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Indexada em:
BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília, Inep)
EDUBASE – UNICAMP
CLASE – Universidad Nacional Autónoma de México
LATINDEX – Directorio de publicaciones cientificas seriadas de America Latina, El Caribe, España y
Portugal
Missão Salesiana de Mato Grosso
UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO
Instituição Salesiana de Educação Superior
SÉRIE-ESTUDOS
Periódico do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UCDB
Conselho Científico
Ahyas Siss – UFRRJ José Luis Sanfelice – UNICAMP
Amarílio Ferreira Junior – UFSCar Luís Carlos de Menezes – USP
Belmira Oliveira Bueno – USP Maria Izabel da Cunha – UNISINOS
Celso João Ferretti – UTFPR Marilda Aparecida Behrens – PUCPR
Graça Aparecida Cicillini – UFU Romualdo Portela de Oliveira – USP
Emília Freitas de Lima – UFSCar Sonia Vasquez Garrido – PUC/Chile
Gaudêncio Frigotto – UERJ Susana E. Vior – Universidad Nacional de Luján
Hamid Chaachoua – Université Joseph Fourier (UNLu)/Argentina
(UJF)/França Valdemar Sguissardi – UFSCar/UNIMEP
Iara Tatiana Bonin – ULBRA Yoshie Ussami Ferrari Leite – UNESP
Direitos reservados à Editora UCDB (Membro da Associação Brasileira das Editoras Universitárias - ABEU):
Coordenação de Editoração: Ereni dos Santos Benvenuti
Editoração Eletrônica: Glauciene da Silva Lima
Revisão de texto: Maria Helena Silva Cruz
Bibliotecária: Clélia Takie Nakahata Bezerra - CRB n. 1/757
Capa: Helder D. de Souza e Miguel P. B. Pimentel (Agência Experimental de Publicidade)
Ponto de vista
Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos ...........15
Mario Alighiero Manacorda: a Marxist in the service of full freedom and all ...............................................15
Paolo Nosella
Artigos
Resenha
Resumo
O texto trata do falecimento de Mario Alighiero Manacorda em Roma no dia 17 de fevereiro de 2013,
um dos maiores intelectuais marxistas italianos do século XX. Ao longo do texto é tratado sobre a sua
formação sob o regime fascista, como professor, pesquisador, militante e, por fim um adeus a um grande
homem que soube distinguir a cultura ideal comunista da prática do socialismo real.
Palavras-chave
Mario Alighiero Manacorda. Falecimento. Intelectual.
Abstract
The paper deals with the death of Mario Alighiero Manacorda in Rome on 17 of February of 2013, one
of the largest Italian Marxist intellectuals of the twentieth century. Throughout the text is treated on their
training under the fascist regime, as a teacher, researcher, activist, and finally a farewell to a great man
who knew how to distinguish the ideal communist culture of the practice of real socialism.
Key words
Mario Alighiero Manacorda. Passing. Intellectual.
1
Palestra proferida no X Colóquio Nacional e II Colóquio Internacional do Museu Pedagógico da Uni-
versidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em Vitória da Conquista, em 30 de agosto de 2013.
16 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
possuía um pequeno apartamento de A primeira enfatiza a importância do tes-
apoio, transcorria a maior parte do ano temunho individual do professor, mesmo
na casa de campo de Bolsena, no lago à revelia da ideologia do sistema político
homônimo, onde estudava, escrevia e e da gestão escolar: “A marca do ensino,
cuidava da pequena propriedade que lhe quase sempre liberal-conservadora, depen-
proporcionava o vinho, o azeite, o mel, as dia muito da individualidade do professor”
frutas e as verduras. (MANACORDA, 2010, p. 29). A segunda
destaca a íntima força ético-política da ele-
2 Formação vada cultura: “A longo prazo, por meio de
mil contradições, a cultura termina sempre
As quartas capas ou as orelhas de
sendo revolucionária” (MANACORDA, 1985,
seus livros trazem quase sempre uma
p. 159). São duas ideias que confluem na
sinopse de seu percurso formativo. Mas
convicção de que a ideologia e a política
a melhor narração encontra-se no texto
da instituição nem sempre correspondem
La mia scuola sotto il fascismo [A minha
aos valores professados individualmente
escola sob o fascismo] (Manacorda, 2010),
pelos educadores que nela trabalham. Por
delicioso autorretrato de sua trajetória es-
isso o laicismo e o socialismo, dimensões
colar, desde o jardim da infância das Irmãs
fundamentais para Manacorda, não o im-
Francesas do Sagrado Coração (1918) até
pediram de reconhecer e elogiar mestres
os anos universitários e as primeiras expe-
que vestiam a batina sacerdotal ou mesmo
riências como professor (1943). Toda sua
que haviam aderido ao fascismo. Assim,
escolarização ocorreu durante o governo
por exemplo, com admiração, rememora
fascista: cinco anos de instrução elementar,
o caríssimo professor Pe. Primo Vannutelli:
cinco de ginásio (com latim e grego), três
de liceu clássico, quatro de universidade Seja-me permitido lhe dedicar uma
(na Escola Normal Superior de Pisa) e um recordação particular de estima e
afeto. [...] Era um sacerdote sui generis,
de aperfeiçoamento em Frankfurt.
homem de profunda cultura e huma-
Existe um segundo depoimento em nidade, espírito tolerante, competen-
que analisa especificamente o período tíssimo não apenas de latim e grego,
de formação universitária: Il contributo mas também de hebraico e de cultura
dell’universitá di Pisa e della Scuola Nor- bíblica; leitor de latim na Faculdade
male Superiore alla lotta antifascista ed de Letras da Universidade La Sapien-
alla guerra di liberazione [A contribuição za, onde dava aulas de latim. [...] Era
da Universidade de Pisa e da Escola para nós um ponto de referência em
Normal Superior na luta antifascista e na nossos estudos [...]. Sua lembrança é
guerra de libertação] (Manacorda, 1985). para mim e para minha mulher – nos
Na leitura desses depoimentos, há conhecemos nos bancos do Liceu –
entre as mais caras de nossas vidas.
duas ideias fortes sobre a influência da
(MANACORDA, 1985, p. 32).
instituição escolar na formação do aluno.
18 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
liceu (ensino médio) começamos a ler os daquelas harmonias de tanto que as
autores por si mesmos e, finalmente, a gra- sentíamos nossas e sentíamos que
mática serviu os autores e não os autores jamais deixarão de fazer parte de
à gramática” (MANACORDA, idem ibidem, nosso espírito. [...] (GRAMSCI, A luz que
se apagou, Cronache Torinesi, Einaudi
2010, p. 3). Nessa escola, Manacorda se
Editore, 1980, p. 23-24).
tornou um mestre da palavra. Por meio da
difícil arte da filologia e da hermenêutica, Esse elogio, como disse, aplica-se
na leitura dos clássicos e dos documentos perfeitamente ao nosso mestre: a forma
históricos em geral, retratava a história da como lia e comentava alguns passos da
educação à luz de valores humanistas obra de Santo Agostinho ou de Karl Marx,
absolutos. com grandes reservas para o primeiro e
indiscutíveis afinidades teóricas com o se-
3 Professor gundo, me deixava boquiaberto; ensinava-
me de fato “como abrir” um texto clássico,
Pode-se dizer que Mario era pro- como compreender certas passagens.
fessor nato. Assunto e forma didática Gostava de datar tudo, se possível, identifi-
encantavam alunos e ouvintes em geral, cando o mês e o dia, os interlocutores e as
motivando-os a ler e amar os clássicos. A circunstâncias em que foram redigidas. Era
ele aplica-se perfeitamente o elogio que um verdadeiro mestre, um mago da cultura.
Gramsci fez dos professores Renato Serra Começou a lecionar literatura ita-
e Francesco De Sanctis. Permitam-me a liana no liceu clássico de Siena, em 1939.
bela citação: Eram os anos do fascismo mais insensato,
Esses dois homens foram, realmente, e a pressão política fazia-se sentir cada vez
mestres, como entendiam os gregos, mais irracional, ridícula e cruel. A escola,
isto é, mistagogos; iniciaram-nos nos felizmente, abrigava muitos homens cuja
mistérios da poesia, mostrando que postura liberal e crítica evidenciava que,
esses ‘mistérios’ são vãs construções conforme disse, a relação dialética entre
de literatos e que tudo é tão claro, lím-
sistema político e instituição escolar não
pido aos que têm olhos puros e vêm a
luz como cor e não como vibrações de é absoluta e mecânica:
íons e elétrons. Esses dois mestres são O diretor Orsini Begani era um
colaboradores da poesia, leitores da verdadeiro cavaleiro de marca libe-
poesia. Todos seus ensaios são novas ral que me acolheu com paternal
luzes que se acendem para nós. Nos cordialidade e, no final do dia, me
sentíamos como que arrebatados por levou para visitar a cidade que eu
um encanto. [...] A palavra deixava ainda não conhecia. [...] Conversando
de ser um elemento gramatical que amavelmente, me disse, entre outras
devia ser encaixada em regras e em coisas, que nas ‘notas características’
esquemas livrescos; [...] nos davam que era obrigado a redigir sobre os
a ilusão de sermos nós os criadores professores ficava em posição muito
20 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
uma escola de elevada cultura para os 4 Pesquisador
dirigentes e outra de abstrata cultura ins-
trumental para as classes trabalhadoras. Suas atividades docentes embasa-
(MANACORDA, DVD, 2007). vam-se em pesquisas de documentos e
Quem conheceu Mário, pessoalmen- textos dos clássicos da filosofia, da peda-
te, sabe que ele tinha o dom da comunica- gogia e da literatura em geral. Filólogo e
ção. Sua voz de barítono, com o inconfun- linguista, além do grego e latim clássicos,
dível sotaque romano, conservara-se clara conhecia perfeitamente o inglês, o alemão
e forte até os últimos anos de vida. Quando e o russo. As línguas francesa, espanhola
alguém lhe colocasse um microfone na e portuguesa não representavam para ele
frente, aí se transformava, como vimos na dificuldade de entendimento. Era apaixo-
videoconferência do VIIº Seminário Nacio- nado por línguas porque era apaixonado
nal na UNICAMP, em Julho de 2006. Não pela palavra que, como bom leitor de
utilizou óculos, nem caneta, nem papel. Giambattista Vico, sabia não nascer se-
Nenhuma anotação. Falou mais de uma parada do pensamento, mas inseparavel-
hora, fluente e espontaneamente, citando mente junto com este. Mais ainda, sabia
datas e nomes, esboçando em densa que palavra e pensamento nascem e
síntese um balanço político, econômico “concrescem” (termo amado por ele) junto
e cultural do século XX. Sua fala era ágil, com as condições materiais, políticas e ide-
precisa, elegante, sem o tom do decorado. ológicas vivenciadas pelo ser humano. Por
Era um exímio professor e orador. isso, para compreender uma palavra não
Não sem razão, a R.A.I. (Rádio Televi- bastava recorrer ao dicionário, precisava
são Italiana) o convidara, em 1980, para ser perscrutar a situação concreta vivida por
o autor (e ator) de uma série de transmis- quem falou ou escreveu. Em suma: filologia
sões radiofônicas intituladas “A escola nos e hermenêutica eram os seus principais
séculos”. Ao todo, foram doze transmissões instrumentos técnicos de pesquisa.
com base na leitura direta de seus textos Inicialmente, nos anos de 1942
para uma sala de aula do tamanho da a 1962, traduzira textos literários como:
Itália. Sua proposta inicial era realizar uma Novalis, Cristianitá o Europa, Einaudi,
exposição pela Televisão Italiana acompa- 1942; Hugo von Hofmannsthal, La donna
nhada de imagens de obras de arte e fotos senz’ombra, Guanda, 1946; Karl Marx, Le
sobre educação nos séculos. Tal ideia não lotte di classe in Francia dal 1848 al 1850,
foi efetivada pelas dificuldades técnicas Einaudi, 1948; Marx-Engels, Carteggio:
que apresentava, porém está impressa em gennaio 1852- dicembre 1864, 3 vols.,
forma de um belíssimo volume Storia illus- Editori Riuniti, 1972. Elegera como objetivo
trata dell’educazione - dall’antico Egitto ai geral de seu trabalho intelectual cuidar
giorni nostri. Editora Giunti, Florença, 1992. da coleção “Os clássicos do marxismo”,
traduzindo e comentando do original para
o italiano os textos mais importantes do
22 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
dução das Istruzioni ai Delegati, do como apresentação da tradução no Brasil
citado primeiro volume da obra IL do seu livro “História da Educação – da An-
Marxismo e I’Educazione (1964, p. tiguidade aos nossos dias”, Editora Cortez.
82-84), feita a partir do texto alemão, Em sua carta resposta, manuscrita,
usa sempre o termo “politécnico”, até de Bolsena, diz:
quando deveria dizer “tecnológico”,
isto é, em todos os casos exceto um. Caro Paolo, sua apresentação está
Pedimos desculpas aos eventuais ótima [...]. Talvez, eu esclareceria me-
leitores daquele volume. Atualmente, lhor a escola “politécnica” e a função
dispomos, afinal, do original inglês, do industrialismo; [...]. Diria “uma
The General Council of the First escola tecnológica”, sublinhando
International, 1868-1870, Minutes, os princípios científicos gerais e não
Moscow, Progress Publishers, s.d. (será somente as exigências do pluripro-
1864?), do Instituto para o marxismo fissionalismo. Ciao. Grazie. tuo Mario.
leninismo. (MANACORDA, 2007, p. [negrito meu]
192-193). Eu havia escrito:
Com outras palavras, Manacorda Sem dúvida, na visão dessa obra, o
diz que, no primeiro volume da antologia momento estratégico da síntese da
Il marxismo e l’educazione de 1964, havia- Escola-do-dizer com o Treinamento-
se utilizado do texto de Marx Istruzione ai para-o-fazer será marcado pela
revolução industrial que, negando o
delegati na tradução alemã, em que em-
‘sapateiro por natureza’ de Platão, des-
prega o termo “politécnico” mesmo quando
truindo também o treinamento-para-
deveria empregar o termo “tecnológico”. sapateiro dado nas corporações me-
Mais tarde, todavia, verificou que o texto dievais, fixa as bases de uma escola
original era em inglês e utilizava o termo politécnica para os trabalhadores
technological, isto é “tecnológico”. Assim, e lança a hipótese de uma escola
pede desculpas aos leitores pelo equívoco para todos, como espaço e tempo de
que, finalmente, corrigiu no seu novo livro plenitude de vida. (Nosella, São Carlos,
Marx e la pedagogia moderna de 1966, outubro de 1988). [negrito meu]
que foi traduzido em língua espanhola, Obviamente, em decorrência de sua
na Colección Libros Tau, Barcelona 1969; resposta, substitui o termo “politécnica”
em seguida, em português (Editora Cortez por “tecnológica”. Hoje, o livro “História da
e Autores Associados, São Paulo 1991); e, Educação – da antiguidade aos nossos
ultimamente, pela Editora Alínea, Campi- dias” está no Brasil na 1ª reimpressão
nas 2007. da 13ª edição. É um belo livro de 455
Sobre o mesmo assunto, há outra páginas, originado, como disse, das doze
curiosidade significativa. Em 1988, lhe transmissões radiofónicas de 1980. É lido,
enviei para apreciação o meu texto: “Ao preferencialmente, entre os alunos dos
leitor brasileiro”, destinado a ser publicado cursos de Pedagogia e pós-graduação em
24 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
panharia na compreensão dos fatos e da rino Boringhieri, 1983). Em 1977, publicou
cultura do século XX, verdadeiro labirinto um estudo Per uma pedagogia dell’uomo
teórico que desafia qualquer analista: integrale, na Revista Critica Marxista, n.
Um século que foi chamado por al- 4-5. Em 1980, na mesma revista, n. 6,
guém [Eric J. Hobsbawm] um século publicou Pedagogia e politica scolástica
breve ou, por outros, um século longo del P.C.I. dalle origini alla liberazione. Em
[Fernand Braudel]. Para mim, é muito 1988, ainda na Revista Critica marxista n.
longo. Em todo caso, nos deu muito 5, publicou Franco Rodano lettore di Marx.
de bom e muito de ruim. Diria em Um carinho particular demostrava
medida exorbitante comparando com para o livro Lettura laica della bibbia,
todos os outros séculos da história Editori Riuniti, Roma, 1989. Literariamente
humana. Foi um século de fortes ace- original, evidencia a grande postura laica
lerações e de fortes contrastes. Diria,
de Mario: qual a razão de tamanha fortuna
aliás, que é caracterizado exatamente
por um excesso de contraditoriedade.
histórica da Bíblia, pergunta-lhe um dia
A contradição é uma boa chave de lei- Yúkiko, sua admiradora japonesa? Vocês
tura para esse século. (MANACORDA, ocidentais – continua Yúkiko – referem-
DVD, livreto, 2007, p. 8-9). se à nossa cultura como expressão do
“mistério oriental”, mas, na verdade, nós
Sem abrir mão do filo rosso, isto é,
orientais estranhamos o mistério da cultura
da raiz da história que é o trabalho do
ocidental. Tão racionalista como se crê,
homem em colaboração com os outros
como pode essa cultura reverenciar livros
homens para dominar e humanizar a na-
sagrados que narram histórias de patriar-
tureza, o perfil intelectual de Manacorda
cas que se dispõem a matar seu filho por
tomava cada vez mais a forma poliédrica:
ordem de um deus pai misericordioso e im-
variada nos assuntos, unitária no método.
por a todos a adoração de um deus único
Na Itália, são conhecidas suas intervenções
em três pessoas? Manacorda, estimulado
no debate pedagógico em favor da unici-
pelas provocações da amiga, estrutura um
dade do ensino médio (ginásio e liceu),
livro alternando as cartas dela às suas
mas também seus estudos históricos da
respostas. Ao todo, são 58 cartas, datadas
Antiguidade, como, por exemplo, sobre a
de junho de 1987 a outubro de 1988, nas
crise ideal educativa do IV século d.C. em
quais “explica” laicamente o “mistério”
torno da figura e da proposta educativa
da alma ocidental; as origens míticas do
de Juliano, o Apóstata que contrapunha à
mundo e dos homens; o conteúdo histórico
Paideia de Cristo a Paideia de Aquiles (A
dos patriarcas etc.. Na última carta, Yúkiko
paideia de Aquiles, Editori Riuniti, Roma
pergunta: “Caro Mario, por que os homens
1971) e sobre as origens e o perfil da
têm necessidade de buscar fora do homem
profissão docente na antiga Grécia e em
as razões do homem?” E Mario responde:
Roma (Scuola e Insegnati, cap. IX, in Oralitá,
“Sim, eu também sonho uma humanida-
scrittura, spettacolo. Org. Mario Vegetti, To-
26 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
marxista muito esquecido, quer pelos Insisto (com esse nome) porque
seus seguidores, quer pelos seus sei distinguir a tradição cultural e
adversários. [...] Eu já havia cortado o socialismo real. Partindo desta
as relações com a União Soviética distinção, podemos ainda evocar
de Brejnev e havia sempre corrigido um ideal que conserva o nome de
os companheiros soviéticos pela sua comunismo, embora no mundo já
interpretação errônea de Marx, como existam poucos comunistas; mas a
se fosse um teórico do poder; era um necessidade de um resgate geral
teórico da liberdade civil. (DVD, 2007, do homem, de superar esta situação
p. 9-10). de divisão da humanidade que o
progresso científico e técnico de hoje
A militância de Manacorda carac-
acentua e exaspera, esta exigência
terizava-se pela sua atuação no campo permanece. [...] Enquanto não saímos
da cultura; era um difusor dos ideais dessa contradição, que é planetária,
comunistas nas expressões culturais mais um ideal, que até hoje foi chamado
elevadas. Foi Diretor das Edições Rinascita; de comunista, é necessário, qualquer
responsável da Comissão “Escola” junto que seja o nome que a humanidade
à Direção do Partido Comunista Italiano; futura queira escolher. Eu assim me
responsável da “Seção Educação” do Ins- nomeei, sou um homem do século
tituto Gramsci; Diretor da “Revista Reforma passado; não seria decoroso que re-
da Escola”; membro do Comitê Diretivo da negasse a mim mesmo como fizeram
muitos outros. (DVD, 2007, p. 14-15).
“Federação Internacional dos Sindicatos
do Ensino”; membro da Comissão Italiana Obviamente, neste breve texto, não
na UNESCO; colaborador de vários outros poderei deixar de destacar a relação de
Jornais, Revistas e, como vimos, também da Manacorda com o Brasil. Ainda recente-
R.A.I. (Rádio Televisão Italiana). Em minha mente, quando o vi em Roma, ao falar-lhe
pequena biblioteca pessoal, conservo mui- do Brasil se emocionava. A primeira vez
tos exemplares das revistas Riforma della que visitei Mário, em sua residência de Bol-
scuola e Rinascita. Folhando-as, mesmo sena, foi em fevereiro de 1985. Fui visitá-lo
que rapidamente, percebe-se logo uma porque, conhecendo seus livros em língua
característica editorial: a preocupação com espanhola Marx y la pedagogia moderna
a comunicação de massa e com o elevado (Barcelona, 1969) e El principio educativo
nível cultural e científico. Não há ranço de en Gramsci (Salamanca, 1977), que circula-
sectarismo político, nem, como ele dizia, de vam entre nós educadores brasileiros, dese-
“racismo ideológico”. java trocar ideias sobre literatura marxista
Aberto ideologicamente, insistia, em educação e, quem sabe, publicar aqui
todavia, em se identificar como comunista, algumas das suas obras. Ainda guardo
mesmo quando a denominação era fora com carinho o exemplar do seu livro Sto-
de moda: ria dell’educazione – dall’antiquitá a oggi
Edição ERI, Torino, 1883, recebido de suas
28 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
do livro, as coisas assim se passaram: em da liberdade. Com efeito, Marx pertence à
julho de 2008, voltei a visitá-lo em Bolsena, antiga cepa dos liberais progressistas, para
visando conseguir seu grande texto Diana os quais o valor máximo é a liberdade. To-
e le muse: tre millenni di sport nella lette- davia a eles se contrapõe porque reivindica
ratura. Permitiu-me copiá-lo, porém disse- a liberdade plena e para todos. Amá-la
me que, no momento, preferia publicar no assim não é amá-la de menos. Por isso, se
Brasil outro texto pronto desde 2007: Quel ardorosamente defende a igualdade social,
vecchio liberale del comunista Karl Marx. o faz como garantia dessa universal liber-
Aceitei o desafio e, junto com o amigo dade. Não são dois valores contrapostos,
Newton Ramos-de-Oliveira (2012, Prefácio), nem equivalentes: a liberdade é valor fim,
trabalhamos por longas horas na tradução. e a igualdade é valor meio.
A linguagem do texto, conforme
escrevi no prefácio, é colorida, meta- Adeus
fórica e coloquial, carregada de muita
— Caro Mário, se você sabe distin-
emoção, típica de alguém que realiza
um acerto de contas teórico. O título
guir a cultura ideal comunista da prática
foi um quebra cabeça. Propus, então, do socialismo real, por que não distinguir
outro título que se adequasse, obvia- também as culturas, ritos e mitos religiosos
mente, ao espírito do texto ‘Karl Marx das práticas das religiões reais?
e a liberdade’. Manacorda gostou e — Certamente, mas não esqueça,
aprovou, mas acrescentou: diga que Paolo, que o clero que te educou era o
este título é seu. No fim, editamos os clero do norte da Itália que protagonizou
dois títulos. importantes lutas populares.
Nesse livro, são retomados conceitos — Adeus, Mário, você pulou deste
e análises já várias vezes publicados, mas rio. Eu nele ainda continuo, movido pela
que, na sua versão compacta e sintética, contradição e alimentado pelo viático de
apresentam-se agora como um testamento seu exemplo que me faz pelejar em favor
teórico de sua leitura de Marx que, insis- da liberdade plena e para todos. (conversa
te, não é um teórico do poder, nem da imaginada entre mim e Mario)
economia, como muitos disseram, e sim
A scuola nel vent’ennio. Ricordi e riflessioni. In: GENOVESI, Giovanni. “C’ero anch’io! Napoli:
Liguori, 2010.
Antonio Gramsci – l’alternativa pedagogica. Florença: Editora La Nuova Itália, 1972.
Diana e le muse – ter millenni di sport nella letteratura. - Antologia (mimeo), 2008.
30 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
Artigos
A ensaística adorniana e o filosofar em educação
Adornian essay practice and philosophizing in
education
Divino José da Silva*
* Professor de Filosofia da Educação do Departamento de
Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação em
nível de Mestrado e Doutorado da Faculdade de Ciências
e Tecnologia da UNESP/Presidente Prudente, SP.
E-mail: divino.js21@uol.com.br
Resumo
Em “O ensaio como forma”, Theodor Adorno critica o pensamento filosófico dominante que, por diferen-
tes vias, manifesta a pretensão de compreender o real em sua totalidade, em que o caráter universal
do conceito anula a singularidade do objeto. Adorno vislumbra no ensaio a possibilidade de se pensar
aspectos do objeto os quais foram, de modo coercitivo, negados pelo caráter identitário da razão. O nosso
objetivo neste artigo foi pensar a importância do ensaio para a filosofia da educação enquanto um modo
de reflexão sobre e na educação. O ensaio, nos termos adornianos, nos instiga a pôr em dúvida valores,
crenças e estereótipos que limitam nossa experiência educativa, ao mesmo tempo em que nos possibilita
resgatar nela o que foi esquecido pela razão, pelos saberes e pelas práticas pedagógicas, na atualidade.
Palavras-chave
Adorno. Filosofia da Educação. Prática Reflexiva.
Abstract
In “Essay as Form”, Theodor Adorno criticizes the dominant philosophical thinking that, by different me-
ans, claims understanding the reality as a whole, in which the universal nature of the concept nullifies
the singularity of the object. Adorno considers the essay as a possibility of thinking about aspects of the
object that were, coercively, denied by the identity nature of reason. Our aim in this article is to reflect on
the importance of the essay in philosophy of education as a way of reflection on education. The essay, in
adornian terms, encourages us to question values, believes, and stereotypes that restrain our educational
experience, and at the same time, it enable us to retrieve, within such experience, what has been forgotten
by reason, by knowledge, and by pedagogical practices of the present days.
Key words
Adorno. Philosophy of Education. Reflective Practice.
Referências
Resumo
Este artigo tem como objetivo evidenciar as contribuições que as teorias sociointeracionista bakhtiniana
e a Análise do Discurso de linha francesa podem oferecer ao ensino de linguagens, sobretudo, no que
diz respeito à formação de leitores e às diversas possibilidades de produção de sentidos que os textos
apresentam. Ressalta-se a necessidade de uma mudança de postura tanto dos professores quanto dos
alunos frente aos textos, com o intuito de ampliar a capacidade discursiva dos alunos, libertá-los da
pressão de ter de achar um único sentido do texto, uma única resposta correta, que sempre foi a do
professor ou do livro didático.
Palavras-chave
Discurso. Interação. Ensino.
Abstract
This article aims to highlight the contributions that the Bakhtinian social interaction theories and what
the French Discourse analysis can offer to the teaching languages, especially, so far regarding the reading
formation and the various possibilities of meaning production that the texts present. We emphasize the
need of a posture change by teachers and students on the texts, with the aim of increasing the students’
discursive capacity, freeing them of the pressure of having to find a single meaning for the text, a single
correct answer that was always the teacher or textbook ones.
Key words
Discourse. Interaction. Teaching.
Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 3. ed. Tradução de Michel Lahud e Yara F. Vieira
com a colaboração de Lúcia T. Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. São Paulo: Hucitec, 1986.
______. Estética da criação verbal. 5. ed. São Paulo: WMF/Martins Fontes, 2010.
BARROS, D. L. P. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: BARROS, D. L. P.; FIORIN, J. L. Dialogismo,
polifonia e intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1994.
BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. Campinas, SP: Unicamp, 1995.
CARDOSO, S. H. B. Discurso e ensino. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
CORACINI, M. J. A celebração do outro: arquivo, memória e identidade. Campinas, SP: Mercado
de Letras, 2007.
Resumo
Este texto buscou analisar a concepção de gestão democrática implícita nas ações educativas ofertadas
por dois espaços não formais de ensino. O estudo foi realizado na Federação de Órgãos para Assistência
Social e Educacional, FASE, mediante o enfoque do Curso Capacitação de Agentes Sociais e Conselheiros
Municipais, e no Instituto Ayrton Senna, a partir da abordagem do Programa Gestão Nota 10. O referencial
teórico utilizado no estudo enfatizou a dimensão política que os espaços não formais de ensino podem
assumir sem defender a diminuição do papel do Estado na oferta da educação pública. As reflexões
respaldam a concepção de gestão democrática adotada no texto. O estudo traz as contribuições sobre a
possibilidade de construção de uma nova relação com o saber na análise das ações educativas inves-
tigadas. A pesquisa de abordagem qualitativa utilizou como instrumentos de coleta de dados: análise
documental e entrevistas com os coordenadores pedagógicos das duas Organizações do Terceiro Setor. Os
resultados encontrados na pesquisa indicaram que nas ONGs estudadas as diferenças sobre a dimensão
política da gestão educacional são acentuadas.
Palavras-chave
Gestão democrática. Espaços não formais de ensino. ONGs.
Abstract
This paper analyzes the concept of democratic management implicit in educational activities offered by two
spaces non-formal education. The study was performed in Federação de Órgãos para Assistência Social
e Educacional, FASE, upon the focus of the Training Course of Social Agents and Municipal Councillors,
and the Instituto Ayrton Senna, from the approach of the Program Management Note 10. The theoretical
framework used in the study underscores the political dimension of the spaces non-formal education
can take without defending the diminishing role of the state in the provision of public education. The
64 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
indicadores e de metas a serem cumpridas referidas propostas não podem restringir-
pelas escolas participantes do Programa se, portanto, ao campo formal, precisam
Gestão Nota 10. Ambas as Organizações sobrepujá-lo. Nesse sentido, indagamos
possuem as suas sedes situadas no eixo como a educação não formal atenderia a
Rio de Janeiro e São Paulo, com atuação possibilidade de emancipação dos sujeitos
em vários estados da federação, e fazem por meio de uma educação política? A edu-
parcerias com órgãos públicos para con- cação não formal, na configuração atual,
cretizarem as suas ações educativas. se apresenta como “alternativa” possível
Adotamos uma abordagem quali- buscando contribuir para a transformação
tativa de investigação e empregamos as da sociedade?
seguintes técnicas de pesquisa: análise Mészáros (2005) reconhece a impor-
documental mediante o levantamento tância de outros espaços formativos, além
de dados em sites e entrevistas junto aos da escola, e identifica a educação informal
responsáveis pelas Organizações citadas. como aquela que acontece ao longo da
Procedemos à análise de dados privilegian- vida mediada por relações sociais e polí-
do a recorrência aos temas que elucidam ticas. Similar a essa categorização, Gohn
o objetivo proposto na investigação. (2006) tipifica a educação que se aprende
no mundo da vida e em espaços coletivos
Educação não-formal, ONGs e gestão como educação não formal. Convém res-
democrática saltar que, mesmo admitindo as potencia-
lidades dessa modalidade de educação,
As críticas à sociedade capitalista não deve ser depositada uma confiança
pautada na mercantilização, na alienação excessiva nas suas ações (TRILLA, 2008).
e na intolerância, vislumbram o papel Frente ao exposto, buscaremos no presente
estratégico da educação como mola pro- artigo verificar até que ponto as ações
pulsora para a transformação e não instru- educativas em foco, Curso Capacitação de
mento de manutenção do status quo das Agentes Sociais e Conselheiros Municipais,
desigualdades sociais e educacionais. De- desenvolvida pela FASE e o Programa Ges-
veria ser a universalização do atendimento tão Nota 10, executado pelo Instituto Ayrton
uma meta, bem como a universalização do Senna, convergem para uma concepção
acesso ao trabalho, e não diametralmente de gestão que contribuem para formação
a universalização do acesso à educação, de uma nova cultura política. Esta diz
pois, apenas numa sociedade em que to- respeito aos valores que os indivíduos e
dos se tornem trabalhadores, se efetivará grupos desenvolvem em relação ao espaço
a plena relação entre trabalho e educação público, de uma maneira geral, a partir de
(MÉSZÁROS, 2005 apud GONZALEZ, 2008). processos interativos entre os indivíduos,
Acrescentamos à reflexão de Mésza- cujo elemento central é a necessidade
ros a nossa concepção ampliada de do ser humano, e não a busca do lucro
educação que nos leva a enfatizar que as (GOHN, 2006).
