retorno
aos estudos e não desprezem essa realidade imediata em suas vidas? E mais ain-
da: possivelmente, essas redes de apoio, apesar de contribuírem, e muito, para a
continuidade dos projetos de vida desses (as) jovens e adultos (as), provavelmente
“pesem” para outras mulheres da família ou da vizinhança, às vezes uma avó, uma
filha mais velha, ao disponibilizar uma parcela de tempo diariamente para os cuida-
dos dispensados às crianças. Novamente concluímos que os cuidados com os (as)
filhos (as) recaem sobre as mulheres, como se os pais se desobrigassem dessa res-
ponsabilidade. Destacamos, inclusive, que os pais das crianças não são citados co-
mo colaboradores na rede de sociabilidade.
Desse modo, compreendemos que a rede de sociabilidade é essencial para
mulheres que decidem retornar aos estudos na fase da juventude ou da adultez, es-
pecialmente as que se tornaram mães, pois precisam de suporte, auxílio e orienta-
ção no encaminhamento de suas atividades neste cotidiano de sobrecarga. Rodri-
gues, Mazza e Higarashi (2014, p. 467) constataram que “[...] as interações da famí-
lia com as pessoas que os cercam, bem como com os diversos segmentos da socie-
dade, facilitam a tomada de decisões, auxiliando na superação de problemas, e con-
tribuindo para uma melhor qualidade de vida para a mulher trabalhadora e sua famí-
lia.”
Craig e Winston (1989) apresentam alguns tipos de apoios sociais, que eles
denominam de apoio instrumental e emocional à pessoa, em suas diferentes neces-
sidades. Para os referidos autores,
115
Não, pelo contrário, ele me incentiva a estudar, ele ficou feliz porque eu vol-
tei pro colégio. Se eu perder aula ele já reclama: “Faltou hoje e já perdeu o
assunto!”. Ele adora que eu estude. E aí não empata, porque ele trabalha e
a gente chega no mesmo horário. Na mesma hora que eu saio daqui, ele sai
do trabalho, a gente chega junto. [sic] (EC Lélia Gonzalez).
pesarosa para as mulheres, que historicamente têm abdicado dos estudos em prol
do “bem-estar” da família.
Ainda sobre o apoio do marido aos seus estudos, Lélia afirmou que só voltou
a estudar por causa dele, que insistentemente falava que ela estava perdendo opor-
tunidades:
Olha, eu realmente só voltei porque ele ficou batendo na tecla ‘volta a estu-
dar porque é importante, você tá perdendo muitas oportunidades’. Não só
por isso, mas ele sempre [...] ele ama estudar, ele parou e não continuou
por causa do trabalho dele, mas se fosse por ele, também continuava estu-
dando. [sic] (EC Lélia Gonzalez).
Interessante destacar no relato de Lélia que ela afirma que o marido insiste
tanto para ela retornar aos estudos porque, além de considerar que ela está perden-
do oportunidades, segundo ela, “ele ama estudar”, parou os estudos porque não po-
de conciliar os horários com os estudos, mas seu desejo também era continuar es-
tudando.
Um aspecto que me chamou muito a atenção durante a roda de conversa foi
perceber a rede de sociabilidade que estava sendo tecida pelas estudantes que par-
ticipavam do diálogo formativo. Como disse anteriormente, Marielle assume o papel
de liderança nesse grupo, o que tem fortalecido várias estudantes na desafiante ta-
refa de permanecer nos estudos. Quando perguntei se elas contavam com o apoio
de alguém para permanecer na escola, Custódia Machado logo falou: “tem gente
aqui que fica nervosa se alguém desiste” e, nesse momento, Marielle prontamente
se anunciou: “É porque assim, a minha determinação é muito forte... e outra, elas
aqui [referindo-se às colegas presentes], principalmente elas que estão aqui e al-
guns lá, quando eu vejo desanimado, eu fico: ‘meu Deus’, parece que eu que tô de-
sanimando também.” [sic]
O apoio dado por Marielle aos (às) colegas tem um significado duplo, tanto
para ela quanto para suas (seus) colegas de turma. Sua fala traduz que também é
retroalimentada pela permanência dos (as) colegas na escola, ou seja, é uma rela-
ção recíproca, quando afirma que – “quando vejo que eles estão desanimando, eu
fico: ‘meu Deus’, parece que eu que tô desanimando também”. Além da possibilida-
de de não continuar a trajetória escolar, tantas vezes já iniciada e interrompida pelos
colegas e por ela mesma, Marielle se vê na condição de não desistir e não “permitir”
que os demais colegas também o façam.
117
Algumas considerações...
tro”, havendo uma transformação do indivíduo e também do meio social em que ele
(a) circula.
Desse modo, compreendemos que o movimento produzido tanto pelos (as)
estudantes jovens e adultos (as) trabalhadores (as), quanto pelos professores (as) e
gestor do Ceneb Joana Angélica, apontam caminhos autorizantes e emancipatórios
para uma formação qualificada, contribuindo, assim, para a permanência de jovens e
adultos (as) na Educação Básica.
Como foi dito anteriormente, essa escola é uma unidade escolar vinculada à
rede estadual de ensino que oferta cursos de EJA nos três turnos de funcionamento,
além de oferecer diversos tempos/espaços que possibilitam o trânsito dos (as) estu-
dantes nas modalidades organizativas do currículo: Tempo de Aprender, Tempo
Formativo, bem como exame para certificação de conhecimentos através da Comis-
são Permanente de Avaliação22, gerando mobilidade dos (as) estudantes para tran-
sitar entre os cursos e exames que a escola oferece. No período de realização do
diálogo formativo, alguns dos (as) estudantes colaboradores (as) estavam matricula-
dos (as) em cursos da EJA, bem como inscritos (as) na CPA. Apresento a seguir as
valiosas contribuições desses (as) autores (as) /atores dessa pesquisa.
adultos (as) com deficiências em parceria com outras instituições de atendimento especializado no
município de Salvador.
120
se lugar era um dos preferidos desse grupo para conversarem entre si sobre vários
assuntos que os (as) afetam nos seus cotidianos, bem como vem se instituindo co-
mo espaçotempo24 para revisarem os conhecimentos em processo de aprendizagem
e planejarem algumas ações da/na escola
O vice-diretor da escola apresentou-me aos (às) estudantes, mas confesso
que não sabia se eles (as) ficariam tão à vontade para conversar comigo, pois pode-
riam considerar que o fato de o vice-diretor me apresentar já estabeleceria uma co-
notação de oficialidade para nossa conversa. Mesmo assim, resolvi, da maneira me-
nos formal possível, apresentar-me aos (às) estudantes e socializar o propósito do
nosso diálogo.
O perfil do grupo de estudantes colaboradores (as) era de jovens e adultos
(as), com idade entre 19 e 28 anos, que frequentavam a escola no turno matutino,
sendo que alguns (as) informaram que também estavam trabalhando e conciliando
os estudos com a criação dos (as) filhos (as), enquanto outros (as) estavam estu-
dando e cuidando dos (as) filhos (as), mas em “vista” de emprego.
É importante ressaltar que o Centro Estadual de Educação Zumbi dos Palma-
res “nasceu” inspirado na compreensão de que o (a) estudante da EJA necessita de
espaços formativos que dialoguem com suas experiências de vida e itinerâncias
formativas, constituindo-se em uma das escolas estaduais implantadas na Bahia,
nos anos 90, com o objetivo de instituir espaçotempos, metodologias, materiais didá-
ticos, enfim, políticas para atender aos (às) jovens e adultos (as) em processo de
escolarização na Educação Básica.
