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SÉRIE-ESTUDOS

Periódico do Programa de Pós-Graduação em


Educação da UCDB
Série-Estudos publica artigos de caráter teórico e/ou empírico na área da Educação.

Série-Estudos – Periódico do Programa de Pós-Graduação em


Educação da UCDB, n. 36 (jul./dez. 2013). Campo Grande : UCDB, 1995.
Semestral
ISSN 1414-5138
V. 23,5 cm.
1. Educação 2. Professor - Formação 3. Ensino 4. Política Educa-
cional 5. Gestão Escolar.

Indexada em:
BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília, Inep)
EDUBASE – UNICAMP
CLASE – Universidad Nacional Autónoma de México
LATINDEX – Directorio de publicaciones cientificas seriadas de America Latina, El Caribe, España y
Portugal
Missão Salesiana de Mato Grosso
UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO
Instituição Salesiana de Educação Superior

SÉRIE-ESTUDOS
Periódico do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UCDB

Campo Grande-MS, n. 36, p. 1-344, jul./dez. 2013.


UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO
Instituição Salesiana de Educação Superior

Chanceler: Pe. Lauro Takaki Shinohara


Reitor: Pe. José Marinoni
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Hemerson Pistori
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação: Jefferson Carriello do Carmo
Série-Estudos – Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB - Publicada desde 1995

Editor Responsável Conselho Editorial


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Marta Regina Brostolin
Ruth Pavan
Regina Tereza Cestari de Oliveira
Flavinês Rebolo

Conselho Científico
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Amarílio Ferreira Junior – UFSCar Luís Carlos de Menezes – USP
Belmira Oliveira Bueno – USP Maria Izabel da Cunha – UNISINOS
Celso João Ferretti – UTFPR Marilda Aparecida Behrens – PUCPR
Graça Aparecida Cicillini – UFU Romualdo Portela de Oliveira – USP
Emília Freitas de Lima – UFSCar Sonia Vasquez Garrido – PUC/Chile
Gaudêncio Frigotto – UERJ Susana E. Vior – Universidad Nacional de Luján
Hamid Chaachoua – Université Joseph Fourier (UNLu)/Argentina
(UJF)/França Valdemar Sguissardi – UFSCar/UNIMEP
Iara Tatiana Bonin – ULBRA Yoshie Ussami Ferrari Leite – UNESP

Nominata de Pareceristas Ad hoc


Alessandra Cristina Furtado – UFGD Maria Susana Vasconcelos Jimenez – UECE
Flavinês Rebolo – UCDB Marilda Moraes Garcia Bruno – UFGD
Giselle Cristina Martins Real – UFGD Mariluce Bittar – UCDB
Heitor Homero Marques – UCDB Morgana de Fatima Agostini Martins – UFGD
José Licinio Backes – UCDB Regina Tereza Cestari de Oliveira – UCDB
Leny Rodrigues Martins Teixeira – UNESP

Direitos reservados à Editora UCDB (Membro da Associação Brasileira das Editoras Universitárias - ABEU):
Coordenação de Editoração: Ereni dos Santos Benvenuti
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Revisão de texto: Maria Helena Silva Cruz
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e-mail: editora@ucdb.br - http://www.ucdb.br/editora
Editorial
Na condição de editor e organizador do presente número da Revista Série-Estudos,
tive a nítida sensação da grandeza do universo educacional e dos seus limites quando
cotejo com campo educacional. Vislumbro a possibilidade de ligar e interagir esse
campo com tantos outros, mas particularmente com o da pesquisa educacional, sem
fixá-lo a uma imagem nítida da educação, mas sempre vê-lo como um processo a ser
construído pela pesquisa cuja finalidade é a educação do homem. Isso é possível de
verificar já no primeiro texto, sessão Ponto Vista, de Paolo Nosella, cujo tema é Mario
Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos, em que
retrata o falecimento de Manacorda em Roma e o cotidiano, indicando ser este um dos
maiores intelectuais marxistas italianos do século XX. Nos dois próximos textos, a te-
mática é a filosofia da educação, com o primeiro texto A ensaística adorniana e o filo-
sofar em educação, de Divino José da Silva, que acentua a importância do ensaio para
a filosofia da educação enquanto um modo de reflexão sobre e na educação. Mostra
que o ensaio, nos termos adornianos, instiga a pôr em dúvida valores, crenças e este-
reótipos que limitam nossa experiência educativa, ao mesmo tempo em que possibilita
resgatar nela o que foi esquecido pela razão, pelos saberes e pelas práticas pedagógi-
cas, na atualidade. No segundo texto, as Contribuições do sociointeracionismo bakhti-
niano e da Análise do Discurso de linha francesa ao ensino de linguagens, Katia Re-
sende de Assis Machado e Silvane Aparecida de Freitas advertem sobre a necessidade
de uma mudança de postura tanto dos professores quanto dos alunos frente aos textos,
com o intuito de ampliar a capacidade discursiva dos alunos, libertá-los da pressão de
ter de achar um único sentido do texto, uma única resposta correta, que sempre foi a
do professor ou do livro didático. Nos textos seguintes, perpassa-se por vários temas
atuais no campo da educação. No texto A gestão democrática em espaços não formais
de ensino, Wânia Gonzalez e Elisangela Bernardo analisam a concepção de gestão
democrática implícita nas ações educativas ofertadas por dois espaços não formais de
ensino: a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) mediante
o enfoque do Curso Capacitação de Agentes Sociais e Conselheiros Municipais, e o
Instituto Ayrton Senna, a partir da abordagem do Programa Gestão Nota 10. O referen-
cial teórico utilizado no estudo enfatiza a dimensão política que os espaços não formais
de ensino podem assumir sem defender a diminuição do papel do Estado na oferta da
educação pública. No texto Ações colaborativas: possibilidade de construção de conhe-
cimentos sobre práticas de ensino, de Ana Paula de Freitas, analisam-se as possibilida-
des de que professores construam conhecimentos sobre práticas de ensino e represen-
tações de alunos com deficiência por meio de ações colaborativas. O trabalho colabo-
rativo apresenta-se como um espaço para que o docente possa refletir sobre sua prá-
tica, encontrar caminhos para transformá-la e tornar-se mais seguro em sua ação
educativa. No texto Papel dos formadores, modelos e estratégias formativos no desen-
volvimento docente, os autores Ana Ignez Belém Lima Nunes e João Batista Carvalho
Nunes discutem o papel do formador na formação continuada e os modelos e estraté-
gias formativos para o desenvolvimento docente. Analisam o papel do formador, situ-
ando a complexidade de conceituar esse termo, assim como as fragilidades ainda
presentes em sua formação. Defendem a ideia de que a coerência entre a formação
desejada para os professores e a formação de seus formadores é um aspecto funda-
mental para promover o desenvolvimento docente. No texto As políticas sociais e a
“nova estratégia” de educação integral no Brasil, Katharine Ninive Pinto Silva e Jamerson
Antonio de Almeida da Silva analisam o Programa Mais Educação, como “nova estra-
tégia” do governo federal para promoção da educação integral, focalizando as funções
sociais atribuídas aos programas esportivos, artísticos e recreativos realizados no con-
traturno escolar, como forma de “ocupação” do “tempo livre” de crianças e jovens do
ensino fundamental. Em Avaliação Educacional: concepções de formandos em Peda-
gogia, o autor Carlos Alberto Vasconcelos descreve sua experiência vivenciada na
disciplina Avaliação Educacional. O ponto de partida do estudo são conhecimentos
teóricos e a prática docente entre alunos/professores que encontravam-se, em sua
maioria, enraizados em uma postura tradicional de avaliação. O texto Condições de
trabalho docente no Brasil e na Espanha: considerações a partir da pesquisa Talis
(OECD-2009), de Rose Meri Trojan e Sonia Regina Landini, apresenta um breve pano-
rama sobre alguns aspectos relacionados às condições de trabalho oferecidas pelas
escolas aos docentes, publicado em 2009 no relatório TALIS (Teaching and Learning
International Survey), programa de pesquisa desenvolvido pela OECD. Ressalta os re-
sultados do Brasil e da Espanha destacando algumas considerações sobre os limites e
a abrangência de pesquisas dessa natureza, bem como sua interferência na proposição
de políticas educacionais e, por fim, seleciona alguns aspectos relevantes do ambiente
escolar para identificar a magnitude dos problemas relatados, posicionando os dois
países selecionados em relação aos resultados gerais apresentados no relatório. Em
Relato biográfico: uma tentativa de compreender as práticas pedagógicas de professo-
ras da educação infantil, de Maria Izete de Oliveira e Rinalda Bezerra Carlos, o texto
procede de duas pesquisas que objetivaram investigar a concepção de professoras da
Educação Infantil sobre essa etapa da educação básica, e conhecer como desenvolvem
suas práticas pedagógicas, respectivamente. Constatam, salvo raras exceções, a incon-
sistência entre o discurso e a prática das professoras, o que instigou a realizar uma
nova pesquisa, tendo por objetivo compreender como as experiências de vida influen-
ciam na prática pedagógica das professoras. No texto Para pensar a educação: sobre
produção de subjetividades, afetos e girassóis, de Norma Silvia Trindade de Lima, suge-
re-se que os espaços e ações educativas assumam a intencionalidade de colaborar
com processos de singularização, estimulando o vigor e a potência de cada ser. O tex-
to é uma narrativa sobre educação, dando ênfase à produção de subjetividades e dife-
renças no âmbito do educar e do existir. O texto de Lucia Helena Pena Pereira e Cíntia
Lúcia de Lima, Bioexpressão: uma proposta de formação integral dos alunos do curso
de Pedagogia, teve por objetivo analisar a bioexpressão entendida como um conjunto
de conhecimentos teórico-vivenciais o qual visa à compreensão de si e das dificuldades
de expressão própria que dificultam a vida, o exercício profissional e as inter-relações,
considerando o desenvolvimento do ser em sua integralidade, o que abarca as dimen-
sões cognitiva, afetiva, corporal, social e espiritual. Já o texto A linguagem do Opressor
e do Oprimido, presentes na obra “Pygmalion” de Bernard Shaw, de Magali Rosa de
Sant’Anna apresenta os aspectos da linguagem do opressor em oposição à do oprimi-
do, na obra “Pygmalion”, de Bernard Shaw. Após a leitura da peça, buscou-se a versão
cinematográfica “My Fair Lady” de forma a ter a sustentação necessária para tratar da
linguagem oral presente no texto. Eliza Doolittle é a voz do oprimido na peça. Ela pas-
sa de uma vendedora de flores a uma mulher da burguesia. E, ao ter sua postura e fala
modificadas, perde sua identidade. Os textos seguintes estão no campo da história da
educação. O primeiro, Aspectos das práticas escolares da escola de Língua Japonesa e
Internato de Pilar do Sul: rituais e festas, de Adriana Aparecida Alves da Silva e Wilson
Sandano, buscou compreender a história dessa escola, analisa os rituais e festas do
cotidiano escolar como parte de suas práticas que compõem as “culturas escolares” no
período referente a 1950, ano de fundação, a 1970, ano de fechamento da escola. A
análise evidenciou, entre outros aspectos, que os rituais e festas eram mais do que
atividades escolares, eram momentos propícios para a difusão de conhecimentos, nor-
mas e valores legitimados pela escola e pela comunidade japonesa. No texto A impren-
sa brasileira nos oitocentos e a história da educação: Hipólito da Costa e o Correio
Braziliense, de Marcília Rosa Periotto, é um estudo sobre a relação imprensa e educação.
O objetivo é analisar o debate travado em nome da aplicação das ideias liberais em
oposição ao absolutismo, cujo resultado consistiu na formação dos brasileiros e contri-
buiu para levá-los ao movimento da independência, na medida em que contribuiu com
ideias necessárias ao enfrentamento político contra a metrópole portuguesa. O texto De
Eva a Maria: a igreja e o matrimônio católico - educação religiosa e normas de condu-
ta para mulheres, de Jane Soares de Almeida e Calil de Siqueira Gomes, busca resgatar
a condição histórica das mulheres marcada pelo domínio masculino, sob a perspectiva
do vínculo matrimonial católico e sua interface com a educação religiosa. Historicamen-
te esquecidas e ignoradas, as mulheres foram atingidas por estereótipos, culturalmente
originados na Igreja Católica, em relação à sexualidade humana. Em Conflictos y dis-
putas territoriais entre jesuitas y asuncenos - a Revolucao dos Comuneros e a suas
consecuencias no espaco das missiones, texto de Mercedes Avellaneda, o trabalho
analisa no contexto da expansão missionária jesuíta os conflitos que surgem entre
Asuncenos, jesuítas e Guarani, na fronteira do rio Tebicuary. Investiga as consequências
da intensa mobilização das milícias Guarani em território missionário dos jesuítas e
procura dar conta do impacto da revolução dos communards sobre a aliança jesuíta
Guarani. No texto Educação técnica e profissional em agropecuária: o caso da Escola
Municipal Agrícola Governador Arnaldo Estevão de Figueiredo, de Tangria Rosiane
Heradão e Jefferson Carriello do Carmo, o objetivo foi identificar, no plano legal, as
políticas relacionadas à Educação Profissional de Ensino Médio Integrado, no contexto
da reforma do Estado brasileiro. Teve como hipótese que a política pública do município
de Campo Grande, MS, ao tratar da implantação das políticas educacionais de ensino
médio integrado à educação profissional – técnico em agropecuária – atendeu aos
arranjos produtivos locais, formando profissionais para atender as novas formas de
trabalho e produção. No texto A participação de professores indígenas na implementa-
ção da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGA-
TI) no Brasil, de Fabiana Pereira de Souza e Heitor Queiroz de Medeiros, os autores
analisam em que medida a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras
Indígenas (PNGATI), instituída através do Decreto Presidencial n. 7.747/2012, vem sendo
implementada nas terras indígenas no Brasil, contribuindo com a proteção dos territó-
rios de reconhecido valor cultural e ambiental, face às mudanças decorrentes da polí-
tica de ocupação do solo no Brasil. Um dos focos dessa análise se dá junto aos profes-
sores indígenas alunos na Faculdade Indígena Intercultural da UNEMAT, Campus de
Barra do Bugres, MT. E por fim o texto Educação e diversidade cultural nos periódicos
InterMeio e Série-Estudos, de Fernanda Ros Ortiz e Jacira Helena do Valle Pereira, que
apresentam uma análise panorâmica das produções acadêmicas na temática “Educação
e Diversidade Cultural”, publicadas em dois periódicos pertencentes aos dois primeiros
Programas de Pós-graduação em Educação, em Mato Grosso do Sul, a saber: InterMeio,
da UFMS, e Série-Estudos, da UCDB. Em síntese, foi possível compreender como as
produções apresentam reflexões sobre a pluralidade no contexto escolar, embora, em
consideração às pertenças étnico-culturais do referido estado, as produções sejam tími-
das. Na resenha Interações em ações, de Eduardo Luís Figueiredo de Lima, sobre o livro
A internet em rede, organizado por Alex Primo, mostra-se na introdução do livro que as
transformações do universo digital são mais rápidas que a capacidade de observação
do pesquisador, para a qual um objeto pesquisado poderá não existir mais no momen-
to em que sua pesquisa for publicada. Por fim, agradeço a todos que contribuíram para
a edição deste número, os autores, os pareceristas ad hoc e o pessoal do apoio dos
quais me lembro, Ereni, Glauciene e Priscila. A todos o meu muito obrigado.

Jefferson Carriello do Carmo


Editor
Sumário

Ponto de vista

Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos ...........15
Mario Alighiero Manacorda: a Marxist in the service of full freedom and all ...............................................15
Paolo Nosella

Artigos

A ensaística adorniana e o filosofar em educação ..........................................................................................33


Adornian essay practice and philosophizing in education ....................................................................................................33
Divino José da Silva
Contribuições do sociointeracionismo bakhtiniano e da Análise do Discurso de linha
francesa ao ensino de linguagens .............................................................................................................................49
Contributions of the bakhtinian social-interactionism and the french Discourse Analysis
to language teaching.............................................................................................................................................................................................................49
Katia Resende de Assis Machado
Silvane Aparecida de Freitas
A gestão democrática em espaços não formais de ensino ......................................................................63
Democratic management: the approach in non-formal places of education ...............................................63
Wânia Gonzalez
Elisangela Bernardo
Ações colaborativas: possibilidades de construção de conhecimentos sobre práticas
de ensino........................................................................................................................................................................................77
Collaborative actions: possibilities for building up knowledge on teaching practices .........................77
Ana Paula de Freitas
Papel dos formadores, modelos e estratégias formativos no desenvolvimento docente .......91
Role of teacher educators, formative models and strategies in teacher development .........................91
Ana Ignez Belém Lima Nunes
João Batista Carvalho Nunes
As políticas sociais e a “nova estratégia” de educação integral no Brasil ....................................109
Social policies and “new strategy” for comprehensive education in Brazil .....................................................109
Katharine Ninive Pinto Silva
Jamerson Antonio de Almeida da Silva
Avaliação Educacional: concepções de formandos em Pedagogia ...................................................129
Educational Evaluation: conceptions of graduatings in Pedagogy ..........................................................................129
Carlos Alberto Vasconcelos
Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha: considerações a partir da
pesquisa TALIS (OECD-2009).........................................................................................................................................143
Conditions of teaching work in Brazil and Spain: considerations from TALIS research
(OECD-2009) ..................................................................................................................................................................................................................................143
Rose Meri Trojan
Sonia Regina Landini
Relato biográfico: uma tentativa de compreender as práticas pedagógicas de
professoras da educação infantil ...............................................................................................................................161
Biographical report: an attempt to understand the teaching practices of teachers of
early childhood education............................................................................................................................................................................................161
Maria Izete de Oliveira
Rinalda Bezerra Carlos
Para pensar a educação: sobre produção de subjetividades, afetos e girassóis ......................177
To think about education: production of subjectivities, affections and sunflowers...............................177
Norma Silvia Trindade de Lima
Bioexpressão: uma proposta de formação integral dos alunos do curso de Pedagogia ......189
Bioexpression: a proposal of integral formation of the Pedagogy students ..................................................189
Lucia Helena Pena Pereira
Cíntia Lúcia de Lima
A linguagem do Opressor e do Oprimido presentes na obra “Pygmalion”, de
Bernard Shaw...........................................................................................................................................................................207
The Oppressor and Oppressed language present in the work “Pygmalion” by Bernard
Shaw........................................................................................................................................................................................................................................................207
Magali Rosa de Sant’Anna
Aspectos das práticas escolares da escola de Língua Japonesa e Internato de Pilar
do Sul: rituais e festas ........................................................................................................................................................221
The differents practices at the “Japanese Language and Bording School” in Pilar do
Sul: rituals and festivals...................................................................................................................................................................................................221
Adriana Aparecida Alves da Silva
Wilson Sandano
A imprensa brasileira nos oitocentos e a história da educação: Hipólito da Costa e
o Correio Braziliense ........................................................................................................................................................237
Brazilian press in eighteen hundred and history of education: Hipólito da Costa and
the “Correio Braziliense” ..................................................................................................................................................................................................237
Marcília Rosa Periotto
De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico – educação religiosa e normas de
conduta para mulheres .....................................................................................................................................................253
From Eve to Mary: the Church and catholic marriage – religious education and standards
codes of conduct for women ....................................................................................................................................................................................253
Jane Soares de Almeida
Calil de Siqueira Gomes
Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y asuncenos – a Revolucao dos
Comuneros e a suas consecuencias no espaco das misiones .............................................................265
Conflict and territorial disputes between jesuits and asuncenos – a Comuneros
Revolution and its consequences in the missions ........................................................................................................................265
Mercedes Avellaneda
Educação técnica e profissional em agropecuária: o caso da Escola Municipal
Agrícola Governador Arnaldo Estevão de Figueiredo ..................................................................................287
Technical and professional education in agriculture: the case of Municipal Agricultural
School Governador Arnaldo Estevão de Figueiredo ..................................................................................................................287
Tangria Rosiane Heradão
Jefferson Carriello do Carmo
A participação de professores indígenas na implementação da Política Nacional de
Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) no Brasil .........................................303
The participation of indigenous teachers in the implementation of the National Policy
of Territorial and Environmental Management of Indigenous Territories (PNGATI) in Brasil ...303
Fabiana Pereira de Souza
Heitor Queiroz de Medeiros
Elias dos Santos Bigio
Educação e diversidade cultural nos periódicos InterMeio e Série-Estudos ................................319
Education and cultural diversity in journals InterMeio and Série-Estudos .....................................................319
Fernanda Ros Ortiz
Jacira Helena do Valle Pereira

Resenha

Interações em Rede .............................................................................................................................................................335


Network Interactions............................................................................................................................................................................................................335
Eduardo Luís Figueiredo de Lima
Ponto de vista
Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço
da liberdade plena e para todos1
Mario Alighiero Manacorda: a Marxist in the service
of full freedom and all
Paolo Nosella*
* Mestrado e Doutorado em Filosofia da Educação na PUC/
SP. Professor Titular em Filosofia da Educação na Univer-
sidade Federal de São Carlos/SP. Mestrado e Doutorado
em Fundamentos da Educação. Docente do Programa de
Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Nove
de Julho de São Paulo (UNINOVE). Pesquisador Sênior do
CNPq. E-mail: nosellap@terra.com.br

Resumo
O texto trata do falecimento de Mario Alighiero Manacorda em Roma no dia 17 de fevereiro de 2013,
um dos maiores intelectuais marxistas italianos do século XX. Ao longo do texto é tratado sobre a sua
formação sob o regime fascista, como professor, pesquisador, militante e, por fim um adeus a um grande
homem que soube distinguir a cultura ideal comunista da prática do socialismo real.
Palavras-chave
Mario Alighiero Manacorda. Falecimento. Intelectual.

Abstract
The paper deals with the death of Mario Alighiero Manacorda in Rome on 17 of February of 2013, one
of the largest Italian Marxist intellectuals of the twentieth century. Throughout the text is treated on their
training under the fascist regime, as a teacher, researcher, activist, and finally a farewell to a great man
who knew how to distinguish the ideal communist culture of the practice of real socialism.
Key words
Mario Alighiero Manacorda. Passing. Intellectual.

1
Palestra proferida no X Colóquio Nacional e II Colóquio Internacional do Museu Pedagógico da Uni-
versidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em Vitória da Conquista, em 30 de agosto de 2013.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 15-30, jul./dez. 2013
1 Apagou-se um farol comunista da Itália, dos anos 1950,
1960 e 1970, de Vittorio De Sica,
No dia 17 de fevereiro de 2013, fale- Federico Fellini e Pier Paolo Pasolini.
ceu em Roma Mario Alighiero Manacorda, (e-mail 18 de fev.2013).
um dos maiores intelectuais marxistas Os amigos responderam e divul-
italianos do século XX. No dia seguinte, os garam a notícia. Destaco a resposta de
jornais italianos La Repubblica, Il Corriere Marisa:
e L’Unitá publicaram o seguinte obituário:
Que tristeza, Paolo, o mundo ficou
“Ho vissuto dal princípio alla fine mais pobre sem ele. Eu perco meu
e ormai nessuna sorte, per quanto grande inspirador, o intelectual que
maligna, mi toglierá quello que il mais me influenciou como professora
tempo mi ha dato” (Petronio) [vivi do de História da Educação. Quanto lhe
início ao fim e agora nenhuma sorte, devo! Ele me deu tanta energia sem
por maligna que seja, me furtará o o saber! Estará para sempre no meu
que o tempo me deu]. Apagou-se um coração, nas minhas aulas, no meu
farol: MARIO ALIGHIERO MANACOR- pensamento, nos meus escritos e
DA, historiador, literato, intelectual, reflexões. Nunca morrerá. Obrigada
esportista, nos deixou. Um homem por ter me ajudado a conhecê-lo
único que perseguiu com espírito pessoalmente. Foi um dos momentos
laico, durante um século, a humana mais emocionantes e significativos da
solidariedade de corpo e de mente, minha vida. Meu grande abraço neste
de razão e sentimento. Com Anna momento em que você se sente órfão.
Maria, maravilhosa companheira de (e-mail, Marisa, 18 de fev., 2013).
uma inteira vida, choram os netos de
três gerações. A última despedida será No dia 9 de dezembro de 2012, pelo
na quarta feira, 20 fevereiro, às 10 seu aniversário de 98 anos, havia recebido
horas, no templo egípcio do Verano. um novo computador para revisar seu tra-
(e-mail de Giuseppe Manacorda, 18 balho sobre jogos e esportes na história:
de fev. 2013). “Diana e as Musas: três milênios de espor-
Encaminhei essa informação aos tes na literatura. Antologia comentada de
amigos José Claudinei Lombardi (Zezo), Homero aos nossos dias”, texto inédito de
Gaudêncio Frigotto e Marisa Bittar, solici- mais de 1200 páginas.
tando divulgação e acrescentando: De onde extraia tanta energia? Teve
a sorte de herdar um organismo biologi-
Amigos, quando penso nele, um nó
camente privilegiado, ao qual correspon-
me fecha a garganta. Meu inspirador
intelectual. Mais do que isso: meu deu alternando sabiamente atividades
exemplo de vida, porque eu queria intelectuais com físicas. Era um excelente
viver como ele, trabalhando com as esportista (nadador) e sabia deleitar-se
mãos e a cabeça; era, também, mi- de todas as simples e boas coisas da
nha ligação com aquela bela cultura vida. Nascido em Roma, em 1914, onde

16 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
possuía um pequeno apartamento de A primeira enfatiza a importância do tes-
apoio, transcorria a maior parte do ano temunho individual do professor, mesmo
na casa de campo de Bolsena, no lago à revelia da ideologia do sistema político
homônimo, onde estudava, escrevia e e da gestão escolar: “A marca do ensino,
cuidava da pequena propriedade que lhe quase sempre liberal-conservadora, depen-
proporcionava o vinho, o azeite, o mel, as dia muito da individualidade do professor”
frutas e as verduras. (MANACORDA, 2010, p. 29). A segunda
destaca a íntima força ético-política da ele-
2 Formação vada cultura: “A longo prazo, por meio de
mil contradições, a cultura termina sempre
As quartas capas ou as orelhas de
sendo revolucionária” (MANACORDA, 1985,
seus livros trazem quase sempre uma
p. 159). São duas ideias que confluem na
sinopse de seu percurso formativo. Mas
convicção de que a ideologia e a política
a melhor narração encontra-se no texto
da instituição nem sempre correspondem
La mia scuola sotto il fascismo [A minha
aos valores professados individualmente
escola sob o fascismo] (Manacorda, 2010),
pelos educadores que nela trabalham. Por
delicioso autorretrato de sua trajetória es-
isso o laicismo e o socialismo, dimensões
colar, desde o jardim da infância das Irmãs
fundamentais para Manacorda, não o im-
Francesas do Sagrado Coração (1918) até
pediram de reconhecer e elogiar mestres
os anos universitários e as primeiras expe-
que vestiam a batina sacerdotal ou mesmo
riências como professor (1943). Toda sua
que haviam aderido ao fascismo. Assim,
escolarização ocorreu durante o governo
por exemplo, com admiração, rememora
fascista: cinco anos de instrução elementar,
o caríssimo professor Pe. Primo Vannutelli:
cinco de ginásio (com latim e grego), três
de liceu clássico, quatro de universidade Seja-me permitido lhe dedicar uma
(na Escola Normal Superior de Pisa) e um recordação particular de estima e
afeto. [...] Era um sacerdote sui generis,
de aperfeiçoamento em Frankfurt.
homem de profunda cultura e huma-
Existe um segundo depoimento em nidade, espírito tolerante, competen-
que analisa especificamente o período tíssimo não apenas de latim e grego,
de formação universitária: Il contributo mas também de hebraico e de cultura
dell’universitá di Pisa e della Scuola Nor- bíblica; leitor de latim na Faculdade
male Superiore alla lotta antifascista ed de Letras da Universidade La Sapien-
alla guerra di liberazione [A contribuição za, onde dava aulas de latim. [...] Era
da Universidade de Pisa e da Escola para nós um ponto de referência em
Normal Superior na luta antifascista e na nossos estudos [...]. Sua lembrança é
guerra de libertação] (Manacorda, 1985). para mim e para minha mulher – nos
Na leitura desses depoimentos, há conhecemos nos bancos do Liceu –
entre as mais caras de nossas vidas.
duas ideias fortes sobre a influência da
(MANACORDA, 1985, p. 32).
instituição escolar na formação do aluno.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 15-30, jul./dez. 2013. 17


Como sabemos, o clero representa a-fascistas, ou talvez também antifas-
a categoria mais típica dos intelectuais cistas, mais por dignidade e moral do
tradicionais e, justamente por isso, por que por reflexivas razões políticas. [...]
não estar organicamente comprometida Gentile era sem dúvida uma grande
personalidade, e eu, mesmo que mais
com esta ou aquela classe econômica
tarde tenha duramente criticado suas
fundamental ou com uma proposta política
ideias, continuo conservando uma
definida, ondula, com aparência de auto- boa lembrança de sua humana
nomia, entre o apoio ora a movimentos pessoa. (MANACORDA, 2010, p. 42).
políticos progressistas, ora conservadores e
reacionários, conforme valores individuais. Gentile amava a Escola Normal
Um segundo nome, entre os vários Superior de Pisa, considerando-a a melhor
citados no depoimento sobre a Universida- “norma” escolar para a formação das elites
de de Pisa, é Giovanni Gentile. Manacorda italianas, tanto que, quando Diretor, elevou
frequentou essa renomada Universidade o número de suas matrículas de duas
entre os anos de 1932 até 1936, justamente dúzias para mais de uma centena:
quando Gentile, que também fora aluno A ampliação da Escola Normal deter-
daquela Instituição, era diretor. Sem dúvida, minada por Gentile não foi um triunfo
um exímio diretor e professor. Gentile fora do fascismo; em longo prazo, por meio
ministro da Pública Instrução no governo de mil contradições, a cultura termina
fascista do ano de 1922 a 1924. Renunciou sempre sendo revolucionária. Como
foram as Universidades do Risorgi-
ao cargo em decorrência de seu desacordo
mento, de onde saíram os Lorenzo
com o assassinato do deputado socialista Benoni-Ruffini e i Fantasi-Mazzini,
Matteotti. Sua reforma da escola marcou assim a Normal era predestinada a se
a cultura italiana, menos por ser uma tornar ela também viveiro de liberda-
reforma fascista (como muitos sustentam) de. (MANACORDA, 1985, p. 149-150).
quanto por ser idealista e elitista, ou seja,
Com efeito, o antiautoritarismo políti-
a caricatura populista da proposta fascista
co está sempre subtencionado na cultura;
após 1936 não teve o consentimento de
ao contrário, o mau gosto da ignorância e
Gentile. Desse ponto de vista, entende-se
do populismo é sempre um caldo oportuno
o depoimento de Manacorda:
para todo tipo de autoritarismo.
Os anos da Escola Normal foram para Não poderia deixar de acenar à didá-
mim autênticos anos de noviciado tica do ensino da palavra, espinha dorsal
cultural e político. Aí o antifascismo
da metodologia que formou Manacorda,
era de casa, os veteranos nos pas-
sobretudo no liceu, onde encontrou pro-
savam a memória dos normalistas
que os precederam, exaltando sua fessores muito severos voltados para um
severa moralidade, a cultura e, sobre- ensino rigorosamente histórico filológico,
tudo, seu rigor moral ainda da velha para os quais a gramática não era a porta
marca liberal. Os nossos anos foram de acesso aos autores, ao contrário: “No

18 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
liceu (ensino médio) começamos a ler os daquelas harmonias de tanto que as
autores por si mesmos e, finalmente, a gra- sentíamos nossas e sentíamos que
mática serviu os autores e não os autores jamais deixarão de fazer parte de
à gramática” (MANACORDA, idem ibidem, nosso espírito. [...] (GRAMSCI, A luz que
se apagou, Cronache Torinesi, Einaudi
2010, p. 3). Nessa escola, Manacorda se
Editore, 1980, p. 23-24).
tornou um mestre da palavra. Por meio da
difícil arte da filologia e da hermenêutica, Esse elogio, como disse, aplica-se
na leitura dos clássicos e dos documentos perfeitamente ao nosso mestre: a forma
históricos em geral, retratava a história da como lia e comentava alguns passos da
educação à luz de valores humanistas obra de Santo Agostinho ou de Karl Marx,
absolutos. com grandes reservas para o primeiro e
indiscutíveis afinidades teóricas com o se-
3 Professor gundo, me deixava boquiaberto; ensinava-
me de fato “como abrir” um texto clássico,
Pode-se dizer que Mario era pro- como compreender certas passagens.
fessor nato. Assunto e forma didática Gostava de datar tudo, se possível, identifi-
encantavam alunos e ouvintes em geral, cando o mês e o dia, os interlocutores e as
motivando-os a ler e amar os clássicos. A circunstâncias em que foram redigidas. Era
ele aplica-se perfeitamente o elogio que um verdadeiro mestre, um mago da cultura.
Gramsci fez dos professores Renato Serra Começou a lecionar literatura ita-
e Francesco De Sanctis. Permitam-me a liana no liceu clássico de Siena, em 1939.
bela citação: Eram os anos do fascismo mais insensato,
Esses dois homens foram, realmente, e a pressão política fazia-se sentir cada vez
mestres, como entendiam os gregos, mais irracional, ridícula e cruel. A escola,
isto é, mistagogos; iniciaram-nos nos felizmente, abrigava muitos homens cuja
mistérios da poesia, mostrando que postura liberal e crítica evidenciava que,
esses ‘mistérios’ são vãs construções conforme disse, a relação dialética entre
de literatos e que tudo é tão claro, lím-
sistema político e instituição escolar não
pido aos que têm olhos puros e vêm a
luz como cor e não como vibrações de é absoluta e mecânica:
íons e elétrons. Esses dois mestres são O diretor Orsini Begani era um
colaboradores da poesia, leitores da verdadeiro cavaleiro de marca libe-
poesia. Todos seus ensaios são novas ral que me acolheu com paternal
luzes que se acendem para nós. Nos cordialidade e, no final do dia, me
sentíamos como que arrebatados por levou para visitar a cidade que eu
um encanto. [...] A palavra deixava ainda não conhecia. [...] Conversando
de ser um elemento gramatical que amavelmente, me disse, entre outras
devia ser encaixada em regras e em coisas, que nas ‘notas características’
esquemas livrescos; [...] nos davam que era obrigado a redigir sobre os
a ilusão de sermos nós os criadores professores ficava em posição muito

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 15-30, jul./dez. 2013. 19


prudente, assim que, por exemplo, sibilidade de lecionar às crianças de
justificava um professor conhecido seu povo, não esqueçam, sobretudo,
como liberal e antifascista, definindo- duas coisas: que vocês também, uma
o como ‘homem da ordem’. Dessa vez, foram crianças e que um aluno
forma nos defendíamos do fascismo distraído não é um aluno imbecil, é
reinante. [...] Eu dava aula lendo os um aluno que tem outros interesses.
clássicos italianos e latinos, e os (MANACORDA, DVD, 2007, p. 20).
comentava com grande participação.
Mario concebia a escola voltada à
(MANACORDA, 2010, p. 45-45).
formação onilateral que garantisse “com
Após a queda do fascismo, os ita- firme doçura” (MANACORDA, DVD, 2007)
lianos, que na clandestinidade haviam os ensinamentos rigorosos necessários ao
lutado contra ele, puderam finalmente homem para ser um homem moderno e,
hastear as bandeiras de seus Partidos ao mesmo tempo, possibilitasse a cada um
Democráticos. Os comunistas também se formar livremente naquilo que é do seu
hastearam as bandeiras vermelhas e vol- gosto (MANACORDA, DVD, 2007). Ou seja,
taram a cantar abertamente o conhecido a escola, para ele, deveria ser um centro
hino popular Bandiera rossa trionferá. difusor de elevada cultura para todos.
Entre estes havia o Professor Manacorda, Uma vez que, obviamente, a escola não
comunista, militante, agora Diretor da Es- poderia especializar cada aluno nos vários
cola/Convivência (instituição em que os ramos da cultura, das artes, da ciência, da
alunos recebem formação, alimentação e literatura e da tecnologia, deveria ensinar
moradia) para partisãos e ex-combatentes como “desfrutar de todas as contribuições
da Associação Nacional Partisãos da Itália da civilização” (MANACORDA, DVD, 2007):
em Roma (ANPI). É preciso que a escola, ao invés de ser
Seguiu carreira de Professor Univer- um lugar aberto, cinco horas diárias,
sitário, assumindo a cátedra de História da durante nove meses por ano e, pelo
Pedagogia, primeiramente na Universidade resto do tempo, permanecer fechada e
de Cagliari, Viterbo, Florença e, finalmente, vazia, seja o espaço dos adolescentes
de Roma (La Sapienza). A profissão de onde recebam da sociedade adulta
professor o orgulhava, conforme deixou tudo o que é possível receber e ao
explícito numa mensagem que enviou mesmo tempo sejam estimulados
para os alunos brasileiros dos cursos de em suas qualidades pessoais e ca-
Pedagogia, futuros professores: pacitados de gozar todos os prazeres
humanos. (MANACORDA, DVD, 2007).
Em que pese tanta retórica que
se utilizou sobre essa profissão de O maior desafio didático da escola
professor, é sempre uma das profis- moderna, para Manacorda, é superar as ve-
sões mais bonitas porque se trata lhas concepções autoritárias e doutrinárias
justamente de ajudar a nascer o da pedagogia tradicional, mas também, a
homem do futuro. Se tiverem a pos- concepção liberal idealista que destina

20 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
uma escola de elevada cultura para os 4 Pesquisador
dirigentes e outra de abstrata cultura ins-
trumental para as classes trabalhadoras. Suas atividades docentes embasa-
(MANACORDA, DVD, 2007). vam-se em pesquisas de documentos e
Quem conheceu Mário, pessoalmen- textos dos clássicos da filosofia, da peda-
te, sabe que ele tinha o dom da comunica- gogia e da literatura em geral. Filólogo e
ção. Sua voz de barítono, com o inconfun- linguista, além do grego e latim clássicos,
dível sotaque romano, conservara-se clara conhecia perfeitamente o inglês, o alemão
e forte até os últimos anos de vida. Quando e o russo. As línguas francesa, espanhola
alguém lhe colocasse um microfone na e portuguesa não representavam para ele
frente, aí se transformava, como vimos na dificuldade de entendimento. Era apaixo-
videoconferência do VIIº Seminário Nacio- nado por línguas porque era apaixonado
nal na UNICAMP, em Julho de 2006. Não pela palavra que, como bom leitor de
utilizou óculos, nem caneta, nem papel. Giambattista Vico, sabia não nascer se-
Nenhuma anotação. Falou mais de uma parada do pensamento, mas inseparavel-
hora, fluente e espontaneamente, citando mente junto com este. Mais ainda, sabia
datas e nomes, esboçando em densa que palavra e pensamento nascem e
síntese um balanço político, econômico “concrescem” (termo amado por ele) junto
e cultural do século XX. Sua fala era ágil, com as condições materiais, políticas e ide-
precisa, elegante, sem o tom do decorado. ológicas vivenciadas pelo ser humano. Por
Era um exímio professor e orador. isso, para compreender uma palavra não
Não sem razão, a R.A.I. (Rádio Televi- bastava recorrer ao dicionário, precisava
são Italiana) o convidara, em 1980, para ser perscrutar a situação concreta vivida por
o autor (e ator) de uma série de transmis- quem falou ou escreveu. Em suma: filologia
sões radiofônicas intituladas “A escola nos e hermenêutica eram os seus principais
séculos”. Ao todo, foram doze transmissões instrumentos técnicos de pesquisa.
com base na leitura direta de seus textos Inicialmente, nos anos de 1942
para uma sala de aula do tamanho da a 1962, traduzira textos literários como:
Itália. Sua proposta inicial era realizar uma Novalis, Cristianitá o Europa, Einaudi,
exposição pela Televisão Italiana acompa- 1942; Hugo von Hofmannsthal, La donna
nhada de imagens de obras de arte e fotos senz’ombra, Guanda, 1946; Karl Marx, Le
sobre educação nos séculos. Tal ideia não lotte di classe in Francia dal 1848 al 1850,
foi efetivada pelas dificuldades técnicas Einaudi, 1948; Marx-Engels, Carteggio:
que apresentava, porém está impressa em gennaio 1852- dicembre 1864, 3 vols.,
forma de um belíssimo volume Storia illus- Editori Riuniti, 1972. Elegera como objetivo
trata dell’educazione - dall’antico Egitto ai geral de seu trabalho intelectual cuidar
giorni nostri. Editora Giunti, Florença, 1992. da coleção “Os clássicos do marxismo”,
traduzindo e comentando do original para
o italiano os textos mais importantes do

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marxismo sobre Educação. Para isso, pro- parte final da nota 14 do seu livro “Marx e
duziu a importante antologia: Il marxismo a pedagogia moderna” (2007), se lê:
e l’educazione, testi e documenti, em três Remonta exatamente a Lênin a
volumes. Vol. 1º, I classici: Marx, Engels, escolha do termo “politécnico” em
Lênin, Editora Armando Armando, Roma, vez de “tecnológico” para o ensino
1964; vol. 2º, La scuola soviética (1917- na perspectiva do socialismo. Foi
1964), Editora Armando Armando, Roma, precisamente a sua autoridade que,
1965; vol. 3º, La scuola nei paesi socialisti, posteriormente, determinou o uso
Editora Armando Armando, Roma, 1966. constante de “politécnico”, não só na
Essa antologia comentada merece terminologia pedagógica de todos os
um destaque especial por representar a países socialistas, mas também – o
que é filologicamente incorreto – em
base documental de toda sua produção
todas as traduções oficiais dos textos
posterior sobre o tema educação e mar- marxianos em russo e, daí, em todas
xismo; em particular, o primeiro volume. as demais línguas, inclusive quando
A epígrafe inicial conota a preocupação Marx escreveu ou falou em inglês,
do autor ao entreprender esse trabalho: como nas suas intervenções na
“Gostaria também recomendar-lhe que Internacional, foi traduzido em “seu”
estude esta teoria nas fontes originais, e alemão technological por polytechis-
não de segunda mão” (Carta de F. Engels ch. Também, finalmente, quando varia
a G. Bloch). Mas, não sendo possível para os termos alternando technological e
todos os seus alunos a leitura nos originais, technical, para distinguir consciente-
Manacorda garantiu o rigor da tradução. mente a escola socialista da burgue-
sa, traduzem sempre por polytechnis-
Os textos e os documentos seguem ri-
ch, criando inevitavelmente bastante
gorosamente a sequência cronológica, confusão. É desnecessário repetir,
acrescentando informações precisas e até aqui, quanto de importância se deva
meticulosas sobre o momento em que atribuir à escolha de uma palavra. À
foram redigidos. Não o diz explicitamente, parte a “responsabilidade” de Lênin,
mas entende-se que para ele as edições que – repitamos – foi o primeiro, e por
russas (Moscou) dos clássicos marxistas, longo tempo o único, a compreender
bem como muitas edições italianas, não e relançar aquelas teses marxianas,
ofereciam o rigor filológico necessário. parece que a ênfase tecnicista, quer
Sobre seu rigor de tradução, há um dizer aquele risco de o ensino socia-
exemplo, já emblemático entre nós, que lista decair a esse ensino “industrial
universal” (ou, como se deveria dizer
ilustra muito bem a grande preocupação
hoje, “polivalente”, que, com ou sem
metodológica de Manacorda. Trata-se de razão, muitos creem divisar), tem,
um erro de tradução, involuntariamente naquela escolha filológica, se não a
de sua autoria, de um termo marxiano sua origem, pelo menos um indício.
que, posteriormente, foi por ele corrigido, Consideramos, por outro lado, nosso
da palavra “politecnia ou tecnologia”. Na dever acrescentar, aqui, que a tra-

22 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
dução das Istruzioni ai Delegati, do como apresentação da tradução no Brasil
citado primeiro volume da obra IL do seu livro “História da Educação – da An-
Marxismo e I’Educazione (1964, p. tiguidade aos nossos dias”, Editora Cortez.
82-84), feita a partir do texto alemão, Em sua carta resposta, manuscrita,
usa sempre o termo “politécnico”, até de Bolsena, diz:
quando deveria dizer “tecnológico”,
isto é, em todos os casos exceto um. Caro Paolo, sua apresentação está
Pedimos desculpas aos eventuais ótima [...]. Talvez, eu esclareceria me-
leitores daquele volume. Atualmente, lhor a escola “politécnica” e a função
dispomos, afinal, do original inglês, do industrialismo; [...]. Diria “uma
The General Council of the First escola tecnológica”, sublinhando
International, 1868-1870, Minutes, os princípios científicos gerais e não
Moscow, Progress Publishers, s.d. (será somente as exigências do pluripro-
1864?), do Instituto para o marxismo fissionalismo. Ciao. Grazie. tuo Mario.
leninismo. (MANACORDA, 2007, p. [negrito meu]
192-193). Eu havia escrito:
Com outras palavras, Manacorda Sem dúvida, na visão dessa obra, o
diz que, no primeiro volume da antologia momento estratégico da síntese da
Il marxismo e l’educazione de 1964, havia- Escola-do-dizer com o Treinamento-
se utilizado do texto de Marx Istruzione ai para-o-fazer será marcado pela
revolução industrial que, negando o
delegati na tradução alemã, em que em-
‘sapateiro por natureza’ de Platão, des-
prega o termo “politécnico” mesmo quando
truindo também o treinamento-para-
deveria empregar o termo “tecnológico”. sapateiro dado nas corporações me-
Mais tarde, todavia, verificou que o texto dievais, fixa as bases de uma escola
original era em inglês e utilizava o termo politécnica para os trabalhadores
technological, isto é “tecnológico”. Assim, e lança a hipótese de uma escola
pede desculpas aos leitores pelo equívoco para todos, como espaço e tempo de
que, finalmente, corrigiu no seu novo livro plenitude de vida. (Nosella, São Carlos,
Marx e la pedagogia moderna de 1966, outubro de 1988). [negrito meu]
que foi traduzido em língua espanhola, Obviamente, em decorrência de sua
na Colección Libros Tau, Barcelona 1969; resposta, substitui o termo “politécnica”
em seguida, em português (Editora Cortez por “tecnológica”. Hoje, o livro “História da
e Autores Associados, São Paulo 1991); e, Educação – da antiguidade aos nossos
ultimamente, pela Editora Alínea, Campi- dias” está no Brasil na 1ª reimpressão
nas 2007. da 13ª edição. É um belo livro de 455
Sobre o mesmo assunto, há outra páginas, originado, como disse, das doze
curiosidade significativa. Em 1988, lhe transmissões radiofónicas de 1980. É lido,
enviei para apreciação o meu texto: “Ao preferencialmente, entre os alunos dos
leitor brasileiro”, destinado a ser publicado cursos de Pedagogia e pós-graduação em

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Educação, na disciplina História da Edu- palavra “conformismo”, para chocar os
cação. É um amplo passeio pelos séculos, imbecis. (GRAMSCI, in MANACORDA,
discorrendo sobre educação e pedagogia 2008).
com base, sobretudo, em textos clássicos Esse livro mostra o jovem professor
da literatura: Mario Manacorda intento a formar seus
Minha intenção foi não fazer um alunos pela disciplina nos estudos, con-
texto corporativo que fale do interior formando seus instintos à árdua lógica
da escola, mas que se relacione com do trabalho intelectual. Coerente com
o crescimento geral da sociedade, essa ideia, esse livro cita com destaque o
nos aspectos culturais e também caderno do cárcere n. 22, Americanismo e
nos aspectos da vida cotidiana e do fordismo, de Gramsci.
trabalho (MANACORDA , DVD, 2007, O segundo livro é uma seleção de
p. 15 do livreto).
textos de Gramsci, organizados conforme
Em 1970, Manacorda ensinava um plano teórico que destaca a concep-
História da Educação na Universidade de ção de educação como processo político
Cagliari, na Sardenha, terra natal de An- hegemônico que ocorre no interior das
tonio Gramsci. Empenhado na tradução e instituições escolares, mas, sobretudo, em
difusão do pensamento marxista na Itália, todas as complexas relações coletivas e
não poderia, obviamente, deixar de apre- individuais da sociedade.
sentar aos seus alunos o pensamento pe- O primeiro livro foi traduzido e
dagógico do coetâneo deles, considerado o publicado no Brasil pela Editora Artes
maior intelectual marxista. Assim, publica, Médicas de Porto Alegre, em 1990 e, em
entre 1970 e 1972, Il principio educativo segunda edição, pela Editora Alínea de
in Gramsci e Antonio Gramsci, l’alternativa Campinas, em 2008. A antologia não foi
pedagógica. O primeiro, dedicado Aos aqui publicada. Na Itália, os dois livros
meus estudantes de Cagliari, levava como foram ultimamente relançados pela Editori
subtítulo: Americanismo e conformismo e a Riuniti university press, Roma, 2012, eviden-
epígrafe escolhida deixa claro o intuito pro- ciando o renascimento atual dos estudos
vocativo de Manacorda contra a tendência marxistas na Itália.
liberalizante do pensamento pedagógico, Na trajetória formativa de Mana-
certo laisséz faire ou espontaneísmo em corda, a década de 1960, marcada pela
educação: publicação (seleção dos textos, tradução e
O antiamericanismo é antes cômico comentários) da citada trilogia Il marxismo
que estúpido. e l’educazione, pouco conhecida, na ver-
A respeito do “conformismo” social [...] dade, mas determinante na sua formação
o alarme dado por certos intelectuais teórica, representou a descoberta e a posse
é apenas cômico... definitiva do método marxista, il filo rosso,
[...] me agrada utilizar precisamente a o fio de Ariadne, vermelho, que o acom-