66 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
de 1988, entretanto a construção do co- escolar tem como base alguns fundamen-
nhecimento e das práticas necessárias está tos necessários para a implantação do
em fase de elaboração, dada a dificuldade modelo dinâmico de escola: a) a realidade
que se tem de mudanças de paradigmas é global onde tudo está interligado; b) a re-
(LÜCK, 2000). Estas não acontecem de for- alidade é dinâmica construída pelas intera-
ma rápida, pois consistem em um processo ções entre as pessoas; c) o ambiente social
histórico e construído pela sociedade. e o comportamento humano são dinâmicos
A Constituição Federal de 1988, em e imprevisíveis; d) a incerteza, a ambigui-
seu art. 206, fixou os princípios do ensino dade, as contradições, as tensões, o conflito
brasileiro, dentre os quais, destacamos: a e a crise são vistos como naturais e como
gestão democrática, estabelecida no inciso condição e oportunidade de crescimento e
VI, que aumentou a capacidade das escolas transformação; e) a busca de realização e
tomarem decisões; e a garantia de padrão sucesso corresponde a um processo, e não
de qualidade, prevista no inciso VII. Além a uma meta; f) a responsabilidade maior
disso, para tornar as instituições escolares do dirigente é a articulação; g) as boas ex-
mais eficientes e produtivas, a referida Cons- periências não devem ser copiadas, e sim
tituição em seus artigos 211, 212 e 213 es- modificadas por causa das peculiaridades
tabeleceu, respectivamente, a organização locais e organizacionais; h) as organizações
descentralizada dos sistemas de ensino en- devem priorizar a participação conjunta e
tre os entes federativos, a descentralização mobilizar equipes atuantes, pois os talentos
administrativa e financeira do ensino para e a sinergia humanos são recursos pode-
os governos locais e os recursos públicos rosos numa organização. Estes aspectos
que seriam destinados às escolas. são essenciais na visão democrática como
Em 1996, a LDBEN n. 9394, ratifica garantia de mudanças comportamentais e
a Constituição Federal e coloca no artigo organizacionais. Finalmente, outro aspecto
3º, inciso VIII, a gestão democrática do essencial na gestão democrática é evitar a
ensino público como um dos princípios da rotatividade, esse fato traz a descontinui-
educação nacional. O art. 14 da referida lei dade dos processos e prejudica o amadu-
diz que os sistemas de ensino definirão as recimento das transformações.
normas da gestão democrática do ensino Nessa perspectiva, a formação do
público na educação básica, de acordo gestor é essencial para o seu desempenho,
com as suas peculiaridades e conforme os e, além da capacidade técnica, o gestor
princípios da participação dos profissionais precisa ter uma visão holística do processo
da educação na elaboração do projeto educativo, uma visão de futuro, partindo da
pedagógico da escola e participação das premissa de que, na gestão democrática,
comunidades escolar e local, em conselhos qualquer que seja a forma de sua con-
escolares ou equivalentes. dução, ele deverá também ter uma visão
De uma maneira esquemática, Lück empreendedora que possa proporcionar
(2000) indica que o paradigma de gestão uma gestão eficaz. É fundamental que o
68 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
de recursos financeiros advêm de agências organizações de moradores da periferia,
internacionais de cooperação, empresas, de jovens, de cultura, das mulheres, e
fundações ou institutos empresariais brasi- suas diversas redes e fóruns organizados
leiros, comercialização de produtos e venda em torno da reforma urbana – através
de serviços além de doações de indivíduos. do desenvolvimento de metodologias de
Seus beneficiários ou público alvo são: or- formação política.
ganizações populares/movimentos sociais, A FASE – Rio de Janeiro ela tem uma
trabalhadores(as) rurais/sindicatos rurais e área geográfica de atuação prioritária,
mulheres. Acrescenta-se, ainda, que a ONG histórica, que é a Baixada Fluminense.
não conta com trabalho voluntário para Ela também tem atuação na capital,
a disponibilização de serviços nas áreas a partir de redes do Estado, como o
voltadas para o Meio Ambiente, questões Fórum Estadual de Reforma Urbana,
urbanas e fortalecimento de outras ONGs/ mas assim, o foco de fortalecimento
movimentos populares. de movimentos é na Baixada Flumi-
nense. Então, são prioritariamente nos
[...] principalmente a partir dos anos municípios Nova Iguaçu, Duque de
80, que vivencia o desafio da demo- Caxias, São João de Meriti, Mesquita,
cratização e descentralização das Belford Roxo. Mas quem é o público-
políticas, ela faz um forte investimen- alvo com qual a gente atua é em cima
to na formação de lideranças, pra de movimentos sociais organizados, a
que atuem nas esferas públicas de gente não trabalha em cima de popu-
participação, não só conselhos que lação difusa, entendeu? (Coordenador
são esferas mais institucionais, mas da FASE, 2008).
também participando de audiências
públicas, construção, por exemplo, b) Exigibilidade pelo Direito à Cidade. É um
de mecanismos de visibilidade como campo de atuação através do qual a ONG
audiências civis públicas, né? (Coor- almeja difundir ações de exigibilidade e
denador da FASE, 2008). pressão política almejando a implantação
Nesse início de século, a atuação da de políticas públicas que promovam o
FASE ocorre nos âmbitos local, nacional e direito à cidade. Dessa forma, o foco da
internacional, com vistas a integrar redes, atuação é buscar garantir à população
fóruns e plataformas. Essa abrangência excluída o acesso aos bens e serviços
possui um caráter político ao adotar es- urbanos e sua inserção econômica na
tratégias diferenciadas que contribuam perspectiva de um novo modelo de cidades
para o entrave da implantação de políticas justas e democráticas.
de caráter neoliberal. A FASE prioriza três c) Democratização da gestão das cidades. A
linhas de ação do programa Rio de Janeiro: ênfase nessa temática consiste no repasse
a) Identidade e Cultura nas cidades - é va- e difusão de metodologias que possibilitem
lorizada a atuação da ONG na organização aos atores locais o monitoramento e con-
do movimento popular – em especial as trole social de políticas públicas, em espe-
70 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
mencionar que a sua atuação não tem a por Lück (2000), Paro (2010) e Dourado
intenção de substituir o Estado no atendi- (2001), quando os autores recomendam
mento dos direitos sociais (Coordenador a instrumentalização do indivíduo para
da FASE, 2008). atuar e questionar as estruturas de poder
A ONG aborda uma importante vigentes mediante a clareza de que o
questão que é esvaziada no discurso das conflito e a tensão fazem parte do coti-
demais Organizações: o papel e a função diano da gestão. Vislumbramos, no Curso
das ONGs diante das novas configurações Capacitação de Agentes Sociais e Conse-
do Estado, bem como os múltiplos entendi- lheiros Municipais, o reconhecimento da
mentos que se estabelecem de acordo com educação não formal como um espaço
a matriz teórica adotada (MONTAÑO, 2005). de formação de uma nova relação com o
A existência da ONG desde os anos saber (CHARLOT, 2000) e a possibilidade
de 1960 e a experiência da sua equipe de formação de uma nova cultura política
no campo da Educação Popular são im- (GOHN, 2006). Assim, retomamos Charlot
portantes para a execução de suas ações (2000, p. 80) ao afirmar que a valorização
atuais conforme foi abordado no decorrer da participação social do sujeito ocorre
da análise de dados. A atuação da FASE quando ele passa a entender a sua relação
na área da educação com ênfase na com o mundo e a valorizar a sua atuação.
gestão tem por objetivo contribuir para o É nesse sentido que se pode dizer que “a
fortalecimento da cidadania ativa, para que relação estabelecida por um sujeito com
agentes sociais, organizados coletivamente, o saber é uma forma de relação com o
possam intervir permanente e criticamente mundo, com ele mesmo e com os outros”. A
nas esferas públicas, visando à ampliação potencialidade da educação não formal da
e garantia das obrigações estatais no educação também é destacada por, Gohn
campo dos direitos humanos em sua in- (2006, p.19) quando afirma que, nesse
tegralidade. Essa atuação vai ao encontro espaço formativo, existe a possibilidade
da Política Pública de Direitos Econômicos de “abrir janelas de conhecimento sobre
Sociais Culturais e Ambientais (DESCA). o mundo que circunda os indivíduos e
No que se refere à realização de suas relações sociais”. Tal fato acontece
parcerias, obtivemos a menção de sua con- conforme evidenciamos no curso em foco.
cretização com a UFRJ, desde 94, mediada Já o Instituto Ayrton Senna (IAS),
pelo o Observatório das Metrópoles. Este organização sem fins lucrativos, caracteri-
consiste num programa acadêmico de ex- zada como pertencente ao Terceiro Setor e
tensão, de pesquisa, a partir do qual é feita cujas atividades iniciaram-se em novembro
a aliança com professores e com os técni- de 1994, presidido por Viviane Senna, tem
cos da FASE, buscando a implementação como principal objetivo ajudar crianças
dos cursos. Dessa forma, fica evidenciada e jovens das classes menos favorecidas
uma proximidade com o paradigma da visando criar-lhes oportunidades de de-
gestão democrática conforme é descrito senvolvimento humano. O Instituto conta
72 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
de gestão democrática implícita nas ações de Informações), uma ferramenta
educativas ofertadas pelos espaços não gerencial que opera em plataforma
formais de ensino, priorizaremos o Pro- eletrônica, pela Internet, e que integra
grama Gestão Nota 10. Esse Programa é os municípios parceiros do Instituto
a uma rede – Rede Vencer – carac-
voltado para os gestores de educação, a
terizada pela busca do sucesso de
implantação nas escolas se dá por meio de
todos os alunos. O sistema permite
parcerias com as secretarias de educação acompanhar o processo educacional
municipais e/ou estaduais e alianças com e detectar os pontos fracos e os pontos
a iniciativa privada. fortes para o alinhamento de ações, o
No tocante aos objetivos do Progra- que viabiliza a resolução de possíveis
ma, descritos no site, destacamos como problemas durante o ano letivo em
prioritário a inclusão dos princípios de curso, em cada escola onde os progra-
gestão nas diferentes esferas da educação mas acontecem. Além desse acompa-
formal: aprendizagem, ensino, rotina esco- nhamento, os programas passam por
lar e política educacional e fortalecimento avaliações internas e externas, estas
realizadas pela Fundação Carlos Cha-
da competência técnica das lideranças e
gas. (INSTITUTO AYRTON SENNA, s/d).
das equipes de trabalho, a partir de uma
interação ativa e cooperativa na escola e Peroni (2004) problematiza os pro-
entre a escola e a secretaria de educação. cedimentos adotados pelo Instituto de
Ainda de acordo com as informações intervenção e monitoramento do Sistema
oficiais, o envolvimento da comunidade Público em parceria efetuada em dois
escolar restringe-se aos seguintes aspec- municípios do Estado do Rio Grande do
tos: tanto os gestores como os professores Sul desde 1997. A autora exemplifica a
recebem capacitação, e as famílias são sua afirmação com os dados relativos ao
mobilizadas a participar da formação de monitoramento dos conteúdos da edu-
seus filhos. Outro aspecto enfatizado diz cação através do SIASI e o pelo fato de o
respeito à existência de uma equipe que Sistema ser usado para traçar estratégias
acompanha o passo a passo dos Progra- de melhoria da educação pública sem a
mas para que qualquer problema possa participação social. Tal fato influencia a
ser resolvido durante o processo, sem gestão das escolas e consequentemente
comprometer o aprendizado do aluno. O interfere na autonomia.
Gestão Nota 10 trabalha com indicadores e Retomamos Lück (2000), ao afirmar
estabelece metas a serem cumpridas pelas que o paradigma de gestão escolar tem
escolas, devidamente ajustadas a cada ano como um dos seus fundamentos que a
letivo, a partir da realidade dos resultados busca de realização e sucesso corresponde
obtidos no ano anterior. a um processo, e não o cumprimento de
Para acompanhar todo o processo de uma meta. Tal enfoque não é privilegiado
forma integrada, o Instituto criou o no Programa Gestão Nota 10, em virtude
SIASI (Sistema Instituto Ayrton Senna da ênfase nos indicadores e índices a
74 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
sociedade civil organizada é vista como 90, defendem a política de parcerias com
parceira permanente na participação cida- o Estado, atuando onde há ausência do
dã” (GOHN, 2003, p. 19). Assim, acreditamos poder público, com discursos muito pró-
ser possível o avanço na consolidação do ximos do ideário neoliberal e ações que
princípio da gestão educacional democrá- não garantem a efetividade dos direitos
tica nos seus diferentes espaços formativos de cidadania constituídos por lei. Nesse
tal como analisamos na ação educativa sentido, esclarecemos que acreditamos nas
veiculada pela FASE. potencialidades e possibilidades das Orga-
nizações com perfil “militante”, tal como a
Considerações finais FASE, enquanto espaços democráticos de
participação política que articulem educa-
Na sociedade brasileira, os anos de ção e cultura como meio de compreensão
1990 são emblemáticos das mudanças oca- da realidade e de luta para transformá-la.
sionadas pela minimização da atuação do Convém explicitar que não defendemos
Estado na área social. Se, nas décadas an- a diminuição do papel do Estado em seu
teriores, a função da educação não formal dever de efetivar políticas públicas que
tinha caráter contestador e reivindicatório, garantam à população direitos básicos de
a partir de agora ela atende as demandas sobrevivência, como também educação
de uma grande parcela da população ex- pública de qualidade.
cluída por um sistema que não cumpriu as Vale ressaltar que a educação não
exigências no âmbito das políticas sociais. formal não é, de forma alguma, a nega-
Entretanto não desconsideramos as críticas ção da educação formal; pelo contrário,
existentes em relação à atuação do Terceiro entendemos que elas se complementam,
Setor na educação, pois não se pode negar originando práticas educativas que garan-
que algumas dessas instituições, em espe- tam a construção de uma sociedade mais
cial as que surgiram na referida década de justa e igualitária.
Referências
AQUINO, Otto. A presidente da instituição do Instituto Ayrton Sena explica como a instituição
combate a baixa qualidade da educação no país. Entrevista concedida por Viviane Senna.
[28/09/2009]. Disponível em: <http://educarparacrescer.abril.com.br/gestao-escolar/entrevista-
viviane-senna-501658.shtml>. Acesso em: 27 nov. 2009.
CHARLOT, Bernard. Relação com o saber. Elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médica
Sul, 2000.
DOURADO, L. A. A escolha de dirigentes escolares: políticas e gestão da educação no Brasil. In:
FERREIRA, N. C. (Org.). Gestão Democrática da Educação: atuais tendências, novos desafios. 3.
ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 77-96.
76 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
Ações colaborativas: possibilidades de construção de
conhecimentos sobre práticas de ensino1
Collaborative actions: possibilities for building up
knowledge on teaching practices
Ana Paula de Freitas*
Doutora em Educação. Docente Permanente do Programa
de Pós-Graduação em Educação do Centro Universitário
Moura Lacerda.
E-mail: ana.freitas@mouralacerda.edu.br
Resumo
Este trabalho teve como objetivo analisar as possibilidades de que professores construam conhecimentos
sobre práticas de ensino e representações de alunos com deficiência por meio de ações colaborativas.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que ocorreu mediante encontros realizados entre a pesquisadora
e uma professora de uma sala de aula de 1º ano do ensino fundamental de uma escola municipal do
interior paulista. Todos os encontros foram audiogravados e/ou registrados em diário de campo. As reuni-
ões se configuraram como um momento em que foi possível a discussão sobre o aluno com deficiência
e seus modos de participação, bem como sobre as possibilidades de práticas pedagógicas. O trabalho
colaborativo apresenta-se como um espaço para que o docente possa refletir sobre sua prática, encontrar
caminhos para transformá-la e tornar-se mais seguro em sua ação educativa.
Palavras-chave
Educação inclusiva. Práticas de Ensino. Ação Colaborativa.
Abstract
This work aimed to analyse the possibilities for teachers building up knowledge on teaching practices
and representations of students with deficiencies through collaborative actions. It consists in a qualita-
tive research which was done based on meetings between the researcher and a teacher of a 1st grade
(primary school) classroom from a municipal school in the countryside of the state of São Paulo. All the
meetings were recorded and/or registered in a field diary. The meetings consisted in moments in which
it was possible to discuss about the student with deficiencies and his modes of participation, as well as
about the possibilities of pedagogical practices. The collaborative work provides space for the teacher to
reflect on his/her practice, find ways to change it, and get more confident about his/her educational action.
Key words
Inclusive education. Teaching Practices. Collaborative Action.
1
Apoio Financeiro Fapesp.
Referências
Resumo
Discutem-se o papel do formador na formação continuada e os modelos e estratégias formativos para o
desenvolvimento docente. Parte-se da análise do papel do formador, situando a complexidade de conceituar
esse termo, assim como as fragilidades ainda presentes em sua formação. Defende-se a ideia de que a
coerência entre a formação desejada para os professores e a formação de seus formadores é um aspecto
fundamental para promover o desenvolvimento docente. Em seguida, denotam-se diversos modelos e
estratégias de formação continuada, com suporte na literatura científica e de estudos realizados pelos
autores. Ao final, esboçam-se propostas para a melhoria da formação continuada desde a perspectiva do
desenvolvimento docente, a serem implementadas pelos órgãos gestores e/ou pelas escolas.
Palavras-chave
Formação de formadores. Modelos e estratégias formativos. Desenvolvimento docente.
Abstract
The role of teacher educator in continuing teacher education and models and strategies for teacher
development are discussed. It starts with the analysis of the role of the teacher educator, placing the
complexity of conceptualizing this term, as well as still present weaknesses in his formation. The idea that
consistency between the training required for teachers and training of their teacher educators is a key
aspect to promote teacher development is supported. Then, different models and strategies for continuing
teacher education are presented based on scientific literature and studies of the authors. Finally, proposals
for the improvement of continuing teacher education from the perspective of teacher development are
outlined to be implemented by government agencies and/or by schools.
Key words
Training of teacher educators. Formative models and strategies. Teacher development.
92 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
1 Papel dos Formadores como um processo no qual os professores
devem ser profissionais investigadores e
Dentre os diferentes elementos pre- reflexivos da própria prática, é preciso que
sentes na discussão sobre as modalidades os formadores também o sejam. A esse
e estratégias de formação continuada para respeito, Perrenoud (2002, p. 72) informa
o desenvolvimento docente, destaca-se a que “só um formador reflexivo pode formar
reflexão sobre o papel dos formadores de professores reflexivos, não só porque ele
professores ou formadores de formadores, representa como um todo o que preconiza,
revestindo-lhes de importante atribuição mas porque ele utiliza a reflexão de uma
e responsabilidade. Concordamos com forma espontânea em torno de uma per-
Escudero (1998), quando há muito nos gunta, de um debate, de uma tarefa ou de
advertia da necessidade urgente de dar um fragmento do saber”.
atenção aos formadores de professores, A tarefa do formador não é fácil. Ela
pois os planos e métodos da formação não passa pela capacidade de conhecimento,
se operam por si mesmos. Para Vaillant e análise e domínio de questões referentes
García (2001, p. 20), ao trabalho docente em sala de aula e na
[...] os programas de formação para escola. Essa tarefa necessita ser revista ao
docentes não dão os resultados es- mesmo tempo em que as discussões sobre
perados devido, entre outras causas, a formação estejam avançando. Significa
a que os formadores responsáveis que também os formadores devem estar
pelos programas carecem de forma- inseridos em um processo de desenvolvi-
ção adequada.
mento docente. Garrido (2000, p. 9) destaca
No terreno da formação continuada, que a atividade formadora é bastante
pouca atenção é conferida à formação dos complexa e difícil, haja vista seu caráter
formadores. Laranjeira et al. (1999) asse- articulador e transformador, e porque, nas
veram que a discussão sobre a formação, suas palavras, “não há fórmulas prontas a
papel e especificidade do trabalho do for- serem reproduzidas. É preciso criar solu-
mador ainda avançou pouco no panorama ções adequadas a cada realidade”.
brasileiro. Mais recentemente, Statonato Como formador de professores, par-
(2010) identificou como a formação de for- tindo da definição de Huberman (1994),
madores, mais especificamente de professo- entenderemos todo aquele profissional
res coordenadores de oficinas pedagógicas, que está dedicado à formação de profes-
mostra limites para lidar com a realidade da sores, desenvolvendo seu papel no cenário
prática profissional dos professores. de escolas, secretarias de educação, cen-
A coerência entre a formação que tros ou institutos de formação docente,
defendemos para os professores e a for- universidades, escolas normais e institutos
mação de seus formadores é um aspecto superiores de educação. Portanto o for-
fundamental para promover o desenvolvi- mador também é um profissional docente,
mento docente. Ao conceituar a formação um professor.
94 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
adapta a determinados tipos de estratégias tas, estudos de casos, simulações, análises
formativas – conferências, palestras, cursos de materiais didáticos, gravações etc.
especializados sobre temas específicos etc Essas atividades são propostas com
– porém não pode ser predominante no suporte em um enfoque investigador, pro-
cenário formativo dos docentes. Aprender porcionando critérios próprios ao professor
exige entrega, participação, diálogo e con- para que enfrente os dilemas da prática
textualização. docente cotidiana. A reflexão teórica é in-
Em uma perspectiva crítica e reflexi- troduzida como marco para analisar o que
va, temos o segundo modelo de formador ocorre no processo ensino-aprendizagem,
como um colaborador do processo formati- estando orientada a desenvolver funda-
vo dos professores, contrapondo-se ao pa- mentação científica que proporcione maior
pel de controlador e dirigente. Nessa visão, coerência à atuação docente. O enfoque
o professor é o protagonista da sua forma- didático com os professores é o mesmo
ção e também atua como formador de si que se pretende que seja trabalhado com
próprio e de seus companheiros. A figura os alunos.
do formador evolui de uma compreensão A ideia central caracterizadora do
da mudança centrada no desenvolvimento perfil desse tipo de formador é a de um
individual, para um maior compromisso profissional voltado a formar professores
com a escola como organização que com capacidade para questionar per-
aprende (VAILLANT; GARCÍA, 2001). manentemente a própria prática, com
Algumas características presentes interesse em problematizar e comprovar a
nas atividades desse formador são defini- teoria na prática, mediante a investigação
das como: a busca de superar a dicotomia na sala de aula.
entre formação inicial e continuada com A Fig. 1 nos ajudará a resumir
opções criativas; o ponto de partida para melhor a ideia central expressa nos dois
os trabalhos é a prática docente, utilizando modelos de formadores.
distintas estratégias de reflexão, como visi-
96 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
programas/ações de formação continuada propostas por García (1994) e Santaella
de professores. (1998). Entendemos que as classificações
Embora diferentes visões sobre o propostas pelos referidos autores nos
desenvolvimento docente possibilitem serão especialmente úteis para pensar o
estratégias de formação continuada di- desenvolvimento docente como algo mais
versificadas, deve restar claro o fato de concreto na prática educacional.
que, muitas vezes, a mesma estratégia
pode estar inscrita em diversos modelos 2.1 Modelo Transmissivo
em função das intenções e dos interesses É um modelo centrado basicamente
das pessoas que os implementam e que na transmissão de saberes, especialmente
dela participam. Os rótulos sob os quais se de cunho teórico. Há grande ênfase na
denomina uma estratégia formativa não figura do formador como um especialista
nos informam necessariamente acerca da que irá transmitir a grupos de professores,
concepção sobre a qual será trabalhada. em geral heterogêneos e numerosos, co-
Não se pode avaliar nem julgar precipi- nhecimentos e informações de naturezas
tadamente um programa de formação
diversas. As estratégias formativas inscri-
continuada, sem antes situá-lo em um
tas nesse modelo situam os professores
contexto educacional específico, marcado
em um papel mais passivo, bem como
por questões de ordem social, política,
reforçam uma dicotomia entre a teoria e
econômica, pessoal etc.
a prática.
Na análise de uma estratégia for-
mativa, é fundamental atentar para o 2.1.1 Cursos como estratégias de
papel exercido pelos professores, pois é formação
necessário desenvolver práticas formativas
inscritas em modelos que os considerem Esta é uma das estratégias mais
protagonistas. Para isso, é preciso romper fortes e adotadas na formação continuada
com esquemas de formação tradicio- em distintos países. Quando falamos de
nais, a fim de possibilitar aos docentes cursos, podemos nos referir a uma ampla
a vivência de processos formativos com variedade de atividades, cuja duração, pe-
múltiplas e dinâmicas estratégias, que ríodo, local e programação podem variar
lhes permitam constituir e refletir sobre seu sensivelmente. Os cursos, no entanto, con-
espaço profissional, sua prática e contexto. têm algumas características básicas que os
Propicia-se, dessa forma, a criação de uma definem: presença de um especialista; pla-
cultura de questionamento e colaboração no de conteúdo determinado previamente;
(LIEBERMAN; WOOD, 2003). dirigido a grupos de professores, algumas
Para abordar os modelos de forma- vezes em grande número; por ocorrer fora
ção, tomamos como referência a classifi- da escola; e baseado, geralmente, na aqui-
cação proposta por R. Y. Ramos (1999). A sição de condutas, competências, habilida-
esses modelos, iremos inserir as estratégias des e destreza específicas (GARCÍA, 1994).
98 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
experiências, analisar temas específicos, intervenção educativa, conhecer e utilizar
obter informações etc. (CHAO, 1992). São novos recursos e estratégias de ensino e
estratégias interessantes quanto à atua- aprendizagem e de avaliação, bem como
lização de conhecimentos, ampliação de adquirir informações do mundo científico
informações e conhecimentos de contextos e cultural que possam ser relevantes à
distintos. prática pedagógica.
Outra estratégia consoante o modelo Algumas características importantes
autônomo é a licença ou financiamento dessa estratégia são: estar formada por
para estudos e investigações, destinada à um grupo pequeno de professores que
formação individual docente, que se pode varia nos distintos contextos, mas não é
concretizar em especializações, mestra- superior a 13 participantes; abordar temas
dos, doutorados ou em outros níveis de relacionados com a prática profissional dos
educação superior. A grande vantagem professores membros do grupo; possibilitar
é a possibilidade de aprofundamento e que todos os componentes participem
atenção a temas mais relacionados às ativamente; dispor um tempo específico
necessidades pessoais do professorado, o semanal ou quinzenal para as reuniões;
que dificilmente se pode obter em outras ter uma duração total entre 20 e 60 horas
estratégias de natureza assistemática. como máximo; estar dotada de recursos
Relativamente à autoformação no financeiros; e privilegiar a elaboração de
plano coletivo, é válido incluir os seminá- uma monografia final. Não identificamos
rios permanentes (surgidos na Espanha ainda essa estratégia no cenário brasileiro.
nos anos 1970), que são atividades com
caráter de estudo, análise e reflexão sobre 2.3 Modelo Implicativo
um tema determinado pelos próprios do-
centes. Esses seminários aparecem como O princípio central do modelo impli-
fórmula eficaz para cativo ressalta que o professor deve anali-
[...] aperfeiçoar a formação do profes- sar, questionar e avaliar permanentemente
sorado, potencializar a reflexão em grupo, sua prática, com o objetivo de melhorá-la
elaborar conjuntamente materiais de aula e desenvolver-se na profissão por meio
e investigar e experimentar novos modelos da reflexão pessoal e da interação com os
didáticos em um contexto participativo, demais. Sob esse ponto de vista, o professor
dentro da comunidade escolar. (XUNTA DE tem um compromisso ético e político com
GALÍCIA, 1999, p. 59). a melhoria da educação. A reflexão sobre
Santaella (1998) refere-se aos se- a própria experiência profissional passa a
minários permanentes como essencial- ser condição imprescindível. Como infor-
mente voltados para que os professores ma McCotter (2001), a reflexão em grupo
possam não apenas conhecer, mas possibilitada por esse modelo formativo
também participar da elaboração de cur- cria uma atmosfera dialogal, crítica, de
rículos, adquirir competências referentes à participação e colaboração. Os professores,
100 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
2.3.2 Análise da linguagem e do com as concepções que os professores
pensamento tinham no início da análise.
102 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
harmonizam melhor ao modelo implica- de ação se mostram muito maiores do que
tivo. Tais expressões têm como cerne a quando os sujeitos trabalham de forma
participação ativa dos professores de forma individual. O grupo permite e proporciona
indagadora e reflexiva, pois constituem im- uma série de aprendizagens calcadas na
portante veículo para ajudar os professores colaboração, diálogo, confiança, respon-
a se darem conta de valores, atitudes e su- sabilidade compartilhada e ampliação
posições sobre a aprendizagem (I’ANSON; de conhecimentos. Desse modo, promove
RODRIGUES; WILSON, 2003). “condições de muito maior vitalidade ao
processo de formação” (PONTE, 1994, p.
2.4 Modelo de Trabalho em Equipe 14). Por meio do trabalho em equipe, os
Este é um modelo cuja característica professores dão suporte uns aos outros,
central reside na resolução de uma con- fortalecendo-se como grupo profissional.
junção de problemas comuns por parte de Esse modelo de formação conti-
um grupo de professores na escola. Supõe nuada estimula os professores para que
a participação dos docentes no desenho e revejam e elaborem novos conhecimentos.
planejamento da própria formação. É um Instiga também a transformação do ensino,
modelo que se adapta prioritariamente à refazimento do currículo e desenvolvi-
formação centrada na escola, sendo suas mento – tudo por parte deles – de formas
estratégias também compatíveis, principal- alternativas para pensar e aprender sobre
mente com o modelo implicativo. Nesse seus alunos, experimentando e acessando
sentido, Ramos (1999, p. 217) nos esclarece o resultado de suas ações.
que a perspectiva colegiada está “centrada 2.4.1 Processos de inovação curricular e
nas necessidades da escola, mais que nos formação em escolas
indivíduos”.
Acreditamos ser importante ressaltá- O princípio no qual se assenta essa
lo como um modelo de formação, e não estratégia formativa ressalta a colaboração
apenas como estratégia presente em ou- entre professores, pais, alunos e toda a
tros modelos, porque põe relevo à temática equipe da escola, como forma de refletir e
da cultura colaborativa no trabalho docen- analisar os temas importantes para o con-
te. Para Avalos (1998), embora em diversos texto educacional no qual estejam inseri-
países, inclusive da América Latina (Chile, dos. A ideia central é de que os projetos de
Argentina e Paraguai desde os anos 1980), inovação educacional sejam pensados em
a discussão sobre o trabalho colaborativo grupos de trabalho, nos quais se encontre
entre os professores não seja recente, esse envolvida toda a comunidade educacional.
é um tema profundamente atual e neces- Esses projetos supõem a formação
sário nos processos formativos. nas próprias instituições escolares, incluin-
Um dos aspectos centrais desse do atividades diversificadas, nas quais os
modelo é a concepção do grupo como professores desenvolvem ou adaptam um
um espaço cuja criatividade e potencial currículo, desenham um programa ou se
104 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
Considerações Finais • promover a discussão entre órgãos
gestores e escolas, com vistas a buscar
É necessário enfatizar a noção opções para o problema das condições e
de que todos os modelos e estratégias do tempo disponível para uma formação
aqui expressos não se excluem entre continuada de qualidade, que possa
si, porquanto podem se complementar, efetivamente incidir sobre a prática
dependendo do contexto, objetivos e pedagógica do professor;
metas a serem alcançadas na formação • ampliar as estratégias e modalidades
continuada, mas também dependendo da formativas, oferecendo aos professores
concepção de currículo, ensino, escola e, possibilidades de escolha, de acordo
evidentemente, da clareza sobre o papel com suas motivações e necessidades,
que o professor deve desempenhar. Do inclusive considerando que estão em
mesmo modo, é preciso definir também o diferentes etapas da carreira;
papel e o lugar dos formadores. • desenvolver programa formativo dirigido
É nosso entendimento a ideia de aos formadores, discutindo concepção
que a discussão e a implementação de e significado da formação continuada
estratégias formativas, por conseguinte, e o conhecimento de novas estratégias
sejam elas de qualquer natureza e per- e modalidades formativas, trazidas pela
tencentes a qualquer modelo, não podem literatura da área ou por experiência de
ser dissociadas da compreensão sobre as outros contextos;
necessidades e demandas de formação e • mapear o atendimento das escolas
do papel de professores e formadores, en- pelos coordenadores pedagógicos,
contrando, com suporte nelas, o espaço e identificando zonas mais problemáticas,
a voz desses protagonistas como partícipes áreas mais bem atendidas, necessidades
ativos em suas trajetórias de formação. singulares etc.;
Ademais, qualquer que seja a estratégia • potencializar estratégias formativas,
formativa, esta só acontecerá se as con- como a reflexão na/sobre a prática e
dições adequadas e o tempo disponível a pesquisa-ação. Com isso, além de
para a sua formação forem garantidos a envolver de modo mais contundente
professores e formadores. e dinâmico os professores em sua
Por fim, sugerimos algumas propos- formação, são oferecidas opções para
tas para a melhoria da formação continua- sua principal demanda: a formação
da, desde a perspectiva do desenvolvimen- articulada à prática;
to docente, a serem implementadas pelos • fomentar a ideia dos professores como
órgãos gestores e/ou pelas escolas: formadores de seus companheiros, não
• fazer levantamento e análise sistemática apenas pela troca de experiência, mas
das necessidades formativas dos pro- também por meio de estratégias como a
fessores, promovendo junto deles uma observação, o uso de diários, seminários
reflexão sobre o tema; temáticos etc.;
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108 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
As políticas sociais e a “nova estratégia” de
educação integral no Brasil
Social policies and “new strategy” for comprehensive
education in Brazil
Katharine Ninive Pinto Silva*
Jamerson Antonio de Almeida da Silva**
* Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal
de Pernambuco. E-mail: katharineninive@yahoo.com.br
** Doutor em Educação. Professor da Universidade Federal
de Pernambuco. E-mail: jamersonufpe@gmail.com
Resumo
O trabalho analisa o Programa Mais Educação, como “nova estratégia” do governo federal para promoção
da educação integral, focalizando as funções sociais atribuídas aos programas esportivos, artísticos e
recreativos realizados no contraturno escolar, como forma de “ocupação” do “tempo livre” de crianças e
jovens do ensino fundamental. Também analisa os espaços e os equipamentos disponibilizados para tais
ações, considerando-os indicadores de efetividade da proposta de criação de territórios educativos. Trata
de alguns dos resultados de pesquisa financiada pelo CNPq. Tais resultados revelam que, sob o discurso
de promover a educação integral, a escola pública brasileira vem ampliando suas responsabilidades,
diminuindo a escolarização e aumentando o disciplinamento da pobreza.
Palavras-chave
Educação Integral. Políticas Sociais. Avaliação de Políticas Públicas.
Abstract
The paper analyzes the More Education Program, as “new strategy” of the federal government to promote
comprehensive education, focusing on social functions allocated to sports programs, arts and entertainment
held in the shift from school as a form of “occupation” of “free time” children and youth in elementary
school. It also examines the spaces and equipment available for such actions, considering the indicators
of effectiveness of the proposed educational establishment of territories. It addresses some of the results
of research fundeb by CNPq. These results show that, in the speech to promote the integral education, the
Brasilian public school has been expanding its responsibilities, decreasing enroolment and increasing
the discipline of poverty.
Key words
Comprehensive Education. Social Policy. Evaluation of Public Policies.