Desse modo, o diálogo formativo com os (as) estudantes colaboradores (as)
aconteceu pela manhã, pois acreditava que, ao realizar a escuta com os (as) discen-
tes que acessavam a escola nesse turno, seria possível compreender os etnométo-
dos por eles (as) produzidos para conciliar estudo, trabalho e vida pessoal, conside-
rando que a oferta desse turno de estudo para jovens e adultos (as) ainda se consti-
tui raridade nesse Estado. Destaco aqui que no período em que estive na gestão
estadual da EJA na SEC/Bahia (2013-2017), fomos convidados (as) pelo Ministério
Público da Bahia (MPB), juntamente com demais secretarias municipais de educa-
ção, para dialogar sobre a ampliação da oferta da EJA no diurno. Essa iniciativa do
24 O termo espaçotempo é inspirado nos estudos de Nilda Alves (2012) nos/dos/com os cotidianos, e,
nessa pesquisa, é compreendido como o local/período em que as ações dos cotidianos
acontecem, na perspectiva de suas singularidades e indissociabilidades.
121
MPB deu-se em virtude do aumento da demanda de jovens e adultos (as) com defi-
ciências que retornavam ou até mesmo iniciavam seu processo de estudo na pers-
pectiva de inclusão escolar. Ter acesso a escola que oferte cursos de EJA no diurno
ainda constitui uma luta mantida pelos movimentos sociais, dentre os quais, o Fórum
de EJA Bahia25
Assim, organizei essa sessão em subcategorias de análise, em virtude dos
“achados” do campo. Percebi que no diálogo com os (as) estudantes a questão do
tempo e da mobilidade eram fatores decisivos para a permanência deles na escola.
A instituição educacional investigada, por sua vez, fica próximo à Estação da Lapa 26,
que recentemente passou por uma reforma em virtude da integração com o sistema
metroviário de Salvador. O Centro Estadual de Educação Zumbi dos Palmares é lo-
calizado no bairro dos Barris, próximo à referida Estação, o que facilita a vinda de
estudantes de várias regiões da cidade, bem como dos municípios da Região Me-
tropolitana de Salvador (RMS)
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Entro num acordo contigo
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo. (ORAÇÃO..., 1979).
25 Os Fóruns de EJA no Brasil foram criados em 1996, dentre eles o Fórum EJA Bahia. Para maiores
informações: URPÍA, Fórum EJA Bahia: implicação na definição da política pública da Educação de
Jovens e Adultos.
26 A Estação da Lapa é a maior estação de transbordo de Salvador, que oferta transporte coletivo
inclusive para a Região Metropolitana de Salvador (RMS). Atualmente integra o sistema metroviário
da cidade.
122
reflexão muito interessante que diz respeito ao tempo: parece-nos que, para o refe-
rido cantor e compositor, o tempo é concebido como um Senhor que rege toda a
existência, “compositor de destinos”, “tambor de todos os ritmos”. Muitas vezes é a
ausência do tempo que nos faz adiar sonhos, embalando nossas vidas para “outras
bandas”, por meio de ritmos céleres ou serenos, dependendo da interação que reali-
zamos com ele.
Mestre Didi, estudante colaborador dessa pesquisa, foi enfático ao falar que a
questão da mobilidade urbana se constitui um desafio para sua permanência na es-
cola. Somos cônscios de que a mobilidade tem íntima relação com o tempo, pois, a
depender da minha condição de mobilidade, meu tempo “se estica” ou torna-se curto
demais para realizar determinadas ações. O tempo e sua relação com a mobilidade
pode retardar projetos durante muito, mas muito tempo mesmo! E é isso que acon-
tece na vida de muitos (as) jovens e adultos (as): são cinco, oito, dez, quinze, vinte
anos ou mais, durante os quais a conclusão da Educação Básica vai sendo adiada.
Mestre Didi, 25 anos, é negro, atualmente está trabalhando, é casado e tem um fi-
lho. Em seu relato, fala que a questão da mobilidade representa um desafio para sua
permanência na escola, pois, apesar do advento do metrô, para alguns bairros da
cidade, a situação da mobilidade ainda tem dificultado o acesso à escola:
Porque quem mora longe, entendeu? E também não tem dinheiro pra vir
daquele lugar... Botou metrô? Botou, mas tem gente que tem dificuldade de
pegar metrô. Eu mesmo moro em São Cristóvão, eu pego metrô? Pego sim,
mas se eu fosse pra casa de minha avó, que é pro lado de Itapuã, eu tenho
que pegar o metrô, pegar um ônibus, saltar lá e outro ônibus para poder su-
bir, tenho que pegar três agora, antes eu pegava um só e saltava na porta.
[sic] (EC Mestre Didi).
Mestre Didi revela que o fato de morar no bairro de São Cristóvão 27 e a escola
estar localizada no bairro dos Barris, que compreende uma distância de 25 km de
deslocamento, é um esforço significativo para garantir sua presença diária na esco-
la, principalmente considerando os fatores tempo e recursos financeiros.
No entanto, esse esforço se torna necessário, considerando que não existe
em seu bairro, nem no entorno, uma escola que oferta curso de EJA no diurno. As-
sim, a escolha por essa instituição educacional foi pelo fato de oportunizar a conti-
nuidade dos seus estudos no turno em que ele tem disponibilidade de estudar. Essa
27 O bairro de São Cristóvão está localizado no limite entre os municípios de Salvador e Lauro de
Freitas, próximo ao Aeroporto Internacional Luís Eduardo Magalhães, sendo que a escola está
situada no centro comercial de Salvador.
123
questão é deveras relevante para o campo da EJA, pois comumente essa modalida-
de de ensino está associada ao turno noturno, excluindo os jovens e adultos traba-
lhadores que, por força do trabalho ou pela dinâmica da vida, só podem estudar no
diurno.
O estudante colaborador Mestre Didi reconhece que o advento do metrô trou-
xe melhorias para algumas regiões da cidade, mas quando está na escola e neces-
sita se deslocar para a casa de sua avó (pois às vezes o filho fica sob os cuidados
dela enquanto estuda), sua logística de transporte é desfavorecida, em virtude da
ampliação do número de linhas de ônibus que necessita utilizar, devido às altera-
ções no sistema de mobilidade da cidade. A casa da avó ainda se constitui para ele
um espaço de apoio para subsidiar seus estudos, conciliando-os com seu trabalho.
Em função disso, Mestre Didi afirma que os gestores públicos ainda necessitam me-
lhorar o transporte para a parcela da população que o acessa no seu cotidiano.
Então, é muita dificuldade, mas eles não olham, eles só olham mais pro la-
do do turismo que vai ajudar eles, não olha nosso lado não. A gente que é
um pouquinho besta, entre aspas, desculpe falar isso, que a gente cai no
truque deles: “eu vou endireitar isso, vou endireitar aquilo”, a gente acaba
caindo no papo deles, vota neles, porque não tem como votar em outras
pessoas, vota neles e acaba perdendo nas outras coisas. [sic] (EC Mestre
Didi).
lação “acaba perdendo outras coisas”, podemos inferir que as questões vinculadas
ao cotidiano da população menos favorecida muitas vezes não são consideradas ao
se pensar em políticas públicas e que as perdas muitas vezes têm recaído sobre
questões vitais para a formação crítica da população, como o acesso à educação.
Mestre Didi nos faz pensar que a pouca formação política da população muitas ve-
zes tem reverberado em escolhas políticas que não contribuem para a melhoria de
sua qualidade de vida.