24 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
panharia na compreensão dos fatos e da rino Boringhieri, 1983). Em 1977, publicou
cultura do século XX, verdadeiro labirinto um estudo Per uma pedagogia dell’uomo
teórico que desafia qualquer analista: integrale, na Revista Critica Marxista, n.
Um século que foi chamado por al- 4-5. Em 1980, na mesma revista, n. 6,
guém [Eric J. Hobsbawm] um século publicou Pedagogia e politica scolástica
breve ou, por outros, um século longo del P.C.I. dalle origini alla liberazione. Em
[Fernand Braudel]. Para mim, é muito 1988, ainda na Revista Critica marxista n.
longo. Em todo caso, nos deu muito 5, publicou Franco Rodano lettore di Marx.
de bom e muito de ruim. Diria em Um carinho particular demostrava
medida exorbitante comparando com para o livro Lettura laica della bibbia,
todos os outros séculos da história Editori Riuniti, Roma, 1989. Literariamente
humana. Foi um século de fortes ace- original, evidencia a grande postura laica
lerações e de fortes contrastes. Diria,
de Mario: qual a razão de tamanha fortuna
aliás, que é caracterizado exatamente
por um excesso de contraditoriedade.
histórica da Bíblia, pergunta-lhe um dia
A contradição é uma boa chave de lei- Yúkiko, sua admiradora japonesa? Vocês
tura para esse século. (MANACORDA, ocidentais – continua Yúkiko – referem-
DVD, livreto, 2007, p. 8-9). se à nossa cultura como expressão do
“mistério oriental”, mas, na verdade, nós
Sem abrir mão do filo rosso, isto é,
orientais estranhamos o mistério da cultura
da raiz da história que é o trabalho do
ocidental. Tão racionalista como se crê,
homem em colaboração com os outros
como pode essa cultura reverenciar livros
homens para dominar e humanizar a na-
sagrados que narram histórias de patriar-
tureza, o perfil intelectual de Manacorda
cas que se dispõem a matar seu filho por
tomava cada vez mais a forma poliédrica:
ordem de um deus pai misericordioso e im-
variada nos assuntos, unitária no método.
por a todos a adoração de um deus único
Na Itália, são conhecidas suas intervenções
em três pessoas? Manacorda, estimulado
no debate pedagógico em favor da unici-
pelas provocações da amiga, estrutura um
dade do ensino médio (ginásio e liceu),
livro alternando as cartas dela às suas
mas também seus estudos históricos da
respostas. Ao todo, são 58 cartas, datadas
Antiguidade, como, por exemplo, sobre a
de junho de 1987 a outubro de 1988, nas
crise ideal educativa do IV século d.C. em
quais “explica” laicamente o “mistério”
torno da figura e da proposta educativa
da alma ocidental; as origens míticas do
de Juliano, o Apóstata que contrapunha à
mundo e dos homens; o conteúdo histórico
Paideia de Cristo a Paideia de Aquiles (A
dos patriarcas etc.. Na última carta, Yúkiko
paideia de Aquiles, Editori Riuniti, Roma
pergunta: “Caro Mario, por que os homens
1971) e sobre as origens e o perfil da
têm necessidade de buscar fora do homem
profissão docente na antiga Grécia e em
as razões do homem?” E Mario responde:
Roma (Scuola e Insegnati, cap. IX, in Oralitá,
“Sim, eu também sonho uma humanida-
scrittura, spettacolo. Org. Mario Vegetti, To-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 15-30, jul./dez. 2013. 25


de futura que não tenha necessidade de uma alma, há um corpo animado ou uma
buscar fora de si as razões para uma sua alma encarnada. Com efeito, essas páginas
convivência solidária e fraterna. “ (Lettura representam uma atenta costura de textos
laica della Bibbia, p. 283). clássicos, comentados, feita com o filo rosso
O último grande trabalho de Mana- característico do método marxista.
corda, de 1.200 páginas, em fase de revisão,
é Diana e le muse: tre millenni di sport 5 Militante
nella letteratura – antologia ragionata da
Um dia, em 1987, perguntei: “Mário,
Omero a noi (Diana e as musas: três milê-
qual sua relação com o Partido Comunista
nios de esportes na literatura – antologia
Italiano?” Respondeu: “O partido fez meus
comentada de Homero aos nossos dias).
dentes e, depois, me deu muito osso para
Ele faleceu sem poder ver o livro:
roer.” Não acrescentou mais nada. Naquele
Esse trabalho sobre o esporte decidi ano, o PCI já havia sido extinto e substituí-
dividi-lo numa antologia esportiva do pelo P.D.S. (Partido Democrático Social).
onde tem Homero, tem Píndaro, tem
Manacorda, desgostoso, havia aderido ao
Virgílio; mas tem também Dante,
Petrarca, Erasmo de Rotherdam, tem
grupo político de Refundação Comunista:
Goete, tem até Shakespeare porque Do fim do socialismo real devemos
a literatura está cheia de referências tirar uma conclusão ruim (brutta). Que
ao esporte que as histórias literárias não se deve mais fazer revoluções.
põem num canto. Os intelectuais se Mas, também, que se devem fazer
envergonham de serem também es- revoluções todos os dias, porque
portivos, ou talvez não o sejam, talvez haverá sempre necessidade delas.
sejam apenas torcedores. (DVD, livreto, Parece contraditório, mas é assim.
2007, p. 18). Com efeito, se [as experiência do so-
cialismo real] acabaram mal, significa
Alguém poderia pensar que Mana-
que as coisas permaneceram num
corda estava esquecendo o marxismo e ponto ruim de sua história. Então será
pagando tributo desmerecido à corrente sempre necessário fazê-las. O que nos
teórica chamada Nova História. Nada disso. interessa é o ‘como’. Marx distinguia,
Ele, sem negar a importante contribuição na premissa das ‘Lutas de classe na
na historiografia dos Annales Franceses, França em 1948’, a insurreição da
com essa obra objetiva criticar a separação revolução, dizendo que no decorrer
entre o físico e o cultural, herança da filo- da luta de 1948 o Partido Insurrecio-
sofia espiritualista e idealista: “Não se move nal havia amadurecido para Partido
o corpo sem um trabalho da inteligência, Revolucionário: da insurreição para
revolução. Este é o progresso que
nem a inteligência sem um trabalho do
precisamos fazer. Revolução significa
corpo, do cérebro, da voz, da caneta, do
mudança total dos sistemas sociais [...].
computador” (Diana e le muse, 2008, p. Creio que se trate de um ensinamento
10). Não há, costumava dizer, um corpo e

26 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
marxista muito esquecido, quer pelos Insisto (com esse nome) porque
seus seguidores, quer pelos seus sei distinguir a tradição cultural e
adversários. [...] Eu já havia cortado o socialismo real. Partindo desta
as relações com a União Soviética distinção, podemos ainda evocar
de Brejnev e havia sempre corrigido um ideal que conserva o nome de
os companheiros soviéticos pela sua comunismo, embora no mundo já
interpretação errônea de Marx, como existam poucos comunistas; mas a
se fosse um teórico do poder; era um necessidade de um resgate geral
teórico da liberdade civil. (DVD, 2007, do homem, de superar esta situação
p. 9-10). de divisão da humanidade que o
progresso científico e técnico de hoje
A militância de Manacorda carac-
acentua e exaspera, esta exigência
terizava-se pela sua atuação no campo permanece. [...] Enquanto não saímos
da cultura; era um difusor dos ideais dessa contradição, que é planetária,
comunistas nas expressões culturais mais um ideal, que até hoje foi chamado
elevadas. Foi Diretor das Edições Rinascita; de comunista, é necessário, qualquer
responsável da Comissão “Escola” junto que seja o nome que a humanidade
à Direção do Partido Comunista Italiano; futura queira escolher. Eu assim me
responsável da “Seção Educação” do Ins- nomeei, sou um homem do século
tituto Gramsci; Diretor da “Revista Reforma passado; não seria decoroso que re-
da Escola”; membro do Comitê Diretivo da negasse a mim mesmo como fizeram
muitos outros. (DVD, 2007, p. 14-15).
“Federação Internacional dos Sindicatos
do Ensino”; membro da Comissão Italiana Obviamente, neste breve texto, não
na UNESCO; colaborador de vários outros poderei deixar de destacar a relação de
Jornais, Revistas e, como vimos, também da Manacorda com o Brasil. Ainda recente-
R.A.I. (Rádio Televisão Italiana). Em minha mente, quando o vi em Roma, ao falar-lhe
pequena biblioteca pessoal, conservo mui- do Brasil se emocionava. A primeira vez
tos exemplares das revistas Riforma della que visitei Mário, em sua residência de Bol-
scuola e Rinascita. Folhando-as, mesmo sena, foi em fevereiro de 1985. Fui visitá-lo
que rapidamente, percebe-se logo uma porque, conhecendo seus livros em língua
característica editorial: a preocupação com espanhola Marx y la pedagogia moderna
a comunicação de massa e com o elevado (Barcelona, 1969) e El principio educativo
nível cultural e científico. Não há ranço de en Gramsci (Salamanca, 1977), que circula-
sectarismo político, nem, como ele dizia, de vam entre nós educadores brasileiros, dese-
“racismo ideológico”. java trocar ideias sobre literatura marxista
Aberto ideologicamente, insistia, em educação e, quem sabe, publicar aqui
todavia, em se identificar como comunista, algumas das suas obras. Ainda guardo
mesmo quando a denominação era fora com carinho o exemplar do seu livro Sto-
de moda: ria dell’educazione – dall’antiquitá a oggi
Edição ERI, Torino, 1883, recebido de suas

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 15-30, jul./dez. 2013. 27


mãos naquela ocasião. Na 1ª folha em tória, Sociedade e Educação no Brasil” (HIS-
branco, manuscrito, se lê: a Paolo Nosella, TEDBR) comemorava 20 anos de fundação.
ricordo de uma viva conversazione su temi Dermeval Saviani me telefonou solicitando
di comune impegno. Bolsena, 5 febbraio que contatasse o Prof. Mario Alighiero
1985. Mario A. Manacorda (assinado). Em Manacorda para proferir a conferência de
1986, a Revista da Associação Nacional de abertura do VII Seminário Nacional pro-
Educação (ANDE), n. 10, publicou trechos movido pelo grupo na UNICAMP, em julho
de uma entrevista com ele, realizada por daquele ano. A intenção dos organizado-
Maria de Lourdes Stamato De Camillis. res do evento era trazê-lo pessoalmente,
Em 1987, o Programa de Pós- mas a idade avançada (93 anos), mesmo
Graduação de São Carlos, SP, coordenado gozando de boa saúde, aconselhou a “pre-
pela Profª Ester Buffa, organizara um sença virtual”. O tema da conferência foi “O
Seminário Comemorativo dos 10 anos século XX e as perspectivas para o futuro”.
de funcionamento: “Por que – disse para Diante do microfone, Mario falou mais de
Ester – não convidarmos Manacorda para uma hora, fazendo um denso balanço do
proferir a palestra de abertura?” Foi traba- século XX e apontando problemas para o
lhoso, mas conseguimos trazê-lo. Proferiu século XXI (o texto foi publicado no livro
aqui a palestra “Humanismo de Marx e “Navegando pela História da Educação
industrialismo de Gramsci”, posteriormente Brasileira-20 anos do HISTEDBR”, Editora
traduzida e publicada no livro “Trabalho, Autores Associados, Campinas, 2009). Na
educação e prática social”, organizado oportunidade, foi possível também realizar
por Tomaz T. da Silva, Editora Artes médi- na casa de campo de Bolsena uma entre-
cas, Porto Alegre, 1991. Na oportunidade, vista filmada que deu origem a um simpá-
Manacorda realizou um ciclo de palestras tico DVD, ainda a disposição graciosa dos
em várias universidades brasileiras. Essa simpatizantes, Mario Alighiero Mancorda
sua permanência no Brasil, quando tam- aos educadores brasileiros.
bém deu várias entrevistas (uma delas foi Sua preocupação incessante com
publicada em 1989 pela Revista Educação as recentes e antigas leituras abstratas,
em Questão), motivou as traduções para o hermeneuticamente pouco rigorosas ou
mercado brasileiro de algumas das suas mesmo mal intencionadas, dos escritos
mais importantes obras: “História da Edu- de Marx, deu origem a um belo “desaba-
cação – da antiguidade aos nossos dias” fo” teórico “Karl Marx e a liberdade”, livro
Cortez, 1989; “O princípio educativo em publicado no Brasil antes do que na Itália,
Gramsci” Ed. Artes Médicas, 1990; “Marx e pela Editora Alínea, Campinas, 2012. O livro
a pedagogia moderna” Cortez, 1991. é desdobramento de um notável artigo em
A segunda sua vinda ao Brasil foi jornal, 2005, Perché non posso non dirmi
virtual, isto é, em videoconferência. Em comunista (Por que não posso deixar de
2006, o Grupo de Estudos e Pesquisa “His- me chamar comunista). Para a publicação

28 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
do livro, as coisas assim se passaram: em da liberdade. Com efeito, Marx pertence à
julho de 2008, voltei a visitá-lo em Bolsena, antiga cepa dos liberais progressistas, para
visando conseguir seu grande texto Diana os quais o valor máximo é a liberdade. To-
e le muse: tre millenni di sport nella lette- davia a eles se contrapõe porque reivindica
ratura. Permitiu-me copiá-lo, porém disse- a liberdade plena e para todos. Amá-la
me que, no momento, preferia publicar no assim não é amá-la de menos. Por isso, se
Brasil outro texto pronto desde 2007: Quel ardorosamente defende a igualdade social,
vecchio liberale del comunista Karl Marx. o faz como garantia dessa universal liber-
Aceitei o desafio e, junto com o amigo dade. Não são dois valores contrapostos,
Newton Ramos-de-Oliveira (2012, Prefácio), nem equivalentes: a liberdade é valor fim,
trabalhamos por longas horas na tradução. e a igualdade é valor meio.
A linguagem do texto, conforme
escrevi no prefácio, é colorida, meta- Adeus
fórica e coloquial, carregada de muita
— Caro Mário, se você sabe distin-
emoção, típica de alguém que realiza
um acerto de contas teórico. O título
guir a cultura ideal comunista da prática
foi um quebra cabeça. Propus, então, do socialismo real, por que não distinguir
outro título que se adequasse, obvia- também as culturas, ritos e mitos religiosos
mente, ao espírito do texto ‘Karl Marx das práticas das religiões reais?
e a liberdade’. Manacorda gostou e — Certamente, mas não esqueça,
aprovou, mas acrescentou: diga que Paolo, que o clero que te educou era o
este título é seu. No fim, editamos os clero do norte da Itália que protagonizou
dois títulos. importantes lutas populares.
Nesse livro, são retomados conceitos — Adeus, Mário, você pulou deste
e análises já várias vezes publicados, mas rio. Eu nele ainda continuo, movido pela
que, na sua versão compacta e sintética, contradição e alimentado pelo viático de
apresentam-se agora como um testamento seu exemplo que me faz pelejar em favor
teórico de sua leitura de Marx que, insis- da liberdade plena e para todos. (conversa
te, não é um teórico do poder, nem da imaginada entre mim e Mario)
economia, como muitos disseram, e sim

Referências (textos do autor)

A scuola nel vent’ennio. Ricordi e riflessioni. In: GENOVESI, Giovanni. “C’ero anch’io! Napoli:
Liguori, 2010.
Antonio Gramsci – l’alternativa pedagogica. Florença: Editora La Nuova Itália, 1972.
Diana e le muse – ter millenni di sport nella letteratura. - Antologia (mimeo), 2008.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 15-30, jul./dez. 2013. 29


Franco Rodano lettore di Marx. Critica marxista, n. 5. [S.l.]: Edizioni Dédalo, 1988.
Il contributo dell’Universitá di Pisa e della Scuola Normale Superiore alla lotta antifascista ed
alla guerra di liberazione. Anais de Congresso. Frassati Filippo (Org.). Pisa: Giardini Editori e
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Il marxismo e l’educazione- testi e documenti: v. 1 Marx, Engels, Lênin. Roma: Editora
Armando, 1964.
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Armando, 1965.
Il marxismo e l’educazione- testi e documenti: v. 3 La scuola nei paesi socialisti. Roma:
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Karl Marx e a liberdade. Campinas: Alínea, 2012.
La Paideia di Achille. Roma: Editori Riuniti, 1971.
Lettura laica della bibbia. Roma: Editori Riuniti, 1989.
Mario Alighiero Manacorda: aos educadores brasileiros. Campinas: HISTEDBR-FE/UNICAMP,
2007. DVD.
Marx e a pedagogia moderna. 2. ed. brasileira. Campinas: Alínea, 2007.
Marx e la pedagogia moderna. 1. ed. Roma: Editori Riuniti, 1966.
Momenti di storia della pedagogia. Torino: Loescher Editore, 1977.
O princípio educativo em Gramsci – americanismo e conformismo. Campinas: Alínea, 2008.
Pedagogia e politica scolastica del P.C.I. dalle origini alla liberazione. Critica marxista, n. 6. [S.l.]:
Edizioni Dédalo, 1980.
Per uma pedagogia dell’uomo inegrale. Critica marxista, n. 4-5., [S.l.]: Edizioni Dédalo, 1977.
Scuola e insegnanti. In: VEGETTI, Mario (Org.). Oralitá, scrittura e spettacolo, introduzione alle
culture antiche. Torino: [s.n.], 1983.

São Carlos, inverno, 2013.

Recebido em julho de 2012


Aprovado para publicação em agosto de 2012

30 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
Artigos
A ensaística adorniana e o filosofar em educação
Adornian essay practice and philosophizing in
education
Divino José da Silva*
* Professor de Filosofia da Educação do Departamento de
Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação em
nível de Mestrado e Doutorado da Faculdade de Ciências
e Tecnologia da UNESP/Presidente Prudente, SP.
E-mail: divino.js21@uol.com.br

Resumo
Em “O ensaio como forma”, Theodor Adorno critica o pensamento filosófico dominante que, por diferen-
tes vias, manifesta a pretensão de compreender o real em sua totalidade, em que o caráter universal
do conceito anula a singularidade do objeto. Adorno vislumbra no ensaio a possibilidade de se pensar
aspectos do objeto os quais foram, de modo coercitivo, negados pelo caráter identitário da razão. O nosso
objetivo neste artigo foi pensar a importância do ensaio para a filosofia da educação enquanto um modo
de reflexão sobre e na educação. O ensaio, nos termos adornianos, nos instiga a pôr em dúvida valores,
crenças e estereótipos que limitam nossa experiência educativa, ao mesmo tempo em que nos possibilita
resgatar nela o que foi esquecido pela razão, pelos saberes e pelas práticas pedagógicas, na atualidade.
Palavras-chave
Adorno. Filosofia da Educação. Prática Reflexiva.

Abstract
In “Essay as Form”, Theodor Adorno criticizes the dominant philosophical thinking that, by different me-
ans, claims understanding the reality as a whole, in which the universal nature of the concept nullifies
the singularity of the object. Adorno considers the essay as a possibility of thinking about aspects of the
object that were, coercively, denied by the identity nature of reason. Our aim in this article is to reflect on
the importance of the essay in philosophy of education as a way of reflection on education. The essay, in
adornian terms, encourages us to question values, believes, and stereotypes that restrain our educational
experience, and at the same time, it enable us to retrieve, within such experience, what has been forgotten
by reason, by knowledge, and by pedagogical practices of the present days.
Key words
Adorno. Philosophy of Education. Reflective Practice.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 33-48, jul./dez. 2013
Introdução [...] não é somente uma condição
necessária ao funcionamento da ra-
A filosofia da educação, enquanto cionalidade ocidental, é mais que isso
uma reflexão sistemática e intencional – ele configura uma tomada de poder
sobre a educação, exige de quem a pratica nada inocente sobre a realidade, e só
abertura e disposição para refletir sobre consegue apreendê-la pela violenta-
temas e problemas que são, em grande ção. (GAGNEBIN, 1997a, p. 114).
medida, circunstanciais, contextuais, que Esta constitui uma das preocu-
constituem verdadeiros desafios no con- pações que se fará presente em toda a
texto das práticas educacionais atuais. Por filosofia adorniana, expressa nessa perma-
esse motivo, trata-se de um filosofar ad hoc, nente denúncia ao caráter identitário da
sem desprezar o que a tradição e a filosofia razão, o qual reduz a realidade do objeto
contemporânea têm a nos dizer sobre os à estrutura do sujeito do conhecimento.
temas e problemas que nos afligem na Como pensar a verdade do objeto em sua
educação. O trabalho daqueles que se de- imagem não identitária, em sua diferença
dicam à filosofia e à filosofia da educação, e em seu outro esquecido? Ou seja, como
nesse caso, não é transpor diagnósticos pensar a verdade em um contexto que nos
de um passado para o presente nem rea- impossibilita situar fora da falsa totalidade
lizar uma leitura edificante da história da ideológico-social? O nosso objetivo, neste
filosofia. Consiste menos ainda em forjar texto, será retomar aspectos da crítica de
conceitos que se apoderam arbitrariamente Adorno ao pensamento filosófico domi-
da realidade e que só admitem como filo- nante1 que, por diferentes vias, manifesta
sofia o pensamento que torna o particular
transparente, submetendo-o à aplicação de
1
categorias universais. Esse tipo de prática Na aula inaugural proferida como livre-docente
filosófica “[...] só se preocupa com alguma na Universidade de Frankfurt, em 1931, intitulada
“Atualidade da filosofia”, Adorno explicita os alvos
obra particular do espírito na medida em de sua crítica identificados na filosofia da idealista
que esta possa ser utilizada para exempli- da Escola Neokantiana de Marburgo, que, basea-
ficar categorias universais [...]” (ADORNO, da num conceito de razão universal, despreza o
2003, p. 16). Contra essa forma de pensar, contexto histórico e social. Critica a fenomenologia
em que o caráter universal do conceito de Husserl e Max Scheler, cujo esforço, segundo
Adorno, estivera voltado para recuperar a ratio
anula a singularidade do objeto, Adorno autônoma, mas se valendo do mesmo aparato
vislumbra no ensaio a possibilidade de se conceitual do idealismo pós-cartesiano. Adorno
pensar aspectos do objeto os quais foram, critica também a ontologia de Heidegger, por não
de modo coercitivo, negados pelo caráter levar em conta o caráter fetichista dos objetos en-
identitário da razão, que ordena o real em quanto mercadoria, os quais não podem ser dados
imediatamente à experiência, mas estão mediados
sua multiplicidade. pelas relações de troca. Por fim, Adorno critica o
O conceito de identidade, no pensa- caráter reducionista das filosofias cientificistas iden-
mento adorniano, tificadas com a Escola de Viena, que restringe todo

34 Divino José da SILVA. A ensaística adorniana e o filosofar em educação


a pretensão de compreender o real em sua não pode se expressar, teimando em dizer
totalidade, por meio da identidade entre o indizível.” Adorno encontra no ensaio,
sujeito e objeto. Num segundo momento, enquanto forma de expressão intelectual,
interessa-nos pensar o que decorreria des- o lugar para o exercício da filosofia como
sa crítica para uma filosofia da educação experiência do próprio pensar que escapa
que tenha como preocupação situar-se ao primado da transparência, da unidade
nos interstícios da crítica ao pensamento e da identidade que o sujeito impõe ao
da identidade, na interpretação e análise objeto.
dos problemas do campo da educação. O
desafio, portanto, é continuar filosofando 1 O ensaio e a crítica às pretensões
sem cair nas armadilhas do pensamento da filosofia na atualidade
identitário, mantendo assim o paradoxo
O ensaio como forma de expressão
que perpassa a filosofia adorniana.
intelectual, esclarece Duarte (1997), en-
No artigo “O ensaio como forma”,
contra raízes profundas no pensamento
Theodor Adorno nos oferece um sentido
de Adorno que, já em 1931, em sua aula
para o filosofar e, nesse caso específico,
inaugural2 como livre-docente na Univer-
para o filosofar em educação, que se
sidade de Frankfurt, destaca os elementos
distancia da filosofia como verdade nos
que posteriormente apareceriam em sua
moldes postulados pela tradição moderna,
filosofia madura, dentre os quais se sobres-
para nos situar numa prática reflexiva que
sai a problemática do ensaio. Adorno inicia
toma o pensar enquanto experiência com
sua conferência com uma séria advertên-
o próprio pensamento, que sabe de seus
cia acerca das pretensões da filosofia, na
limites na atividade de pensar o pensado,
atualidade:
por isso põe em questão a relação sujeito-
objeto e as verdades que dela decorrem. Quem hoje em dia escolhe o trabalho
No modo de pensar essa relação, Adorno filosófico como profissão deve, de
(1995a) estabelece a precedência do objeto início, abandonar a ilusão de que
sobre o sujeito, evidenciando os limites do partiam antigamente os projetos
filosóficos: que é possível, pela capaci-
sujeito em sua pretensão em apreender
dade do pensamento, se apoderar da
e decifrar a verdade do objeto. Há em totalidade do real. [...] A filosofia, que
Adorno, ressalta Leo Maar (1995), uma hoje se apresenta como tal, não serve
atitude de “[...] dedicação e abertura frente para nada, a não ser para ocultar a
ao objeto, frente à coisa [...]. Como num realidade e perpetuar sua situação
diálogo com Wittgenstein, procura evitar atual. (ADORNO, 2000, p. 01).
o emudecimento do que aparentemente
2
Essa conferência foi intitulada “Atualidade da
filosofia” e publicada com esse mesmo título:
o conhecimento ao âmbito da experiência. Confira ADORNO, T. W. Gesammelte Schrifen 1. Philoso-
Adorno (2000), Buck-Morss (1981) e Pucci (2000). phische Frühschriften.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 33-48, jul./dez. 2013. 35


Adorno evidencia o descompasso O artigo “O ensaio como forma”3
existente entre as pretensões das filosofias traduz a opção de Adorno por um estilo
que visam a abarcar com o pensamento em filosofia, por um modo de filosofar que
o real, em sua totalidade, e uma realidade se identifica com a escritura do ensaio.
que resiste a essa possibilidade e não se Nessa opção pelo ensaio, o autor encon-
rende à sistematicidade do pensamento. tra elementos que o distanciam do modo
Sustentar essas pretensões no horizonte tradicional de fazer filosofia, bem como
da reflexão filosófica significaria encobrir encontra nesse tipo de escrita uma forma
a realidade, mantendo-a em seu estado de pensar o próprio pensamento, num
atual. Posto isso, recai sobre o diagnóstico movimento de autorreflexão que não o
adorniano a seguinte questão: que exigên- salvará de seu profundo dilaceramento,
cias são postas a uma filosofia que põe em porque a pretensão ao absoluto traz em
dúvida a possibilidade do pensamento de si a falsidade do pensamento.
se apoderar da totalidade da realidade, a O ensaio, na leitura adorniana,
partir de categorias que estruturam a nossa confere atualidade à filosofia, já que
experiência? A resposta a essa pergunta encontra nele elementos que se opõem
está diretamente ligada ao modo como às pretensões do pensamento filosófico
Adorno se propõe filosofar e conferir atu- acadêmico que reivindica sua validade por
alidade à filosofia. Essa filosofia, assinala meio do acesso ao universal. O particular,
Safatle (2009), se constituirá a partir de um nesse caso, só desperta interesse quando
permanente movimento de confrontação pode ser subsumido ao universal e refe-
entre a elaboração conceitual e os cam- rendado por suas leis. “O ensaio [...] não
pos dispersivos do mundo empírico. Esse admite que seu âmbito de competência
cuidado em medir a distância entre esses lhe seja prescrito” (ADORNO, 2003, p. 16).
dois campos vai aparecer na configuração Por isso mesmo, lida com os objetos com
do texto filosófico. Os efeitos dessa relação o frescor da curiosidade de uma criança
podem ser identificados na interferência que é capaz de espantar-se com o mundo
oriunda das ciências empíricas, destaque no qual o olhar calejado dos adultos não
especial para a sociologia, na elaboração vê mais do que obviedades e filiações de
da reflexão filosófica. Essa atitude diminui sentidos. O ponto de partida do ensaio é
as pretensões da filosofia, pois lhe exige o que outros já fizeram e pensaram, por-
a adoção de um estilo fragmentário, que tanto ele não parte do zero, não cria do
gira em torno de algo que lhe escapa e nada, mas retoma o que foi dito sobre um
que só pode ser pensado e descrito por determinado assunto e busca fazer falar o
meio de suas resistências. Por essa razão, que nele foi esquecido. Além disso, é livre
Adorno toma o ensaio como forma privile-
giada para o exercício do pensar filosófico,
que resiste às totalizações apressadas do 3
A forma ensaio, conforme Duarte (1997), está
pensamento. presente em toda a obra de Adorno.

36 Divino José da SILVA. A ensaística adorniana e o filosofar em educação


para dizer o que lhe interessa e termina cultores da objetividade, da exatidão e da
onde não há mais nada a dizer, sem se eficiência, como uma espécie de inteligên-
preocupar, por conseguinte, em encontrar cia delirante que, ao final das contas, se
a causa primeira dos fenômenos e o fim revelaria impotente, pois insiste em expli-
para o qual eles convergiriam: “Ele não car o que não existe. Para esse modo de
começa com Adão e Eva, mas com aquilo pensar, que evita a negatividade e credita
sobre o que deseja falar” (ADORNO, 2003, ao sujeito as condições para conhecer
p. 17). Nisso reside a intensa relação entre o objeto, comenta Adorno (2003, p. 17),
a forma ensaio e a liberdade de espírito, da não restaria alternativa ao homem, senão
qual suspeita o pensamento oficial que o manter “[...] os pés no chão ou a cabeça nas
vê como um despropósito. nuvens”. O esforço do ensaísta em ir além
O ensaio não goza de boa reputação do imediatamente dado, na tentativa de
perante as formas tradicionais de fazer e entender as determinações do objeto em
pensar a filosofia, que o via como uma análise, “[...] é estigmatizado como ocioso,
mescla arbitrária de ciência e arte. Por como um abandonar-se a especulações
essa razão, atrai sobre si o preconceito e a soltas” (PUCCI, 2002, p. 322).
pecha de falta de seriedade. Afirma Adorno Adorno (2003) critica como ilusória a
(2003, p. 15): “Ainda hoje, elogiar alguém pretensão, bastante frequente entre aque-
como écrivain é o suficiente para excluir les que se dedicam à História da Filosofia,
do âmbito acadêmico aquele que está em realizar uma interpretação da obra de
sendo elogiado”. Ciente dessa má reputa- um autor, como se fosse possível identifi-
ção do ensaio, Adorno nos oferece uma car de maneira exata o que ele quis dizer.
reflexão que configura uma autorreflexão Uma prática filosofante que privilegia a
da filosofia acerca da própria forma de especialização extrema põe sérios limites
exposição do pensamento filosófico. Nesse à criatividade. Proceder assim é negar no
exercício, o filósofo expõe-nos, de maneira receptor sua espontaneidade e fantasia
meticulosa, os elementos constituintes subjetiva na recepção do objeto, que são
do ensaio, defendendo-o dos ataques da condenadas em nome da objetividade.
filosofia acadêmica e do positivismo, bem Contrapondo-se a essa pretensão, enfatiza
como dos riscos que o ensaio corre de Adorno (2003, p. 18):
se igualar às manifestações da indústria
Nada se deixa extrair pela interpreta-
cultural, na atualidade.
ção que já não tenha sido, ao mesmo
O ensaio como forma de expressão tempo, introduzido pela interpretação.
do pensamento, que se debruça longa- Os critérios desse procedimento são a
mente sobre seu objeto, é visto pelos compatibilidade com o texto e com a
amantes dos clichês e das formas de própria interpretação, e também a sua
pensar classificatórias como uma perda capacidade de dar voz ao conjunto de
de tempo. Quem se dedica a esse tipo elementos do objeto.
de atividade pensante é rotulado pelos

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 33-48, jul./dez. 2013. 37


É nesse sentido que, para Adorno ensaio nos fornece a medida do sentido do
(2003), o ensaio traz em si elementos da filosofar, em que conteúdo e forma, ideia e
arte, aproximando-se de uma autonomia estilo se interpenetram. Nesse ponto, Ador-
estética, ao mesmo tempo em que dela se no se distancia de Lukács, o qual definiu
diferencia, pois lida com conceitos e não o ensaio “[...] como uma forma artística”
desiste de sua pretensão à verdade que (apud ADORNO, 2003, p. 18), criticando o
expõe as fissuras do mundo, ciente da positivismo, que reivindica uma linguagem
impossibilidade de haver uma correspon- não artística para falar da arte. Em ambos
dência entre pensamento e objeto. Porém os casos, ocorreria a separação entre a
o cuidado no trato com os conceitos é a forma de expressão do pensamento e o
condição para se contrapor à ambivalência conteúdo do objeto. O ensaio não se situa
das palavras: “Sem apologia, ele [o ensaio], em nenhum desses polos, mas articula em
leva em conta a objeção de que não é seu interior o rigor no jogo dos conceitos
possível saber com certeza os sentidos com a necessidade de adequar a forma
que cada um encontrará sob seus con- de expressão à complexidade do objeto.
ceitos” (ADORNO, 2003, p. 29). Exige-se, Adorno encontra no ensaio os ele-
aqui, uma recíproca interação entre os mentos para sua crítica à metafísica e a
conceitos a qual quebre neles o caráter toda filosofia que se define como sistema.
de mônadas, bem como a necessidade No trecho a seguir, como que numa reto-
de se precisar com acuidade seus signifi- mada da censura de Nietzsche à tradição
cados. Nessa experiência intelectual com do pensamento ocidental, Adorno (2003,
os conceitos, eles não caminham em um p. 24) anuncia o mote que norteia sua
sentido único, mas se entrelaçam em seus reflexão a respeito do ensaio: “Em relação
vários momentos, chegando a tal ponto ao procedimento científico e sua funda-
em que “[...] o pensador, na verdade, nem mentação filosófica enquanto método, o
sequer pensa, mas sim faz de si mesmo ensaio, de acordo com sua idéia, tira todas
o palco da experiência intelectual, sem as conseqüências da crítica ao sistema.”
desemaranhá-la” (ADORNO, 2003, p. 37). Além de levar às últimas consequências
É essa experiência que o ensaio valoriza a crítica às filosofias que se definem como
e toma como parâmetro, sem fazer dela sistema, há no ensaio a recusa em reduzir
um método. Salienta ainda Adorno (2003, o conhecimento a um princípio que a
p. 37) que “[...] a consciência da não identi- tudo fundamenta. No entanto faz isso sem
dade entre o modo de exposição e a coisa negar o papel da própria teoria. A esse
impõe à exposição um esforço sem limites. respeito, escreve Barbosa (2006, p. 04):
Apenas nisso o ensaio é semelhante à
Com isso, o ensaio se apresenta como
arte [...]”. Desse modo, o cuidado com o
a forma de uma teoria crítica. O que
como expressar e com o saber-expressar torna crítica esta teoria não é o prima-
pode trazer à tona o que há de perigoso do da pergunta sobre as condições de
e incômodo nas próprias coisas. Assim, o

38 Divino José da SILVA. A ensaística adorniana e o filosofar em educação


possibilidade de todo o conhecimento linguagem. Pois a tragédia para a
– embora nem por isso o ensaio recue utopia do conhecimento consiste em
diante de uma crítica da razão. Contra que o singular só se deixa dizer pelo
toda espécie de filosofia transcenden- universal – portanto, que quando o
tal, de reflexão prévia seja sobre o singular é dito, já não é o singular que
sujeito, ou a consciência, seja sobre é dito, não restando outra alternativa
o Dasein, contra tudo que possa ser senão tentar dizê-lo sempre de novo,
o primeiro, o princípio, o fundamento, numa aproximação infinita ao não-
o ensaio faz de sua crítica da razão idêntico. (BARBOSA, 2006, p. 4).
uma crítica da idéia de uma filosofia
Se pudéssemos pensar em uma
primeira. (grifos do autor).
imagem para traduzir o caráter trágico
Não é sem motivo que Adorno reto- da linguagem, no ensaio adorniano, nos
ma Montaigne, por meio de Lukács, para reportaríamos a um trecho do belo poema
resgatar o espírito do ensaio. Montaigne de Manoel de Barros, intitulado “O menino
adota o ensaio como a maneira mais que carregava água na peneira”, em que,
adequada para falar das experiências for- ao tratar do ofício daqueles que se dedi-
madoras do eu. E, nele, o ensaio designa cam à literatura, à poesia, por conseguinte,
um modo de expressão, um estilo literário. à escrita, assinala o seguinte:
Mas esse não é apenas um estilo de es-
Com o tempo aquele menino que era
crita, mas um modo de pensar a relação cismado e esquisito/porque gostava
entre o eu e o mundo. Tal relação, ressalta de carregar água na peneira/com o
Adorno (2003), não obedece às regras do tempo descobriu que escrever seria o
conhecimento científico, em que haveria mesmo que carregar água na peneira.
uma correspondência entre a ordem das [...]. A mãe reparava o menino com ter-
coisas e a ordem das ideias. Em oposição nura. A mãe falou: meu filho você vai
aos grandes sistemas de razão, o ensa- ser poeta. Você vai carregar água na
ísta abandona qualquer esperança em peneira a vida toda. Você vai encher
alcançar algo definitivo, porque sabe que os vazios com as suas peraltagens
a linguagem não pode nomear o ser. As re- e algumas pessoas vão te amar por
seus despropósitos. (BARROS, 2005,
gras da linguagem e da lógica constituem
s/p).
um sistema arbitrário em que jogamos
com sombras. Há também a consciência Essa imagem parece fazer jus àque-
de que jamais sairemos do domínio das la em que Adorno (2003, p. 35) define o
palavras. Nesse aspecto, o ensaio tem algo ensaio como tentativa, como uma “inten-
de trágico: ção tateante”, que não traz em si nada de
programático. Por isso, mescla em si, como
No seu esforço de dizer o que não se
deixa dizer, de captar pelo conceito tentativa, “o ideal de acertar na mosca”, com
o que resiste ao conceito, o ensaio a consciência de sua própria contingência
mergulha até o fim na tragédia da e falibilidade. Isso significa que os pro-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 33-48, jul./dez. 2013. 39


pósitos do ensaio como tentativa podem respeito dessa língua têm pouca utilidade.
ou não ser atingidos. A palavra ensaio, Na realidade, as regras gramaticais e as
como lembra Moreau (1961, p. 66-79), em definições dos dicionários engessam o
seu comentário a Montaigne, tem vários sentido das palavras, que só podem ser
sentidos. Pode significar experiência, “jogo compreendidas no contexto em que são
da imaginação e da inteligência”, “tentati- ditas. Nessa experiência, uma palavra só
vas apenas esboçadas”, “um exercício de adquire sentido depois de ouvida, uma
escrita, um rascunho, algo não definitivo”. infinidade de vezes, em diferentes con-
A definição de ensaio que nos é dada por textos. Esse tipo de aprendizado, sustenta
Starling (2004, p.06) é esclarecedora: Adorno (2003, p. 30), está sujeito ao erro,
A rigor, ensaios são uma forma de e o mesmo acontece com a forma ensaio,
exposição que desconfia do sentido que, por ser uma experiência intelectual
definitivo ou único dos acontecimen- aberta, está sujeita à dúvida, portanto
tos e das idéias, apresentado pela renuncia a qualquer ideal de certeza. Por
teoria ou pela história, perseguem as isso mesmo, ele é anticartesiano, porque
condições de acesso ao que neles foi não há regras fixas que regulam essa
preterido, eclipsado ou anulado como relação entre sujeito e objeto. Nesse caso,
inútil, e reconhecem o heterogêneo, cada objeto exige do sujeito a construção
o dissonante, ou fragmentário como dos elementos requeridos àquela situação
um método para interrogar o presente. específica em análise. O que faz o ensaio
O método ao qual se refere Starling, é tomar o objeto, aqui e agora, em sua es-
ao final da citação, não é o mesmo que pecificidade e naquilo que ele tem de vivo
Adorno combate, que tem em Descartes e problemático para o presente. É assim,
seu mais hábil articulador. O método ao dirá Adorno (2003, p. 33), “[...] que o en-
qual esses autores aludem corresponde saio abala a ilusão desse mundo simples,
a uma atitude de abertura do sujeito lógico até seus fundamentos, uma ilusão
em relação ao objeto, que carece de um que se presta comodamente à defesa do
conjunto de regras que, se supõe, garan- status quo”.
tiria ao sujeito representar a verdade do Expor de maneira cartesiana o
objeto. No ensaio, prevalece a memória objeto é submetê-lo à arbitrariedade do
da experiência do pensar enquanto ato, próprio método, logo, do próprio sujeito.
de um pensar que se desenrola “[...] meto- Aqui reside o caráter mesquinho do mé-
dicamente sem método” (ADORNO, 2003, todo, cuja pretensão é não deixar nada de
p. 30). Adorno compara essa experiência fora. Dessa forma, o método e a ciência
do pensar em ato àquela de alguém que, que dele se serve reprimem a angústia
estando em terra estrangeira, tem que e o medo do ameaçador, daquilo que
arriscar a falar a língua desse país, em não pode ser apreendido e dito. Nesse
que as regras que lhe foram ensinadas caso, “[...] a linguagem deve resignar-se ao
na escola ou as receitas dos manuais a cálculo; para conhecer a natureza, deve

40 Divino José da SILVA. A ensaística adorniana e o filosofar em educação


renunciar a pretensão de ser semelhante da própria razão a qual critica, sem se
a ela” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, render aos seus aspectos regressivos. Esse
31). A mímesis originária, aquela em aproximar-se do objeto sem violentá-lo, na
que o sujeito se entrega aos prazeres e, perspectiva adorniana, requer, como expli-
portanto, às ameaças que dela decorrem, ca Gagnebin (1997b, p. 103), uma nova
é substituída, segundo Gagnebin (1997b, mimésis, que se distancia tanto dos seus
p. 89), por uma mimésis “[...] perversa que aspectos originários presentes na magia
reproduz, na insensibilidade e no enrije- mítica, quanto dos elementos da mimésis
cimento do sujeito, a dureza do processo controladora identificada, sobretudo, com
pelo qual teve que passar para se adaptar os saberes modernos. Essa mimésis, à qual
ao mundo real [...]”. O método cartesiano remete a autora, privilegiaria uma dimen-
constitui o modelo para a racionalidade são lúdica do pensar, que nos permitiria
moderna, que não suporta o que insiste em uma aproximação do objeto sem exercer
sobreviver subterraneamente, o que lembra sobre ele violência, de tal maneira que
perder-se em mundos inteligíveis, o que fosse possível compreendê-lo e dizê-lo, sem
lembra o ócio e a inadaptação à discipli- oprimi-lo e desfigurá-lo. Nessa relação de
na do trabalho, motivo pelo qual se lança conhecimento, o medo e a angústia pre-
sobre ele de maneira compulsiva. O que o cisam ser eliminados, para que se respeite
ensaio pretende, no registro adorniano, é o espaço da diferença e da distância, con-
libertar o pensamento dessa “compulsão à tendo o desejo de dominação do sujeito
identidade” que elimina dele a curiosidade, que conhece.
“princípio do prazer do pensamento”. O en- Conforme Gagnebin (1997b), essas
saio não hostiliza a felicidade inerente ao dimensões da nova mimésis adorniana
ato de pensar movido por essa curiosidade aqui retomadas, rapidamente, constituem
que não se fecha à novidade. Ao proceder, uma ideia reguladora que está presente de
assim, “[...] o ensaio é presenteado, de vez diferentes maneiras nas obras de Adorno.
em quando, com o que escapa ao pensa- No livro Dialética do Esclarecimento, ela
mento oficial: o momento do indelével, da aparece na crítica ao conhecimento como
cor própria que não pode ser apagada” dominação e na oposição à dialética
(ADORNO, 2003, p. 36). hegeliana, que tudo reconcilia no espírito
Aqui, parece, chegamos a um ponto absoluto. Essa promessa de reconciliação
crucial da prática filosófica de Adorno, que e, ao mesmo tempo, a sua impossibilidade
é o vislumbre dessa possibilidade de o serão retomadas no conceito de dialética
pensamento escapar à relação identitária negativa, presente na última filosofia de
entre sujeito e objeto, portanto, da violência Adorno. E, por fim, na obra Teoria Estética,
que o primeiro exerce sobre o segundo. Adorno toma a arte como o lugar do com-
Esse é um problema que perpassa toda a portamento mimético em que se vislumbra
filosofia do autor, qual seja, o de postular a possibilidade de tocar com as próprias
uma forma de pensar situada no âmbito mãos o intocável e ouvir o inaudível com

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 33-48, jul./dez. 2013. 41


os próprios ouvidos. Adorno chama isso, na contramão do pensamento esclarecido
como lembra Gagnebin (1997a, p. 118), que tem horror à mimesis, que nos recorda
de “contato sensível com as coisas”; esse aspectos do imemorial superado em nós, e
aspecto, afirma a autora, de tudo aquilo que não estabelece limites
[...] assinala uma certa humildade do claros e fixos entre o ego e o mundo. O
pensar que quer seguir com ternura ensaio reivindica essa aproximação do que
os contornos do sensível, gratuita- foi recalcado pela cultura. Por isso, ele não
mente, por simples prazer e respeito, se ilude com a separação que as formas
sem calcular antes qual poderia ser o de pensar tradicionais estabelecem entre
‘lucro’ que daí resultaria ou não. Esse cultura e natureza. O que subjaz à cultura
gesto deverá assumir uma importân- é a sociedade em seus aspectos falsos e
cia crescente na filosofia de Adorno, contraditórios, em que as desigualdades,
alimentando toda a sua revalorização a dominação e o sofrimento humano são
do conceito de mímesis, não como ocultados. O ensaio não busca eliminar a
mera imitação nem como intuição
natureza, mas revelar seu caráter de não
aconceitual, mas, justamente, como
identidade soterrado pelo engodo da cultu-
uma flexibilidade aconchegante à
singularidade e à multiplicidade do ra. Nesse sentido, o ensaio leva a cultura a
concreto: o que desembocará na sua pensar em sua própria inverdade, enquan-
teoria estética. to uma espécie de segunda natureza: “Sob
o olhar do ensaio, a segunda natureza
Adorno (2003) constrói, a partir de toma consciência de si mesma como
Max Bense, uma imagem do ensaio em primeira natureza” (ADORNO, 2003, p. 40).
que conhecer é experimentar o objeto, é Nisso parece residir o caráter anamnético
apalpá-lo, revirá-lo e prová-lo, para depois do ensaio, que solapa as bases do pen-
submetê-lo à reflexão. É tomar o objeto samento que tem como meta sustentar
de diferentes lados e traduzir por meio de uma identidade com limites claros e fixos.
palavras o que dele se permite vislumbrar. É nesse ponto que o ensaio se vincula à
Nessa perspectiva, o ensaio como crítica tendência mimética que busca fazer jus
filosófica constitui, como salienta Barbosa ao objeto, não o violentando.
(2006, p. 6), um “[...] esforço paciente de Insistimos até o momento em des-
fazer falar o reprimido, o recalcado – de dar tacar aspectos da ensaística em Adorno,
voz ao sofrimento.” É por essa via, continua entendida enquanto forma de expressão
o autor, que “[...] a autorreflexão da razão intelectual que se distancia da prática filo-
torna-se assim uma anamnese – uma sófica nos moldes da filosofia tradicional,
recordação da natureza no sujeito”. em que se estabelece a identidade entre
Esse elemento da recordação, da sujeito e objeto como pressuposto para
anamnese, nos leva a pensar o ensaio o conhecimento da verdade do objeto.
como um esforço mimético de aproximação O pensamento de Adorno, bem como a
do sujeito ao objeto, o que o faz caminhar sua prática filosófica expressa na forma

42 Divino José da SILVA. A ensaística adorniana e o filosofar em educação


ensaio, denuncia os limites do sujeito na que essa opção ou pretensão comporta
compreensão do objeto. Por outro lado, o desafios, para os quais nos alerta Adorno.
filósofo encontra no ensaio a possibilida- Ciente desses desafios, o filosofar em edu-
de da experiência com o pensamento, na cação por meio do ensaio nos leva a pôr
qual permanece retesada a intransponível em dúvida os modismos em educação e
tensão entre as coisas e o sentido que a os regimes de verdade que eles arregimen-
elas conferimos. Adorno revigora um estilo tam, além de trazer à tona a fragilidade, os
em filosofia em que o exercício do filosofar limites da teoria frente à complexidade em
é incompatível com a certeza, visto ser o que se inserem as nossas práticas pedagó-
ensaio uma tentativa, um rascunho de algo gicas. Desse modo, o ensaio enquanto uma
que não é definitivo, por isso mesmo pode forma de reflexão sobre/na educação nos
ser retomado, relido e apreciado a partir de instiga a pôr em dúvida os valores, crenças
outras perspectivas. É dessa maneira que o e estereótipos que limitam nossa experi-
ensaio se presta à prática de um filosofar ência no presente, ao mesmo tempo em
ad hoc. Adorno e Horkheimer, lembrará que nos proporciona “[...] uma autorreflexão
Habermas (1998), depois de tecerem duras crítica” (ADORNO, 1995b, p. 121), capaz de
críticas à razão e de se proporem conti- contrapor-se à ausência de consciência a
nuar filosofando sem os subterfúgios da respeito do que somos, do que fazemos,
metafísica e sem as pretensões realistas do do como fazemos e do para que fazemos,
positivismo, optam por praticar negação ad em nossas práticas educativas.
hoc ou, se quisermos, uma filosofia ad hoc, À prática do ensaio, como o concebe
interessada em pensar a realidade a partir Adorno, acrescentamos uma indicação de
das determinações sociais. É por essa via Foucault acerca do papel da filosofia, a
que vão persistir na crítica negativa, sem qual deve se ocupar em exercer a crítica
deixá-la esmorecer. aos conteúdos e ideias que adquiriram,
ao longo da história, um valor de verdade.
2 O ensaio e o filosofar em educação Assim, interroga Foucault (2000, p. 180),
a respeito do que os regimes de verdade
Iniciamos este texto afirmando que a fizeram de nós: “[...] quem sou eu, que
atividade da reflexão filosófica, no campo pertenço a esta humanidade, talvez a esta
da filosofia da educação, exige de quem parte, a este momento, a este instante de
a pratica a abertura e a disposição para humanidade que está sujeitada ao poder
refletir sobre temas e problemas que são da verdade em geral e das verdades em
circunstanciais, contextuais e significativos particular?” Os problemas postos aqui por
para a educação no presente, de sorte que Foucault são aqueles que deveríamos
se trataria de um filosofar ad hoc, que enfrentar, no campo da reflexão filosófica
pudesse se ocupar de temas e problemas em educação, que ganhariam o seguinte
próprios do campo da educação, adotan- desdobramento: que efeitos de poder as
do a perspectiva do ensaio. Obviamente verdades oriundas de distintos campos