110 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
de muito desigual como a nossa em relatora, com a aprovação da PEC 134,
que as crianças de classe média e al- seria garantida a educação integral, com
tas talvez nem precisariam da escola jornada escolar de pelo menos sete horas
para fazer esse percurso, as crianças diárias, na escola ou em atividades esco-
filhas dos pais populares, cujos pais
lares fora da escola, na educação infantil,
não tiveram acesso à educação nem
ensino fundamental e médio regulares,
aos direitos básicos, como direito à
educação básica, precisam desse es- sendo prevista a possibilidade de opção
paço de socialização para ter acesso por essa jornada ampliada, pelas famílias
a um capital cultural que pode fazer ou estudantes, a critério dos sistemas de
muita diferença na sua vida. Mas isso ensino.
não pode significar o aprisionamento Em maio de 2011, o Senado apro-
dessas crianças naquelas grades de vou lei que aumenta a jornada escolar
saberes e conhecimentos tradicional- de 800 para 960 horas anuais no Ensino
mente trabalhados na escola, busca- Fundamental e no Ensino Médio. Outro
mos exatamente a possibilidade de projeto amplia a frequência exigida para
expandir o universo de conhecimento
aprovação de 75% para 80%. Os dois
e depois possibilidades a partir da
projetos também se encontram em trami-
leitura de mundo, de saberes e da
cultura que essa criança traz e o que tação e passarão ainda pela Câmara dos
essa criança desenvolve dentro do Deputados e pela Presidência.
contexto em que ela vive. (Gestora Durante as Audiências Públicas
1, em entrevista no dia 24/11/2010). em torno da PEC 134, o Programa Mais
Educação foi colocado como a saída para
A ampliação da jornada escolar e
resolver todas ou boa parte das dificulda-
das funções que a escola passa a assumir
des em torno da implementação dessa
estão na ordem do dia. Um exemplo disso
proposta. Como apresentado na fala de
é o fato de se encontrar em tramitação
André Lázaro, então Secretário de Educa-
a Proposta de Emenda Constitucional
ção Continuada, Alfabetização e Diversi-
de número 134, proposta pelo Deputado
dade (SECAD), representando o Ministério
Federal Alceni Guerra e outros em 2007.
da Educação, durante a primeira audiência
Esta proposta, em 2007, foi encaminhada
pública, realizada em 11 de maio de 2010:
à Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania (CCJC) e, após conclusão de O Programa Mais Educação, do
seus trabalhos, para analisá-la foi criada Ministério da Educação, é um proce-
uma Comissão Especial, cujos trabalhos dimento, dentre os muitos, da educa-
ção integral. Entre suas vantagens,
foram concluídos estando a proposta agora
destacou-se que o Mais Educação
em tramitação na Câmara dos Deputados. não exige que a escola tenha espa-
De acordo com o resultado final do ço para acolher todas as crianças
trabalho da Comissão Especial, acrescido durante todo o tempo, pois infeliz-
de uma proposta de substitutivo de sua mente muitas escolas brasileiras não
112 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
medo de falar, então o que está em Educacional de Educação Integral, indu-
curso é uma mudança do jeito como zida pelo Governo Federal, tendo sido
a escola funciona, evidente que nessa instituído através da Portaria Normativa
mudança nós temos tentado induzir a Interministerial n. 17/2007 e da Portaria n.
transição de um modelo de pedagogia
19/2007, com objetivo de “[...] fomentar a
disciplinar, que pensando nas discipli-
educação integral de crianças adolescen-
nas escolares e não na disciplina de
comportamento para uma perspectiva tes e jovens, por meio do apoio a atividades
de pedagogia de projetos, para uma socioeducativas no contraturno escolar”.
pedagogia de centros de interesse, Tem como Base Legal também os seguintes
de temas geradores que implicam a documentos: Constituição Federal de 1988;
relação das várias áreas de conheci- Lei 10172/2001, que aprova o Plano Nacio-
mento e desses modos de expressão nal de Educação (que nos seus objetivos
todos que o Mais Educação facilita e metas prevê a ampliação progressiva
para que se chegue na sala de aula. do atendimento em tempo integral para
[...] Então não se trata de acoplar, agora as crianças de 0 a 6 anos); Lei 9394/96
fazer um horário que tenha português,
(Lei de Diretrizes e Bases da Educação
depois danças, depois matemática,
depois geografia, não. Como é que a Nacional); PNAE – trata da alimentação
geografia, a dança, o teatro, o jornal escolar; Resolução 43 – trata do Programa
escolar, a rádio escolar passam a ser Dinheiro Direto na Escola; Resolução 52
encarados como procedimentos, como de 2004, sobre a Escola Aberta e Decreto
instrumentos que podem dinamizar o n. 7083, de 27 de janeiro de 2010 – que
processo de acesso e produção dos dispõe sobre o Programa Mais Educação.
conhecimentos. (Gestor 1, em entre- O Decreto 7083/2010, dispõe so-
vista realizada em 24/11/2010). bre o Mais Educação, definindo que a
O Programa Mais Educação se apre- finalidade deste é a de contribuir para a
senta em um contexto em que a educação melhoria da aprendizagem por meio da
brasileira vem sendo desafiada a ampliar ampliação do tempo de permanência das
seus compromissos para além dos que crianças, adolescentes e jovens matricu-
historicamente já vem cumprindo, com lados em escola pública, mediante oferta
a busca de caminhos para a institucio- de educação básica em tempo integral.
nalização da ampliação das funções da Considera a duração igual ou superior a
escola e de seus profissionais, que passam sete horas diárias na Educação Básica,
a incorporar um conjunto de responsabi- garantindo a alternativa de as atividades
lidades não tipicamente escolares, como escolares poderem ser desenvolvidas em
o desenvolvimento de hábitos primários outros espaços educacionais. O documento
relacionados à higiene, saúde, alimentação descreve como atividades que fazem parte
e à sociabilização básica. da jornada ampliada: acompanhamento
Apresenta-se como protagonista no pedagógico, experimentação e investiga-
processo de construção de uma Política ção científica, cultura e artes, esporte e
114 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
Finalmente, o Fundo Nacional de sociais que já atuam na garantia de di-
Desenvolvimento da Educação (FNDE) retos de crianças e adolescentes, como
prestará a assistência financeira para corresponsáveis por sua formação escolar
implantação dos programas de ampliação e integral.
do tempo escolar das escolas públicas de Em dados coletados junto ao Minis-
educação básica, mediante adesão, por tério da Educação/Secad (BRASIL, 2008),
meio do Programa Dinheiro Direto na podemos identificar 62 atividades, desen-
Escola (PDDE) e do Programa Nacional de volvidas em 10 macrocampos, que fazem
Alimentação Escolar (PNAE). parte da estratégia do Programa Mais Edu-
O programa entende a Educação cação em ampliar a jornada escolar nas
Integral como meio para assegurar o de- escolas brasileiras. Os macrocampos e as
senvolvimento das crianças e dos adoles- atividades relacionadas são os seguintes:
centes em todos os âmbitos da condição 1. Acompanhamento Pedagógico, cujas
humana. Considera essa perspectiva de atividades desenvolvidas são: Ciên-
educação como estratégica para garantir a cias; Filosofia e Sociologia; História e
proteção dos estudantes da escola pública Geografia; Leitura e Produção de Texto;
como sujeitos de direitos que vivem uma Letramento, Línguas Estrangeiras e
contemporaneidade marcada por Matemática.
[...] intensas transformações, no acesso 2. Cultura e Artes, cujas atividades desen-
e na produção de conhecimentos, nas volvidas são: Banda Fanfarra; Canto
relações sociais entre diferentes gera- Coral; Capoeira; Cineclube; Danças;
ções e culturas, nas formas de comuni- Desenho; Escultura; Grafite; Hip Hop;
cação, na maior exposição aos efeitos Leitura; Iniciação Musical por meio de
das mudanças em nível local, regional flauta doce; Mosaico; Práticas Circen-
e internacional. (BRASIL, 2008, p. 10). ses; Percussão; Pintura e Teatro.
Essa ação governamental se co- 3. Direitos Humanos em Educação, cuja
loca como uma opção estratégica aos atividade desenvolvida é Direitos Hu-
resultados das avaliações nacionais, as manos e Ambiente Escolar.
quais têm apontado para insuficiência de 4. Educação Científica, cuja atividade
aprendizagens das crianças e adolescentes consiste nos Laboratórios e Projetos
da escola pública. Em resposta, o governo Científicos.
entende que a ampliação de tempos, espa- 5. Educação Econômica e Cidadania,
ços e oportunidades educativas qualificam cujas atividades desenvolvidas são:
o processo educacional e melhoram o Controle Social e Cidadania e Educa-
aprendizado dos alunos. No entanto, para ção e Empreendedorismo.
a objetivação dessa concepção ampliada 6. Educomunicação, cujas atividades são:
de educação, o entendimento do programa Histórias em Quadrinhos; Fotografia;
não é recriar a escola como instituição Jornal Escolar; Mídias Alternativas e
total, mas de implicar os diversos atores Rádio Escolar.
116 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
Por políticas do tempo livre temos configurações em relação ao tempo, ao
entendido o conjunto de programas cul- espaço, à concepção curricular, ao quadro
turais de caráter planejado e sistemático docente, à organização e funcionamento
desenvolvidos no “tempo liberado” ou do das escolas. Também levantamos, ainda
“não-trabalho” (WAICHMAN, 1997). Esses que superficialmente, alguns constrangi-
programas abarcam um leque de ativi- mentos que chegaram a interromper e
dades que podem ser enquadradas em inviabilizá-los, constrangimentos esses de
quatro grupos de interesses. Um primeiro, ordem política, ideológica, administrativa
que abrange todas as atividades que têm e econômica. Atualmente novos modelos
um componente físico, em que predomina de educação integral estão sendo expe-
a atividade corporal. Isto inclui passeios, rimentados pelo Brasil afora, como é o
excursões e todo tipo de esportes. Outro caso do Bairro Escola, na cidade de Nova
grupo é formado pelas atividades manu- Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro. É
ais que implicam uma produção concreta possível, portanto, fazermos uma tentativa
tais como a bricolagem, o artesanato, a de sistematização de diversos modelos de
jardinagem etc. O grupo seguinte abarca implementação da educação integral e de
os interesses artístico-culturais, de elite ou escolas de tempo integral.
de massa, de caráter participativo e criativo Nesse sentido, um modelo clássico
ou passivos, entre os quais estão televisão, apresenta a ampliação da jornada escolar,
rádio, cinema, leitura, teatro, música etc. O a partir de um programa curricular a ser
último grupo são as atividades em que pre- desenvolvido nos espaços próprios das
dominam as relações interpessoais como é escolas, implicando sua adequação e o
o caso dos encontros em cafés, praças ou aumento do número de docentes, sua jor-
clubes, festa de amigos e a vida familiar nada de trabalho e do corpo administrativo
(DUMAZEDIER, 1999; MARCELLINO, 1995; da escola. Um segundo modelo consiste
PUIG; TRILHA, 2004). Atualmente, esses na complementação das oportunidades
programas se materializam por meio de de aprendizagem a partir da oferta de
políticas públicas de esporte e lazer, de atividades educativas, a serem realizadas
cultura, de turismo, de comunicação etc., com a otimização do espaço escolar e
cada uma baseada em normatizações de outros espaços públicos, construindo
setoriais próprias, e estão sendo chamados um turno complementar. Uma terceira
a interagir com a política educacional, prin- proposta envolve a articulação das es-
cipalmente em função de uma crescente colas de ensino fundamental com ações
valorização do potencial educativo dessas socioeducativas complementares, desen-
atividades, o que nos permite classificá-las volvidas por ONG’s e outras instituições
como políticas pedagógicas do tempo livre. educativas. Essas diversas propostas, nas
Podemos falar em modelos de im- duas últimas décadas, geraram um debate
plementação de programas de educação intenso, de onde surgiram várias críticas
integral, nos quais se observam diversas por parte de educadores e pesquisadores,
118 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
A visão de que o IDEB chama aten- não existe, cada território, cada bairro
ção para a necessidade de se garantir a tem uma escola que possui luz pró-
permanência na escola, colocando essa pria; e o programa Mais educação
permanência como um dos indicadores de vai trabalhar e dialogar com essas
idiossincrasias locais, quer dizer, vai
qualidade, é algo importante. No entanto
ter uma escola que dialoga mais
os procedimentos convencionais de avalia-
com a vida dos estudantes, que
ção ocultam a hierarquia escolar apresen- respeita mais a comunidade, que
tada no parágrafo anterior. E o IDEB é um toma decisões mais democráticas [...].
procedimento convencional de avaliação. (Gestor 1 em entrevista realizada em
Dessa forma, as estratégias para alcançar 24/11/2010).
melhores conceitos em relação ao IDEB,
A troca entre políticas setoriais dife-
como a aprovação automática, a progres-
rentes permite fluxos em diversas direções,
são parcial etc. são exemplos de ocultação
possibilitando criar referências para rein-
da exclusão branda ou eliminação adiada
venção da escola, a partir de experiências
que estão sendo realizadas.
mais abertas e democráticas, uma maior
[...] os critérios iniciais ditos eram de legitimação das políticas do tempo livre
que as escolas que integrariam, eram e, consequentemente, a criação de novas
as escolas com o IDEB baixo, né, que referências de qualidade para a educação
tivesse um quantitativo de estudantes
brasileira. Por outro lado, possibilitam tam-
que, agora no momento eu não tenho
o percentual, mas é o quantitativo que
bém a existência de constrangimentos de
garante a implementação na escola. várias ordens, até uma total inviabilização
(Gestor 2 em entrevista realizada em dos objetivos estabelecidos.
25/11/2010). Do ponto de vista da concepção, a
ideia de educação integral aparece em
As funções sociais atribuídas aos
várias correntes do pensamento educacio-
programas esportivos, artísticos e recreati-
nal, a partir dos quais seus formuladores
vos no Mais Educação
estruturam métodos, formas de organiza-
O Mais Educação é uma estratégia ção escolar, projetos arquitetônicos das
para induzir a ampliação da jornada escolas, programas e atividades, modelos
na perspectiva da educação integral. de operacionalização. Esse conceito remete
Então nós propusemos dez macro-
à formação humana na sua condição mul-
campos e propusemos toda uma
tidimensional e não apenas na sua dimen-
dinâmica de autonomia da escola
para a compra de materiais, para são cognitiva. Considera o sujeito como um
organização desses monitores, para sujeito corpóreo, que tem afetos, desejos,
a articulação a partir dessa figura do demandas simbólicas e está inserido num
ser comunitário, nós desencadeamos contexto de relações histórico-sociais.
muitos processos muito diferentes Segundo Cambi (1999), as experiên-
entre si [...] a escola pública brasileira cias mais significativas em torno de uma
120 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
pedagogia marxista são os seguintes: pensamento. Nessa perspectiva, as dimen-
1. uma conjugação dialética entre sões da ludicidade, da expressividade, da
educação e sociedade, segundo a afetividade ganham relevância nos proces-
qual todo tipo de ideal formativo e sos educativos. Diversas experiências têm
de prática educativa implica valores uma forte relação com o tempo livre das
e interesses ideológicos, ligados à crianças e adolescentes, como é o caso
estrutura econômico-política da socie- do movimento dos pássaros migratórios
dade que os exprime e aos objetivos Wandervolgel. Em conseqüência, a orga-
práticos das classes que a governam; nização escolar, sua estrutura, o tempo e
2. um vínculo, muito estreito, entre os espaços pedagógicos e o métodos são
educação e política, tanto em nível
(re) configurados para dar conta dos fins
de interpretação das várias doutrinas
pedagógicas, quanto em relação às
ampliados que as políticas educacionais
estratégias educativas voltadas para o passam a assumir.
futuro, que recorrem (devem recorrer) No Brasil, as experiências de educa-
explícita e organicamente à ação ção integral têm como marco o “movimento
política, à práxis revolucionária; 3. a renovador”, articulado em 1924, em torno
centralidade do trabalho na formação da Associação Brasileira de Educação
do homem e o papel prioritário que (ABE). Antes mesmo da criação da ABE,
ele vem assumir no interior de uma vários autores já tinham se empenhado
escola caracterizada por finalidades na luta pela implantação das novas ideias
socialistas; 4. o valor de uma forma- do ensino, sob a influência do pensamento
ção integralmente humana de todo
vigente nos Estados Unidos e na Europa,
homem, que recorre explicitamente
à teorização marxista do homem reunidos sob o nome de “Movimento de
“multilateral”, libertado de condições, Escolas Novas”. Nesse período, vários livros
inclusive culturais, de submissão sobre a “Escola Nova” foram publicados,
e alienação; 5. a oposição, quase então analisando a educação sobre novos
sempre decisivamente frontal, a toda aspectos: o psicológico e o sociológico. Mo-
forma de espontaneísmo e de natu- vidas pelas ideias novas, a partir de 1922
ralismo ingênuo, dando ênfase, pelo apareceram várias reformas estaduais do
contrário, à disciplina e ao esforço, ao ensino, que foram prenúncios da refor-
papel de conformação que é próprio ma nacional ocorrida a contar de 1930.
de toda educação eficaz. (CAMBI, Essas publicações e o amadurecimento
1999, p. 556, grifos nossos).
do debate instalado culminaram com a
Como se pode observar, a ideia de publicação do “Manifesto dos Pioneiros da
uma formação que integre as múltiplas Educação Nacional”, redigido por Fernando
dimensões do ser humano é central no de Azevedo e assinado por 26 educadores
conjunto de propostas que integram o brasileiros, líderes do movimento de “reno-
movimento da escola nova e do ativismo vação da educação nacional”. Em síntese,
nas suas diversas nuanças e correntes do o movimento definiu-se como uma reação
122 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
mais recentes, visando levantar possíveis experiência escolar. Considerando
modelos de implementação. Porém, a título a escola como dizia o Anísio, essa
de primeiras aproximações, passaremos máquina de democracia, como essa
a expor um breve panorama das experi- máquina que quebra com esse de-
terminismo que historicamente tem
ências, a meu ver, mais significativas de
marcado nossa sociedade, aqueles
educação integral.
que têm todas as oportunidades e
A proposta de Educação Integral do aqueles que não têm nenhuma; se
Programa Mais Educação se diferencia a escola só oferece isso às classes
das experiências antes vivenciadas na populares é muito difícil que no país
história da Educação Brasileira. Nessa nova se faça uma democracia plena. Esses
proposta, a articulação com programas componentes novos, todos eles, são
na área cultural e esportiva assumem a condição necessárias para que essas
dianteira, no sentido de possibilitar um crianças mergulhem nessa civilização
sentimento de superação dos entraves que pode fazer diferença na sua vida.
relativos à organização do tempo escolar (Gestor 1 em entrevista realizada em
24/11/2010 em Brasília).
e do espaço físico escolar. Para tanto,
considera-se que:
A importância é absoluta porque nós Espaços e Equipamentos no Programa
estamos falando de uma plataforma Mais Educação – a efetividade da
de educação integral, o quê que de- proposta de criação de territórios
volve mais a unidade para as pessoas educativos
que vivem no contexto de tanta de-
sumanidade do que o encontro com É um desafio essa questão da infra-
a arte, com a cultura, o encontro com estrutura. Ela exige tanto que a gente
o esporte, que traz a possibilidade de pense na reorganização do espaço
socializar-se com os outros através do da escola, mesmo que a escola faça
jogo, dos esportes e todas estas áreas uma organização de tempo e espaço
que nós propusemos na configuração educativo para além de suas frontei-
do Mais Educação, então a impor- ras, que é o desejável; ela tem que
tância é enorme, porque se trata de ter refeitório, ela tem que ter cozinha,
pensar qual é o horizonte formativo banheiro, biblioteca, quadra. Só que
do aluno da educação integral, até este é um país que foi tacanha, pois ta
onde a gente vai? Nós temos sido cheio de gente inaugurando escolas
muito tacanhas, pois você reduz a com duas salas, sala de refeição e um
vida da criança a um exercício de me- banheiro, e se chama isto de escola
mória, as vezes transcende a memória [...]. O processo civilizatório vai chegan-
e vai a um exercício de cognição no do e, quando a gente fala de escola, a
campo do português, no campo da gente está falando condições plenas
matemática, da geografia, da história para os estudantes. E o Ministério da
e isso acaba se transformando na Educação através do PAR e através
124 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
Algumas propostas de escola de tempo que ta com..., reorganizando espaços,
integral, nos anos 1980, seriam, talvez, alguns estão fazendo recapeamento
um exemplo extremo dessa recriação. No pra poder a atividade acontecer na-
entanto, na própria “concepção ampliada” quele local, outras estão organizando
banheiro, que as vezes o banheiro
do espaço e das “funções” escolares que
não dá para o banho, eles tão reor-
esses projetos traziam (a escola “com ba-
ganizando, existe umas adequações
nho tomado”), é possível notar que há uma de espaço dentro da escola, mas a
mutação na forma da escola, de maneira gente ta achando muito interessante
que a ideia de uma escola de qualidade que as escolas tão buscando espaço,
para os pobres não se resumiria mais à além dos muros. Então a gente já tem,
extensão do modelo escolar das elites para eu to fazendo agora recentemente, a
o conjunto dos despossuídos. gente fez na última formação, eu fiz
Essa desqualificação, por sua vez, um material pra elas responderem,
não “nasceu sozinha”, mas como a parte as tutoras e a gente ta com esse
mais visível de um fenômeno amplo de material,que a gente ta fazendo um
apanhado de quais as escolas estão
“expansão escolar”, ao longo do qual a
funcionando além dos muros e quais
escola foi “ampliada para menos”. A parte
os locais; então a gente vai ter esse
mais significativa dos “deslimites” dessa dado da parceria que a escola fez
expansão não concorreu para uma esco- e do diálogo que a escola fez com
la aberta a usos criadores que levassem a comunidade. (Coordenadora do
a uma insurreição, a uma inflexão dos Programa Bairro Escola da Prefeitura
rumos. Concorreu, principalmente, para do Recife em entrevista realizada
torná-la permeável a novas e reiteradas pelo professor Jamerson Almeida em
utilizações privadas e instrumentais, em- 25/11/2010 em Brasília, durante o Se-
pobrecedoras. Suas ampliações foram minário Internacional de Educação In-
feitas à custa de encurtamentos, e não só tegral em Jornada Ampliada, realizado
pelo MEC – respondendo à questão:
na educação, mas também na esfera mais
São mais duas perguntas em relação
ampla da política social. à questão da infraestrutura. Como o
Devido a esses encurtamentos, o Programa está ajudando as escolas a
Programa Mais Educação, além de propor enfrentar problema de infraestrutura,
uma Escola que não precise “tomar banho”, em particular, a falta de espaço e de
como as experiências da década de 80 dos equipamento pra essas atividades
Cieps, e, ao mesmo tempo, venha a socor- esportivas, artísticas e de lazer?)
rer a realização de outras políticas sociais
vítimas dos encurtamentos previstos na Conclusões
conjuntura atual, apresenta-se como a saí-
da possível a uma problemática sem saída: Segundo Algebaile (2009), existem
É. Isso aí é uma outra coisa que a vínculos históricos entre a expansão es-
gente tá, é os arranjos, tem escolas colar pública e a gestão da pobreza no
126 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
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128 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
Avaliação Educacional: concepções de formandos
em Pedagogia
Educational Evaluation: conceptions of graduatings
in Pedagogy
Carlos Alberto Vasconcelos*
* Prof. Dr. do Depto. de Educação e do Programa de
Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática
(NPGECIMA) da Universidade Federal de Sergipe. E-mail:
geopedagogia@yahoo.com.br
Resumo
O presente texto descreve experiência vivenciada na disciplina Avaliação Educacional. Parte-se de conhe-
cimentos teóricos e da prática docente dos alunos/professores envolvidos, que, até então, demonstravam
pouco conhecimento da temática abordada e encontravam-se, em sua maioria, enraizados em uma pos-
tura tradicional de avaliação. Com discussões, exemplificações, metodologias, a concepção de avaliação
foi alterada, concebendo-a como construção do conhecimento, integrante de um processo contínuo e
duradouro, que envolve todo o processo educacional.
Palavras –chave
Compreensão de Avaliação. Formandos em Pedagogia. Experiência.
Abstract
This paper describes the experience lived in Educational Evaluation discipline. This is based on theoretical
knowledge and practical teaching of students and teachers involved, who have since demonstrated
little knowledge about the thematic addressed and were mostly rooted in a traditional posture of eva-
luation. With discussions, exemplifications, methodologies, the conception of evaluation was changed,
conceiving it as a knowledge building, integrant of a continuous and lasting process, involving the entire
educational process.
Key words
Comprehension of Evaluation. Graduatings in Pedagogy. Experience.
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Resumo
Propõe-se, neste artigo, apresentar um breve panorama sobre alguns aspectos relacionados às condições
de trabalho oferecidas pelas escolas aos docentes, publicado em 2009 no relatório TALIS (Teaching and
Learning International Survey), programa de pesquisa desenvolvido pela OECD. Sem a pretensão de es-
gotar as análises comparativas, a finalidade é ressaltar os resultados do Brasil e da Espanha. Em primeiro
lugar, destacam-se algumas considerações sobre os limites e a abrangência de pesquisas dessa natureza,
bem como sua interferência na proposição de políticas educacionais. Em seguida, foram selecionados
alguns aspectos relevantes do ambiente escolar para identificar a magnitude dos problemas relatados,
posicionando os dois países selecionados em relação aos resultados gerais apresentados no relatório.
Palavras-chave
Políticas educacionais. Condições de trabalho docente. Educação comparada.
Abstract
This paper presents an overview about working conditions offered by schools for teachers, published in
2009 in the report TALIS research program (Teaching and Learning International Survey), developed by the
OECD. Without pretending to exhaust the comparative analyzes, the purpose is to highlight the results of
Brazil and Spain. At first, it emphasizes some considerations about the limits and the scope of this kind
of research, as well as its interference in educational policies. Secondly, were selected some aspects of
the school environment to identify the magnitude of the problems reported, positioning the two selected
countries in relation to the overall results.
Key words
Education policies. Conditions of teaching work. Comparative education.
144 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
resultados que chamaram a atenção em –, possibilitaram dados comparáveis e
função de percentuais elevados. Para tanto, serviram de referência para os sistemas
foram utilizadas as tabelas completas, dis- nacionais. O Instituto Nacional de Estudos
ponibilizadas on-line, além do relatório. A e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
análise realizada não pretende ser conclu- (INEP) – responsável, no Brasil, pelas ações
siva, mas, sobretudo, levantar questões que internacionais que envolvem coleta de
deverão ser investigadas posteriormente, dados, informações, estatísticas e avaliação
à luz de informações mais detalhadas e no campo da educação – afirma que:
dados sobre o contexto de cada país. Essas ações são importantes, uma vez
que fortalecem os sistemas de infor-
Considerações iniciais mação e avaliação educacionais dos
países envolvidos, além de promover
Procedimentos de medição e avalia- atividades conjuntas para troca de
ção da qualidade de educação foram cria- experiências entre os especialistas
dos em todos os países, como instrumento em Educação nacionais e interna-
essencial das reformas de Estado dos anos cionais. [...]
1990, realizadas a partir do processo de Dentro do seu âmbito de atuação,
globalização, com a finalidade de adequar o Instituto articula-se com outros
o aparelho estatal às mudanças ocorridas organismos nacionais e estrangeiros
no sistema produtivo (TROJAN, 2011a). mediante ações de cooperação insti-
Nessa perspectiva, se, de um lado, as tucional, técnica e financeira, bilateral
reformas realizadas proporcionaram certa e multilateral. (INEP, [200-]).
autonomia para as instâncias administra- Ainda que se admita a possibili-
tivas descentralizadas, de outro, o governo dade de fortalecimento dos sistemas de
central instituiu formas de controle das informação e avaliação, intercâmbio de
ações realizadas, entre as quais os siste- experiências e ações de cooperação, não
mas de avaliação (CASASSUS, 2001, p. 23). se pode esquecer que esses procedimentos
Nessa lógica, as reformas foram são efetivamente úteis como mecanismo
acompanhadas de orientações e acordos de controle. Nesse sentido, pesam críticas
com organismos multilaterais. Os modelos sobre o mau uso dos resultados dessas
de avaliação, elaborados no âmbito desses pesquisas. Ferrer Juliá (2012), a esse res-
organismos – como o PISA2, por exemplo peito, aponta que, sob esse argumento,
se esconde outro de fundamental impor-
2
PISA, o Programme for International Student tância: o poder que proporciona a “posse”
Assessment (Programa Internacional de Avaliação
de Estudantes), realizado pela OECD é uma avalia-
ção internacional padronizada, administrada para competências essenciais para a plena participação
jovens de 15 anos de idade nas escolas. O PISA na sociedade. Quatro avaliações foram até agora
avalia até que ponto os estudantes perto do final da realizadas (em 2000, 2003, 2006 e 2009). O Brasil
educação obrigatória adquiriram conhecimentos e participou de todas as edições (OECD, 2007).
146 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
que revela um problema na análise dos Algumas ponderações sobre Brasil e
resultados de todos os países participantes. Espanha
Em relação à confiabilidade dos
resultados, deve-se levar em consideração Antes de iniciar a exposição sobre
o grau de “subjetividade” que envolve a as condições de trabalho apresentadas
interpretação dada às perguntas, os signifi- pelo Brasil e pela Espanha, é necessá-
cados e os conceitos embutidos nos termos rio dizer que se pretende, tão somente,
dos questionários, entre outros fatores, levantar alguns aspectos e comentar as
ainda que o cuidado com a tradução dos primeiras impressões que provocam os
textos tenha sido observado no processo dados. Esse esclarecimento é importante,
de elaboração da pesquisa. pois não é possível realizar um estudo
Também preocupa a forma como comparado consistente, sem considerar
cada um dos países utiliza os dados da as peculiaridades de cada um dos países
pesquisa. No Brasil, o INEP indica, além selecionados em relação a cada contexto
da possibilidade de elaborar um “diag- particular e deste com o contexto global,
nóstico mais preciso do ambiente e das o que demanda um trabalho coletivo e
condições oferecidas para o ensino dentro interdisciplinar, que exige um tempo maior
das escolas brasileiras”, que a “análise dos de estudos.
dados internacionais permitirá que os Somente a título de exemplo, po-
países participantes identifiquem desafios dem-se apresentar alguns dados econô-
similares e aprendam a partir de políticas micos, sociais e educacionais do Brasil e
públicas adotadas por outros países” (INEP, da Espanha, considerando o movimento
2009). Questiona-se até que ponto o pro- ocorrido entre 2007 – que se refere ao
grama TALIS terá condições de dar essas contexto próprio do período da pesquisa
respostas, considerando os problemas – e 2010 – que demonstra as mudanças
indicados anteriormente, sem estudos mais ocorridas – para justificar a necessidade
detalhados das diferenças e desigualdades de se aprofundar nesses aspectos para
externas e internas referentes a cada país realizar uma efetiva comparação. A ob-
participante. servação desses dados, disponibilizados
Assim sendo, o estudo desse primei- pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
ro relatório do Programa TALIS justifica-se, Estatística (IBGE) sugere que os problemas
precisamente, pela influência desse tipo e as condições dos dois países seleciona-
de pesquisa e dos organismos que as dos são muito diferentes, assim como as
promovem na avaliação e na elaboração possibilidades de solução e necessidades
de políticas educacionais, bem como na de investimento.
definição de agendas multilaterais e im-
plementação de sistemas nacionais de
avaliação.
148 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
Há, por exemplo, diferenças no início do os resultados. O mesmo deve ser conside-
ano escolar de cada país – no Brasil, o rado em relação ao programa TALIS, cujos
início é em fevereiro ou março e, na Espa- resultados deverão ser compatibilizados
nha, em setembro – variação das datas de com o PISA nas próximas edições. Segundo
aplicação das provas de ano para ano, e a o Gabinete de Estatística e Planejamento
idade escolar correspondente a cada série, da Educação (GEPE) do Ministério da Edu-
que também não é homogênea. Desse cação: “O TALIS também abrange docentes
modo: “A mudança do mês de aplicação e diretores de escolas que participam no
do teste implica uma mudança da compo- PISA 2012, o que permitirá proceder ao
sição dos alunos em relação às diversas cruzamento, ao nível da escola, dos dados
séries e logo em uma mudança de popu- resultantes dos dois estudos” (GEPE, 2012).
lação, o que as torna não comparáveis. E
isso tem ocorrido” (KLEIN, 2011, p. 719). Condições de trabalho docente no
Brasil e na Espanha, segundo a
2000 2003 2006 2009 pesquisa TALIS
MEDIA OECD 496 498 493 496
ESPANHA 486 484 476 484 A qualidade do ensino e da aprendi-
BRASIL 368 383 384 401 zagem é influenciada por um conjunto de
Quadro 2 - Evolução PISA 2000/2009 fatores inter-relacionados, que se referem
Fonte: OEI, 2010. aos professores, aos alunos e às escolas.
Estudos, como o PISA, têm indicado que os
Com as devidas ressalvas já men- fatores mais incisivos são os relacionados
cionadas, se forem observados os desem- com as condições socioeconômicas dos
penhos médios do Brasil e da Espanha estudantes (OECD, 2007). Mais recente-
em relação à média geral, percebe-se que mente, tem sido destacada a importância
a Espanha apresenta os resultados mais dos professores em estudos como Le rôle
elevados, em todas as edições. Porém, crucial des enseignants: attirer, former et
em relação ao crescimento dos índices, retenir des enseignats de qualité, cujo ob-
percebe-se que houve maior evolução no jetivo principal é avaliar e propor políticas
Brasil. que ajudem a atrair, formar e reter bons
Entretanto não se pode deixar de professores nas escolas (OECD, 2005).
considerar esse tipo de comparação, já Entretanto, para que os estudantes
que tem sido realizada com frequência e tenham êxito, especialmente aqueles que
tem contribuído no desenvolvimento dos possuem condições mais precárias, aquilo
sistemas de avaliação adotados, tanto no que a escola oferece torna-se muito impor-
Brasil quanto na Espanha. Os problemas tante. Para conhecer alguns dos aspectos
de comparabilidade devem ser identifica- relacionados às condições de trabalho
dos, estudados e confrontados, a fim de oferecidas pelas escolas, elegemos alguns
denunciar as impropriedades e relativizar dados para construir um panorama que
Segundo a pesquisa, a maioria dos (6,9%) (OECD, 2009, p. 29). Do nosso ponto
professores tem empregos permanentes. O de vista, a falta de estabilidade pode, com
Brasil (74,2%) e a Espanha (75,6%) estão o aumento da rotatividade, inviabilizar a
abaixo da média TALIS (84,5%). Mas os aquisição da experiência e da unidade do
grandes destaques em relação a esta variá- corpo docente, bem como inviabilizar pro-
vel são Dinamarca (96,6%) e Malta (96,3%). gramas de desenvolvimento profissional de
Em todos os casos, o ensino apresenta-se longo prazo, que são os mais efetivos. Não
como uma carreira relativamente estável, o se evidenciam nesses índices, contudo, o
que pode ser atrativo para a profissão. Mas impacto decorrente das diferenças entre as
preocupa, em grande número de países, o escolas públicas – que tendem a oferecer,
declínio da segurança do emprego, o cres- predominantemente, empregos permanen-
cimento de trabalhadores temporários e o tes – e as escolas privadas, aspecto que
impacto da rotatividade dos professores. A é fundamental para analisar a influência
contratação de professores por mais de um desse fator na qualidade do ensino.
ano foi mais comum em seis países, entre Ainda em relação a esse assunto, a
os quais o Brasil (7,1%) e a Espanha (6,5%). apreciação do relatório causa certa estra-
Contudo é mais significativo o percentual nheza: “Contrato de professores de menos
de contratos temporários de um ano ou de um ano foi mais comum no Brasil
menos no Brasil (18,7%) e na Espanha [18,7%], Islândia [19,2%], Itália [19,4%], Po-
150 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
lônia [17,8%], Portugal [17,4%] e Espanha Tabela 2 - Professores em escolas públicas
[17,9%]” (OECD, 2009, p.29). Apesar dos (em %)
países indicados apresentarem resultados, País Escolas Públicas
realmente, elevados em relação à média BRASIL 84,9
(11,1%), não foi incluída a Irlanda (18,8%), MEDIA TALIS 83,1
cujo percentual é tão elevado quanto os ESPANHA 75,6
citados; os percentuais de cada país3 não Fonte: OECD, 2009.
foram registrados, uma vez que apresen-
tam diferenças significativas; e, principal- Na média, 83,1% dos professores
mente, estranha o motivo pelo qual foi pesquisados trabalham em escolas públi-
dado destaque a esse item, e não ao que cas, ainda que existam diferenças subs-
apresenta índices elevados para contratos tanciais entre elas em cada país. O Brasil
com 1 ano ou mais, que podem indicar (84,9%) apresenta uma condição próxima
maior precariedade ou rotatividade. Nesse da média (83,1%), e a Espanha (75,6%),
caso, de acordo com o mesmo relatório, um pouco abaixo. No mais, destaca-se a
contratos com menos de um ano podem Eslovênia, país onde 100% das escolas
indicar, além da flexibilização do mercado são públicas. Nesse caso, não se sabe se
de trabalho do professor e do contrato tem- não há escolas privadas na Eslovênia ou
porário para monitoramento de professores se apenas as públicas foram investiga-
iniciantes antes de conquistar emprego das. Como destacado no próprio relatório,
permanente, também, o atendimento de diferenças de salários, carreira e outros
demandas momentâneas (OECD, 2009, p. benefícios, bem como a diferença na ad-
29) – como pode ser o caso da substituição ministração das escolas, entre os setores
de professores em licença. públicos e privados, podem influenciar nas
De acordo com o relatório, alguns condições de trabalho dos professores e
dos países participantes possuem setores nas práticas de ensino (OECD, 2009, p.30).
privados consideráveis, com escolas pri- É necessário separar as instituições públi-
vadas ou administradas de forma privada, cas e privadas para aprofundar a análise
que recebem a maior parte dos seus fun- sobre as condições de trabalho oferecidas
dos de recursos públicos, como na Bélgica aos docentes.