Compreendemos o quanto o conhecimento é condição fundante para o de-
senvolvimento pessoal, profissional e coletivo. Ele é um processo, é contínuo. Como
nos alerta Freire (2000, p.121), “[...] somos ou nos tornamos educáveis porque, ao
lado da constatação de experiências negadoras da liberdade, verificamos também
ser possível a luta pela liberdade e pela autonomia contra a opressão e o arbítrio.”
Como analisado no relato anterior, o mundo do trabalho se constitui condição
fundante de sobrevivência de estudantes jovens e adultos (as), em especial, oriun-
dos das camadas populares, pois consiste em condição sine qua non para sobrevi-
vência material e, em certa medida, para sua permanência material (SANTOS, 2009)
no processo de retorno à escolarização. Desse modo, ao tratarmos da permanência
de jovens e adultos na Educação Básica, a questão do trabalho apresenta-se de
forma modo marcante. A escuta de estudantes-trabalhadores (as) do Centro Esta-
dual de Educação Zumbi dos Palmares, bem como do Centro Noturno de Educação
Joana Angélica, revelou que, apesar de sua relevância no processo de existência
humana, conciliar trabalho com estudo constitui grande desafio.
Reconhecemos no relato do estudante colaborador Mestre Didi a maneira
como os (as) estudantes jovens e adultos (as) trabalhadores (as), afetados (as) pe-
las condições socioeconômicas, ao retornarem aos estudos buscam conciliar traba-
lho e vida escolar, produzindo etnométodos para dar conta desse desafio.
O estudante colaborador Mestre Didi resolveu retornar aos estudos logo após
sua esposa concluir a Educação Básica. Atualmente ele está concluindo o Ensino
Médio na modalidade Educação de Jovens e Adultos. Em seu relato, explicita o
quanto as ações do cotidiano necessitam estar organizadas, bem planejadas, de
modo que ele consiga conciliar os estudos, o trabalho e o cuidado com o filho:
Pra poder fazer tudo isso tem que ser tudo pontual, uma hora faz uma coi-
sa, outra hora faz outra, não pode fazer tudo correndo, porque senão a gen-
te se atrapalha. Quando a criança cai doente mesmo, pra poder faltar no
125
colégio é uma dificuldade daquelas! Tem professor que não aceita isso, se
não fez a prova, não vai fazer em outro dia. É muito difícil. Minha esposa
mesmo trabalha, hoje mesmo quem está com ele [o filho] sou eu. Quando
os dois estão trabalhando, ele fica com minha sogra ou com minha mãe.
Teve um dia mesmo, cheguei do trabalho, tive que levar o pessoal no colé-
gio e fui deixar meu filho na casa da avó, quando cheguei na sala de aula,
nem assisti a aula, dormi em sala! É corrido trabalhar, cuidar do filho e estu-
dar. Tem gente que é sozinho, é mais difícil ainda. É muito difícil, não é fácil,
não. Com tanta gente do meu lado e eu estou achando difícil, imagine as
pessoas que não têm? [sic] (EC Mestre Didi).
A vida nos presenteia com situações inesperadas, e isso Mestre Didi sabe
muito bem, como destaca em sua fala: “Quando a criança cai doente mesmo, pra
poder faltar o colégio é uma dificuldade daquelas!” O adoecimento do filho muitas
vezes se constitui um acontecimento inesperado, impondo-lhe a reestruturação de
ações planejadas previamente. Sobre a questão do acontecimento, Macedo (2016)
diz que “o acontecimento é aquilo que nos aciona a decidir por uma nova maneira de
ser, de atuar ou de atrair. Suplemento incerto, imprevisível, dissipado, apenas apa-
rece.” (MACEDO, 2016, p. 32). O acontecimento não pede licença para entrar, ele é,
existe no seu tempo, à sua maneira. Mas, como administrar o acontecimento, se
nossa formação não contemplou essa questão? Estamos diante de uma grande con-
tradição humana na medida em que desejamos a linearidade nas ações do cotidia-
no. Porém, a dinâmica da vida insiste em nos mostrar essa impossibilidade. A vida
não é linear, é marcada por rupturas, mas o que fazer quando elas aparecem? Jogar
fora todo o esforço empreendido ou ressignificar nossa caminhada? Parece que lidar
126
com a imprevisibilidade é uma pauta formativa necessária para os dias atuais, haja
vista que o inesperado, o imprevisto e as incertezas estão presentes no cotidiano.
O filósofo Henri Bergson (2006, p. 105) considera que “[...] o ser vivo dura es-
sencialmente, ele dura, justamente porque elabora incessantemente algo novo e
porque não há elaboração sem procura, nem procura sem tateio. O tempo é essa
hesitação mesma, ou não é absolutamente nada”. Podemos inferir que o ser huma-
no dura porque elabora a vida a todo instante, ele está constantemente se reinven-
tando, ao tempo em que reinventa a vida. É o que muitos (as) atores (atrizes) curri-
culantes jovens e adultos (as) fazem ao manter-se no trabalho, na tentativa de conci-
liá-lo com os estudos. Eles reinventam novas formas de viver e dar andamento aos
seus projetos de vida, driblando as condições precárias de vida, nas quais são ex-
postos.
Arroyo (2017) nos fala sobre as consequências de o projeto político-
pedagógico de educação de jovens e adultos (as) reconhecê-los (as) como traba-
lhadores (as):
Outro aspecto apresentado por Mestre Didi trata da dificuldade de alguns (as)
professores (as) flexibilizarem as datas das provas quando o (a) estudante apresen-
ta dificuldade em realização de avaliação por causa de impedimentos pessoais, em
especial, em situação de adoecimento do (a) filho (a). É interessante considerar que,
apesar de alguns (as) professores (as) compreenderem a condição do (a) estudante
jovem e adulto (a) trabalhador (a), quando lidamos com a situação de avaliação es-
colar ainda tratamos as diferenças como epifenômenos e reificamos a lógica da ava-
liação como uma ação pedagógica inabalável e inadiável.
Outra questão interessante abordada por Mestre Didi diz respeito à logística
necessária para conciliar trabalho, estudo e cuidado do filho, numa tentativa de
agregar essas ações no seu cotidiano. Para isso, ele recorre à rede de sociabilida-
127
de28, em especial, sua mãe e sogra, como etnométodos produzidos para apoiar nes-
sa tarefa.
Mestre Didi destaca ainda que em algumas vezes, apesar dos esforços em-
preendidos, é “nocauteado” pelo cansaço, como exemplifica: “Teve um dia mesmo,
cheguei do trabalho, tive que levar o pessoal no colégio e fui deixar meu filho na ca-
sa da avó, quando cheguei na sala de aula, nem assisti a aula, dormi em sala!”. Es-
sa experiência vivenciada por Mestre Didi nos faz lembrar que, como o estudo re-
quer esforço intelectual, foi o momento apropriado para o corpo sinalizar que “a pilha
acabou!”. Visualizamos comumente que nas salas de aula de estudantes jovens e
adultos (as) trabalhadores (as), a “pilha acaba”, em virtude da precariedade da vida
cotidiana a que esses (as) atores (atrizes) curriculantes são submetidos (as).