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 33-48, jul./dez. 2013. 43


do conhecimento exercem sobre nós? So- associação entre este filósofo e Adorno, é
mos afetados por essas verdades? Somos produzir deslocamentos e mudanças em
aquilo que elas dizem de nós? A escola nossa forma rígida de pensar, é pensar de
é aquilo que as ciências e as pesquisas forma diversa, de tal modo que nos seja
em educação afirmam sobre ela? Nesse possível modificar os valores estabelecidos
ponto, guardadas as diferenças entre que nos impedem de tornar outro do que
Adorno e Foucault, ambos concordariam se é.
que o ensaio enquanto forma de expres- A segunda finalidade da filosofia da
são intelectual leva a sério tais perguntas, educação deveria ter como preocupação
no trabalho de reflexão sobre o presente, a avaliação dos saberes e práticas que
as quais uma filosofia da educação que são dominantes no âmbito do fenômeno
se queira atenta e sintonizada com os educativo. Num primeiro esforço de expli-
problemas atuais deveria, também, tomar citação dessa finalidade, retomamos os
como suas questões. desafios que, segundo Rouanet (1987),
Dessa maneira, os vínculos entre deveriam ser enfrentados pela filosofia,
os desafios postos pela educação aos na atualidade: a consciência, depois de
filósofos da educação e a perspectiva Marx e Freud, de que não há uma razão
do filosofar ad hoc, a partir do ensaio, livre de condicionamentos materiais e psí-
possibilitam-nos redimensionar as finalida- quicos; não podemos ignorar a diferença
des do filosofar em educação. A primeira weberiana entre razão substantiva, que
dessas finalidades consiste em colocar em estabelece fins para a ação, e uma razão
dúvida conceitos, ideias, valores e práticas, formal, instrumental, que está muito mais
como uma atitude que recusa considerar preocupada em ajustar meios a fins; é pre-
a realidade como um dado natural que se ciso levar em conta os aspectos repressivos
apresenta imediatamente à consciência do da razão denunciados por Adorno, os quais
sujeito cognoscente. Há aqui uma intrínse- têm exercido o domínio sobre o homem e
ca afinidade com o sentido do ensaio, cujo sobre a natureza, ao longo da história; por
mote é evidenciar o caráter arbitrário das fim, não pode ser esquecida a denúncia
verdades e a violência que elas exercem foucaultiana de que saber e poder estão
sobre nós e sobre as coisas. Pensar nesse entrelaçados e que estaríamos impos-
registro permitiria àqueles que lidam com o sibilitados de nos situarmos fora dessa
fenômeno educativo, a partir da perspectiva relação, no campo do conhecimento. Essas
da filosofia da educação, se confrontar com diferentes críticas à razão iluminista têm
os regimes de verdade em que se encer- implicações para o campo da educação.
ram os saberes escolares e as ilusões que A crença, até certo ponto ingênua, de que
eles comportam. Dessa maneira, podemos a razão e a educação a que a ela se filia
pôr em dúvida esses regimes. O filosofar podem conduzir os indivíduos à emanci-
nesse caso, segundo Foucault (2000), pação precisa ser lida com desconfiança.
apenas para fazer mais uma vez uma livre As críticas acima, se tomadas a sério, põem

44 Divino José da SILVA. A ensaística adorniana e o filosofar em educação


em dúvida as nossas certezas sobre o que, podemos deixar nunca de fazê-la, uma vez
por que e como fazer, em nossas práticas que só assim podemos manter a evidência
educacionais. O que a filosofia de Adorno dos limites inerentes à própria razão e dos
faz e, em específico o ensaio por nós aqui conceitos com que ela opera, no trato com
abordado, é pôr em dúvida as pretensões as coisas.
do sujeito, da razão, em esgotar em si o O último aspecto para o qual cha-
objeto. É dessa perspectiva que podemos mamos a atenção, nessa aproximação
pensar o educar, o formar, como uma entre o ensaio e a prática em filosofia da
atividade complexa que está submetida a educação, refere-se à necessidade de um
regimes de verdade, crenças, valores, difí- exercício do pensar que leve em conta
ceis de serem explicitados por meio do es- a história da filosofia, mas que também
clarecimento ou pelo autoesclarecimento. seja capaz de ensinar a filosofar. Seria
A terceira consequência que a filoso- um despropósito filosofar em educação
fia da educação deveria retirar do ensaio, sem considerar a história da filosofia e
nos moldes aqui tratados, refere-se ao da filosofia da educação produzidas ao
esforço permanente em não se render a longo dos séculos. Por outro lado, ressal-
um pensar dogmático e manter, portanto, tamos que, nesse caso, não é suficiente
a consciência de que o trabalho do pen- fazer uma boa história da filosofia, mas
samento é sempre limitado. Não há, como é preciso que se dê lugar nessa prática
nos ensina Adorno, um caminho mais ao filosofar no presente. Adorno (2003)
curto e fácil para a definição em filosofia. se mostra resistente à filosofia acadêmica
Não há um modelo simples e lógico para que, fechada em si mesma e preocupada
se lidar com a realidade, porque esta é em garantir a verdade interna dos sistemas
fragmentária e fraturada. O desafio posto de pensamento, perdeu a capacidade de
à filosofia da educação, em um contexto problematizar o mundo. Obviamente, cabe
regido pela lógica da eficiência, pela busca aqui uma ressalva: Adorno não desprezou,
da melhor performance no mercado e pela como filósofo, a importância de se fazer
lógica do ganhar tempo, é o de resistir à História da Filosofia e dominar suas téc-
pressa e à adesão aos ares de normalidade nicas, porém, soube como ninguém evitar
com que são aceitas práticas autoritárias que sua prática filosófica se tornasse uma
e injustas, no âmbito das relações sociais, especialização, o que lhe facultou, em ra-
e seus efeitos no campo pedagógico. A zão de sua própria formação, um trânsito
pergunta com a qual deve se ocupar a por vários campos – literatura, música,
filosofia da educação é a seguinte: como filosofia e sociologia – e uma abertura para
resistir, no campo pedagógico, contra prá- pensar por meio do ensaio, temas e pro-
ticas autoritárias, veladas ou não, as quais blemas contemporâneos. Esse cuidado em
são inerentes à própria história da razão equilibrar história da filosofia com o filoso-
ocidental? Essa pergunta, obviamente, far no presente requer uma iniciação em
não é fácil de ser respondida, porém, não autores como Platão, Aristóteles, Rousseau,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 33-48, jul./dez. 2013. 45


Kant, Hegel etc., nso quais se enfatizem, particularmente ao aprendizado
conforme assinala Porchat (1999, p. 135), filosófico, caberá ao mestre apontar
aspectos que ainda estejam presentes nas as necessárias imperfeições das pri-
discussões contemporâneas acerca dos meiras tentativas, sugerir leituras que
problemas atinentes à educação. Além possam ser utilizadas como ponto
de apoio para os passos seguintes,
disso, é importante que voltemos o nosso
corrigir falhas de argumentação,
olhar para os autores contemporâneos e estimular o debate filosófico entre e
atentemos para os temas e problemas com os estudantes.
os quais eles se ocupam. Nesse exercício
do filosofar e, nesse caso específico, do A sugestão de Porchat para que
filosofar na educação, deveríamos dar estimulemos nossos alunos a se exercita-
atenção especial aos “[...] problemas filosó- rem no ensaio é o ponto de partida para
ficos que são problemas para os nossos a prática do ensaio nos moldes como nos
alunos, questões que naturalmente os propõe Adorno.
preocupam” (PORCHAT, 1999, p. 135), o que Para finalizar, ressaltamos que,
possibilitaria estabelecer vínculos com o ao longo deste texto, o nosso intuito foi
debate filosófico contemporâneo. Para tan- buscar identificar aspectos na ensaística
to, é necessário e desejável que os nossos de Adorno, sobretudo no artigo “O ensaio
alunos sejam estimulados a expressar suas como forma” que, a nosso ver, são impor-
ideias e pontos de vista acerca dos temas e tantes para a prática do filosofar em educa-
assuntos tratados em sala de aula. Enfim, ção. Um filosofar ad hoc, que se ocupa dos
que sejam incentivados a ensaiar textos problemas do presente sem a pretensão de
e a criticar formulações de pensadores esgotar qualquer tema ou assunto, mas
importantes para o campo da educação. É que aponta sempre para a complexidade
por meio dessas tentativas que os nossos do objeto. Filosofar ad hoc em educação e
alunos vão começar o exercício da reflexão na perspectiva da ensaística adorniana é
filosófica em educação. Mesmo que esses se colocar numa postura de abertura para
exercícios se apresentem, inicialmente, a reflexão dos problemas contemporâneos
pouco rigorosos, desajeitados e ingênuos, que nos afligem, em nossas práticas edu-
poderão ser melhorados mediante acom- cativas. Trata-se, inclusive, de pensarmos a
panhamento do professor. A esse respeito, educação distanciando-nos de conceitos,
questiona Porchat (1999, p. 138): regras e leis universais, e buscar encontrar
nela o que é da ordem do acontecimento e
Haverá outra maneira de aprender
a fazer algo, no campo teórico ou que escapa ao previamente dado e regula-
prático, senão começando a fazer e do pelos saberes científicos em educação.
fazendo, de preferência sob o acom- Assim, o ensaio nos auxilia na lida com
panhamento e aconselhamento de a incerteza e com o imprevisto, os quais
um mestre, aquilo que se quer apren- passariam a figurar como desafios pró-
der fazer bem? [...] No que concerne prios do campo pedagógico, que exigem

46 Divino José da SILVA. A ensaística adorniana e o filosofar em educação


(re)significação para a instauração de um aproximação do objeto por meio de uma
novo começo. Podemos dizer também que, nova mimesis que busca resgatar nele
do mesmo modo que há no ensaio algo o que foi esquecido, soterrado e negado
de trágico, pois a linguagem e os conceitos pela própria razão ou, se quisermos, pelos
são sempre limitados para dizer e explicar nossos saberes e pelas nossas práticas pe-
a realidade, esse mesmo elemento permeia dagógicas. Não se trata, portanto, de negar
nossas práticas educativas, visto que os o papel da teoria, mas de encontrar formas
nossos saberes são sempre limitados, ain- de aproximação do não idêntico, em que
da que indispensáveis, na abordagem do “[...] conhecer não significa mais dominar,
fenômeno educativo. Além disso, o ensaio, mas muito mais atingir, tocar, ser atingido e
na leitura adorniana, nos possibilita uma tocado de volta” (GAGNEBIN, 2003, p. 109).

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Recebido em maio de 2012


Aprovado para publicação em junho de 2012

48 Divino José da SILVA. A ensaística adorniana e o filosofar em educação


Contribuições do sociointeracionismo bakhtiniano e
da Análise do Discurso de linha francesa ao ensino
de linguagens
Contributions of the bakhtinian social-interactionism
and the french Discourse Analysis to language teaching
Katia Resende de Assis Machado*
Silvane Aparecida de Freitas**
* Mestranda no Programa de Pós-graduação Stricto sensu
em Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul (UEMS), Unidade de Campo Grande. Especialista em
Letras – Área de Concentração Linguística e Ensino – Pós
Graduação Lato sensu (2005).
E-mail: resende_katia@yahoo.com.br.
** Doutora em Letras (1998) - UNESP/Assis. Pós-doutora
em Linguística Aplicada (2002) - IEL/UNICAMP. Docente do
Mestrado em Letras e Mestrado em Educação da UEMS.
Líder do grupo de pesquisa Linguística e Ensino.
E-mail: silvaneafreitas@hotmail.com.

Resumo
Este artigo tem como objetivo evidenciar as contribuições que as teorias sociointeracionista bakhtiniana
e a Análise do Discurso de linha francesa podem oferecer ao ensino de linguagens, sobretudo, no que
diz respeito à formação de leitores e às diversas possibilidades de produção de sentidos que os textos
apresentam. Ressalta-se a necessidade de uma mudança de postura tanto dos professores quanto dos
alunos frente aos textos, com o intuito de ampliar a capacidade discursiva dos alunos, libertá-los da
pressão de ter de achar um único sentido do texto, uma única resposta correta, que sempre foi a do
professor ou do livro didático.
Palavras-chave
Discurso. Interação. Ensino.

Abstract
This article aims to highlight the contributions that the Bakhtinian social interaction theories and what
the French Discourse analysis can offer to the teaching languages, especially, so far regarding the reading
formation and the various possibilities of meaning production that the texts present. We emphasize the
need of a posture change by teachers and students on the texts, with the aim of increasing the students’
discursive capacity, freeing them of the pressure of having to find a single meaning for the text, a single
correct answer that was always the teacher or textbook ones.
Key words
Discourse. Interaction. Teaching.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 49-62, jul./dez. 2013
Introdução Esse avanço trata-se, sobretudo, de
uma superação de concepções equivoca-
A dificuldade de os alunos domina- das sobre a linguagem e seu ensino. Foi
rem as normas da língua escrita eficazmen- necessário sobrepor às teorias linguísticas
te tem sido uma das grandes preocupações ligadas essencialmente ao estruturalismo
no sistema escolar. De certa forma, esse tem saussuriano, novos elementos relacio-
sido um grande problema que a maioria dos nados diretamente à enunciação e à
professores de línguas tem tentado solucio- realidade social. Essa nova concepção de
nar. No entanto, na maioria dos casos, não ensino baseada nas teorias discursivas e
tem conseguido resultados muito exitosos. sociointeracionistas da linguagem, surgida
A sociedade brasileira vive, há muito nos anos 80, deu destaque especial ao
tempo, um grande dilema conhecido que texto e considerou-o como ponto de partida
ecoa nos quatro cantos de nosso país o e de chegada para todo o processo ensino/
de que nossa educação caminha a pas- aprendizagem.
sos muito curtos. Infelizmente, a escola Atualmente, muitos pesquisadores
não tem obtido êxito no ensino da leitura têm apregoado sobre a necessidade de
e produção textual, os índices apontam se trabalhar o ensino de língua/gem(ns),
para uma situação em que, mesmo após visando a garantir seu uso adequado em
anos de estudos, nossos alunos ainda não diversos níveis e situações comunicacionais
conseguem ler, escrever e interpretar, de em que nossos alunos estão inseridos em
forma satisfatória, as práticas de lingua- suas vidas. Preferimos utilizar o termo lin-
gem do cotidiano. Essa dificuldade não guagens (no plural) pelo fato de que temos
é só de apreensão do código em si, mas de considerar não somente a linguagem
de promover o letramento, conceito que verbal, mas também a não verbal (imagens,
envolve a questão do uso social da escrita sons, movimentos, gestos, entonação etc.);
nas diversas esferas da sociedade. é necessário aliar o linguístico ao não lin-
A partir da década de 80, houve um guístico, para, assim, produzir os sentidos
grande movimento entre alguns pesquisa- dos diversos textos circulados socialmente,
dores de algumas universidades brasileiras principalmente, os divulgados nessa era
em conjunto com algumas Secretarias de globalizada e digital em que vivemos.
Educação de vários Estados, no intuito de Diante dessas considerações, pre-
propor mudanças relacionadas à forma de tendemos abordar algumas contribuições
compreender a linguagem e seu processo que a Análise do Discurso de linha fran-
de ensino/aprendizagem. Com os Parâ- cesa associada à teoria sociointeracionista
metros Curriculares Nacionais, foi possível bakhtiniana trouxeram para o ensino de
divulgar “uma síntese do que foi possível linguagens. Embasados em pesquisadores
apreender e avançar”, evidenciando ma- dessas perspectivas teóricas, defendemos o
neiras de repensar o ensino de língua/ princípio de que a compreensão das teo-
linguagens (CARDOSO, 1999, p. 9-10). rias discursivas, por parte dos profissionais

50 Katia R. A. MACHADO; Silvane A. FREITAS. Contribuições do sócio-interacionismo bakhtiniano e...


que atuam diretamente na sala de aula, Bakhtin (1986), em sua obra “Mar-
poderá ser benéfico para todo o processo xismo e filosofia da linguagem”, mais
ensino/aprendizagem, tendo em vista que precisamente no capítulo que trata da
tanto a formação do professor como o interação verbal, nos traz muitas con-
letramento do aluno é um processo inin- siderações relevantes com relação aos
terrupto, ambos estão sempre em processo estudos da linguagem. Esse autor inicia o
de constituição. capítulo criticando a teoria da expressão
fundamentada na primeira orientação
1 A linguagem e a teoria bakhtiniana do pensamento filosófico-linguístico1, o
qual define que “todas as forças criado-
Em se tratando de língua(gem/ns),
ras e organizadoras da expressão estão
não podemos deixar de citar Saussure,
no interior”. Para ele, “qualquer aspecto
seja para tomar suas formulações teóricas
da expressão-enunciação considerado
como ponto de partida, seja para refutá-
será determinado pelas condições reais
las. Apesar da revolução linguística trazida
da enunciação em questão, isto é, antes
por sua dicotomia língua/fala, estudos
de tudo pela situação social mais ime-
posteriores deixaram a fala à mercê dos
diata” (BAKHTIN, 1986, p. 112). Para ele,
estudos linguísticos.
a enunciação é organizada no exterior
No entanto, dentre os que se posi-
do indivíduo por meio das condições de
cionaram contrariamente com relação a ter
produção do meio social, por isso é resul-
somente a língua como objeto dos estudos
tado da interação social. Bakhtin coloca a
linguísticos e, ainda, opondo-se à visão
enunciação como objeto dos estudos da
de Saussure, em que a língua é abstrata
linguagem, dando relevância a seu aspecto
e ideal, um sistema sincrônico e homogê-
social. Nesse sentido, afirma que
neo, podemos citar Bakhtin, que com seus
estudos antecipou muito as tendências da [...] todo o itinerário que leva da ativi-
linguística moderna, partindo do princípio dade mental (o “conteúdo a exprimir”)
à sua objetivação externa (a “enun-
de que “a língua é um fato social, cuja
ciação”) situa-se completamente em
existência funda-se na necessidade de território social. Quando a atividade
comunicação”. Ele vê “a língua como algo mental se realiza sob a forma de
concreto, fruto da manifestação individual uma enunciação, a orientação social
de cada falante, valorizando dessa forma à qual ela se submete adquire maior
a fala” (BRANDÃO, 1995, p. 9). Esse fato complexidade graças à exigência de
social a que a autora se refere não é o adaptação ao contexto social imedia-
mesmo a que Saussure mencionava, já to do ato de fala, e, acima de tudo, aos
que Bakhtin fala de um fato social con-
creto de que todos nós nos apropriamos, 1
Sobre as orientações do pensamento filosófico-
enquanto que Saussure fala de um fato linguístico, ver a obra Marxismo e Filosofia da
social em abstrato. Linguagem, de Bakhtin, 1986, nos capítulos 4 a 6.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 49-62, jul./dez. 2013. 51


interlocutores concretos. (BAKHTIN, do sempre relações entre a ideologia e a
1986, p. 112) linguagem. Nesse sentido, Bakhtin (1986, p.
Há uma afirmação que resume todo 122) ressalta que toda enunciação é social-
o pensamento bakhtiniano: “A interação mente dirigida e, ainda, afirma que “toda
verbal constitui a realidade fundamental palavra é ideológica e toda utilização da
da língua” (BAKHTIN, 1986, p. 123). Nessa língua está ligada à evolução ideológica”.
perspectiva, é salutar mencionar que o Afinal, são os enunciados concretos que
diálogo constitui uma das formas mais levam a língua/linguagem a fazer parte
integrante da vida em todos os aspectos
importantes da interação verbal, é por meio
(BAKHTIN, 2010, p. 265).
desse processo que nos apropriamos da
Sabemos que, para ele, a palavra
palavra do outro. É por isso que a teoria de
é o signo ideológico por excelência; além
Bakhtin e de seus seguidores sobre a lin-
de ser o resultado da interação social,
guagem e seu funcionamento é conhecida
caracteriza-se por seu caráter múltiplo de
como sociointeracionismo bakhtiniano.
sentidos. A palavra retrata a realidade de
Considerando que “a língua vive
diversas formas, sendo assim, facilita a
e evolui historicamente na comunicação
manifestação da ideologia. São as várias
verbal concreta”, Bakhtin (1986, p. 124) vozes, os diversos pontos de vista que se
estabelece uma ordem metodológica para refletem nas palavras, tornando-as tão ricas
o estudo da língua, demonstrando que há e polivalentes. A palavra ainda pode ser
uma cadeia de evoluções que devem ser considerada dialógica por natureza, pois
observadas: nela travam-se lutas de vozes que ecoam e
[...] as relações sociais evoluem [...], querem ser ouvidas, respondidas, refutadas,
depois a comunicação e a interação confirmadas, enfim, emanam dos outros
verbais evoluem no quadro das rela- que nos constituem enquanto sujeitos.
ções sociais, as formas dos atos de Partindo desses pressupostos, a lin-
fala evoluem em consequência da guagem deve ser encarada como lugar em
ação verbal, e o processo de evolução que a ideologia, a história, a sociedade, o
reflete-se, enfim, na mudança das
poder, a cultura, de um modo geral e con-
formas da língua.
juntamente, materializam-se na instância
Sendo assim, a teoria bakhtiniana que denominamos discurso. Olhando por
evidencia a língua como um produto essa perspectiva e pensando no estudo do
histórico, cultural e social, apresentando funcionamento das linguagens, Brandão
a interação verbal como mola propulsora (1995, p. 12) argumenta que
para a observação e análise do funciona- [...] a linguagem enquanto discurso é
mento da linguagem. interação, e um modo de produção
Trazendo à tona a linguagem com social; ela não é neutra, inocente
essas especificidades, ressaltamos a articu- (na medida em que está engajada
lação entre o linguístico e o social, buscan- numa intencionalidade) e nem na-

52 Katia R. A. MACHADO; Silvane A. FREITAS. Contribuições do sócio-interacionismo bakhtiniano e...


tural, por isso o lugar privilegiado de firmados pela prática positivista da Ciência
manifestação da ideologia. [...] Como (a Linguística e as Ciências Sociais). Em
elemento de mediação necessária suma, des-territorializa”.
entre o homem e sua realidade e Situando melhor essa perspectiva
como forma de engajá-lo na própria
teórica, salientamos que a AD de linha
realidade, a linguagem é o lugar de
francesa surgiu na França, num contur-
conflito, de confronto ideológico, não
podendo ser estudada fora da socie- bado momento histórico-político em que
dade uma vez que os processos que estudantes se manifestavam nas univer-
a constituem são histórico-sociais. Seu sidades francesas protestando contra um
estudo não pode estar desvinculado sistema educacional extremamente rígido.
das condições de produção. Naquele cenário de crise, a liderança políti-
Diante dessas considerações, a ca da época intentava contra as greves por
perspectiva teórica bakhtiniana em muito meio de ações policiais, e, nesse ínterim, a
contribui e influencia os estudos atuais da classe trabalhadora se uniu ao movimento
linguagem, sobretudo, quando relaciona- estudantil gerando várias greves operárias,
mos a interação com o processo ensino/ cujo objetivo principal era reivindicar me-
aprendizagem de linguagens. lhores salários e condições de trabalho.
(MAZZOLA, 2009, p. 7).
2 A linguagem e a Análise do Discurso Com relação aos estudos da lin-
de linha francesa guagem, essa época foi marcada por uma
superação das perspectivas estruturalistas.
Com a preocupação de estudar a lin- A AD surgiu para desfazer a famosa dico-
guagem numa perspectiva sócio-histórico- tomia de Saussure língua/fala, trazendo à
ideológica, surge, nos anos sessenta, uma tona para os estudos linguísticos a relação
nova tendência linguística denominada língua/discurso. Em outros termos, Orlandi
Análise do Discurso (que abreviaremos (2002, p. 23) formula que, nesse sentido, há
AD). “um deslocamento da dicotomia proposta
Essa nova tendência também con- língua (social, geral, sistemática)/fala (in-
siderada como uma disciplina, que não é dividual, singular, assistemática, ocasional)
una, pois é fundada interdisciplinarmente, para a relação língua/discurso que não se
nasceu de preocupações de outras três dis- dicotomiza [...]”. Essa substituição provoca
ciplinas, a saber, a Linguística, o Marxismo um despertar para a questão do sujeito e
e a Psicanálise. Apesar de no seu interior sua constituição.
trazer marcas dos estudos linguísticos, na No final da década de 60, houve
AD se imbricam pressupostos da História, uma mudança de uma “linguística da
do Socialismo, da Psicologia etc. Nesse frase” para uma “linguística do discurso”
sentido, Orlandi (2002, p. 22) afirma que (ROBIN, 1977 apud MAZZOLA, 2009, p.
a AD “se pratica pelo deslocamento de 8). Nesse sentido, Possenti (2004, p. 362)
regiões teóricas e se faz entre terrenos afirma que “a língua é a materialidade

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discursiva, ou seja, o aspecto material do No entanto, com relação às Ciências
discurso”, por isso a importância dada ao Sociais da linguagem, o termo discurso
estudo e análise dos enunciados que se reflete a língua em funcionamento, pode
materializam na língua por essa tão im- ser entendido como o que se materializa
portante instância denominada discurso. efetivamente na língua, por meio das lin-
Assim sendo, compreender o sentido de guagens, mais especificamente, nos textos.
enunciado e enunciação como unidades O discurso pressupõe ação, movimento,
elementares do discurso também nos diálogo, troca, mutualidade, confronto,
fazem compreender a natureza e o fun- luta, embate. Assim, para Cardoso (1999,
cionamento da linguagem. p. 21), “o discurso é, pois, um lugar de in-
Segundo Cardoso (1999, p. 36-8), o vestimentos sociais, históricos, ideológicos,
enunciado sempre se refere a sua forma- psíquicos, por meio de sujeitos interagindo
ção discursiva, suporta enunciações dis- em situações concretas”. Por meio do dis-
tintas pelo fato de existir materialmente e curso, podemos nos remeter às diversas
por sua materialidade ser repetível, suporta ideologias, crenças, convicções, costumes,
paráfrases e pressupõe outros, enquanto valores, enfim, tudo o que pode influenciar
que a enunciação é o singular, o irrepetível, um sujeito e levá-lo a expor seus ideais.
o acontecimento (tem data, lugar determi- Segundo Orlandi (2008, p. 63), “o
nado), é eminentemente social. discurso, definido em sua materialida-
É muito interessante quando obser- de simbólica, é efeito de sentidos entre
vamos que uma mesma oração pode ser locutores, trazendo em si as marcas da
utilizada em diversas situações diferentes e articulação da língua com a história para
em cada uma delas apresentar um sentido significar”. Por isso, para produzirmos sen-
diverso, ou seja, um mesmo enunciado tidos é necessário relacionar a linguagem
pode acontecer em diversas enunciações, com a história, a cultura, a ideologia, a
como por exemplo, o enunciado Silêncio! política etc. Para ela, “não há sentido sem
pode ter vários sentidos de acordo com a interpretação”.
situação em que ocorre. Pelo fato de a Análise do Discurso
O termo discurso, em nosso coti- de linha francesa ser uma teoria da inter-
diano, traz acepções diversas, como por pretação que introduz a noção de efeito
exemplo, “o discurso do presidente da de sentido entre interlocutores, é impor-
empresa foi muito aplaudido”, nesse caso, tante ressaltar que ela surge colocando
significando somente a fala solene. Pode, em questão e opondo algumas teses até
ainda, ser utilizado como um uso restrito então vigentes nos estudos linguísticos de
do sistema da língua, evidenciando uma que a língua seria unívoca, o sujeito seria
determinada tipologia de uso como em dis- uma unidade controlada pela razão e que
curso feminista, discurso religioso, discurso haveria uma conjuntura uniforme. Assim, a
jurídico, discurso administrativo, discurso AD traz concepções de que a língua é po-
midiático etc. lissêmica e opaca, de que o autor é aquele

54 Katia R. A. MACHADO; Silvane A. FREITAS. Contribuições do sócio-interacionismo bakhtiniano e...


que diz ou quer dizer sempre coisas a mais corre das enunciações, atos que se dão no
ou a menos relacionadas ao que queria interior de FD (formações discursivas) [...]”.
dizer, sobretudo, levando-se em conta os Assim, podemos dizer que as enunciações
efeitos da ideologia e do inconsciente, e de se referem sempre a uma determinada
que é essencial verificar as condições de formação discursiva. Por exemplo, o enun-
produção dos discursos a serem analisa- ciado “minha mulher não trabalha fora”
dos (POSSENTI, 2004, p. 358-360). pode ser classificado pertencente a uma
Em seu funcionamento como disci- formação discursiva do discurso machista
plina que interpreta textos, melhor dizendo, e significar que a mulher (esposa de um
como afirmou Orlandi (2008, p. 32), “que homem machista) deve trabalhar somente
trabalha (n)os limites da interpretação”, no lar.
a AD deve considerar as dimensões que A essa altura, torna-se interessante
ligam o sujeito, a linguagem e a história. citarmos um enfoque da linguagem e seu
Os analistas do discurso devem ter seus ensino, amparada na Análise do Discurso,
interesses voltados para “a determinação abordado por Cardoso (1999, p. 11):
histórica dos processos de significação, os
A primeira e maior dentre as contri-
processos de subjetivação, os processos
buições da Análise do Discurso para
de identificação e de individualização
com o ensino é fazer compreender
dos sujeitos e de constituição de sentidos, que a linguagem, por realizar-se
assim como sua formulação e circulação” na interação verbal entre locutores
(ORLANDI, 2008, p. 35). socialmente situados, não pode ser
É necessário considerar como Pos- considerada independente da sua
senti (2004) que “tanto o sujeito quanto o situação concreta de produção. Todas
discurso são afetados (atravessados) pelo as práticas pedagógicas que envol-
inconsciente e pela ideologia”, por isso vem a produção da linguagem colo-
não há como falar em Análise do Discurso cam em relação, nas mais variadas
sem considerarmos aspectos psicológicos situações discursivas, três elementos:
como o inconsciente que constitui o su- interlocutores, enunciado e mundo.
jeito, muito menos sem considerarmos a Nesse sentido, falar, escrever, citar,
ideologia, ou seja, as visões de mundo que analisar, reproduzir, repetir, resumir,
criticar, narrar, imitar, parafrasear,
constituem o sujeito e, consequentemente,
parodiar etc. são práticas em que a
seu discurso.
linguagem enquanto discurso mate-
Ainda nessa linha de pensamento, rializa o contato entre o linguístico
Orlandi (2002, p. 22) menciona que esta (a língua enquanto um sistema de
é “a singularidade da Análise do Discurso: regras e de categorias) e o não lin-
ligar a língua à exterioridade, a língua e guístico (um lugar de investimentos
a ideologia, a ideologia e o inconsciente”. sociais, históricos, ideológicos, psíqui-
Segundo Possenti (2004), a especificidade cos), por meio de sujeitos interagindo
da AD está no campo do sentido, este “de- em situações concretas.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 49-62, jul./dez. 2013. 55


É salutar mencionar que para a AD, linguagem, já se priorizava o texto como
a linguagem, o discurso e o sujeito são ponto de partida e de chegada para todo
constituídos pelo equívoco, pela falta, pela o processo de ensino/aprendizagem de
incompletude e pela contradição. Nesse língua materna. Desde então, o texto tem
aspecto, podemos retornar a Pêcheux e sido considerado como objeto de estudo
nos referir à “impossibilidade de estancar da linguagem.
os sentidos e a ilusão de que o sujeito Dessa forma, partindo do texto e
enunciador é a fonte dos sentidos” (CO- considerando-o como materialidade dis-
RACINI, 2007, p. 42). cursiva, podemos analisá-lo com um olhar
Ainda nessa visão, é interessante voltado para as suas condições de produ-
mencionarmos que a AD objetiva ir além ção, aliando a essa análise vários aspectos
dos efeitos de evidência levando o sujeito/ importantes como: seus interlocutores e a
leitor a fixar seus olhos na opacidade do constituição do sujeito, ideologia, formação
texto e, assim, instaurar outros modos de discursiva, interdiscursividade, polifonia e
ler, relacionando o dito ao não dito, ao dito dialogismo.
em outro lugar etc. (ORLANDI, 2008, p. 62). Especificaremos de modo simplifi-
Diante do exposto, ressaltamos que cado, a seguir, cada um desses aspectos
a AD de linha francesa também traz no- teóricos essenciais à produção e compre-
táveis contribuições e influências aos es- ensão dos textos e, consequentemente, do
tudos atuais da linguagem. Amparado por funcionamento da linguagem enquanto
essas perspectivas teóricas, os professores interação social:
de linguagens poderiam desenvolver um 3.1 Condições de produção
trabalho de leitura/escrita e produção de
sentidos dos diversos textos que circulam O conhecimento e a compreensão
socialmente, desmistificando certos precei- das condições de produção de um texto
tos de linguagem transparente, unívoca favorecerão muito em sua produção de
e de que o sentido estaria somente no sentidos. Em nosso cotidiano, utilizamos
texto, sem levar em conta as condições de a(s) linguagem(ns) significativamente
produção do discurso e o posicionamento produzindo discursos. Para isso, existem
de quem produz sentidos, o leitor. algumas condições indispensáveis, que,
segundo Cardoso (1999, p. 38), são abaixo
3 O ensino de linguagens e as influên- elencadas numericamente:
cias teóricas da AD e do sociointera- 1. um locutor (aquele que diz, sua
cionismo bakhtiniano posição sócio-histórica);
2. um alocutário(aquele para quem
Desde os anos 80, com a explosão se diz o que se tem a dizer, sua
dos estudos baseados nos PCN e num mo- posição sócio-histórica);
vimento em que era fundamental repensar 3. um referente (o que dizer, sempre
sobre as práticas de ensino de língua e determinado pelos sistemas semân-

56 Katia R. A. MACHADO; Silvane A. FREITAS. Contribuições do sócio-interacionismo bakhtiniano e...


ticos de coerência e de restrições); ocorrem certas formações imaginárias
4. uma forma de dizer, numa deter- que designam os lugares atribuídos pelos
minada língua (é preciso que se interlocutores a respeito do outro e de si
escolham as estratégias para se mesmos, como por exemplo, considerando
dizer); A e B, a imagem que A tem de si mesmo,
5. um contexto em sentido estrito: as a imagem que B tem de A, a imagem que
circunstâncias imediatas; o aqui e
B tem de si mesmo, a imagem que A tem
o agora do ato do ato do discurso;
6. um contexto em sentido lato: as
de B, a imagem que A tem do referente, a
determinações histórico-sociais, ide- imagem que B tem do referente e ainda a
ológicas, o quadro das instituições imagem que A tem da imagem que B tem
em que o discurso é produzido – a de A e assim por diante.
família, a escola, a igreja, o sindicato, A esse respeito, Cardoso (1999, p.
a política, a informação, a língua, etc. 39-41) explicita sobre o quadro de jogo
de imagens proposto por Pêcheux e relata
Com relação às condições de pro-
que “aquele que fala o faz de um lugar
dução do discurso, devemos ter não só a
determinado, que regula o seu dizer. Todo
situação imediata de interação ou as de-
discurso remete à formação discursiva a
terminações histórico-sociais e ideológicas
que pertence, sendo regido por essa prá-
que influenciam a significação, mas uma
tica.” Podemos verificar, também, que os
visão muito mais ampla englobando vários discursos não são monológicos, pois um
outros conhecimentos. discurso se constitui de outros discursos e
Diante disso, para produzir sentidos, assim sucessivamente.
nessa perspectiva, é preciso que o sujeito De acordo com Brandão (1995, p.
mergulhe fundo nesses conhecimentos 62), “para a Análise do Discurso, o centro
que perpassam a produção de um texto, da relação não está nem no eu nem no
seja ele verbal e/ou não verbal. Esse proce- tu, mas no espaço discursivo criado entre
dimento (a verificação e compreensão das ambos. O sujeito só constrói sua identida-
condições de produção) deve ser encarado de na interação com o outro. E o espaço
com muita naturalidade diante da leitura dessa interação é o texto”. Nesse sentido,
de qualquer texto. mais uma vez, nos remetemos aos ideais
3.2 Interlocutores e constituição de sujeitos bakhtinianos de que nos constituímos en-
quanto sujeitos na interação com o outro.
Para a compreensão de um texto, É por meio do outro que nos enxergamos,
bem como para uma melhor utilização da tudo o que fazemos e dizemos é sempre
linguagem, também é necessário conhecer em função dos outros que nos perpassam,
os interlocutores, isto é, os protagonistas que nos permeiam, nos imbricam, dialo-
do discurso como afirma Cardoso. Ainda gam conosco, nos negam, nos afirmam.
em conformidade com essa autora (CAR- Assim, conforme Coracini (2007, p. 17), “o
DOSO, 1999, p. 39), no processo discursivo sujeito é também alteridade, carrega em si

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 49-62, jul./dez. 2013. 57


o outro, o estranho, que o transforma e é classe, de grupo (idade, sexo, raça, cor etc.)
transformado por ele”. motivados por relações de poder.” Além de
Tudo isso evidencia que a lingua- serem governados pela ideologia, os dis-
gem, utilizada por nós, sujeitos incomple- cursos também são materializados por ela.
tos, não é límpida e transparente, pois é Ainda, seguindo o pensamento
formada e manifesta por uma heteroge- de Cardoso (1999, p. 47), seguidora de
neidade, uma mistura, um hibridismo, uma Bakhtin, vale ressaltar que
miscelânea de outros que a constituem. A palavra é o fenômeno ideológico
Conforme Coracini (2007, p. 11), “outros, por excelência [...] a palavra é neutra
enfim, que deixam resíduos, rastros no em relação a qualquer função ideo-
inconsciente que se marcam como signo lógica específica, podendo preencher
ou letra, e afloram, cá e lá, pela memória qualquer espécie de função ideo-
que se faz discurso, nas histórias de vida, lógica, artística, política, científica, a
nas invenções de si”. palavra é capaz de acompanhar toda
Sendo assim, podemos concluir criação ideológica.
que a linguagem é múltipla, heterogênea, Assim, podemos dizer que o sentido
não é transparente, mas sim opaca; não das palavras é determinado pela ideologia.
é perfeita, mas aberta a falhas, equívocos, A esse respeito, Pêcheux (1997, p. 160)
incompletudes. No entanto, no ensino de afirma que
língua materna, sobretudo, nos manuais
[...] é a ideologia que fornece as
didáticos, as atividades de leitura são trata-
evidências pelas quais “todo mundo
das como se houvesse uma resposta única sabe” o que é um soldado, um ope-
para as atividades, uma leitura única para rário, um patrão, uma fábrica, uma
o texto, como se o sentido estivesse apenas greve etc., evidências que fazem com
no texto, sem levar em consideração as que uma palavra ou um enunciado
suas condições de produção, a ideologia “queiram dizer o que realmente di-
do autor, do leitor. zem” e que mascaram, assim, sob a
“transparência da linguagem”, aquilo
3.3 Ideologia que chamaremos o caráter material
do sentido das palavras.
Entender as ideologias subjacentes
aos discursos é outro aspecto importante Quando tentamos identificar as ide-
para interpretar os sentidos dos textos, ologias presentes em um texto, podemos
que são a materialização do discurso, identificar muitas marcas materializadas
bem como para compreender os diversos que as especificam e que auxiliam na
conflitos entre posicionamentos sociais, produção dos sentidos, tais como o voca-
políticos, econômicos e culturais. Para bulário utilizado, as formas de se dizer, a
Cardoso (1999, p. 45), “os discursos são época em que foi dito, o lugar social de
governados por formações ideológicas e a quem falou e de quem interpreta, também
ideologia pressupõe conflitos (conflitos de são significativos na interpretação.

58 Katia R. A. MACHADO; Silvane A. FREITAS. Contribuições do sócio-interacionismo bakhtiniano e...


3.4. Formação discursiva das formações discursivas, passando a tra-
balhar o ensino de língua partindo dessa
Podemos notar que os textos sempre concepção, o ensino de leitura e produção
foram produzidos dentro de uma formação textual pode tornar-se mais significativo,
discursiva, ou seja, eles remetem a uma por exemplo, pode-se trabalhar uma notícia
visão de mundo ou opinião acerca de al- de um telejornal, cotejar a mesma notícia
gum assunto próprio de um determinado numa revista, levando em consideração es-
grupo social, que mesmo implicitamente ses aspectos e, consequentemente, produ-
influencia na sua compreensão e produ- zirem os sentidos desses textos, analisando
ção de sentidos. as diferentes versões de um mesmo texto
É relevante destacar que o sujeito que varia de acordo com as concepções
e o sentido do discurso devem ser con- ideológicas de cada um.
siderados e analisados em seu processo Ainda nessa visão, compreender
sócio-histórico de constituição, que ocorre as formações discursivas trazem grandes
no interior das formações discursivas. Dessa contribuições ao ensino de linguagens,
forma, podemos compreender que os sen- porém, é claro que somos conscientes de
tidos mudam de uma formação discursiva que os leitores/alunos não aprenderão tais
para outra, bem como os sujeitos se cons- definições e conceitos, mas para o profes-
tituem ao se inscreverem nessas formações sor é imprescindível dominá-los, incorporar
discursivas (CARDOSO, 1999, p. 35). os pressupostos discursivos para que te-
Pêcheux (1997, p. 160) chama de nha melhores condições de elaborar uma
formação discursiva “aquilo que, numa prática educacional que leve seus alunos
formação ideológica dada, isto é, a partir de a entenderem e utilizarem exitosamente
uma posição dada numa conjuntura dada, a língua em funcionamento, levando em
determinada pelo estado da luta de classes, consideração as condições de produção
determina o que pode e deve ser dito”. do discurso e o sujeito.
Em conformidade com Brandão
3.5 Interdiscursividade, polifonia, dialo-
(1995, p. 39), podemos afirmar que o
gismo
conceito de formação discursiva regula a
referência à interpelação-assujeitamento Acreditamos que um discurso nunca
do indivíduo em sujeito do seu discurso. É a seria autônomo, pois como ele se remete
formação discursiva que permite dar conta sempre a outros discursos, suas condições
do fato de que sujeitos falantes, situados e possibilidades semânticas se concretiza-
numa determinada conjuntura histórica, riam num espaço de trocas, mas jamais
possam concordar ou não sobre o sentido enquanto identidade fechada. Nesta con-
a dar às palavras, “falar diferentemente cepção, o discurso não nasce nele mesmo.
falando a mesma língua”. Sendo assim, a unidade de análise
Quando os professores compreen- que temos enquanto analistas do discurso
dem essas perspectivas teóricas acerca não é propriamente o discurso, mas o espa-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 49-62, jul./dez. 2013. 59


ço heterogêneo e de trocas entre vários dis- prios elementos para organizar sua
cursos que é denominado interdiscurso, e é repetição, mas também provocando,
nesse imbricamento que nos debruçamos. eventualmente, o apagamento, o es-
O interdiscurso, segundo Coracini quecimento ou mesmo a denegação
de determinados elementos.
(2007, p. 9), “são as diversas vozes, prove-
nientes de textos, de experiências, enfim, Analisando os textos, podemos
do outro, que se entrelaçam numa rede em encontrar diversas vozes que interagem,
que os fios se mesclam e se entretecem”. formando um emaranhado. Os textos
Nessa perspectiva, podemos verificar que, dão margem para a verificação de uma
nas situações reais de funcionamento da variedade de vozes que se intercalam, a
linguagem, há um intercalar de discursos, esse emaranhado de vozes denomina-
formando, dessa forma, uma troca dis- mos polifonia. Para Barros (1994, p. 5) “a
cursiva que ocorre quando um discurso polifonia atinge sua plenitude: as vozes
é relacionado com outros ou quando as que dialogam e polemizam “olham” de
formações discursivas se relacionam inter- posições sociais e ideológicas diferentes,
discursivamente. e o discurso se constrói no cruzamento
Assim, pelo fato de um discurso citar dos pontos de vista”. Faraco (2001, p. 27)
outro, se relacionar com outro, podemos evidencia “a multivocalidade como marca
afirmar que ele não é um sistema fechado, característica dos discursos, no sentido de
mas um palco de trocas, conflitos, hete- que os enunciados de cada discurso têm
rogeneidade e reprodução. Um discurso um percurso que faz com que carreguem
pode aceitar, rejeitar, repetir, implícita ou à memória de outros discursos”.
explicitamente, outros discursos, seja num Seguindo a teoria bakhtiniana,
tom reverente ou irreverente, irônico, entre podemos ressaltar a presença de diversos
outros tons. Por isso, as relações interdis- outros nos discursos. Nesse sentido, esse
cursivas podem polemizar ou concordar aglomerado de “outros” nos textos, remete-
(FIORIN, 1993, p. 45). nos ao dialogismo de Bakhtin. Para ele, o
Nesse sentido, as formações discur- diálogo é constitutivo da linguagem. Por
sivas podem ser definidas partindo-se de isso, “toda palavra comporta duas faces.
seu interdiscurso. Segundo Maingueneau Ela é determinada tanto pelo fato de que
(1997, p. 112), procede de alguém, como pelo fato de que
se dirige para alguém” (BAKHTIN, 1986,
[...] o interdiscurso consiste em um
p. 113).
processo de reconfiguração incessan-
te no qual uma formação discursiva Sendo assim, é essencial que os
é levada [...] a incorporar elementos leitores/alunos juntamente com seus pro-
pré-construídos, produzidos fora dela, fessores identifiquem essas diversas vozes
com eles provocando sua redefinição para que possam produzir os efeitos de
e redirecionamento, suscitando, igual- sentidos de um texto, tendo sempre em
mente, o chamamento de seus pró- vista que essas vozes podem polemizar,

60 Katia R. A. MACHADO; Silvane A. FREITAS. Contribuições do sócio-interacionismo bakhtiniano e...


dar suporte à contra-argumentação, à capacidade discursiva dos alunos, libertá-
refutação, que são tão importantes para los da pressão de ter de achar o único sen-
a ampliação da discursividade do aluno. tido do texto, a resposta correta, que sempre
foi a do professor ou do livro didático e,
Considerações finais com isso, colaborar para o desenvolvimen-
to da consciência do aluno, oportunizando
Portanto, partindo desses pressupos- condições para que possam questionar
tos teóricos, acreditamos que compreender as verdades inabaláveis, os ditos e não
as contribuições da teoria bakhtiniana e ditos, e, assim, quem sabe, libertar-se da
da AD para o ensino não é uma questão alienação e do assujeitamento frente ao
de apenas conhecer teorias, pois o que fatos sócio-históricos.
precisamos é de uma mudança de postura Para isso, seria importante criar
tanto do professor como do aluno frente condições para os alunos refletirem, com-
ao texto e, para isso, necessário se faz pararem suas próprias produções escritas,
uma mudança de concepção de ensino, reelaborarem seus próprios textos, entende-
de linguagem e de leitura, sobretudo, por rem os silenciamentos (o que o texto não
parte do professor, e essas teorias em muito diz e por quê), pois essas reflexões podem
poderiam contribuir. ser um primeiro descortinar de consciên-
É nesse processo dialógico de com- cias e, segundo Bakhtin (2010, p. 321), “[...]
preensão da palavra alheia, que nos apro- ver pela primeira vez, tomar consciência de
priamos de novos conhecimentos, novas algo pela primeira vez já significa entrar
teorias e nos re-significamos. Assim, uma em relação com esse algo: ele já não existe
mudança de concepção e/ou de postura, mais em si, mas para o outro (já são duas
por parte do professor, poderia ampliar a consciências correlacionadas)”.

Referências

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com a colaboração de Lúcia T. Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. São Paulo: Hucitec, 1986.
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Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 49-62, jul./dez. 2013. 61


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Recebido em maio de 2012


Aprovado para publicação em julho de 2012

62 Katia R. A. MACHADO; Silvane A. FREITAS. Contribuições do sócio-interacionismo bakhtiniano e...


A gestão democrática em espaços não formais de
ensino
Democratic management: the approach in non-formal
places of education
Wânia Gonzalez*
Elisangela Bernardo**
* Profa. Dra. Adjunta da Pós-Graduação em Educação da
UERJ/FEBEF e da UNESA. Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Educação,
Cultura e Comunicação nas Periferias Urbanas.
E-mail: waniagonzalez@terra.com.br
** Profa. Dra. Adjunta da Escola de Educação da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO). Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO). E-mail: efelisberto@yahoo.com.br

Resumo
Este texto buscou analisar a concepção de gestão democrática implícita nas ações educativas ofertadas
por dois espaços não formais de ensino. O estudo foi realizado na Federação de Órgãos para Assistência
Social e Educacional, FASE, mediante o enfoque do Curso Capacitação de Agentes Sociais e Conselheiros
Municipais, e no Instituto Ayrton Senna, a partir da abordagem do Programa Gestão Nota 10. O referencial
teórico utilizado no estudo enfatizou a dimensão política que os espaços não formais de ensino podem
assumir sem defender a diminuição do papel do Estado na oferta da educação pública. As reflexões
respaldam a concepção de gestão democrática adotada no texto. O estudo traz as contribuições sobre a
possibilidade de construção de uma nova relação com o saber na análise das ações educativas inves-
tigadas. A pesquisa de abordagem qualitativa utilizou como instrumentos de coleta de dados: análise
documental e entrevistas com os coordenadores pedagógicos das duas Organizações do Terceiro Setor. Os
resultados encontrados na pesquisa indicaram que nas ONGs estudadas as diferenças sobre a dimensão
política da gestão educacional são acentuadas.
Palavras-chave
Gestão democrática. Espaços não formais de ensino. ONGs.