Flamenga (27,6%). Mas, não é possível
saber, com certeza, se esses percentuais
referem-se ao total de escolas do país ou
ao total das escolas pesquisadas.
3
Esses percentuais foram acrescentados neste arti-
go, a partir das planilhas disponibilizadas pela OECD
em: http: <//dx.doi.org/10.1787/607784618372>.
Acesso: 30 set. 2009.
152 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
rem palavrões e obscenidades, e 63,3% co- Relatório PISA 2006 demonstra que quanto
metem atos de vandalismo. Mais adiante, maior é o corte de recursos, menor é a
essa variável será retomada para analisar performance do aluno (OECD, 2007, p. 263).
alguns aspectos do ambiente escolar, no A pesquisa TALIS indica outra publicação6
Brasil e na Espanha. (OECD, 2008b), na qual a OECD afirma que
Por outro lado, Cuba4, país que se as desigualdades na performance dos alu-
destaca internacionalmente pela qualidade nos refletem disparidades não só de suas
da sua educação, tem como princípio a ga- condições socioeconômicas, como também
rantia de 15 alunos por professor em sala dos investimentos alocados nas escolas.
de aula (TROJAN, 2008). Segundo Carnoy, Entretanto escolas com maior número de
no final dos anos 1990, a UNESCO testou alunos em desvantagem socioeconômica,
alunos de 13 países latino-americanos e por vezes, recebem menos recursos do que
comprovou o que pesquisadores e educa- as escolas com alunos advindos de situa-
dores identificaram nos últimos 30 anos: ção mais privilegiada, ou seja, as escolas
“Os alunos cubanos, de todas as séries, que têm mais necessidades de recursos
pareciam saber muito mais matemática e recebem menos (OECD, 2009, p. 32). Esta
pareciam ler melhor” (CARNOY, 2009, p. 75). é uma tendência que contradiz todas as
Tal constatação indica a necessidade de indicações técnicas admissíveis: os relató-
realizar mais estudos sobre essa questão, rios já citados nesse texto ressaltam a im-
considerando que, dada a precariedade portância de investir mais nas escolas que
econômica do país5, percebe-se um in- apresentam desvantagens. Entre os fatores
vestimento considerável no quadro de que interferem na alocação de pessoal e
professores – superior a todos os países recursos materiais, o mais importante é o fi-
pesquisados no TALIS. De acordo com o nanciamento, ou seja, quanto o país inves-
banco de dados do IBGE (2010), os gastos te em educação em relação ao número de
com educação em 2008 correspondem a alunos matriculados – fator indispensável
13,63% do PIB. para aprofundar as análises das políticas
Os recursos físicos, humanos e de valorização dos professores. Assim,
financeiros investidos nas escolas, eviden- para avaliar a efetividade das políticas
temente, influenciam o desempenho dos em relação aos dados apresentados pela
professores e a qualidade da educação. O pesquisa TALIS em estudo é indispensá-
vel buscar dados precisos em relação ao
4
financiamento da educação de cada país.
Cuba não participou da pesquisa realizada pelo
programa TALIS.
5
O PIB per capita de Cuba, 2010, é de U$5.704 6
No More Failures: Ten Steps to Equity in Education
enquanto o do Brasil é de U$10.704 e da Espanha [Falhas, não mais: Dez passos para a Equidade
é de U$30.543 (IBGE, 2012). Disponível em: <http:// na Educação]. Este livro oferece uma perspectiva
www.ibge.gov.br/paisesat/main.php>. Acesso: 18 comparativa sobre como os diferentes países têm
mar. 2012. tratado a equidade na educação (OECD, 2008b).
154 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
grandes desigualdades sociais e econômi- – tanto técnicos de laboratório, quanto
cas em cada região do país, que agravam pessoal de suporte instrucional e outros.
as diferenças internas de investimento na Uma das razões para esse problema é a
educação, considerando-se a descentrali- distribuição dos recursos. Estatísticas da
zação administrativa e financeira. OECD (2008a) mostram que, em 2005, 63%
Em segundo lugar, é grande a rela- das despesas das instituições de educação
ção entre a falta de pessoal de apoio e de secundária foram designadas para o pa-
outros tipos de pessoal nas escolas onde o gamento de professores e 16% para outro
ensino foi bastante afetado por esse fator. tipo de pessoal.
Brasil e Espanha apresentam resultados Um fator importante relacionado à
preocupantes em todos os aspectos. Como educação que é proporcionada aos alunos
se pode observar na tabela 5, 80,5% dos é o ambiente das escolas. Entre os fatores
diretores espanhóis reclamam da falta que influem no ambiente estão aqueles
de pessoal de suporte para o ensino, e que são relacionados aos professores
75,7% de outros tipos de pessoal; no caso (faltas, atrasos, qualificação etc.) e aos
brasileiro, mais de 60% reclamam do baixo alunos (disciplina, nível socioeconômico
número de todos os profissionais de apoio e cultural etc.).
156 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
de alguns resultados apresentados no tendências internacionais, para subsidiar
relatório TALIS, publicado em 2009. Esse diversos estudos e avaliar as políticas
panorama preliminar destaca algumas educacionais de cada país.
características relacionadas às condições Nesse caso, a partir dos dados
de trabalho oferecidas pelas escolas bra- obtidos pelo TALIS, é possível identificar
sileiras e espanholas, a fim de facilitar o questões que ainda não haviam sido
desenvolvimento de estudos comparativos detectadas. Em relação às escolas, desta-
particulares, correlacionando dados e ana- cam-se o impacto negativo dos recursos
lisando os resultados a partir das especifi- materiais insuficientes, do tamanho das
cidades de cada país em particular. Desse escolas, das salas de aula com número
modo, tais estudos poderão subsidiar a excessivo de alunos e da falta de pessoal
avaliação e a reformulação de políticas. qualificado – técnicos, pessoal de apoio e
Nesse aspecto, será importante destacar professores qualificados – que produzem
as políticas voltadas ao financiamento e efeitos no ambiente escolar e no tipo de
à valorização da carreira docente, consi- práticas adotadas. No âmbito do impacto
derando a indicação do relatório sobre a do número de alunos por sala de aula,
questão da baixa atratividade e status da ainda que esse fator por si só possa não
profissão docente. fazer diferença, a pesquisa corrobora com
A avaliação do trabalho docente é dados, por exemplo, que mostram a im-
uma tarefa difícil, porque é resultado de um possibilidade de se realizar práticas mais
conjunto de fatores relacionados ao pró- orientadas aos alunos.
prio professor e suas condições pessoais; No que se refere aos resultados
à escola e as condições que oferece; aos de Brasil e Espanha, evidenciados neste
alunos, com suas especificidades; e, sobre- estudo preliminar, é possível sistematizar
tudo, às políticas educacionais e condições algumas observações. Brasil (74,2%) e
de financiamento determinadas em cada Espanha (75,6%) possuem uma situação
país. Considere-se ainda que todos esses similar em relação aos percentuais de
fatores interagem entre si, dificultando a professores com cargo permanente e com
identificação dos elementos que são mais contratos temporários, e ambos abaixo
significativos na produção de determina- da média TALIS (84,5%). E, os dois países
dos resultados. têm um percentual superior de escolas
Entretanto essas dificuldades não públicas, em relação à média. As esco-
invalidam a importância da pesquisa. las brasileiras (601,2) são maiores que
Pelo contrário, se tais pesquisas funcio- a espanholas (536,7), ambas acima da
nam, por um lado, como mecanismo de média (489,1 alunos). Mas, na Espanha
pressão para o cumprimento de objetivos (21,7), o número de alunos nas salas de
predefinidos, por outro, disponibilizam um aula é menor do que a média (23,5) e
conjunto de dados e informações úteis que significativamente menor do que no Brasil
servem de ponto de partida para identificar (32,2). Em relação à falta de professores
Referências
158 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
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160 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
Relato biográfico: uma tentativa de compreender as
práticas pedagógicas de professoras da educação
infantil
Biographical report: an attempt to understand the
teaching practices of teachers of early childhood
education
Maria Izete de Oliveira*
Rinalda Bezerra Carlos**
Resumo
Este trabalho procede de duas pesquisas que objetivaram investigar a concepção de professoras da
Educação Infantil sobre essa etapa da educação básica, e conhecer como desenvolvem suas práticas
pedagógicas, respectivamente. Constatamos, salvo raras exceções, a inconsistência entre o discurso e a
prática das professoras. Logo, nos sentimos instigadas a realizar uma nova pesquisa, tendo por objetivo
compreender como as experiências de vida influenciam na prática pedagógica das professoras. Utili-
zamos o método autobiográfico, sob a forma de relatos de história de vida pelo fato de o nosso estudo
configurar-se num instrumento, ao mesmo tempo, de formação e de pesquisa. Obtivemos 12 relatos que
foram organizados em três categorias: Formação inicial, Formação continuada e Experiência de vida. Os
resultados revelam a necessidade de promover estudos sobre profissionalidade docente, desmistificação
da prática em detrimento da teoria e um aprofundamento no conceito de formação continuada.
Palavras-chave
Educação Infantil. Prática pedagógica. Relato biográfico.
Abstract
This work comes from two studies that aimed to: investigate the conception of kindergarten teachers
about this stage of basic education, and learn how to develop their teaching practices, respectively. We
found with few exceptions the inconsistency between the discourse and practice of teachers. Therefore,
we feel urged to perform a new research with the objective to understand how life experiences influence
the teachers’ pedagogical practice. We used the autobiographical report method in the form of reports of
life experiences due to the fact of our study set up a training and research instrument at the same time.
We got 12 reports that have been organized into three categories: Initial formation, Continuing Education
162 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) da educação para as crianças que se en-
corrobora com a LDBEN ao preconizar que contram na faixa etária de 4 e 5 anos, ou
essas instituições devem “propiciar situa- seja, na pré-escola.
ções de cuidados, brincadeiras e aprendiza- Entretanto essa medida requer esfor-
gens orientadas de forma integrada e que ços no sentido de criar estratégias e ações
possam contribuir para o desenvolvimento que a viabilizem com qualidade, pois, de
das capacidades infantis [...] na perspectiva acordo com o Parecer CEB n. 022/98, que
de contribuir para a formação de crianças trata das Diretrizes Curriculares Nacionais
felizes e saudáveis” (BRASIL, 1998). para a Educação Infantil, no Brasil “a cre-
Ainda de acordo com a Resolução che é conotada em larga medida, e erro-
n. 05/09 as propostas pedagógicas dessas neamente, como instituição para crianças
instituições devem contemplar os seguintes pobres, em consequência tem sido enten-
Fundamentos Norteadores: a) Princípios dida, muitas vezes, como uma instituição
éticos: da autonomia, da responsabilidade, que oferece uma educação pobre para os
da solidariedade e do respeito ao bem pobres” (BRASIL, 1998).
comum, ao meio ambiente e às diferentes Diante do exposto, acreditamos na
culturas, identidades e singularidades; importância em considerar, em nossas
b) Princípios políticos: dos direitos de ci- reflexões, a questão da qualidade da edu-
dadania, do exercício da criticidade e do cação oferecida na Educação Infantil, já
respeito à ordem democrática; c) Princípios que temos clareza de que, indistintamente
estéticos: da sensibilidade, da criatividade, da condição social, todas as crianças têm
da ludicidade e da liberdade de expressão direito a uma educação de qualidade,
nas diferentes manifestações artísticas e pois essa educação recebida irá repercutir
culturais (BRASIL, 2009). na vida escolar e na formação de suas
Apesar desse reconhecimento, a personalidades. Isto porque é na infância
Educação Infantil ainda não está asse- que a base da personalidade é formada,
gurada pela legislação como educação mediante a aquisição de hábitos, atitudes,
obrigatória, e sim como um direito de valores morais e éticos. Nessa direção, o
opção das famílias. Mas uma conquista Parecer n. 022/98 esclarece perfeitamente
bem atual, relacionada à obrigatoriedade, o que estamos defendendo:
está configurada na Ementa Constitucional
A Educação Infantil não é, portanto
a n. 59, de nov. de 2009, que assegura em
um “luxo” ou um “favor”, é um direito a
seu art. 208 a “educação básica obrigatória ser melhor reconhecido pela dignida-
e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade [...]”, de e capacidade de todas as crianças
meta a ser alcançada até 2016 (BRASIL, brasileiras, que merecem de seus
2009). Essa ementa, sem dúvida, represen- educadores um atendimento que as
ta um grande avanço no que se refere à introduza a conhecimentos e valores,
oferta da Educação Infantil em nosso País, indispensáveis a uma vida plena e
uma vez que determina a obrigatoriedade feliz. (BRASIL, 1998, p.13).
164 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
profissional docente por meio da formação reflexo na prática pedagógica. Essa opção
continuada, o que leva algumas professo- justifica-se pelo fato de esta proposta
ras a desenvolverem uma prática pedagó- configurar-se, como esclarece Josso (2010,
gica distanciada daquilo que preconiza a p. 133), num instrumento “ao mesmo tem-
nova concepção de Educação Infantil e a po de formação e de pesquisa, de prática
literatura da área, conforme constatamos da pesquisa-formação como apoio a uma
em nossas pesquisas? pedagogia de autoformação e do projeto
A fim de tentar responder a essa que se baseia na experiência de vida dos
indagação, nos propusemos, nesta pesqui- aprendentes”.
sa, prosseguir com nossos estudos junto Elegemos como técnica de coleta de
às professoras que atuam na Educação dados os relatos escritos por entender que,
Infantil no sentido de refletir com elas através das narrativas vividas, os sujeitos
sobre seus percursos formativos, configu- reestruturam, refletem e apreendem os
rados em suas narrativas de vida (pessoal, conhecimentos adquiridos ao longo de
acadêmica e profissional), elucidadas em suas trajetórias formativas.
suas práticas pedagógicas. Nesse intento, Temos por pressuposto que os re-
encontramos abertura junto a um grupo de latos autobiográficos revelam-se campo
professoras que atuam em uma instituição fecundo para compreendermos a relação
de Educação Infantil para desenvolvermos existente entre a “história de vida” das pro-
tal iniciativa. Logo, é no espaço da forma- fessoras e suas práticas pedagógicas, mais
ção continuada, onde nos reunimos quin- precisamente, como as vivências de cada
zenalmente, para estudar, refletir e rever professora influenciam em suas ações e
as práticas pedagógicas do referido grupo concepções acerca da Educação Infantil.
de professoras. Isto porque vislumbramos, Acreditamos que a história de vida dos
na formação em serviço, um potencial de sujeitos repercute em sua prática pedagó-
desenvolvimento profissional, em que a gica e, por meio dos relatos autobiográficos,
troca de experiências com os pares e a so- as pessoas manifestam sua subjetividade
cialização das diversas leituras de mundo e, ao mesmo tempo, refletem sobre suas
possibilitam novas aprendizagens. ações, trazendo à tona aquilo que está
subjacente em suas memórias.
O estudo Conforme mencionamos, nossa
proposta de trabalho tem ocorrido por
Considerando o exposto anterior- meio de reuniões periódicas com o grupo
mente, optamos por trabalhar com a de professoras que atuam em uma insti-
abordagem autobiográfica, sob a forma de tuição de Educação Infantil na Cidade de
relatos de história de vida, contemplando Cáceres. O Grupo de Pesquisa participa
a subjetividade, dando voz aos sujeitos da formação continuada da escola tendo
pesquisados de forma a compreender o como finalidade ouvir as professoras sobre
contexto em que eles se inserem e seu suas experiências de vida e sua prática
166 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
curdo de Pedagogia tem contribuído para diferentes. A esse respeito, concordamos
a prática pedagógica dessas professoras. com os princípios da SEDUC/MT de que
Quanto à categoria “Formação con- todo servidor que atua na escola seja con-
tinuada”, entendemos que essa proposta siderado educador, entretanto, para atender
de trabalho tem como finalidade direta as necessidades formativas dos diversos
intervir/contribuir para a atualização dos segmentos existentes no âmbito escolar,
professores no que se refere a sua área de faz-se necessária uma formação específica,
atuação, por isso a formação continuada dirigida para cada área de atuação o que,
é entendida também como formação em a nosso ver, isso não tem ocorrido.
serviço. Vale mencionar que a formação No que se refere à categoria “Expe-
continuada praticada pela SME segue as riência de vida” (pessoal e profissional)
diretrizes da SEDUC/MT, que tem como pretendíamos compreender como se dá
propósito transformar a escola como lócus a influência das experiências de vida das
de estudo e construção de novos saberes, professoras em suas práticas pedagógicas.
de modo que, para alcançar tal objetivo, Ao lançar mão da reflexão sobre as expe-
tem incentivado a formação continuada riências de vida das professoras, trabalha-
por meio de uma política que viabilize mos com elas no sentido de pormos em
espaço de estudos na instituição escolar. evidência o fato de que elas são sujeitos,
Assim, as atividades destinadas à formação mais ou menos ativos ou passivos, da
continuada ficam sob a responsabilidade sua formação e o de que podem dar a si
do coordenador pedagógico. Esse profissio- próprias os meios de serem cada vez mais
nal, junto ao coletivo da escola, organiza conscientes (JOSSO, 2010). Entendemos que
o projeto anual de formação em serviço a proposta de revisitar o passado possibilita
que, em Mato Grosso, denomina-se de um olhar nas posturas, crenças, convicções
“hora atividade”. em que, com o passar dos anos, sequer
É importante informar que a pró- nos damos conta daquilo que acreditamos
pria SEDUC/MT considera educador todo e acabamos por perpetuar. Nesse intuito,
servidor que atua no espaço escolar, do os relatos nos convidam a refletir sobre a
que decorre que a formação continuada criação que tivemos, as primeiras experiên-
oferecida pela instituição de ensino deve cias como alunos, os diversos espaços onde
ser estendida a professores, técnicos ad- circulamos e que muitas vezes servem de
ministrativos e pessoal de apoio. Nesse espelho para reproduzirmos (ou reelaborar)
espaço de múltiplos segmentos, desen- nossos fazeres no cotidiano escolar.
volvemos nosso projeto, o que exige do
grupo de pesquisadores um desafio e Análise dos relatos
uma oportunidade de refletir sobre as
condições de trabalho dos professores e Esta primeira experiência, de escre-
demais profissionais que atuam na escola, ver um relato, revelou-se como um desafio
que, a nosso ver, possuem necessidades às professoras ao terem que escrever sobre
168 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
para frequentar o curso, uma vez que outras 7 sequer mencionam o curso em
algumas professoras residiam distante da seus relatos. Três dessas professoras (R7,
universidade, aliado ao fato de a cidade R8 e R12) fazem menção ao estágio, duas
não oferecer meio de transporte regular dizendo que foi bom e uma diz que quase
que as conduzisse até a faculdade. desistiu por causa das dificuldades que
Ao referirem-se às contribuições da enfrentava em sala.
formação inicial, 5 professoras mencionam Ao que parece, para a maioria das
que o curso contribuiu para a sua prática professoras pesquisadas, a passagem pela
na Educação Infantil , a partir das seguintes graduação teve pouca significação para
menções: atuação na profissão docente. Observa-
se em seus relatos que elas não fazem
No curso de pedagogia, aprendi
questões necessárias sobre o proces-
ligação de sua prática pedagógica com a
so de ensino-aprendizagem [...]. (R6) formação inicial, mais especificamente, ao
curso de pedagogia. Isso se pode explicar
A faculdade veio aprimorar ainda pelo fato de não nos darmos conta das
mais novos conhecimentos. Estes co-
aprendizagens adquiridas ao longo das ex-
nhecimentos adquiridos, juntamente
com o estagio ajudaram e influencia-
periências formativas na formação inicial.
ram na maneira de trabalhar com as Por outro lado, os cursos de peda-
crianças [...]. (R8) gogia, de modo geral, não atendem as
necessidades de formação específica
[...] tivemos excelentes professores que
para atuar com essa etapa da educação
nos incentivavam e orientavam. (R11)
básica, ou seja, “[...] mesmo que os edu-
“Ampliei muito meus conhecimentos cadores tenham formação superior, não
e teorias. O estágio foi muito satisfa- significa que possuam qualificação para
tório, contribuiu muito para minha atuar com crianças de até seis anos de
prática pedagógica”. (R12)
idade” (OLIVEIRA, 2007, p. 176). A autora
Durante o estágio em sala de aula ressalta, ainda, que entende por “formação
tive vontade de desistir mediante os específica aquela cujo conteúdo progra-
problemas que foram acontecendo no mático esteja voltado para a atuação com
decorrer desse processo, crianças com essa faixa etária, seja ela oferecida em nível
dificuldade de aprendizagem, falta de
médio, superior ou especialização”.
carinho [...]. (R7)
Nesse sentido podemos afirmar
No final do relato, a professora acres- que as professoras pesquisadas não pos-
centa: “pretendo colocar em prática tudo suem uma formação sólida para atuar
aquilo que aprendi na faculdade [...]”. (R7) na Educação Infantil já que o curso de
Nota-se que apenas 5 professoras pedagogia da região, até pouco tempo,
mencionam em seus relatos o curso de em sua matriz curricular, oferecia apenas
Pedagogia sem, no entanto, aprofundarem uma disciplina voltada para a educação
“como” ele contribuiu para sua prática. As infantil, na área de fundamentos. Somente
170 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
dos outros significativos, na inserção nos núltima, praticamente nasci tia, depois de
espaços religiosos, nas dificuldades oriun- uma certa idade comecei a ajudar, cuidar
das de crises existenciais como perdas de dos sobrinhos”.
familiares, reintegração no universo escolar Outra professora relata que sua
após anos de afastamento, dentre outros primeira experiência começou na pastoral
fatores, os quais delineiam as marcas da criança, ela afirma: “na vivência do dia
que cada experiência vivida e significada a dia [...] fui adquirindo cada vez mais ex-
empreende nas professoras pesquisadas. periência” e participar dos cursos de capa-
Apesar das diversas experiências citação na pastoral da criança “despertou
narradas, apenas uma, das doze profes- a vocação para o curso de pedagogia”.
soras, tenta estabelecer a ligação entre as Essa professora menciona, ainda, que “a
experiências vividas no passado e seus pastoral trabalha abrangendo desde a ali-
reflexos no presente, quando explica que mentação, o cuidado e o desenvolvimento
teve sua infância na zona rural, alegando integral da criança” (R8). Nesta fala, ela
ser uma pessoa tímida pelo fato de “ter tido demonstra conhecer a função de educar
pouco contato com pessoas” (R6). Também, e cuidar na Educação Infantil, ou seja,
essa mesma professora fala da infância acreditamos, então, que sua experiência na
difícil marcada por perda de pai, separação pastoral tenha repercutido na sua prática
do convívio dos irmãos, das mais diversas docente na Educação Infantil, já que lhe
violências a que foi submetida, para jus- proporcionou um embasamento teórico e
tificar o “complexo de inferioridade”, que, prático na área. Como a própria professora
segundo ela, influencia na sua profissão. relata: “Quando comecei o curso de peda-
Essa mesma professora ainda revela que gogia já tinha um conhecimento prévio
a sua experiência na profissão não foi em sobre as fases do desenvolvimento infantil”.
decorrência da formação, mas da vivência Tais afirmações nos remetem à
cotidiana nos espaços de trabalho. Ela categoria 1, em que as professoras pouco
alega que foi “observando a prática de reconhecem as contribuições do curso de
outras professoras” que aprendeu a lidar pedagogia na sua prática pedagógica,
com as crianças. bem como nos convidam a refletir sobre a
No relato 1, observa-se uma iden- atual proposta desses cursos que, a nosso
tificação da professora com profissão, ver, não proporcionam oportunidade de
ao mencionar que teve a oportunidade convivência das futuras professoras com
de trabalhar com uma sala do ensino a realidade das escolas já que o tempo
fundamental e, a partir dessa experiência, e o formato destinados ao estágio não
percebeu que as crianças “faziam parte têm sido suficientes e não garantem uma
de sua vida”. Já no relato 9, constatamos formação sólida para lidar com criança
que a experiência mais marcante para a nessa faixa etária.
professora foi no âmbito familiar quando Ainda na categoria Experiência de
ela menciona: “[...] de 10 filhos sou a pe- Vida, no que tange ao aspecto profissional,
172 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
quase devoção com que grande maioria Na leitura dos relatos, observamos a
do magistério nele permanece, apesar da tendência das professoras em não trazer
imoralidade dos salários. E não apenas à tona a contribuição dos fundamentos
permanece, mas cumpre, como pode, seu trabalhados ao longo do curso de peda-
dever. Amorosamente, acrescento”. gogia, e poucas mencionaram os cursos
Comungamos com Oliveira (2007), que frequentaram ao longo da trajetória
quando reflete sobre o discurso consen- profissional. Há uma supervalorização das
sual das professoras que, ao expressarem trocas de experiência, em detrimento das
sua afetividade e seu sentimento no que teorias que necessariamente fundamen-
toca ao ser professor, geralmente o fazem tam suas práticas. A dicotomia entre teoria
ancoradas nas expressões de amor, dedi- e prática, implícita em suas narrativas, é um
cação, carinho, principalmente quando se aspecto a ser refletido com o grupo. Isto, a
referem à Educação Infantil. No entanto a nosso ver, compreende um grande desafio
autora chama atenção para a importância a ser enfrentado ao longo do nosso projeto,
da afetividade na ação docente, desde que pois defendemos a ideia de que nenhu-
aliada a uma profissionalidade que não ma prática pedagógica seja destituída de
prescinde de uma formação específica uma teoria que a sustente, mesmo que
para o exercício da ação docente. o sujeito da ação docente não considere
tal proposição. Conforme afirma Micarello
Considerações (2005, p. 146-148):
Quando emerge o discurso enal- [...] não é possível sair da teoria e
tecendo a experiência e a troca com os entrar na prática, pois ao praticar,
o professor reconstrói a teoria, que,
pares, deixando ao esquecimento os sa-
por sua vez, reiventa a prática. [...] as
beres adquiridos na trajetória escolar na dimensões da teoria e da prática são
condição de aluno, nos remetemos aos indissociáveis, já que a teoria é um
ensinamentos de Tardif (2005) ao alertar conjunto de regras também práticas
que a profissão docente tem como pecu- e que a prática não é um ato qual-
liaridade uma imersão nela antes de nos quer, mas um ato que concretiza um
tornarmos professores, a contar que, como objetivo e é pensado em relação a
alunos, ao longo de aproximadamente 16 princípios. Essa ação refletida remete
anos, construímos quadros de referência ao conceito de práxis.
do que venha a ser um professor. Sobre Ao retomar os relatos biográficos com
esse aspecto ressaltado pelo referido autor, as professoras, o fizemos com a intenção de
constatamos que, exceto uma professora, a levá-las a compreender (e/ou repensar) de-
maioria não estabelece ligação entre aqui- terminados sentidos que dão àquilo em que
lo que viveram como alunas, na formação acreditam, pois, no movimento de realizar
inicial e o que vivenciam no seu cotidiano importantes ligações de fatos passados, os
de trabalho com as crianças. sujeitos constroem suas compreensões pre-
Referências
174 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
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Resumo
Somos seres prenhes de necessidade e imaginação, atravessados por fluxos que nos afetam e nos pro-
duzem. Olhares e dizeres pronunciados, insinuados e interditados. Identidades e diferenças nos compõem
como mosaicos. A identidade é uma história narrada, e a diferença, uma contingência velada. Nossa
história é uma narrativa criada, contada, ouvida, repetida, inacabada. Tanto mais fidedigna, quanto a
repetição e o testemunho. A potência humana é um mistério que se realiza ao acaso, por afecções. Assim,
sugere-se que os espaços e ações educativas assumam a intencionalidade de colaborar com processos
de singularização, estimulando o vigor e a potência de cada ser. Portanto este texto é uma narrativa sobre
educação, dando ênfase à produção de subjetividades e diferenças no âmbito do educar e do existir.
Palavras-chave
Educação. Produção de subjetividades. Diferença.
Abstract
We are beings full of needs and imagination, crossed by streams that affect us and produce us. Pronounced
glances and sayings, insinuated and interdicted. Identities and differences form us as mosaics. Identity
is a story narrated, and difference is a contingency veiled. Our history is a created narration, reported,
heard, repeated, unfinished. It is more trusted the more it is repeated and witnessed. The human power is
a mystery that happens by chance, by affecting conditions. Thus, it is suggested that educational spaces
and actions take the intent of collaborating with the processes of singularization, stimulating the potential
and vigor of every being. Therefore, this text is a narrative on education, emphasizing the production of
subjectivities and differences in the field of education and existence.
Key words
Education. Production of subjectivities. Difference.
178 Norma Silvia Trindade de LIMA. Para pensar a educação: sobre a produção...
é o que constatamos frente à pluralidade de verdades”, conforme a legitimidade com-
de nomeações que adjetivam o substan- partilhada e instituída por grupos sociais.
tivo educação. O que parece justificar a Nesse sentido, existe o esforço para
proposta de diálogo entre dois conjuntos conceituar de modo distintivo a educação
de entendimentos, delineamentos e regu- social e a escolar, cujos propósitos ou
lações ligados à educação, o social e o efeitos seriam diferentes, embora (possi-
escolar. Ou, ainda, entre pedagogia social velmente?) complementares ou suplemen-
e escolar. Todavia as adjetivações como tares, posto ser a educação compreendida
sintomas parecem indicar uma reivindica- como processo social da existência, em
ção, expressão de algo latente, esquecido, seus modos de subjetivação e produção
suprimido. Necessidades produzidas num de identidades e diferenças. Nesse sentido,
dado momento histórico. Foucault (1979) não é possível falar de existência humana
havia chamado atenção para a irrupção sem pertencimento, sem relação social
e os efeitos de determinados enunciados num contexto datado, com características
que indicam uma descontinuidade na que se apresentam compondo um cená-
linearidade da história e que constituiriam rio, onde a trama e o drama humano se
“regimes de verdade”. Nesse caso, verdade desenvolvem.
não se refere a verdadeiro ou falso, mas Sobre o questionamento de mais
a uma circularidade entre saber e poder, uma adjetivação para a educação e/ou
demarcando quesitos de distinção e reco- para a pedagogia, Otto (2009) destaca
nhecimento que atribuem legitimidade a que os fundadores da pedagogia social
um conjunto de proposições que visam não tinham o propósito de criar mais
nomear e regular. Pelo próprio autor: uma categoria no campo educacional,
Por “verdade”, entender um conjunto mas refutar uma perspectiva de homem
de procedimentos regulados para a individualista, preconizando um educando
produção, a lei, a repartição, a circu- contextualizado em seu entorno vital, ou
lação e o funcionamento de enun- seja, “uma crítica da Educação focada no
ciados. A verdade está circularmente desenvolvimento dos indivíduos sem con-
ligada a sistemas de poder que a pro- siderar as dimensões sociais da existência
duzem e apoiam, e a efeitos de poder humana” (OTTO, 2009, p. 33).
que ela induz e que a reproduzem. Vale comentar que a concepção
“Regime” da verdade. (FOUCAULT, fragmentada e metafísica de fenômenos
1979, p. 14).
humanos e sociais remonta à penetração
As adjetivações sobre educação da perspectiva científico-cartesiana no
pensadas sob o prisma das circularidades campo educacional, professando um edu-
entre saber e poder, além de indicarem cando e um cenário educacional correlato
especificidades, distinções legais, proce- dissociados de uma gama de experiências
dimentais, espaciais, e, por conseguinte, significativas no plano existencial, cultural
proposicionais, quiçá constituam “regimes ou socioafetivo, tanto no que diz respeito
180 Norma Silvia Trindade de LIMA. Para pensar a educação: sobre a produção...
ciência, mas,como “um espaço de inter- novos modos de subjetivação e novas
secção de saberes múltiplos”, de inspira- possibilidades estéticas, à luz de exemplos
ção rizomática. Isto quer dizer, refutar a clássicos, trágicos, traduzidos e/ou sugeri-
metáfora arbórea, em sua ordenação do dos pela arte.
fluxo do saber e conhecer, em seus modos A pertinência da crítica de Nietzsche
ascendente, fragmentado e hierárquico. De atualiza-se, perante o apelo exclusivo à
fato, o paradigma arbóreo do conhecimen- preparação de mão de obra para o mer-
to, de inspiração cartesiana, não responde cado, na perspectiva técnico-instrumental
à urgência de um novo pensar. e do consumo, desprezando a formação
Recuando um pouco, final do século cultural e humanística, tanto no âmbito da
XIX, na Basiléia, por ocasião de um ciclo educação social quanto da escolar.
de conferências proferidas sobre o futuro Uma constatação possível, quanto
dos estabelecimentos de ensino, Nietzsche às implicações dessas críticas, diz respeito
(2011) havia pronunciado uma crítica à ao distanciamento que o pensamento
emergência tendenciosa de um pragma- educacional estabeleceu das experiências
tismo cientificista no sistema educacional existenciais, ou seja, a educação apartou-
(no caso, alemão, à época), substituindo se da vida e do vigor.
uma perspectiva de formação humanística.
Nessas conferências, o papel da cultura é A educação e a perspectiva inclusiva
reverenciado para a formação educacional,
compreendida na perspectiva da dimensão A educação social parece ser defini-
humana e social, cuja máxima seria possi- da como a busca de ligação entre os pro-
bilitar o pensar sobre a existência humana. cessos sociais e pedagógicos, contemplan-
Nietzsche condenou a massificação da do as aflições sociais. Segundo Caro (2009),
cultura e da educação aliada à suprema- a experiência da educação social no que
cia do mercado. Ingerências oriundas de diz respeito à qualidade das relações esta-
interesses, sobretudo, político e econômico belecidas entre educador e educando, pode
na esfera educacional. contribuir com a educação de uma forma
A partir dessa obra, a educação mais ampla, especialmente com a escolar,
compreendida à luz da perspectiva trágica, sobretudo por, historicamente, contemplar
o homem é um herói. Luta e combate aos e/ou enfrentar questões sociais emergen-
desígnios impostos, em busca de uma re- tes e de exclusão, nos processos sociais e
alização viável socialmente, coletivamente. ações pedagógicas.