Heilbom e Cabral (2006) consideram que, no debate sobre a transição da vida
adulta, diferentemente dos (as) jovens dos segmentos sociais mais favorecidos, on-
de há a extensão da transição, seja pelo prolongamento dos estudos e/ou sua per-
manência na casa dos pais (BRANDÃO, 2003), os (as) jovens das camadas popula-
res, por sua vez, apresentam uma transição que denominam de “[...] transição curta
ou condensada” (HEILBOM; CABRAL, 2006, p. 233). Considerando os (as) estudan-
tes jovens e adultos (as) trabalhadores (as), essa transição condensada é ainda
mais acirrada, pois, em sua grande maioria, ainda se encontram na Educação Bási-
ca com condições vulneráveis para sua conclusão, em virtude das condições preca-
rizadas de vida.
Como afirma o estudante colaborador Mestre Didi, “É corrido trabalhar, cuidar
do filho e estudar. Tem gente que é sozinho, é mais difícil ainda. É muito difícil, não
é fácil, não” [sic]. Mestre Didi repete algumas vezes o quanto é difícil para ele conci-
liar o trabalho, o cuidado com o filho e os estudos, bem como realça mais uma vez a
importância da família na rede de sociabilidade para apoiá-lo nessa desafiante tare-
fa, arriscando-se a dizer que certamente é muito difícil “fazer tudo isso sozinho”. Ar-
royo (2017) nos leva a refletir como é articular o tempo do trabalho informal e o tem-
po de EJA:
dor que sabe a hora que entra e a hora que sai nas oito horas de trabalho, e
outra coisa é o tempo de um sobrevivente em situações informais de traba-
lho. Ele não tem tempo, ou melhor, ele não controla seu tempo, ou ele tem
de criar o seu tempo a partir dos tempos de sobrevivência. Consequente-
mente, não é um tempo que ele cria como bem quer. Esse tempo tem de
ser criado em função do ganho de cada dia. O tempo dele é tão instável
quanto sua forma de trabalhar. (ARROYO, 2017, p. 61).
Carolina de Jesus fala que sua condição atual profissional torna seus horários
e sua condição de estudante mais confortável, já que atualmente não está traba-
lhando fora do domicílio e realiza afazeres domésticos, o que flexibiliza mais as
ações e os horários, mas não a deixa desobrigada do trabalho. Realça que o fato de
sua mãe morar com ela também colabora para se torne mais leve conciliar vida pes-
soal com estudos. Em seu relato, faz um destaque interessante quando se refere à
divisão de tarefas domésticas com o marido, o que contribui veementemente para
“sobrar” tempo para se dedicar aos estudos com mais afinco. Assim, dialogar com o
marido para dividir os afazeres domésticos foi um dos etnométodos produzidos por
Carolina para contribuir com sua permanência na escola.
A estudante colaboradora Carolina de Jesus destacou que anteriormente,
quando atuava profissionalmente no salão de beleza, muitas vezes se via absorvida
129
pelo trabalho, o que a tornava em alguns momentos infrequente na escola, mas que
o diálogo com os (as) professores (as) para explicitar as situações ocorridas contri-
buiu para permanecer na escola conciliando os tempos de estudo e trabalho. Desse
modo, Carolina de Jesus produziu alguns etnométodos para resolver a situação das
infrequências na sala, dialogando e expondo aos professores sua condição de estu-
dante-trabalhadora, o que gerava em vários momentos a falta de controle do seu
próprio tempo de estudo e trabalho.
Para realizar a escuta dos (as) colaboradores (as) da pesquisa, conforme dito
anteriormente, realizei também o diálogo formativo com os (as) professores, coorde-
nador pedagógico e gestora da escola. O diálogo formativo realizado com os (as)
docentes e coordenador pedagógico aconteceu no turno vespertino, no espaço que
geralmente é utilizado para acolher os (as) estudantes e servir as refeições ofereci-
das na escola; a entrevista realizada como a gestora aconteceu na sala da gestão.
O grupo de professores (as) e coordenador pedagógico colaboradores dessa
pesquisa foi formado por sete docentes das áreas do conhecimento de humanas,
linguagens e ciências da natureza, com faixa etária entre 38 e 58 anos, cujo tempo
de serviço na docência variava entre 10 e 26 anos. A gestora da escola possui vasta
experiência no campo da educação de jovens e adultos, bem como na gestão dessa
instituição.
O professor colaborador André Rebouças, entretanto, só se reuniu ao grupo
após iniciada a roda, quando lhe expliquei o propósito da atividade que estava sendo
desenvolvida e perguntei se poderia contribuir sobre o assunto. Ele foi solícito e fez
questão de verbalizar:
A escola fornece, além de aula em sala, a CPA. Então, fica mais fácil de
pegar Matemática e Português no ano e as outras matérias na CPA. Então,
você pode ir eliminando, como eu mesmo. A formação da escola é de dois
anos, mas como eu consegui fazer a CPA e aí fiquei um ano mesmo de es-
cola normal, fiz o CPA de cinco matérias e cinco matérias eu peguei em sa-
la, então torna mais fácil. [sic] (EC Carolina de Jesus).
29 O PAIP foi criado através do Decreto nº 4202/2012, publicado no D.O.E em 23/04/2012, sendo um
projeto estruturante, permanente de monitoramento, acompanhamento, avalição e intervenção do
trabalho pedagógico, com o objetivo de fortalecer o processo de ensino e da aprendizagem dos
estudantes vinculados à rede pública de ensino da Secretaria de Educação da Bahia.
131
Essa questão apontada por Ventura e Rummert (2011) nos ajuda na reflexão
sobre o lugar dos exames de certificação da Educação Básica no processo de retor-
no à escolarização dos jovens e adultos (as). O fato é que na Bahia houve um cres-
cimento significativo de jovens e adultos (as) inscritos na CPA na tentativa de con-
clusão do Ensino Médio, e muitos deles queriam regularizar sua vida escolar para
permanecer no trabalho ou acessar a Universidade enquanto projeto de vida. Muitos
(as) desses (as) jovens e adultos (as) têm pressa em dar andamento em sua vida e
isso envolve, muitas vezes, uma entrada antecipada no mundo do trabalho enquanto
132
não é a EJA que ficou à margem ou paralela aos ensinos nos cursos regula-
res, é a condição existencial dos jovens e adultos que os condena a essa
marginalidade e exclusão. O mérito dos projetos populares de EJA tem sido
adequar os processos educativos à condição a que são condenados os jo-
vens e adultos. Não o inverso, que eles se adaptem às estruturas escolares
feitas para a infância e adolescência desocupada.
em um período de dois anos e como isso pode contribuir para a realização de seus
projetos de vida nas diversas áreas:
Como cada grupo de disciplinas são seis meses, menos matemática e por-
tuguês que é um ano, então, isso ajuda, porque na escola normal não é as-
sim, né? Fora que, embora sejam só seis meses, eles não querem que vo-
cê saia daqui da escola sem ter conhecimento. É pouco tempo pra você
aprender uma matéria, principalmente química e física que só seis meses
mesmo. Eles querem que você tenha capacidade de sair daqui aprendendo
algo. Não é você sair de qualquer jeito, não é porque você fez uma acelera-
ção, um supletivo, que você tem que sair só com aquele assunto pequeno,
não. Eles querem falar de assuntos atuais, falam com você diariamente so-
bre aquilo que se estuda, você saiu daqui, mas você sabe mais sobre aqui-
lo. [sic] (EC Hilária Batista).
mente a EJA era concebida como etapa de escolarização destinada a jovens e adul-
tos em processo de alfabetização ou como mero exame supletivo.
Desse modo, alguns sistemas de ensino, apesar de expressarem na sua pro-
posta pedagógica que concebem a EJA como modalidade de ensino da Educação
Básica, as práticas pedagógicas desenvolvidas ainda estão arraigadas da lógica da
suplência e correção de fluxo escolar.