Abstract
This paper analyzes the concept of democratic management implicit in educational activities offered by two
spaces non-formal education. The study was performed in Federação de Órgãos para Assistência Social
e Educacional, FASE, upon the focus of the Training Course of Social Agents and Municipal Councillors,
and the Instituto Ayrton Senna, from the approach of the Program Management Note 10. The theoretical
framework used in the study underscores the political dimension of the spaces non-formal education
can take without defending the diminishing role of the state in the provision of public education. The

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 63-76, jul./dez. 2013
reflections advocated a conception of democratic management adopted in the text. The study brings the
contributions about the possibility of building a new relationship with knowledge in the analysis of edu-
cational investigated. The qualitative study used as instruments of data collection: document analysis and
interviews with the coordinators of two Third Sector Organizations. The findings in the study indicated that
the NGOs studied the differences on the political dimension of educational management are emphasized.
Key words
Democratic management. Spaces non-formal education. NGOs.

Introdução Social e Educacional, FASE, mediante o


enfoque Curso Capacitação de Agentes
O princípio constitucional da Gestão Sociais e Conselheiros Municipais, e no
Democrática vigora em nosso país desde Instituto Ayrton Senna, a partir da aborda-
a promulgação da Carta Magna de 1988. gem do Programa Gestão Nota 10.
Apesar disso, de uma maneira esquemáti- A relevância deste trabalho consiste
ca, podemos afirmar que oscilam no cam- em contribuir para o conhecimento das
po da educação duas concepções de ges- ações educativas ofertadas por Organiza-
tão democrática: uma meramente formal e ções do Terceiro Setor. O artigo pretende
burocrática, na qual a descentralização é também subsidiar a identificação de
uma estratégia fundamental à diminuição práticas pedagógicas que possuam uma
do Estado, e outra que valoriza a autono- abordagem abrangente da formação do
mia da escola com a participação da co- indivíduo mediante o reconhecimento do
munidade escolar, tal como o disposto na seu direito à apropriação efetiva dos sabe-
LDB/1996, art. 14, em que é incentivada a res, bem como o sujeito apreende o mundo
elaboração do projeto político-pedagógico levando em consideração a sua dimensão
da escola (PPP) mediante o envolvimento humana, social e singular (CHARLOT, 2000).
dos diferentes atores sociais. As organizações foram selecionadas,
Entretanto são escassas as pes- intencionalmente, a partir dos resultados
quisas que buscam elucidar a temática da pesquisa Educação e Sustentabilidade:
da Gestão Democrática nos espaços não ações educativas do terceiro setor no Rio
formais de ensino, assunto que tratamos de Janeiro (2008) em virtude de contemplar,
no presente trabalho. Dessa forma, o ob- de forma relevante, nas suas ações educa-
jetivo deste artigo é analisar a concepção tivas, a temática da gestão. O enfoque dado
de gestão democrática implícita nas ações à temática é diferenciado: uma privilegia
educativas ofertadas pelos espaços não a formação de gestores, FASE, enquanto a
formais de ensino. O estudo foi realizado outra, Instituto Airton Senna, além desse
na Federação de Órgãos para Assistência aspecto, contempla o estabelecimento de

64 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
indicadores e de metas a serem cumpridas referidas propostas não podem restringir-
pelas escolas participantes do Programa se, portanto, ao campo formal, precisam
Gestão Nota 10. Ambas as Organizações sobrepujá-lo. Nesse sentido, indagamos
possuem as suas sedes situadas no eixo como a educação não formal atenderia a
Rio de Janeiro e São Paulo, com atuação possibilidade de emancipação dos sujeitos
em vários estados da federação, e fazem por meio de uma educação política? A edu-
parcerias com órgãos públicos para con- cação não formal, na configuração atual,
cretizarem as suas ações educativas. se apresenta como “alternativa” possível
Adotamos uma abordagem quali- buscando contribuir para a transformação
tativa de investigação e empregamos as da sociedade?
seguintes técnicas de pesquisa: análise Mészáros (2005) reconhece a impor-
documental mediante o levantamento tância de outros espaços formativos, além
de dados em sites e entrevistas junto aos da escola, e identifica a educação informal
responsáveis pelas Organizações citadas. como aquela que acontece ao longo da
Procedemos à análise de dados privilegian- vida mediada por relações sociais e polí-
do a recorrência aos temas que elucidam ticas. Similar a essa categorização, Gohn
o objetivo proposto na investigação. (2006) tipifica a educação que se aprende
no mundo da vida e em espaços coletivos
Educação não-formal, ONGs e gestão como educação não formal. Convém res-
democrática saltar que, mesmo admitindo as potencia-
lidades dessa modalidade de educação,
As críticas à sociedade capitalista não deve ser depositada uma confiança
pautada na mercantilização, na alienação excessiva nas suas ações (TRILLA, 2008).
e na intolerância, vislumbram o papel Frente ao exposto, buscaremos no presente
estratégico da educação como mola pro- artigo verificar até que ponto as ações
pulsora para a transformação e não instru- educativas em foco, Curso Capacitação de
mento de manutenção do status quo das Agentes Sociais e Conselheiros Municipais,
desigualdades sociais e educacionais. De- desenvolvida pela FASE e o Programa Ges-
veria ser a universalização do atendimento tão Nota 10, executado pelo Instituto Ayrton
uma meta, bem como a universalização do Senna, convergem para uma concepção
acesso ao trabalho, e não diametralmente de gestão que contribuem para formação
a universalização do acesso à educação, de uma nova cultura política. Esta diz
pois, apenas numa sociedade em que to- respeito aos valores que os indivíduos e
dos se tornem trabalhadores, se efetivará grupos desenvolvem em relação ao espaço
a plena relação entre trabalho e educação público, de uma maneira geral, a partir de
(MÉSZÁROS, 2005 apud GONZALEZ, 2008). processos interativos entre os indivíduos,
Acrescentamos à reflexão de Mésza- cujo elemento central é a necessidade
ros a nossa concepção ampliada de do ser humano, e não a busca do lucro
educação que nos leva a enfatizar que as (GOHN, 2006).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 63-76, jul./dez. 2013. 65


No atual contexto que permeia a Com o intuito de nos fundamen-
realidade brasileira, o estabelecimento tarmos teoricamente para analisarmos a
de uma sociedade mais justa requer concepção de gestão implícita nas ações
esforços tanto dos espaços formais como educativas ministradas pelas Organizações
dos espaços não formais, advindos das do Terceiro Setor em foco recorremos às
escolas, das ONGs, mas, sobretudo das reflexões de Paro (2010), Lück (2000) e
instituições mantidas pelo Estado. Contudo Dourado (2001). No tocante à gestão de-
não podemos negligenciar que os espaços mocrática, convêm esclarecer o percurso do
não formais de ensino, principalmente, conceito na nossa história recente. A Teoria
as ações educativas desenvolvidas pelas Geral da Administração (TGA) influenciou a
Organizações do Terceiro Setor, têm sido administração escolar, no Brasil, até meados
pouco contemplados tanto no âmbito das dos anos de 1980, objetivando usar a admi-
políticas públicas e avaliações governa- nistração como instrumento para conseguir
mentais quanto no âmbito das pesquisas um significante aumento da eficácia e efi-
acadêmicas. ciência do trabalho escolar e contribuindo
Especificamente no que tange às para o desenvolvimento do capitalismo.
ONGs, esclarecemos que o termo é comu- Os estudos de vários autores (GONZÁLES,
mente usado para designar as organiza- 2008; ARROYO, 1979; ZUNG, 1984; PARO,
ções civis do terceiro setor que no Brasil 1986 apud RUSSO, 2004) foram pioneiros
proliferaram, a partir da década de 1990, ao criticar a aplicação da administração
influenciadas pelas alterações políticas e geral nas escolas, sem o reconhecimento
econômicas do país, enquanto o Estado da especificidade do trabalho escolar.
se eximia de áreas relacionadas ao bem Nos anos 80, Paro (2010) questio-
estar social. O espaço público não estatal é nava frequentemente a insistência da
constituído por organizações sociais distin- utilização da Teoria Geral da Administra-
tas no que tange aos interesses, ações na ção empresarial como referência para a
sociedade, demandas atendidas, especifici- administração escolar. Nessa perspectiva
dades gerenciais e à captação de recursos. de análise, a incorporação da lógica do
É reconhecida por Montaño (2005) a difi- pensamento capitalista na escola é pro-
culdade de conceituação tanto das ONGs dutora da irracionalidade interna e externa
como das demais Organizações do Terceiro que se verifica na prática escolar concreta,
Setor. Sabe-se, porém, que estas são im- decorrente dos conflitos e contradições
portantes organizações da sociedade civil entre os pressupostos da administração
sem fins lucrativos (MONTAÑO, 2005). É capitalista e a natureza do processo de
justamente este o perfil das Organizações produção pedagógica.
as quais nos dedicamos no presente artigo: A transição da abordagem da admi-
a FASE é uma ONG, enquanto o Instituto nistração escolar para adoção do princípio
Airton Senna é caracterizado como uma da gestão democrática na educação é
Organização do Terceiro Setor. normatizada com a Constituição Federal

66 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
de 1988, entretanto a construção do co- escolar tem como base alguns fundamen-
nhecimento e das práticas necessárias está tos necessários para a implantação do
em fase de elaboração, dada a dificuldade modelo dinâmico de escola: a) a realidade
que se tem de mudanças de paradigmas é global onde tudo está interligado; b) a re-
(LÜCK, 2000). Estas não acontecem de for- alidade é dinâmica construída pelas intera-
ma rápida, pois consistem em um processo ções entre as pessoas; c) o ambiente social
histórico e construído pela sociedade. e o comportamento humano são dinâmicos
A Constituição Federal de 1988, em e imprevisíveis; d) a incerteza, a ambigui-
seu art. 206, fixou os princípios do ensino dade, as contradições, as tensões, o conflito
brasileiro, dentre os quais, destacamos: a e a crise são vistos como naturais e como
gestão democrática, estabelecida no inciso condição e oportunidade de crescimento e
VI, que aumentou a capacidade das escolas transformação; e) a busca de realização e
tomarem decisões; e a garantia de padrão sucesso corresponde a um processo, e não
de qualidade, prevista no inciso VII. Além a uma meta; f) a responsabilidade maior
disso, para tornar as instituições escolares do dirigente é a articulação; g) as boas ex-
mais eficientes e produtivas, a referida Cons- periências não devem ser copiadas, e sim
tituição em seus artigos 211, 212 e 213 es- modificadas por causa das peculiaridades
tabeleceu, respectivamente, a organização locais e organizacionais; h) as organizações
descentralizada dos sistemas de ensino en- devem priorizar a participação conjunta e
tre os entes federativos, a descentralização mobilizar equipes atuantes, pois os talentos
administrativa e financeira do ensino para e a sinergia humanos são recursos pode-
os governos locais e os recursos públicos rosos numa organização. Estes aspectos
que seriam destinados às escolas. são essenciais na visão democrática como
Em 1996, a LDBEN n. 9394, ratifica garantia de mudanças comportamentais e
a Constituição Federal e coloca no artigo organizacionais. Finalmente, outro aspecto
3º, inciso VIII, a gestão democrática do essencial na gestão democrática é evitar a
ensino público como um dos princípios da rotatividade, esse fato traz a descontinui-
educação nacional. O art. 14 da referida lei dade dos processos e prejudica o amadu-
diz que os sistemas de ensino definirão as recimento das transformações.
normas da gestão democrática do ensino Nessa perspectiva, a formação do
público na educação básica, de acordo gestor é essencial para o seu desempenho,
com as suas peculiaridades e conforme os e, além da capacidade técnica, o gestor
princípios da participação dos profissionais precisa ter uma visão holística do processo
da educação na elaboração do projeto educativo, uma visão de futuro, partindo da
pedagógico da escola e participação das premissa de que, na gestão democrática,
comunidades escolar e local, em conselhos qualquer que seja a forma de sua con-
escolares ou equivalentes. dução, ele deverá também ter uma visão
De uma maneira esquemática, Lück empreendedora que possa proporcionar
(2000) indica que o paradigma de gestão uma gestão eficaz. É fundamental que o

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gestor tenha a compreensão de que sua ensino (FASE e Instituto Ayrton Senna)
gestão não deverá ser somente administra- e identificar se as práticas pedagógicas
tiva, mas também pedagógica e colegiada. possuem uma abordagem abrangente
Paro (2009), ao fazer uma reflexão da formação do indivíduo, de acordo com
sobre a administração escolar, em busca Charlot (2000), aspectos que contemplare-
de uma formação de dirigentes escolares mos na próxima seção.
fundamentada no pedagógico e nas po-
tencialidades da educação como prática As ONGs pesquisadas
democrática, recorre a elementos do pensa-
A criação da Federação de Órgãos
mento de José Querino Ribeiro que contri-
para Assistência Social e Educacional
buam para que a administração passe a ser
(FASE) ocorreu em 1961, por um grupo de
um processo mediador em busca dos fins
pessoas ligadas a Catholic Relief Services
da educação e não somente as atividades-
(CRS) do Brasil, Caritas Brasileira entre
meio que são consideradas administrativas.
outras entidades. Apesar do seu vínculo
Isto posto, há uma tendência de se formar
com as mencionadas entidades, busca
gestores com capacidades administrativas
ser uma organização civil independente
que não tomam o pedagógico como ob-
de qualquer Igreja. Os representantes dos
jeto da administração, entendendo assim
movimentos sociais tinham a percepção de
o processo de gestão de maneira limitada.
que os recursos destinados às entidades
Diferentemente dessa visão, para Dourado
de base eram em parte, desperdiçados por
(2001, p. 79), a gestão democrática
falta de assessoria técnica, administrativa
[...] é entendida como um processo e financeira. Nesse cenário, o segmento
de aprendizado e de luta política citado avaliava a disponibilidade dos
que não se circunscreve aos limites
recursos humanos e os meios financeiros,
da prática educativa, mas vislumbra,
nas especificidades dessa prática
provenientes do Brasil e do exterior, mas
social e de sua relativa autonomia, a constatava a falta de planejamento das
possibilidade de criação de canais de obras e das atividades e entidades capazes
efetiva participação e de aprendizado de reproduzirem esses recursos no sentido
do “jogo” democrático e, consequen- de obter sua autossuficiência.
temente, do repensar das estruturas De maneira resumida, a missão da
de poder autoritário que permeiam as FASE é contribuir para a construção de uma
relações sociais e, no seio dessas, as sociedade democrática, através de uma al-
práticas educativas. ternativa de desenvolvimento sustentável
Nesse sentido, faz-se necessário re- que contemple a inclusão, a integração e a
tomar o objetivo mencionado do presente justiça sociais, a sustentabilidade do meio
estudo, que é o e de analisar a concepção ambiente e também a universalização dos
de gestão implícita nas ações educativas direitos civis, políticos, econômicos, sociais,
ofertadas pelos espaços não formais de culturais e ambientais. As principais fontes

68 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
de recursos financeiros advêm de agências organizações de moradores da periferia,
internacionais de cooperação, empresas, de jovens, de cultura, das mulheres, e
fundações ou institutos empresariais brasi- suas diversas redes e fóruns organizados
leiros, comercialização de produtos e venda em torno da reforma urbana – através
de serviços além de doações de indivíduos. do desenvolvimento de metodologias de
Seus beneficiários ou público alvo são: or- formação política.
ganizações populares/movimentos sociais, A FASE – Rio de Janeiro ela tem uma
trabalhadores(as) rurais/sindicatos rurais e área geográfica de atuação prioritária,
mulheres. Acrescenta-se, ainda, que a ONG histórica, que é a Baixada Fluminense.
não conta com trabalho voluntário para Ela também tem atuação na capital,
a disponibilização de serviços nas áreas a partir de redes do Estado, como o
voltadas para o Meio Ambiente, questões Fórum Estadual de Reforma Urbana,
urbanas e fortalecimento de outras ONGs/ mas assim, o foco de fortalecimento
movimentos populares. de movimentos é na Baixada Flumi-
nense. Então, são prioritariamente nos
[...] principalmente a partir dos anos municípios Nova Iguaçu, Duque de
80, que vivencia o desafio da demo- Caxias, São João de Meriti, Mesquita,
cratização e descentralização das Belford Roxo. Mas quem é o público-
políticas, ela faz um forte investimen- alvo com qual a gente atua é em cima
to na formação de lideranças, pra de movimentos sociais organizados, a
que atuem nas esferas públicas de gente não trabalha em cima de popu-
participação, não só conselhos que lação difusa, entendeu? (Coordenador
são esferas mais institucionais, mas da FASE, 2008).
também participando de audiências
públicas, construção, por exemplo, b) Exigibilidade pelo Direito à Cidade. É um
de mecanismos de visibilidade como campo de atuação através do qual a ONG
audiências civis públicas, né? (Coor- almeja difundir ações de exigibilidade e
denador da FASE, 2008). pressão política almejando a implantação
Nesse início de século, a atuação da de políticas públicas que promovam o
FASE ocorre nos âmbitos local, nacional e direito à cidade. Dessa forma, o foco da
internacional, com vistas a integrar redes, atuação é buscar garantir à população
fóruns e plataformas. Essa abrangência excluída o acesso aos bens e serviços
possui um caráter político ao adotar es- urbanos e sua inserção econômica na
tratégias diferenciadas que contribuam perspectiva de um novo modelo de cidades
para o entrave da implantação de políticas justas e democráticas.
de caráter neoliberal. A FASE prioriza três c) Democratização da gestão das cidades. A
linhas de ação do programa Rio de Janeiro: ênfase nessa temática consiste no repasse
a) Identidade e Cultura nas cidades - é va- e difusão de metodologias que possibilitem
lorizada a atuação da ONG na organização aos atores locais o monitoramento e con-
do movimento popular – em especial as trole social de políticas públicas, em espe-

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cial àqueles com presença nos conselhos da necessidade de intersetorialidade,
setoriais (em seus diferentes níveis). Essa quais são os instrumentos de gestão, a
ação busca instrumentalizar os indivíduos entender um pouco melhor a comple-
nos processos de planejamento participa- xidade do processo descentralização
político-administrativa, entender tam-
tivo das cidades e de democratização do
bém sobre as dificuldades pra algo que
orçamento público, fortalecendo práticas
aparentemente parece tão abstrato, né?
democráticas de gestão e experiências Compreender também quais seriam as
de governança democrática baseadas na formas, quais são os grandes entraves
interação entre governo e sociedade. de trabalhar poder decisório em con-
O Curso Capacitação de Agentes selho, construção de agenda. Ou seja,
Sociais e Conselheiros Municipais, ofe- esses elementos todos que são muito
recido pela ONG, desde 2001 no Rio de pouco palpáveis se você não trabalha
Janeiro, é direcionado às lideranças popu- de forma mais pedagógica, e que
lares e agentes governamentais os quais as pessoas vivenciam na realidade.
tenham inserção em conselhos setoriais (Coordenador da FASE, 2008).
de políticas públicas. De acordo com os Ainda segundo as informações
dados disponíveis no site, o curso surgiu obtidas na entrevista com a coordenação
da permanente demanda por parte de do curso, ocorre, no decorrer da ação
agentes governamentais e da sociedade educativa, uma ênfase na abordagem dos
por investimento em formação de indiví- conselhos setoriais de políticas públicas
duos capacitados para atuar no âmbito enquanto espaços democráticos de disputa
das políticas públicas. O principal objetivo política, em que projetos diferenciados de
da ação em foco é ser um espaço de cidade estão presentes. A entrevistada nos
qualificação de agentes sociais capazes de relatou que um dos principais problemas
atuarem na elaboração e monitoramento apontados por conselheiros na pesquisa
de políticas públicas. Assim, não apenas realizada por Mauro Santos e publicada em
quem é conselheiro/a pode fazer o curso, seu livro “Conselhos Municipais” demonstra
mas é um requisito que o/a pretendente à a dificuldade da disputa e definição de uma
vaga seja indicado/a por uma instituição agenda por parte dos conselheiros. Muitas
ou pelo órgão público. De acordo com as vezes, sua intervenção acaba sendo pau-
informações do site, o curso não pretende tada, ou pela dinâmica burocrática do co-
ser um “manual de como atuar em conse- tidiano administrativo, ou pela presidência
lhos”. Essa preocupação com a formação do conselho. Por conta disso, a metodologia
política dos indivíduos foi mencionada por do curso foi alterada e, além dos blocos
um dos coordenadores da FASE. teóricos, incorpora dinâmicas de construção
O curso de Políticas Públicas fornece às da agenda de atuação nessa esfera, nas
pessoas uma capacidade de compre- quais se simula a atuação em conselhos.
ensão melhor sobre o que são políticas A FASE enfatiza que as suas ações
públicas, da sua dimensão setorial, pautam-se em um referencial crítico ao

70 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
mencionar que a sua atuação não tem a por Lück (2000), Paro (2010) e Dourado
intenção de substituir o Estado no atendi- (2001), quando os autores recomendam
mento dos direitos sociais (Coordenador a instrumentalização do indivíduo para
da FASE, 2008). atuar e questionar as estruturas de poder
A ONG aborda uma importante vigentes mediante a clareza de que o
questão que é esvaziada no discurso das conflito e a tensão fazem parte do coti-
demais Organizações: o papel e a função diano da gestão. Vislumbramos, no Curso
das ONGs diante das novas configurações Capacitação de Agentes Sociais e Conse-
do Estado, bem como os múltiplos entendi- lheiros Municipais, o reconhecimento da
mentos que se estabelecem de acordo com educação não formal como um espaço
a matriz teórica adotada (MONTAÑO, 2005). de formação de uma nova relação com o
A existência da ONG desde os anos saber (CHARLOT, 2000) e a possibilidade
de 1960 e a experiência da sua equipe de formação de uma nova cultura política
no campo da Educação Popular são im- (GOHN, 2006). Assim, retomamos Charlot
portantes para a execução de suas ações (2000, p. 80) ao afirmar que a valorização
atuais conforme foi abordado no decorrer da participação social do sujeito ocorre
da análise de dados. A atuação da FASE quando ele passa a entender a sua relação
na área da educação com ênfase na com o mundo e a valorizar a sua atuação.
gestão tem por objetivo contribuir para o É nesse sentido que se pode dizer que “a
fortalecimento da cidadania ativa, para que relação estabelecida por um sujeito com
agentes sociais, organizados coletivamente, o saber é uma forma de relação com o
possam intervir permanente e criticamente mundo, com ele mesmo e com os outros”. A
nas esferas públicas, visando à ampliação potencialidade da educação não formal da
e garantia das obrigações estatais no educação também é destacada por, Gohn
campo dos direitos humanos em sua in- (2006, p.19) quando afirma que, nesse
tegralidade. Essa atuação vai ao encontro espaço formativo, existe a possibilidade
da Política Pública de Direitos Econômicos de “abrir janelas de conhecimento sobre
Sociais Culturais e Ambientais (DESCA). o mundo que circunda os indivíduos e
No que se refere à realização de suas relações sociais”. Tal fato acontece
parcerias, obtivemos a menção de sua con- conforme evidenciamos no curso em foco.
cretização com a UFRJ, desde 94, mediada Já o Instituto Ayrton Senna (IAS),
pelo o Observatório das Metrópoles. Este organização sem fins lucrativos, caracteri-
consiste num programa acadêmico de ex- zada como pertencente ao Terceiro Setor e
tensão, de pesquisa, a partir do qual é feita cujas atividades iniciaram-se em novembro
a aliança com professores e com os técni- de 1994, presidido por Viviane Senna, tem
cos da FASE, buscando a implementação como principal objetivo ajudar crianças
dos cursos. Dessa forma, fica evidenciada e jovens das classes menos favorecidas
uma proximidade com o paradigma da visando criar-lhes oportunidades de de-
gestão democrática conforme é descrito senvolvimento humano. O Instituto conta

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 63-76, jul./dez. 2013. 71


com a colaboração e parceria de empresas, pré-qualificados pelo Ministério da Edu-
governos, prefeituras, escolas, universidades cação (MEC) como ferramenta de apoio
e ONGs. De acordo com os dados do site, aos sistemas públicos de ensino visando à
em 2009, quase três milhões de crianças e promoção da qualidade da educação. São
jovens beneficiados em 1.372 municípios eles: Se Liga e Acelera Brasil (programas
de 26 Estados e Distrito Federal. É significa- de correção de fluxo) e Circuito Campeão
tivo o montante de recursos investidos na (programa preventivo), todos voltados para
educação, em quinze anos foram gastos R$ soluções educacionais para a educação
203.417,308 milhões em programas edu- formal. Além dos Programas citados, a
cacionais (INSTITUTO AYRTON SENNA, s/d). ONG atua em Soluções para a educação
Como soluções educacionais, o IAS complementar, os Programas são desen-
sistematiza programas permanentes dentro volvidos em horário alternado ao da escola
e fora da escola. E, segundo informações — Educação pela Arte, Educação pelo Espor-
obtidas no site, os profissionais participan- te e SuperAção. As informações disponíveis
tes das ações educativas recebem capacita- no site enfatizam que estes não devem ser
ção para trabalharem nos projetos. Viviane entendidos como mera recreação e podem
Senna (apud AQUINO, 2009), em entrevista, ser desenvolvidos tanto em espaços escola-
quando questionada se existe um método res como comunitários (INSTITUTO AYRTON
de ensino ideal para a educação brasileira: SENNA, s/d). Os programas Gestão Nota
10 e Circuito Campeão são denominados
O método não é o que mais importa,
como preventivos justamente por atuarem
mas sim a gestão e o gerenciamento
nas redes públicas de ensino com o intuito
do processo de aprendizagem e de
ensino. A prática docente é que faz a de melhorar a qualidade do ensino.
diferença, o professor precisa lançar A gestão propriamente dita é aquela ca-
mão de alternativas de ensino para paz de articular os recursos em prol dos
garantir a aprendizagem. Para que o resultados, com os devidos ajustes de
aluno dê certo, são necessárias coisas percurso. A gestão se vale de processos
simples: ter aula, o professor e o aluno gerenciais e instrumentos administra-
estarem presentes e o aluno aprender, tivos, mas vai além deles. No Acelera
principalmente ser alfabetizado. Mas e no Se Liga, o acompanhamento de
é preciso que o professor trabalhe indicadores de processo (cumprimento
de forma sistematizada e organizada, de calendário escolar, presença de pro-
mostre para o aluno que ele é agente fessores e alunos, realização de lição de
do próprio desenvolvimento. Para tanto, casa, reuniões de planejamento, visitas
é importante que o aluno saiba o que de supervisão e livros lidos) é determi-
lhe compete e o que deverá aprender. nante para a qualidade do resultado.
(SENNA apud AQUINO, 2009).
Cabe chamar atenção para o fato
de que três programas, dos vários desen- Em virtude do objetivo em foco, ex-
volvidos para área da educação, foram posto anteriormente, analisar a concepção

72 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
de gestão democrática implícita nas ações de Informações), uma ferramenta
educativas ofertadas pelos espaços não gerencial que opera em plataforma
formais de ensino, priorizaremos o Pro- eletrônica, pela Internet, e que integra
grama Gestão Nota 10. Esse Programa é os municípios parceiros do Instituto
a uma rede – Rede Vencer – carac-
voltado para os gestores de educação, a
terizada pela busca do sucesso de
implantação nas escolas se dá por meio de
todos os alunos. O sistema permite
parcerias com as secretarias de educação acompanhar o processo educacional
municipais e/ou estaduais e alianças com e detectar os pontos fracos e os pontos
a iniciativa privada. fortes para o alinhamento de ações, o
No tocante aos objetivos do Progra- que viabiliza a resolução de possíveis
ma, descritos no site, destacamos como problemas durante o ano letivo em
prioritário a inclusão dos princípios de curso, em cada escola onde os progra-
gestão nas diferentes esferas da educação mas acontecem. Além desse acompa-
formal: aprendizagem, ensino, rotina esco- nhamento, os programas passam por
lar e política educacional e fortalecimento avaliações internas e externas, estas
realizadas pela Fundação Carlos Cha-
da competência técnica das lideranças e
gas. (INSTITUTO AYRTON SENNA, s/d).
das equipes de trabalho, a partir de uma
interação ativa e cooperativa na escola e Peroni (2004) problematiza os pro-
entre a escola e a secretaria de educação. cedimentos adotados pelo Instituto de
Ainda de acordo com as informações intervenção e monitoramento do Sistema
oficiais, o envolvimento da comunidade Público em parceria efetuada em dois
escolar restringe-se aos seguintes aspec- municípios do Estado do Rio Grande do
tos: tanto os gestores como os professores Sul desde 1997. A autora exemplifica a
recebem capacitação, e as famílias são sua afirmação com os dados relativos ao
mobilizadas a participar da formação de monitoramento dos conteúdos da edu-
seus filhos. Outro aspecto enfatizado diz cação através do SIASI e o pelo fato de o
respeito à existência de uma equipe que Sistema ser usado para traçar estratégias
acompanha o passo a passo dos Progra- de melhoria da educação pública sem a
mas para que qualquer problema possa participação social. Tal fato influencia a
ser resolvido durante o processo, sem gestão das escolas e consequentemente
comprometer o aprendizado do aluno. O interfere na autonomia.
Gestão Nota 10 trabalha com indicadores e Retomamos Lück (2000), ao afirmar
estabelece metas a serem cumpridas pelas que o paradigma de gestão escolar tem
escolas, devidamente ajustadas a cada ano como um dos seus fundamentos que a
letivo, a partir da realidade dos resultados busca de realização e sucesso corresponde
obtidos no ano anterior. a um processo, e não o cumprimento de
Para acompanhar todo o processo de uma meta. Tal enfoque não é privilegiado
forma integrada, o Instituto criou o no Programa Gestão Nota 10, em virtude
SIASI (Sistema Instituto Ayrton Senna da ênfase nos indicadores e índices a

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 63-76, jul./dez. 2013. 73


serem atingidos pelas escolas. A autora ci- de 1990. As atividades sociais, dentre as
tada destaca também que as experiências quais se inclui a educação, podem ser fei-
exitosas não devem ser copiadas, e sim tas sem um controle maior da população,
adaptadas às especificidades de cada esta- quando realizadas de forma descentrali-
belecimento educacional. Convém ressaltar zada, mediante a sua concretização com
que há uma distância entre o que Lück as chamadas “organizações sociais”. A
(2000) afirma sobre os princípios da gestão parceria entre o Estado e as organizações
democrática na educação e a concepção sociais foi normatizada pela Lei n. 9790
de gestão implícita no Programa Gestão de 23/03/1999, a partir da justificativa de
Nota 10. Notamos, no Instituto Airton Sen- se constituir num estímulo estatal para
na, a prevalência de uma concepção de a ação cidadã. A heterogeneidade das
gestão, que prioriza o aumento da eficácia parcerias realizadas, em virtude da própria
e da eficiência escolar, de acordo com a diferença existente entre as Organizações
influência da teoria geral da administração do Terceiro Setor, pode contribuir para des-
empresarial adaptada ao ambiente escolar. politização dos indivíduos impossibilitando
Assim, temos a discordância de um as- a construção e uma nova relação com o
pecto muito relevante, destacado por Paro saber. Para Charlot (2000), a dimensão
(2009, 2010), no que tange a sua crítica política do aprendizado ocorre a partir da
à secundarização da dimensão pedagó- relação entre duas atividades: a atividade
gica no processo da gestão educacional, humana que produziu aquilo que se deve
restringindo-a a sua dimensão puramente aprender e a atividade na qual o sujeito
administrativa e quantitativista. Assim, que aprende, se engaja.
temos aquela abordagem burocrática e Gohn (2000) vislumbra algumas
formal da gestão descrita no início do positividades nas referidas parcerias. Na
texto. Outro aspecto que merece destaque avaliação da autora, o conflito social passa
no Programa em foco diz respeito aos a ser objeto de negociação ao invés de
critérios de avaliação não serem estabele- ser ocultado e tende a ser incorporado
cidos coletivamente. Apesar de se distan- nas pautas de negociações. Tal aspecto é
ciar do princípio constitucional da gestão muito salutar no âmbito da gestão educa-
democrática, o Programa está presente cional, principalmente se as articulações
em 346 municípios de 22 Estados e, nas entre os espaços formais e não formais de
redes estaduais de Roraima, Pernambuco ensino possibilitarem a formação de uma
e Piauí, foi adotado como política pública nova cultura política (GOHN, 2000). Para
(INSTITUTO AYRTON SENNA, s/d). a autora, os conceitos de parceria e de
No que tange às parcerias com as participação cidadã estão relacionados, o
redes estaduais e municipais, convém lem- que ela justifica ao mencionar que a men-
brarmos que o conceito está relacionado cionada participação extrapola o direito ao
à “publicização” do Estado no âmbito da voto e consolida a cultura cidadã pautada
Reforma do Estado Brasileiro dos anos em valores éticos universais. Em síntese, “A

74 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
sociedade civil organizada é vista como 90, defendem a política de parcerias com
parceira permanente na participação cida- o Estado, atuando onde há ausência do
dã” (GOHN, 2003, p. 19). Assim, acreditamos poder público, com discursos muito pró-
ser possível o avanço na consolidação do ximos do ideário neoliberal e ações que
princípio da gestão educacional democrá- não garantem a efetividade dos direitos
tica nos seus diferentes espaços formativos de cidadania constituídos por lei. Nesse
tal como analisamos na ação educativa sentido, esclarecemos que acreditamos nas
veiculada pela FASE. potencialidades e possibilidades das Orga-
nizações com perfil “militante”, tal como a
Considerações finais FASE, enquanto espaços democráticos de
participação política que articulem educa-
Na sociedade brasileira, os anos de ção e cultura como meio de compreensão
1990 são emblemáticos das mudanças oca- da realidade e de luta para transformá-la.
sionadas pela minimização da atuação do Convém explicitar que não defendemos
Estado na área social. Se, nas décadas an- a diminuição do papel do Estado em seu
teriores, a função da educação não formal dever de efetivar políticas públicas que
tinha caráter contestador e reivindicatório, garantam à população direitos básicos de
a partir de agora ela atende as demandas sobrevivência, como também educação
de uma grande parcela da população ex- pública de qualidade.
cluída por um sistema que não cumpriu as Vale ressaltar que a educação não
exigências no âmbito das políticas sociais. formal não é, de forma alguma, a nega-
Entretanto não desconsideramos as críticas ção da educação formal; pelo contrário,
existentes em relação à atuação do Terceiro entendemos que elas se complementam,
Setor na educação, pois não se pode negar originando práticas educativas que garan-
que algumas dessas instituições, em espe- tam a construção de uma sociedade mais
cial as que surgiram na referida década de justa e igualitária.

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Recebido em maio de 2012


Aprovado para publicação em julho de 2012

76 Wânia GONZALEZ; Elisangela BERNARDO. A gestão democrática em espaços não formais de ensino
Ações colaborativas: possibilidades de construção de
conhecimentos sobre práticas de ensino1
Collaborative actions: possibilities for building up
knowledge on teaching practices
Ana Paula de Freitas*
Doutora em Educação. Docente Permanente do Programa
de Pós-Graduação em Educação do Centro Universitário
Moura Lacerda.
E-mail: ana.freitas@mouralacerda.edu.br
Resumo
Este trabalho teve como objetivo analisar as possibilidades de que professores construam conhecimentos
sobre práticas de ensino e representações de alunos com deficiência por meio de ações colaborativas.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que ocorreu mediante encontros realizados entre a pesquisadora
e uma professora de uma sala de aula de 1º ano do ensino fundamental de uma escola municipal do
interior paulista. Todos os encontros foram audiogravados e/ou registrados em diário de campo. As reuni-
ões se configuraram como um momento em que foi possível a discussão sobre o aluno com deficiência
e seus modos de participação, bem como sobre as possibilidades de práticas pedagógicas. O trabalho
colaborativo apresenta-se como um espaço para que o docente possa refletir sobre sua prática, encontrar
caminhos para transformá-la e tornar-se mais seguro em sua ação educativa.
Palavras-chave
Educação inclusiva. Práticas de Ensino. Ação Colaborativa.
Abstract
This work aimed to analyse the possibilities for teachers building up knowledge on teaching practices
and representations of students with deficiencies through collaborative actions. It consists in a qualita-
tive research which was done based on meetings between the researcher and a teacher of a 1st grade
(primary school) classroom from a municipal school in the countryside of the state of São Paulo. All the
meetings were recorded and/or registered in a field diary. The meetings consisted in moments in which
it was possible to discuss about the student with deficiencies and his modes of participation, as well as
about the possibilities of pedagogical practices. The collaborative work provides space for the teacher to
reflect on his/her practice, find ways to change it, and get more confident about his/her educational action.
Key words
Inclusive education. Teaching Practices. Collaborative Action.

1
Apoio Financeiro Fapesp.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 77-90, jul./dez. 2013
Introdução superação dos processos estigmatizantes
no interior da escola. Enfatizam que as
Estudos sobre a temática da educa- ações que busquem materializar a inclu-
ção inclusiva têm procurado mostrar os en- são escolar devem estar atentas às estra-
traves e possibilidades para que a inclusão tégias que possam ressignificar as pessoas
escolar aconteça de forma a possibilitar com deficiência, isto é, envolve mudanças
aos alunos com deficiências o acesso ao de concepções sobre o ensino, a aprendi-
conhecimento escolar (GÓES, 2004; FER- zagem e o desenvolvimento humano.
REIRA, 2006; FREITAS; MONTEIRO, 2010). Procurando apontar caminhos para
A esse respeito, uma das questões que a solução dos problemas, Ferreira (2006)
surge como central refere-se à formação destaca o trabalho acadêmico desenvolvi-
do professor e ao seu preparo para lidar do por ela, a partir de uma relação colabo-
com esses alunos (FERREIRA, 2006; JESUS, rativa com a Secretaria Municipal de Edu-
2006; JESUS, 2009; LUNARDI-LAZZARIN; cação de Piracicaba, SP. A autora ressalta
MACHADO, 2009). que a escola precisa funcionar com uma
Ferreira e Ferreira (2004) mostram estrutura mais flexível, que considere as
a complexidade do processo de inclusão necessidades específicas de cada aluno e
escolar em alunos com necessidades que, para isto, se faz necessário “viabilizar
educacionais especiais e destacam que estratégias de ensino e avaliação partindo
a política de educação inclusiva no Brasil da premissa de que não é necessário que
insere-se em um modelo neoliberal de re- todos os alunos tenham as mesmas metas
lação entre Estado e sociedade, no qual se educacionais quando aprendem juntos” (p.
age para que a educação básica seja uni- 144). Todavia pondera que metas educa-
versalizada apenas para dar sustentação cionais diferenciadas não estão presentes
ao modelo da livre iniciativa e às relações na tradição pedagógica dos professores.
de competitividade. Argumentam que, de Refere-se ainda à necessidade de um tra-
modo geral, há um certo nível de compro- balho em sala de aula mais coletivo, que
misso com as pessoas com deficiência; garanta a expressão de cada singularidade
em outros momentos, parece prevalecer a num processo de acompanhamento/orien-
questão quantitativa de atendimento mais tação, que possibilite a constituição do
compatível com uma política de resultados sujeito, sem as marcas das desvantagens
para justificar compromissos governamen- que têm sido impostas àqueles que são
tais que apontam mais para a necessidade acentuadamente diferentes, e a compreen-
de se melhorar os indicadores nacionais são de que o desenvolvimento vincula-se
de educação básica, priorizando aspectos às condições concretas do grupo social em
quantitativos de acesso. que o sujeito está inserido. Daí a impor-
Os autores apontam como desafio tância de a equipe escolar estar atenta ao
presente na área da educação especial a desenvolvimento de dinâmicas relacionais
busca por possibilidades de práticas de entre professores, famílias e alunos que

78 Ana Paula de FREITAS. Ações colaborativas: possibilidade de construção de conhecimentos...


propiciem o surgimento de vivências e aos serviços de apoio especializados do
conteúdos significativos. município. Os encontros foram divididos
As pesquisas de Ferreira (2006) em momentos de estudo, com discussão
evidenciam um despreparo dos professo- de questões teóricas e, em momentos de
res do ensino comum para lidarem com intervenção, com reflexão acerca do vivido.
crianças que apresentam deficiências, ou Dentre as temáticas, destacaram-se as
mesmo para aquelas que trazem em sua práticas pedagógicas e organizativas no
história marcas de um fracasso escolar, e cotidiano da escola. A autora mostra como
mostram que os professores especializa- a reflexão no grupo e a possibilidade de
dos têm pouca formação que os habilite formação continuada tornam os docentes
a contribuir com o trabalho pedagógico mais seguros no que se refere às ações no
desenvolvido no ensino comum, uma vez processo de ensinar.
que possuem uma formação com foco É notado o esforço que muitos
nas intervenções que visam a minimizar pesquisadores vêm realizando no sentido
os impactos gerados no desenvolvimento de suscitar pontos de reflexão para redi-
pelas especificidades de cada uma das mensionar a inclusão escolar que está
deficiências, sejam elas sensoriais, motoras em curso. Com o intuito de contribuir com
ou mentais. essas reflexões, este trabalho foi desenvol-
A autora ressalta que, a partir de vido tendo como objetivo analisar as pos-
uma metodologia colaborativa, os estudos sibilidades de que professores construam
devem considerar a atividade docente conhecimentos sobre práticas de ensino e
como uma unidade de análise e criar representações de alunos com deficiência
condições para que, com a participação por meio de ações colaborativas.
dos professores, sejam evidenciados seus
modos de organização e desenvolvimento Caminhos Metodológicos
da atividade pedagógica.
Jesus (2006, 2009) orienta seus tra- Este trabalho é parte de um estudo
balhos na perspectiva de estabelecer ações cujo objetivo foi a busca dos indícios das
colaborativas entre universidade e as redes possibilidades de aprendizagem de um
de ensino. Para a autora, uma escola inclu- aluno com uma má formação do desenvol-
siva só existirá a partir de um “constante e vimento cortical, com agnosia verbal auditi-
longo processo de reflexão-ação-crítica dos va e apraxia fonoarticulatória2, matriculado
profissionais que fazem o ato educativo no primeiro ano do ensino fundamental
acontecer” (JESUS, 2006, p. 206).
Jesus (2009) realizou encontros
2
entre os pesquisadores vinculados à A agnosia verbal auditiva refere-se a uma falha
para reconhecer estímulos linguísticos, sem que a
universidade federal do Espírito Santo e audição esteja prejudicada e a apraxia fonoarticu-
gestores e docentes da rede pública de latória é uma desordem na programação motora
ensino vinculados à escola comum e da fala (MURDOCH, 1997)

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 77-90, jul./dez. 2013. 79


de uma escola pública, pertentence a um compreender o aluno com necessidades
município do interior paulista. Entre os educacionais especiais, neste texto são
meses de novembro de 2009 e dezembro analisados alguns dados referentes aos
de 2010, considerando-se o período letivo, encontros com a professora e às reuniões
foram realizadas filmagens semanais das de HTPC. Os dados foram organizados em
interações entre o aluno Gil3, professora unidades temáticas, a saber: momentos
Lourdes e pares, e, paralelamente às para discussão do aluno com necessidades
observações em sala de aula, ocorreram educacionais especiais; sobre o papel da
encontros quinzenais com a professora, família e da medicação e reflexões sobre
com o intuito de assistir com ela às filma- possibilidades de aprendizagem.
gens e, a partir daí, refletir sobre o visto e
construir conhecimentos sobre o aluno Resultados e Discussões
e suas possibilidades de aprendizagem.
Momentos para discussão do aluno com
Além dos encontros com a professora, a
necessidades educacionais especiais
pesquisadora participou em quatro reu-
niões de Horário de Trabalho Pedagógico No dia 17 de junho apenas as
Coletivo (HTPC). Todos os encontros e reu- professoras do primeiro ano participam
niões de HTPC foram audiogravados e/ou da reunião de HTPC. A coordenadora
registrados em diário de campo. pedagógica está com um livro “Ler e Es-
Jobim e Souza (2003) afirma que a crever – Coletânea de Atividades 1o ano”.
videogravação não se caracteriza somente É um manual elaborado pela secretaria
como uma rica fonte de coleta de dados, de Educação do Estado de São Paulo”. A
mas como a condição na qual os sujeitos coordenadora confere com as professoras
poderão ter possibilidades efetivas de cons- quais atividades elas já realizaram e quais
truir conhecimentos sobre suas práticas ainda faltam realizar. Lourdes e as demais
sociais e representações. professoras anotam quais atividades elas
Lourdes, a professora, possui forma- precisam realizar com os alunos. Lourdes
ção em magistério e cursa o primeiro ano comenta que Gil havia faltado em todos
do Curso de Pedagogia em uma universi- os dias da semana anterior e que a mãe
dade privada. É professora da rede escolar não justificou a ausência. Aproveita para
municipal desde 2001. mostrar uma atividade que havia feito com
Com o intuito de analisar as pos- a turma referente à montagem da letra da
sibilidades efetivas de que a professora música “Sapo Cururu”. Lourdes explica: “Em
construa conhecimentos sobre suas um primeiro momento, entreguei tiras de
práticas de ensino e sobre modos de papel com partes da letra da música aos
alunos, que, em dupla, deveriam ler as
tiras e montar a música; na segunda parte
3
Os nomes dos sujeitos são fictícios para preservar da atividade, cada aluno deveria escrever
a identidade dos mesmos. a letra da música, sem copiar. Durante a

80 Ana Paula de FREITAS. Ações colaborativas: possibilidade de construção de conhecimentos...


leitura e montagem da letra, Gil estava com Ferreira e Ferreira (2004) destacam
um aluno, que realizou a atividade por ele. que a escola ainda se orienta pela ótica
Na segunda parte da tarefa, Gil escreveu da homogeneidade entre pessoas, não
letras aleatoriamente, sem significados”. estando preparada para lidar com as par-
Lourdes está com necessidade de colocar ticularidades de cada aluno. A professora
o problema para discussão; entretanto a Lourdes tenta usar o momento da reunião
coordenadora pedagógica solicita às pro- pedagógica para colocar em discussão
fessoras que retornem ao tema do plane- suas dificuldades com o aluno Gil, mas ela
jamento e não abre espaço para discutir o não encontra incentivo, pois é preciso que
caso de Gil. Continuam a comentar sobre retornem ao tema do planejamento. Não
as atividades do livro “Ler e Escrever”. há espaço para a discussão do aluno que
As reuniões de HTPC são bastante apresenta um padrão de desenvolvimento
organizadas e planejadas previamente considerado atípico. Um dos eixos orienta-
pela coordenadora pedagógica e pela dores da Lei de Diretrizes e Bases (BRASIL,
diretora. Na pauta há questões sobre a 1996) refere-se à flexibilidade. Ferreira e
organização da rotina escolar e de ativi- Ferreira (2004) salientam que
dades programadas. Durante as reuniões,
[...] ela enfatiza a perspectiva de se
discute-se sobre práticas pedagógicas, tais
romper com a cultura do atrelamen-
como, a prática da leitura em sala de aula
to das escolas a modelos, isto é, as
e critérios de seleção do livro infantil.
unidades escolares devem deixar de
O referido horário é um momento ser padronizadas dentro dos sistemas
especial para as professoras e para as de ensino a que pertencem [...] e
gestoras da escola, nota-se participação que passem a se guiar por projetos
e interesse. Todavia não há espaço para pedagógicos próprios. (FERREIRA;
a discussão de um aluno ou de uma difi- FERREIRA, 2004, p. 32).
culdade específica. Há uma preocupação
com a forma como as atividades devem ser Para que isto ocorra, as escolas preci-
propostas. Por exemplo, sobre a atividade sam considerar as necessidades específicas
de leitura de história, a coordenadora peda- de cada aluno. Contudo, como argumentou
gógica explica “as professoras devem ler a Ferreira (2006), na tradição pedagógica dos
história para os alunos, estes devem estar docentes não se valoriza o trabalho com
sentados em círculo, preferencialmente no metas educacionais diferenciadas.
chão, para caracterizar o momento praze- A professora Lourdes, assim como
roso da história. Após a leitura, a professora a maioria dos professores que recebe um
deve retomar a história oralmente com aluno com alguma necessidade especial,
os alunos, aí faz a reescrita – professora não se sente preparada nem foi capa-
escreve na lousa o que os alunos vão re- citada para lidar com esse aluno. Desse
latando, em seguida, todos fazem a leitura modo, ela procura aproveitar a presença da
oral da reescrita [...]”. pesquisadora durante a reunião de HTPC