Nessa perspectiva educacional trágica, a Sobre a educação escolar, enten-
educação é um campo de possibilidades, demos as práticas formativas regulares e
no âmbito da formação humana, capaz de formais que ocorrem legisladas por uma
potencializar o vigor do pensar o sentido regulamentação geral, oficial e exterior ao
e dilemas da existência humana, a fim espaço e, em geral, aos atores educativos.
de criar novos modos de existir. Ensejar Como é o caso da organização do trabalho
182 Norma Silvia Trindade de LIMA. Para pensar a educação: sobre a produção...
preendo o ambiente educacional como Sendo assim, educação social e a
cenário e palco produtor de identidades escolar parecem compartilhar um “lugar
e diferenças, no âmbito dos processos de comum”, qual seja, dedicarem-se à for-
subjetivação. Estes, podendo encaminhar mação humana, cultural e social, nesse
processos de singularização, quando sentido, à produção de subjetividades,
singularizam, ou de alienação quando conforme já mencionado. Destaco, assim, o
massificam as singularidades. Um exemplo recorte de minhas reflexões, as intrínsecas
seria a normalização ou eliminação de um relações entre educação e produção de
“desvio”, em seus variáveis modos de ex- subjetividades à luz de uma perspectiva
pressão, como a eugenia. Aliás, um exem- inclusiva. Justifico o recorte em função de
plo característico a respeito do tratamento uma confluência que demarca uma traje-
conferido por certas cidades aos moradores tória de estudos (LIMA, 2003, 2007, 2008,
de rua. Nessa perspectiva, a educação, por 2009, 2010, 2011).
meio de suas práticas, posiciona sujeitos
na perspectiva de tessitura cultural e sim- Uma proposição educacional: penso
bólica, ou seja, na relação com a produção, quando sou afetada, desejo quando
apropriação e acesso a artefatos culturais. me sinto livre, nomeio quando não
Dito isto, a educação é um atributo posso ou não quero mais calar...
do existir humano, o que, portanto, nos
remete a modos de existência e, portanto, Já sei namorar; Já sei beijar de língua;
de relações que se afetam mutuamente Agora só me resta sonhar... Já sei aon-
e se configuram numa relação de inter- de ir; Já sei onde ficar; Agora só me
dependência e sobredeterminação. Nesta falta sair... (Já sei namorar. ANTUNES;
BROWN; MONTE, 2002)
feita, os sujeitos são forjados num campo
múltiplo de sobredeterminação. Quero com Como um disparador, evoco uma
isto dizer que a vida se realiza num cenário criação coletiva, a obra musical “Já sei na-
plural de vetores o qual compõe maneiras morar”, dos compositores: Arnaldo Antunes,
de pensar, dizer, querer, simbolizar e pro- Carlinhos Brown e Marisa Monte, a fim de
duzir. Ou seja, estamos falando de modos digredir sobre questões que parecem ex-
de subjetivação que afetam sujeitos que tremamente contemporâneas e presentes
animam e produzem os modos de sub- em contextos educacionais. Estas dizem
jetivação, numa promoção de sentidos e respeito às novas configurações e expres-
significados que vão desenhando o que se sões sobre existir, pensar e desejar. Muito
nomeia como cultura. Então, vale ressaltar embora, dissonâncias e diferenças sejam
que o conceito de cultura não é um pro- vividas como desafios. Protagonização de
duto, mas o próprio processo de criação e novos anseios, estilos, estéticas? Conflitos e
atribuição de sentidos e significados que estranhamentos frente ao pulsar de fluxos
conferem possibilidade de codificação e e figuras que despontam, racham, fissuram
compartilhamento (SILVA, 2000). cartografias educacionais postas, sobre as
184 Norma Silvia Trindade de LIMA. Para pensar a educação: sobre a produção...
sobre o outro. O que se exige para fazer enquanto devir, dada a possibilidade de
parte de um dado grupo social? E, quais criar. Segundo Larrosa (1998), o nascimento
são as enunciações que vão sendo produ- remete à interrupção de uma cronologia.
zidas nesse processo de pertencer, diante Nas palavras deste autor:
e sobre o outro? Como essas indagações [...] a educação é a forma em que
e respostas se articulam? Quais são seus o mundo recebe os que nascem.
efeitos, do ponto de vista social e do indiví- Responder é abrir-se à interpelação
duo? ou melhor dizendo, da subjetividade de uma chamada e aceitar uma res-
produzida a partir de um delineamento ponsabilidade. Receber é fazer lugar:
produzido por enunciados que dizem abrir um espaço no qual aquele que
quem é o outro. vem possa habitar, colocar-se à dispo-
Trata-se de se refutar concepções sição daquele que vem sem pretender
dadas a priori, uma transmutação de va- reduzi-lo à lógica que rege em nossa
lores no que diz respeito às condições de casa. (LARROSA,1998, p. 73).
pertencer, pensar para, enfim, saltar sobre Leio nesse fragmento que educar
ares rarefeitos. tem a ver com receber, ou em outras pala-
A contemporaneidade, momento vras, com hospitalidade. Estar com o outro
histórico sobre o qual vivemos, apresenta demanda transpor uma fronteira muito
um esgotamento de modelos que orienta- complexa, pois o presente coloca em xeque
vam, outrora, o mundo social (HALL, 2000). todo um passado, em vista do futuro, de um
Parece que a marca de nosso tempo é a porvir. E é bastante difícil viver numa noção
instabilidade, a incerteza, a mudança, o temporal do presente. O relacionamento
fluxo incessante e heterogêneo que nos humano é um desafio dado, em vistas de
afeta e nos arrebata. Vários são os desafios. um Encontro existencial, como Caetano
Entre tantos, lidar com o que foge ao con- cantou em Sampa, “alguma coisa acontece
trole e à identidade como instância dada, em meu coração é que quando eu cheguei
naturalizada, fixada, previsível, portanto, por aqui eu nada entendi...”
passível de controle e adestramento. Outro pensamento estabelece rela-
Por outro lado, lidar com o outro, ção entre nascimento e educação, Arendt
enquanto alteridade, descontinuidade, (1997, p. 234)
envolve a possibilidade de diferir, trans-
mutar, nascer. A educação está entre as atividades
mais elementares e necessárias da
Quem nasce ou como podemos
sociedade humana, que jamais per-
nascer, hoje?
manece tal qual é, porém se renova
Como a educação favorece ao nas- continuamente através do nascimen-
cimento? to, da vinda de novos seres humanos.
Essa questão tem um duplo sentido,
referindo-se tanto a quem nasce, a criança Forjo dessas citações o questio-
que chega ao mundo, como aos já nascidos, namento sobre a possibilidade de se
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Resumo
Este trabalho apresenta a síntese de pesquisa de Mestrado que teve por objetivo geral analisar a Bio-
expressão como possibilidade de formação integral dos graduandos do Curso de Pedagogia de uma
universidade federal mineira. A Bioexpressão é um conjunto de conhecimentos teórico-vivenciais que visa
à compreensão de si e das dificuldades de expressão própria que dificultam a vida, o exercício profissional
e as inter-relações, considerando o desenvolvimento do ser em sua integralidade, o que abarca as dimen-
sões cognitiva, afetiva, corporal, social e espiritual. O trabalho tem sua base nas teorias de Wilhelm Reich
e seus continuadores – Alexander Lowen, Stanley Keleman e David Boadella. As atividades bioexpressivas
se mostram como possibilidades de estimular o autoconhecimento do profissional em formação, seu olhar
para o outro e seu entorno, gerando reflexões e propostas de novas formas de atuação.
Palavras-chave
Bioexpressão. Formação integral. Curso de Pedagogia.
Abstract
This study presents the synthesis of research of Master’s Degree having a general goal to analyze the Bio-
expression as a possibility of integral formation of the Pedagogy students of a Federal University of Minas
Gerais. The Bioexpression is a set of theoretical and experiential knowledge which aims self-understand-
ing and of the difficulties self-expression that make life difficult, professional practice and inter-relationships,
considering the development of human being in its integrality, which includes the dimensions cognitive,
190 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
o desenvolvimento teórico e vivencial das zando dimensões até então adormecidas
aulas e os depoimentos ao longo de todo em si próprio. A Bioexpressão, por meio de
o processo; e feitas entrevistas (uma inicial suas atividades, pode proporcionar àqueles
e outra final) com um grupo de voluntárias alunos que com ela tiveram contato, um
composto por treze alunas universitárias. maior grau de flexibilidade corporal, maior
A Bioexpressão2 busca formas de capacidade respiratória e o consequente
minimizar limitações comuns a todos nós aumento de vitalidade, uma diminuição
e de com elas conviver de modo mais sau- das dores e tensões musculares, algumas
dável, estimulando o autoconhecimento, o estratégias para facilitar a expressão dos
cuidar de si, a autoexpressão e a reflexão seus desejos e de suas angústias, maior
sobre a corporeidade e o sensível na prá- equilíbrio e, em decorrência desses ganhos,
tica pedagógica. Para tal é apresentado ter maiores possibilidades de encontrar
um conjunto de vivências corporais – ati- soluções e/ou lidar mais facilmente com
vidades em que o movimento expressivo os percalços naturais do cotidiano e da
e/ou a percepção corporal permitem que prática docente.
entremos em maior contato conosco, que
aprendamos a fazer melhor uso da respi- Bioexpressão: um olhar mais
ração, a ouvir mais nosso corpo, perceber abrangente sobre o ser humano
e liberar tensões, criando estratégias para
A Bioexpressão é uma proposta pe-
lidar com as dificuldades do dia a dia (PE-
dagógica que apresenta possibilidades de
REIRA, 2005). Acreditamos que isso é pos-
trabalhar a integralidade do ser humano
sível, quando observamos que, através da
– corpo, emoção, mente e espírito. Não é
Bioexpressão, criamos oportunidades para
uma “disciplina” como geralmente a co-
que o ser humano se perceba como um
nhecemos, com conteúdos a serem apren-
ser integrado, que se relaciona, conectando
didos, mas, especialmente, um conjunto de
seus conhecimentos, ações e emoções.
conhecimentos, técnicas e vivências que
A criatividade e a expressividade podem
possibilitam expandir as condições de vida
vivificar-se, desenhando novos esboços na
e de expressá-la, levando ao futuro educa-
sua trajetória de vida. Através do processo
dor, ou mesmo, a educadores graduados,
de maior percepção de si, de autocuidado,
possibilidades de se conhecerem mais, de
de autoexpressão, o futuro professor tem
se expressarem em sua singularidade, de
a possibilidade de criar e alimentar novos
investirem em um permanente processo
canais de ser e estar no mundo, valori-
de autoformação e de autocuidado, e de
se relacionarem melhor consigo mesmos
2
A Bioexpressão é um modo de compreender o e com seus educandos para que possam
ser humano, tendo sido, desde o primeiro semestre atuar com mais abertura em sua prática pro-
de 1997, ministrada como disciplina eletiva em
licenciaturas e Pedagogia na Universidade Federal
fissional, o que é compatível com qualquer
de São João del-Rei (UFSJ). campo de conhecimento (PEREIRA, 2005).
192 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
proposto, significa abrir-se para o outro e os impulsos são reprimidos para que a
entrar em contato com possibilidades de integridade do indivíduo seja preservada.
ação, o que pode ser viabilizado com as Esse mecanismo é, a princípio, salutar
atividades bioexpressivas. e natural. Mas, se somos levados a nos
defender consecutivamente de agressões
A unicidade soma-psique externas, não permitindo que os impulsos
naturais se mostrem, as defesas acabam se
Reich, psiquiatra austríaco, postulou
tornando automáticas e inconscientes, ou
a unidade funcional entre o psíquico e o
seja, se manifestam mesmo não havendo
somático, concluindo que a mesma ener-
mais a situação externa que representava
gia alimenta esses dois aspectos, gerando
ameaça. Podemos dizer que as estases,
a relação e a mútua influência entre
estagnações da energia vital, são cronifica-
atitudes corporais e atitudes psíquicas.
Estudiosos de áreas diferenciadas, como ções de soluções que foram bem sucedidas
Maturana (2001) e Damásio (1996), ao para resolver problemas específicos em um
longo de quase um século do início das determinado momento, mas que, como
pesquisas de Reich, vêm comprovando o formas de proteção não mais necessárias
conceito de que corpo e psique são faces e que se tornaram recorrentes, impedem
de uma totalidade. que se criem novas soluções, que se vis-
Reich (1995; 1998) desenvolveu o lumbrem novas possibilidades, que haja
conceito de couraças musculares ou de maior flexibilidade (REICH, 1995; 1998).
caráter, que são defesas criadas pelo ego, As funções biológicas fundamentais
parte do indivíduo com a qual administra de contração e de expansão foram obser-
sua relação com o mundo. O caráter, para vadas por Reich tanto no psíquico quanto
Reich, não é algo inato, mas sim uma no somático. Essas duas funções básicas
estrutura resultante de situações vividas, se relacionam com o funcionamento do
de um processo de construção histórica. sistema nervoso vegetativo ou autônomo.
É com ele que vivemos nosso cotidiano, Esse sistema regula processos corporais
que somos e que nos relacionamos. Daí a básicos como respiração, pulsação cardí-
afirmação de Reich de que nossa história aca, circulação, digestão, entre outras, e se
de vida está congelada em nossos corpos. subdivide em sistema nervoso simpático e
Os nossos impulsos naturais se parassimpático, que funcionam de forma
expandem e se expressam, em uma ida- antitética: o parassimpático opera na dire-
de mais tenra, como uma manifestação ção da expansão, do prazer e da alegria;
psicobiológica básica e natural da vida. ao contrário, o simpático opera na direção
Quando, entretanto, são proibidos de se- da contração, da tristeza, do desprazer. “O
rem expressos (por atitudes de desamor, processo vital consiste em uma contínua
de desrespeito, de violência, enfim, por alternância entre expansão e contração”
situações vividas como ameaçadoras), (REICH, 1995, p. 246).
3
A autorregulação pode ser entendida como a ca- criativa e adequada para responder às exigências
pacidade de o ser humano agir de forma autônoma, e necessidades da vida.
194 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
zam como atividades não impostas e, sim, firmeza, sua força, trazendo a sensação de
compartilhadas, tendo como finalidade que estão enraizados.
a vivência do momento. Podem facilitar Embora alguns anos depois, po-
aos seus participantes a consciência de si demos dizer que algumas afirmações
mesmos e a autoexpressão, o que significa de Lowen estão absolutamente atuais. O
aumento do fluxo de sua energia vital. As autor observa que “é comum falar-se que
limitações da expressividade, como vimos, o indivíduo de hoje em dia está alienado
mantêm uma relação com as couraças que ou isolado. É mais raro ouvir-se dizer que
vamos criando e com o desequilíbrio do ele não tem base, que está desenraizado”
fluxo de energia daí decorrente. (LOWEN, 1982, p. 85). Podemos trazer essa
São três os elementos que fazem asserção para nossos dias, quando per-
parte de qualquer vivência da Bioex- cebemos que há ausência de contato do
pressão: o grounding, o centramento e a ser humano consigo, com o outro e com
expressão pessoal. O grounding (base ou a sua bioenergia.
enraizamento) é um dos grandes eixos Na bioenergética, grounding signifi-
da Bioexpressão, desenvolvido através de ca entrar em contato com o chão, não de
atividades diversificadas (como a dança e forma mecânica, mas energética. Muitas
trabalhos com ritmo), porque, como obser- são as razões para essa perda de contato,
va Lowen (1984), o grounding permite o e o autor cita algumas causas como o
contato com a própria sustentação. uso excessivo do carro, do avião, a falta
As atividades de base (grounding) de contato físico da criança com sua
trabalham a autoconfiança, aumentam o mãe (ou substituta), que é o seu primeiro
senso de segurança, descarregam tensões, chão. Falta-nos contato com a terra, com
trazendo-nos para o aqui-agora. Isso per- a natureza. A criança, hoje, de modo geral,
mite que os participantes das atividades não brinca mais na rua, não sobe mais
se sintam seguros e acolhidos por si em árvores, não rola no chão, não pode se
mesmos para expressarem o que, muitas sujar, não pode fazer barulho, não pode...,
vezes, está reprimido em seus corpos. Es- não pode... Sua energia está contida, do-
sas atividades propiciam o fortalecimento minada, buscando formas de se expandir.
do contato com a realidade. Através de Essa criança cresce e, provavelmente, se
exercícios que priorizam o trabalho com tornará um adulto com muitas dificuldades
as pernas e os pés, mantêm um contato e inseguranças. Talvez alguém que tenha
mais concreto com sua base e com seu muitos medos, que seja tímido, que ali-
eixo. Quando os participantes pisam mais mente sintomas de baixa autoestima, que
firme no chão, conseguem transportar para não consiga se relacionar naturalmente,
a sua vida possibilidades de lidar com as que se enclausure nos seus sentimentos.
situações cotidianas com mais firmeza e Essa criança corre o sério risco de se tornar
mais segurança. Enfim, são exercícios que um adulto infeliz e insatisfeito com sua
os ajudam a manterem contato com sua trajetória de vida. Por isso, a intenção de se
196 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
vão, progressivamente, criando um clima por quase todos (algumas vezes, todos) os
de confiança, respeito e permissão. sujeitos da pesquisa. Os resultados foram
analisados tendo por base o referencial
Analisando os dados e apresentando teórico utilizado e os eixos da Bioexpressão.
alguns resultados Através da observação das vivên-
cias, pudemos acompanhar um processo
A pesquisa empírica de cunho qua- de entrega gradual e de mudanças na
litativo se constituiu de observações das expressão corporal. Olhares desconfiados,
atividades desenvolvidas em sala de aula, movimentos sem fluidez, mais pensados
de depoimentos colhidos ao longo de todo que sentidos, respiração superficial, testas
este período (de fevereiro a julho de 2011), franzidas, contenção e acanhamento foram
e de entrevistas iniciais – em fevereiro de sendo substituídos por olhares mais tran-
2011 e finais – em julho de 2011. A orga- quilos, movimentos fluidos, rostos e corpos
nização e análise dos dados por categorias relaxados, respiração mais profunda e rit-
(BARDIN, 2008) nos permitiram observar mada, enfim, por uma entrega à atividade
resultados semelhantes experimentados e pelo prazer em desenvolvê-la.
Reich (1995) afirma que as resistên- nos defender, e lidar com isso é difícil. As
cias são inconscientes e se manifestam vivências flexibilizam essas defesas, e essa
como forma de defesa. Temos medo de so- flexibilização permite que a energia em
frer novamente aquilo de que precisamos estase se movimente. Nosso lado saudável
198 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
Outro ponto que se repete nas falas nas costas, uma tensão no ombro. E aí eu
é a maior percepção de si, daquilo que o tento percebê-las, cada vez mais, pra poder
corpo expressa e a busca por soluções aliviar [as dores]”. Jade afirma: “Ficam mais
como nos mostra a fala de Ágata: “Consigo nítidas agora as sensações do meu corpo.
perceber se a dor é por cansaço, por estres- (...) Eu sei de onde vem a dor, o motivo que
se, por ansiedade. E o corpo realmente dá a está gerando. (...) Fica mais fácil fazer
sinal. Ou é uma dor de cabeça ou uma dor algo se a gente está percebendo a causa”.
200 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
ga segurança, confiança, suporte afetivo, a solidariedade, a colocação de limites.
enfim, precisamos criar um grupo coeso. Apropriamo-nos das palavras de Madalena
Nosso grupo, como qualquer grupo, não Freire (2001, p. 65): “um grupo se constrói
nasceu pronto, ele se construiu com as no espaço heterogêneo das diferenças
bagagens, dificuldades e peculiaridades entre cada participante: – da timidez de um,
de seus componentes. Construiu-se tendo do afobamento do outro; da serenidade de
por base a confiança que também preci- um, da explosão do outro; do pânico de um,
sou ser construída, alimentada, cuidada; da sensatez do outro; da mudez de um, da
tendo por base o respeito, o acolhimento, tagarelice do outro [...]”.
202 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
as tensões deles. Porque, às vezes, a para os cuidados consigo e com o outro,
gente policia tanto a gente mesmo, as alcançando maior equilíbrio através da
crianças a ficarem sentadas, postas respiração e do conhecimento de si. Dessa
numa posição, de uma forma só. A maneira, ele pode se tornar mais capaz
gente exige deles um comportamento
de repensar seu modo de vida, buscar
que não é de criança. Criança tem
que liberar tensão, tem que liberar
alternativas mais efetivas para o seu pró-
o estresse, senão chega num adulto prio bem-estar e, consequentemente, criar
como eu, todo travado (Esmeralda). melhores possibilidades de lidar com as
dificuldades inerentes à vida.
Passei a entender melhor meus peti-
A Bioexpressão trouxe possibilidades
tinhos de dois anos. E agora, quando
eles estão, assim, agitados, estão para que os educadores em formação en-
nervosos, eu pego e paro tudo. Vamos trassem em contato consigo, organizando
relaxar. Aí coloco uma música, no seu campo energético, flexibilizando coura-
outro dia deitei todo mundo no tapete ças e aumentando o fluxo da energia vital,
e quase todo mundo dormiu. (Risos) o que, acreditamos, possa ajudá-los a levar
Deitei todo mundo, fiz massagem em para suas salas de aula e para suas vidas
todo mundo. Comecei a exercer a uma nova visão de mundo e de educação.
massagem, uns com os outros. Então, Quando estamos em contato conosco,
assim, muito significativa a Bioexpres- ou seja, quando estamos equilibrados,
são pra mim (Turmalina).
centrados em nós, estamos mais inteiros.
Consideramos muito significativo Isso nos possibilita maior segurança e,
que a transferência de conhecimento es- consequentemente, uma expressão mais
teja sendo feita também para suas salas autêntica.
de aula, pois, como observa Matthiesen As atividades bioexpressivas se mos-
(2009, p. 157), tram como estratégias significativas para
[...] devemos registrar, em alto e bom os graduandos, não só os de Pedagogia,
som, que o corpo fala, ainda que a mas de outras licenciaturas, que atuarão
educação contemporânea pareça com alunos do segundo segmento do
surda às suas apelações e evidências. Ensino Fundamental e Ensino Médio, como
É preciso olhar para o que ele diz. mostram os estudos de doutoramento de
Pereira (2005). Tais atividades permitem
Finalizando... que o futuro educador, ou mesmo edu-
cadores graduados, alcancem um estado
É fundamental oferecermos con- de inteireza mais conveniente com suas
dições para que o futuro educador se necessidades pessoais e profissionais,
perceba como um ser indivisível que tem pois trazem possibilidades de contatar
corpo, emoções, intelecto e espiritualida- sentimentos e emoções na vivência do
de, e convive em sociedade, funcionando momento presente, propiciando a compre-
de forma integrada, despertando, assim, ensão do que se passa em nós, estimulan-
Referências
204 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
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Resumo
Este artigo apresenta os aspectos da linguagem do opressor em oposição à do oprimido, na obra “Pyg-
malion”, de Bernard Shaw. Depois de ler a peça, buscou-se a versão cinematográfica “My Fair Lady” de
forma a ter a sustentação necessária para tratar da linguagem oral presente no texto. Eliza Doolittle é a
voz do oprimido na peça. Ela passa de uma vendedora de flores a uma mulher da burguesia. E, ao ter
sua postura e fala modificadas, perde sua identidade.
Palavras-chave
Bernard Shaw. Língua Inglesa. Linguagem do Oprimido.
Abstract
This paper presents aspects of the language of the oppressor as opposed to the oppressed, in the book
“Pygmalion” by Bernard Shaw. After reading this play, the film version “My Fair Lady” was looked for in
order to have the necessary support to address oral language in the text. Eliza Doolittle is the voice of the
oppressed in the play. She goes from a flower girl to a woman of the bourgeoisie. And as she have her
speech and posture changed, she loses her identity.
Key words
Bernard Shaw. English. Language of the Oppressed.
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internacional>. Acesso em: 20 mar. 2011.
Videografia
MY FAIR Lady. Direção: George Cukor. Produção: Jack Leonard Warner. Restaurado por Robert A.
Harris & James C. Katz e produzido no polo industrial de Manaus. Manaus: Videolar S/A, 1999.
Apresentado no formato ‘letterbox’ de tela larga preservando o aspecto ‘scope’ da exibição de
cinema original. Realçado para TV widescreen. 1 DVD (170 min.), Doubly digital, Color.
Resumo
Os resultados apresentados neste artigo fazem parte de pesquisa que investigou o campo escolar de Pilar
do Sul, SP. Em meados da década de 50, esse campo era constituído por quatro escolas, entre as quais
a Escola de Língua Japonesa. Este trabalho busca compreender a história dessa escola, analisando os
rituais e festas do cotidiano escolar como parte de suas práticas que compõem as “culturas escolares”
no período referente a 1950, ano de fundação, a 1970, ano de fechamento da escola. Foram utilizadas
fontes escritas, orais e iconográficas, considerando a posição de Le Goff (1990) sobre a ampliação da
noção do documento. A análise evidenciou, entre outros aspectos, que os rituais e festas eram mais do
que atividades escolares, eram momentos propícios para a difusão de conhecimentos, normas e valores
legitimados pela escola e pela comunidade japonesa.
Palavras-chave
Imigração Japonesa. Rituais e Festas escolares. Pilar do Sul.
Abstrat
The results presented in this paper are part of a research carried out about schools in Pilar do Sul, SP.
In the middle of the 50s, the city only had four schools, including the Japanese language and boarding
school. This paper looks at understanding the history of this school, analysing the habits and festivals
and the schools routine as part of it´s practices that makes up the schools culture from 1950 to 1970
(from the opening of the school to the closing of the school) We used written, oral and iconographic
sources, following Le Goff (1990) guidelines about the expansion of the document concept. The analysis
showed, among other things that the rituals and festivities were more than simple school activities, the-
se were prosperous times to share knowledge, values and norms legitimized by the school and by the
Japanese community.
222 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
sua característica primaz: expressar de informação. Dentre estas, o relato
planos simbólicos diversos, aprendi- oral, quando possível, é o que mais
dos por aqueles que delas têm algum se acomoda às tramas da memória.
tipo de participação [...]. (BENCOSTTA, (MAUAD, 2009, p. 03).
2006, p. 3.858).
Tendo em vista o cotejamento de
Para analisar os rituais e festas da informações entre as fontes, utilizamos a
Escola de Língua Japonesa e Internato fotografia entrelaçada, principalmente, com
de Pilar do Sul, foram utilizadas fontes fontes orais, sem a exclusão das demais
secundárias e primárias como documentos fontes.
escritos, fontes orais e iconográficas. Fruto desse constante diálogo com
Le Goff (1990) adverte sobre a am- as fontes, apresentaremos de forma breve
pliação da noção do documento, tomando- a presença dos imigrantes japoneses em
o em um sentido mais amplo, “documento Pilar do Sul, a criação da escola japonesa
escrito, ilustrado, transmitido pelo som, e seu processo de legalização e por fim
imagem ou qualquer outra maneira”. os rituais e festas da Escola de Língua
Destaca ainda que, na falta do documento Japonesa e Internato de Pilar do Sul, como
escrito, cabe ao historiador “fabricar o seu parte da cultura escolar que indicava tra-
mel, na falta das flores habituais”, com dições, comportamentos e valores que se
palavras ou outros meios. pretendia perpétua.
As fontes orais e as iconográficas
se tornaram imprescindíveis para esta A chegada e presença dos imigrantes
pesquisa, principalmente pela escassez de japoneses em Pilar do Sul
documentos escritos sobre os japoneses
em Pilar do Sul, além de que os poucos Os imigrantes japoneses chegaram
existentes, redigidos estão em japonês. a Pilar do Sul em 1945, após terem vivido
O entrelaçamento das diversas anos em fazendas, principalmente de café,
fontes orais com as imagens permitiu a em outras regiões do Estado de São Paulo,
interpretação das memórias dos imigrantes e estavam tentando comprar suas próprias
japoneses em Pilar do Sul e suas imagens. terras depois de tempos de economia.
Segundo Mauad: A região era considerada ideal para
se estabelecerem, pois possuíam muitas
[...] as imagens não falam por si mes- terras apropriadas para o plantio dos no-
mas, interpretar seus significados,
vos produtos que os imigrantes japoneses
atribuir-lhe valor estético, compreen-
der suas representações sociais, des-
queriam cultivar. Eles sabiam identificar
crever seus espaços de sociabilidades a qualidade das terras, o melhor clima
comportamentos subjacentes, iden- e tinham conhecimento de técnicas de
tificar seus personagens, tudo isso manejo, possibilitando assim uma maior
obriga aos estudiosos das imagens produção. Algumas poucas famílias japo-
do passado o recurso a outras fontes nesas chegaram a Pilar do Sul já com suas
224 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
década de 50 e para a melhoria da infra- restrições continuaram a ser praticadas por
estrutura da cidade. Em diversas atas de alguns anos, após o fim da guerra. Segun-
sessões da Câmara Municipal, entre 1953 do Morais (2001, p. 335), foi somente em
e 1959, há registro sobre o andamento 1956, no governo de Juscelino Kubitschek,
da instalação de serviço de correio, água que as restrições de guerra impostas aos
e esgoto, coleta de lixo, instalação de um imigrantes japoneses foram abolidas, e os
campo de aviação e informações sobre o presos japoneses foram libertados. Na vida
convênio com o governo do Estado para cotidiana, porém, os imigrantes japoneses
fornecimento de energia elétrica. e seus descendentes ainda se sentiam
A presença da imigração japonesa censurados, pelas formas de tratamento
mudou a economia, ampliou os serviços que a população brasileira impunha aos
da cidade e trouxe principalmente novos estrangeiros ou seus descendentes, princi-
modos de viver e pensar que causaram palmente japoneses (mesmo porque, estes
euforia, estranhamento, curiosidade, dis- não tinham como esconder sua nacionali-
tanciamento e até repressão. dade, estampada em sua fisionomia).
Nos primeiros anos, os antigos Os moradores japoneses ou seus
moradores de Pilar do Sul estranhavam descendentes de Pilar do Sul continuavam
sua forma de viver e se relacionar. Os constrangidos em falar a língua japonesa
imigrantes, por sua vez, também estra- fora das colônias, devido à repressão
nhavam os costumes do povo local. Esse não declarada, e isso também acontecia
estranhamento gerava formas de exclusão com qualquer outro tipo de manifestação
de ambas as partes, que eram frutos das cultural.
diferenças culturais e também resquícios Em Pilar do Sul, desde sua chegada,
das restrições impostas aos imigrantes os japoneses se relacionavam mais com
japoneses durante o período de guerra. seus pares devido à dificuldade de falar
Durante a Segunda Guerra Mundial, português e também com intuito de man-
os imigrantes japoneses, assim como os ter suas tradições. Preservavam o culto ao
alemães e italianos, sofreram restrições, imperador, as festas típicas, os costumes do
foram proibidos de possuir aparelhos de cotidiano, sobretudo os voltados à alimen-
rádio, falar a língua materna em público, tação e, principalmente, mantinham como
fazer reuniões, foi imposto o salvo con- exigência entre os mais jovens o casamen-
duto6 e as escolas foram fechadas. Essas to entre japoneses ou descendentes.
Pedro Antonio de Carvalho, morador
6
local, relata como sua mãe e as mulheres
O salvo conduto foi introduzido no Brasil pela
polícia do Distrito Federal, com base nas Portarias
n. 7576, de 26 de janeiro, e n. 8604, de 30 de outu- obrigados a portar um documento temporário que
bro de 1942, legalizando o controle aos chamados controlava o ato de “ir e vir” de todos os cidadãos
“súditos do Eixo”. Assim, para se locomover de uma alemães, japoneses ou italianos [...] (TAKEUSHI,
localidade para outra, esses estrangeiros eram 2002, p. 32).
226 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
retirada do local onde foram cultivadas as A direção do Grupo Escolar comu-
plantações. O professor Furutani ensinava nicou os pais por três vezes, mas as aulas
às crianças a língua escrita e as tradições continuaram sendo dadas, apesar da
japonesas. ilegalidade, em casas de colonos da zona
No início da imigração, a escola rural e, a partir de 1956, na garagem da
construída pelos japoneses, principalmente Cooperativa Agrícola de Cotia, no centro
nas colônias, não exigia muitos gastos. da cidade. Em 1959, com autorização para
Dependendo do caso, uma casa de pau a a abertura da escola, o Kaikan adquiriu
pique já servia, com as paredes de barro, da Cooperativa Agrícola Cotia um terreno,
a cobertura de sapé e o chão batido. Se onde passaram a funcionar, em 1962, a
o número de alunos fosse pequeno, as Escola de Língua Japonesa e Internato de
aulas podiam ser ministradas em alguma Pilar do Sul.
casa particular. A escola da colônia “Ser- A Escola de Língua Japonesa e Inter-
tão” se encaixava nessas características nato de Pilar do Sul começou a funcionar
(CEHOAJIB,1992, p. 32). legalmente em 1962, e tinha como objetivo
A escola foi fechada após o faleci- manter as tradições japonesas por meio da
mento do professor Furutani e voltou a educação. Os alunos frequentavam o Gru-
funcionar em 1952, com o professor Soichi po Escolar ou Ginásio e, no outro período,
Yoshiba. Este professor, após fundar um a Escola de Língua Japonesa.
curso noturno na cidade, na casa de Guiti Segundo Demartine (1995), a preo-
Watanabe e no barracão de Omori, come- cupação dos japoneses em educar seus
çou a ir de bicicleta lecionar na colônia filhos no Brasil foi influenciada por dois
“Sertão” e na “Barra”7. fatores: primeiro, valorização da educação
Após dois anos viajando de bicicle- no começo do século XX no Japão, na Era
ta, com a fundação do Kaikan na cidade, Meiji; segundo, o alto grau de escolaridade
o professor Soichi Yoshiba passou a residir dos nipônicos em relação a outras levas de
na colônia “Barra”, onde continuou a ensi- imigrantes, sendo superados apenas pelos
nar a língua japonesa e frequentemente alemães8. Miyao afirma:
organizava festas da cultura japonesa. A revolução política e social iniciada
na Era Meiji, em 1868, trouxe pro-
7
As aulas não eram diárias, pois as colônias eram funda transformação no regime da
distantes da cidade, como também eram distantes nação nipônica, dando prioridade à
uma das outras e as estradas eram precárias. As difusão da educação, difundindo-a
aulas das colônias aconteciam em forma de rodízio. de modo drástico [...]. Desde então o
No período que a escola funcionava na ilegalidade
ela teve os sguintes professores Furutami – 1950,
8
Yoshiwa Soishi – 1952, Yasuda – 1953, Nagatomo Segundo pesquisa da Secretaria de Agricultura do
– 1953, Saito Masako – 1956 e Kobayashi Tadashi – Estado de São Paulo, que fez um levantamento a
1956 a 1964. Não encontramos informações sobre esse respeito com os imigrantes que desembarca-
sobre a formação desses professores. ram no Porto de Santos entre 1908 e 1932.
228 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
Japão, com materiais e livros utilizados nas participando das diferentes atividades da
escolas japonesas. escola, como aulas de língua japonesa,
O método de ensino na seção de idio- atividades sobre a história, geografia,
ma nipônico nas escolas segue geral- cultura japonesa, atletismo ou curso de
mente o modelo japonês, regime de corte e costura9.
seis anos... As matérias são vernáculo, Segundo depoimento da ex-aluna
educação moral, aritmética, geografia, Yoshi Yonemura Sasaki, assim como ela,
história, ciências, ginástica e canções. muitas crianças, mesmo antes de ingressar
Os livros escolares estavam baseados no grupo escolar, frequentavam a escola
nos textos oficiais de ensino primário japonesa, na qual ela ingressou com cinco
do Ministério da Educação do Japão. anos.
De maneira que havia muitas coisas
As fotografias a seguir retratam mais
incompreensíveis para os alunos, por
muito que o professor se esforçasse
que um momento escolar. Elas eternizam
em explicá-las. (CEHOAIJB, 1992, p.
o cotidiano da escola, o grupo de alunos
126) e professores. A disciplina e rigidez são
representadas nas fotos pousadas, mas
Além dos conteúdos regulares, a es- também a espontaneidade da infância
cola oferecia atividades esportivas e cursos, nas brincadeiras, nos sorrisos e até mesmo
como o de corte costura, para meninas. no cachorrinho de estimação do professor
Segundo ex-alunos dessa instituição, Kobayashi são registrados.
as crianças, para serem matriculadas, de-
veriam ser japonesas ou descendentes de
japoneses, não sendo aceita a matrícula
de crianças não descendentes de japonês
ou de outra nacionalidade. Nas décadas
de 1960 e 1970, se um dos pais da criança
não fosse japonês ou descendente, sua
matrícula também não era aceita, o que
a impedia de frequentar a escola e as
atividades do Kaikan.