Ainda em seu relato, a estudante colaboradora Hilária Batista afirma que os
(as) professores (as) sempre trazem para discussão em sala de aula temas atuais:
“Eles querem falar de assuntos atuais, falam com você diariamente sobre aquilo que
se estuda”. Barbosa (2007), ao tratar das questões vinculadas à organização curri-
cular no campo da EJA, é enfática ao considerar que os conhecimentos eleitos como
formativos devem partir de outra lógica, vinculados à realidade dos (as) estudantes-
trabalhadores (as) jovens e adultos (as):
Isso nos faz lembrar da fala da estudante colaboradora Hilária Batista, quando
se refere aos (às) professores (as) e ao esforço empreendido por eles (as). É per-
ceptível o quanto para Hilária discutir sobre temas do cotidiano a vinculou à escola,
o que contribuiu para sua permanência e conclusão dos estudos na Educação Bási-
ca. A propósito, Barbosa (2007) defende que:
Como eu tinha dito, a escola fornece, além de aula em sala, o CPA. Então,
fica mais fácil de pegar três matérias durante seis meses, como Hilária Ba-
tista falou, matemática e português no ano e as outras matérias no CPA.
Então, você pode ir eliminando, como eu mesmo, a formação da escola são
dois anos do Tempo de Aprender, mas como eu consegui fazer o CPA e aí
fiquei um ano mesmo de escola normal, fiz o CPA de cinco matérias e cinco
matéria eu peguei em sala, então torna mais fácil. [sic] (EC Márcia Santa-
na).
coisas o ano todo, afasta você cada vez mais” [sic]. Hilária Batista nos provoca a
refletir que “a diferença faz diferença”, pois propor cursos, cujas propostas curricula-
res e tempos pedagógicos apresentam flexibilidade, contribui veementemente para a
continuidade dos estudos dos (as) estudantes-trabalhadores (as). Destaca que se
sente privilegiada em estar em uma escola diferente, que apresenta outras possibili-
dades formativas, diferentemente de outros (as) jovens matriculados (as) em “escola
regular”, os quais, segundo ela, são afastados cada vez mais da escola, já que esta
impõe currículo homogêneo, que não acolhe a diferença. Para Arroyo (2006), a per-
manência de jovens e adultos (as) na Educação Básica não é somente uma escolha
deles (as), mas está intimamente relacionada às condições materiais nas quais eles
(as) estão vinculados (as); assim, os horários de oferta dos cursos, o desenho curri-
cular, a distância da casa/trabalho/escola são condições materiais que muitas vezes
definem pelo (a) jovem a possibilidade de continuidade dos seus estudos.
Para a professora colaboradora Dandara, outra questão que merece atenção
são as ações pedagógicas que vinculam os (as) estudantes à escola, como o de-
senvolvimento de projetos didáticos. Dandara fala do projeto desenvolvido pela es-
cola há alguns anos, que está vinculado ao mundo do trabalho e que vem se consti-
tuindo uma ação formativa permanente e fundante para fortalecer o vínculo dos (as)
estudantes com a escola:
res, instituindo outros conhecimentos eleitos como formativos pelos (as) atores (atri-
zes) sociais curriculantes. Macedo (2013, p. 22) considera que,
nas experiências cotidianas miúdas, nas brechas, nas frestas e fissuras, nas
reexistências afirmativas, nas transgressões, nas rasuras, nas rebeldias e
nas traições cotidianas, nas opacidades, na clandestinidade, nas diversas
micro-ousadias, nas epifanias que irrompem, acontecem ações instituintes.
Uma das coisas que nos ajuda a permanecer no colégio que eu acho é que
os professores, tipo, eles ajudam apoiando nos estudos diariamente, né? E
como eu tava falando, muitas vezes a pessoa falta, eles fazem aquilo, pe-
gam o Whatsapp da pessoa, fala com você, manda mensagem, faz grupo
da sala de aula, um grupo mesmo no Whatsapp pra falar da matéria e de
certos tipos de assuntos, se você está precisando de nota, eles sentam com
você, passam exercícios, veem seu caderno, então, eles têm essa preocu-
pação de tá ali.[sic] (EC Hilária Batista).
abrandar a infrequência, já que os (as) estudantes que faltaram a aula por algum
motivo conseguem acompanhar as discussões realizadas em sala de aula.
A estudante colaboradora Hilária reporta-se também a um fenômeno que
ocorre comumente nas turmas de EJA, que é a descontinuidade de frequência dos
(as) estudantes trabalhadores (as) devido a motivos (pessoais, econômicos, profis-
sionais) e que podem ser minimizados através de escuta sensível (BARBIER, 2007)
e acompanhamento sistemático do (a) estudante. É importante salientar que essa
descontinuidade da frequência do (a) estudante da EJA não se constitui evasão31,
sendo denominada por Urpía (2009) de frequência intermitente, ou seja, “[...] é a fre-
quência descontínua dos educandos à sala de aula.” (URPÍA, 2009, p. 47).
A professora colaboradora Dandara também lança mão do diálogo no intuito
de aproximar os (as) estudantes dos conhecimentos formativos veiculados na esco-
la: “Através de conversas e situações em sala de aula, procuro trazer as experiên-
cias que ele tem adquirido e a partir daí, com muito jeito, boa vontade e profissiona-
lismo, vou tentando explorar isso através das atividades que a gente faz em sala de
aula”. A professora colaboradora apresenta uma sequência didática de inspiração
paulofreireana, em que o professor (a), a partir de uma postura dialógica, tem aces-
so aos conhecimentos que os (as) estudantes trabalhadores (as) possuem sobre o
tema; estes conhecimentos, por sua vez, são trabalhados posteriormente em sala de
aula. Essa prática pedagógica contribui para a aproximação dos (as) estudantes
com os conhecimentos escolares, partindo sempre dos saberes e conhecimentos
que já possuem. Esse movimento dialógico e emancipacionista produzido pela pro-
fessora colaboradora Dandara contribui para a formação de atores (atrizes) sociais
críticos (as) e conscientes de sua formação. Macedo (2013) nos alerta para o perigo
de desconsiderarmos os (as) atores (atrizes) sociais como produtores de conheci-
mentos:
31 O sentido atribuído à palavra evasão nessa tese é “a desistência do curso, incluindo os que, após
terem se matriculado, nunca se apresentaram ou se manifestaram de alguma forma para os cole-
gas e mediadores do curso, em qualquer momento.” (FÁVERO, 2006, p. 02).
139
Macedo (2013) destaca que são justamente as práticas autoritárias nas esco-
las que têm contribuído para que muitos (as) jovens e adultos (as) não se percebam
como atores (atrizes) curriculantes, que pensam e fazem o currículo. Muitos (as)
desses (as) atores (atrizes) sociais, devido às práticas históricas de exclusões e si-
lenciamentos, de direitos negados, ainda não compreenderam seu potencial en-
quanto definidores (as) de situações curriculares com pontos de vista diversos, pro-
duzem ambivalências e “desnudam o príncipe”32 (MACEDO, 2009).
A professora colaboradora Clementina de Jesus realça também que trabalha
com os (as) estudantes da EJA de forma que estes compreendam o sentido da área
de estudo que leciona, relacionando os conhecimentos escolares com os saberes e
conhecimento da vida dos (as) estudantes:
32 Na obra Currículo: campo, conceito e pesquisa, Roberto Sidnei Macedo (2002) realiza uma
discussão sobre o campo do currículo, nomeando-o como “o príncipe”, onde apresenta a
compreensão do currículo como um complexo e poderoso artefato educacional, organizador das
formações.