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 77-90, jul./dez. 2013. 81


para discutir sobre o aluno Gil. Isto revela que ele tá muito sonolento, que ele tá
que a professora precisa de apoio e quer teimoso, eu falei, ‘é realmente’, que na
ser ajudada; a escola também quer ajuda, classe ele nem as coisas que ele adora ele
tanto que a direção “abriu as portas” da tá fazendo, tudo que eu dou pra ele, que
escola para a realização da pesquisa. eu solicito que ele faça, ele põe embaixo
da carteira e deita, aí eu pergunto ‘tá com
Sobre o papel da família e da sono Gil’, ele ‘tô’, ‘vai lavar o rosto então”,
medicação aí ele vem, lava o rosto e volta e encosta a
cabeça na mesa, aí eu falei pra ela ‘olha,
01.06.2010
realmente ele tá muito sonolento, muito
[...] Ela (a professora) acha que a mãe de
cansado, ele não quer fazer nada, nem
Gil poderia se preocupar mais com o filho.
as coisas que ele gostava de fazer’,[...] ela
Que ela só o deixa na frente da televisão.
até falou ‘é acho que não tá dando certo
Queixa-se da mãe, diz que ela é muito
este remédio, eu vou experimentar mais
ausente. Lourdes me diz “independente do
esta semana dar metade, depois eu volto
diagnóstico, vai ser difícil, precisa chamar a com um inteiro’, então a mãe tá meio que
mãe prá conversar”. Digo que compreendo bagunçando na medicação.
suas preocupações. Também acho que a
Pesq.: Não pode, medicação não pode
família é importante, mas é preciso cuidado
você ficar mudando, hoje eu dou meio,
para não confundir: há o papel da escola
você tem que seguir o que o médico dis-
e o papel da família. Um não pode fazer o
se prá fazer e se ela sentir que não está
que é do outro. Ela argumenta que acha
sendo bom pra ele, antes dela mudar, ela
que Gil está muito largado neste ano e que
tem que conversar com o médico, porque
vai chamar a mãe para conversar.
em geral o que acontece é isso mesmo,
26.08.2010 na hora em que você dá o medicamento,
Profa.: Ontem a mãe me procurou e me na hora em que você trabalha mais com
perguntou como que eu achava que ele a criança e ela começa a ser mais ativa e
estava, eu falei, ‘olha ele tá mais cansado, tal, como ela antes era uma criança muito
não tá fazendo nada, essa semana ele não quieta, criança quieta dá menos trabalho.
quis fazer nada’. Profa.: É isso que eu imaginei também.
Pesq.: Diferente daquela outra, eu vim na Pesq.: O que acaba acontecendo? Então
terça, você me contou que na segunda ele a gente fala ‘tá agitado’, mas, às vezes, só
tinha lido algumas coisas. está tendo a possibilidade de se manifestar,
Profa.: É, só que aí, na segunda e na de atuar mais do que antes.
terça, a mãe tava dando um comprimido Profa.: É o que eu falei, mas ela falou ‘não,
inteiro e ela falou prá mim que ele estava mas é que ele tava muito agitado, agres-
muito ativo, muito agitado, ela começou a sivo com o mais novo’ eu falei ‘mas, como
dar metade pra ele, e aí agora ela achou agressivo?’ ‘ah, na brincadeira ele queria

82 Ana Paula de FREITAS. Ações colaborativas: possibilidade de construção de conhecimentos...


que o menino (o irmão) saísse prá ele segunda-feira nossa aula é aqui, então eu
brincar’, eu falei ‘então mãe, tá brincando, fiz a leitura, leitura ele adora, ele participa,
tá se relacionando com o irmão’, então, eu ele presta atenção
acho que realmente, incomodou ela, ele Nesses episódios, o foco da discus-
estar mais ativo. são está no papel da família frente ao alu-
Pesq.: Eu acho que a criança, na família, no com necessidade educacional especial.
ou na escola, precisa muitas vezes, do No primeiro episódio, a professora
outro, do pai, da mãe, do professor, prá queixa-se da pouca participação da mãe;
ajudar nestas relações, se ela tá brincando a pesquisadora concorda com ela em rela-
com o irmão de uma forma que a mãe ção ao papel da família, mas procura mos-
considera agressiva, não adianta mudar trar que escola e família ocupam posições
a medicação, é preciso conversar, sentar diferentes em relação às possibilidades de
junto, brincar junto, mostrar como que aprendizagem da criança. Todavia, em um
brinca, é essa negociação que eu percebo primeiro momento, a professora mantém
que muitas vezes não acontece, e isso é o foco no papel da família e afirma que
muito importante, porque a gente não chamará a mãe para conversar sobre Gil.
aprende nada sozinho, a gente precisa do No segundo episódio, nota-se uma
outro pra aprender a brincar, prá aprender preocupação da professora em relação ao
a se relacionar, o nosso papel, o papel do uso adequado da medicação, se a mãe
adulto é interferir, só tirar medicamento e não ministra o remédio conforme orienta-
pôr medicamento, não dá. ções médicas, Gil fica desatento, sonolento
Profa.: Eu acho que tem que fazer um e não aprende. A professora demonstra
trabalho com a mãe também, porque acreditar que a família tem papel central
falta mais responsabilidade, não sei, ou o nas possibilidades de aprendizagem do
médico orientar melhor essa mãe. aluno. A ideia é a de que, se a família
Pesq.: tem essa questão, é difícil, agora não cooperar, o aluno não irá aprender.
ela precisa de uma orientação mesmo, a A pesquisadora explica para a professora
escola pode sentar e conversar um pouco, sobre a forma de se ministrar a medicação,
o próprio médico, é uma questão também sobre a importância de a mãe seguir as
pra ser conversada com a professora do orientações médicas e também sobre como
apoio especializado [...] mas aqui na escola o medicamento pode estar agindo em Gil,
o que é que nós podemos fazer prá ajudar? tornando-o um garoto mais participativo,
Porque nós temos também os limites, tem mais dinâmico. Nota-se que a pesquisado-
a família, tem o apoio, mas aí nós vamos ra concorda com a professora em relação
pensar, com isso que a gente tem, o que ao papel da família, sugere que ela procure
a gente tá podendo fazer? o atendimento educacional especializado
Profa.: então, durante a semana, o que para ajudar na orientação à mãe sobre a
eu percebi é, a gente veio até a biblioteca, forma de ministrar a medicação para Gil.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 77-90, jul./dez. 2013. 83


A pesquisadora direciona a conversa para inerentes à inclusão escolar e com o aluno
o âmbito escolar; a partir da intervenção com deficiência é apontado por diferen-
da pesquisadora ao dizer “com isso que tes autores (FERREIRA; FERREIRA, 2004;
a gente tem, o que a gente tá podendo FERREIRA, 2006; JESUS, 2006). Neste estu-
fazer?” a professora passa a refletir sobre do, os dizeres de Lourdes são reveladores
as possibilidades de Gil e percebe que há de que ela, por sentir-se despreparada,
situações, tais como a leitura na biblioteca, atribui à família o fato de o aluno não
em que Gil participa e gosta. participar das atividades de sala de aula.
A análise desses episódios indica Assim, a família que não se preocupa com
que, ao olhar para as dificuldades de Gil a criança e o uso indevido da medicação
como algo relacionado à medicação, a se tornam os vilões para a não aprendiza-
professora dá ênfase à condição orgânica gem do aluno em sala de aula.
da deficiência, em detrimento às condições Constata-se a angústia da professo-
sociais concretas de vida do sujeito. ra em não saber como fazer para que o
Vigotski4 (1997) afirma que a despeito aluno participe das atividades propostas
da causa primária da deficiência, as possibi- em sala de aula. Lunardi-Lazzarin e Ma-
lidades de desenvolvimento de uma criança chado (2009) realizam uma crítica às políti-
são determinadas pelas condições sociais cas de formação docente para a educação
favoráveis. Para o autor, não é possível inclusiva, que, sob a ótica do discurso
conceber uma prática educativa estruturada neo-liberal, visam formar um professor que
sobre bases e determinações negativas. Para seja generalista, tolerante com o diferente
uma prática pedagógica tornar-se efetiva e que dê conta de conhecer a todos e a
e possibilitar que o aluno com deficiência cada um de seus alunos. Desse modo, o
tenha acesso ao conhecimento, torna-se professor precisa ser um sujeito reflexivo,
fundamental que os educadores tenham que está em constante busca do saber. A
um olhar diferenciado para seus alunos, política de formação docente que está em
isto é, uma visão para as possibilidades curso revela, ainda que de forma sublimi-
de desenvolvimento. Isto só é possível se o nar, que o professor não está pronto e não
aluno for compreendido nas relações com sabe, mas precisa vir a saber. Acredita-se
os outros, pois, na relação social significati- que a expectativa de que o professor seja
va, é que se origina o desenvolvimento do polivante torna-se um motivo gerador do
funcionamento tipicamente humano. medo, da insegurança e da angústia que
O despreparo do sistema escolar e avassala o docente que hoje tem um aluno
do professor para lidar com as questões com necessidade educacional especial em
sua sala de aula.
4
A grafia do nome do autor varia em diferentes
traduções. Neste texto, opta-se por uma só forma,
porém preservando as indicações diferenciadas
nas Referências.

84 Ana Paula de FREITAS. Ações colaborativas: possibilidade de construção de conhecimentos...


Reflexões sobre possibilidades de Profa.: Seguro!.
aprendizagem Pesq.: Acho que é uma coisa prá gente
pensar e ver, porque você vai tentando
12.08.2010 ajudá-lo a perceber.
Pesq.: Aqui, essa situação de você se
aproximar dele, de você mostrar o que 17.09.2010
ele precisa fazer, onde ele tem que copiar, Pesq.: Até mesmo essa atividade, na terça-
onde está errado, isso acontece várias feira que ele tava com sono, a coisa de
vezes (referindo-se ao observado na fil- copiar o cabeçalho foi um acontecimento,
magem que ela estava assistindo com ele demorou prá começar, ele se distraía,
a professora). Isso eu observei como um mas eu fiquei pensando, se você pensar, é
aspecto muito positivo. Por quê? É dessa o terceiro ano que ele faz o primeiro ano,
criança que a gente está falando. Nada é o terceiro ano que ele faz essa atividade,
sozinho ele consegue, pelo menos em um né? Aí, acho também que ele já tá cansado.
primeiro momento. Ele precisa de ajuda, de Profa.: Mas, que tipo de trabalho que eu
um fazer junto, e talvez nesse fazer junto... posso fazer? Que tipo de atividade mais
Profa.: Constantemente. que ajuda?[...] roda da conversa ele parti-
Pesq.: Prá aprender algo, todo mundo cipa, ele se expressa melhor.
precisa de alguém que ensine, prá muitas Pesq.: Em relação à oralidade, eu percebo
pessoas essa passagem é muito rápida, um avanço, um desenvolvimento grande
prá crianças como o Gil que tem uma de novembro do ano passado prá cá.
dificuldade de aprendizagem isso é mais Profa.: Ele participa, ele participa com coe-
demorado, esse processo de fazer junto, rência, ele fala do que a gente tá falando,
ele é mais constante. Quando você me ele..., às vezes, ele participa mais do que
diz assim, agora esse ano ele já está mais os outros.
seguro. Pesq.: É um ponto fundamental, a lingua-
Profa.: Não! Esse ano não, agora né! gem se desenvolver.
Agora que voltou (referindo ao início do Profa.: Filmes ele gosta.
2º semestre)
Pesq.: No filme da Lassie, ele tava...
Pesq.: É! Agora que voltou. Me dá a sen- Profa.: Ele se envolveu com a história, ele
sação de que o caminho é esse mesmo! conhecia.
Profa.: Que bom! Pesq.: É, a gente sempre vai voltar nisso,
Pesq.: Ele precisou de tempo, de ajuda, aquilo que ele consegue, que dá sentido,
até chegar um momento que aquilo pra esse é o ponto. Achar que realmente ele
ele, ele se apropria desse conhecimento, pode participar e se envolver nas ativida-
ele consegue se organizar melhor, ele se des significativas e envolve funcionamento
sente mais... mental, não só funções elementares.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 77-90, jul./dez. 2013. 85


Profa.: E a questão do cabeçalho e da de Desenvolvimento Proximal atrela-se a
rotina tem dia que eu faço diferente, eles ideia de desenvolvimento processual. O
até perguntam, hoje vai ser diferente prô? autor afirma que
Prá não ficar aquela coisa maçante, todo [...] um aspecto essencial do aprendi-
dia, então umas duas vezes na semana, eu zado é o fato de ele criar a zona de
coloco a data, depois eu mudo de ordem, desenvolvimento proximal; ou seja,
e a rotina também, geralmente é sempre o aprendizado desperta vários pro-
daquela maneira, mas, às vezes, eu falo cessos internos de desenvolvimento,
“hoje a gente não vai pular linha, vai fazer que são capazes de operar somente
assim, linguagem, leitura”, aí eu tomo a quando a criança interage com pes-
leitura deles “o que tá escrito aqui? então, soas [...] e quando em cooperação
com seus companheiros. (VYGOTSKY,
aquele momento do cabeçalho e da rotina
1991, p. 101).
também serve prá eles lerem, depois do
intervalo, a gente volta na rotina e eu falo No segundo episódio, a pesquisado-
“o que a gente já fez da rotina de hoje”?” ra comenta sobre a falta de interesse de
Ai eu ponho ok, “o que tá escrito na dois, Gil para realizar a cópia do cabeçalho e
a gente já fez isto?”. da rotina. Atribui ao desinteresse o fato de
No primeiro episódio, a pesquisa- o aluno estar cursando pela terceira vez
dora e a professora, após assistirem a o primeiro ano. A professora questiona a
uma das situações filmadas no primeiro pesquisadora sobre as atividades que ela
semestre de 2010, conversam sobre o visto. poderia propor e, ao refletir sobre as ativi-
A pesquisadora comenta com a professora dades, indica a roda de conversa, como um
que as ações realizadas por ela de aproxi- momento em que Gil participa com mais
mar-se de Gil e indicar a ele o que é para interesse e com coerência. A pesquisadora
ser realizado estão sendo positivas. A pes- concorda com ela e enfatiza o papel da
quisadora salienta a importância da ajuda linguagem para o desenvolvimento.
do outro para a aprendizagem do aluno As proposições de Vigotski (1997)
com necessidade educacional especial sobre as pessoas com deficiência e,
e comenta que essa ajuda do outro não sobretudo, sobre as possibilidades de
reverte imediatamente em aprendizagem. desenvolvimento dessas pessoas, estão
Vigotski (1991) realiza proposições atreladas à tese do autor sobre a origem
significativas sobre a relação entre de- social do desenvolvimento. Sobre essa
senvolvimento e aprendizagem. O autor questão, Freitas e Monteiro (2010, p. 11)
discute o conceito de Zona de Desenvol- afirmam que “a compensação tem origem
vimento Proximal, que, visto de maneira quando ao sujeito com deficiência é dada
prospectiva, supõe a participação do outro a oportunidade de ‘ser’ no mundo social, e
no processo de aprendizagem, em situa- quando lhe são oferecidas atividades que
ções de elaboração partilhada. À noção visem o funcionamento mental superior”.

86 Ana Paula de FREITAS. Ações colaborativas: possibilidade de construção de conhecimentos...


Desse modo, a pesquisadora, ao sozinho, então, eu também já observei
afirmar que ‘é um ponto fundamental, a que tem alguns alunos que o ajudam e
linguagem se desenvolver’, orienta-se por ele gosta.
esta ideia e tenta auxiliar a professora a Profa.: E outros, ele não gosta.
pensar sobre isto. Ela também procura
Pesq.: É, aquele garoto?
mostrar que as atividades que envolvem a
linguagem são mais significativas e visam Profa.: O Val? De óculos?
ao funcionamento mental superior. Vigotski Pesq.: É?
(1997), ao elaborar sobre as possibilidades Profa.: Ele adora!
de desenvolvimento de crianças com de- Pesq.: Naquele dia em que o Val ficou
ficiência mental, enfatiza a necessidade com a régua, apontando na lousa, aonde
de a escola e os educadores atuarem in- ele tinha que copiar...
tensivamente em direção ao pensamento Profa.: E o Val não tá vindo nesses dias,
abstrato, às funções mentais superiores. e ele fala ‘cadê o Val?’, e eu, ‘o Val faltou’;
Ao ter a oportunidade de refletir então, quando a gente entra na sala, e eu
sobre a sua prática, a professora percebe falo, ‘quem faltou hoje?’ Ele ficava ‘o Val,
que atividades que envolvem a linguagem o Val’, até eu escrever o nome do Val na
em funcionamento – ‘roda da conversa ele lousa, então ele gosta muito.”
participa, ele se expressa melhor’, ‘filmes ele
gosta’ – podem ser mais significativas e, a 04.11.2010
partir daí, ela retoma o assunto da cópia Pesq.: ... Então, lógico que os alunos per-
e passa a relatar suas estratégias para dar cebem, que ele tem, ele é o que sempre tá
mais sentido à tarefa. mais atrasado, é o que demora mais, é o
27.10.2010 que ainda não tá escrevendo como o outro,
né? Por isso, eu acho que isto são questões,
Pesq.: Eu já observei algumas coisas que, aquilo que a gente já conversou, no gru-
do meu ponto de vista, elas contribuem po, você ajuda o grupo, as atividades em
para que Gil participe mais das ativida- grupo, senão acaba sendo um tratamento
des, né? E algumas coisas, em alguns muito diferenciado, não é o diferenciado
momentos que você fica assim do lado de não dar bola, mas é do outro lado.
dele e tal, se, por um lado, eu acho isso Mas isso não é fácil. Aí a gente tem que
bom, por outro lado, eu fico preocupada, pensar assim, a condição é essa, né? Tem
porque você tem outros 19 alunos, eu um aluno com necessidades educacionais
tenho filmagens em que você ficou uns especiais na sala de aula [...] quais são os
40 minutos ao lado dele. recursos que vão poder te ajudar, prá você
Profa.: E os outros lá! É complicado! dar a atenção que ele precisa?
Pesq.: Por outro lado, se ele fica sozinho, Profa.: Mas então eu sou uma heroína!
pra ele é muito difícil completamente (risos)

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 77-90, jul./dez. 2013. 87


Pesq.: Não é fácil, não! atividade, sem que Gil tenha terminado –
Profa.: por isso eu estou tão cansada. Eu ela ‘exclui’ Gil da outra tarefa.
estou com 20, e dos 20 eu tenho 17 alfabe- A pesquisadora aponta esswa ques-
tizados, lendo e escrevendo, apesar de todo tão para a professora, mas admite que Gil
esse, há um jogo de cintura...porque quando precisa de auxílio. No terceiro episódio, ela
eu estou com ele, a sala respeita, espera. destaca a ajuda que Gil recebeu do aluno
Val como algo que pode contribuir para a
Observa-se, no terceiro episódio, a
aprendizagem dele. No quarto episódio, a
preocupação da pesquisadora em relação
pesquisadora aborda a possibilidade da
ao tempo em que a professora passa so-
realização de atividades em grupo. Nota-
mente ao lado do aluno com deficiência.
se, portanto, que a pesquisadora procura
Góes (2004), ao analisar a experiên-
auxiliar a professora a encontrar estraté-
cia escolar de surdos, constatou que, na
gias para lidar com a heterogeneidade na
sala de aula observada, a professora ofe-
sala de aula. Como já explicitado neste
recia ajuda no limite de sua adminstração
texto, a ideia da realização do trabalho
do tempo para todos. Como a intervenção
em colaboração com o outro, vincula-se
da professora nem sempre era possível
à tese geral de Vigotski (1991) sobre a
ou bem sucedida, a estratégia encontrada
origem social do desenvolvimento humano
por ela foi a simplificação de tarefas ou a
e, especificamente, sobre a noção de Zona
repetição de atividades já realizadas. Dai-
de Desenvolvimento Proximal (ZDP) desen-
nez (2009) observou que a simplificação
volvida pelo autor. Ferreira (2006), ao pro-
de tarefas também é uma prática utilizada
blematizar sobre estratégias de ensino que
por professores de alunos com deficiência
possam vir a viabilizar a inclusão escolar,
mental que estão na escola comum. Em
destaca a necessidade de um trabalho em
geral, as atividades são descontextualiza-
sala de aula mais coletivo, possibilitando a
das e desprovidas de sentido.
expressão de cada particularidade.
Neste estudo, constata-se que a
professora não realiza simplificações ou
Considerações Finais
adaptações de tarefas para Gil. Ela quer
que ele participe e faça as atividades Este estudo teve como objetivo ana-
como os demais. Mas, nem sempre, isto é lisar os encontros entre a pesquisadora
possível. E, nesses momentos, a professora e uma professora de escola pública que
realiza uma intervenção exclusiva para ele possui em sua sala de aula um aluno com
ou inicia uma nova atividade com todos os necessidades educacionais especiais, com
alunos, enquanto Gil termina a cópia. Na vistas a compreender as possibilidades de
primeira estratégia – intervenção exclusiva que professores construam conhecimentos
– ela ‘exclui’ os demais alunos, que ficam sobre práticas de ensino e representações
sem ter o que fazer enquanto aguardam. de alunos com deficiência por meio de
Na segunda estratégia – iniciar outra ações colaborativas.

88 Ana Paula de FREITAS. Ações colaborativas: possibilidade de construção de conhecimentos...


As reuniões entre pesquisadora Torna-se pertinente e urgente a
e professora se configuraram como um viabilização de condições concretas para
momento de troca, um espaço onde foi que o professor da sala de aula comum
possível falar sobre Gil e de suas condições receba o apoio necessário para atender
de ser no mundo. Puderam ser discutidos a todos os alunos de sua sala de aula,
temas tais como o papel do outro e da considerando-se a heterogeneidade entre
linguagem no processo de conhecimento, eles. O professor não pode ser o único
a noção de zona de desenvolvimento responsável pela aprendizagem de um
proximal, a ideia de mediação sígnica e aluno com deficiência e, muito menos, a
o olhar para as possibilidades do aluno. não aprendizagem pode ser atrelada à
Assim, o trabalho colaborativo apresenta- deficiência em si. É preciso se considerar
se como um espaço para que o docente a relação dialética entre o professor, o
possa refletir sobre sua prática, encontrar aluno e as condições de produção em
caminhos para transformá-la e tornar-se sala de aula.
mais seguro em sua ação educativa.

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Recebido em junho de 2012


Aprovado para publicação em maio de 2013

90 Ana Paula de FREITAS. Ações colaborativas: possibilidade de construção de conhecimentos...


Papel dos formadores, modelos e estratégias
formativos no desenvolvimento docente
Role of teacher educators, formative models and
strategies in teacher development
Ana Ignez Belém Lima Nunes*
João Batista Carvalho Nunes**
* Doutora em Ciências da Educação pela Universidade
de Santiago de Compostela (Espanha). Professora do Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Estadual do Ceará.
E-mail: anaignezbelem@gmail.com
** Doutor em Filosofia e Ciências da Educação pela Univer-
sidade de Santiago de Compostela (Espanha). Professor do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Estadual do Ceará.
E-mail: joao.nunes@uece.br

Resumo
Discutem-se o papel do formador na formação continuada e os modelos e estratégias formativos para o
desenvolvimento docente. Parte-se da análise do papel do formador, situando a complexidade de conceituar
esse termo, assim como as fragilidades ainda presentes em sua formação. Defende-se a ideia de que a
coerência entre a formação desejada para os professores e a formação de seus formadores é um aspecto
fundamental para promover o desenvolvimento docente. Em seguida, denotam-se diversos modelos e
estratégias de formação continuada, com suporte na literatura científica e de estudos realizados pelos
autores. Ao final, esboçam-se propostas para a melhoria da formação continuada desde a perspectiva do
desenvolvimento docente, a serem implementadas pelos órgãos gestores e/ou pelas escolas.
Palavras-chave
Formação de formadores. Modelos e estratégias formativos. Desenvolvimento docente.

Abstract
The role of teacher educator in continuing teacher education and models and strategies for teacher
development are discussed. It starts with the analysis of the role of the teacher educator, placing the
complexity of conceptualizing this term, as well as still present weaknesses in his formation. The idea that
consistency between the training required for teachers and training of their teacher educators is a key
aspect to promote teacher development is supported. Then, different models and strategies for continuing
teacher education are presented based on scientific literature and studies of the authors. Finally, proposals
for the improvement of continuing teacher education from the perspective of teacher development are
outlined to be implemented by government agencies and/or by schools.
Key words
Training of teacher educators. Formative models and strategies. Teacher development.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 91-108, jul./dez. 2013
Introdução condições sociais, históricas e culturais. É
um conceito potente, cuja abrangência e
Investigar a formação continuada e sistematicidade nos permitem analisar a
o desenvolvimento docente é um exercício formação continuada, englobando dimen-
bastante frequente nas últimas décadas. sões profissionais, pessoais e contextuais
Discutir esses temas suscita o interesse (HARGREAVES; FULLAN, 1996; NUNES, A.
de muitos educadores, alcançando uma 2004).
importância que transcende âmbitos A formação continuada na visão
nacionais e uma crescente relevância in- do desenvolvimento docente é concebida
vestigadora (ANDRÉ, 2002; CUNHA, 2002; dentro de um continuum com a formação
DIAS et al., 2009). inicial. Pressupõe uma ruptura com as
Uma das muitas razões para justifi- anteriores concepções de formação conti-
car esse interesse procede da compreensão nuada (reciclagem, capacitação, aperfeiço-
do importante papel do professorado no amento) e sua ressignificação no âmbito
sistema educacional, principalmente se de um marco que valoriza aspectos de
considerarmos as constantes reformas e as caráter contextual, organizativo e orientado
necessidades e exigências ante as novas para a mudança.
demandas postas pela sociedade atual. Observando essa temática, temos a
Como assinala Freitas (1999, p. 17), impressão de um vasto campo de conheci-
[...] as reformas educativas levadas mentos que, apesar de bastante mapeado
a efeito em nosso país e nos outros e explorado desde lentes das mais díspares,
países da América Latina [...] com o ainda permanece com partes obscuras e às
objetivo de adequar o sistema educa- vezes confusas, geradoras de muitos ques-
cional ao processo de reestruturação
tionamentos. Poderíamos destacar, entre
produtiva e aos novos rumos do
Estado, vêm reafirmando a centrali-
outros, o papel do formador na formação
dade da formação dos profissionais continuada e as estratégias formativas1. Se,
da educação. por um lado, esses elementos nos situam
diante de uma tarefa desafiante e cheia de
Por formação continuada enten- complexidade, de outra parte, nos instigam
demos o conjunto de “ações formativas e aguçam o espírito investigador na bus-
deliberadamente organizadas da qual ca de respostas, reflexões e, por que não
participam os professores posteriormente dizer, novas perguntas. Discutir esses dois
à sua formação inicial” (NUNES, J., 2001, aspectos é o desafio a que nos propomos
p. 370). Essa formação é aqui situada na neste trabalho.
perspectiva do desenvolvimento docente.
Esta se refere a como atualmente os profes-
sores se desenvolvem e se desenvolveram
em suas vidas pessoais e profissionais nos 1
Para uma compreensão mais ampla desses e de
mais diversos contextos, permeados pelas outros aspectos, indicamos Nunes, A. (2004).

92 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
1 Papel dos Formadores como um processo no qual os professores
devem ser profissionais investigadores e
Dentre os diferentes elementos pre- reflexivos da própria prática, é preciso que
sentes na discussão sobre as modalidades os formadores também o sejam. A esse
e estratégias de formação continuada para respeito, Perrenoud (2002, p. 72) informa
o desenvolvimento docente, destaca-se a que “só um formador reflexivo pode formar
reflexão sobre o papel dos formadores de professores reflexivos, não só porque ele
professores ou formadores de formadores, representa como um todo o que preconiza,
revestindo-lhes de importante atribuição mas porque ele utiliza a reflexão de uma
e responsabilidade. Concordamos com forma espontânea em torno de uma per-
Escudero (1998), quando há muito nos gunta, de um debate, de uma tarefa ou de
advertia da necessidade urgente de dar um fragmento do saber”.
atenção aos formadores de professores, A tarefa do formador não é fácil. Ela
pois os planos e métodos da formação não passa pela capacidade de conhecimento,
se operam por si mesmos. Para Vaillant e análise e domínio de questões referentes
García (2001, p. 20), ao trabalho docente em sala de aula e na
[...] os programas de formação para escola. Essa tarefa necessita ser revista ao
docentes não dão os resultados es- mesmo tempo em que as discussões sobre
perados devido, entre outras causas, a formação estejam avançando. Significa
a que os formadores responsáveis que também os formadores devem estar
pelos programas carecem de forma- inseridos em um processo de desenvolvi-
ção adequada.
mento docente. Garrido (2000, p. 9) destaca
No terreno da formação continuada, que a atividade formadora é bastante
pouca atenção é conferida à formação dos complexa e difícil, haja vista seu caráter
formadores. Laranjeira et al. (1999) asse- articulador e transformador, e porque, nas
veram que a discussão sobre a formação, suas palavras, “não há fórmulas prontas a
papel e especificidade do trabalho do for- serem reproduzidas. É preciso criar solu-
mador ainda avançou pouco no panorama ções adequadas a cada realidade”.
brasileiro. Mais recentemente, Statonato Como formador de professores, par-
(2010) identificou como a formação de for- tindo da definição de Huberman (1994),
madores, mais especificamente de professo- entenderemos todo aquele profissional
res coordenadores de oficinas pedagógicas, que está dedicado à formação de profes-
mostra limites para lidar com a realidade da sores, desenvolvendo seu papel no cenário
prática profissional dos professores. de escolas, secretarias de educação, cen-
A coerência entre a formação que tros ou institutos de formação docente,
defendemos para os professores e a for- universidades, escolas normais e institutos
mação de seus formadores é um aspecto superiores de educação. Portanto o for-
fundamental para promover o desenvolvi- mador também é um profissional docente,
mento docente. Ao conceituar a formação um professor.

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No caso específico do Estado do Essa vasta denominação e a falta
Ceará, essa função também é desempe- de unidade na formação do formador
nhada pelos coordenadores pedagógicos sublinham o caráter amplo e dinâmico
no âmbito das escolas. No contexto atual dessa ocupação, que envolve atividades
do Estado, esse profissional aparece como e responsabilidades diversas no campo
um dos importantes elementos na forma- da formação continuada, mas também da
ção continuada dos professores. Conso- inovação, planejamento, avaliação e outros
ante Garrido (2000) informa, é recente a elementos da dinâmica escolar. Envolve
inserção desses profissionais nas escolas também diferentes concepções sobre a
e, principalmente, é nova a natureza forma- formação continuada e, por conseguinte,
dora de suas atividades. Percebe-se, então, acerca da função do formador.
a necessidade de que esses profissionais Desse modo, podemos falar também
também trabalhem em grupos, partilhem de perspectivas diferentes para entender
suas ideias, experiências, sentimentos etc., o papel do formador. Em uma perspectiva
com seus pares, a fim de que também que prima mais pela racionalidade técnica,
possam atuar junto ao professorado. teríamos um modelo de formador instrutor;
Embora utilizemos a expressão um formador especialista, transmissor de
formador de formadores, é preciso escla- conhecimentos aos professores, que os
recer que, na formação continuada, esses assume apenas como receptores passivos.
profissionais são identificados sob dife- Na inteligência de Huberman (1994), as
rentes denominações, como: instrutores, características do trabalho desse formador
multiplicadores, assessores, coordenadores, são: busca da compensação das carências
técnicos, moderadores, formadores de adul- do sistema, propondo melhoras desde
tos etc. Sobre essa questão, Lanier e Little uma perspectiva adaptativa; respostas aos
(1986) encontraram uma grande variedade professores em forma de receitas; conside-
de tipos e origens dos formadores, além ração do contexto de formação como um
da dificuldade em definir sua identidade consenso compartilhado; foco em tarefas e
e responsabilidade como profissionais no temas específicos do ensino; apresentação
desempenho dessa tarefa, dificuldade essa de soluções; reprodução de esquemas do
que é mais acentuada na formação con- ensino tradicional e apoio em modelos que
tinuada. Dentro dessa etapa formativa, as hierarquizam a formação geral sobre as
autoras assinalam que não é requerido um aprendizagens da própria prática.
corpo de conhecimentos sólidos ou formas Nesse modelo, o professor se torna
gerais e especializadas de formação para dependente do formador, valorizando o
que os sujeitos se tornem formadores. Mais saber do especialista em detrimento do
de 20 anos depois, a literatura específica seu saber. Isto enseja uma circunstância
na área também não indica investigações de acomodação, conformismo e falta de
que demonstrem grandes mudanças nessa problematização da prática docente. En-
realidade (VAILLANT, 2009). tendemos que esse modelo de formador se

94 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
adapta a determinados tipos de estratégias tas, estudos de casos, simulações, análises
formativas – conferências, palestras, cursos de materiais didáticos, gravações etc.
especializados sobre temas específicos etc Essas atividades são propostas com
– porém não pode ser predominante no suporte em um enfoque investigador, pro-
cenário formativo dos docentes. Aprender porcionando critérios próprios ao professor
exige entrega, participação, diálogo e con- para que enfrente os dilemas da prática
textualização. docente cotidiana. A reflexão teórica é in-
Em uma perspectiva crítica e reflexi- troduzida como marco para analisar o que
va, temos o segundo modelo de formador ocorre no processo ensino-aprendizagem,
como um colaborador do processo formati- estando orientada a desenvolver funda-
vo dos professores, contrapondo-se ao pa- mentação científica que proporcione maior
pel de controlador e dirigente. Nessa visão, coerência à atuação docente. O enfoque
o professor é o protagonista da sua forma- didático com os professores é o mesmo
ção e também atua como formador de si que se pretende que seja trabalhado com
próprio e de seus companheiros. A figura os alunos.
do formador evolui de uma compreensão A ideia central caracterizadora do
da mudança centrada no desenvolvimento perfil desse tipo de formador é a de um
individual, para um maior compromisso profissional voltado a formar professores
com a escola como organização que com capacidade para questionar per-
aprende (VAILLANT; GARCÍA, 2001). manentemente a própria prática, com
Algumas características presentes interesse em problematizar e comprovar a
nas atividades desse formador são defini- teoria na prática, mediante a investigação
das como: a busca de superar a dicotomia na sala de aula.
entre formação inicial e continuada com A Fig. 1 nos ajudará a resumir
opções criativas; o ponto de partida para melhor a ideia central expressa nos dois
os trabalhos é a prática docente, utilizando modelos de formadores.
distintas estratégias de reflexão, como visi-

Figura 1 - Modelos de formador

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O formador – isso é possível compro- Ademais desses problemas, é preciso
var – é um elemento que exerce importante considerar que, sem uma rede de forma-
influência na natureza e na qualidade do dores definidos na formação continuada,
processo formativo, qualidade essa relacio- as secretarias de educação perdem o
nada diretamente à incidência da forma- controle sobre as ações desenvolvidas,
ção na prática docente. Na lição de García inclusive desde o planejamento das ações
(1989), a relação entre o conhecimento formativas, tarefa que as secretarias devem
pedagógico e como esse conhecimento acompanhar como gestoras das políticas
é transmitido e trabalhado tem muita públicas de educação.
importância na formação docente. Desse Enfim, ao refletir sobre a importância
modo, o currículo da formação passa pela dos formadores na formação continuada,
ação docente do formador e é relevante na não devemos nos esquecer de que esses
qualidade do processo formativo. formadores atuam nas instituições seguin-
A discussão sobre o papel dos do determinados modelos e estratégias
formadores também aparece no quadro formativos. Compreender tais modelos e
da política educacional brasileira, no do- estratégias nos permite avançar na busca
cumento Referenciais para a Formação de uma formação continuada que chegue
de Professores, elaborado pelo Ministério a constituir espaço de reflexão, análise,
da Educação (BRASIL, 2002). Constatou-se investigação, intercâmbio de experiências
que não houve, na formação dos forma- e ideias, cooperação, colaboração e in-
dores, um processo radical de atualização tegração teoria e prática (HARGREAVES,
inserido em programas de desenvolvimen- 1996; ZEICHNER, 1993), uma formação
to docente, criando soluções paliativas, nas continuada que possibilite o desenvol-
quais a formação continuada assumiu vimento pessoal, profissional e social do
caráter compensatório, o qual situou os for- professor.
madores em um sistema de terceirização,
sendo, portanto, os profissionais de fora da 2 Modelos e Estratégias de Formação
rede estadual e municipal que passaram a Continuada para o Desenvolvimento
assumir essas funções. Em alguns casos, Docente
[...] a falta de quadros locais bem De início, esclarecemos que, apoia-
preparados, para exercer, de fato, a dos em García (1994) e Ramos (1999),
função de formadores de professores
estamos compreendendo modelos como
– que tem levado muitas Secretarias
de Educação a buscar profissionais
sistemas de referência que permitem estru-
de fora da região para realizar o turar e dar uma configuração conceitual às
trabalho – geralmente acaba produ- estratégias de formação continuada para
zindo um tipo de ação distanciada do o desenvolvimento docente. As estratégias
contexto real do professor. (BRASIL, são por nós definidas como as propostas
2002, p. 47). que concretizam, na prática, os diversos

96 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
programas/ações de formação continuada propostas por García (1994) e Santaella
de professores. (1998). Entendemos que as classificações
Embora diferentes visões sobre o propostas pelos referidos autores nos
desenvolvimento docente possibilitem serão especialmente úteis para pensar o
estratégias de formação continuada di- desenvolvimento docente como algo mais
versificadas, deve restar claro o fato de concreto na prática educacional.
que, muitas vezes, a mesma estratégia
pode estar inscrita em diversos modelos 2.1 Modelo Transmissivo
em função das intenções e dos interesses É um modelo centrado basicamente
das pessoas que os implementam e que na transmissão de saberes, especialmente
dela participam. Os rótulos sob os quais se de cunho teórico. Há grande ênfase na
denomina uma estratégia formativa não figura do formador como um especialista
nos informam necessariamente acerca da que irá transmitir a grupos de professores,
concepção sobre a qual será trabalhada. em geral heterogêneos e numerosos, co-
Não se pode avaliar nem julgar precipi- nhecimentos e informações de naturezas
tadamente um programa de formação
diversas. As estratégias formativas inscri-
continuada, sem antes situá-lo em um
tas nesse modelo situam os professores
contexto educacional específico, marcado
em um papel mais passivo, bem como
por questões de ordem social, política,
reforçam uma dicotomia entre a teoria e
econômica, pessoal etc.
a prática.
Na análise de uma estratégia for-
mativa, é fundamental atentar para o 2.1.1 Cursos como estratégias de
papel exercido pelos professores, pois é formação
necessário desenvolver práticas formativas
inscritas em modelos que os considerem Esta é uma das estratégias mais
protagonistas. Para isso, é preciso romper fortes e adotadas na formação continuada
com esquemas de formação tradicio- em distintos países. Quando falamos de
nais, a fim de possibilitar aos docentes cursos, podemos nos referir a uma ampla
a vivência de processos formativos com variedade de atividades, cuja duração, pe-
múltiplas e dinâmicas estratégias, que ríodo, local e programação podem variar
lhes permitam constituir e refletir sobre seu sensivelmente. Os cursos, no entanto, con-
espaço profissional, sua prática e contexto. têm algumas características básicas que os
Propicia-se, dessa forma, a criação de uma definem: presença de um especialista; pla-
cultura de questionamento e colaboração no de conteúdo determinado previamente;
(LIEBERMAN; WOOD, 2003). dirigido a grupos de professores, algumas
Para abordar os modelos de forma- vezes em grande número; por ocorrer fora
ção, tomamos como referência a classifi- da escola; e baseado, geralmente, na aqui-
cação proposta por R. Y. Ramos (1999). A sição de condutas, competências, habilida-
esses modelos, iremos inserir as estratégias des e destreza específicas (GARCÍA, 1994).

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Muitas das críticas que se fizeram a Acreditamos que, em combinação
essa estratégia estão centradas na ênfase com outras estratégias formativas, avalia-
conferida ao saber do especialista, na dis- das devidamente e dentro de condições
tância entre as necessidades da escola e que propiciem o desenvolvimento do
o conteúdo dos cursos, na perda de auto- pensamento e autonomia do professo-
nomia docente sobre o próprio processo rado, os cursos são importantes espaços
formativo, pois são atividades organizadas de aprendizagem. Sem considerar esses
externamente, na falta de feedback entre aspectos que acabamos de mencionar,
professores e agências formadoras, na os cursos constituem atividades contin-
metodologia que privilegia a transmissão gentes e isoladas, que pouco contribuem
verbal e na dificuldade dos professores de para o desenvolvimento docente e, em
aplicar na prática o que aprenderam por consequência, para a melhora da prática
meio dos cursos. educativa.
Não obstante o fato de os cursos
estarem centrados basicamente na aqui- 2.2 Modelo Autônomo
sição de conhecimentos e habilidades, O modelo autônomo se fulcra na
pode-se trabalhar essa estratégia com noção de que o professor tem capacidade
metodologias que possibilitem reflexão, e deve dirigir o próprio processo formativo,
crítica e indagação. Bell e Day (1991, p. 9) baseando-se no princípio de que os adul-
discutem as vantagens e desvantagens tos aprendem melhor quando iniciam e
dessa estratégia de formação: propõem a atividade de desenvolvimento
Vantagens: pode aumentar o co- docente. Está consoante, portanto, com os
nhecimento, pode melhorar as princípios da aprendizagem adulta e da
habilidades, os professores podem carreira docente. As estratégias formativas
fazer escolhas do que é oferecido, aqui são escolhidas pelos professores,
provê oportunidade para refletir que não estão satisfeitos com as ofertas
sobre a prática profissional, pode
formativas propostas pelo sistema oficial,
ser em tempo completo, pode levar
a mais qualificações, pode melhorar
e também pelos que tencionam ampliar a
a perspectiva de promoção. própria formação, adequando-a às suas
necessidades reais e interesses.
Desvantagens: pode ser muito teórico, Nesse modelo, podem ser incluídos
as escolhas são determinadas pelos
congressos, jornadas, simpósios, seminá-
provedores, pode não refletir as ne-
cessidades da escola, pode não ter
rios, encontros e outros eventos contin-
aplicação prática em sala de aula, gentes dessa natureza. Todas essas são
ignora o conhecimento especializado estratégias que permitem reunir grandes
do professor, pode ter um custo alto, grupos de professores em um período
pode requerer longo período de om- curto, oferecendo-lhe uma informação
prometimento. especializada e com o objetivo de trocar

98 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
experiências, analisar temas específicos, intervenção educativa, conhecer e utilizar
obter informações etc. (CHAO, 1992). São novos recursos e estratégias de ensino e
estratégias interessantes quanto à atua- aprendizagem e de avaliação, bem como
lização de conhecimentos, ampliação de adquirir informações do mundo científico
informações e conhecimentos de contextos e cultural que possam ser relevantes à
distintos. prática pedagógica.
Outra estratégia consoante o modelo Algumas características importantes
autônomo é a licença ou financiamento dessa estratégia são: estar formada por
para estudos e investigações, destinada à um grupo pequeno de professores que
formação individual docente, que se pode varia nos distintos contextos, mas não é
concretizar em especializações, mestra- superior a 13 participantes; abordar temas
dos, doutorados ou em outros níveis de relacionados com a prática profissional dos
educação superior. A grande vantagem professores membros do grupo; possibilitar
é a possibilidade de aprofundamento e que todos os componentes participem
atenção a temas mais relacionados às ativamente; dispor um tempo específico
necessidades pessoais do professorado, o semanal ou quinzenal para as reuniões;
que dificilmente se pode obter em outras ter uma duração total entre 20 e 60 horas
estratégias de natureza assistemática. como máximo; estar dotada de recursos
Relativamente à autoformação no financeiros; e privilegiar a elaboração de
plano coletivo, é válido incluir os seminá- uma monografia final. Não identificamos
rios permanentes (surgidos na Espanha ainda essa estratégia no cenário brasileiro.
nos anos 1970), que são atividades com
caráter de estudo, análise e reflexão sobre 2.3 Modelo Implicativo
um tema determinado pelos próprios do-
centes. Esses seminários aparecem como O princípio central do modelo impli-
fórmula eficaz para cativo ressalta que o professor deve anali-
[...] aperfeiçoar a formação do profes- sar, questionar e avaliar permanentemente
sorado, potencializar a reflexão em grupo, sua prática, com o objetivo de melhorá-la
elaborar conjuntamente materiais de aula e desenvolver-se na profissão por meio
e investigar e experimentar novos modelos da reflexão pessoal e da interação com os
didáticos em um contexto participativo, demais. Sob esse ponto de vista, o professor
dentro da comunidade escolar. (XUNTA DE tem um compromisso ético e político com
GALÍCIA, 1999, p. 59). a melhoria da educação. A reflexão sobre
Santaella (1998) refere-se aos se- a própria experiência profissional passa a
minários permanentes como essencial- ser condição imprescindível. Como infor-
mente voltados para que os professores ma McCotter (2001), a reflexão em grupo
possam não apenas conhecer, mas possibilitada por esse modelo formativo
também participar da elaboração de cur- cria uma atmosfera dialogal, crítica, de
rículos, adquirir competências referentes à participação e colaboração. Os professores,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 91-108, jul./dez. 2013. 99


assim, encontram apoio para mudanças a ajuda de seus companheiros de
significativas em suas práticas. trabalho. Nesses estudos, utilizam-se
Esse modelo, denominado por instrumentos como, por exemplo, os
García (1994, p. 334) de baseado na refle- diários de campo; e
xão, enseja estratégias de desenvolvimento  estudos de casos – baseados prin-
docente que “pretendem ser como espelhos cipalmente em situações concretas
que permitam que os professores possam vividas pelos professores em suas
se ver refletidos, e que através desse reflexo salas de aula. Esses estudos também
– que nunca é igual ao complexo mundo derivam de suas observações e das
representacional do conhecimento do observações dos alunos. Desse modo,
professor – o professor adquira uma maior criam-se oportunidades efetivas para
autoconsciência pessoal e profissional”. que os docentes examinem, não
Para esse autor, as estratégias for- apenas suas experiências pessoais e
mativas derivadas do modelo implicativo/ profissionais, mas também as de seus
reflexivo podem ser situadas em dois gru- pares. Ao estudar casos concretos,
pos, aos quais acrescentamos o terceiro. os professores estabelecem maior
vínculo entre a teoria e a prática, des-
2.3.1 Observação e análise do ensino
cobrindo os dilemas morais e éticos
No primeiro grupo, estão as estraté- do ensino.
gias que requerem observação e análise • Conversação entre os professores: é
do ensino. Essas estratégias proporcionam destacada como promotora do desen-
aos professores a oportunidade de descre- volvimento docente porque permite
ver sua prática, refletir sobre ela e trocar a reflexão, a confrontação de ideias,
experiências com seus colegas. Santaella a investigação, o redimensionamento
(1998, p. 291-300) as classificou da forma de significados. A esse respeito, Rust
a seguir descrita. (1999, p. 371), referindo-se ao Resear-
• Estudos narrativos, nos quais se situam: ch Network Project, cuja metodologia
 estudos biográficos – propõem o básica está nas histórias e conversas
desenvolvimento do professor como entre os professores, destaca que os
um processo pessoal e subjetivo que participantes estão engajados “nessas
deve estar bem relacionado à sua conversações para aprender sobre o
trajetória de vida. Redação, análise e que significa tornar-se um professor e
comentários de biografias pessoais para suportar o desenvolvimento pro-
são estratégias muito utilizadas no fissional”. As histórias que permeiam
âmbito do desenvolvimento docente. as conversações, por conseguinte,
Os professores implicam-se como são peças importantes na descoberta,
aprendizes adultos, adquirem poder aprendizagem e formulação de um
porque suas vozes são escutadas discurso sobre o ensino e acerca de si
e refletem sobre si mesmos com mesmo como professores.

100 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
2.3.2 Análise da linguagem e do com as concepções que os professores
pensamento tinham no início da análise.