Analisando os depoimentos dos ex-
alunos e fotografias da Escola de Língua
Japonesa e Internato, podemos destacar a 9
A professora Miyo Yoshiba deu aulas de corte e
presença de alunos de diferentes idades costura por quase dez anos na Escola de Língua
no mesmo grupo. Isso ocorria porque a Japonesa de Pilar do Sul. Era formada como pro-
escola não era seriada, diferentemente do fessora de língua japonesa e corte e costura Além
dessa professora, a Escola de Língua Japonesa
modelo de escola graduada das escolas
e Internato de Pilar do Sul teve os professores
estaduais, como o grupo escolar e o gi- Kobayashi Tadashi – 1956 a 1964, Osaki Mamoru
násio. Existia apenas um grupo de alunos – 1964, Jujii – 1968.
230 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
Mergulhar no interior da escola respeito devido a quem de direito: aos que
japonesa e analisar práticas peculiares têm mais idade, consequentemente mais
da cultura escolar propicia compreender experiência, ao Imperador, à família, aos
não só o contexto escolar, mas também costumes e às tradições.
a insistência de um povo distante de sua Para que a disciplina fosse mantida,
terra natal em manter seus costumes e castigos corporais eram utilizados. As crian-
tradições perpetuando sua cultura entre ças que não seguissem as regras discipli-
as novas gerações. nares, como o cumprimento de horários,
Nesse contexto, as festas e rituais o silêncio em sala, o respeito aos mais
tinham papel importante dentro da orga- velhos e o culto ao imperador do Japão,
nização escolar, pois eram uma forma de eram castigadas. Segundo depoimento
proporcionar experiências e vivências da da ex-aluna Yoshie Yonemura Sasaki, os
cultura japonesa. castigos corporais eram frequentes: “se
fizesse alguma coisa errada apanhava com
Rituais e festas varinha de marmelo”.
Para que o aluno recebesse uma
Analisar a história da Escola Japone- formação que articulasse corpo, mente
sa e Internato significa falar de uma cultura e alma e pudesse mergulhar um pouco
escolar peculiar, com tradições e costumes nas tradições japonesas, os rituais e festas
singulares segundo os quais o ensino era tinham um lugar de destaque.
pautado por diretrizes e normas disciplina- Segundo depoimentos de ex-alunos,
res similares às das escolas no Japão. Essa o ano escolar da Escola Japonesa e Inter-
escola não se restringia apenas ao ensino nato começava com a limpeza geral do
de língua japonesa, mas também de regras prédio, realizada por todos os alunos e pais
disciplinares, conteúdos e práticas que e, em seguida, com uma aula inaugural.
tinham como intuito a formação do corpo, O ano escolar terminava com a festa de
mente e alma, proporcionando subsídios formatura reunindo toda a comunidade. A
para que a criança, quando adulta, tivesse solenidade de formatura iniciava-se com
condições de viver no Japão. o hino nacional japonês, entrada dos for-
A questão da hierarquia era muito mandos, discursos dos diretores do Kaikan,
importante, pois esta era uma forma de entrega de certificados e premiações aos
manter a disciplina e criar hábitos para a alunos, discursos de encerramento e mú-
vida em família e sociedade. Na cultura ja- sica de entoada por todos os membros da
ponesa, o respeito aos mais velhos é muito escola. Da solenidade de formatura, todos
importante. Quando alguém de mais idade os alunos participavam, mesmo os não
fala, o mais jovem obedece sem discutir. formandos. A cada pessoa que tomava
A disciplina era rígida, com horários a tribuna para discursar, os alunos se
seguidos com precisão, e toda atividade a levantavam e faziam reverência, assim
ser realizada tinha um ritual indicativo do como cada formando fazia reverência ao
232 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
Havia várias festas durante o ano, rapazes saem correndo, cada um pega
mas gostaríamos de destacar as princi- um cartão e vai até o grupo de moças,
pais: a comemoração do aniversário do procurando e chamando pela jovem
Imperador do Japão, a festa da colheita cujo nome pegou. Assim que encontra
e o Undokay (gincana esportiva familiar). seu par, ambos devem correr de mãos
A festa em comemoração ao ani- dadas até a linha de chegada.
versário do Imperador do Japão, apesar f) O “Supuun reesu” – equilibrando um
de simples, era considerada importante. ovo em uma colher de sopa em uma
Segundo depoimento do ex-aluno Akira das mãos, as senhoras devem percorrer
Morioka, os alunos realizavam juramentos 50 metros sem deixar o ovo cair.
de lealdade e prestavam homenagens g) O “Karimono kyoso”, corrida do “em-
ao Imperador se posicionando e fazendo préstimo”, na qual meninos e meninas
reverências para o lado do sol nascente. correm numa pista que tem na metade
Segundo Akira Morioka, o Undokay do percurso cartões com o nome de um
acontecia sempre entre maio ou junho e objeto comum (cinto, lenço, relógio de
durava o dia todo. A festa, organizada pelo pulso, presilha de cabelo, pulseira etc.).
Kaikan, envolvia todas as famílias em um Cada um pega um cartão e vai até ami-
momento de encontro e de confraterniza- gos e familiares, pedindo emprestado
ção entre as gerações, com a participação o objeto citado no cartão. Assim que
em diversas atividades. As principais eram: alguém lhe dá o objeto, a criança volta
a) O “Gojyû meetoru kyoso”, corrida de 50 ao percurso para terminar a corrida e
metros para crianças. devolve o objeto a seu dono.
b) O “Hyaku meetoru kyoso”, corrida de 100 h) O “Tsunahiki”, cabo-de-guerra.
metros. i) O “Takara sagashi”, corrida da “caça ao
c) O “Riree”, corrida de revezamento 4 x 100 tesouro”, na qual se divide a distância a
metros. ser percorrida em 3 terços. A um terço da
d) O “Ninin sankyaku”, corrida de 3 pernas linha de partida, são colocados cartões
– amarra-se a perna direita de uma no chão, com o desenho de um objeto, a
pessoa à perna esquerda da outra e, dois terços são colocados fora de ordem
abraçadas pelos ombros ou pela cintura cartões com o nome de cada objeto
correm juntas por 50 metros. correspondente. As crianças devem sair
e) O “Yomesan sagashi”, corrida da “pro- correndo, pegar um cartão desenhado,
cura de noiva” – um grupo de rapazes chegar aos cartões escritos e encontrar
é formado na linha de partida, e um aquele que corresponde ao cartão dese-
grupo de igual número de moças é nhado. Assim que achar o cartão correto,
formado na metade do percurso da devem terminar o percurso.
corrida. Na metade da distância entre j) O “Taiya korogashi kyoso”, corrida de
os dois grupos, cartões com os nomes pneus.
de cada moça são deixados no chão. Os k) O “Kani kyoso”, corrida de caranguejo.
O Undokay era encerrado com as vara. Quando ele era quebrado, caia uma
crianças jogando bolinhas para quebrar chuva de pedaços de papel, como pode-
um recipiente que ficava no alto de uma mos observar na figura 05.
234 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
danças. Os rituais e festas eram mais do
que atividades escolares: eram momentos
de encontro das famílias e de reviver e
perpetuar a cultura japonesa entre as
gerações.
Considerações Finais
A Escola de Língua Japonesa e Inter-
nato de Pilar do Sul não apenas ensinava
os costumes, valores e tradições japonesas,
era a guardiã desses valores que constituí-
am a identidade e a memória de um grupo.
Dessa forma, ao estudar os rituais e
festas escolares não podemos reduzi-los a
momentos do cotidiano ou confraterniza-
ção, descontração e alegria, mas precisamos
entendê-los como momentos especiais, de
integração, de exaltação de valores e tradi-
Figura 05 - Crianças durante o encerra- ções de um grupo. Em outras palavras, os
mento do Undokay. rituais e festas eram momentos propícios
Fonte: Arquivo pessoal Miyo Yoshiba para a difusão de conhecimentos, normas
e valores legitimados pela escola e pela co-
A festa em comemoração à colhei- munidade japonesa. Compostos por normas
ta era o momento de agradecer a boa práticas com objetivos educativos, os rituais
colheita e confraternizar depois de meses e festas escolares revelam características
de trabalho, realizando danças por toda importantes da cultura escolar. Sendo pró-
comunidade e cantos. prios da cultura escolar, os rituais e festas
As festas reuniam os alunos e os transformam-se de acordo com o momento
pais: eram momentos em que os trabalhos histórico e, nesse sentido, são concebidos,
escolares eram expostos, os alunos e os apropriados e representados pelos sujeitos
pais faziam apresentações de música e envolvidos de diferentes maneiras.
Referências
236 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
A imprensa brasileira nos oitocentos e a história da
educação: Hipólito da Costa e o Correio Braziliense1
Brazilian press in eighteen hundred and history
of education: Hipólito da Costa and the “Correio
Braziliense”
Marcília Rosa Periotto*
* Doutora em História da Educação pela Universidade Esta-
dual de Campinas (UNICAMP/SP). Professora do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual
de Maringá (UEM/PR).
E-mail: mrperiotto@uem.br
Resumo
É um estudo sobre a relação imprensa e educação. A imprensa brasileira dos oitocentos é vista como uma
fonte profícua para o entendimento do processo educativo ao qual se submeteu a sociedade brasileira
em meio à construção de uma dada ideia de Nação nos albores do século XIX. Hipólito da Costa e o
jornal Correio Braziliense são, então, objetos de estudo, no qual o objetivo é analisar o debate travado em
nome da aplicação das ideias liberais em oposição ao absolutismo, cujo resultado consistiu na formação
dos brasileiros e contribuiu para levá-los ao movimento da independência, na medida em que contribuiu
com ideias necessárias ao enfrentamento político contra a metrópole portuguesa.
Palavras-chave
Imprensa-Educação. Hipólito da Costa-Correio Braziliense. Século XIX.
Abstrat
It is a study on the relationship the press and education. The Brazilian press of the eighteen century is seen
as a fruitful source for understanding the educational process to which Brazilian society was submitted
through the construction of a given idea of nation at the dawn of the nineteenth century. Hipólito da
Costa and the newspaper “Correio Braziliense” are then objects of study, in which the goal is to analyze
the debate made on behalf of the application of liberal ideas in opposition to absolutism, whose result
was the formation of the Brazilian, and helped lead them to the movement of independence, in that it
contributed to the necessary ideas for the political confrontation against the Portuguese metropolis.
Key words:
Press, Education. Hipólito da Costa-“Correio Braziliense”. nineteenth century.
1
Este artigo é parte do Relatório Final de pesquisa pós-doutora, realizada entre 2007 a 2009, na FaE/
UFMG. Foram apresentados em eventos e revistas da área temas correlatos ao texto.
238 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
de preservação, há ainda muito acervo surgiram no ano de 1808, um inaugurando
documental à espera de serem descober- a liberação da imprensa no Brasil, o outro
tos e expostos à luz do dia. Esse material na defesa de maior liberdade de expressão
aguarda constituírem-se em auxiliares para essa mesma imprensa como meio de
das pesquisas que se debruçam sobre propagação das ideias liberais.
o processo de construção da sociedade Após anos de esquecimento e em
brasileira nas mais diferentes perspectivas condições impróprias à preservação, os
teórico-metodológicas. jornais foram alçados à categoria de fontes
Igual constatação se observa em históricas. Essa assunção ao quadro dos
José Marques de Melo (2005), coordenador interesses dos pesquisadores referenda a
de uma coleção “que pretende mostrar a renovação temática na pesquisa e emerge
imprensa brasileira e os personagens que do esforço realizado em prol do desenvol-
nela fizeram história”, refere-se ao incêndio vimento científico e tecnológico brasileiro,
que “destruiu preciosos originais deposita- visando formar recursos humanos para as
dos nos prelos da Imprensa Nacional: mais diversas áreas do conhecimento, e
Esse episódio sinaliza a maldição que nas quais se inclui a educação e a história
se projetaria sobre a memória da nossa da educação.
imprensa, penalizada pela incúria ins- Quanto ao significado de fonte, é
titucional e desprezada pelas nossas oportuno explicitar que as fontes, por si
vanguardas intelectuais. Esse descaso só, não representam a História. Dermeval
em relação à memória da imprensa Saviani (2006, p. 5-6) afirma que as fontes
traduz em certo sentido a atitude pátria são apenas documentos que registram o
referente à própria memória nacional, movimento da história de inúmeras ma-
principalmente no âmbito da cultura neiras, entre as quais, a título de exemplo,
não erudita, condenando ao esque-
podem-se citar os achados arqueológicos,
cimento as instituições, os fatos e os
personagens que também fizeram
as vestimentas, as construções e estilos
História. (MELO, 2005, p. 1). arquitetônicos, o mobiliário, os pergami-
nhos etc., etc., até os jornais e revistas dos
Em oposição ao desmazelo no tempos da prensa e dos tipos inaugurados
trato da memória documental brasileira, por Gutenberg. As fontes, então,
o quadro hoje se apresenta promissor
[...] constituem o ponto de partida, a
com o surgimento de um debate sobre
base, o ponto de apoio da construção
a conservação da memória brasileira, e
historiográfica que é a reconstrução,
pela adoção de políticas que ensejam no plano do conhecimento do objeto
esse guardo em condições compatíveis histórico estudado. Assim, as fontes
aos grandes arquivos e bibliotecas estran- históricas não são a fonte da história,
geiras. Além disso, aumentam os estudos, ou seja, não é delas que brota e flui
interpretativos ou não, sobre a imprensa a história. Elas, enquanto registros,
brasileira desde que a Gazeta e o Correio enquanto testemunhos dos atos his-
240 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
de anúncios veiculados em jornais medida em que se instituíam em cartilhas
brasileiros do século XIX. Em 1935 pedagógicas, e nelas se encontrava, possi-
tornou público o ensaio “O escravo velmente, o único acesso de muitos a um
nos anúncios de jornal do tempo do saber restrito aos letrados.
Império”. (MURASSE, 2006, p. 2). Os jornais comportavam uma na-
Essas fontes, guardiãs do movi- tureza peculiar em relação aos interesses
mento histórico, permitem reconstituir os que previam ser incorporados pelos leito-
fatos históricos expressivos do processo res: ou eram noticiosos ou doutrinários.
contraditório das relações sociais, as quais Na visão de Marcos Bahé e Pierre Lucena
estão perfeitamente inoculadas no fazer de (2008), essa distinção será tomada pela
quem redigia as notícias, emitia opiniões historiografia de maneira rigorosa. Ambos
ou dos colaboradores que provavelmente alertam para o fato de que um jornal podia
aprontavam, com presteza e sob encomen- ser noticioso e doutrinário ao mesmo tem-
da, o discurso do grupo político a quem po, como se observa amiúde nas páginas
serviam. Na visão de Olinda Noronha, do Correio Braziliense:
[...] a investigação histórica tem de, A historiografia que lida com a im-
ao abordar as fontes documentais, prensa no Brasil nesse período, tanto
ter em conta que elas expressam no que concerne à forma quanto ao
a síntese de uma multiplicidade de conteúdo dos periódicos, costuma
determinações históricas. Expressam dividir a imprensa nascente em dois
as contradições e os conflitos de tipos: a doutrinária e a noticiosa. O
interlocutores aliados e adversários. noticioso se distinguiria do doutrinário
Deste modo, o diálogo com um do- pelas notícias oficiais – geralmente,
cumento histórico deve refletir uma logo nas primeiras páginas. Algumas
posição de leitura que o toma como vezes com cartas oficiais, decretos
síntese consensual do passado. E não Reais, estrangeiros ou locais. Contudo,
como a simples soma das vontades e no mais das vezes, as notícias eram
intervenções. (NORONHA, 1998, p. 33). de cunho administrativo. Por sua vez,
os periódicos de caráter doutrinário
A utilização de jornais e revistas do (embora as notícias oficiais e os
século XIX como fonte historiográfica, se acontecimentos também povoassem
ainda é recente, já deu sinais evidentes suas páginas) obedeciam a outra
de produção de bons frutos, crescendo ordem. Não traziam apenas notícias,
em número e qualidade os estudos sobre mas, sobretudo, artigos e cartas, não
como ‘descrições imparciais da reali-
a imprensa periódica que trata de temas
dade’, mas, antes, como argumento a
gerais, nos quais se incluem o debate ser provado. Mas, as notícias também
político, econômico e social. Não se deve estavam presentes. No cotidiano
esquecer, também, das manifestações desses dois periódicos, o doutrinário
culturais representativas do cotidiano de e o noticioso estavam imbricados
um povo, eivadas de caráter educativo na de tal maneira que dificilmente
242 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
repositório de incalculável riqueza históri- na Carta aos Senhores Eleitores da Provín-
ca. Sem eles, certamente, as transformações cia de Minas Gerais, de 30 de dezembro
das relações sociais no Brasil não seriam de 1827:
apreendidas em minudências, impedindo
Um dos mais profícuos meios de dis-
alçar as coisas mais comezinhas ao qua- seminar a instrução pelos membros
dro de construção da história nacional de uma sociedade é a liberdade de
como fatos e situações às vezes decisivas imprensa; a experiência das nações
ao desenrolar do processo histórico. cultas demonstra com evidência esta
Desse modo, aprofundar estudos verdade. Como poderia uma Nação
sobre a imprensa brasileira do século XIX chegar ao conhecimento do bom ou
e dos escritos que exerceram influência do mau procedimento de seus servi-
nos leitores da época resulta em análises dores, se não houvesse liberdade de
que expõem as concepções de sociedade o publicar pela imprensa. As informa-
imersas nos diversos projetos pensados ções raras vezes são exatas quando
os informantes não temem a pública
pela elite política e econômica. A viabi-
censura. E como se obteria o conhe-
lização desses projetos configurava um cimento dos fatos de que se pede
desenho de nação no qual os interesses informação, se a imprensa não os
dos estratos superiores eram praticamente publicasse? Demais é pela imprensa
as únicas demandas a serem cumpridas, que se propagam os conhecimentos
em detrimento das necessidades da popu- úteis. (VASCONCELLOS, 1978, p. 180).
lação pobre e livre.
A imprensa, na condição de fonte
histórica, resulta em estudos apropriados
A imprensa e a difusão dos conheci-
à historiografia educacional na medida
mentos úteis
em que algumas formas de análise são
A imprensa no Brasil surge a partir pertinentes ao desvelar dos processos
da liberação ordenada por D. João em educativos no século XIX. Entre as diver-
1808, com a fundação da Gazeta do Rio sas temáticas que emergem do estudo
de Janeiro, motivada pela necessidade de da imprensa, ressaltam as diretamente
publicação dos decretos reais e matérias vinculadas à educação, ou seja, anúncios
de interesse da Coroa. Logo surgiram vários sobre escolas, indivíduos que ofereciam
jornais, entre eles Idade d’Ouro do Brasil, seus préstimos para o ensino de línguas
na Bahia e O Patriota (1813-1814), no Rio estrangeiras, gramática, álgebra, os decre-
de Janeiro, e alguns jornais de oposição, tos governamentais destinados ao ensino,
defensores das ideias liberais e inimigos a importância e necessidade de oferecer
da aristocracia. instrução aos brasileiros etc.
A vinculação da imprensa com a A segunda forma não despreza
educação pode ser observada na fala de nenhum dos aspectos acima citados, incor-
Bernardo Pereira de Vasconcellos, redigida pora-os no sentido de revelar as relações
244 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
os quais a chamada história oficial, em A reação desencadeada pelos dois
razão das suas limitações interpretativas, deputados na corte portuguesa, abalizada
não conseguiu vislumbrar como funda- nos interesses brasileiros e representati-
mentais aos movimentos históricos pelos va da posição política de parte da elite,
quais passou a sociedade brasileira. demonstra o quanto a esta importava a
As circunstâncias históricas nas quais existência de um meio propagador do
se encontrava o Brasil nos oitocentos era pensamento capaz de dar unidade à luta
um impedimento descomunal no enfrenta- contra a permanência portuguesa na vida
mento das forças do passado. A imprensa, brasileira. A imprensa, difusora daqueles
notadamente a de oposição, supriu, em ideais de liberdade que haviam movidos
certa medida, a ausência de um ambiente os homens nos séculos anteriores e ainda
educativo e cultural propenso à difusão das os atormentava, circulou então com respei-
ideias e contribuiu, de forma significativa, tável liberdade no Brasil após o retorno de
na formação da elite contrária aos rumos D. João a Portugal, não dando tréguas ao
imprimidos pelos portugueses aos negócios governo nem àqueles que o apoiavam,
coloniais. Nos debates realizados no Con-
opondo-se às tentativas de retornar o Brasil
gresso Português em 1822, na Comissão
à condição colonial.
dos Negócios Sobre o Brasil, instalada no
Nesse momento se produziu uma
Congresso Português, acentuou-se a dispo-
imprensa educativa, forjada naquelas
sição de retornar o Brasil ao estado colonial:
matérias que sustentariam a opinião dos
Antonio Carlos e Zeferino dos Santos brasileiros contra os dissabores da admi-
desvendaram os verdadeiros intuitos nistração portuguesa, reformando a opi-
da Comissão: “Os brasileiros têm os
nião de Hipólito da Costa, jornalista editor
precisos conhecimentos dos seus
verdadeiros interesses, estão muito
do Correio Braziliense (1808-1822), sobre
adiantados em civilização, para serem a incapacidade dos brasileiros em se fazer
tratados como selvagens”, disse Anto- e ser governo, admitindo que os brasileiros
nio Carlos. “Eles vêem”, prosseguiu, “e estivessem preparados para o advento da
todo o mundo vê, a tendência oculta independência. Essa nova posição, sinal
desta medida. Portugal viria a ser o de- dos tempos e filha das circunstâncias
pósito único das produções do Brasil, históricas que se teciam em nome da se-
a ele só concorreriam os estrangeiros paração, ressalta o caráter educativo que
a fornecerem-se destes produtos, e
a imprensa, não só a de Hipólito, cumpriu
no mercado brasileiro desde então
naquele processo, tornando-se uma das
deserto de qualquer outra compe-
tência, ditariam leis os negociantes fontes mais propícias ao movimento po-
portugueses e os seus agentes, e deste lítico da elite contra o governo português.
modo restabelecer-se-ia indiretamente A leitura que se faz sobre a ins-
o odioso comércio exclusivo colonial. talação da imprensa e de seu desenvol-
(RODRIGUES, 1975, p. 125). vimento no Brasil no decorrer do século
246 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
condução das atividades mercantis, numa e Brasil fazia-se mais seguramente
política de salvaguardar os interesses lusi- através dos navios ingleses que não
tanos, já abalados seriamente na Metrópo- eram vistoriados pelas autoridades
le posteriormente aos desdobramentos do portuguesas. (TENGARRINHA, 1965,
p. 222-3).
embargo napoleônico e da assinatura do
Tratado de 1810 com os ingleses. A Inglaterra, na primeira década dos
A atuação político-educativa do oitocentos, não só se tornara local de aco-
jornal foi de 14 anos, tempo suficiente lhimento dos exilados portugueses, Hipólito
para marcar o processo separatista com da Costa, principalmente, mas também
conteúdos liberais. Escrito e editado em espaço onde a oposição aos governantes
Londres, proibido e contrabandeado ao portugueses se organizou na forma de
Brasil, o Correio expressou a emergência jornais e periódicos políticos, atuando com
de um novo tempo trazido pela consoli- críticas profundas à incapacidade da no-
dação definitiva da sociedade burguesa breza no exercício do poder e nas decisões
com a Revolução Francesa. Conforme José inapropriadas aos interesses do reino.
Tengarrinha, Desse modo, muito mais que ao Rei,
O aparecimento de jornais escritos as admoestações da imprensa de oposição
em português no estrangeiro em visavam atingir à aristocracia e aos conse-
considerável número e com grande lheiros reais, cujas opiniões baseavam-se
vitalidade nos anos que antecede- no velho regime, na compreensão da eco-
ram a Revolução Liberal de 1820 foi nomia política versada no mercantilismo
um fenômeno inteiramente novo na e completamente alheia ao estágio de
história da imprensa lusa. (TENGAR- desenvolvimento material da sociedade de
RINHA, 1965, p. 219). então e das ordenações que esta produzia.
A escolha da capital inglesa como Recorrendo mais uma vez a Tengar-
base do jornalismo de contestação ao go- rinha (1965, p. 226), sabe-se que a impren-
verno português e também de refutação ao sa portuguesa, no período de ocupação
mesmo jornalismo, para Tengarrinha, deu- francesa, desfrutou de condições excepcio-
se em razão de Londres ostentar o signo nais de existência garantidas pelo próprio
de “vértice decisivo na relação triangular governo português, isto numa situação
com Lisboa e Rio de Janeiro”: oposta ao que existia anteriormente a
Napoleão, embora na primeira ocupação,
Londres era, ainda, o centro dos
negócios do mundo, além dos de
Junot, general francês que ficou com o
Portugal, garantindo mais facilidades mando do poder em Portugal, exercesse
de comunicação com o Brasil do “intensa vigilância”. De coibida, controlada,
que através de Lisboa. Aí chegavam foi estimulada ao ponto de, em 1809, circu-
de todo o mundo as mais rápidas e lar livremente 24 jornais recém-fundados
abundantes informações. Além de e assim existir até a derrota dos franceses
que o envio dos jornais para Portugal em 1810.
248 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
combatiam as idéias mais avançadas, alguns momentos revolucionários como o
destruindo as prensas, confiscando os foram na América Espanhola, mas todos
tipos e aprisionando os responsáveis. exclusivamente relacionados ao avançar
No território francês, por exemplo, da sociedade burguesa nas colônias ultra-
o clero detinha o poder da palavra marinas, e nas quais se esperava afirmar
e censurava todos os escritos que
práticas políticas e econômicas mais avan-
considerava ameaçadores ao poder
e dominação que exercia. (CINQUE,
tajadas ao grau de desenvolvimento mate-
2007, p. 2). rial obtido por algumas nações europeias.
O caminho que levou os brasileiros
Embora tardiamente, as ideias liber- a conquistarem a independência não foi
tadoras se difundiam, e “quem quisesse, curto nem fácil. Enormes obstáculos se in-
no Brasil, publicar alguma coisa, percorria terpunham a uma ação mais concatenada
um longo caminho. Todo o original devia por parte dos insatisfeitos com o governo,
ser inicialmente enviado ao ministro dos entre eles a exiguidade do debate, em
Estrangeiros e da Guerra. Dali ia ser exa- razão da pobreza das ideias, embora elas
minado pelo Desembargo do Paço e pela já circulassem, sem que tivessem, no en-
mesa Censória” (LUSTOSA, 2000, p. 106). tanto, ampla competência, além do temor
A providência de 14 de outubro de 1808 de conflitos prejudiciais aos envolvidos. Em
exigia que tudo a ser publicado passasse suma, sabia-se da necessidade de prepa-
antes pela Junta Diretora, fato que sugere rar os brasileiros e também portugueses
a Martins que “a introdução de uma im- descontentes com aquele estado de coisas
prensa oficial no Brasil não correspondeu a um enfrentamento político mais conse-
à implantação automática da liberdade de quente, definido por propósitos plausíveis
pensamento (pode-se mesmo, presumir e expressivos de uma camada avolumada
facilmente que, de certa forma, ela serviria de indivíduos.
para cerceá-la)” (MARTINS, 1978, p. 309). Hipólito da Costa não esteve alheio
Se a inauguração da Gazeta do Rio àquele jogo de forças. Vítima da opressão
de Janeiro, em 1808, voltada à publicação portuguesa e da intolerância religiosa –
dos atos oficiais abriu caminho para outros na qual a Igreja se movia pelo receio de
órgãos da imprensa, o fato é que a partir difusão e consolidação do pensamento
dela surgiram outros jornais, periódicos e liberal que lhe eram tão desfavoráveis –,
gazetas, muitos com o propósito de atingir inaugurou seu jornal já decidido qual o
o governo monárquico e denunciar os caminho tomaria naquele embate entre o
privilégios exclusivos dos portugueses e velho e o novo mundo, quais os princípios
tornando a circulação do pensamento seriam seguidos a fim de conduzir seu in-
liberal fato corriqueiro nos maiores centros tento com sucesso e, principalmente, como
urbano de então. organizaria sua obra a fim de cumprir a
O nascimento do Correio orientou-se tarefa que escolheu enquanto militante
pelas exigências dos novos tempos, em das forças avançadas.
250 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
trataria e transcreveria no jornal seguindo lo consciente aos coloniais, tendo enorme
um plano estabelecido, cumpriu sua tarefa participação na formação da intelectuali-
e se fez também responsável pela vinda dade brasileira das décadas seguintes e
da independência. objeto de admiração e de estudos pela
Todo o seu esforço se concentrou, clareza e consistência de suas ideias até
portanto, em realizar na colônia-pátria o os dias de hoje.
movimento peculiar ao período das luzes, Portanto, no quadro das ideias de Hi-
ou seja, nela disseminar a importância pólito e da “vocação pedagógica” (PAULA,
de se adotarem as leis progressistas 2001, p.12) do Correio, exercida com zelo
mostrando-lhes os seus benéficos resul- por autor e criatura, se confirmam um dos
tados. Dessa feita, as ideias que defendeu momentos ricos na construção do processo
nas páginas do Correio situavam-se no histórico da educação no Brasil. Acredita-
interior do debate entre as forças novas se que nele esteja dada a possibilidade
e velhas, na condição de aportes teóricos de extrair elementos para a história da
que propendiam a determinar os passos educação, observando-se o que Maria
que os coloniais deveriam dar em nome de Lourdes Janotti (1977, p. 10) salienta a
do desenvolvimento material. respeito da historiografia brasileira, isto é, a
Ao utilizar a imprensa como meio necessidade de “uma historiografia afinada
de divulgação do novo já em prática na com o problema histórico”, e não apenas
Europa, o jornalista do Correio quis torná- descritiva dos fatos e acontecimentos.
Referências
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brasileira, set./2008. Blog Acerto de Contas. Disponível em: <http://acertodecontas.blog.br/artigos/o-
noticioso-e-o-doutrinario-nos-primeiros-periodicos-da-imprensa-brasileira/>. Acesso em: 17 ago. 2008.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da Historiografia. São
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CINQUE, Fernanda Regina. A educação no pensamento de Hipólito José da Costa: a ação pe-
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Brasília, DF: Correio Braziliense, 2003. (Edição fac-similar). v. 1-29.
252 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico – edu-
cação religiosa e normas de conduta para mulheres
From Eve to Mary: the Church and catholic marriage
– religious education and standards codes of conduct
for women
Jane Soares de Almeida*
Calil de Siqueira Gomes**
* Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade de Sorocaba (UNISO) e pesquisadora do
CNPq. E-mail: janesoaresdealmeida@uol.com.br
** Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção da Universidade de Sorocaba (UNISO).
E-mail: calil.buri@hotmail.com
Resumo:
Este artigo busca resgatar a condição histórica das mulheres marcada pelo domínio masculino, sob a
perspectiva do vínculo matrimonial católico e sua interface com a educação religiosa. Historicamente
esquecidas e ignoradas, as mulheres foram atingidas por estereótipos, culturalmente originados na
Igreja Católica, em relação à sexualidade humana. Alvos de extremada contenção no seio da Igreja, que
incutiu paradoxos, valores e princípios baseados na pureza e meritocracia de fundo sexual, as mulheres
foram as principais destinatárias da ideologia religiosa. Nestas, especialmente, incidiam as penalidades
ou perda de direitos religiosos em caso de transgressão. A educação religiosa, objeto de severas normas
de conduta dentro do matrimônio católico, se erigia ad eternum para a edificação moral das mulheres
e as tornava reféns de ligações matrimoniais irresolutas com a plenitude individual.
Palavras-chave
Igreja Católica. Mulheres. Matrimônio.
Abstract
This article seeks to rescue the historical condition of women marked by male domination, from the
perspective of catholic marriage bond and its interface on religious education. Historically forgotten and
ignored, women were affected by stereotypes, culturally originated to the Catholic Church regarding hu-
man sexuality. Targets of extreme pure contention within the Church, which instilled paradoxes, values
and principles based on purity and meritocracy deep sexual, women were the main recipients of religious
ideology. In these especially focused penalties or loss of religious rights in case of transgression. Reli-
gious education, subject to strict standards codes of conduct within the catholic matrimony, if erected ad
eternum for moral edification of women and made them hostages irresolute matrimonial connections
with individual fulfillment.
Key words
Catholic Church. Women. Marriage.
254 Jane S. de ALMEIDA; Calil de S. GOMES. De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico...
uma pedagogia do temor e da culpa, que da expectativa que se tinha da conduta
fazia as mulheres reféns de sua própria considerada certa ou desviante, reprimia e
aura de sedução e capacidade de despertar castigava com a mesma intensidade com
o desejo masculino. a qual criava um esquema de simbologias
A figura do confessor no interior acerca dessa alteridade. Esta poderia estar
das residências, bastante frequente nos na contravenção das expectativas que
séculos XIX e XX, demonstrava a influência o segmento dominante elaborou para o
da sacralidade católica no regramento da desempenho de papeis, fossem eles de
conduta feminina, numa prática voltada natureza sexual, religiosa ou educativa,
para a consciência do pecado que tinha quando não se alinhavam com suas nor-
suas origens no sexo. Por carregar a nódoa mas e regras de conduta.
do pecado original, a mulher deveria ser Esse olhar revelava – como traços
vigiada, mesmo que isso significasse tolher essenciais da alteridade daqueles que
sua liberdade, abafar sua individualidade estão em situação de dominados – frag-
e privá-la do livre arbítrio. mentos imperfeitos, feixes de informações
A religiosidade, pela estreita relação que não eram reveladores da profundidade
que possui com o mundo sobrenatural, e da essência de sua cultura. No entanto,
se revestia de caráter disciplinador e, ao mesmo os atores sociais reduzidos ao si-
mesmo tempo, consolador. Herdeira da lêncio, sempre possuíram formas próprias
tradição e ancorada no território do sa- de se expressar pelas tradições, costumes
grado, a ideologia religiosa atuava como religiosos ou profanos, escritos íntimos,
reguladora da consciência e estabelecia reveladores do sentido da História, enco-
conexões com vários aspectos da práti- bertos em sinais e revelados nos contornos
ca social como a vida cotidiana, a fé, a mágicos dos mitos (GINZBURG, 1989).
economia, a política, a festa, os rituais, a
educação e as relações entre os sexos, es- Mulheres e religião nas imagens do
culpindo assim as interfaces da cultura na cotidiano
convivência entre os seres humanos. Nesse
universo, conviviam as questões ligadas Ginzburg (1989, p. 143) refere-se ao
à subjetividade, à identidade, ao sonho, à paradigma que emergiu no século XIX,
magia, às crenças e às representações. As ainda não explicitamente teorizado, que
simbologias referentes ao sexo feminino pode “ajudar a sair dos incômodos da con-
emergiam como categorizações distintas traposição entre racionalismo e irraciona-
do mundo masculino, sendo vistas como lismo”, o que denominou “saber indiciário.”
portadoras de diferenças relacionais. Ao abordar as possibilidades de recriar o
O olhar dominante, no exercício das passado pelos fragmentos do cotidiano de
relações de poder, também era passível personagens comuns, introduz uma visão
de atribuir defeitos e qualidades nas suas diferenciada para fazer História, não mais
relações de alteridade e, dependendo apenas a vista pela ótica dos vencedores.