140
Essa questão da formação, das novas pautas formativas, a gente tenta ter a
caixa de cada disciplina, mas a gente tenta quebrar um pouco esses muros
através de uns projetos interdisciplinares que tem aqui na escola, para que
essa formação desse jovem-adulto, seja multirreferencial mesmo, né? A
partir do olhar que ele tem das diversas ciências, né? [sic] (PC André Re-
bouças).
são seis meses, temos que lidar com esse tempo pedagógico, valorizar ele.
Esse tempo pedagógico de qualidade, formativo e multirreferencial, é o que
faz com que a formação possa tentar assegurar essa permanência. Desde a
jornada pedagógica, como ela falou, cada disciplina tem que garantir. Tudo
isso são desafios nossos, de cuidados nossos para o aluno permanecer
aqui. [sic] (PC André Rebouças).
[...] os capacitem para o que esses jovens-adultos lutam, para ter mais op-
ções nessas formas de trabalho e para se emanciparem da instabilidade e
da exploração a que a sociedade os condena. Conhecimentos e capacida-
des que os fortaleçam como coletivos, que os tornem menos segregados
nas relações de poder, que os fortaleçam em suas lutas por emancipação.
(ARROYO, 2017, p. 59).
A professora Luiza Mahim nos presenteia com seu relato sobre os etnométo-
dos produzidos para o ensino das linguagens na EJA, realçando a parceria existente
com o coordenador pedagógico, parceria esta que, por sua vez, contribui para a
qualidade e o crivo crítico do coordenador, no que concerne aos materiais didáticos
veiculados em suas aulas. Essa postura ética e cuidadosa demonstra o cuidado e a
relevância que a citada docente dedica ao trabalho junto aos (às) estudantes-
trabalhadores (as) jovens e adultos (as). O rigor ético e político cultivado pela pro-
fessora colaboradora reverbera na metodologia adotada para aproximar os conhe-
cimentos escolares à realidade dos (as) atores (atrizes) sociais curriculantes. No re-
lato da professora Luiza Mahim, ela afirma que
nos últimos anos, a política de EJA tem buscado maior integração com o
mundo do trabalho por meio da articulação com a educação profissional e a
economia solidária como possibilidade de ampliação das perspectivas de
inclusão no mundo do trabalho e de criação de alternativas de trabalho e
renda visando à conquista de melhores condições de vida. (BERTTOTI; MI-
YASHIRO, 2016, p. 189).
No caso do projeto didático desenvolvido pela escola, mesmo não sendo vin-
culado aos cursos da Educação Profissional, constituem-se em um interessante dis-
positivo metodológico fomentador de alternativas de trabalho e renda. O desafio dos
estudantes trabalhadores em conciliar trabalho e estudo é percebida pela professora
colaboradora Aquatune como um reencontro com a formação; no entanto, esse re-
encontro é tensionado pelos esforços de sobrevivência:
Então ele vem buscar o reencontro com a formação que ele deixou há al-
gum tempo, mas, na verdade, a prioridade dele é a sobrevivência. Então se
ele vem e começa com mais empolgação, participando mais das aulas, em
contrapartida, ele recebe uma proposta interessante de trabalho que enten-
de que ele tá buscando esse trabalho, ao mesmo tempo em que o emprego
entende que ele está buscando sabedoria, a prioridade dele é esse traba-
lho, então, se ele consegue conciliar isso, bacana! E é interessante quando
ele vem e traz isso para o professor e a gente consegue, de alguma manei-
ra, acompanhar essa trajetória dele e aí a gente estabelece uma certa par-
ceria, mas nem sempre ele vem e traz. Então uma coisa que eu percebo en-
tre a gente, é muito importante a gente descontruir os conceitos, discutir
nossa forma pedagógica e buscar o foco dessa evasão, dessa desistência.
[sic] (PC Aquatune).
[...] o que eu vivo hoje, eu não viveria na escola que eu tava anteriormente,
porque eu não ia conviver com pessoas com deficiência, não ia conviver
com pessoas cadeirantes, eu não teria o mesmo respeito pelos idosos que
eu tenho hoje, eu não teria a capacidade de hoje doar o meu lugar no ôni-
bus, por conta de idoso, porque antes eu não me importava com isso, hoje
eu posso dizer que sim, hoje eu cederia meu lugar para o idoso porque eu
sei o que cada um passa aqui. A convivência com eles, convivendo com
pessoas de maior idade, a gente passa a se colocar um no lugar do outro.
[sic] (EC Saraí Soares).
[...] tem dois casos verídicos que duas amigas minhas que pararam de es-
tudar, que não podiam trazer o filho para escola, porque tem essa proibição,
trazer o filho para escola. Então os jovens acabam parando de estudar, por
conta dessas coisas assim, tipo tem como o Mestre Didi, ele tem um filho
dele, graças a Deus, a mulher dele cuida da criança, mas se fosse ele e o
menino sozinho, ele não ia conseguir lidar com o trabalho, o filho e a escola,
entendeu? [sic] (EC Hilária Batista).
tável na escola. Será que podemos imaginar uma mãe ou um pai que se comporte
de forma tranquila sem informações sobre em quais condições seu (a) filho se en-
contra (a) enquanto estuda? Podemos perceber que, para aqueles (as) que perma-
necem na escola e que têm filhos (as), possuem uma rede de sociabilidade que vem
sendo construída de acordo com suas condições de vida, muitas delas, precariza-
das. No caso das duas amigas, Hilária relata que tiveram de abdicar dos estudos,
mais uma vez, para cuidar dos (as) filhos (as); quanto ao colega de turma, a estu-
dante colaboradora informa que tem encontrado apoio com a esposa, a qual tem
assumido a tarefa de cuidar do filho do casal enquanto o marido estuda. Parece-nos
que o cuidado com os (as) filhos ainda se constitui como uma tarefa atribuída às mu-
lheres, pois, em muitos casos, os homens não são nem citados na rede de sociabili-
dade. Desse modo, as mulheres, por sua vez, vêm assumindo essa tarefa, que pos-
sivelmente já substitui algum outro projeto em mente ou em andamento.
A estudante Hilária Batista discorre ainda acerca da sua própria experiência
de quase ter de desistir dos estudos por dificuldade de conciliá-lo com o trabalho,
mas contou que, com a ajuda dos (as) professores (as), conseguiu manter-se na
tarefa de estudar:
que, ela fala de autorização33, o que me reporta à ideia de que “somos coautores de
nós mesmos” (MACEDO, 2016, p. 22). Hilária fala da liberdade que temos em fazer
escolhas em nossas vidas, pois ela não está pré-determinada pelos (as) outros (as),
bem como fala da possibilidade de criarmos novos caminhos sempre que alguns
movimentos da vida nos impeçam de continuar a caminhada.
Outro destaque que faço na fala da estudante egressa Hilária Batista diz res-
peito às privações pelas quais muitas mulheres passam pelo simples fato de serem
mulheres: privação de ir à escola, em virtude de ciúmes do marido ou do namorado,
a gravidez precoce e tantas outras formas de opressão nas quais as mulheres têm
vivido. Dados divulgados pelo relatório global 2019, publicado pela ONG Internacio-
nal Human Rights Watch (HRW) – Observatório dos Direitos Humanos) revelam uma
“epidemia” de violência doméstica no Brasil. De acordo com dados divulgados no
relatório, há mais de 1,2 milhão de casos de agressões contra mulheres pendentes
na Justiça brasileira. Considero que temas como violência contra a mulher devem
figurar na pauta formativa urgente e necessária para ser incluída nos currículos da
EJA.