No segundo grupo de estratégias, Análise do pensamento por meio de


estão aquelas que pretendem contribuir metáforas
para o desenvolvimento dos professores Essa estratégia parte da ideia da
por meio da análise da linguagem, de metáfora como importante forma de
elaborações pessoais ou conhecimentos. linguagem que utilizamos para definir a
Análise dos construtos pessoais realidade cotidiana, e procura conhecer o
modo como os professores compreendem,
Essa estratégia exibe-se como uma experimentam e expressam os aconteci-
técnica para analisar as teorias implícitas mentos vividos em sua prática profissional.
dos professores, mediante formas diferen- Por meio de metáforas expressadas pela
tes: entrevistas, grupos, autoinformes etc. linguagem verbal ou visual, é possível
Com efeito, ajuda os professores a toma- aproximar-se do conhecimento dos profes-
rem decisões como aprendizes e docentes sores sobre o ensino, refletir em conjunto
estratégicos, ampliando conhecimentos, a respeito desses conhecimentos e impul-
entendendo a si mesmos e constituindo sionar o seu desenvolvimento profissional
sua formação em interação com a reali- e pessoal. O uso de metáforas, analogias
dade. Destacamos a seguir alguns passos e narrativas pode ajudar os professores a
para a análise dos construtos pessoais dos conhecerem a si mesmos, bem como a
professores, partindo de uma adaptação analisarem melhor a implicação de suas
dos estudos de García (1994). concepções para o conhecimento docente.
• Descrição – os professores explicitam
suas concepções sobre temas concretos
de sua prática profissional, por exemplo, 2.3.3 Pesquisa-ação e apoio entre
a avaliação da aprendizagem; professores
• exploração – o momento para conversas No terceiro grupo de estratégias do
e leituras teóricas sobre o tema; modelo implicativo, estão aquelas voltadas
• reconhecimento e intercâmbio – os pro- para a reflexão, pesquisa sobre a prática e
fessores buscam perceber as diferenças apoio dos professores entre si.
entre suas descrições sobre o tema e as
teorias estudadas, e as compartilham Formação continuada por intermédio da
entre si; pesquisa
• etapa de negociação – buscam-se os Centra-se na perspectiva do pro-
acordos em grupo de professores para fessor como um sujeito capaz de refletir,
chegar a uma definição consensual identificar e diagnosticar problemas de
sobre o tema; e sua prática docente. Está baseada nos
• revisão – contrasta-se a nova definição pressupostos da pesquisa-ação, que

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ressalta a necessidade do professor como companheiros ou de assessores, a fim de
investigador capaz de teorizar sobre os que o professor perceba a própria atua-
problemas práticos, desenvolvendo sua ção para melhorar sua prática. Podemos
profissionalidade. classificá-la em três tipos, de acordo com os
É preciso matizar a ideia de que objetivos pretendidos (SANTAELLA, 1998).
existem muitos enfoques com relação à • Apoio profissional técnico – consiste na
pesquisa-ação, todos com distintas ênfases transferência, por parte dos professores,
e significados, porém, de um modo geral, do que aprenderam em seminários e
prevalece a noção de que se envolver em cursos;
um processo de investigação fortalece a • supervisão clínica – também conhecida
autonomia docente e a consciência pro- como apoio profissional de compa-
fissional, além de produzir mais conheci- nheiros, que destaca “o elemento de
mentos e atividades essenciais à prática. ajuda entre companheiros para o de-
Para Elliott (1997, p. 180), a expressão senvolvimento e integração de novos
pesquisa-ação sugere que “o objetivo da professores, incremento do diálogo e
reflexão consiste em melhorar a qualidade reflexão através da observação e incluso
da ação em uma determinada situação do ensino de companheiros” (GARCÍA,
mediante a busca de explicações e causas”. 1994, p. 344). Essa estratégia requer que
É importante, então, tornar a pesqui- a escola desenvolva verdadeiramente
sa acessível aos professores, a fim de que uma cultura de colaboração, na qual se
possam investigar sua situação docente, possam compartilhar o estabelecimento
por meio das mais diferentes formas, em de metas e a tomada de decisões (HAR-
interação com seus pares. Isto permite GREAVES, 1996);
um clima de aprendizagem profissional,
• apoio profissional para a indagação –
diálogo, produção de conhecimentos, in-
desenvolve-se por meio de uma estraté-
tegração teoria e prática, compreensão e
gia de pesquisa-ação colaborativa, com
discernimento da realidade de sua prática
o propósito de proporcionar melhorias
na escola e do contexto social, econômico
docentes, mediante uma análise dos
e político no qual estão situados. Não nos
processos de resolução de problemas
podemos esquecer também de envolver
do ensino (SANTAELLA, 1998).
outras personagens importantes presentes
Embora seja muito utilizado para
no cenário escolar: diretores, assessores etc.
designar atividades no modelo implicativo,
(NUNES, A., 2000).
consideramos que o apoio profissional
técnico está mais relacionado a um modelo
Apoio profissional mútuo
transmissivo. Pensamos que a supervisão
Essa estratégia está baseada na clínica e o apoio profissional para a in-
ideia de que as atividades formativas vão dagação transcendem o limite posto pela
seguidas de atividades de assessoria entre concepção de treino dos professores e se

102 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
harmonizam melhor ao modelo implica- de ação se mostram muito maiores do que
tivo. Tais expressões têm como cerne a quando os sujeitos trabalham de forma
participação ativa dos professores de forma individual. O grupo permite e proporciona
indagadora e reflexiva, pois constituem im- uma série de aprendizagens calcadas na
portante veículo para ajudar os professores colaboração, diálogo, confiança, respon-
a se darem conta de valores, atitudes e su- sabilidade compartilhada e ampliação
posições sobre a aprendizagem (I’ANSON; de conhecimentos. Desse modo, promove
RODRIGUES; WILSON, 2003). “condições de muito maior vitalidade ao
processo de formação” (PONTE, 1994, p.
2.4 Modelo de Trabalho em Equipe 14). Por meio do trabalho em equipe, os
Este é um modelo cuja característica professores dão suporte uns aos outros,
central reside na resolução de uma con- fortalecendo-se como grupo profissional.
junção de problemas comuns por parte de Esse modelo de formação conti-
um grupo de professores na escola. Supõe nuada estimula os professores para que
a participação dos docentes no desenho e revejam e elaborem novos conhecimentos.
planejamento da própria formação. É um Instiga também a transformação do ensino,
modelo que se adapta prioritariamente à refazimento do currículo e desenvolvi-
formação centrada na escola, sendo suas mento – tudo por parte deles – de formas
estratégias também compatíveis, principal- alternativas para pensar e aprender sobre
mente com o modelo implicativo. Nesse seus alunos, experimentando e acessando
sentido, Ramos (1999, p. 217) nos esclarece o resultado de suas ações.
que a perspectiva colegiada está “centrada 2.4.1 Processos de inovação curricular e
nas necessidades da escola, mais que nos formação em escolas
indivíduos”.
Acreditamos ser importante ressaltá- O princípio no qual se assenta essa
lo como um modelo de formação, e não estratégia formativa ressalta a colaboração
apenas como estratégia presente em ou- entre professores, pais, alunos e toda a
tros modelos, porque põe relevo à temática equipe da escola, como forma de refletir e
da cultura colaborativa no trabalho docen- analisar os temas importantes para o con-
te. Para Avalos (1998), embora em diversos texto educacional no qual estejam inseri-
países, inclusive da América Latina (Chile, dos. A ideia central é de que os projetos de
Argentina e Paraguai desde os anos 1980), inovação educacional sejam pensados em
a discussão sobre o trabalho colaborativo grupos de trabalho, nos quais se encontre
entre os professores não seja recente, esse envolvida toda a comunidade educacional.
é um tema profundamente atual e neces- Esses projetos supõem a formação
sário nos processos formativos. nas próprias instituições escolares, incluin-
Um dos aspectos centrais desse do atividades diversificadas, nas quais os
modelo é a concepção do grupo como professores desenvolvem ou adaptam um
um espaço cuja criatividade e potencial currículo, desenham um programa ou se

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 91-108, jul./dez. 2013. 103


implicam em processos de melhoria da destaca que a formação teve os seguintes
escola. Essa estratégia formativa privilegia objetivos:
alguns aspectos específicos que, segundo 1) envolver alunos e professores
Santaella (1998), devem ser considerados: na elaboração do currículo; consi-
• objetivos e âmbito de aplicação – co- derando-os sujeitos do processo; 2)
nexão do projeto de inovação com o Compreensão do currículo numa
projeto pedagógico da escola; perspectiva mais ampla; 3) Constru-
• planejamento da elaboração do mate- ção de um projeto interdisciplinar a
rial curricular – características técnicas, partir da pedagogia de projetos; 4)
Compreender os novos espaços da
recursos e temporalização;
formação de professores.
• planejamento da aplicação experimental
do material – forma e critérios de vali- Tais objetivos foram estabelecidos
dação, participantes etc.; com base no diagnóstico de evasão e re-
• avaliação do processo e do material ela- petência constatado na escola. A formação
borado – critérios de avaliação, formas foi desenvolvida de modo coletivo, com
de levá-los a cabo; e fundamento nos mais diferentes proces-
• detalhamento financeiro do custo do sos e projetos, como: a criação de uma
projeto. oficina de ideias, na qual os professores
A conexão do desenvolvimento do- trocam experiências, apontam sugestões e
cente com a ideia de mudança e inovação expõem seus medos e angústias; reuniões
também pôs em marcha o movimento de semanais para acompanhar e avaliar o
formação centrada na escola, considerada projeto; seminários, cursos; participação em
como o cenário onde surge e se pode movimentos culturais dos mais diversos;
resolver a maior parte dos problemas do discussão de temas sobre o novo perfil
ensino. A formação no próprio contexto de do profissional da educação etc. A defesa
trabalho do professor possibilita que ele se dessa formação é de que o professor nun-
implique de modo mais efetivo. Imbernón ca está pronto, sempre está se produzindo
(1999) destaca que a formação na escola e, portanto, seu percurso formativo deverá
terá um papel de agente de mudanças estar sempre aberto ao novo.
e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento A escola é o lugar primeiro para que
educacional da instituição escolar permite práticas como essa possam ser desenvolvi-
criar condições adequadas e favoráveis das. A formação continuada deve aconte-
para que os professores se formem. cer com base na realidade da instituição,
Como exemplo mais concreto desse nas necessidades docentes e nos projetos
tipo de estratégia, no panorama brasileiro, pedagógicos, contribuindo para que a
podemos citar a experiência de uma escola escola constitua e fortaleça um espaço de
para jovens e adultos da rede municipal crescimento para todos os que nela estão
de Belo Horizonte. Valadares (2002, p. 194) envolvidos.

104 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
Considerações Finais • promover a discussão entre órgãos
gestores e escolas, com vistas a buscar
É necessário enfatizar a noção opções para o problema das condições e
de que todos os modelos e estratégias do tempo disponível para uma formação
aqui expressos não se excluem entre continuada de qualidade, que possa
si, porquanto podem se complementar, efetivamente incidir sobre a prática
dependendo do contexto, objetivos e pedagógica do professor;
metas a serem alcançadas na formação • ampliar as estratégias e modalidades
continuada, mas também dependendo da formativas, oferecendo aos professores
concepção de currículo, ensino, escola e, possibilidades de escolha, de acordo
evidentemente, da clareza sobre o papel com suas motivações e necessidades,
que o professor deve desempenhar. Do inclusive considerando que estão em
mesmo modo, é preciso definir também o diferentes etapas da carreira;
papel e o lugar dos formadores. • desenvolver programa formativo dirigido
É nosso entendimento a ideia de aos formadores, discutindo concepção
que a discussão e a implementação de e significado da formação continuada
estratégias formativas, por conseguinte, e o conhecimento de novas estratégias
sejam elas de qualquer natureza e per- e modalidades formativas, trazidas pela
tencentes a qualquer modelo, não podem literatura da área ou por experiência de
ser dissociadas da compreensão sobre as outros contextos;
necessidades e demandas de formação e • mapear o atendimento das escolas
do papel de professores e formadores, en- pelos coordenadores pedagógicos,
contrando, com suporte nelas, o espaço e identificando zonas mais problemáticas,
a voz desses protagonistas como partícipes áreas mais bem atendidas, necessidades
ativos em suas trajetórias de formação. singulares etc.;
Ademais, qualquer que seja a estratégia • potencializar estratégias formativas,
formativa, esta só acontecerá se as con- como a reflexão na/sobre a prática e
dições adequadas e o tempo disponível a pesquisa-ação. Com isso, além de
para a sua formação forem garantidos a envolver de modo mais contundente
professores e formadores. e dinâmico os professores em sua
Por fim, sugerimos algumas propos- formação, são oferecidas opções para
tas para a melhoria da formação continua- sua principal demanda: a formação
da, desde a perspectiva do desenvolvimen- articulada à prática;
to docente, a serem implementadas pelos • fomentar a ideia dos professores como
órgãos gestores e/ou pelas escolas: formadores de seus companheiros, não
• fazer levantamento e análise sistemática apenas pela troca de experiência, mas
das necessidades formativas dos pro- também por meio de estratégias como a
fessores, promovendo junto deles uma observação, o uso de diários, seminários
reflexão sobre o tema; temáticos etc.;

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 91-108, jul./dez. 2013. 105


• estabelecer critérios para seleção e for- formação a distância, facilitando, além
mação dos formadores, sejam internos do acesso a vários temas adequados
ou externos, bem como organizar o às distintas realidades dos professores,
banco de formadores; o intercâmbio das diferentes regiões do
• ampliar e fortalecer as estratégias de Município, do Estado ou do País.

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Recebido em junho de 2012


Aprovado para publicação em outubro de 2012

108 Ana Ignez B. L. NUNES; João Batista C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias...
As políticas sociais e a “nova estratégia” de
educação integral no Brasil
Social policies and “new strategy” for comprehensive
education in Brazil
Katharine Ninive Pinto Silva*
Jamerson Antonio de Almeida da Silva**
* Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal
de Pernambuco. E-mail: katharineninive@yahoo.com.br
** Doutor em Educação. Professor da Universidade Federal
de Pernambuco. E-mail: jamersonufpe@gmail.com
Resumo
O trabalho analisa o Programa Mais Educação, como “nova estratégia” do governo federal para promoção
da educação integral, focalizando as funções sociais atribuídas aos programas esportivos, artísticos e
recreativos realizados no contraturno escolar, como forma de “ocupação” do “tempo livre” de crianças e
jovens do ensino fundamental. Também analisa os espaços e os equipamentos disponibilizados para tais
ações, considerando-os indicadores de efetividade da proposta de criação de territórios educativos. Trata
de alguns dos resultados de pesquisa financiada pelo CNPq. Tais resultados revelam que, sob o discurso
de promover a educação integral, a escola pública brasileira vem ampliando suas responsabilidades,
diminuindo a escolarização e aumentando o disciplinamento da pobreza.
Palavras-chave
Educação Integral. Políticas Sociais. Avaliação de Políticas Públicas.
Abstract
The paper analyzes the More Education Program, as “new strategy” of the federal government to promote
comprehensive education, focusing on social functions allocated to sports programs, arts and entertainment
held in the shift from school as a form of “occupation” of “free time” children and youth in elementary
school. It also examines the spaces and equipment available for such actions, considering the indicators
of effectiveness of the proposed educational establishment of territories. It addresses some of the results
of research fundeb by CNPq. These results show that, in the speech to promote the integral education, the
Brasilian public school has been expanding its responsibilities, decreasing enroolment and increasing
the discipline of poverty.
Key words
Comprehensive Education. Social Policy. Evaluation of Public Policies.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 109-128, jul./dez. 2013
Introdução ME), referentes à Relatórios do processo
de implementação do Programa Mais
Este estudo é parte da pesquisa Educação, nos anos de 2008, 2009 e 2010,
Educação Integral no contexto da Inter- bem como entrevistas semiestruturadas
setorialidade: avaliando o Programa Mais realizadas com gestores do Programa no
Educação, que é financiada pelo CNPq e âmbito federal e municipal e gravação
desenvolvida pelo Grupo Gestor – Grupo dos relatos de experiências realizadas em
de Pesquisa em Políticas Educacionais e todo o país, observados em dois eventos:
Programas do Tempo Livre (CAA/UFPE) e Congresso da Rede de Parceiros de Esporte
que avalia o referido Programa, proposto e Lazer, realizado em Foz do Iguaçu, PR,
pelo Governo Federal brasileiro e que está no período de 16 a 18 de junho de 2010,
sendo realizado desde 2007. Consideram- e Seminário Internacional de Educação
se as formas de organização do tempo/ Integral em Jornada Ampliada, realizado
espaço escolar; os saberes socialmente em Brasília, DF, no período de 24 a 26
legitimados; a formação de pessoal e a de novembro de 2010. O primeiro evento,
intersetorialidade como princípio de gestão. coordenado pelo Ministério do Esporte e
Apresentaremos neste trabalho as com a participação do Ministério da Edu-
conclusões do estudo referentes à aná- cação, e o segundo evento, coordenado
lise dos valores, diretrizes e objetivos do pelo Ministério da Educação.
Programa Mais Educação como a “nova
estratégia” de promoção da Educação Programa Mais Educação – a “nova
Integral, em escolas públicas brasileiras, estratégia” do Governo Federal para
através da utilização de programas espor- promoção da Educação Integral no
tivos, artísticos e recreativos realizados no Brasil
contraturno escolar. Saber quais são as
funções atribuídas a esses programas e a Não se trata de expandir a jornada
relação com a problemática da “ocupação das crianças, aprisionando o tempo
do tempo livre” de crianças e adolescentes das crianças, na linha daquilo que
do ensino fundamental, bem como identifi- a escola já vem fazendo. Nós temos
car como estão acontecendo os espaços e que trabalhar na perspectiva de uma
os equipamentos disponibilizados para tais profunda reinvenção no modo como
ações, em termos de criação de territórios a escola opera e uma reinvenção que
traz todo o debate proposto por Paulo
educativos, são os objetivos que busca-
Freire, sobretudo na perspectiva de
remos alcançar no decorrer da análise tornar esse sujeito, esse estudante de
exposta nas próximas páginas. fato sujeito do seu processo educativo
Para tanto, apresentaremos uma […]. A escola tem ainda o papel de
análise a partir de dados coletados junto introduzir os meninos(as) no universo
à Secretaria de Educação Continuada, Al- de saberes e de possibilidades que a
fabetização, Diversidade e Inclusão (Secad/ humanidade ofereceu, numa socieda-

110 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
de muito desigual como a nossa em relatora, com a aprovação da PEC 134,
que as crianças de classe média e al- seria garantida a educação integral, com
tas talvez nem precisariam da escola jornada escolar de pelo menos sete horas
para fazer esse percurso, as crianças diárias, na escola ou em atividades esco-
filhas dos pais populares, cujos pais
lares fora da escola, na educação infantil,
não tiveram acesso à educação nem
ensino fundamental e médio regulares,
aos direitos básicos, como direito à
educação básica, precisam desse es- sendo prevista a possibilidade de opção
paço de socialização para ter acesso por essa jornada ampliada, pelas famílias
a um capital cultural que pode fazer ou estudantes, a critério dos sistemas de
muita diferença na sua vida. Mas isso ensino.
não pode significar o aprisionamento Em maio de 2011, o Senado apro-
dessas crianças naquelas grades de vou lei que aumenta a jornada escolar
saberes e conhecimentos tradicional- de 800 para 960 horas anuais no Ensino
mente trabalhados na escola, busca- Fundamental e no Ensino Médio. Outro
mos exatamente a possibilidade de projeto amplia a frequência exigida para
expandir o universo de conhecimento
aprovação de 75% para 80%. Os dois
e depois possibilidades a partir da
projetos também se encontram em trami-
leitura de mundo, de saberes e da
cultura que essa criança traz e o que tação e passarão ainda pela Câmara dos
essa criança desenvolve dentro do Deputados e pela Presidência.
contexto em que ela vive. (Gestora Durante as Audiências Públicas
1, em entrevista no dia 24/11/2010). em torno da PEC 134, o Programa Mais
Educação foi colocado como a saída para
A ampliação da jornada escolar e
resolver todas ou boa parte das dificulda-
das funções que a escola passa a assumir
des em torno da implementação dessa
estão na ordem do dia. Um exemplo disso
proposta. Como apresentado na fala de
é o fato de se encontrar em tramitação
André Lázaro, então Secretário de Educa-
a Proposta de Emenda Constitucional
ção Continuada, Alfabetização e Diversi-
de número 134, proposta pelo Deputado
dade (SECAD), representando o Ministério
Federal Alceni Guerra e outros em 2007.
da Educação, durante a primeira audiência
Esta proposta, em 2007, foi encaminhada
pública, realizada em 11 de maio de 2010:
à Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania (CCJC) e, após conclusão de O Programa Mais Educação, do
seus trabalhos, para analisá-la foi criada Ministério da Educação, é um proce-
uma Comissão Especial, cujos trabalhos dimento, dentre os muitos, da educa-
ção integral. Entre suas vantagens,
foram concluídos estando a proposta agora
destacou-se que o Mais Educação
em tramitação na Câmara dos Deputados. não exige que a escola tenha espa-
De acordo com o resultado final do ço para acolher todas as crianças
trabalho da Comissão Especial, acrescido durante todo o tempo, pois infeliz-
de uma proposta de substitutivo de sua mente muitas escolas brasileiras não

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 109-128, jul./dez. 2013. 111


têm condições desse atendimento esportiva no Brasil (na Região Nordeste
na medida em que funcionam com este percentual cai para 25,8%). Os dados
até 3 turnos de crianças: turno da referentes ao Ensino Médio evidenciam um
manhã, do meio e da tarde. Portanto, percentual de escolas públicas que contam
o Mais Educação trabalha com a com quadras esportivas de 71,7%, no Brasil,
seguinte lógica: ampliação do tempo,
e 45,5%, na Região Nordeste. Considerando
dos espaços e das oportunidades de
aprendizagem. Por tempo, entende-se as matrículas, os números são: 78,8% no
a ampliação da jornada para pelo Brasil e 57,8% no Nordeste, na relação alu-
menos 7 horas diárias. Por espaços, nos matriculados e utilização de quadras
valoriza-se a integração comunitária esportivas. É comum a estratégia atual de
das escolas: a escola com clubes, construção de escolas que contêm apenas
igrejas, sindicatos, museus, etc. salas de aula precárias. Muitas vezes, ane-
Sendo assim, o Programa Mais xos providenciados de forma emergencial
Educação é considerado na atualidade para garantir o atendimento da população.
como a “nova estratégia” de Educação
Integral, sobretudo por trabalhar a ideia Valores, diretrizes e objetivos do
da ampliação da jornada escolar, através Programa Mais Educação
da integração comunitária das escolas,
criando territórios educativos, de forma a [...] o Mais Educação trabalha na pers-
não alterar o funcionamento das escolas pectiva de mudar o modo operante da
em 3 turnos, ampliando para fora dela a escola, nós entendemos que a confi-
guração moderna da escola ela não
jornada escolar, em clubes, igrejas, sindi-
corresponde ao jeito como as crianças
catos, museus, etc. É importante ressaltar
e os jovens estão se relacionando com
que, em levantamento realizado pelo os saberes que o mundo disponibiliza
próprio Ministério da Educação, de acordo para eles, mesmo jovens de classes
com o Censo Escolar, 59,42% das escolas populares. Esse modelo de professor
públicas brasileiras não possuem nem ao no quadro escrevendo, os meninos co-
menos uma quadra esportiva. No entanto, piando, levando pilhas de dever para
de acordo com o Relatório Técnico do Cen- casa, enfim, individualizados, quase
so da Educação Básica 2011 (INEP/MEC, encarcerados naquela sua carteira,
2012), os números são ainda mais alar- naquele silêncio abismal, esse modelo
mantes: no Ensino Fundamental, apenas de educação está morto. Se persisti-
ram nele, porque é uma sociedade
27,5% das escolas públicas contam com
que tem um grau de autoritarismo
quadras esportivas (a Região Nordeste tem muito exacerbado (produzido cultu-
o menor percentual, 9%). Considerando a ralmente, no século XX nós vivemos
relação das matrículas com infraestrutura, duas longas ditaduras) então dizer
o número sobe para 56,4% dos estudantes a palavra não é algo comum para
matriculados que têm acesso à quadra nós, as pessoas antes escutam, tem

112 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
medo de falar, então o que está em Educacional de Educação Integral, indu-
curso é uma mudança do jeito como zida pelo Governo Federal, tendo sido
a escola funciona, evidente que nessa instituído através da Portaria Normativa
mudança nós temos tentado induzir a Interministerial n. 17/2007 e da Portaria n.
transição de um modelo de pedagogia
19/2007, com objetivo de “[...] fomentar a
disciplinar, que pensando nas discipli-
educação integral de crianças adolescen-
nas escolares e não na disciplina de
comportamento para uma perspectiva tes e jovens, por meio do apoio a atividades
de pedagogia de projetos, para uma socioeducativas no contraturno escolar”.
pedagogia de centros de interesse, Tem como Base Legal também os seguintes
de temas geradores que implicam a documentos: Constituição Federal de 1988;
relação das várias áreas de conheci- Lei 10172/2001, que aprova o Plano Nacio-
mento e desses modos de expressão nal de Educação (que nos seus objetivos
todos que o Mais Educação facilita e metas prevê a ampliação progressiva
para que se chegue na sala de aula. do atendimento em tempo integral para
[...] Então não se trata de acoplar, agora as crianças de 0 a 6 anos); Lei 9394/96
fazer um horário que tenha português,
(Lei de Diretrizes e Bases da Educação
depois danças, depois matemática,
depois geografia, não. Como é que a Nacional); PNAE – trata da alimentação
geografia, a dança, o teatro, o jornal escolar; Resolução 43 – trata do Programa
escolar, a rádio escolar passam a ser Dinheiro Direto na Escola; Resolução 52
encarados como procedimentos, como de 2004, sobre a Escola Aberta e Decreto
instrumentos que podem dinamizar o n. 7083, de 27 de janeiro de 2010 – que
processo de acesso e produção dos dispõe sobre o Programa Mais Educação.
conhecimentos. (Gestor 1, em entre- O Decreto 7083/2010, dispõe so-
vista realizada em 24/11/2010). bre o Mais Educação, definindo que a
O Programa Mais Educação se apre- finalidade deste é a de contribuir para a
senta em um contexto em que a educação melhoria da aprendizagem por meio da
brasileira vem sendo desafiada a ampliar ampliação do tempo de permanência das
seus compromissos para além dos que crianças, adolescentes e jovens matricu-
historicamente já vem cumprindo, com lados em escola pública, mediante oferta
a busca de caminhos para a institucio- de educação básica em tempo integral.
nalização da ampliação das funções da Considera a duração igual ou superior a
escola e de seus profissionais, que passam sete horas diárias na Educação Básica,
a incorporar um conjunto de responsabi- garantindo a alternativa de as atividades
lidades não tipicamente escolares, como escolares poderem ser desenvolvidas em
o desenvolvimento de hábitos primários outros espaços educacionais. O documento
relacionados à higiene, saúde, alimentação descreve como atividades que fazem parte
e à sociabilização básica. da jornada ampliada: acompanhamento
Apresenta-se como protagonista no pedagógico, experimentação e investiga-
processo de construção de uma Política ção científica, cultura e artes, esporte e

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 109-128, jul./dez. 2013. 113


lazer, cultura digital, educação econômi- alunos e suas comunidades; disseminar
ca, comunicação e uso de mídias, meio as experiências das escolas que desen-
ambiente, direitos humanos, práticas de volvem atividades de educação integral
prevenção aos agravos à saúde, promo- e convergir políticas e programas de
ção da saúde e da alimentação sudável, saúde, cultura, esporte, direitos humanos,
entre outras atividades. Também neste educação ambiental, divulgação científica,
documento estão descritos os princípios da enfrentamento da violência contra crianças
educação integral no âmbito do Programa e adolescentes, integração entre escola e
Mais Educação: articulação de disciplinas comunidade. Para realizar esses objetivos,
curriculares com diferentes campos de o documento indica a necessidade de se
conhecimento e práticas socioculturais; consolidar o Regime de Colaboração e
constituição de territórios educativos, por mediante a assistência técnica e financeira
meio da integração dos espaços escolares aos programas de ampliação da jornada
com equipamentos públicos como centros escolar.
comunitários, bibliotecas, praças, parques, A partir da data de publicação desse
museus e cinemas. Também são conside- documento, o Programa, no âmbito federal,
rados, nesse documento, a integração entre passa a ser executado e gerido pelo Mi-
políticas educacionais e sociais, em inter- nistério da Educação, que editará as suas
locução com as comunidades escolares; diretrizes gerais. Poderão ser realizadas
a valorização das experiências históricas parcerias com outros Ministérios, órgãos ou
das escolas de tempo integral; o incentivo entidades do Poder Executivo Federal. No
à criação de espaços educadores susten- âmbito local, a execução e a gestão do Pro-
táveis, à gestão, à formação de professores grama Mais Educação serão coordenadas
e à inserção das temáticas de sustenta- pelas Secretarias de Educação, que conju-
bilidade ambiental nos currículos e no garão suas ações com os órgãos públicos
desenvolvimento dos materiais didáticos; das áreas de esporte, cultura, ciência e
a afirmação dos direitos humanos e da di- tecnologia, meio ambiente e de juventude,
versidade e a articulação entre sistemas de sem prejuízo de outros órgãos e entidades
ensino, universidades e escolas, de forma do Poder Executivo estadual e municipal,
a assegurar a produção de conhecimento, do Poder Legislativo e da sociedade civil. O
a sustentação teórico-metodológica e a documento também indica que caberá ao
formação inicial e continuada dos profis- Ministério da Educação definir, a cada ano,
sionais no campo da educação integral. os critérios de priorização do atendimento
Ainda de acordo com o Decreto do Programa Mais Educação e as dotações
7083/2010, são os objetivos do Programa: orçamentárias também serão por conta dos
formular política de educação básica em encargos do Ministério da Educação. No
tempo integral; promover diálogo entre os caso de parcerias com outros Ministérios,
conteúdos escolares e os saberes locais; a dotação orçamentária para o Programa
favorecer a convivência entre professores, também virá destes.

114 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
Finalmente, o Fundo Nacional de sociais que já atuam na garantia de di-
Desenvolvimento da Educação (FNDE) retos de crianças e adolescentes, como
prestará a assistência financeira para corresponsáveis por sua formação escolar
implantação dos programas de ampliação e integral.
do tempo escolar das escolas públicas de Em dados coletados junto ao Minis-
educação básica, mediante adesão, por tério da Educação/Secad (BRASIL, 2008),
meio do Programa Dinheiro Direto na podemos identificar 62 atividades, desen-
Escola (PDDE) e do Programa Nacional de volvidas em 10 macrocampos, que fazem
Alimentação Escolar (PNAE). parte da estratégia do Programa Mais Edu-
O programa entende a Educação cação em ampliar a jornada escolar nas
Integral como meio para assegurar o de- escolas brasileiras. Os macrocampos e as
senvolvimento das crianças e dos adoles- atividades relacionadas são os seguintes:
centes em todos os âmbitos da condição 1. Acompanhamento Pedagógico, cujas
humana. Considera essa perspectiva de atividades desenvolvidas são: Ciên-
educação como estratégica para garantir a cias; Filosofia e Sociologia; História e
proteção dos estudantes da escola pública Geografia; Leitura e Produção de Texto;
como sujeitos de direitos que vivem uma Letramento, Línguas Estrangeiras e
contemporaneidade marcada por Matemática.
[...] intensas transformações, no acesso 2. Cultura e Artes, cujas atividades desen-
e na produção de conhecimentos, nas volvidas são: Banda Fanfarra; Canto
relações sociais entre diferentes gera- Coral; Capoeira; Cineclube; Danças;
ções e culturas, nas formas de comuni- Desenho; Escultura; Grafite; Hip Hop;
cação, na maior exposição aos efeitos Leitura; Iniciação Musical por meio de
das mudanças em nível local, regional flauta doce; Mosaico; Práticas Circen-
e internacional. (BRASIL, 2008, p. 10). ses; Percussão; Pintura e Teatro.
Essa ação governamental se co- 3. Direitos Humanos em Educação, cuja
loca como uma opção estratégica aos atividade desenvolvida é Direitos Hu-
resultados das avaliações nacionais, as manos e Ambiente Escolar.
quais têm apontado para insuficiência de 4. Educação Científica, cuja atividade
aprendizagens das crianças e adolescentes consiste nos Laboratórios e Projetos
da escola pública. Em resposta, o governo Científicos.
entende que a ampliação de tempos, espa- 5. Educação Econômica e Cidadania,
ços e oportunidades educativas qualificam cujas atividades desenvolvidas são:
o processo educacional e melhoram o Controle Social e Cidadania e Educa-
aprendizado dos alunos. No entanto, para ção e Empreendedorismo.
a objetivação dessa concepção ampliada 6. Educomunicação, cujas atividades são:
de educação, o entendimento do programa Histórias em Quadrinhos; Fotografia;
não é recriar a escola como instituição Jornal Escolar; Mídias Alternativas e
total, mas de implicar os diversos atores Rádio Escolar.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 109-128, jul./dez. 2013. 115


7. Esporte e Lazer, cujas atividades de- esteve presente na concepção do Progra-
senvolvidas são: Basquete; Atletismo; ma. Foi essa construção intersetorial, da
Basquete de Rua; Ciclismo; Corrida de qual a Secad/ME assumiu a coordenação
Orientação; Ginástica Rítmica; Futebol; e que, a partir de 2011, passou a ser res-
Futsal; Handebol; Judô; Karatê; PST; ponsabilidade da SEB/ME que fez com que
Natação; Recreação/Lazer; Taekwondo; fosse possível a realização das atividades
Tênis de Campo; Tênis de Mesa; Volei- descritas anteriormente.
bol; Xadrez Tradicional; Xadrez Virtual Como podemos observar, numa
e Yoga. breve descrição, os diversos programas
8. Inclusão Digital, cujas atividades são: articulados pelo Mais Educação têm em
Ambiente de Redes Sociais; Informática comum várias características das políticas
e Tecnologia e Software Educacional. de tempo livre: a utilização do tempo dispo-
9. Meio Ambiente, cujas atividades de- nível ou ocioso das crianças e adolescente
senvolvidas são: Com-Vidas/Agenda (normalmente o contraturno escolar ou fi-
21 Escolar e Horta Escolar ou Comu- nais de semana); a realização nos espaços
nitária. escolares ou comunitários; a promoção de
10. Prevenção e Promoção da Saúde, conteúdos culturais mais relacionados às
cujas atividades são blocadas, mas atividades de tempo livre como cinema,
dizem respeito às seguintes atividades: prática esportiva, atividades artísticas e
Alimentação Saudável / Alimentação socioeducativas. Além disso, os valores
Escolar Saudável; Saúde Bucal; Práticas cultivados por tais programas também os
corporais e educação do movimento; jogam no espectro de uma “pedagogia
Educação para a Saúde Sexual, Saúde do tempo livre” como é o caso do desen-
Reprodutiva e Prevenção das DST/AIDS; volvimento da autoestima, solidariedade
Prevenção ao Uso de Álcool, Tabaco e comunitária, autonomia, educação estética,
Outras Drogas; Saúde Ambiental; Pro- desenvolvimento de valores morais etc.
moção da Cultura de Paz e prevenção As políticas do tempo livre, rela-
das violências e acidentes; Criação de cionadas à cultura, esporte e lazer, meio
estratégias de promoção e prevenção ambiente etc. vêm constituindo seus dis-
em saúde a partir do estudo dos prin- cursos legitimadores, a partir de códigos e
cipais problemas de saúde da região: modelos de organização diferentes dos da
dengue, febre amarela, malária, han- educação formal e, muitas vezes, demons-
seníase, doença falciforme e outros; trando certo antagonismo. Alguns estudos
promoção e prevenção em saúde no apontam para existência de movimentos
currículo escolar. que buscam a afirmação do tempo livre
Os macrocampos desenvolvidos no como um âmbito específico da pedagogia,
Programa Mais Educação são resultado chegando a crivar termos como “pedago-
de uma perspectiva de Gestão Intersetorial, gia do tempo livre”, “pedagogia do ócio”,
Intergovernamental e Interministerial que “pedagogia do lazer” etc.

116 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
Por políticas do tempo livre temos configurações em relação ao tempo, ao
entendido o conjunto de programas cul- espaço, à concepção curricular, ao quadro
turais de caráter planejado e sistemático docente, à organização e funcionamento
desenvolvidos no “tempo liberado” ou do das escolas. Também levantamos, ainda
“não-trabalho” (WAICHMAN, 1997). Esses que superficialmente, alguns constrangi-
programas abarcam um leque de ativi- mentos que chegaram a interromper e
dades que podem ser enquadradas em inviabilizá-los, constrangimentos esses de
quatro grupos de interesses. Um primeiro, ordem política, ideológica, administrativa
que abrange todas as atividades que têm e econômica. Atualmente novos modelos
um componente físico, em que predomina de educação integral estão sendo expe-
a atividade corporal. Isto inclui passeios, rimentados pelo Brasil afora, como é o
excursões e todo tipo de esportes. Outro caso do Bairro Escola, na cidade de Nova
grupo é formado pelas atividades manu- Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro. É
ais que implicam uma produção concreta possível, portanto, fazermos uma tentativa
tais como a bricolagem, o artesanato, a de sistematização de diversos modelos de
jardinagem etc. O grupo seguinte abarca implementação da educação integral e de
os interesses artístico-culturais, de elite ou escolas de tempo integral.
de massa, de caráter participativo e criativo Nesse sentido, um modelo clássico
ou passivos, entre os quais estão televisão, apresenta a ampliação da jornada escolar,
rádio, cinema, leitura, teatro, música etc. O a partir de um programa curricular a ser
último grupo são as atividades em que pre- desenvolvido nos espaços próprios das
dominam as relações interpessoais como é escolas, implicando sua adequação e o
o caso dos encontros em cafés, praças ou aumento do número de docentes, sua jor-
clubes, festa de amigos e a vida familiar nada de trabalho e do corpo administrativo
(DUMAZEDIER, 1999; MARCELLINO, 1995; da escola. Um segundo modelo consiste
PUIG; TRILHA, 2004). Atualmente, esses na complementação das oportunidades
programas se materializam por meio de de aprendizagem a partir da oferta de
políticas públicas de esporte e lazer, de atividades educativas, a serem realizadas
cultura, de turismo, de comunicação etc., com a otimização do espaço escolar e
cada uma baseada em normatizações de outros espaços públicos, construindo
setoriais próprias, e estão sendo chamados um turno complementar. Uma terceira
a interagir com a política educacional, prin- proposta envolve a articulação das es-
cipalmente em função de uma crescente colas de ensino fundamental com ações
valorização do potencial educativo dessas socioeducativas complementares, desen-
atividades, o que nos permite classificá-las volvidas por ONG’s e outras instituições
como políticas pedagógicas do tempo livre. educativas. Essas diversas propostas, nas
Podemos falar em modelos de im- duas últimas décadas, geraram um debate
plementação de programas de educação intenso, de onde surgiram várias críticas
integral, nos quais se observam diversas por parte de educadores e pesquisadores,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 109-128, jul./dez. 2013. 117


ora questionando o caráter populista das como toda fotografia é um foco e tem
propostas, ora a inviabilidade de sua uni- outros focos, então o ministério tem o
versalização, bem como a inconsistência IDEB, sobretudo porque ele pondera a
como projeto pedagógico, ou denunciando permanência na escola e resultados
certa intenção de confinamento. dessas provas, então ele primeiro não
coloca só a questão da prova, tem
De toda maneira, a questão da
também a permanência na escola
escola de tempo integral e da educação
que diz muito sim, num país que his-
integral implica considerar o aspecto toricamente expulsou as crianças da
tempo (a ampliação da jornada escolar) e escola, crianças das classes populares
espaço, sendo o próprio espaço da escola [...]. (Gestor 1, em entrevista realizada
o continente dessa extensão de tempo. no dia 24/11/2010).
Implica também considerarmos o direito
à aprendizagem, na perspectiva de que o Considera-se o fato de o IDEB bus-
horário expandido represente novas opor- car avaliar como indicador de qualidade a
tunidades de aprendizagens significativas, permanência na escola, de fundamental
ou seja, uma educação numa perspectiva importância para se dar um pontapé inicial
ampliada. E essas são questões que per- no processo de melhoria da qualidade da
manecem atuais para qualquer experiên- escola pública brasileira. No entanto Freitas
cia que enverede nessa direção. (2007) chama atenção para os riscos de
No caso do Programa Mais Educa- ocultação que a avaliação pode proporcio-
ção, do ponto de vista dos constrangimen- nar, ao trabalhar com o conceito de “exclu-
tos à implementação de uma Política de são branda”, que se assemelha ao conceito
Educação Integral que contribua para o de “eliminação adiada”, ao delimitar o campo
estabelecimento de uma proposta dentro de avaliação: entendida agora como estudo
dos objetivos a que se propõe, trata-se de sistemático dos mecanismos de eliminação/
uma problemática identificada inclusive manutenção. Segundo esse autor, o campo
pelos gestores o fato de que a motivação da avaliação revela-se, transmuta-se no da
para a criação do Programa Mais Educa- hierarquia escolar. Mostra-se como produ-
ção vem da necessidade de melhoria da tor/ legitimador dessa hierarquia através
qualidade de ensino, cuja mensuração e da: 1. manutenção propriamente dita das
identificação se dá através de uma avalia- classes dominantes em profissões nobres;
ção baseada no rendimento dos alunos em 2. eliminação adiada, ou manutenção pro-
português e matemática e nos percentuais visória das classes populares em profissões
de aprovação. Quanto a essa questão, a menos nobres; 3. manutenção adiada, ou
ponderação que é feita é a que se segue: exclusão pura e simples das camadas
populares do interior da escola, ou seja,
É que tem costuras que elas não são
possíveis, são tão arbitrárias e tão a evasão; 4. eliminação propriamente dita
artificiais que elas se desmancham (privação), no sentido de impedir o ingresso
por si só. […] o IDEB é uma fotografia, das camadas populares à escola.

118 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
A visão de que o IDEB chama aten- não existe, cada território, cada bairro
ção para a necessidade de se garantir a tem uma escola que possui luz pró-
permanência na escola, colocando essa pria; e o programa Mais educação
permanência como um dos indicadores de vai trabalhar e dialogar com essas
idiossincrasias locais, quer dizer, vai
qualidade, é algo importante. No entanto
ter uma escola que dialoga mais
os procedimentos convencionais de avalia-
com a vida dos estudantes, que
ção ocultam a hierarquia escolar apresen- respeita mais a comunidade, que
tada no parágrafo anterior. E o IDEB é um toma decisões mais democráticas [...].
procedimento convencional de avaliação. (Gestor 1 em entrevista realizada em
Dessa forma, as estratégias para alcançar 24/11/2010).
melhores conceitos em relação ao IDEB,
A troca entre políticas setoriais dife-
como a aprovação automática, a progres-
rentes permite fluxos em diversas direções,
são parcial etc. são exemplos de ocultação
possibilitando criar referências para rein-
da exclusão branda ou eliminação adiada
venção da escola, a partir de experiências
que estão sendo realizadas.
mais abertas e democráticas, uma maior
[...] os critérios iniciais ditos eram de legitimação das políticas do tempo livre
que as escolas que integrariam, eram e, consequentemente, a criação de novas
as escolas com o IDEB baixo, né, que referências de qualidade para a educação
tivesse um quantitativo de estudantes
brasileira. Por outro lado, possibilitam tam-
que, agora no momento eu não tenho
o percentual, mas é o quantitativo que
bém a existência de constrangimentos de
garante a implementação na escola. várias ordens, até uma total inviabilização
(Gestor 2 em entrevista realizada em dos objetivos estabelecidos.
25/11/2010). Do ponto de vista da concepção, a
ideia de educação integral aparece em
As funções sociais atribuídas aos
várias correntes do pensamento educacio-
programas esportivos, artísticos e recreati-
nal, a partir dos quais seus formuladores
vos no Mais Educação
estruturam métodos, formas de organiza-
O Mais Educação é uma estratégia ção escolar, projetos arquitetônicos das
para induzir a ampliação da jornada escolas, programas e atividades, modelos
na perspectiva da educação integral. de operacionalização. Esse conceito remete
Então nós propusemos dez macro-
à formação humana na sua condição mul-
campos e propusemos toda uma
tidimensional e não apenas na sua dimen-
dinâmica de autonomia da escola
para a compra de materiais, para são cognitiva. Considera o sujeito como um
organização desses monitores, para sujeito corpóreo, que tem afetos, desejos,
a articulação a partir dessa figura do demandas simbólicas e está inserido num
ser comunitário, nós desencadeamos contexto de relações histórico-sociais.
muitos processos muito diferentes Segundo Cambi (1999), as experiên-
entre si [...] a escola pública brasileira cias mais significativas em torno de uma

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 109-128, jul./dez. 2013. 119


educação integral e suas respectivas sis- grande voz da pedagogia pelo menos até
tematizações foram realizadas a partir do 1950. Foi um movimento internacional,
início do século XX, impulsionadas pelas sobretudo europeu e norte-americano,
transformações ocorridas ao longo desse que influenciou fortemente as práticas
período que, por conseguinte, geraram vá- cotidianas da educação. Em síntese, o
rios movimentos renovadores da educação. ativismo se desenvolve a partir da crítica
Esse movimento demarcou uma renovação ao pensamento pedagógico tradicional,
educativa e pedagógica complexa, atin- marcado por uma instituição escolar for-
gindo muitos setores e seguindo diversos malista, disciplinar, verbalista e com uma
caminhos, entre os quais se destacam: pedagogia deontológica, abstrata e geral-
mente metafísica, e realiza uma reviravolta
1. a aventura das ”escolas novas” e
do ativismo, que inaugurou um novo radical na educação colocando no centro
modo de pensar a educação; 2. a pre- do processo educativo a criança e suas
sença de grandes filosofias-ideologias múltiplas necessidades e capacidades.
que agiram sobre a elaboração Nessa perspectiva, o saber nasce do fazer
teórica e sobre a prática educativo- e amadurece primeiro no plano operatório.
escolar (como o idealismo italiano, o A aprendizagem coloca no centro o am-
pragmatismo americano, o marxismo biente e não o saber codificado e tornado
europeu e soviético); 3. o modelo sistemático como na chamada pedagogia
totalitário de educação; 4. as elabora- tradicional.
ções do personalismo, como posição
Para Cambi (1999) o marxismo tam-
que relança os princípios cristãos da
bém pode ser classificado como participan-
educação, radicando-os justamente
na crise contemporânea; 5. O cres- te do debate do ativismo e constitutivo de
cimento científico da pedagogia e a uma ideia de educação integral. Segundo
nova relação que a liga à filosofia; 6. o autor, essa corrente de pensamento
as características da pedagogia e da elaborou um modelo teórico e prático de
educação nos países não-europeus, educação inspirado em clássicos do século
sobretudo do Terceiro Mundo, nos XIX. Entretanto o marxismo pedagógico do
quais assume um papel e uma feição século XX realizou uma “transcrição” dos
muito diferentes em relação aos resul- princípios doutrinários fundamentais com
tados europeus e norte-americanos. diversas tendências nacionais e diversas
(CAMBI, 1999, p. 513).
estratégias políticas e em relação às dife-
Não obstante a amplitude e diver- rentes fases dos movimentos revolucio-
sidade desse movimento, a renovação nários internacionais. Nessa proposição,
foi maior dentro da tradição ativista, que também está presente uma forte menção
propõe um lugar central para a escola à educação integral, tendo o trabalho como
como instituição chave da sociedade de- princípio educativo e a formação omnilate-
mocrática e de massa, nutrindo-se de um ral como a finalidade maior da educação
forte Ideal libertário. O ativismo foi uma emancipadora. Os aspectos específicos da

120 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
pedagogia marxista são os seguintes: pensamento. Nessa perspectiva, as dimen-
1. uma conjugação dialética entre sões da ludicidade, da expressividade, da
educação e sociedade, segundo a afetividade ganham relevância nos proces-
qual todo tipo de ideal formativo e sos educativos. Diversas experiências têm
de prática educativa implica valores uma forte relação com o tempo livre das
e interesses ideológicos, ligados à crianças e adolescentes, como é o caso
estrutura econômico-política da socie- do movimento dos pássaros migratórios
dade que os exprime e aos objetivos Wandervolgel. Em conseqüência, a orga-
práticos das classes que a governam; nização escolar, sua estrutura, o tempo e
2. um vínculo, muito estreito, entre os espaços pedagógicos e o métodos são
educação e política, tanto em nível
(re) configurados para dar conta dos fins
de interpretação das várias doutrinas
pedagógicas, quanto em relação às
ampliados que as políticas educacionais
estratégias educativas voltadas para o passam a assumir.
futuro, que recorrem (devem recorrer) No Brasil, as experiências de educa-
explícita e organicamente à ação ção integral têm como marco o “movimento
política, à práxis revolucionária; 3. a renovador”, articulado em 1924, em torno
centralidade do trabalho na formação da Associação Brasileira de Educação
do homem e o papel prioritário que (ABE). Antes mesmo da criação da ABE,
ele vem assumir no interior de uma vários autores já tinham se empenhado
escola caracterizada por finalidades na luta pela implantação das novas ideias
socialistas; 4. o valor de uma forma- do ensino, sob a influência do pensamento
ção integralmente humana de todo
vigente nos Estados Unidos e na Europa,
homem, que recorre explicitamente
à teorização marxista do homem reunidos sob o nome de “Movimento de
“multilateral”, libertado de condições, Escolas Novas”. Nesse período, vários livros
inclusive culturais, de submissão sobre a “Escola Nova” foram publicados,
e alienação; 5. a oposição, quase então analisando a educação sobre novos
sempre decisivamente frontal, a toda aspectos: o psicológico e o sociológico. Mo-
forma de espontaneísmo e de natu- vidas pelas ideias novas, a partir de 1922
ralismo ingênuo, dando ênfase, pelo apareceram várias reformas estaduais do
contrário, à disciplina e ao esforço, ao ensino, que foram prenúncios da refor-
papel de conformação que é próprio ma nacional ocorrida a contar de 1930.
de toda educação eficaz. (CAMBI, Essas publicações e o amadurecimento
1999, p. 556, grifos nossos).
do debate instalado culminaram com a
Como se pode observar, a ideia de publicação do “Manifesto dos Pioneiros da
uma formação que integre as múltiplas Educação Nacional”, redigido por Fernando
dimensões do ser humano é central no de Azevedo e assinado por 26 educadores
conjunto de propostas que integram o brasileiros, líderes do movimento de “reno-
movimento da escola nova e do ativismo vação da educação nacional”. Em síntese,
nas suas diversas nuanças e correntes do o movimento definiu-se como uma reação

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 109-128, jul./dez. 2013. 121


categórica, intencional e sistemática contra outro, estava a favor da ordem e não a
a antiga estrutura do serviço educacional, questionava. “Sua luta era contra a escola
considerando-a como artificial e verbalista, tradicional, não contra o Estado burguês”.
montada para uma concepção vencida. Entretanto, na prática, prevaleceu um ar-
Considerando o momento de ascensão ranjo dos interesses políticos da ala jovem
do capitalismo industrial, defendia que a e da ala velha das classes dominantes. O
educação se convertesse em um direito manifesto representava o pensamento da
de todos, acima dos interesses de classe. primeira, as Constituições e a legislação
Baseado nas novas descobertas, no campo do ensino, representaram uma tentativa de
da sociologia e, sobretudo, da psicologia, acomodação dessas duas alas, e a prática
o manifesto preconiza a mudança dos educacional representou a predominância
métodos educacionais, gerando uma nova das velhas concepções. Outros balanços
concepção de educação, segundo a qual do significado histórico do escolanovis-
o educando, com seu interesse, suas ap- mo o consideram como a expressão da
tidões e tendências, deve ser o centro da passagem do liberalismo clássico para o
ação pedagógica. Fundamentada nessa liberalismo moderno na área educacional,
nova concepção de educação, a luta ide- correspondente à situação hegemônica do
ológica empreendida pelos “Pioneiros da sistema capitalista. Nessa época, o capita-
Educação Nacional” defendia a laicidade lismo passa para sua fase monopolista, e
do ensino, reivindicava a institucionali- o Estado passa a assumir funções regu-
zação e expansão da escola pública e latórias (SAVIANI, 1989; GANDINI, 1980).
a igualdade de direitos dos dois sexos à O fato de o pensamento escolano-
educação, obtendo a reação das forças vista não ter chegado a ser predominante
oligárquicas e da Igreja Católica (ROMA- na prática educacional, não quer dizer que
NELLI, 1978). experiências paradigmáticas em torno da
Fazendo um balanço sobre o sig- ideia de educação integral não tenham
nificado histórico do “Manifesto”, Otaíza sido realizadas. Entre as mais conhecidas
Romanelli (1978) considera um avanço podemos citar a “Escola Parque” implemen-
para a época o fato de o movimento tada por Anísio Teixeira, na Bahia (1952) e
renovador proclamar a educação como em Brasília (1960-1964); os CIEP’s na déca-
um dever do Estado, a ser assegurado da de 80, implementado no Rio de janeiro,
pela escola pública gratuita, obrigatória por Darcy Ribeiro, durante o governo de
e leiga, tratando a educação como um Leonel Brizola; e outras experiências mais
problema social, e não como um privilé- recentes como os CEU’s, em São Paulo, o
gio. De um lado representou a tomada Bairro Escola, em Nova Iguaçu e a Escola
de consciência dos educadores a respeito Cidadã, em Porto Alegre etc. É um dos obje-
da defasagem da educação brasileira em tivos específicos desta pesquisa realizar um
relação ao tipo de sociedade e ao modelo inventário das experiências brasileiras em
de desenvolvimento da época, mas, por torno da educação integral, sobretudo as

122 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
mais recentes, visando levantar possíveis experiência escolar. Considerando
modelos de implementação. Porém, a título a escola como dizia o Anísio, essa
de primeiras aproximações, passaremos máquina de democracia, como essa
a expor um breve panorama das experi- máquina que quebra com esse de-
terminismo que historicamente tem
ências, a meu ver, mais significativas de
marcado nossa sociedade, aqueles
educação integral.
que têm todas as oportunidades e
A proposta de Educação Integral do aqueles que não têm nenhuma; se
Programa Mais Educação se diferencia a escola só oferece isso às classes
das experiências antes vivenciadas na populares é muito difícil que no país
história da Educação Brasileira. Nessa nova se faça uma democracia plena. Esses
proposta, a articulação com programas componentes novos, todos eles, são
na área cultural e esportiva assumem a condição necessárias para que essas
dianteira, no sentido de possibilitar um crianças mergulhem nessa civilização
sentimento de superação dos entraves que pode fazer diferença na sua vida.
relativos à organização do tempo escolar (Gestor 1 em entrevista realizada em
24/11/2010 em Brasília).
e do espaço físico escolar. Para tanto,
considera-se que:
A importância é absoluta porque nós Espaços e Equipamentos no Programa
estamos falando de uma plataforma Mais Educação – a efetividade da
de educação integral, o quê que de- proposta de criação de territórios
volve mais a unidade para as pessoas educativos
que vivem no contexto de tanta de-
sumanidade do que o encontro com É um desafio essa questão da infra-
a arte, com a cultura, o encontro com estrutura. Ela exige tanto que a gente
o esporte, que traz a possibilidade de pense na reorganização do espaço
socializar-se com os outros através do da escola, mesmo que a escola faça
jogo, dos esportes e todas estas áreas uma organização de tempo e espaço
que nós propusemos na configuração educativo para além de suas frontei-
do Mais Educação, então a impor- ras, que é o desejável; ela tem que
tância é enorme, porque se trata de ter refeitório, ela tem que ter cozinha,
pensar qual é o horizonte formativo banheiro, biblioteca, quadra. Só que
do aluno da educação integral, até este é um país que foi tacanha, pois ta
onde a gente vai? Nós temos sido cheio de gente inaugurando escolas
muito tacanhas, pois você reduz a com duas salas, sala de refeição e um
vida da criança a um exercício de me- banheiro, e se chama isto de escola
mória, as vezes transcende a memória [...]. O processo civilizatório vai chegan-
e vai a um exercício de cognição no do e, quando a gente fala de escola, a
campo do português, no campo da gente está falando condições plenas
matemática, da geografia, da história para os estudantes. E o Ministério da
e isso acaba se transformando na Educação através do PAR e através

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 109-128, jul./dez. 2013. 123


do PDDE tem disponibilizado recursos produção de uma escola pobre para os po-
para estados e municípios para essas bres, que parece despregada da produção
pequenas adequações e reorgani- de escolas modernas, “de primeiro mundo”,
zação do espaço. [...] o governo Lula que desde os tempos da colônia se prova
colocou a disposição dos estados e que é possível produzir por aqui.
municípios vários editais nas várias
A expansão escolar no Brasil consti-
áreas que permitiram a construção
tui-se, de fato, com essa marca. A produção
de centros tecnológicos, de museus,
de bibliotecas, e a gente vai ter que de uma escola precária para o atendimen-
avançar nisso, nós estamos no meio to dos segmentos sociais mais pobres,
do caminho. (Gestor 1 em entrevista comumente vista como uma “expansão
realizada em 24/11/2010). desordenada”, é orgânica ao baixo alcance
dos projetos inovadores, do fato de que
A expansão do tempo de escolariza- estes, ainda que fossem concebidos para
ção no Brasil vem se dando em um ritmo chegar a todos, jamais chegariam, pois seu
lento e oscilante, tendo em vista as impre- alcance não dependia da vontade de quem
cisões da lei e sua manipulação conforme produzia os projetos, mas das relações que
interesses de parcelas da população. Trata- formavam a base real da sua implemen-
se de uma forma de expansão do alcance tação. A função real assumida por esses
da educação mínima que comporta movi- projetos implica que eles se realizem como
mentos internos fortemente contraditórios. uma chance para poucos e uma promessa
Segundo Algebaile (2009), não raramente, para muitos, e sua eficácia depende da
a ampliação do alcance populacional da omissão desse horizonte restrito, da ilusão
educação mínima – definida em termos do de que as limitações da escola “de primeiro
nível de ensino obrigatório, do número de mundo” vêm de fora, da força inexorável do
anos de estudo de frequência obrigatória e “atraso” da escola de baixa categoria que
da faixa etária correspondente – foi viabili- se reproduz “sem controle”.
zada por meio da manipulação de outras Apesar dessa desqualificação e do
regulações que, a rigor, também delimitam esvaziamento do tema, a escola continuou
patamares mínimos para a realização do se expandindo. Ora por meio da atualiza-
nível de ensino obrigatório, ou seja, as ção da expansão precária, ora por meio
regulações sobre o número de dias letivos da “recriação”, em nova escala, de modelos
anuais, a carga horária mínima anual e “modernos” de escola, que serviriam para
o número de horas da jornada escolar suprir a demanda da nata da sociedade
diária. A maior oferta de vagas no nível de por escola de boa qualidade ou para
ensino obrigatório teve como contrapartida atender, residualmente, parcelas ínfimas
“pequenos ajustes” locais que, em geral, das classes populares, instaurando a ilusão
representaram “encurtamentos” no tempo e de que aquele tipo de escola chegaria a
no espaço educativo escolar. Dessa forma, todos, no futuro. Vista como transitória, a
para a autora, permanece a perspectiva de escola precária se tornaria mais suportável.