256 Jane S. de ALMEIDA; Calil de S. GOMES. De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico...
pressam uma ética própria, voltada para na religião as metáforas e analogias para
a vida material plenamente desfrutada definir mulheres-mães com atributos de
como uma maneira de se aproximar de santas, abnegadas, anjos de bondade e
Deus. No protestantismo, a figura do pastor pureza, qualidades que todas deveriam
é de interlocução, e homens e mulheres possuir para serem dignas de coabitar com
somente devem prestar contas de seus atos os homens e com eles gerar e criar filhos.
diretamente ao Altíssimo.
Os demais credos que perpassam a A Igreja Católica e seu papel na edifi-
organização cultural brasileira também se cação moral das mulheres
valem da dimensão sobrenatural, que visa
preparar os seres humanos para enfrentar A Igreja Católica associava a fi-
a sua suprema angústia existencial que gura das mulheres, feitas à imagem de
é o medo da morte. As diversas seitas Maria, com a pureza de corpo e espírito,
religiosas sempre souberam explorar esse enquanto as desviantes, transgressoras,
medo; e o temor do que esperar após o fim principalmente as prostituídas, seriam
da existência se configura como fórmula ligadas à maldade, à perfídia, ao pecado
infalível para manter a dominação sobre e à decadência. Se as primeiras eram o
seus fiéis. espírito e a santidade, as outras seriam
Quanto às mulheres, um mode- carnais e pecadoras, levando os homens
lo normativo, criado desde meados do à corrupção do caráter e do corpo. Ambas
século XIX, inspirado nos arquétipos do deveriam ser submissas e dependentes,
Cristianismo, espelhava a cultura vigente pois a ordenação social assim o exigia; e
instituindo formas de comportamento, a ordem natural das coisas não deveria
em que se exaltavam virtudes femininas ser questionada por aquelas que eram as
como castidade e abnegação, forjando destinatárias de um processo de controle
uma representação simbólica por meio ideológico altamente repressor quanto à
de uma ideologia imposta pela religião e sexualidade.
pela sociedade, na qual o perigo era, prin- A ideia de sexo para as mulheres
cipalmente, representado pela sexualidade. honradas estava intimamente ligada à
Essa ideologia desqualificava as mulheres negação do corpo feminino, com o poten-
do ponto de vista profissional, político e in- cial explícito do prazer sexual. As mulheres
telectual, partindo do “pressuposto de que não deveriam sentir paixão ou desejo no
a mulher em si não é nada, de que deve intercurso sexual e, de preferência, man-
esquecer-se deliberadamente de si mesma ter a castidade, mesmo no casamento. A
e realizar-se através dos êxitos dos filhos e forma de preservar essa castidade seria
do marido” (RAGO, 1991, p. 65). relacionarem-se sexualmente apenas para
O uso de uma linguagem mística a procriação, evitando os excessos que
para qualificar o papel feminino era utiliza- causariam dano à saúde e à vida espiritual
do pela ideologia cultural, a qual buscava feminina.
258 Jane S. de ALMEIDA; Calil de S. GOMES. De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico...
tado se configurou como o único espaço A Igreja Católica normatizou a moral
aceito socialmente para a prática da se- cristã com a instituição do sacramento do
xualidade, com objetivo exclusivo para a matrimônio como monogâmico e indisso-
procriação. Excluindo-se essa necessidade, lúvel, transferindo suas celebrações, até
o demais era considerado uma perversão então simples, das casas de família aos
e resultava na condenação da bastardia templos, em cerimônias conduzidas por
e toda uma descendência seria assim bispos e sacerdotes. A sua estruturação
contaminada. Uniões não ungidas pelos legitimava o uso dos prazeres carnais,
sacramentos católicos eram condenadas logicamente voltados para o fim natu-
e empurravam os casais assim formados ral. A procriação, como dívida conjugal,
para o degredo social. tornou-se algo obrigatório dentro do
Ao mesmo tempo, nos vários devires contrato estabelecido. Porém qualquer
históricos, a Igreja Católica adotou uma po- ardor na relação carnal entre os cônjuges
sição paradoxal em relação ao matrimônio, era expressamente proibido e condenado
pois houve católicos que o aceitavam, na veementemente, necessitando-se de con-
possibilidade do uso legítimo da sexuali- fissão para ser edificada como uma vida
dade; outros que não permitiam qualquer saudável: “por meio da confissão, a Igreja
tipo de concubinato e insistiam na virtude Católica controlava as palavras, os pensa-
de viver uma ascese mais contundente mentos, os desejos carnais, o prazer e os
por meio da castidade, da virgindade e da pecados que envolviam os atos sexuais”
(FOUCAULT, 1988, p. 26).
continência para entrar no reino dos céus.
Marx (1990) reforçou a ideia de
A instituição católica impôs o ca-
que a dessacralização do poder da Igreja
samento para dar vazão à sexualidade e
retirou os véus da ilusão religiosa. Eviden-
como um freio para os libertinos, por conta
ciou o procedimento malthusiano que põe
da frequência do incesto, da sodomia e
em relevância a dominação masculina,
das ligações livres. Para corrigir realidades
na qual a procriação deixaria de ser a
similares, Paulo, o apóstolo dos gentios,
finalidade principal do casamento, e os
descreveu o matrimônio: “para evitar a
propósitos econômicos e psicológicos
fornicação, tenha cada homem a sua mu- do casal passariam a serem os objetivos
lher e cada mulher o seu marido. Contudo, centrais. Para Marx, a ideologia do amor
digo às pessoas solteiras e às viúvas que é romântico, usada para justificar a ausência
bom ficarem como eu. Mas, se não podem dos filhos, seria uma profanação da sacra-
guardar a continência, casem-se, pois é lidade do matrimônio, “tudo que era sólido
melhor casar-se do que ficar abrasado” e estável evapora-se, tudo que era sagrado
(1CORÍNTIOS, 7,1.9)1. é profanado, e os homens são, finalmente,
obrigados a encarar com serenidade suas
1
Bíblia de Jerusalém, 1989, p. 2156. Primeira Epís- condições de existência e suas relações
tola de São Paulo aos Coríntios. recíprocas” (MARX; ENGELS, 1990, p. 79).
260 Jane S. de ALMEIDA; Calil de S. GOMES. De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico...
impedimentos dirimentes, anulantes ou agredir muito [...]. Por causa de suas
mantidos ocultos; quando falta a forma infidelidades sempre me agredia, por
canônica na celebração do sacramento. conta de eu questioná-lo.2
Atualmente isso se configura numa A Igreja Católica não permite o di-
situação muito complexa, que afeta dire- vórcio, seguindo uma tradicional linha de
tamente a vida dos cônjuges, em especial pensamento apoiada nos ensinamentos de
às mulheres, por causarem profundas e Jesus de Nazaré, segundo a qual o matri-
amargas tristezas nos relacionamentos. Eti- mônio é indissolúvel: “Todo aquele que re-
mologicamente, a palavra cônjuge, jugum, pudiar sua mulher e desposar outra comete
era o nome dado pelos romanos à canga adultério, e quem desposar uma repudiada
ou aos arreios que prendiam os animais por seu marido comete adultério” (LUCAS,
às carruagens. O verbo conjugare, de cum 16,18; MARCOS 10,11). Os textos bíblicos
jugare, entre outros sentidos, significa reafirmam a indissolubilidade, rejeitando a
a união de duas pessoas sob a mesma possibilidade de repudiar a mulher. O laço
canga, onde conjugis quer dizer ligado ao matrimonial é considerado irrevogável para
mesmo jugo ou ao mesmo cativeiro. a participação no ágape divino3.
A união conjugal tem passado
A declaração de nulidade de um ato por diversas crises sociais, econômicas e
que não existiu religiosas, que ganharam destaque nas
É bastante comum existirem coa- mais diversas camadas sociais. A cada dia
ções e pressões sociais para o casamento, acontecem matrimônios fracassados. As
pelos motivos de perda da virgindade ou explicações podem ser várias e, dentre elas,
em caso de gravidez. Existem violências a imaturidade, a infidelidade, os transtornos
verbais de baixo calão que ferem a digni- psicológicos e afetivos, a falta de respon-
dade das mulheres e implicam traumas e sabilidade com as obrigações e deveres
cicatrizes visíveis em suas almas. A justifi- conjugais, como a subsistência da prole. A
cativa se insere na pedagogia do domínio culpa, a compaixão, o ódio ou a preocupa-
masculino, a masculinidade como nobreza, ção com os filhos, motivada na sua essência
pesquisada por Bourdieu (1998), paradoxal por necessidade econômica, fazem que os
e sem sentido, na crença tão difundida
entre ambos os sexos, segundo a qual as 2
Excerto de depoimento retirado de um processo
mulheres são mais frágeis e precisam ser de nulidade de matrimônio. Por razões imperativas
dominadas. de sigilo, os nomes e fontes sempre serão omitidos.
Aponta-se a dificuldade de se lidar com esses da-
Eu só me casei porque estava grávida.
dos, pela necessidade de manter os envolvidos no
Os problemas da vida a dois continu- abrigo da privacidade, assim como o difícil acesso
aram. Se não bastassem as discus- aos mesmos.
sões e tensões, após o nascimento 3
Bíblia de Jerusalém (1989, p. 1912 e 1961). Evan-
de minha filha [...] ele começou a me gelho de Lucas e Marcos.
262 Jane S. de ALMEIDA; Calil de S. GOMES. De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico...
para cuidar da família e do lar. Desse modo, Os desiquilíbrios que envolvem a
caracterizaram-se dois mundos, um da ruptura das tradições, dos usos e costumes,
dominação masculina (BOURDIEU, 1998), das mentalidades estagnadas em práticas
produtor, com função paternalista; e o outro ultrapassadas tornaram-se terreno fértil
de submissão, interno e reprodutor, que foi ao surgimento de conflitos, evidenciando
mantida pela Igreja Católica por longo tem- as desavenças e violência emocional e
po, reservando para o sexo feminino uma psicológica, cujo ápice se revela na vio-
educação de controle, na qual se incluía lência física. Nos processos de nulidade,
a virgindade, a restrição ao exercício da destacam-se as dificuldades e as falhas
sexualidade e a sacralização da materni- no cumprimento de papéis de gênero,
dade. Porém homens e mulheres, maridos especialmente quando as mulheres são
e esposas estavam sujeitos aos ditames alvo de reações adversas:
religiosos quanto à esfera da sexualidade: [...] Falou palavrões, me bateu tanto,
O catolicismo condenava, em primei- me chutou, me pegou pelos cabelos,
ro lugar, a sexualidade autônoma, encostou um canivete em meu rosto
rebelde, que se recusava a obedecer [...] corri desesperadamente e me es-
ao princípio da procriação. Como condi num paiolzinho [...] fiquei toda
o onanismo, a sodomia, etc. Em machucada e suja.5
segundo lugar, a sexualidade fora Diminuiu-se consideravelmente a
do casamento, que pretendia gozar crença da segurança nos relacionamentos
de liberdade sem responsabilidades.
matrimoniais. A separação, apesar de ser
Como no caso do adultério. Em tercei-
um trauma familiar doloroso, tornou-se
ro lugar, a sexualidade que, embora
legal, fosse excessiva. Que incorresse para muitos/as um remédio útil e neces-
não só na infração do prazer gra- sário. No contexto religioso, e na visão da
tuito, sem reprodução, mas também Igreja Católica, a família é a célula mater
no excesso de devoção amorosa ao da sociedade. Esse conceito leva à preser-
cônjuge. (COSTA, 1979, p. 227). vação do matrimônio a todo custo, dificul-
tando sua dissolução na esfera religiosa,
Com a emancipação das mulheres,
o que não acontece no espaço civil, com
surgiu uma nova postura, e impôs-se uma
o divórcio perante a lei. Para o catolicismo,
redefinição ao modelo ideal de família. Ao
é uma prova de amor a Deus viver o sofri-
entrarem no mercado de trabalho, estas
mento como martírio no cotidiano (JOÃO
deixaram o lar e passaram a cobrar dos
PAULO II, 1994, p. 17). Conforme prega
homens a responsabilidade na divisão das
o Cristianismo, a vida eterna impõe-se à
tarefas. Ao se aliarem com os tempos em
felicidade terrena.
que se reivindica a igualdade entre ho-
mens e mulheres, estas também exigiram
a contrapartida no vínculo conjugal, como 5
Excerto de depoimento retirado de um processo
a fidelidade, o respeito, a harmonia. de nulidade de matrimônio.
ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: DEL PRIORE. História
das mulheres no Brasil. São Paulo: Editora da Unesp, 1997.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 4. reimpressão. Primeira Epístola aos Coríntios, Evangelho de Lucas e
Marcos. São Paulo: Paulinas, 1989.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11. ed. Tradução Maria Helena Kühner. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
COSTA, Jurandir Freire da. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
Volume I.
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade. Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades
modernas. São Paulo: Editora da Unesp, 1993.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
HOUTART, François. Sociologia da religião. São Paulo: Ática, 1994.
JOÃO PAULO II. Carta às famílias. Nº 256. Documentos Pontifícios. Petrópolis: Vozes, 1994.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Global, 1990.
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São
Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
264 Jane S. de ALMEIDA; Calil de S. GOMES. De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico...
Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y
asuncenos – a Revolucao dos Comuneros e a suas
consecuencias no espaco das misiones
Conflict and territorial disputes between jesuits
and asuncenos – a Comuneros Revolution and its
consequences in the missions
Mercedes Avellaneda*
* Doctora en Antropología pela Universidad de Buenos
Aires Pesquizadora e profesora do Instituto de Antropología,
Sección Etnohistoria. E-mail: bocca@fibertel.com.ar
Resumo
A lo largo del siglo XVII, los jesuitas establecieron en el Paraguay unas treinta reducciones, que fueron
por 150 años la prueba más fehaciente del éxito de su empresa evangelizadora en América. Sin embargo
la expansión del frente misional produjo tensiones permanentes con los asunceños que terminaron por
manifestarse en un conflicto de gran envergadura a principios del siglo XVIII que el P. Lozano llamó la
Revolución de los Comuneros. El presente trabajo intenta, develar los conflictos suscitados entre asun-
cenos, jesuitas y guaraníes en la frontera del río Tebicuary y ahonda en las consecuencias de la intensa
movilización de las milicias guaraníes durante ese período en el territorio misionero y busca dar cuenta
del impacto de la Revolución de los Comuneros sobre la alianza jesuita guaraní.
Palabras-claves
Milicias Guaraníes. Comuneros de Paraguay. Reducciones Jesuitas.
Abstract
Throughout the seventeenth century, the Jesuits established in Paraguay thirty settlements, which was
for 150 years the best evidence of successful evangelization in America. However, the expansion of the
mission produced permanent tensions with Asuncenos that eventually manifest in a major conflict in
the early eighteenth century that the P. Lozano called the Revolution of the Communards on Paraguay.
This study tries to reveal the conflicts arising between Asuncion, Jesuit and Guarani at the border of river
Tebicuary and goes into greater detail about the consequences of the intense mobilization of militias
Guarani during that period in the mission territory and seeks to account for the impact of the Revolution
of the Communards on the alliance Jesuit- Guaraní.
Key Words
Militias Guarani. Communards of Paraguay. Jesuits Reductions.
El cuadro revela que los efectos de censo con el número más bajo de fugitivos
la guerra fueron muy importantes en los de todos los pueblos y también Trinidad,
dos pueblos más próximos al Tebicuary y que al contrario presenta numerosas fa-
en el más importante sobre el Paraná, sin milias de huidos. Esto último revela que
duda, por tener que socorrer por más las fugas no solo fueron causadas por el
tiempos a las milicias apostadas en sus desabastecimiento de las misiones sino
proximidades. Lozano lamentaba que la también por el descontento general que
fundación de San Antonio de Padua en reinaba en su interior. En las reducciones
el Aguapey con indios de Loreto, había donde había más huidos, el censo señala
sido abandonada y que los guenoas y que algunos de ellos faltaban por más
los guañanes que incursionaban en la de tres y cuatro años de los pueblos. Se
banda oriental del río Uruguay, se resis- daba que dentro de un mismo cacicazgo
tían a reducirse. Los esfuerzos realizados se encontraban familias que iban dejan-
para evangelizar los indios apalabrados do la comunidad de manera escalonada.
quedaban en la nada por el descontento Así encontramos algunos fugitivos de
general y no poder garantizarles la sub- tres años, y numerosos de dos y un año.
sistencia en los primeros años. Según las Muchos eran jóvenes parejas entre los 20
cartas anuas pocas eran las reducciones y 30 años con hijos y solo algunos pocos
del Paraná que se salvaron de la destruc- pasaban los 40 años. En las reducciones
ción del ganado. Estas fueron Santa Ana más próximas al Tebicuary como Santa
Mini y San Ignacio Mini, que figuran en el Rosa, San Ignacio Guazú y Nra. Sra. De la
Total de Almas x censos Año 1732 Año 1735 Año 1736 Año 1740 Año 1741
Reducciones del Paraná S/D 39157 32.738 31.658 32.418
Reducciones del Uruguay S/D 72451 69.983 42.252 44.542
Totales generales 141.242 111.608 102.721 73.910 76.960
Si tenemos en cuenta que las re- lado del río Uruguay se encontraban los
ducciones del Uruguay fueron golpeadas lusitanos que impedían a los guaraníes,
por la peste y que el recuento efectuado vaquear con libertad para abastecerse. Lo
por Lozano de los muertos entre 1732 y mismo sucedía al sur de las reducciones
1740 para todas las reducciones, haciende con los charrúas y abipones y al norte
a 36,546 personas podemos deducir que con los payaguás. El espacio externo de
hasta el año de 1740 el proceso de éxodo las reducciones dejó de ser un lugar se-
de las reducciones prosiguió declinando y guro por donde transitar y buscar ganado
se fugaron de ellas una 40 mil personas. cimarrón. La sucesión de epidemias y la
Como vemos la intensidad de ese proceso declinación demográfica hasta fines de
fue muy violento, las cartas anuas de esos 1740 nos señala lo difícil que fue encontrar
años describen la tragedia de los pueblos una solución al problema del hambre. Por
con todo el dramatismo del padre Lozano todo ello, podemos decir que la revolución
y las cifras que manejamos concuerdan
con la magnitud de las perdidas. 9
Estos censos se encuentran en el Archivo de Roma
Además de los inconvenientes sus- de la Compañía de Jesús y por gentileza del padre
citados al interior de las misiones, al otro Martín Morales accedí a fotocopiar los originales.
Documentos consultados
Resumo
O objetivo deste estudo é identificar, no plano legal, as políticas relacionadas à Educação Profissional
de Ensino Médio Integrado, no contexto da reforma do Estado brasileiro. Esse objetivo parte da seguinte
hipótese: a política pública do município de Campo Grande, MS, quando trata da implantação de políti-
cas educacionais de ensino médio integrado à educação profissional – técnico em agropecuária – visa
atender aos arranjos produtivos locais, formando profissionais para atender as novas formas de trabalho e
produção. Para atingir o objetivo proposto, o caminho percorrido foi o histórico-analítico em que adotamos
o procedimento da pesquisa documental.
Palavras-chave
Políticas Educacionais. Trabalho e Educação. Ensino Médio Integrado
Abstrat
The objective of this study was to identify the legal plan politics related to Integrated High School Vo-
cational Education, in the context of the Brazilian State’s reform. This objective departs of the following
hypothesis: the public policy of Campo Grande’s municipality, when dealing with the implementation of
educational policies of high school integrated into the professional education – agricultural technician,
aims to meet the local productive arrangements, forming professionals to meet the new forms of work
and production. To achieve the objective proposed the road traveled was the analytical history that we
adopted the procedure of documentary research.
288 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
incorrer sobre: desarticulação do currículo tuiu a legislação de 25 anos anteriores3,
integrado (art.8), a uniformização do cur- trazendo avanços significativos: a inclusão
rículo (art. 11), currículos em módulos (art. da educação infantil como primeiro pas-
13), democratização de oportunidade (art. so da educação básica e a possibilidade
4), docentes da formação específica (art. de mudanças nos critérios de acesso às
16), a questão da autonomia (art. 25 a 29 universidades. Com a vigência da Lei n.
e 31 a 34) e a desobrigação do Estado com 9.394/96, sai de cena o PL n. 1.603/96, “com
a educação tecnológica (art. 6 e 32); dentre a justificativa de que ele não estaria em
outros aspectos separava obrigatoriamente consonância com a referida lei máxima da
o ensino médio da educação profissional. educação nacional” (OLIVEIRA, 2003, p. 54).
Dada à relevância das questões A LDBEN/964 definiu os fins e os
relacionadas à educação profissional, o meios da área educacional, incorporou
governo de FHC propôs a discussão do como objetivo da educação a preparação
referido projeto, com a sociedade, por meio e a qualificação para o trabalho. Esse do-
de audiências, simpósios, seminários e cumento delimita o seu objeto específico
encontros2. Entretanto o que se viu nas ao separar a educação informal da edu-
audiências públicas em todo país foi a cação escolar ou formal; afirma que “esta
rejeição de quase todas as propostas do lei disciplina a educação escolar, que se
Projeto de Lei. O PL n. 1.603/96 não agra- desenvolve, predominantemente, por meio
dou os interesses dos diversos segmentos do ensino, em instituições próprias” (§ 1o do
sociais – os estudantes, os professores, os art.1o) e que esta, por sua vez “deverá vin-
trabalhadores, os empresários, a igreja e os cular-se ao mundo do trabalho e à prática
movimentos sociais. Oliveira (2003) destaca social” (§ 2o do art. 1o). Percorrendo os dis-
que o PL n. 1.603/96 desprezou pesquisas positivos legais desse mesmo documento,
e trabalhos consistentes de educadores observa-se, no art. 2o, que a educação “tem
brasileiros que se dedicavam à educação por finalidade o pleno desenvolvimento do
profissional e que o governo preferiu a educando, seu preparo para o exercício
“consultoria dos experts do Banco Mundial, da cidadania e sua qualificação para o
do BID e da Universidade de Oklahoma” trabalho”. Salienta-se, ainda, que, no art.
(OLIVEIRA, 2003, p. 53). 3o, inciso XI, o ensino será ministrado no
A nova LDBEN (Lei n. 9.394/96) foi princípio da “vinculação entre a educação
aprovada no dia 17 de dezembro de 1996
e sancionada pelo Presidente FHC, no dia 3
A Lei n. 9.394/96 substituiu a Lei n. 5.692, de 1971.
20 de dezembro de 1996. Essa lei substi- 4
Foram introduzidas alterações na Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional n. 9.394/96 em
2
Seminário Nacional sobre “Ensino Médio: Constru- relação ao ensino fundamental, ao ensino médio
ção Política” e o Seminário Nacional de "Educação e à educação profissional, através da Lei n. 11.684,
Profissional - Concepções, Experiências, Problemas de 2 de junho de 2008 e pela Lei n. 11.741, de 16
e Propostas". de julho de 2008.
290 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
profissionalizante a função formativa, Há de se observar que, embora a Lei
é esta última que agora, conceitual n. 9.394/96 não tenha atribuído ao ensino
e legalmente, predomina sobre as médio o objetivo de profissionalização
outras. Legalmente falando, o ensino técnica, não tirou dele essa possibilidade.
médio não é como etapa formativa,
(TUPPY, 2007).
nem porta para o ensino superior
De acordo com a LDBEN/96, no § 2o
e nem chave para o mercado de
trabalho. Ele tem uma finalidade em do art. 36, Seção VI do Capítulo II, “o ensino
si, embora seja requisito tanto do médio, atendida a formação geral do edu-
ensino superior quanto da educação cando, poderá prepará-lo para o exercício
profissional de nível técnico. de profissões técnicas”5, ou seja, ele servirá
de habilitação profissional, ao mesmo tem-
Assim, a LDBEN/96 assegura o
po ou em continuidade à formação geral
ensino médio como a etapa conclusiva
do educando. O § 4o do mesmo artigo
da educação básica, tornando-o constitu-
estabelece que “a preparação geral para o
cionalmente gratuito, com duração de três
trabalho e, facultativamente, a habilitação
anos e com um mínimo de 2.400 horas/
profissional, poderão ser desenvolvidas
aula de 60 minutos de duração.
nos próprios estabelecimentos de ensino
Em relação às finalidades desse
nível da escolaridade, a LDBEN/96, em seu médio ou em cooperação com instituições
art. 35, preconiza o seguinte: especializadas em educação profissional”6,
fazendo jus ao art. 205 da CF no que diz
I – a consolidação e o aprofundamen- respeito ao preparo para a cidadania e a
to dos conhecimentos adquiridos no sua qualificação para o trabalho. Dessas
ensino fundamental, possibilitando o
deliberações, apreende-se que o ensino mé-
prosseguimento de estudos;
dio tem como objetivo precípuo o aprofun-
II – a preparação básica para o traba-
damento dos conhecimentos básicos que
lho e a cidadania do educando, para
continuar aprendendo, de modo a ser
se iniciaram no ensino fundamental e sua
capaz de se adaptar com flexibilidade articulação com o mundo produtivo. Por-
a novas condições de ocupação ou tanto a LDBEN deixou aberturas em pontos
aperfeiçoamento posteriores; polêmicos como a educação profissional,
III – o aprimoramento do educando possibilitando a regulamentação por meio
como pessoa humana, incluindo a do Decreto n. 2.208/97; de acordo com esse
formação ética e o desenvolvimento Decreto, a formação profissional só poderá
da autonomia intelectual e do pen- ser realizada pelo estudante ao término do
samento crítico; ensino médio ou simultaneamente a ele.
IV – a compreensão dos fundamentos
científico-tecnológicos dos processos
produtivos, relacionando a teoria com 5
Parágrafo revogado pela Lei n. 11.741, de 16 de
a prática, no ensino de cada discipli- julho de 2008.
na. (BRASIL, 1996, p. 24). 6
Idem.
292 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
Portaria n. 646/97, revelam o imediatismo, Com a eleição de Luiz Inácio Lula da
carregados de uma concepção econômica Silva, em 2003, as críticas da reforma da
de educação. Dessa forma, a educação educação profissional, da qual o Decreto n.
profissional é vista como um treinamento 2.208/97 é parte, ganharam força política
para o mercado de trabalho ao incentivar o ocorrendo a sua revogação pelo Decreto
trabalhador a competir por oportunidades n. 5.154, de 23 de julho de 2004. Esse
de trabalho, portanto a formação integral decreto garante novamente a educação
é praticamente inexistente. De acordo com técnica vinculada à educação básica no
Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005), historica- ensino médio, instituindo as formas como
mente, as políticas voltadas para o ensino se dará essa articulação, que pode ser
médio têm sido estabelecidas em torno ofertada de forma integrada, concomitante
da relação capital e trabalho, atendendo, ou subsequente. Frigotto, Ciavatta e Ramos,
em geral, aos interesses do mercado, con- (2005) assinalam que, em 23 de julho de
sequentemente, aos interesses do capital. 2004, atendendo em parte às pressões e
O Decreto n. 2.208/97 foi importante buscando cumprir os compromissos de
por abrir a possibilidade de estabelecer a campanha, o governo do presidente Lula
integração entre o ensino médio e a edu- da Silva revogou, com ato do Poder Exe-
cação profissional, promover a extinção do cutivo, o Decreto n. 2.208/97, propiciando
nível básico, que era criticado por aceitar novamente a articulação entre o ensino
alunos sem qualquer escolaridade e de- médio e o ensino técnico, por meio do De-
terminar a eliminação do ensino modular creto n. 5.154/2004. Esse Decreto passou,
que fragmentava e conferia um caráter então, a regulamentar o art. 36 do § 2o e
pontual ao ensino. os arts. 39 a 42 da LDBEN n. 9394/96, e,
Posteriormente, ao discutir sobre as consequentemente, revogou o Decreto n.
perspectivas sociais e políticas da formação 2.208/97, definindo novas orientações para
de nível médio, Frigotto e Ciavatta (2011, p. a educação profissional referentemente
626) reforçam que a revogação do Decreto aos níveis dessa modalidade de educação,
n. 2.208/97 pelo Decreto n. 5.154/04 “con- que passou a se configurar do seguinte
trariou os termos da Lei, e é uma síntese modo:
emblemática do ideário da educação para
Art. 1o A educação profissional, previs-
o mercado, separando o ensino médio da
ta no art. 39 da Lei n. 9.394, de 20 de
educação profissional”. Acentuam, ainda, dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes
que a educação profissional determinada e Bases da Educação Nacional),
pelo Decreto n. 5.154/04 também responde observadas as diretrizes curriculares
aos interesses dos setores governamentais, nacionais definidas pelo Conselho
ao diminuir a demanda para o ensino Nacional de Educação, será desenvol-
superior, e, também, do setor produtivo, ao vida por meio de cursos e programas
realizar capacitação rápida dos trabalhado- de: I – formação inicial e continuada
res para inseri-los no mercado de trabalho. de trabalhadores;
294 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
educacionais disponíveis; eixo estruturador, de acordo com Gomes e
b) em instituições de ensino distintas, Sobrinho (2006, p. 8), “a flexibilidade e não
aproveitando-se as oportunidades parece pretender romper com a institucio-
educacionais disponíveis; ou nalidade construída na reforma anterior”.
c) em instituições de ensino distintas, Para Carmo (2010, p. 12), todavia
mediante convênios de intercomple- O Decreto n. 5.154/04 garante nova-
mentaridade, visando ao planejamen- mente a educação técnica vinculada
to e ao desenvolvimento de projetos à educação básica no ensino médio
pedagógicos unificados; do país, instituindo as formas como
III - subsequente, oferecida somente se dará essa articulação. Ao assegurar
a quem já tenha concluído o ensino o cumprimento da formação geral e
médio. (BRASIL, 2004). da preparação técnica, com a am-
Pode-se constatar, com a análise pliação da carga horária do curso, e
desse artigo, que o Decreto n. 5.154/04 não priorizar a formação técnica em
detrimento da formação básica.
contempla a articulação entre o ensino
médio e a educação profissional de nível A revogação do Decreto n. 2.208/97
técnico já existente na reforma anterior, possibilitou o restabelecimento de integra-
nas formas subsequente e concomitante, ção curricular dos ensinos médio e técnico;
e inclui mais uma possibilidade, a forma entretanto, para superar a fragmentação
integrada. Na argumentação de Frigotto, da formação profissional de nível médio,
Ciavatta e Ramos (2005), aspirava-se com levará algum tempo, segundo Tuppy (2007,
o Decreto n. 5.154/04 a que a política p. 114): “a ausência de uma política pública
de integração fosse uma prioridade do que dê conta de integrar programas isola-
Ministério da Educação, que articularia a dos e contingentes que têm caracterizado
concepção de ensino médio e educação as iniciativas de formação profissional, em
profissional sob os princípios do trabalho, detrimento de um projeto mais amplo”.
da ciência e da cultura.
Entretanto, apesar das alterações O Ensino Médio Integrado à Educação
pontuais promovidas, o “novo” decreto Profissional: técnico em agropecuária
não modifica substancialmente o desenho na Escola Municipal Agrícola Gover-
operacional da educação profissional im- nador Arnaldo Estevão de Figueiredo
presso pelo decreto de 1997, muito embora
agregue às modalidades de articulação Este tópico tem como objetivo
anteriormente previstas (concomitante e analisar alguns dos aspectos legais da
sequencial) outra possibilidade de articu- implantação do Ensino Médio Integrado à
lação entre o ensino médio e a educação Educação Profissional, na Escola Municipal
profissional, que passa a ser chamada de Agrícola Governador Arnaldo Estevão de
ensino médio integrado. Pode-se inferir Figueiredo, com habilitação de “Técnico
que o Decreto n. 5.154/04 possui como em Agropecuária”, no município de Campo
296 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
Educação de Mato Grosso do Sul (MS, normatização pelo sistema de ensino
2004), trata a educação profissional como de Mato Grosso do Sul, a educação
uma política educacional vinculada a uma profissional adquiriu identidade e
espaço no contexto educacional do
política de geração de renda e trabalho.
Estado.
Isso significa preparar para a vida, quali-
Antes, a oferta da verdadeira edu-
ficar para a cidadania e capacitar para o
cação profissional, que preparava o
aprendizado permanente, seja no prosse- egresso para o mercado de trabalho,
guimento dos estudos, seja no mundo do era realizada no âmbito de apenas al-
trabalho (BRASIL, 2000, p. 9). Carmo (2012), gumas instituições específicas. Hoje, é
ao discutir sobre as ações do governo aberta a todos os estabelecimentos de
do Estado de Mato Grosso do Sul para o ensino que apresentem as condições
crescimento industrial no segundo setor requeridas para tanto e está voltada
e a educação profissional, mostra que, para o atendimento às demandas
no Plano Estadual de Educação de Mato localizadas, mediante cursos de edu-
Grosso do Sul (MS, 2004), a educação para cação profissional. Contudo, trata-se
o trabalho esteve contextualizada dentro atualmente neste Estado de prerro-
gativa das instituições privadas, uma
da nova ordem legislativa da educação
vez que o poder público tem revelado
profissional sem, contudo, perder de vista timidez com relação à atuação nesse
as características econômicas, sociais e de campo educacional, o que, de certa
parcerias entre os setores públicos esta- maneira, tem ocasionado restrições
duais, municipais como também com os de atendimento e constituído aspecto
organismos não governamentais. inibidor ao acesso de significativo
De acordo com o Plano Estadual de contingente de jovens e adultos a
Educação de MS (MS, 2004, p. 39): essa formação.
[...] Em Mato Grosso do Sul, até 1996, Na citação acima, podemos observar
a formação profissional fora tratada que o Estado reconhece as dificuldades re-
no interior dos cursos de ensino de lativas à educação profissional e apresenta,
2o Grau, conferindo aos concluintes para a sociedade sul-mato-grossense, os
habilitações específicas como as de procedimentos que orientam para uma
Magistério de 1o Grau e Técnico em
oferta de qualidade a ponto de correspon-
Contabilidade. Este procedimento foi
der aos anseios e interesses da demanda
adotado maciçamente pelas escolas,
desprovido, entretanto, da intenção de emergente dessa modalidade de educa-
promover a profissionalização, mas ção. Nesse sentido, o Estado buscou, na
tão somente para dar cumprimento esfera educacional, por meio das ações
à determinação legal da época. do governo estadual, “adequar as políticas
A partir da vigência da Lei de Dire- educacionais tanto no que se refere às
trizes e Bases da Educação Nacional necessidades do desenvolvimento econô-
nº 9.394, de 1996, e da conseqüente mico quanto aos aspectos operacionais de
298 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
Projeto Político Pedagógico (PPP) (CAMPO graças à qualificação técnica de nível
GRANDE, 2008, p. 119) destaca: média, adquirida. (idem, p. 119).