Para o estudante colaborador Mestre Didi, a família, em especial sua mãe,
tem sido um apoio presente em seu processo de retorno à escolarização:
A fala de Mestre Didi nos revela que apoio e cuidado não prescrevem com a
idade. Ele fala que quer ser alguém na vida, compreendendo que lhe falta algo,
acreditamos que seja a conclusão dos estudos e, para alcançá-lo, remete-nos à figu-
ra da mãe: “tá sempre pegando no meu pé ali e pra mim, todas as mães deveriam
33 Na obra de Macedo (2016), A pesquisa e o acontecimento: compreender situações, experiências e
saberes acontecimentais, o autor nos apresenta o conceito de autorização cunhado por Jacques
Ardoino, cuja ideia nos remete à compreensão de que somos coautores de nós mesmos. Para
Macedo (2016, p. 22), “[...] nos autorizar implica a atualização dessa coautoria, tem a ver com
estarmos na origem da criação [...]”.
151
ser assim, não é porque o filho cresceu, que completou 25, 26 anos que deveria lar-
gar o filho de mão” [sic]. Ele sente o quanto o apoio da mãe, as palavras de incentivo
e conselhos têm funcionado como práticas formativas que colaboram para sua per-
manência no processo educativo. O carinho e o apoio recebidos da mãe de Mestre
Didi o incentivam – por força do sentimento de gratidão – a retribuir-lhe todo o apoio
recebido, na forma de êxito nos estudos. Assim, a figura materna, aqui concretizada
na figura da sua mãe, aparece como uma pessoa fundamental para que Mestre Didi
continue sua trajetória de permanência na Educação Básica.
A estudante Hilária Batista também reafirma o quanto a família atuou como
apoio importante durante seu processo formativo: “Na verdade, eu sempre tive apoio
dos meus pais nos meus estudos, quando eles viram meu esforço, tive mais apoio
em casa e na família”. A fala da estudante colaboradora indica que o apoio da rede
familiar vai se robustecendo à medida em que os (as) estudantes trabalhadores (as)
também fortalecem os vínculos com a escola. É como se fosse uma relação de reci-
procidade: o apoio é intensificado à medida que seu vínculo e responsabilidade na
escola aumentam também. Por sua vez, Hilária, na condição de estudante trabalha-
dora egressa da EJA, que conseguiu concluir a Educação Básica, tem retribuído es-
se apoio recebido da família com seus (as) amigos (as) também, fortalecendo a rede
de sociabilidade:
A estudante egressa Hilária Batista traz uma questão muito importante nessa
reflexão, que é o que a educação faz com a gente. Ela realça a importância da edu-
cação na vida das pessoas e o efeito “dominó” que a “simultaneidade na permanên-
cia” (SANTOS, 2009) proporciona: o papel que os (as) estudantes que vivem ou vi-
veram condições similares de vida e permaneceram nos estudos, passam a desem-
penhar para os (as) outros (as) estudantes.
A simultaneidade da permanência é evidente no relato da estudante colabo-
radora Saraí Soares, que é uma jovem de 19 anos, que, na turma da escola em que
152
Os professores se dedicam, procuram saber por que está faltando. Eles ten-
tam fazer o máximo para a gente também cresça na vida, aqui as pessoas
dizem que tem que estudar, sem estudo não pode fazer nada. Os professo-
res ajudam a gente, explicam, se não estudar não vai ser nada. Eles tentam
fazer o máximo. Você explica a situação. Eles dão a segunda chance para a
gente conseguir. [sic] (EC Saraí Soares).
153
Então, a educação traz isso pra a gente também, esse conhecimento, essa
liberdade, porque quando você interage, você aprende com a liberdade que
você tem, expondo suas coisas e isso faz com que você cresça. E isso, pra
mim, trouxe uma realidade bastante ampliada e hoje, as pessoas me veem
diferente, no jeito de me vestir, até no meu jeito de falar, até nas condutas
que hoje eu procuro corrigir, que eu busquei na educação. Porque as pes-
soas, ao invés de ouvir você, elas julgam. Então, você precisa deixar esses
julgamentos de lado para prosseguir na sua vida, porque a vida é assim,
né? Sem luta, não há vitória. [sic] (EC Hilária Batista).
turnos de Educação da Bahia, o que realça ainda mais a relevância desse projeto
para o campo da EJA.
O Centro Noturno de Educação Joana Angélica considera fundante o diálogo
e a escuta dos (as) estudantes trabalhadores (as) desde o momento da matrícula,
no intuito de compreender suas condições de vida e de trabalho para orientá-los no
itinerário formativo que melhor atenda às suas necessidades e expectativas; assim
como a escuta nos momentos de infrequência escolar, situação típica de atores
(atrizes) sociais que buscam conciliar as condições precárias de sobrevivência com
as demandas exigidas no retorno aos estudos.
Assim, os etnométodos produzidos pela escola pautavam-se na escuta dos
(as) estudantes trabalhadores (as) a partir de suas experiências de vida e objetivos a
serem alcançados, o que levou os (as) professores (as), a partir de inspirações da
pedagogia paulofreireana, a investirem numa aproximação maior com a realidade
dos (as) estudantes trabalhadores (as).
A prática pedagógica do Ceneb Joana Angélica, que, muitas vezes, extrapo-
lava os espaços escolares, buscava outros tempos e espaços para reafirmar que a
educação vai “além dos muros escolares”, ou melhor, precisa estar também sem
muros para produzir o fluxo continuo que a formação necessita: o ir e vir de idas ao
teatro, do teatro à escola, às diversas instituições formadoras possíveis, enfim, trazia
para a escola noturna, vozes, ritmos, sons e cores que durante anos foi palco de
silenciamentos e monólogos.
A escola vivia um misto de crenças, religiões, etnias, de lutas pela sobrevi-
vência, pelo emprego tão sonhado, enfim, se constituía no espaço formativo que
pulsavam a vida e todos os movimentos que a mesma proporciona. Os (as) profes-
sores (as), articuladores (as) das áreas e gestores (as) que ali se encontravam, me-
diados pelos saberes dos (as) estudantes trabalhadores (as), semanalmente questi-
onavam a si e aos (as) outros (as), estudavam e planejavam suas aulas e demais
ações pedagógicas, tentando se aproximar do universo dos (as) estudantes, sociali-
zando o conteúdo escolar de forma contextualizada, numa busca paulofreireana pela
construção do conhecimento. O esforço feito era para trazer para o processo educa-
cional o (a) estudante trabalhador (a) com toda sua inteireza. O currículo proposto
buscava romper com a hierarquia dos conhecimentos, e os (as) profissionais que ali
estavam compreendiam que, para isso, precisavam tornar-se “do-discente” (FREI-
RE, 1997). Desse modo, os espaçostempos reservados para as Atividades Com-
158
34 A denominação “escolas exclusivas de EJA” surgiu na década de 90, com o objetivo de atender
estudantes jovens e adultos que acessavam essa modalidade de ensino tendo em vista a continui-
dade dos estudos na Educação Básica, a partir da oferta de cursos e exames.