124 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
Algumas propostas de escola de tempo que ta com..., reorganizando espaços,
integral, nos anos 1980, seriam, talvez, alguns estão fazendo recapeamento
um exemplo extremo dessa recriação. No pra poder a atividade acontecer na-
entanto, na própria “concepção ampliada” quele local, outras estão organizando
banheiro, que as vezes o banheiro
do espaço e das “funções” escolares que
não dá para o banho, eles tão reor-
esses projetos traziam (a escola “com ba-
ganizando, existe umas adequações
nho tomado”), é possível notar que há uma de espaço dentro da escola, mas a
mutação na forma da escola, de maneira gente ta achando muito interessante
que a ideia de uma escola de qualidade que as escolas tão buscando espaço,
para os pobres não se resumiria mais à além dos muros. Então a gente já tem,
extensão do modelo escolar das elites para eu to fazendo agora recentemente, a
o conjunto dos despossuídos. gente fez na última formação, eu fiz
Essa desqualificação, por sua vez, um material pra elas responderem,
não “nasceu sozinha”, mas como a parte as tutoras e a gente ta com esse
mais visível de um fenômeno amplo de material,que a gente ta fazendo um
apanhado de quais as escolas estão
“expansão escolar”, ao longo do qual a
funcionando além dos muros e quais
escola foi “ampliada para menos”. A parte
os locais; então a gente vai ter esse
mais significativa dos “deslimites” dessa dado da parceria que a escola fez
expansão não concorreu para uma esco- e do diálogo que a escola fez com
la aberta a usos criadores que levassem a comunidade. (Coordenadora do
a uma insurreição, a uma inflexão dos Programa Bairro Escola da Prefeitura
rumos. Concorreu, principalmente, para do Recife em entrevista realizada
torná-la permeável a novas e reiteradas pelo professor Jamerson Almeida em
utilizações privadas e instrumentais, em- 25/11/2010 em Brasília, durante o Se-
pobrecedoras. Suas ampliações foram minário Internacional de Educação In-
feitas à custa de encurtamentos, e não só tegral em Jornada Ampliada, realizado
pelo MEC – respondendo à questão:
na educação, mas também na esfera mais
São mais duas perguntas em relação
ampla da política social. à questão da infraestrutura. Como o
Devido a esses encurtamentos, o Programa está ajudando as escolas a
Programa Mais Educação, além de propor enfrentar problema de infraestrutura,
uma Escola que não precise “tomar banho”, em particular, a falta de espaço e de
como as experiências da década de 80 dos equipamento pra essas atividades
Cieps, e, ao mesmo tempo, venha a socor- esportivas, artísticas e de lazer?)
rer a realização de outras políticas sociais
vítimas dos encurtamentos previstos na Conclusões
conjuntura atual, apresenta-se como a saí-
da possível a uma problemática sem saída: Segundo Algebaile (2009), existem
É. Isso aí é uma outra coisa que a vínculos históricos entre a expansão es-
gente tá, é os arranjos, tem escolas colar pública e a gestão da pobreza no

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 109-128, jul./dez. 2013. 125


contexto brasileiro, mostrando como a lenta tanto é importante destacar algo que nos
universalização do acesso à escola ele- chama atenção:
mentar para os pobres foi acompanhada Fica claro na análise que esta reali-
de formas de expansão da esfera escolar dade não resulta de um ato impostor,
que resultaram numa espécie de “amplia- mas é uma construção social do pro-
ção para menos”. Isso se dá devido ao jeto societário da burguesia brasileira,
baixo investimento na educação pública; em que a expansão e o robusteci-
à reiterada precariedade das instalações mento para menos expressam-se na
escolares e das condições de trabalho do- política educacional com particula-
cente; e ao uso instrumental da escola para ridades em conjunturas específicas,
a realização de tarefas que deveriam estar mas de forma contínua. (ALGEBAILE,
2009, p. 22).
a cargo de outras políticas sociais, como
as de saúde, trabalho, cultura e assistência, Trata-se de um projeto societário
que desviaram o trabalho escolar de sua que não garante a construção de uma
especificidade e esvaziaram a escolariza- proposta que realmente construa a pers-
ção como direito social ao conhecimento pectiva de qualidade da Escola Pública
e à cultura. Brasileira. A perspectiva de reedição da
O que se nota é um conjunto de proposta escolanovista presente na pro-
medidas paliativas que não objetivam a posta do Programa Mais Educação, e já
resolução das estruturas essenciais do que amplamente criticada por Saviani (1989),
vem ocorrendo no âmbito educacional. também é criticada na seguinte conclusão
Para Algebaile (2009, p. 21), numa socie- de Algebaile (2009, p. 22):
dade que se ergueu pela desigualdade e [...] análises que mostram que, defini-
se alimenta dela, este fenômeno acontece tivamente, a educação escolar básica
novamente. O Programa Mais Educação, (fundamental e média), pública, laica,
sob o discurso de promover a educação universal, unitária e tecnológica, que
integral através da ampliação da jornada desenvolva as bases científicas para
escolar da escola pública, vem ampliando o domínio e a transformação racio-
as responsabilidades desta, intensificando nal da natureza, a consciência dos
com isso o trabalho da escola e o trabalho direitos políticos, sociais, culturais e
a capacidade de organização para
docente em particular. Vem propondo uma
atingi-los, nunca se impõe como ne-
ampliação para menos dessa forma, como
cessidade, e sim como algo a conter
chama atenção Algebaile (2009). No en- para a classe dominante brasileira.

126 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
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Recebido em abril de 2012


Aprovado para publicação em julho de 2013

128 Katharine N. P. SILVA; Jamerson Antonio de A. da SILVA. As políticas sociais e a “nova estratégia”...
Avaliação Educacional: concepções de formandos
em Pedagogia
Educational Evaluation: conceptions of graduatings
in Pedagogy
Carlos Alberto Vasconcelos*
* Prof. Dr. do Depto. de Educação e do Programa de
Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática
(NPGECIMA) da Universidade Federal de Sergipe. E-mail:
geopedagogia@yahoo.com.br

Resumo
O presente texto descreve experiência vivenciada na disciplina Avaliação Educacional. Parte-se de conhe-
cimentos teóricos e da prática docente dos alunos/professores envolvidos, que, até então, demonstravam
pouco conhecimento da temática abordada e encontravam-se, em sua maioria, enraizados em uma pos-
tura tradicional de avaliação. Com discussões, exemplificações, metodologias, a concepção de avaliação
foi alterada, concebendo-a como construção do conhecimento, integrante de um processo contínuo e
duradouro, que envolve todo o processo educacional.
Palavras –chave
Compreensão de Avaliação. Formandos em Pedagogia. Experiência.

Abstract
This paper describes the experience lived in Educational Evaluation discipline. This is based on theoretical
knowledge and practical teaching of students and teachers involved, who have since demonstrated
little knowledge about the thematic addressed and were mostly rooted in a traditional posture of eva-
luation. With discussions, exemplifications, methodologies, the conception of evaluation was changed,
conceiving it as a knowledge building, integrant of a continuous and lasting process, involving the entire
educational process.
Key words
Comprehension of Evaluation. Graduatings in Pedagogy. Experience.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 129-141, jul./dez. 2013
Introdução nortearam o desenvolvimento das inves-
tigações do trabalho durante o percurso
O presente texto relata experiências da disciplina.
vivenciadas e concepções dos formandos Relevantes, também, na análise
do curso de pedagogia da Universidade foram os discursos que circulavam no
Federal de Sergipe, a partir da disciplina interior das suas práticas, especificamente
Avaliação Educacional, no 2o semestre de quando nas escolas. Assim, para compre-
2010, o qual nos possibilitou identificar as ender como os alunos/docentes pesquisa-
experiências construídas pelos alunos no dos implementavam a avaliação dentro da
decorrer do curso e fazer uma associação nova lógica de tempos e espaços escolares
entre sua prática profissional e as teorias e perceber os significados que esses sujei-
discutidas, tendo em vista que, do universo tos atribuíam à sua prática docente, foram
de alunos, 55% já tiveram ou têm experi- selecionados trechos sobre conceitos/no-
ência com/no magistério. ções recorrentes de avaliação, expressões,
Quanto aos procedimentos metodo- termos e metáforas utilizados por eles ao
lógicos da investigação, optou-se pela pes- se referirem ao trabalho pedagógico, a seus
quisa teórico/bibliográfica, com a técnica alunos e professores, à escola/universidade
de observação, levando em consideração e a si próprios.
os depoimentos dos alunos, textos discu- Como referencial teórico, optou-se
tidos, sondagem inicial e uma avaliação por utilizar a literatura sobre avaliação
final para averiguação dos resultados ob- da aprendizagem. Nesse sentido, Berger
tidos no percurso, objetivando um estudo (2002); Haydt (1997); Hoffmann (1993a,
de natureza qualitativa, realizado com a 1993b); Luckesi (2002); Esteban (2002);
inserção do pesquisador e pesquisados Vasconcelos (1995), entre outros autores,
na realidade escolar. oferecem contribuições significativas
A observação incidiu sobre uma quanto aos significados, formas e tipos de
série de aspectos que revelaram, de forma avaliação com o desafio de torná-la um
explícita ou implícita, entendimento das processo formativo, construído ao longo
questões avaliativas, de seus significados do processo ensino-aprendizagem.
e concepções sobre avaliação e como Desta feita, partiu-se do pressuposto
avaliar. Nesse sentido, foram os processos e de que os alunos – que na maioria das
as vivências que constituíram a concepção vezes são profissionais e, em especial,
a ser formada. Alguns questionamentos do magistério –, têm certo conhecimento
foram objetos de investigação, a exemplo sobre a temática e dedicam-se a ela no
de cotidiano profissional, experiências seu trabalho. Então, estarão nos embates
marcantes no campo da avaliação, es- do cotidiano reconstruindo a sua prática e
colha do curso de pedagogia, aplicação concepção de avaliação. Ao fazerem essa
dos conhecimentos adquiridos no curso e opção, esses profissionais enfrentarão o
entendimento de avaliação. Essas questões desafio de romper com a cultura escolar

130 Carlos A. VASCONCELOS. Avaliação educacional: concepções de formandos em Pedagogia


fragmentada e proporão mudanças na e sistemática que define a tomada de
cultura profissional, modificando uma vi- decisões (DALBEN, 2005).
são tradicionalista de avaliar, que significa Reconhecemos que essa temática
promover a emergência de novas relações não está suficientemente amadurecida no
entre os elementos pedagógicos. Isso discurso acadêmico e nas práticas profis-
representa um desafio e faz emergir um sionais, quer no tocante à compreensão
novo modo de pensar e fazer a educação. de conceitos básicos e às modalidades e
Feitas essas considerações, cabe, funções que a avaliação incorpora, quer
pois, definir o retrato deste trabalho. Assim nos aspectos da sua aplicação concreta
sendo, o presente texto estrutura-se da se- nas situações de ensino e aprendizagem.
guinte forma: inicialmente será apresenta- Situando-nos, principalmente, no âmbito
da uma breve caracterização da avaliação da avaliação das aprendizagens, procu-
como um todo, destacando contribuições ramos, neste texto, sistematizar alguns
e teóricos. Em seguida, caracterizar-se-á conceitos e preocupações essenciais des-
o foco abordado no curso, a partir dos sa área, tendo em vista que a avaliação
expoentes e teorias mais enfatizadas; e no é uma atividade subjetiva, envolvendo
último tópico inclui-se a parte empírica da mais do que “medir e testar”, a atribuição
pesquisa, tendo em vista as experiências de um valor de acordo com critérios que
construídas e absorvidas pelos alunos, envolvem problemas diversificados, entre
culminando com algumas considerações estes, técnicos e éticos.
finais pertinentes às vivências e teorias. Diversos são os prismas teóricos
que envolvem a avaliação; no entanto
1 Discorrendo sobre avaliação: ex- vamos expor algumas concepções para
poentes e contribuições melhor entendimento de suas nuances e
aplicabilidade.
Nunca se falou tanto de avaliação Começou-se a falar na avaliação
como atualmente. De fato, essa área cons- aplicada à educação com Tyler (1978),
titui uma das vertentes abordadas nos considerado “o pai da avaliação educa-
estudos realizados durante o período de cional”. Ele a encara como a comparação
experimentação das reformas educativas, constante entre os resultados dos alunos,
em especial no que diz respeito ao ensino ou o seu desempenho e objetivos, previa-
e aprendizagem. mente definidos. “A avaliação é, assim, o
A avaliação se faz presente em processo de determinação da extensão
todos os domínios da atividade humana. com que os objectivos educacionais se
O “julgar”, o “comparar”, isto é, “o avaliar” realizam” (TYLER, 1978, p.68).
faz parte de nosso cotidiano, seja através Segundo Nevo (1990), quase tudo
das reflexões informais que orientam as pode ser objeto de avaliação, constituindo
frequentes opções do dia a dia, seja, for- a avaliação das aprendizagens uma parte
malmente, através da reflexão organizada da avaliação do sistema educativo.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 129-141, jul./dez. 2013. 131


Perrenoud (1999 e 2001), por seu aprendizagem, expresso na teoria e
lado, considera que a avaliação participa na prática pedagógica.
na “génese da desigualdade” existente Essa ideia de que avaliar o processo
ao nível da aprendizagem e do êxito dos de ensino e de aprendizagem não é uma
alunos. A avaliação escolar, na sua forma atividade neutra ou destituída de inten-
corrente, prática, confirma uma avalia- cionalidade faz-nos compreender que há
ção de referência normativa. A função um estatuto político e epistemológico que
reprodutora da escola, para esse autor, dá suporte a esse processo de ensinar e
concretiza-se através de práticas avaliativas de aprender que acontece na prática pe-
de referência normativa que reproduzem dagógica em que a avaliação se inscreve.
as desigualdades sociais. Sobre a importância dessa compre-
Como prática formalmente orga- ensão, Cunha (1998, p. 17), que pesquisou
nizada e sistematizada, a avaliação, no as concepções de conhecimento que fun-
contexto escolar, realiza-se segundo ob- damentam a prática pedagógica no ensino
jetivos escolares implícitos ou explícitos, superior, afirma:
que, por sua vez, refletem valores e normas
A compreensão de que a concepção
sociais. Segundo Villas Boas (1998, p. 21),
de conhecimento preside a definição
“as práticas avaliativas podem, pois, servir da prática pedagógica desenvolvida
à manutenção ou à transformação social”. na Universidade foi muito importante
Ainda para essa autora, a avaliação escolar para ultrapassar a análise simplista,
não acontece em momentos isolados do realizada sobre as regras didáticas
trabalho pedagógico; ela o inicia, permeia aplicadas ao ensino superior. Com-
todo o processo e o conclui. No entanto, preender que ensinar e aprender
em qualquer nível de ensino em que estão alicerçados numa concepção
ocorra, a avaliação não existe e não opera de mundo e de ciência facilitou
uma visão mais global e elucidativa,
por si mesma; está sempre a serviço de
especialmente numa época em que
um projeto ou de um conceito teórico, ou a supremacia da ciência tem sido
seja, é determinada pelas concepções que amplamente reconhecida.
fundamentam a proposta de ensino, como
afirma Caldeira (2000, p. 122): Endossando essa mesma posição,
Álvarez-Méndez (2002), ao indagar a res-
A avaliação escolar é um meio, peito do objetivo da avaliação, ou sobre
e não um fim em si mesma; está
por que e para que avaliar, sustenta que
delimitada por uma determinada
teoria e por uma determinada práti- a resposta nos remete, necessariamente,
ca pedagógica. Ela não ocorre num ao sentido que tenha o conhecimento ou
vazio conceitual, mas está dimen- que a ele seja atribuído. Segundo o autor,
sionada por um modelo teórico de “[...] o conhecimento deve ser o referente
sociedade, de homem, de educação teórico que dá sentido global ao processo
e, conseqüentemente, de ensino e de de realizar uma avaliação, podendo diferir

132 Carlos A. VASCONCELOS. Avaliação educacional: concepções de formandos em Pedagogia


segundo a percepção teórica que guia a de trabalho e sociais, mas sim através das
avaliação” (ÁLVAREZ-MÉNDEZ, 2002, p. 29). relações simbólicas.
Aqui estão o sentido e o significado da ava- Muitas foram as defesas dessas
liação e, como substrato, o da educação. ideias, cuja difusão ficou conhecida como
Portanto, para esse autor, a avaliação “Teoria da Violência Simbólica”.
está estritamente ligada à natureza do co- Os autores fazem questão de ressal-
nhecimento. E, uma vez reconhecida essa tar as diversidades de culturas que muitas
natureza, a avaliação deverá ajustar-se a vezes reproduzem a cultura dominante.
ela se quiser ser fiel e manter a coerência Desta feita, a cultura dominante sobrepõe
epistemológica. à cultura subordinada.
Segundo os autores, surge um ato de
2 Debatendo os principais teóricos violência diante da imposição ao educan-
enfatizados no curso do de princípios culturais, obrigando este a
conviver com determinados “habitus” origi-
A partir de embates travados em sala nários da classe dominante. Nesse sentido,
de aula, esboçou-se constructo baseado os especialistas em educação e professores
em autores, precursores da avaliação, na poderão assumir o papel de representantes
perspectiva de uma sociedade capitalista, da classe dominante quando revestidos
que, na ótica de Berger (2002), remete à de autoridade pedagógica originada da
avaliação para uma questão epistemológi- ideologia dominante.
ca e política na qual o poder está sempre Defendem que alunos oriundos da
presente, seja “para aprovar ou para re- classe dominante conseguem favoreci-
provar, seja para elogiar ou para punir”, e mentos, conforme seus padrões culturais
outros bastantes influentes no Brasil. extraídos do seio familiar, por parte do
Nesse sentido, expomos as concep- sistema educacional, que se configura
ções de avaliação em concordância com mediante padrões estabelecidos, excluin-
a relação escola/sociedade em Bourdieu, do toda e qualquer tentativa por parte
Passeron e Michael Foucault e os brasilei- daqueles desprovidos do capital cultural e
ros, mais discutidos nas aulas ministradas, pertencentes às camadas populares.
a exemplo de Cipriano Carlos Luckesi e O exame, para os autores, correspon-
Jussara Hoffman. de a um instrumento de reprodução das
Conforme Bourdieu e Jean Claude relações sociais e da produção da socieda-
Passeron, que se baseiam no sistema ca- de capitalista, pois separa os indivíduos de
pitalista francês, a escola é uma instituição acordo com o seu “sucesso”. Contribui para
que preencherá as funções estratégicas de determinação da aptidão para ascensão
reprodução cultural e a reprodução social aos graus mais elevados que oferecerão
da estrutura de classe. Afirmam que não mais prestígio social.
basta que as reproduções estejam vincu- [...] o exame exprime, inculca, sanciona
ladas somente com as relações factuais e consagra os valores solidários com

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 129-141, jul./dez. 2013. 133


uma certa organização do sistema escolar”. Esse autor continua expondo
escolar, com uma certa estrutura do que isso acontece porque a escola não é
campo intelectual e, através dessa a única agência de violência. Ele cita as
mediação, com a cultura dominante. igrejas, os partidos políticos e os meios de
(BOURDIEU; PASSERON, 1975, p. 155). comunicação de massa, os quais, muitas
Esses autores destacam o exame vezes, veiculam mensagens contraditórias
como um instrumento de repreensão, e são mais atualizadas que a escola.
sansão, conservação e reprodução cultural Outro expoente que contribuiu e
e social. Expõem a dualidade de funções interferiu na discussão foi Michel Foucalt,
do exame: seleção de indivíduos mediante alegando que a avaliação é utilizada para
seu sucesso e de hierarquização social a formação de personalidade do indivíduo
que direciona os indivíduos para certas e o controle de sua conduta para torná-lo
carreiras profissionais. O exame, além de um ser submisso à ordem.
selecionar e eliminar indivíduos, limita o Para Foucault (1987), todo o pro-
desenvolvimento do aluno quando não cesso de punição executado pela escola
valoriza suas capacidades. é originário das mais diversas punições
Nessa ótica, fazem-se severas críticas do século XVII e XVIII. A escola apoderou-
ao exame por ser uma forma de eliminação se dos mais diversos instrumentos de
de candidatos em face da imposição da punição, que vão do uso da palmatória,
cultura dominante. Justifica-se tal assertiva ficar ajoelhado em grãos de milho etc.,
com o exemplo das repetências existentes até as mais diversas advertências, como:
na passagem da 1a e 2a séries do ensino atribuição de notas vermelhas, desprezo
fundamental e no ingresso ao ensino e retenção do aluno, privando-o dos mo-
superior (vestibular). mentos de lazer.
Ainda é possível comprovar as afir- O autor destaca as disciplinas como
mativas dos autores no dizer de Giroux meio controlador e o saber como consequ-
(1986, p. 115): “Os seres humanos não são ência de um poder. O espaço físico da sala
nem sujeitos homogeneamente constituí- de aula corresponde a uma organização
dos, nem atores passivos”. Schutz (2002, p. discriminatória, e o professor ocupa uma
68) diz: “O mundo objetivo aparece como posição de destaque que permite controlar
uma rede de intersubjetividade construída o aluno. E o aluno, sabendo desse controle,
a partir de relações que dirigem para o ‘ou- mantém-se intacto às ordens, obedecendo
tro’ e que adquirem significado quando há a qualquer representação hierárquica.
uma interação no mesmo mundo social”. Foucault afirma que o espaço físico
Snyders (1977, p. 173) afirma que, “diante da sala de aula continua o mesmo. O poder
das relações conflituosas da sociedade de controlador do professor é o mesmo. Ele
classe, o aluno não será um ser passivo ressalta a utilização de diversas formas de
nem receptivo, mas participante, que reivin- exercícios para facilitar a disciplina do alu-
dica e luta contra as situações do exame no, oriunda da história da disciplinarieda-

134 Carlos A. VASCONCELOS. Avaliação educacional: concepções de formandos em Pedagogia


de. Nesse sentido, o exame é um dispositivo diário e no boletim servirá de atestado de
da disciplina; produz o poder disciplinar idoneidade ou de fracasso.
correspondente ao ato de submissão. O citado autor salienta que a ideia
No seio das discussões brasileiras, de erro corresponde a um padrão consi-
tem-se Luckesi, que corrobora com as derado correto. Nesse caso, defende a pos-
concepções de Bourdieu e Passeron e sibilidade de diálogo do educador com o
até mesmo de Foucault, quando desta- educando, a fim de reorientá-lo e também
ca a fragilidade da escola brasileira na de redimensionar sua prática docente.
democratização do saber em detrimento Outro expoente que tem fornecido
da baixa oferta de vagas escolares e das contribuição a partir de seus estudos para
más condições de ensino, privando muitas a avaliação é a educadora Jussara Hoff-
crianças de prosseguirem nos estudos. mann, através de questionamentos e larga
A escola, conforme Luckesi, impõe a experiência vivida com docentes nos mais
avaliação como forma de assimilação de diversos níveis de ensino.
conteúdos. Desta feita, sugere um clima A autora tem embasado as suas
democrático entre o indivíduo e a socieda- colocações sobre avaliação mediadora na
de, alunos e professores para que possam pedagogia libertadora proposta por Paulo
surgir situações desafiadoras. Freire e nas perspectivas construtivistas.
Segundo Luckesi (1990), a avalia- Diante da convivência com os professores
ção deve assumir um papel fundamental e da análise do cotidiano, Hoffmann vem
no acompanhamento e reorientação de analisando a prática avaliativa destes e
processo de construção dos resultados constatando que essa é uma reprodução
esperados, através das decisões tomadas de vivências com os estudantes.
frente às informações obtidas. Ele não vê Ela percebe que os professores
avaliação como somente obtenção de não conseguem definir o significado de
aprendizagem, mas sim como construção avaliação e resume o processo a partir de
pedagógica em prol de uma democratiza- aplicações de testes e atribuição de notas
ção e qualidade de ensino. ao aluno. Os docentes não conseguem
Esse autor destaca as formas ina- associar a educação com a avaliação.
dequadas de avaliação como: testes Essa autora compreende o teste
mal- elaborados, “testes relâmpagos” para como um instrumento de constatação e
disciplinar, leitura inadequada e utilização mensuração, no qual seus resultados são
insatisfatória dos resultados e adoção de expressos através de números. Critica a
tipos diferenciados de testes de acordo com concepção reducionista da avaliação que
o comportamento do aluno. enaltece a definição de objetivos sobre
Após as aplicações dos testes, os o conteúdo e a verificação do alcance
professores rotulam os alunos e separam destes, através de testes, e que despreza
os que conseguiram atingir os padrões o cotidiano do aluno e as aprendizagens
daqueles tidos como incapazes. A nota no conquistadas por este em sala de aula.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 129-141, jul./dez. 2013. 135


O aluno é aprovado seguindo padrões É mister salientar que, para discutir
elitistas e discriminatórios. Como salienta: a avaliação propriamente dita, foi neces-
O professor cumpre penosamente sário mencionar conceitos correlatos, como
uma exigência burocrática, e o aluno, currículo e prática educativa, perpassando
por sua vez, sofre com o processo pelo contexto educacional de forma geral,
avaliativo [...] ambos perdem nesse pois não se compreende a avaliação sem
momento e descaracterizam a ava- o entendimento das redes de relações
liação de seu significado básico de estabelecidas com o currículo, com a or-
investigação e dinamização do pro- ganização do trabalho pedagógico, enfim,
cesso de conhecimento. (HOFFMANN com a prática escolar cotidiana. Nessa
1993a, p. 19). perspectiva, a avaliação só é compreen-
A expoente da avaliação “mediadora” dida numa determinada relação. Assim, o
defende que esta concepção terá como aprofundamento dessa análise provocou
foco o desenvolvimento máximo possível o (re)significar da própria concepção de
do educando, ilimitado e com objetivos cla- educação, escola, currículo e, portanto, de
ros. É percebido que a postura dela segue avaliação.
a mesma defendida por Luckesi no tocante No primeiro momento, de sondagem
ao erro. Ela valoriza a sua observação. As- inicial, os sujeitos da pesquisa apontaram
segura que a criança procede por tentativas seus conhecimentos/concepções sobre
e erros, corrigindo e ajustando suas ações avaliação. Ressalta-se que, nessa fase,
em razão de resultados obtidos. Esses erros muitos ainda não apontavam para a
são denominados “construtivos”. avaliação como processo percorrido pelo
Ela apresenta um novo enfoque aluno na construção do conhecimento
sobre a avaliação, deixando de ser um e não somente como produto dinâmico,
ato centrado nas mãos do professor para diário, investigativo e formativo.
ser um processo dialógico e cooperativo Eis alguns depoimentos1 dos alunos
entre as partes. Essa interação se tornará sobre a avaliação:
inovadora e quebrará as relações de poder O ato de julgar ou não a aptidão
presentes na avaliação tradicional. do indivíduo em relação a um dado
conhecimento/área do saber. É uma
3 Concepções, sentidos e significados etapa muito complexa da atividade
da avaliação para os alunos docente. Sua principal função é
determinar o grau de alcance dos
Pretende-se, neste tópico, identificar objetivos estabelecidos pelo professor.
as principais questões discutidas e aponta- Se constitui também como faremos a
das pelos alunos, objeto desta pesquisa, via
escrita/depoimentos. Os sujeitos estudados 1
As transcrições da escrita dos alunos neste traba-
foram os alunos formandos do curso de lho estão apresentadas na íntegra. Os alunos são
pedagogia nos turnos diurno e noturno. identificados por símbolos (letras).

136 Carlos A. VASCONCELOS. Avaliação educacional: concepções de formandos em Pedagogia


crítica quanto a nossa postura frente dos define que a avaliação é um método
a um determinado ato (aluno A); utilizado para acompanhar o desenvol-
Uma das várias formas que o profes- vimento da aprendizagem do educando,
sor utiliza para perceber se os con- um meio de perceber se a metodologia
teúdos estão sendo compreendidos aplicada pelo professor alcançou os obje-
dentro de suas disciplinas (aluno B); tivos. Significa dizer que deve ser contínuo
É a forma de se verificar se houve e diário não só para o aluno, mas também
aprendizagem por parte dos alunos, para a escola e para o professor. São ações
levando em conta o que já sabiam e que devem refletir de maneira geral a vida
o que construíram conosco (Aluno C); escolar como um todo. Para esses alunos,
a finalidade da avaliação é a melhoria
E ainda: do ensino, da aprendizagem e do espaço
É avaliar o ser humano como um escolar.
todo, como suas habilidades, possi- Poucos estudantes relatam que não
bilidades e capacidade sem se deter se sentem seguros para emitir sua opinião
apenas nos conhecimentos de con- sobre o processo avaliativo; afirmam ser
teúdos (Aluno D); este complexo, devido à realidade em que
Em minha opinião, vem sendo vista se encontram os alunos e a própria escola.
somente como método de analisar o Somente 2% dos alunos não expressaram
aluno. Quando na verdade deveria opinião.
servir para analisar as avaliações Por outro lado, ficou claro nos de-
como um todo: o que há de errado poimentos que os alunos tinham consci-
com a disciplina? Com o professor?
ência da necessidade de mudar o foco da
Com a própria escola? A avaliação
avaliação, tornando-a mais participativa,
deve ser usada para buscar melho-
ramentos (Aluno E); e que sentiam necessidade de incorporar
conhecimentos pertinentes, no sentido de
É uma forma de saber como os outros melhorar sua prática pedagógica, bem
alunos estão assimilando os conteú-
como da importância desse processo.
dos transmitidos. Essa avaliação deve
Ao término do curso, em outro mo-
ser diária, pois não se deve avaliar um
aluno a partir de uma prova, e sim do mento, foi aplicada a questão: qual a sua
seu empenho diário (Aluno F); concepção para avaliação e, mais especi-
ficamente, avaliação da aprendizagem e
Penso que a avaliação é um processo
para que avaliar?
através do qual se observam os pro-
Seguem exemplos das respostas/
gressos bem como as fragilidades dos
alunos. Aquele que diz ser avaliador depoimentos2 ao término do curso:
deve repensar sua prática (Aluno G);
2
Estas respostas referem-se, na verdade, a três
Perante os diversos depoimentos, questões, e não necessariamente foram dos mes-
percebe-se que a maior parte dos forman- mos atores dos depoimentos iniciais.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 129-141, jul./dez. 2013. 137


A avaliação da aprendizagem serve A avaliação é um processo contínuo,
como algo que inclui a todos, não uma dinâmica que decorre durante o
deve ser classificatória, seletiva ou ano. Diferente do exame, que é clas-
pontual, mas um processo contínuo, sificatório e excludente, a avaliação
feito de diversas formas. É preciso tenta incluir o aluno, no entanto, o
avaliar para obter um diagnóstico do exame costuma ser confundido, ou
desempenho do aluno, e refletir sobre até mesmo comparado à avaliação. [...]
os métodos aplicados (Aluno D); Avaliar a aprendizagem do educando
não pode se resumir em testes, é um
Avaliar é o ato de analisar, verificar
processo contínuo. Por conta disso,
o grau de conhecimento assimilado
é difícil conceituar a avaliação da
por determinado indivíduo, daquilo aprendizagem, quando as escolas
que lhe foi transmitido. É também nem sabem distinguir sobre testes
fazer julgamento com o propósito e exames. Para que avaliar? Porque
construtivo e avaliador e não punitivo deve haver um acompanhamento da
[...] se dará por meio de processo lento, escola sobre a prática pedagógica
pois requer tempo para analisar. A (Aluno M).
avaliação sempre será necessária
para ajudar a conduzir os que estão De acordo com os depoimentos dos
em processo de construção do conhe- formandos, ao longo do curso, percebe-se
cimento (Aluno O); que suas concepções foram ampliadas,
tendo em vista os conteúdos absorvidos,
A questão da avaliação, para mim, foi
embates travados, discussões, proposições
esclarecida, não separava avaliação
de exame, era tudo a mesma coisa.
e reflexões. Sendo assim, convém registrar
Posso dizer que avaliação é um que houve um crescimento na constru-
processo de desenvolvimento diário ção do conhecimento, especificamente
e na aprendizagem um processo de no tocante à avaliação da aprendizagem,
construção, onde avaliando o aluno, que seguramente irá contribuir para sua
analisando as suas dificuldades, o atuação como sujeito da ação pedagógica.
docente tem a oportunidade de ajudá- O depoimento seguinte demonstra
lo na construção do conhecimento de maneira significativa o enunciado
(Aluno N); anterior:
A avaliação da aprendizagem não Avaliar é um ato muito importante,
se destina a um mero julgamento, não como um ato taxativo e autoritá-
não é um ato definido, mas um pro- rio de dar notas, mas como uma ação
cesso contínuo feito por meio de um acolhedora de dar suporte ao aluno
diagnóstico, que, ao ser analisado, para que ele possa enfrentar suas
percebem-se as dificuldades do aluno. dificuldades, auxiliando o educando a
É um ato inclusivo, dando suporte ao se autocompreender em seu processo
professor em fazer o seu trabalho de pessoal de estudo, aprendizagem e
modo mais reflexivo (Aluno G); desenvolvimento, bem como todo o
processo educacional (Aluno M).

138 Carlos A. VASCONCELOS. Avaliação educacional: concepções de formandos em Pedagogia


Os sujeitos da pesquisa concebem a Considerações finais
avaliação como um processo contínuo de
análise e acompanhamento de métodos A trajetória vivenciada ao longo
aplicados para detectar se o educando desta investigação permitiu identificar, nas
está atingindo o objetivo proposto pelo concepções e práticas de avaliação dos
professor. Acredita-se, na visão dos depo- formandos, bem como nas concepções
entes, que a avaliação está situada num dos autores discutidos, componentes for-
plano processual, duradouro e contínuo; mativos de uma pedagogia plural e dife-
um recurso metodológico que o professor renciada. Os resultados trazem as marcas
pode e deve se utilizar para aprimorar a dos sujeitos que deles participaram e, ao
sua prática pedagógica. Corrobora com trazê-los, carregam consigo as limitações
essa visão, Luckesi (2005, p. 39) quando desses olhares, fruto das práticas vividas/
afirma “que a avaliação da aprendizagem observadas e dos contextos que as sus-
deve ter característica diagnóstica em vez tentaram.
de classificatória”. Assim, ela se comprome- Nesse sentido, assiste a um novo
te com o desenvolvimento real do aluno conceito de avaliação que revela uma
na educação. concepção de ensino que se constrói no
Outro dado importante revelado processo. A ação de avaliar passa a ser
nesta pesquisa diz respeito à concordância entendida como “processual e reveladora
dos alunos, especialmente daqueles que já das possibilidades de construção de um
atuam no magistério, quanto ao caráter for- processo educativo mais rico e mais plural”
mativo dos instrumentos de avaliação. Na (DALBEN, 2002, p. 6).
opinião deles, o professor deveria evitar o Como diz Hoffmann (1993a), é de
predomínio de punições. Os diversos instru- suma importância a observação, por parte
mentos de avaliação deveriam servir para do educador, de todas as atividades para
organizar o conhecimento e diagnosticar que haja uma possível confiança por parte
o que o aluno sabia e o que ainda não dos alunos. Nessa relação e nas discus-
sabia. Nesse sentido, a avaliação constituiu, sões entre os próprios alunos, haverá um
também, momentos de aprendizagem, ou processo de reflexão sobre os argumentos
seja, ela só faz sentido quando provoca o e consequentemente uma ampliação
desenvolvimento do educando e reorienta de conhecimentos. Ou ainda, como nos
a prática do professor. orienta Vasconcellos (1995), a avaliação
É preciso frisar que a avaliação era deve tomar caminhos para a libertação,
entendida, a princípio, como um processo ou seja, devemos denunciar, mas também
permanente, de caráter diagnóstico e, por anunciar, buscar alternativas.
isso, deveria apontar soluções para os pro- Por certo, os dados desta pesquisa
blemas que inviabilizam a aprendizagem. atestam que uma nova concepção de
avaliação encontra-se em processo de
construção, baseada em princípios forma-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 129-141, jul./dez. 2013. 139


tivos, plurais, contínuos e diferenciados. E, avaliativa que vem norteando nosso agir
nesse processo, fortalece a crença de que em sala de aula.
os germes da mudança estão presentes Por fim, a avaliação passou a consti-
nas escolas e nos cursos de formação tuir um acompanhamento de desempenho
de professores, que são frutos dos de- do aluno, permeada por momentos de
safios, das necessidades, mas também diálogo, visando a sua reorientação e ao
das possibilidades e envolvimento de redimensionamento da prática pedagógica,
professores, alunos e pais e de todos que através dos quais tanto aluno como pro-
fazem parte da escola e da sociedade. Os fessor se descobrem e se constroem como
sujeitos que produzem a mudança estão sujeitos transformadores da realidade; ou,
em permanente processo de redescoberta como sugere a perspectiva freireana: uma
e consolidam-na no cotidiano escolar/ avaliação libertadora, para mudança, que
acadêmico. problematize e conscientize; uma avalia-
Assim sendo, as contribuições dos ção que exerça compromisso e conduza
autores discutidos ao longo da disciplina à inclusão.
Avaliação Educacional permitiram uma Destarte, espera-se que este escrito
compreensão mais global da avaliação da tenha conduzido a reflexões formuladas
aprendizagem, não como uma atividade que nos levem à compreensão sobre a
isolada e circunscrita ao ambiente escolar, avaliação; que ele possibilite a construção
mas que tem repercussões no contexto de um novo significado para o trabalho
social. Essas contribuições ensejaram pedagógico; que faça da prática educativa
um confronto e redimensionamento das um exercício de responsabilidade e um
representações sobre avaliação e a prática processo de humanização.

Referências

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Recebido em julho de 2012


Aprovado para publicação em dezembro de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 129-141, jul./dez. 2013. 141


Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:
considerações a partir da pesquisa TALIS (OECD-2009)
Conditions of teaching work in Brazil and Spain:
considerations from TALIS research (OECD-2009)
Rose Meri Trojan*
Sonia Regina Landini**
* Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal
do Paraná. E-mail: rosetrojan@uol.com.br
** Doutora em Educação. Professora da Universidade
Federal do Paraná. E-mail: slandini@uol.com.br

Resumo
Propõe-se, neste artigo, apresentar um breve panorama sobre alguns aspectos relacionados às condições
de trabalho oferecidas pelas escolas aos docentes, publicado em 2009 no relatório TALIS (Teaching and
Learning International Survey), programa de pesquisa desenvolvido pela OECD. Sem a pretensão de es-
gotar as análises comparativas, a finalidade é ressaltar os resultados do Brasil e da Espanha. Em primeiro
lugar, destacam-se algumas considerações sobre os limites e a abrangência de pesquisas dessa natureza,
bem como sua interferência na proposição de políticas educacionais. Em seguida, foram selecionados
alguns aspectos relevantes do ambiente escolar para identificar a magnitude dos problemas relatados,
posicionando os dois países selecionados em relação aos resultados gerais apresentados no relatório.
Palavras-chave
Políticas educacionais. Condições de trabalho docente. Educação comparada.