[...] tendo em vista as considerações Nesse sentido, a escola ressalta, em
dos Referenciais Curriculares Nacio- seu PPP, que está atenta às mudanças da
nais da Educação Profissional de Nível sociedade e demonstra visão crítica do
Técnico (RCNEP), do Parecer CEB/CNE que acontece à sua volta; entende que a
n. 16/99, que entende a educação pro- educação não pode se resumir à formação
fissional técnica de nível médio como
intelectual, mas à valorização, também, do
expressão dos valores estéticos, políti-
desenvolvimento integral para o sucesso
cos e éticos comuns aos da educação
básica, numa dimensão formativa; do no mundo do trabalho. A unidade escolar
Decreto n. 5.154/04 que prevê várias oferece a seus alunos a possibilidade de
alternativas entre o ensino médio e o receber a formação articulada e integrada
ensino técnico, sendo a principal delas ao ensino médio, a qualificação profissio-
a integração entre ambos, resgatando nal de nível técnico em agropecuária.
a chance dos estudantes saírem desta
fase do ensino com qualificação pro- Considerações finais
fissional que possibilite disputar uma
oportunidade no mercado de trabalho; O trabalho teve como objetivo geral
a demanda reprimida existente na Es- identificar, no plano legal, as políticas que
cola Municipal Agrícola Gov. Arnaldo relacionam a Educação Profissional de
Estevão de Figueiredo, resultante da Ensino Médio Integrado, no contexto da
pré-qualificação oferecida aos alunos reforma do Estado brasileiro. Para tanto,
do Ensino Fundamental (séries finais) selecionaram-se e analisaram-se leis e de-
e, especialmente, a região onde está
cretos que orientam a oferta de educação
instalada a unidade escolar, propõe
profissional técnica de nível médio a partir
oferecer o Curso Educação Profissio-
nal Técnica de Nível Médio integrada dos anos de 1990.
em Agropecuária na mesma escola a Observaram-se as formulações e
seus alunos. implantações das políticas que relacionam
a educação profissional de ensino médio
Acrescenta: integrado, no contexto da reforma do Esta-
O Ensino Médio implantado na Escola do brasileiro. Sob este foco, analisaram-se
Municipal Agrícola Governador Este- a LDBEN/96 e os Decretos n. 2.208/1997
vão de Figueiredo tem por finalidade e n. 5.154/0, que discutem as políticas pú-
atender duas exigências fundamen- blicas de educação que orientam a oferta
tais: ter uma sólida formação geral de educação profissional técnica de nível
e uma boa educação profissional.
médio integrada ao ensino médio a partir
Nesse aspecto, o estudante poderá
escolher entre usar o ensino médio dos anos de 1990.
como trampolim para a universida- Verificou-se que o Decreto n. 2.208/97
de ou para o mercado de trabalho, separava o ensino médio da educação
Referências
300 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
1997a. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf/PMEC646_97.pdf>. Acesso
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toriza o funcionamento do curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada
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Estevão de Figueiredo, de Campo Grande-MS, para oferecer essa etapa de ensino. DIOGRANDE,
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302 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
A participação de professores indígenas na imple-
mentação da Política Nacional de Gestão Territorial
e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) no Brasil
The participation of indigenous teachers in the
implementation of the National Policy of Territorial
and Environmental Management of Indigenous
Territories (PNGATI) in Brasil
Fabiana Pereira de Souza*
Heitor Queiroz de Medeiros**
Elias dos Santos Bigio***
* Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências
Ambientais da Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT). E-mail: fabiagronomia@hotmail.com
** Doutor em Ciências – Ecologia e Recursos Naturais pela
UFSCar. Professor no Programa de Mestrado e Doutorado
em Educação (UCDB) e no Programa de Pós-Graduação
em Ciências Ambientais da Universidade do Estado de
Mato Grosso (UNEMAT). E-mail: heitor.medeiros@ucdb.br
*** Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB).
Técnico da Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
E-mail: eliasbigio@uol.com.br
Resumo
Essa pesquisa desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (Mestrado),
da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), busca analisar em que medida a Política Nacional
de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), instituída através do Decreto Presidencial
n. 7.747/2012, vem sendo implementada nas terras indígenas no Brasil, contribuindo com a proteção dos
territórios de reconhecido valor cultural e ambiental, face às mudanças decorrentes da política de ocupação
do solo no Brasil. Um dos focos dessa análise se dá junto aos professores indígenas alunos na Faculdade
Indígena Intercultural da UNEMAT, Campus de Barra do Bugres, MT. A metodologia utilizada para levantamento
e análise dos dados envolveu procedimentos e técnicas de pesquisa quali-quantitativa, através da pesquisa
exploratória e de análise documental. Como resultado parcial, percebe-se que os professores indígenas
reconhecem a PNGATI como um instrumento importante para a gestão territorial de suas áreas, contudo
verifica-se a necessidade de maior participação destes na implementação dessa política, pois a participação
efetiva dos povos indígenas é essencial para que os objetivos propostos na PNGATI sejam cumpridos.
Palavras-chave
Áreas indígenas. Professores indígenas. Gestão territorial e ambiental.
304 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
etnias, 23 terras indígenas, atuando em 41 constitui o território de um povo indígena,
escolas indígenas em 42 aldeias. englobando os seus saberes tradicionais e
Os professores indígenas entrevista- suas práticas quanto ao uso dos recursos
dos nessa fase da pesquisa pertencem às naturais e da biodiversidade, considerando
etnias Tapayuna, Cinta Larga, Suruí, Me- ainda a dimensão dos mecanismos, dos
bengokre, Terena, Pareci, Trumai, Umutina, processos e das instâncias culturais de
Mehinako, Kalapalo, Nambikuara, Yawala- decisão relacionados aos acordos de uso
piti, Munduruku, Rikbaktsa, Karajá, Kuiruro, e os consensos internos próprios de cada
Apiaká, Kayabi, Waurá, Tapirapé, Xavante, povo, e que são necessários para a busca
Chiquitano, Juruna, Bororo, Kamayurá, da sustentabilidade ambiental das terras
Myky, Suyá, Bakairi e Ikpeng e foram en- indígenas.
trevistados durante a etapa intermediária,
no mês de julho de 2013, da Faculdade 1 Material e métodos
Indígena Intercultural da UNEMAT.
A Faculdade Indígena Intercultu- A presente pesquisa está estruturada
ral da Universidade do Estado de Mato a partir da metodologia quali-quantitativa,
Grosso (UNEMAT) foi aprovada como tal, em que, segundo Godoi et al. (2006), o in-
em 2008, pelo Congresso Universitário teresse do pesquisador está voltado para o
dessa IES, mas suas atividades iniciaram entendimento de um determinado proces-
efetivamente em 2001, com o primeiro ves- so social e para as relações estabelecidas
tibular para a primeira turma dos cursos de entre as variáveis.
licenciaturas específicos para a Formação Enquadra-se também nos preceitos
de Professores Indígenas, na campus da da pesquisa exploratória, que, segundo
UNEMAT em Barra do Bugres, MT. Gil (2007), tem como objetivo o estudo
O decreto presidencial n. 7.747/2012 sobre o problema, com vistas a torná-lo
instituiu a PNGATI, que tem o objetivo de mais explícito, envolvendo os seguintes
garantir e promover a proteção, a recupe- procedimentos: revisão bibliográfica e
ração, a conservação e o uso sustentável levantamento em fontes escritas sobre o
dos recursos naturais das terras e territó- PNGATI, aplicação de um questionário com
rios indígenas, assegurando a integridade pessoas que possuem experiências com
do patrimônio indígena, a melhoria da relação ao problema pesquisado e, no caso
qualidade de vida e as condições plenas desse artigo, com os professores indígenas
de reprodução física e cultural das atuais que estudam na Faculdade Indígena Inter-
e futuras gerações dos povos indígenas, cultural da UNEMAT, além de entrevistas
respeitando sua autonomia sociocultural, que foram gravadas e transcritas conforme
nos termos da legislação vigente. A gestão recomendações de Minayo (1993, p. 69),
territorial e ambiental de terras indígenas que ressalta a importância do registro
é entendida aqui como um conjunto de fidedigno “para ter uma boa compreensão
domínio político e simbólico do espaço que do grupo ou da coletividade estudada”.
306 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
também do engajamento de diferentes Como resultado parcial dos dados
atores sociais. levantados, verificou-se que 32 professores
No sentido de entender em que indígenas, ou seja, 56,14% dos entrevista-
medida os povos indígenas participaram dos, conhecem a PNGATI, portanto pouco
efetivamente da proposta de estruturação e mais da metade dos entrevistados, sendo
do processo de implementação da PNGATI, que 25 professores indígenas, ou seja
é que se optou por incluir na pesquisa os 43,85%, não a conhecem. (figura 1).
professores indígenas que são alunos na
Faculdade Indígenas Intercultural da UNE-
43,85% 56,14% Sim
MAT, no campus de Barra do Bugres, MT,
principalmente pelo fato de terem eles um Não
papel de destaque dentro de suas comuni-
dades em face da importância das escolas Figura 1 - Respostas à pergunta: Você
indígenas nessas comunidades e também conhece a PNGATI?
do papel representado pelos professores
Segundo as respostas da maioria dos
indígenas dessas escolas diante de seus
professores entrevistados que não conhe-
grupos étnicos.
cem a política, justificam isso inicialmente
As entrevistas ocorreram com 57
pelo fato de não ter participado das reuniões
professores indígenas, dentre os quais 11
de discussões para a construção da propos-
mulheres e 46 homens de 23 terras indí-
ta da PNGATI, tanto as que ocorreram dentro
genas e atuantes em 41 escolas indígenas
das aldeias, como fora delas (8 pessoas ou
de 42 aldeias. Oscila entre 21 a 42 anos a
32%). Em segundo lugar, atribuem o não
idade dos entrevistados, cuja média é de
conhecimento sobre a política à falta de diá-
30 anos, e o tempo médio de serviço como
logo das instituições indígenas, indigenistas
professores indígenas nessas escolas, de
e do governo com a comunidade indígena
cerca de 7 anos.
(5 pessoas ou 20%) (figura 2).
308 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
Numa das reuniões sobre a PNGATI A participação dos indígenas por
que foi realizada na cidade de Poconé, no etnia nas reuniões estaduais para discutir
dia 21 de março de 2013, os indígenas sobre a PNGATI, segundo os entrevista-
aproveitaram a oportunidade para cobrar dos, foi variável, houve professores que
mais agilidade do governo na implementa- afirmaram que nenhum representante de
ção dos planos de gestão, através de uma sua etnia participou das reuniões, outros
carta que foi encaminhada à comissão citaram pelo menos quatro pessoas de
responsável pela implementação da PN- sua etnia que participaram das reuniões,
GATI (OPAN, 2013). e ainda alguns não souberam precisar a
Outro indicador que aponta para quantidade de representantes e/ou se hou-
a falta de uma discussão mais ampla e ve representantes de sua etnia. A média foi
informação sobre a política é que, dos 32 de cerca de 2 a 3 representantes por etnia
professores que conhecem a política, 9 não nas reuniões de âmbito estadual, incluindo
a conhecem em detalhes. Dessa forma, os que souberam precisar o número de
os que não conhecem a política e os que representantes e os que afirmaram que
não a conhecem em detalhes representam nenhum representante participou.
A necessidade de maior engaja-
quase 60% dos entrevistados.
mento dos povos indígenas no processo
Contudo, quando questionados se
de implementação da PNGATI e de maior
houve alguma discussão com os povos
articulação entre todos aos atores sociais
indígenas para a elaboração da política,
fica evidente a partir da análise das respos-
a maioria dos professores que conhecem
tas dos professores entrevistados:
a política, 21 entrevistados, ou seja, 65,6%
dos professores indígenas, reconhecem Esta tendo algumas consultas para
a nossa participação, mas tem que
que os povos indígenas foram consultados
desenvolver, tem que avançar. Porque
para a elaboração da política, mas desta- nós somos cidadãos brasileiros, nos
caram a necessidade de maior articulação somos seres humanos. A gente não
entre os povos indígenas e os demais tem nem diferença dos não índios, o
atores sociais. que muda é só a cor da pele. (Profes-
Dos 21 professores que reconhecem sor indígena, 25 anos).
a participação dos povos indígenas como A gente tem alguns pontos estabele-
fundamental para o sucesso da PNGATI, cidos na convenção 169, que tem que
18 professores indígenas, ou seja, 85,71% ter consulta aos povos indígenas toda
deles souberam explicar como ocorreram vez que for fazer uma ação que ve-
nha a afetar os povos indígenas. Mas
as discussões no Estado, sendo que destes,
quando vem o problema, as ações
apenas 8 professores indígenas ou seja, já estão em andamento. (Professor
44,44% participaram das reuniões que indígena, 29 anos).
ocorreram para discutir sobre essa política No Xingu, nós temos alguma coisa
de âmbito estadual. de hectares e 16 etnias, então foram
310 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
Indígena do Xingu (ATIX), Coordenação Instituto de Pesquisas Etno-Ambiental do
das Organizações Indígenas da Amazônia Xingu (IPEAX); Instituição Raoni; Intituto
(COIAB) e Instituto Maiwu. Outras institui- Munduruku e Associação Enumaniá.
ções citadas foram: Associação Indígena A participação não apenas das or-
Kisêdjê (AIKA); Associação Kura-Bakairi ganizações indígenas, mas dos indígenas
(ACURAB); Associação Indígena Kuikuro de modo geral, é preponderante para o
do Alto Xingu (AIKAX); Associação Indí- sucesso da política no Brasil. De acordo
gena das Mulheres Rikbaktsa (AIMURIK); com as entrevistas, 19 professores indí-
Associação Indígena Pahyhy’p (AIP); Arti- genas, ou seja, 59,37% afirmaram que o
culação dos Povos Indígenas do Nordeste, governo tem garantido que os indígenas
Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME); participem de todas as etapas e decisões
Articulação dos Povos Indígenas da Região da PNGATI, e 10 professores indígenas, ou
Sul do Brasil (ARPINSUL); Associação do seja, 31,25% afirmaram que essa garan-
Povo Indígena Rikbaktsa (ASIRIK); Orga- tia não tem acontecido e 3 professores
nização dos Profissionais da Educação indígenas, ou seja, 9,37% não souberam
Escolar Indígena de Mato Grosso (OPRIMT), responder (figura 3).
Mesmo que, de alguma forma diver- apenas através da inclusão dos povos
sa, o governo esteja envolvendo indígenas indígenas nesse processo.
no processo de implementação da PNGATI, Há que se superar a concepção dos
muitos entrevistados afirmaram que é indígenas como tutelados e submissos e
necessária uma discussão mais ampla garantir cada vez mais espaços abertos à
e aprofundada com os povos indígenas, manifestação de suas ideias, opiniões e do
pois a construção de uma política que exercício pleno de sua cultura, ressaltando
atenda as especificidades de cada etnia é que, em comparação ao passado de sub-
um grande desafio e pode ser alcançado missão e alguns casos até de escravidão a
312 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
Você acha importante a implementação da PNGATI?
12,50%
12,50% Sim
75%
Não
Não sei
A principal justificativa dos profes- Acho que vai ter mais desenvolvi-
sores indígenas entrevistados no tocante mento dos nossos conhecimentos e
à importância da PNGATI centrou-se na saberes. (Professor indígena, 31 anos).
questão ambiental, o que demonstra Para fazer com que os indígenas te-
a grande preocupação dos professores nham formação de gestão. (Professor
indígenas com a destruição gradativa do indígena, 30 anos).
meio ambiente em função da expansão Que eu percebi, é importante princi-
tecnológica e produtiva impulsionadas palmente na educação. Como melho-
rar a educação. Mas não só educação,
pelo capitalismo.
como melhorar a saúde e tudo mais.
Será importante se ela ajudar nas (Professor indígena, 28 anos).
questões ambientais e territoriais. Logo, a expectativa dos professores,
(Professora indígena, 36 anos).
segundo as entrevistas, é de que a PNGA-
Porque traz projetos, tem a preserva- TI seja um instrumento que possa trazer
ção do meio ambiente e da cultura.
conhecimento e informação para a aldeia,
(Professor indígena, 23 anos).
além de proporcionar mecanismos que
Acho muito importante isso para
auxiliem na gestão ambiental e territorial,
preservar o meio ambiente. Isso é
trazendo mais segurança e bem-estar,
importante pra nós. Preservar o meio
ambiente, nossa terra. (Professor indí- através da regularização e demarcação
gena, 40 anos). fundiária das Terras Indígenas (TI) e de
ações de melhoria da qualidade ambiental
Além da questão ambiental, outro e de vida desses povos em suas áreas.
aspecto levantado pelos professores in- Um dos principais desafios para a
dígenas é a educação, a formação que implementação dessa política é lidar com
a política pode proporcionar através do as ameaças à integridade ecológica e cul-
contato entre os diferentes atores sociais tural das terras indígenas, especialmente
envolvidos na implementação das propos- com aquelas relacionadas a pressões so-
tas estabelecidas. bre a paisagem do entorno. A contradição
314 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
os principais anseios e reivindicações ainda não vem sendo implantada nas
dos professores indígenas, quando ques- aldeias, sendo que essa preocupação foi
tionados sobre a existência de ações de apontada por 25 dos professores indíge-
formação sobre a PNGATI, a maioria dos nas entrevistados ou seja, 78,12% deles
professores afirmou que essa formação (figura 5).
Não
Referências
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318 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
Educação e diversidade cultural nos periódicos
InterMeio e Série-Estudos
Education and cultural diversity in journals
InterMeio and Série-Estudos
Fernanda Ros Ortiz*
Jacira Helena do Valle Pereira**
* Mestranda em educação. PPGEdu/UFMS, Campo Grande,
MS. E-mail: nanda_ortiz@hotmail.com
** Doutora em educação. UFMS, Campo Grande, MS. E-mail:
jp.dou@terra.com.br
Resumo
Este artigo apresenta uma análise panorâmica das produções acadêmicas na temática “Educação e
Diversidade Cultural”, publicadas em dois periódicos pertencentes aos dois primeiros Programas de Pós-
graduação em Educação, no Mato Grosso do Sul, a saber: InterMeio, da UFMS, e Série-Estudos, da UCDB.
Do ponto de vista metodológico, realizaram-se buscas com emprego de palavras-chave na temática da
diversidade cultural. Organizamos o mapeamento destas, focalizando frequência, categorias, metodologias
e concepções adotadas. Em síntese, foi possível compreender como as produções apresentam reflexões
sobre a pluralidade no contexto escolar, embora, em consideração às pertenças étnico-culturais do referido
estado, as produções sejam tímidas.
Palavras-chave
Diversidade cultural. Educação. Periódicos.
Abstract
The present paper is the result of a research and presents an analysis of academic productions on the theme
“Education and Diversity”, published in two journals from the oldest and most traditional pos graduated
programs in Education in Mato Grosso do Sul – InterMeio, from UFMS, and Série-Estudos, from UCDB.
The methodological approach was based on searching texts and journals with cultural diversity keywords.
After that, these information were organized in frequency, categories, methodologies and concepts. For the
analysis of results and discussions, Silva (2003) and Valente (1999) were used, among others authors. In
summary, it was possible to understand that the productions talks about diversity at school, although the
ethnic and cultural analysis referred specially to Mato Grosso do Sul are still insufficient.
Key words
Cultural diversity. Education. Journals.
320 Fernanda R. ORTIZ; Jacira H. V. PEREIRA. Educação e diversidade cultural nos periódicos...
InterMeio e Série-Estudos”, no qual são respectivamente. Na última avaliação da
apresentados a qualificação dos materiais, Capes (2010), o Programa de Mestrado
os critérios de escolha de produções e os em Educação da UFMS (InterMeio) obteve
procedimentos metodológicos como lei- conceito 3, e o da UCDB (Série-Estudos)
tura prévia dos resumos. Em seguida, em recebeu conceito 4.
“Da recolha de dados: visão panorâmica” Para seleção dos artigos a serem
mostra-se o quantitativo de produções estudados, inicialmente foi realizado um
levantadas e possíveis causas para o levantamento nas páginas eletrônicas dos
aumento ou decréscimo deste. No terceiro periódicos, buscando informações gerais a
tópico, “Em análise a diversidade cultural respeito deles e arquivos com as edições dis-
nos periódicos InterMeio e Série-Estudos”, poníveis a serem acessadas. Foram também
as categorias eleitas para compor o ensaio consultados profissionais/pessoas engaja-
são descritas e, sobre cada uma delas, dos no trabalho com o periódico (editores/
são tecidos comentários objetivando de- ex-editores), a fim de conhecer um pouco
monstrar uma síntese das informações da forma como são elaboradas as edições.
encontradas nos textos selecionados para Em seguida, procedemos à leitura de
a pesquisa. “À guisa de considerações resumos, palavras-chave e textos comple-
finais” conclui as reflexões em torno dos tos que contemplassem questões relacio-
elementos trazidos das produções. nadas à diversidade/pluralidade cultural,
diferenças, etnia, cultura, regionalismo/
Imersão nas produções científicas dos regionalidade, migrantes, entre outros que
periódicos InterMeio e Série-Estudos abranjam as particularidades da temáti-
ca. Destarte, traçamos um panorama da
Ao olhar nas produções dos periódi- quantidade e qualidade das produções, en-
cos, buscamos compreender a frequência contrando regularidades que forneceram
de estudos sobre “educação e diversidade subsídios para o entendimento de como se
cultural” na área de Educação, ou seja, que processa a discussão, no meio acadêmico,
objetos são abordados, que aportes teóri- dos subtemas relacionados à diversidade
cos são empregados, de que tipo de pes- cultural no âmbito da educação.
quisas as produções são frutos, quem são
os autores e como é focalizado o contexto Da recolha de dados: visão panorâmica
cultural ou étnico cultural de Mato Grosso
do Sul, entre outros questionamentos. O primeiro momento foi de levanta-
Para ilustrar a qualidade das fontes, mento numérico e tabulação da quantidade
consultamos a avaliação do Qualis divul- total de edições e produções existentes no
gada em março de 2012, com base nas período selecionado. Para tanto, organiza-
publicações de 2010-2012. Os conceitos mos quadros ilustrativos sobre as publi-
atribuídos aos periódicos selecionados, cações, demonstrando o ano, número de
InterMeio e Série-Estudos, foram B3 e B2, edições e volumes de cada periódico, a fim
TOTAL DE ARTIGOS/TEXTOS
PERIÓDICOS ANO PORCENTAGEM
ARTIGOS/TEXTOS NA ÁREA
Série-Estudos 1994* 10 0 0,00%
InterMeio 1995 17 1 5,88%
Série-Estudos 1995 9 0 0,00%
InterMeio 1996 9 1 11,11%
Série-Estudos 1996 22 0 0,00%
InterMeio 1997 16 0 0,00%
Série-Estudos 1997 10 1 10,00%
InterMeio 1998 19 2 10,53%
Série-Estudos 1998 9 0 0,00%
InterMeio 1999 6 1 16,67%
Série-Estudos 1999 13 1 7,69%
InterMeio 2000 junto com 1999 - -
Série-Estudos 2000 16 0 0,00%
InterMeio 2001 5 0 0,00%
Série-Estudos 2001 25 1 4,00%
InterMeio 2002 14 1 7,14%
Série-Estudos 2002 21 1 4,76%
InterMeio 2003 16 1 6,25%
Série-Estudos 2003 32 11 34,38%
InterMeio 2004 11 0 0,00%
Série-Estudos 2004 32 1 3,13%
InterMeio 2005 13 0 0,00%
Série-Estudos 2005 31 4 12,90%
InterMeio 2006 12 4 33,33%
Série-Estudos 2006 27 10 37,04%
InterMeio 2007 19 3 15,79%
Série-Estudos 2007 27 2 7,41%
InterMeio 2008 24 3 12,50%
Série-Estudos 2008 30 0 0,00%
InterMeio 2009 26 3 11,54%
Série-Estudos 2009 30 5 16,67%
InterMeio 2010 30 1 3,33%
Série-Estudos 2010 37 3 8,11%
InterMeio 2011 13 0 0,00%
Série-Estudos 2011 33 12 36,36%
TOTAL 664 73 10,99%
Quadro 1
* Somente o periódico Série-Estudos havia iniciado suas publicações neste ano.
Fontes: Periódicos InterMeio e Série-Estudos.
322 Fernanda R. ORTIZ; Jacira H. V. PEREIRA. Educação e diversidade cultural nos periódicos...
Do total de 664 artigos/textos identi- Em análise a diversidade cultural nos
ficados, somente 10,99% deles trataram da periódicos InterMeio e Série-Estudos
temática da diversidade, o que corresponde
a 73 textos. É possível perceber ainda um Os trabalhos foram divididos em
crescimento de publicações, mesmo que sete categorias, as quais se mostraram
tímido, a partir de 2003. relevantes à temática em estudo. É impor-
Podemos entendê-lo sob a égide tante esclarecer que alguns textos/artigos
da ocorrência de algumas mudanças no mantinham interesse em mais de uma
campo da educação em relação à diversi- das categorias, porém o foco principal era
dade cultural nesse período, seja por con- somente uma delas. Por vezes, tornou-se
sequência de elaboração de políticas ou complicada a inserção de determinados
programas ou mesmo a efervescência de artigos em categorias pré-estabelecidas,
questões relacionadas às diferenças cultu- afinal muitos deles tenderam a demonstrar
rais no Brasil e no mundo, apesar de não posicionamentos em relação a diversos
serem novas, como sabemos, as discussões assuntos relacionados na temática da
sobre a pluralidade. Entretanto, Valente diversidade.
(1999, p. 108) nos provoca a considerar Para a realização da pesquisa, diver-
que: “Não cabe questionar a importância sos tipos de textos presentes nos periódicos
da discussão sobre as diferenças culturais, foram inclusos, tais como: pontos de vista,
mas como, de que maneira ela é ou pode resenhas, textos componentes dos dossiês
ser conduzida.”. e artigos em geral, por vezes resultados
Deve-se levar em conta também que de apresentações em fóruns e encontros.
as mudanças apontadas dizem respeito, Isso ocorreu por haver uma quantidade
inclusive, a uma maior preocupação dos reduzida de produções. Somente foram
órgãos públicos com a temática, por exem- excluídos das análises resumos de dis-
plo, no Brasil, com a criação da Secretaria sertações defendidas e encartes especiais
de Educação Continuada, Alfabetização e publicados em diferentes temáticas, que
Diversidade/ SECAD, funcionando desde não eram pertinentes à área das atuais
julho de 2004, responsável pela elaboração pesquisas em educação.
de propostas na área da pluralidade para
a educação.
324 Fernanda R. ORTIZ; Jacira H. V. PEREIRA. Educação e diversidade cultural nos periódicos...
determinados conceitos e até admitindo e uma linha de pesquisa no Programa
a pluralidade de propostas, no trato com de Pós-graduação em Educação desta
a diversidade e inclusão das minorias universidade.
como um todo no sistema educativo, e No primeiro dossiê sobre diversidade
outros trazendo críticas sobre o que se cultural realizado pelo periódico, dos 11
tem feito com as diferenças dentro da artigos que o compõem, oito deles tratam
escola (GARRIDO, 2005; VALENTE, 1996; de algum assunto relacionado aos indí-
LUNARDI, 2006). genas. Uma parcela deles discorreu sobre
É importante que aconteçam tais a cultura dos índios, seus modos de ser,
preocupações nas pesquisas acadêmicas, viver e pensar, buscando perceber as rela-
visto que as propostas direcionadas a ções dentro da atual sociedade capitalista
ampliar e potencializar as relações com e globalizada em que estão inseridos, e
as diferenças no contexto escolar fazem-se trazendo à tona características pertinentes
necessárias, e a escola é lócus privilegiado para se pensar em educação para esse
para se pensar na pluralidade. grupo (MANGOLIM, 1997; ROSSATO, 2002;
Afinal, a escola recebe diferentes MARCON, 2003).
tipos de estudantes, e a simples convivên- Tais textos procuraram demonstrar o
cia entre eles não é suficiente para lidar retrato de um povo que deve ser respeita-
com proposições dessa natureza. Mais do do em suas particularidades, repelindo a
que isso, é preciso fazê-los compreender a ideia de uma cultura estagnada ou mes-
contribuição de cada cultura no universo mo imóvel. Demonstraram que, estando
da pluralidade, usando a perspectiva da a identidade em constante movimento
troca e compartilhamento de experiências e modificação, não podemos cristalizar
e valores, baseado no entendimento de pensamentos sobre o que seja sua cultura.
enriquecimento mútuo entre os envolvidos Outra parcela dos textos que tratam
no processo. Por conseguinte, como Silva dos grupos étnico-culturais reflete especifi-
(2003, p. 73, grifo do autor) afirma, “Parece camente acerca de legislações, programas,
difícil que uma perspectiva que se limita políticas e currículos que vêm sendo pen-
a proclamar a existência da diversidade sados para as populações indígenas. Todos
possa servir de base para uma pedagogia eles apresentam evidências de crerem
que coloque no seu centro a crítica política numa relação entre a identidade e a cultu-
da identidade e da diferença.”. ra desses povos de maneira nada exótica,
Outro foco eloquente nos artigos levando sempre em conta seus conflitos
foram as questões indígenas, especial- e elementos aglutinadores durante sua
mente na Série-Estudos, na qual diversos história (VALENTE, 1996). Noutro artigo,
tipos de questionamentos foram debatidos. o autor chama atenção para o fato de a
Tal ocorrência provavelmente deva-se ao cultura de um povo, no caso os indígenas,
fato de haver um núcleo de estudos e dever ser considerada ao propor formas de
pesquisas dentro da UCDB (GPKG e GPEI) fazer educação (MARCON, 2003).
326 Fernanda R. ORTIZ; Jacira H. V. PEREIRA. Educação e diversidade cultural nos periódicos...
também de outros estados nacionais (Rio descritiva da produção da erva-mate, à luz
Grande do Sul, São Paulo, Paraná, Minas da teoria marxista. O segundo (PEREIRA,
Gerais, etc.), eram esperados mais textos. 2009) trata da especificidade da formação
Os dois artigos que o fizeram tiveram de professores no contexto de fronteira
como foco: o primeiro, a migração alemã internacional.
para o Sul de Mato Grosso (1999/2001), As categorias “identidade”, “cultura”
e o segundo apresentou dados de um e “preconceito” foram apresentadas em
trabalho de pesquisa com descendentes 15,07% de artigos, em estudos bastante
de imigrantes japoneses em Dourados, válidos para a reflexão sobre a relação
MS (2006). Num dos artigos, a autora (MI- entre concepções culturais/identitárias e
RANDA, 2001) discorre brevemente sobre preconceitos/discriminação, provocando-
as relações entre migração e cultura, bem nos para pensar nessas dimensões que
como os efeitos provocados por esse movi- dizem respeito às diferenças e suas conse-
mento. O outro artigo tratou das questões quências na escola e sociedade, como em
que interessam ao se estudar populações Pedrossian et al. (2008) e Backes (2003).
migrantes no campo da educação: “[...] a Ainda, foram encontrados textos que
interação social entre os valores da cultura elucidaram o fato de toda proposta educati-
de origem familiar com os valores culturais va para a pluralidade, seja ela curricular ou
da sociedade de acolhimento [...]” (IMAGA- no trato em geral das diferenças dentro do
VA; PEREIRA, 2006, p. 47). contexto escolar, passar por determinados
A fronteira foi outra categoria pouco conceitos que definem e determinam as
abordada entre os periódicos, se conside- trajetórias dessas políticas ou programas,
rarmos a definição adotada pelo presente como em Alves (2007).
estudo. Somente dois artigos, do periódico Portanto há que se pensar em cada
InterMeio, abordam a relação entre sujeitos detalhe antes de se propor isso ou aquilo,
de países fronteiriços, integrando os efeitos sendo essencial um estudo apurado das
dela sobre a educação, o que surpreende, teorias implícitas em cada conceito. Sobre
visto a efervescência real das questões a etnicidade, por exemplo, Kreutz (2003, p.
relacionadas à fronteira com o Mato Gros- 87) explica: “[...] o mais importante é buscar
so do Sul, principalmente com os países entender em que contexto e sob quais
Bolívia e Paraguai. condições foi se dando o estabelecimen-
Um deles retratou uma pesquisa to, a manutenção e a transformação das
realizada nos ervais de Mato Grosso, por fronteiras entre os grupos étnicos.”.
meio de revisões de literatura, fotografias Quanto à natureza das pesquisas,
e entrevistas com pessoas envolvidas no apesar de não terem sido citadas dire-
processo ocorrido no período de 1870 a tamente na maioria dos textos/artigos,
1930. Na ocasião, Centeno (2003) aponta percebe-se a predominância da pesquisa
para a relação entre o trabalho e a edu- bibliográfica por meio de revisões de li-
cação nesses ervais, fazendo uma análise teratura, nos assuntos abordados, porém
328 Fernanda R. ORTIZ; Jacira H. V. PEREIRA. Educação e diversidade cultural nos periódicos...
que a globalização quer suprimi-las. Por nais, nas políticas públicas e na mídia em
conseguinte, tais conhecimentos, sendo geral, há que se refletir sobre a realidade
problematizados numa área como é a existente. A escola não pode sozinha tornar
educação, repleta de diversidades, quanto resolutos os problemas relacionados à di-
mais públicos forem mais ricas serão as versidade, mas pode contribuir para formar
reflexões em que as particularidades cul- cidadãos mais tolerantes e compreensivos
turais não são folclorizadas. com o outro, ao mesmo tempo em que
Enfim, mais do que declarar a exis- convive e interage. Portanto as pesquisas
tência da pluralidade cultural, como ocorre contribuem para provocar reflexões e di-
nos documentos nacionais e internacio- namizar este processo.
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Traduções de textos não disponíveis em língua portuguesa que constituam
fundamentos da área específica da Série-Estudos e que, por essa razão,
contribuam para oferecer sustentação e densidade à reflexão acadêmica.
Entrevistas com autoridades que vêm apresentando trabalhos inéditos, de
relevância nacional e internacional, na área específica da Educação, com o
propósito de manter o caráter de atualidade da Revista.
7. Os originais, para serem submetidos à aprovação, devem ser enviados para o editor
da revista, através do sistema de submissão online: www.serie-estudos.ucdb.br
8. Os artigos e outros textos para publicação devem ser digitados em Word for
Windows. As orientações para formatação estão especificadas ao final destas
Normas.
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data) ou (Autor, data, p.), como nos exemplos: (BITTAR, 1989) ou (SILVA, 1989, p.
95). Diferentes títulos do mesmo autor, publicados no mesmo ano, deverão ser
diferenciados adicionando-se uma letra depois da data, por exemplo: (GARCIA,
1995a), (GARCIA, 1995b) etc.
10. As Referências devem conter, exclusivamente, os autores e textos citados no
trabalho e serem apresentadas ao final do texto, em ordem alfabética, obedecendo
às normas atualizadas da ABNT, NBR 6023. Matérias que não contenham as
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exame e publicação. Exemplos da aplicação das normas da ABNT encontram-se
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processador de textos: Referências/Inserir notas de rodapé).
12. Todos os artigos devem conter título, indicação de três palavras-chave e resumo
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342
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recusados pela forma e devolvidos com justificativa.
Exemplos:
Livros com um autor
BONETI, L. W. Políticas públicas por dentro. 3. ed. Rev. Ijuí: Inijuí, 2011.
Livros com dois autores
MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Metodologia do trabalho científico: procedimentos
básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos.
6. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
Livros com mais de três autores
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Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
Artigos
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Trabalhos apresentados em congressos
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Trabalhos em meio eletrônico
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