160
imperceptível a olho nu, nos ajudou a perceber o trabalho dos (as) estudantes traba-
lhadores (as) na reconfiguração de suas próprias vidas. A produção dessas micropo-
líticas vai ao encontro de políticas que trabalham na manutenção de desigualdades
que, no Brasil, são históricas. A observação desses etnométodos e dessas micropo-
líticas, ao nos remeter, necessariamente, aos desafios encontrados pelos (as) jo-
vens e adultos (as) para não evadir, indicam, também, a seu tempo, importantes
pontos a serem atacados pelas políticas públicas no campo da EJA e em outros
campos da vida social que impactam na permanência do público que acessa essa
modalidade de educação. Pensar em políticas de EJA é, pois, pensar em políticas
que passam pela escola, mas que necessariamente precisam extrapolar seus mu-
ros, tocando em uma questão que foi fartamente trabalhada por teóricos como Milton
Santos (2001), como suas discussões sobre o espaço do (a) cidadão (ã), quando
considera que há desigualdades que são, em primeiro lugar, desigualdades territori-
ais, pois derivam do lugar onde cada qual se encontra. Essa afirmação nos faz lem-
brar que os (as) jovens e adultos (as) não são “acidentados (as) sociais” (ARROYO,
2012) pois o retorno à escola e sua consequente permanência na Educação Básica,
na qual muitos (as) lutam, são consequências do direito à educação que lhes foi reti-
rado, em virtude das condições precárias de vida às quais são submetidos (as) coti-
dianamente.
Assim, muitas ações que os (as) estudantes trabalhadores (as) produzem pa-
ra driblar esses desafios precisam ser contempladas tanto nas micropolíticas das
escolas quanto nas macropolíticas, no âmbito do Estado, como, por exemplo, quan-
do os (as) estudantes trabalhadores (as) falam do deslocamento entre ca-
sa/trabalho/escola, estão se reportando a etnométodos produzidos para dar conta
dessa mobilidade urbana, bem como tocam em questões intimamente relacionadas,
como o quantitativo de escolas que ofertam cursos de EJA nessas localidades, as-
sim como remetem à oferta de cursos de EJA em diversos turnos de funcionamento
da escola, além da manutenção de linhas de ônibus em horários compatíveis aos
horários de estudo.
Outra questão apontada por alguns (as) estudantes nessa pesquisa foram os
etnométodos produzidos para conciliar a maternidade/paternidade com os estudos.
Muitos (as) desses (as) estudantes trabalhadores (as) são apoiados (as) pela rede
de sociabilidade formada pela mãe, avó ou algum outro (a) parente ou amigo (a) que
se dispõe a cuidar do (a) filho (a), enquanto dá continuidade aos estudos na Educa-
168
ção Básica. Essa maneira precarizada de resolver o desafio do cuidado dos (as) fi-
lhos (as) enquanto estudam certamente nos leva a provocar políticas de permanên-
cia nesses casos em que a necessidade de estudo da mãe ou do pai se choca com
a necessidade de cuidado dos (as) filhos (as). Quais ausências essas micropolíticas
apontam no âmbito das macropolíticas? Uma “Sociologia das ausências”, como diria
Boaventura Sousa Santos (2002), poderia ser muito útil para nos indicar uma res-
posta. As ausências na vida dos (das) estudantes deixam transparecer inúmeras
lacunas nas políticas públicas direcionadas para a população menos privilegiada.
Num país tão desigual como o nosso, pensar em EJA é pensar em políticas que ex-
cedem os limites da escola, seus muros, que ultrapassam suas fronteiras, mas é fato
que é dentro de seus muros, na escuta de seus (as) atores (atrizes) sociais, que po-
demos compreender aquilo que não raro se estende para além da escola.
No âmbito das micropolíticas produzidas pelas escolas, compreendemos a
importância de incluir o estudo sobre o processo de escuta enquanto pauta formativa
para formação de professores (as) e gestores (as) que atuam na Educação de Jo-
vens e Adultos, condição fundante para a compreensão das condições de vida e de
estudo desses (as) atores (atrizes) sociais curriculantes. A escuta atenta, interessa-
da na realidade e na trajetória do outro, é uma aliada essencial na vinculação dos
(das) estudantes à escola, um aspecto extremamente relevante para a permanência
deles (as).
Assim, numa perspectiva propositiva, essa pesquisa considera a necessidade
de, a partir da compreensão dos etnométodos produzidos pelo (as) atores (atrizes)
sociais curriculantes, levar em conta suas condições de vida e de trabalho como
elementos fundantes para criação de políticas de permanência de jovens e adultos
(as) na Educação Básica. Assim, propõe que, a partir da compreensão dos etno-
métodos e das micropolíticas produzidas, as políticas públicas de permanência pos-
sam efetivamente considerar as especificidades e movimentos criativos produzidos
pelos (as) jovens e adultos (as) trabalhadores (as) para permanecerem nos estudos
na Educação Básica.
Os resultados dessa pesquisa só reafirmam aquilo que dizia Paulo Freire
(1996): “[...] o ser humano é maior do que os mecanismos que o minimizam [...]”,
pois os etnométodos e as micropolíticas produzidas tanto pelos (as) atores (atrizes)
sociais curriculantes da EJA, quanto pelas escolas investigadas, nos remetem a uma
riqueza da criação de maneiras diferentes para dar conta do desafio de conciliar vida
169
pessoal, trabalho e estudo nas condições precárias às quais são submetidos (as).
Eles nos apontam para a impossibilidade de reduzir os (as) atores (atrizes) curricu-
lantes às suas realidades sociais, considerando-os (as) vítimas de um sistema. A
ideia de uma macroestrutura opressora com poderes incalculáveis sobre os (as) ato-
res (atrizes) sociais cede pois lugar à ideia de um jogo de poder que envolve as ma-
croestruturas, mas também as micropolíticas da vida cotidiana que reorganizam
mais ou menos conscientemente o jogo de poder.
Para Deleuze e Guatarri (2012), “[...] tudo é político, mas toda a política é ao
mesmo tempo macropolítica e micropolítica.” Assim, pensar as políticas de perma-
nência de EJA a partir das vias da micropolítica é situá-las no campo da destotaliza-
ção (DELEUZE; GUATTARI, 2012), realçando que a vida é constituída de multiplici-
dades de linhas que apresentam contornos variados e diversos; assim, não pode-
mos reproduzir os caminhos, pois estes são marcados por singularidades, sendo
necessário inventarmos maneiras para responder aos desafios que se apresentam.
Vimos nos relatos dos etnométodos produzidos pelos (as) estudantes trabalhadores
(as) e nas micropolíticas produzidas pelas escolas que é na potência do inexistente
que residem as micropolíticas, ou seja, na produção das micropolíticas os (as) jo-
vens e adultos trabalhadores (as) re (existem), tensionando a criação de políticas de
permanência estudantil na Educação Básica que se aproximem de suas necessida-
des.
170
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APÊNDICES
______________________________
Assinatura do(a) participante
__________________________________
Assinatura da Pesquisadora Responsável
180
OBJETIVOS:
QUESTÕES:
4. Que ações são desenvolvidas na escola que considera importantes para você
concluir os estudos na Educação Básica?
5. Que outras ações poderiam ser realizadas pela escola e por outros segmen-
tos da sociedade para contribuir com sua formação e permanência na escola?
181
7. Olhando hoje para sua experiência anterior na escola, o que você pensa?
182
OBJETIVOS:
QUESTÕES:
OBJETIVOS:
QUESTÕES:
5. Quais ações são adotadas na escola que contribuem para a formação e per-
manência de jovens e adultos (as) na escola?
184
6. Que outras ações poderiam ser adotadas pela escola e por outros segmentos
da sociedade para contribuir com a formação e a permanência de jovens e
adultos (as) na Educação Básica?