Abstract
This paper presents an overview about working conditions offered by schools for teachers, published in
2009 in the report TALIS research program (Teaching and Learning International Survey), developed by the
OECD. Without pretending to exhaust the comparative analyzes, the purpose is to highlight the results of
Brazil and Spain. At first, it emphasizes some considerations about the limits and the scope of this kind
of research, as well as its interference in educational policies. Secondly, were selected some aspects of
the school environment to identify the magnitude of the problems reported, positioning the two selected
countries in relation to the overall results.
Key words
Education policies. Conditions of teaching work. Comparative education.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 143-160, jul./dez. 2013
Introdução O relatório da pesquisa apresenta
dados sobre o perfil dos professores e
TALIS (Teaching and Learning In- das escolas nas quais trabalham; sua
ternational Survey) é um programa de formação e desenvolvimento profissional;
pesquisas que visa preencher lacunas que práticas de ensino, crenças dos professores
são importantes para a comparação inter- e suas atitudes; avaliação das escolas, re-
nacional dos sistemas de ensino, encetada conhecimento e feedback dos professores
em 2005 pela Organization for Economic e seu impacto; liderança escolar e estilos
Co-operation and Development (OECD, de gerenciamento; e fatores-chave para
2009). É a primeira pesquisa internacional, o desenvolvimento de um ambiente de
com dados comparáveis, a concentrar- ensino e aprendizagem eficazes.
se no ambiente de aprendizagem e nas Propõe-se, neste artigo, apresentar
condições de trabalho dos professores um breve panorama sobre alguns aspectos
das escolas. relacionados às condições de trabalho ofe-
O objetivo geral do programa é recidas pelas escolas, extraídas do relatório.
promover indicadores internacionais e Tendo em vista o fato de que este tipo de
uma análise das políticas sobre docência pesquisa influencia as políticas nacionais
e ensino para ajudar os países a revisar e para a educação, a finalidade deste ar-
desenvolver políticas para tornar a profis- tigo é ressaltar alguns dados referentes
são de professor mais atrativa e efetiva. Ao ao Brasil e à Espanha e, sem pretender
todo, 24 países participaram, dos quais 17 esgotar a questão, chamar atenção para
membros da OECD e sete países parceiros1. as questões mais importantes sobre as
Os primeiros resultados foram publicados condições de trabalho docente. Ainda que
em 2009. não se apresentem análises conclusivas,
Nessa primeira edição, foram pes- essa etapa da pesquisa é fundamental
quisados professores do ensino secundário para identificar semelhanças e diferenças,
básico ou inferior (correspondente às séries resultados que chamam a atenção e ten-
finais do ensino fundamental no Brasil) e dências que contribuem para a delimitação
os diretores das escolas em que trabalham, de investigações posteriores.
nos setores públicos e privados. Em primeiro lugar, destacam-se al-
gumas considerações sobre os limites e a
1
Os países-membros da OECD participantes são abrangência de pesquisas dessa natureza.
Austrália, Áustria, Bélgica (Comunidade Flamenga), Em seguida, foram selecionados alguns
Dinamarca, Hungria, Islândia, Irlanda, Itália, Coréia, aspectos relevantes do ambiente escolar
México, Noruega, Polônia, Portugal, República Es- para identificar a magnitude dos proble-
lovaca, Espanha, Turquia, (Holanda); os parceiros mas relatados por professores e diretores,
são Brasil, Bulgária, Estônia, Lituânia, Malásia,
Malta, Eslovênia. Como a Holanda não atendeu
posicionando os dois países selecionados
aos padrões das amostras, seus índices não foram em relação aos resultados gerais da pes-
incluídos nas comparações. quisa, destacando a média TALIS e outros

144 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
resultados que chamaram a atenção em –, possibilitaram dados comparáveis e
função de percentuais elevados. Para tanto, serviram de referência para os sistemas
foram utilizadas as tabelas completas, dis- nacionais. O Instituto Nacional de Estudos
ponibilizadas on-line, além do relatório. A e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
análise realizada não pretende ser conclu- (INEP) – responsável, no Brasil, pelas ações
siva, mas, sobretudo, levantar questões que internacionais que envolvem coleta de
deverão ser investigadas posteriormente, dados, informações, estatísticas e avaliação
à luz de informações mais detalhadas e no campo da educação – afirma que:
dados sobre o contexto de cada país. Essas ações são importantes, uma vez
que fortalecem os sistemas de infor-
Considerações iniciais mação e avaliação educacionais dos
países envolvidos, além de promover
Procedimentos de medição e avalia- atividades conjuntas para troca de
ção da qualidade de educação foram cria- experiências entre os especialistas
dos em todos os países, como instrumento em Educação nacionais e interna-
essencial das reformas de Estado dos anos cionais. [...]
1990, realizadas a partir do processo de Dentro do seu âmbito de atuação,
globalização, com a finalidade de adequar o Instituto articula-se com outros
o aparelho estatal às mudanças ocorridas organismos nacionais e estrangeiros
no sistema produtivo (TROJAN, 2011a). mediante ações de cooperação insti-
Nessa perspectiva, se, de um lado, as tucional, técnica e financeira, bilateral
reformas realizadas proporcionaram certa e multilateral. (INEP, [200-]).
autonomia para as instâncias administra- Ainda que se admita a possibili-
tivas descentralizadas, de outro, o governo dade de fortalecimento dos sistemas de
central instituiu formas de controle das informação e avaliação, intercâmbio de
ações realizadas, entre as quais os siste- experiências e ações de cooperação, não
mas de avaliação (CASASSUS, 2001, p. 23). se pode esquecer que esses procedimentos
Nessa lógica, as reformas foram são efetivamente úteis como mecanismo
acompanhadas de orientações e acordos de controle. Nesse sentido, pesam críticas
com organismos multilaterais. Os modelos sobre o mau uso dos resultados dessas
de avaliação, elaborados no âmbito desses pesquisas. Ferrer Juliá (2012), a esse res-
organismos – como o PISA2, por exemplo peito, aponta que, sob esse argumento,
se esconde outro de fundamental impor-
2
PISA, o Programme for International Student tância: o poder que proporciona a “posse”
Assessment (Programa Internacional de Avaliação
de Estudantes), realizado pela OECD é uma avalia-
ção internacional padronizada, administrada para competências essenciais para a plena participação
jovens de 15 anos de idade nas escolas. O PISA na sociedade. Quatro avaliações foram até agora
avalia até que ponto os estudantes perto do final da realizadas (em 2000, 2003, 2006 e 2009). O Brasil
educação obrigatória adquiriram conhecimentos e participou de todas as edições (OECD, 2007).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 143-160, jul./dez. 2013. 145


desses resultados e como o poder político processos de avaliação e de proposição de
procura controlar ao máximo as fontes ori- políticas públicas para a educação.
ginais destes para evitar versões distintas Para isso, salienta-se que todas
daquelas difundidas pelo governo. as pesquisas devem ser precedidas pelo
Ao mesmo tempo, pode-se questio- estudo das questões de ordem teórico-epis-
nar a validade do uso dessas pesquisas em temológica que definem e fundamentam
larga escala para avaliar a qualidade da as categorias de análise e as metodologias
educação oferecida por diferentes sistemas adotadas pelos pesquisadores e institui-
de ensino de países de contextos distintos, ções responsáveis pela investigação, uma
dadas as diferenças e especificidades vez que estas direcionam a delimitação do
regionais, nacionais e locais, bem como a objeto, a seleção dos dados e as análises
ocultação de desigualdades internas dos realizadas, entre outros aspectos. Assim,
países participantes. preocupa o fato de que, no relatório TALIS,
Há uma considerável variação entre o ponto de vista teórico adotado pela OECD
os países em relação a todos os fatores que na pesquisa não seja devidamente explici-
são avaliados que tornam as comparações tado. Como exemplo, poder-se-ia indagar
muito difíceis. Pode-se considerar desde qual é o conceito de ensino eficaz que
a organização dos sistemas de ensino, a consubstancia a finalidade do programa,
composição dos níveis escolares, a duração mencionado pela Diretora de Educação
da escolaridade obrigatória, a carga horária da OCDE, Barbara Ischinger, na abertura
da jornada escolar, o conteúdo dos currí- do relatório: “TALIS ajudará os países a
culos etc. No que se refere aos docentes, rever e desenvolver políticas que criem as
também há diferenças na formação inicial condições para o ensino eficaz”.
exigida e nas condições de trabalho dadas. Inicialmente, é possível, levantar
Além disso, ainda que existam mui- alguns questionamentos, que deverão ser
tos estudos sobre o tema da avaliação da analisados com maior profundidade em
qualidade da educação e sobre o seu sig- estudos e investigações futuras que, neces-
nificado nesse âmbito, não existem muitos sariamente, deverão abranger um estudo
estudos sistemáticos, no Brasil, que avaliem cuidadoso sobre a metodologia adotada, o
os modelos de investigação e a elaboração modelo de definição das amostras, os te-
dos resultados apresentados pelos orga- mas selecionados e a linguagem adotada
nismos que as produzem (BONAMINO; nos questionários, entre outros aspectos.
COSCARELLI; FRANCO, 2002 p. 92). À primeira vista, alguns pontos
Portanto é necessário avaliar a pro- chamam a atenção. O primeiro a ser
posta, a metodologia e os resultados dos destacado é o fato de a pesquisa compre-
programas realizados à luz do contexto e ender escolas públicas e privadas, mas os
das especificidades de cada país partici- resultados não separarem esses dois tipos
pante, a fim de identificar os seus limites e de instituição, que apresentam condições
as suas possibilidades de contribuição nos muito diferentes, em todos os aspectos – o

146 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
que revela um problema na análise dos Algumas ponderações sobre Brasil e
resultados de todos os países participantes. Espanha
Em relação à confiabilidade dos
resultados, deve-se levar em consideração Antes de iniciar a exposição sobre
o grau de “subjetividade” que envolve a as condições de trabalho apresentadas
interpretação dada às perguntas, os signifi- pelo Brasil e pela Espanha, é necessá-
cados e os conceitos embutidos nos termos rio dizer que se pretende, tão somente,
dos questionários, entre outros fatores, levantar alguns aspectos e comentar as
ainda que o cuidado com a tradução dos primeiras impressões que provocam os
textos tenha sido observado no processo dados. Esse esclarecimento é importante,
de elaboração da pesquisa. pois não é possível realizar um estudo
Também preocupa a forma como comparado consistente, sem considerar
cada um dos países utiliza os dados da as peculiaridades de cada um dos países
pesquisa. No Brasil, o INEP indica, além selecionados em relação a cada contexto
da possibilidade de elaborar um “diag- particular e deste com o contexto global,
nóstico mais preciso do ambiente e das o que demanda um trabalho coletivo e
condições oferecidas para o ensino dentro interdisciplinar, que exige um tempo maior
das escolas brasileiras”, que a “análise dos de estudos.
dados internacionais permitirá que os Somente a título de exemplo, po-
países participantes identifiquem desafios dem-se apresentar alguns dados econô-
similares e aprendam a partir de políticas micos, sociais e educacionais do Brasil e
públicas adotadas por outros países” (INEP, da Espanha, considerando o movimento
2009). Questiona-se até que ponto o pro- ocorrido entre 2007 – que se refere ao
grama TALIS terá condições de dar essas contexto próprio do período da pesquisa
respostas, considerando os problemas – e 2010 – que demonstra as mudanças
indicados anteriormente, sem estudos mais ocorridas – para justificar a necessidade
detalhados das diferenças e desigualdades de se aprofundar nesses aspectos para
externas e internas referentes a cada país realizar uma efetiva comparação. A ob-
participante. servação desses dados, disponibilizados
Assim sendo, o estudo desse primei- pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
ro relatório do Programa TALIS justifica-se, Estatística (IBGE) sugere que os problemas
precisamente, pela influência desse tipo e as condições dos dois países seleciona-
de pesquisa e dos organismos que as dos são muito diferentes, assim como as
promovem na avaliação e na elaboração possibilidades de solução e necessidades
de políticas educacionais, bem como na de investimento.
definição de agendas multilaterais e im-
plementação de sistemas nacionais de
avaliação.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 143-160, jul./dez. 2013. 147


SÍNTESE ESTATÍSTICA BRASIL ESPANHA
Total do PIB – 2007 US$ 1.314.199 milhões US$ 1.436.893 milhões
2010 US$ 2.088.966 milhões US$ 1.407.322 milhões
PIB per capita 2007 US$ 6.852 US$ 32.451
2010 US$ 10.716 US$ 30.543
Índice de desenvolvimento humano (IDH) 2007 0,813 0,955
2011 0,718 0,878
Gastos públicos com educação2005 4,1 % do PIB 4,3 % do PIB
2007 5,08 % do PIB 4,35% do PIB
Taxa de alfabetização/pessoas de 15 anos ou mais
90,00% 97,90%
2007
2010 90,00% 97,90%
Taxa bruta de matrículas / todos os níveis de ensino
87,20% 96,50%
2007
2010 87,20% 96,50%
População Total 2009 193.733.795 habitantes 44.903.659 habitantes
2011 196.655.014 habitantes 46.454.895 habitantes
Quadro 1 - BRASIL – ESPANHA
Fonte: Elaboração a partir de dados do IBGE (2010).

Percebe-se que, apesar de sofrer se alterou. Contudo ainda é válida a afir-


com os impactos da atual crise global da mação publicada em 2011: “Essa diferença
economia, Espanha e Brasil têm eviden- causa impacto na qualidade de vida (IDH)
ciado movimentos distintos. Por exemplo, e no montante dos gastos públicos com
o PIB da Espanha caiu de 2007 para educação [que] limitam o acesso dos bra-
2010, enquanto o brasileiro subiu signi- sileiros à educação, como se pode perceber
ficativamente, ultrapassando o espanhol. nas taxas de alfabetização e de matrículas”
Entretanto, o PIB per capita espanhol ainda (TROJAN, 2011b, p. 336), fato que se pode
é muito superior ao brasileiro – mais do conferir no quadro I.
que o dobro – ainda que a diferença tenha Em relação ao PISA, Brasil e Espanha
diminuído, pois a população brasileira é participaram de todas as edições, desde a
consideravelmente maior e cresceu em cer- sua criação no ano 2000. Pode-se observar
ca de 3 milhões de habitantes, entre 2009 que há diferenças no desempenho médio
e 2011. No que se refere ao investimento de cada um dos países em questão em
público em educação, o Brasil aumentou relação à média da OECD e em relação
em quase 1% do PIB o seu investimento à evolução dos resultados em todas as
em educação, um pouco mais do que a aplicações. Entretanto tal comparação tem
Espanha, porém, nenhum dos dois produ- recebido críticas que devem ser considera-
ziu mudança na taxa bruta de matrículas, das. Klein adverte sobre alguns problemas
e a taxa de analfabetismo brasileira não de comparabilidade dos resultados PISA.

148 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
Há, por exemplo, diferenças no início do os resultados. O mesmo deve ser conside-
ano escolar de cada país – no Brasil, o rado em relação ao programa TALIS, cujos
início é em fevereiro ou março e, na Espa- resultados deverão ser compatibilizados
nha, em setembro – variação das datas de com o PISA nas próximas edições. Segundo
aplicação das provas de ano para ano, e a o Gabinete de Estatística e Planejamento
idade escolar correspondente a cada série, da Educação (GEPE) do Ministério da Edu-
que também não é homogênea. Desse cação: “O TALIS também abrange docentes
modo: “A mudança do mês de aplicação e diretores de escolas que participam no
do teste implica uma mudança da compo- PISA 2012, o que permitirá proceder ao
sição dos alunos em relação às diversas cruzamento, ao nível da escola, dos dados
séries e logo em uma mudança de popu- resultantes dos dois estudos” (GEPE, 2012).
lação, o que as torna não comparáveis. E
isso tem ocorrido” (KLEIN, 2011, p. 719). Condições de trabalho docente no
Brasil e na Espanha, segundo a
2000 2003 2006 2009 pesquisa TALIS
MEDIA OECD 496 498 493 496
ESPANHA 486 484 476 484 A qualidade do ensino e da aprendi-
BRASIL 368 383 384 401 zagem é influenciada por um conjunto de
Quadro 2 - Evolução PISA 2000/2009 fatores inter-relacionados, que se referem
Fonte: OEI, 2010. aos professores, aos alunos e às escolas.
Estudos, como o PISA, têm indicado que os
Com as devidas ressalvas já men- fatores mais incisivos são os relacionados
cionadas, se forem observados os desem- com as condições socioeconômicas dos
penhos médios do Brasil e da Espanha estudantes (OECD, 2007). Mais recente-
em relação à média geral, percebe-se que mente, tem sido destacada a importância
a Espanha apresenta os resultados mais dos professores em estudos como Le rôle
elevados, em todas as edições. Porém, crucial des enseignants: attirer, former et
em relação ao crescimento dos índices, retenir des enseignats de qualité, cujo ob-
percebe-se que houve maior evolução no jetivo principal é avaliar e propor políticas
Brasil. que ajudem a atrair, formar e reter bons
Entretanto não se pode deixar de professores nas escolas (OECD, 2005).
considerar esse tipo de comparação, já Entretanto, para que os estudantes
que tem sido realizada com frequência e tenham êxito, especialmente aqueles que
tem contribuído no desenvolvimento dos possuem condições mais precárias, aquilo
sistemas de avaliação adotados, tanto no que a escola oferece torna-se muito impor-
Brasil quanto na Espanha. Os problemas tante. Para conhecer alguns dos aspectos
de comparabilidade devem ser identifica- relacionados às condições de trabalho
dos, estudados e confrontados, a fim de oferecidas pelas escolas, elegemos alguns
denunciar as impropriedades e relativizar dados para construir um panorama que

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 143-160, jul./dez. 2013. 149


permita aprofundamentos posteriores, sala de aula. Entre 24 países pesquisa-
no que se refere ao contexto brasileiro e dos, os professores de turmas com clima
espanhol. disciplinar mais positivo têm empregos
O primeiro dado destacado é o de contrato permanente em 11 países e,
status do emprego, que se relaciona com em período integral, em cinco países. Os
a questão da estabilidade profissional. Se- professores mais propensos a relatar altos
gundo o relatório, a estabilidade no empre- níveis de autoeficácia possuem contratos
go parece ser significativa e positivamente permanentes em sete países e estão em-
relacionada aos relatos de autoeficácia pregados em período integral em 6 (OECD,
dos professores e de clima disciplinar em 2009, p. 229).

Tabela 1 - Status de emprego (em %)


País Permanente Contrato: mais de 1 ano Contrato: 1 ano ou menos
MEDIA TALIS 84,5 4,6 11,1
ESPANHA 75,6 6,5 16,9
BRASIL 74,2 7,1 18,7
Fonte: OECD, 2009.

Segundo a pesquisa, a maioria dos (6,9%) (OECD, 2009, p. 29). Do nosso ponto
professores tem empregos permanentes. O de vista, a falta de estabilidade pode, com
Brasil (74,2%) e a Espanha (75,6%) estão o aumento da rotatividade, inviabilizar a
abaixo da média TALIS (84,5%). Mas os aquisição da experiência e da unidade do
grandes destaques em relação a esta variá- corpo docente, bem como inviabilizar pro-
vel são Dinamarca (96,6%) e Malta (96,3%). gramas de desenvolvimento profissional de
Em todos os casos, o ensino apresenta-se longo prazo, que são os mais efetivos. Não
como uma carreira relativamente estável, o se evidenciam nesses índices, contudo, o
que pode ser atrativo para a profissão. Mas impacto decorrente das diferenças entre as
preocupa, em grande número de países, o escolas públicas – que tendem a oferecer,
declínio da segurança do emprego, o cres- predominantemente, empregos permanen-
cimento de trabalhadores temporários e o tes – e as escolas privadas, aspecto que
impacto da rotatividade dos professores. A é fundamental para analisar a influência
contratação de professores por mais de um desse fator na qualidade do ensino.
ano foi mais comum em seis países, entre Ainda em relação a esse assunto, a
os quais o Brasil (7,1%) e a Espanha (6,5%). apreciação do relatório causa certa estra-
Contudo é mais significativo o percentual nheza: “Contrato de professores de menos
de contratos temporários de um ano ou de um ano foi mais comum no Brasil
menos no Brasil (18,7%) e na Espanha [18,7%], Islândia [19,2%], Itália [19,4%], Po-

150 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
lônia [17,8%], Portugal [17,4%] e Espanha Tabela 2 - Professores em escolas públicas
[17,9%]” (OECD, 2009, p.29). Apesar dos (em %)
países indicados apresentarem resultados, País Escolas Públicas
realmente, elevados em relação à média BRASIL 84,9
(11,1%), não foi incluída a Irlanda (18,8%), MEDIA TALIS 83,1
cujo percentual é tão elevado quanto os ESPANHA 75,6
citados; os percentuais de cada país3 não Fonte: OECD, 2009.
foram registrados, uma vez que apresen-
tam diferenças significativas; e, principal- Na média, 83,1% dos professores
mente, estranha o motivo pelo qual foi pesquisados trabalham em escolas públi-
dado destaque a esse item, e não ao que cas, ainda que existam diferenças subs-
apresenta índices elevados para contratos tanciais entre elas em cada país. O Brasil
com 1 ano ou mais, que podem indicar (84,9%) apresenta uma condição próxima
maior precariedade ou rotatividade. Nesse da média (83,1%), e a Espanha (75,6%),
caso, de acordo com o mesmo relatório, um pouco abaixo. No mais, destaca-se a
contratos com menos de um ano podem Eslovênia, país onde 100% das escolas
indicar, além da flexibilização do mercado são públicas. Nesse caso, não se sabe se
de trabalho do professor e do contrato tem- não há escolas privadas na Eslovênia ou
porário para monitoramento de professores se apenas as públicas foram investiga-
iniciantes antes de conquistar emprego das. Como destacado no próprio relatório,
permanente, também, o atendimento de diferenças de salários, carreira e outros
demandas momentâneas (OECD, 2009, p. benefícios, bem como a diferença na ad-
29) – como pode ser o caso da substituição ministração das escolas, entre os setores
de professores em licença. públicos e privados, podem influenciar nas
De acordo com o relatório, alguns condições de trabalho dos professores e
dos países participantes possuem setores nas práticas de ensino (OECD, 2009, p.30).
privados consideráveis, com escolas pri- É necessário separar as instituições públi-
vadas ou administradas de forma privada, cas e privadas para aprofundar a análise
que recebem a maior parte dos seus fun- sobre as condições de trabalho oferecidas
dos de recursos públicos, como na Bélgica aos docentes.
Flamenga (27,6%). Mas, não é possível
saber, com certeza, se esses percentuais
referem-se ao total de escolas do país ou
ao total das escolas pesquisadas.

3
Esses percentuais foram acrescentados neste arti-
go, a partir das planilhas disponibilizadas pela OECD
em: http: <//dx.doi.org/10.1787/607784618372>.
Acesso: 30 set. 2009.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 143-160, jul./dez. 2013. 151


Tabela 3 - Características das escolas
País N. alunos Ratio prof. x Ratio prof. x Média de
por escola suporte ped. suporte adm. alunos por sala
BRASIL 601,2 11,9 6,9 32,2
ESPANHA 536,7 19,0 8,8 21,7
MEDIA TALIS 489,1 13,3 8,4 23,5
Fonte: OECD, 2009.

Em geral, os professores trabalham reforçam a importância de turmas com


em escolas com uma média de 489,1 alu- um número menor de alunos. Na média,
nos, mas há variação considerável entre observa-se 23,5 alunos por professor em
os países. Existe uma diferença de mais sala de aula, mas as diferenças entre os
de 800 alunos entre a escola com a maior países são significativas. Destacam-se, de
média de alunos (Malásia, com 1.046) e um lado, a Bélgica (17,5), a Islândia (18,6)
aquelas com o menor número (Polônia, e a Eslovênia (18,8) com as menores
com 242,2). O Brasil (601,2) e a Espanha médias de alunos por sala e, de outro, o
(536,7) estão acima da média, o que revela México (37,8), a Malásia (34,9) e o Brasil
que as instâncias reguladoras de governo (32,2) entre os que apresentam as maiores.
não estão se preocupando com esse pro- A Espanha (21,7) está próxima da média
blema. É relevante a análise apresentada TALIS. No que se refere à possibilidade de
no relatório, que não considera produtivo uma maior atenção individual aos alunos,
investir em escolas muito grandes, pois, atenção para a aprendizagem e disciplina
de modo geral, essas tendem a ser mais para o estudo, esse fator é decisivo: quanto
complicadas para administrar e o corpo do- maior o número de alunos em sala, mais
cente a encontrar dificuldades de coesão e difícil será obter um clima mais adequado
de comunicação. Obviamente, esses fatores para o ensino e a aprendizagem.
podem reduzir a eficácia de programas de Os dados do relatório se contrapõem
formação profissional e a implementação aos da pesquisa realizada por Bressoux,
de novas práticas, conforme cita o relatório que afirma que “o número de alunos por
(OECD, 2009, p. 31), mas também podem sala não tem nenhum ou tem pouquíssi-
gerar problemas de relacionamento e in- mo efeito sobre as aquisições dos alunos”
disciplina entre os alunos. (BRESSOUX, 2003). Se tomarmos como
As condições de trabalho dos pro- exemplo o caso do México, que é o país
fessores também são influenciadas pelo pesquisado com maior número de alunos
número de alunos por sala de aula. Existe por sala, pode-se constatar que este é o
uma relação negativa entre o tamanho da país que apresenta maiores problemas
sala de aula e o clima disciplinar em 19 pertinentes ao comportamento dos estu-
países, ou seja, na maioria dos países do dantes: 71,9% promovem distúrbios em
TALIS (OECD, 2009, p. 240). Esses dados sala; 54,1% fazem trapaças; 55,1% profe-

152 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
rem palavrões e obscenidades, e 63,3% co- Relatório PISA 2006 demonstra que quanto
metem atos de vandalismo. Mais adiante, maior é o corte de recursos, menor é a
essa variável será retomada para analisar performance do aluno (OECD, 2007, p. 263).
alguns aspectos do ambiente escolar, no A pesquisa TALIS indica outra publicação6
Brasil e na Espanha. (OECD, 2008b), na qual a OECD afirma que
Por outro lado, Cuba4, país que se as desigualdades na performance dos alu-
destaca internacionalmente pela qualidade nos refletem disparidades não só de suas
da sua educação, tem como princípio a ga- condições socioeconômicas, como também
rantia de 15 alunos por professor em sala dos investimentos alocados nas escolas.
de aula (TROJAN, 2008). Segundo Carnoy, Entretanto escolas com maior número de
no final dos anos 1990, a UNESCO testou alunos em desvantagem socioeconômica,
alunos de 13 países latino-americanos e por vezes, recebem menos recursos do que
comprovou o que pesquisadores e educa- as escolas com alunos advindos de situa-
dores identificaram nos últimos 30 anos: ção mais privilegiada, ou seja, as escolas
“Os alunos cubanos, de todas as séries, que têm mais necessidades de recursos
pareciam saber muito mais matemática e recebem menos (OECD, 2009, p. 32). Esta
pareciam ler melhor” (CARNOY, 2009, p. 75). é uma tendência que contradiz todas as
Tal constatação indica a necessidade de indicações técnicas admissíveis: os relató-
realizar mais estudos sobre essa questão, rios já citados nesse texto ressaltam a im-
considerando que, dada a precariedade portância de investir mais nas escolas que
econômica do país5, percebe-se um in- apresentam desvantagens. Entre os fatores
vestimento considerável no quadro de que interferem na alocação de pessoal e
professores – superior a todos os países recursos materiais, o mais importante é o fi-
pesquisados no TALIS. De acordo com o nanciamento, ou seja, quanto o país inves-
banco de dados do IBGE (2010), os gastos te em educação em relação ao número de
com educação em 2008 correspondem a alunos matriculados – fator indispensável
13,63% do PIB. para aprofundar as análises das políticas
Os recursos físicos, humanos e de valorização dos professores. Assim,
financeiros investidos nas escolas, eviden- para avaliar a efetividade das políticas
temente, influenciam o desempenho dos em relação aos dados apresentados pela
professores e a qualidade da educação. O pesquisa TALIS em estudo é indispensá-
vel buscar dados precisos em relação ao
4
financiamento da educação de cada país.
Cuba não participou da pesquisa realizada pelo
programa TALIS.
5
O PIB per capita de Cuba, 2010, é de U$5.704 6
No More Failures: Ten Steps to Equity in Education
enquanto o do Brasil é de U$10.704 e da Espanha [Falhas, não mais: Dez passos para a Equidade
é de U$30.543 (IBGE, 2012). Disponível em: <http:// na Educação]. Este livro oferece uma perspectiva
www.ibge.gov.br/paisesat/main.php>. Acesso: 18 comparativa sobre como os diferentes países têm
mar. 2012. tratado a equidade na educação (OECD, 2008b).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 143-160, jul./dez. 2013. 153


Os dados indicam que entre um Em todas as variáveis que se referem às
terço e metade das escolas apresentavam condições materiais, os percentuais são
déficit de recursos, em uma ou mais áreas. elevados para todos os países.

Tabela 4 – Insuficiência ou inadequação de materiais (em %)


Materiais Computadores Materiais
PAÍS Outros materiais
instrucionais para o ensino bibliográficos
MEDIA TALIS 34,2 43,2 40,8 49,7
ESPANHA 24,4 41,0 37,3 50,1
BRASIL 28,6 59,2 57,9 64,1
Fonte: OECD, 2009.

No Brasil, é significativo o percen- 50% dos diretores reclamaram da falta de


tual de escolas com falta de materiais e equipamentos. Em relação aos professores
equipamentos, que limitam a qualidade e pessoal de apoio, a média TALIS aponta
do ensino. Na Espanha os resultados são 37,5% de falta de professores qualificados
um pouco melhores, mas ainda apresenta nas escolas, mas a distribuição não é ho-
carências expressivas. Entretanto, na mé- mogênea (OECD, 2009, p. 32). Nesse caso,
dia, os percentuais observados não são além das diferenças de critérios na lotação
tão elevados quanto aos relacionados com de pessoal, pode haver dificuldades no pre-
a falta de pessoal qualificado. Esse é um enchimento de vagas pela inexistência de
dado que merece aprofundamento. profissionais formados de acordo com as
Em torno de 33% dos diretores de exigências estabelecidas em cada sistema,
escolas informaram que o ensino era afe- como também em escolas de difícil acesso
tado pela falta de técnicos de laboratório, e e que atendem população de baixa renda.

Tabela 5 – Recursos da escola - falta de pessoal qualificado (em %)


Professores Técnicos de Pessoal de Pessoal de
País
Qualificados Laboratório suporte instrucional suporte (outros)
MEDIA TALIS 37,5 32,0 47,5 45,9
ESPANHA 34,0 13,6 80,5 75,7
BRASIL 31,1 65,1 61,1 63,1
Fonte: OCDE, 2009.

Em primeiro lugar, preocupa o eleva- (31,1%) possuem um quadro considerável


do percentual de professores não qualifi- de professores sem a devida qualificação.
cados. Ainda que se posicionem abaixo da O Brasil apresenta uma situação um pou-
média (37,5%), a Espanha (34%) e o Brasil co melhor do que a Espanha, apesar das

154 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
grandes desigualdades sociais e econômi- – tanto técnicos de laboratório, quanto
cas em cada região do país, que agravam pessoal de suporte instrucional e outros.
as diferenças internas de investimento na Uma das razões para esse problema é a
educação, considerando-se a descentrali- distribuição dos recursos. Estatísticas da
zação administrativa e financeira. OECD (2008a) mostram que, em 2005, 63%
Em segundo lugar, é grande a rela- das despesas das instituições de educação
ção entre a falta de pessoal de apoio e de secundária foram designadas para o pa-
outros tipos de pessoal nas escolas onde o gamento de professores e 16% para outro
ensino foi bastante afetado por esse fator. tipo de pessoal.
Brasil e Espanha apresentam resultados Um fator importante relacionado à
preocupantes em todos os aspectos. Como educação que é proporcionada aos alunos
se pode observar na tabela 5, 80,5% dos é o ambiente das escolas. Entre os fatores
diretores espanhóis reclamam da falta que influem no ambiente estão aqueles
de pessoal de suporte para o ensino, e que são relacionados aos professores
75,7% de outros tipos de pessoal; no caso (faltas, atrasos, qualificação etc.) e aos
brasileiro, mais de 60% reclamam do baixo alunos (disciplina, nível socioeconômico
número de todos os profissionais de apoio e cultural etc.).

Tabela 6 – Clima escolar - fatores relacionados ao professor (em %)


Professores Falta de preparo
PAÍS Absentismo
que chegam atrasados pedagógico
ESPANHA 34,1 39,2 38,0
BRASIL 25,5 32,3 35,8
MEDIA TALIS 15,1 25,8 24,1
Fonte: OECD, 2009.

Em relação aos professores, os dire- 34,1%, 39,2% e 38%, respectivamente. Ainda


tores informaram que mais da metade das que os dois países apresentem percentuais
escolas sofria com a falta de preparo dos acima da média, a situação da Espanha
professores, 15% eram afetadas pelo atraso sugere um quadro mais preocupante.
destes, e por volta de um quarto denunciava Faltas e atrasos podem estar relacio-
que as faltas ao trabalho e falta de preparo nados a problemas de adoecimento, e
dos professores afetava a qualidade do estes podem ter causa, entre outras, na
ensino (OECD, 2009, p. 39-40). No Brasil, sobrecarga de trabalho, excessivo número
25,5% dos professores chegam atrasados, de alunos por sala, na distância entre local
32,4% prejudicam o ensino com faltas ao de trabalho e residência, na falta de prepa-
trabalho, e 35% apresentam falta de preparo ro para lidar com determinados problemas
pedagógico, enquanto a Espanha apresenta dos alunos, na falta de condições de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 143-160, jul./dez. 2013. 155


trabalho adequadas etc. Ou seja, avaliar influência negativa no ensino do que as
os problemas que afetam o desempenho dos professores. A mais importante foi
do professor é uma tarefa complexa que “distúrbios em sala de aula” (60%), seguida
se relaciona a outros fatores que, muitas de alunos faltosos (46%), alunos atrasados
vezes, não são de responsabilidade pessoal (39%), xingamentos (37%), intimidação ou
do professor, mas envolvem, além das con- abuso verbal (35%). Diretores denunciaram
dições oferecidas pela escola, as condições intimidação e abuso verbal aos professores
socioeconômicas de cada profissional. e equipe (17%), agressões físicas (16%) e
Por outro lado, as atitudes dos estu- uso ou posse de drogas e/ou álcool (11%)
dantes foram relatadas como tendo maior (OECD, 2009, p. 40).

Tabela 7 – Clima escolar – fatores relacionados aos alunos (em %)


Países Media TALIS Espanha Brasil
Alunos com atrasos 39,4 53,3 35,1
Absentismo 45,8 52,9 50,6
Distúrbios em sala de aula 60,2 70,5 60,2
Trapaças 20,9 21,6 31,3
Palavrões, obscenidades 36,5 43,5 40,8
Vandalismo 27,1 28,0 29,3
Uso/posse de drogas e/ou álcool 10,7 20,3 10,7
Fonte: OECD, 2009.

Aliás, é alarmante observar que os na maioria dos itens, aproximando-se da


problemas indicados, nesse particular, média da pesquisa. O destaque positivo
apresentam percentuais elevados na em relação ao uso e posse de drogas ou
maioria dos países pesquisados, exigindo álcool é a Eslováquia com 2,2%; e o desta-
do professor condições que, muitas vezes, que negativo é o México, que apresenta os
ultrapassam os limites da sua competên- maiores percentuais relacionados aos alu-
cia profissional. Para que alguns desses nos em todos os quesitos – entre 51 e 79%
problemas sejam resolvidos, exige-se –, conforme mencionado anteriormente.
encaminhamento para assistência social Assim sendo, as políticas devem levar
e de saúde, cujas políticas não têm dado em conta, com bastante atenção, as variá-
conta de resolver, além exigir colaboração veis que indicaram relevância para o clima
das famílias, nem sempre disponíveis. disciplinar e a autoeficácia dos professores.
A Espanha apresenta dados preocu-
pantes a respeito dos estudantes, superan- A título de conclusão
do em todos os itens a media TALIS. Ainda
que esses problemas sejam significativos Conforme indicado na introdução do
no Brasil, os percentuais são inferiores artigo, o objetivo foi oferecer uma síntese

156 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
de alguns resultados apresentados no tendências internacionais, para subsidiar
relatório TALIS, publicado em 2009. Esse diversos estudos e avaliar as políticas
panorama preliminar destaca algumas educacionais de cada país.
características relacionadas às condições Nesse caso, a partir dos dados
de trabalho oferecidas pelas escolas bra- obtidos pelo TALIS, é possível identificar
sileiras e espanholas, a fim de facilitar o questões que ainda não haviam sido
desenvolvimento de estudos comparativos detectadas. Em relação às escolas, desta-
particulares, correlacionando dados e ana- cam-se o impacto negativo dos recursos
lisando os resultados a partir das especifi- materiais insuficientes, do tamanho das
cidades de cada país em particular. Desse escolas, das salas de aula com número
modo, tais estudos poderão subsidiar a excessivo de alunos e da falta de pessoal
avaliação e a reformulação de políticas. qualificado – técnicos, pessoal de apoio e
Nesse aspecto, será importante destacar professores qualificados – que produzem
as políticas voltadas ao financiamento e efeitos no ambiente escolar e no tipo de
à valorização da carreira docente, consi- práticas adotadas. No âmbito do impacto
derando a indicação do relatório sobre a do número de alunos por sala de aula,
questão da baixa atratividade e status da ainda que esse fator por si só possa não
profissão docente. fazer diferença, a pesquisa corrobora com
A avaliação do trabalho docente é dados, por exemplo, que mostram a im-
uma tarefa difícil, porque é resultado de um possibilidade de se realizar práticas mais
conjunto de fatores relacionados ao pró- orientadas aos alunos.
prio professor e suas condições pessoais; No que se refere aos resultados
à escola e as condições que oferece; aos de Brasil e Espanha, evidenciados neste
alunos, com suas especificidades; e, sobre- estudo preliminar, é possível sistematizar
tudo, às políticas educacionais e condições algumas observações. Brasil (74,2%) e
de financiamento determinadas em cada Espanha (75,6%) possuem uma situação
país. Considere-se ainda que todos esses similar em relação aos percentuais de
fatores interagem entre si, dificultando a professores com cargo permanente e com
identificação dos elementos que são mais contratos temporários, e ambos abaixo
significativos na produção de determina- da média TALIS (84,5%). E, os dois países
dos resultados. têm um percentual superior de escolas
Entretanto essas dificuldades não públicas, em relação à média. As esco-
invalidam a importância da pesquisa. las brasileiras (601,2) são maiores que
Pelo contrário, se tais pesquisas funcio- a espanholas (536,7), ambas acima da
nam, por um lado, como mecanismo de média (489,1 alunos). Mas, na Espanha
pressão para o cumprimento de objetivos (21,7), o número de alunos nas salas de
predefinidos, por outro, disponibilizam um aula é menor do que a média (23,5) e
conjunto de dados e informações úteis que significativamente menor do que no Brasil
servem de ponto de partida para identificar (32,2). Em relação à falta de professores

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 143-160, jul./dez. 2013. 157


qualificados, o Brasil (31,1%) apresenta Para finalizar, é importante ainda
uma condição um pouco melhor do que salientar a necessidade de acompanhar
a Espanha (34,0%), ambos em condição pesquisas, como a aqui referida, dada a
melhor do que a média (37,5%). Mas, no ênfase conferida a esses estudos pelos
que se refere à falta de condições materiais, dirigentes políticos e pela comunidade
a situação brasileira é mais difícil do que educacional. Outro motivo deve-se ao fato
a das escolas espanholas, que se situam de que o PISA 2012 – programa do qual
com percentuais inferiores à média. Apesar o Brasil e a Espanha participam desde a
de Brasil e Espanha se situarem acima primeira edição, no ano 2000 – terá seus
da média em relação a problemas de fal- resultados associados ao Programa TALIS
tas, atrasos e de despreparo pedagógico (INEP, 2010).
dos professores, as dificuldades maiores O Programa TALIS é, provavelmente,
estão nas escolas espanholas. Os fatores a primeira pesquisa que destaca, particu-
relacionados aos alunos também apresen- larmente, a importância do tamanho da
tam maiores percentuais na Espanha. Os sala de aula e do tempo de efetivo trabalho
fatores relacionados aos professores e aos docente. Isso significa que boas condições
alunos, que prejudicam o ensino, apresen- de trabalho devem ser o ponto de partida
tam maiores dificuldades, na maioria dos para melhorar o desempenho dos profis-
aspectos investigados, na Espanha, sendo sionais do ensino e, consequentemente,
que o Brasil fica mais próximo da média, a aprendizagem dos alunos, porquanto o
ainda que existam problemas. processo educativo é uma questão com-
Não foi possível, entretanto, abordar plexa, que ultrapassa a condição e a res-
neste artigo todos os fatores relacionados ponsabilidade dos docentes e dos diretores
com as condições de trabalho, apresentados de escola. Ainda que estes exerçam uma
pela pesquisa. Acentua-se a necessidade de influência determinante na educação dos
levar a cabo um trabalho mais aprofundado, alunos, a solução de todos os problemas
ponderando as condições de trabalho ofere- não depende somente da sua vontade.
cidas com as necessidades dos professores Neste particular, conforme Montero Mesa
e dos alunos no Brasil e na Espanha, para (2006), depende, sobretudo, da prioridade
poder avaliar e propor políticas que, real- dada às questões educativas pelas políti-
mente, resolvam os problemas enfrentados. cas econômicas de um determinado país.

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Recebido em agosto de 2012


Aprovado para publicação em novembro de 2012

160 Rose M. TROJAN; Sonia R. LANDINI. Condições de trabalho docente no Brasil e na Espanha:...
Relato biográfico: uma tentativa de compreender as
práticas pedagógicas de professoras da educação
infantil
Biographical report: an attempt to understand the
teaching practices of teachers of early childhood
education
Maria Izete de Oliveira*
Rinalda Bezerra Carlos**

* Doutora em Educação. Universidade do Estado de Mato


Grosso (UNEMAT).
E-mail: mariaizete@gmail.com
** Mestre em Educação. Universidade do Estado de Mato
Grosso (UNEMAT).
E-mail: rinaldabc@terra.com.br

Resumo
Este trabalho procede de duas pesquisas que objetivaram investigar a concepção de professoras da
Educação Infantil sobre essa etapa da educação básica, e conhecer como desenvolvem suas práticas
pedagógicas, respectivamente. Constatamos, salvo raras exceções, a inconsistência entre o discurso e a
prática das professoras. Logo, nos sentimos instigadas a realizar uma nova pesquisa, tendo por objetivo
compreender como as experiências de vida influenciam na prática pedagógica das professoras. Utili-
zamos o método autobiográfico, sob a forma de relatos de história de vida pelo fato de o nosso estudo
configurar-se num instrumento, ao mesmo tempo, de formação e de pesquisa. Obtivemos 12 relatos que
foram organizados em três categorias: Formação inicial, Formação continuada e Experiência de vida. Os
resultados revelam a necessidade de promover estudos sobre profissionalidade docente, desmistificação
da prática em detrimento da teoria e um aprofundamento no conceito de formação continuada.
Palavras-chave
Educação Infantil. Prática pedagógica. Relato biográfico.

Abstract
This work comes from two studies that aimed to: investigate the conception of kindergarten teachers
about this stage of basic education, and learn how to develop their teaching practices, respectively. We
found with few exceptions the inconsistency between the discourse and practice of teachers. Therefore,
we feel urged to perform a new research with the objective to understand how life experiences influence
the teachers’ pedagogical practice. We used the autobiographical report method in the form of reports of
life experiences due to the fact of our study set up a training and research instrument at the same time.
We got 12 reports that have been organized into three categories: Initial formation, Continuing Education

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 161-175, jul./dez. 2013
and Life Experience. The results revealed the need to promote studies on the teacher professionalism,
demystification of the practice rather than theory and a deepening in the concept of continuing education.
Key words
Childhood education. Teaching practice. Biographical report.

Introdução às reais necessidades das famílias e da


sociedade.
Iniciaremos nossa discussão con- A Resolução n. 008/09 do Conselho
textualizando, mesmo que brevemente, a Municipal de Educação de Cáceres, MT
Educação Infantil no Brasil. Sem pretender (CÁCERES, 2009) corrobora com a Reso-
aprofundar nas discussões acerca da his- lução n. 05/09 da Câmara da Educação
tória do atendimento à criança pequena, Básica, ao ressaltar que a proposta pe-
enfocaremos as conquistas legais ocorri- dagógica das instituições de Educação
das em nível nacional e as perspectivas Infantil deve estar fundamentada numa
ainda a alcançar. concepção de criança como cidadã, como
É certo que a Educação Infantil pessoa em processo de desenvolvimento,
atual mente tem conquistado muitos como sujeito ativo da construção do co-
avanços no cenário brasileiro. Um desses nhecimento, como sujeito social e histórico
grandes avanços ocorreu com a Consti- (BRASIL, 2009). Essa nova concepção de
tuição Federal (BRASIL, 1988) que passa criança faz emergir a necessidade de se
a tratar da Educação Infantil no Capítulo pensar em novas formas de atendimento
“Da Educação” reconhecendo seu caráter à infância nessas instituições.
educativo, deixando de considerá-la como Nesse sentido, a LDBEN (BRASIL,
função assistencialista ao preconizar que é 1996), por exemplo, traz uma grande con-
dever do Estado o “atendimento em creche tribuição no que se refere a essa evolução
e pré-escola às crianças de zero a seis anos sobre a forma de atendimento prestado à
de idade” (BRASIL, 1988, art. 208). infância, ao definir como finalidade da Edu-
Outra conquista importante está cação Infantil “o desenvolvimento integral
expressa na LDBEN 9.394 (BRASIL, 1996), da criança até os seis1 anos de idade, em
em seu artigo 29, que constitui a Educa- seus aspectos físico, psicológico, intelectual
ção Infantil como a “primeira etapa da e social [...]” (art. 29). O Referencial Curricular
Educação Básica”, sendo oferecida em
creches e em pré-escolas. Esse reconhe-
1
cimento garantiu às crianças o direito de É importante ressaltar que, a partir da Lei 11.275
frequentar a educação que lhes é desti- de 2005, a criança de seis anos passa a fazer parte
do primeiro ano ensino fundamental de nove anos,
nada, e o estado, mais precisamente os
ficando a Educação Infantil responsável pela faixa
municípios, devem ter como dever atender etária de zero a cinco anos.

162 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) da educação para as crianças que se en-
corrobora com a LDBEN ao preconizar que contram na faixa etária de 4 e 5 anos, ou
essas instituições devem “propiciar situa- seja, na pré-escola.
ções de cuidados, brincadeiras e aprendiza- Entretanto essa medida requer esfor-
gens orientadas de forma integrada e que ços no sentido de criar estratégias e ações
possam contribuir para o desenvolvimento que a viabilizem com qualidade, pois, de
das capacidades infantis [...] na perspectiva acordo com o Parecer CEB n. 022/98, que
de contribuir para a formação de crianças trata das Diretrizes Curriculares Nacionais
felizes e saudáveis” (BRASIL, 1998). para a Educação Infantil, no Brasil “a cre-
Ainda de acordo com a Resolução che é conotada em larga medida, e erro-
n. 05/09 as propostas pedagógicas dessas neamente, como instituição para crianças
instituições devem contemplar os seguintes pobres, em consequência tem sido enten-
Fundamentos Norteadores: a) Princípios dida, muitas vezes, como uma instituição
éticos: da autonomia, da responsabilidade, que oferece uma educação pobre para os
da solidariedade e do respeito ao bem pobres” (BRASIL, 1998).
comum, ao meio ambiente e às diferentes Diante do exposto, acreditamos na
culturas, identidades e singularidades; importância em considerar, em nossas
b) Princípios políticos: dos direitos de ci- reflexões, a questão da qualidade da edu-
dadania, do exercício da criticidade e do cação oferecida na Educação Infantil, já
respeito à ordem democrática; c) Princípios que temos clareza de que, indistintamente
estéticos: da sensibilidade, da criatividade, da condição social, todas as crianças têm
da ludicidade e da liberdade de expressão direito a uma educação de qualidade,
nas diferentes manifestações artísticas e pois essa educação recebida irá repercutir
culturais (BRASIL, 2009). na vida escolar e na formação de suas
Apesar desse reconhecimento, a personalidades. Isto porque é na infância
Educação Infantil ainda não está asse- que a base da personalidade é formada,
gurada pela legislação como educação mediante a aquisição de hábitos, atitudes,
obrigatória, e sim como um direito de valores morais e éticos. Nessa direção, o
opção das famílias. Mas uma conquista Parecer n. 022/98 esclarece perfeitamente
bem atual, relacionada à obrigatoriedade, o que estamos defendendo:
está configurada na Ementa Constitucional
A Educação Infantil não é, portanto
a n. 59, de nov. de 2009, que assegura em
um “luxo” ou um “favor”, é um direito a
seu art. 208 a “educação básica obrigatória ser melhor reconhecido pela dignida-
e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade [...]”, de e capacidade de todas as crianças
meta a ser alcançada até 2016 (BRASIL, brasileiras, que merecem de seus
2009). Essa ementa, sem dúvida, represen- educadores um atendimento que as
ta um grande avanço no que se refere à introduza a conhecimentos e valores,
oferta da Educação Infantil em nosso País, indispensáveis a uma vida plena e
uma vez que determina a obrigatoriedade feliz. (BRASIL, 1998, p.13).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 161-175, jul./dez. 2013. 163


Nessa direção, recorrer aos ensina- de atender as necessidades e especificida-
mentos de Vigotiski (apud PINO, 2000, p. des dessa faixa etária.
57) ao referir-se ao compromisso social da Frente ao exposto, nos perguntamos
educação formal que toca à concretização se a prática pedagógica das professoras
do ser humano como sujeito pertencente que atuam na Educação Infantil está
a uma cultura, a um grupo, permite-nos respaldada numa concepção de criança
afirmar que a educação não se constitui cidadã, como sujeito ativo, crítico e criativo,
um mero “valor agregado”, ela é constituti- sujeito histórico e social que possui carac-
va da pessoa. Assim, a escola desempenha terísticas próprias. Questionamos, ainda, se
importante papel na educação do ser hu- as professoras desenvolvem uma prática
mano, como mediadora social da cultura. voltada para o desenvolvimento integral da
Arce (2007), em sua defesa, diz que criança nos seus aspectos físico, psicológi-
o trabalho pedagógico deve ser sempre co, social e intelectual, conforme preconiza
um ato intencional. O professor, nesse a LDB 9.394/96.
contexto, retoma seu status daquele que Para tentar elucidar essa inquieta-
ensina, que provoca o desenvolvimento ção, no período de 2006 a 2010, realiza-
das crianças de 0 a 5 anos de idade res- mos duas pesquisas com professoras que
peitando suas características. Percebe-se, atuam na Educação Infantil na cidade de
assim, que uma nova ótica é direcionada Cáceres, MT, com a finalidade de elucidar
à Educação Infantil e que é preciso trans- conhecimentos acerca da concepção
formar a antiga educação assistencialista, dessas professoras sobre Educação In-
que tinha como única finalidade o cuidado fantil e conhecer como desenvolvem suas
físico com a criança, em uma educação práticas pedagógicas nessas instituições.
preocupada com a formação da pessoa. Frente aos resultados obtidos nas duas
Se, por um lado, a Educação Infantil pesquisas, constatamos, salvo raras exce-
está cada vez mais valorizada como a fase ções, a inconsistência entre o discurso e
inicial da escolarização da criança – por- a prática das professoras. Se, por um lado,
que é nessa etapa que ela terá o seu pri- na primeira pesquisa, elas demonstram
meiro contato com uma educação formal consciência acerca das finalidades da
–, por outro, a Educação Infantil requer Educação Infantil, por outro, na segunda,
profissionais competentes que possuam as elas não colocam em prática aquilo que
habilidades necessárias para lidar com as defendem em seus discursos.
especificidades dessas crianças. Constata- Assim, chamou-nos a atenção o fato
se, então, a importância de se investir na de não haver um direcionamento comum
formação do educador infantil já que na prática das professoras pesquisadas, de
pretendemos uma educação de qualidade modo que essas inconsistências levaram-
que garanta a atuação de profissionais nos ao seguinte questionamento: apesar
competentes, cientes da importância de do investimento da Secretaria Municipal
desenvolver um trabalho planejado a fim de Educação (SME) no desenvolvimento

164 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
profissional docente por meio da formação reflexo na prática pedagógica. Essa opção
continuada, o que leva algumas professo- justifica-se pelo fato de esta proposta
ras a desenvolverem uma prática pedagó- configurar-se, como esclarece Josso (2010,
gica distanciada daquilo que preconiza a p. 133), num instrumento “ao mesmo tem-
nova concepção de Educação Infantil e a po de formação e de pesquisa, de prática
literatura da área, conforme constatamos da pesquisa-formação como apoio a uma
em nossas pesquisas? pedagogia de autoformação e do projeto
A fim de tentar responder a essa que se baseia na experiência de vida dos
indagação, nos propusemos, nesta pesqui- aprendentes”.
sa, prosseguir com nossos estudos junto Elegemos como técnica de coleta de
às professoras que atuam na Educação dados os relatos escritos por entender que,
Infantil no sentido de refletir com elas através das narrativas vividas, os sujeitos
sobre seus percursos formativos, configu- reestruturam, refletem e apreendem os
rados em suas narrativas de vida (pessoal, conhecimentos adquiridos ao longo de
acadêmica e profissional), elucidadas em suas trajetórias formativas.
suas práticas pedagógicas. Nesse intento, Temos por pressuposto que os re-
encontramos abertura junto a um grupo de latos autobiográficos revelam-se campo
professoras que atuam em uma instituição fecundo para compreendermos a relação
de Educação Infantil para desenvolvermos existente entre a “história de vida” das pro-
tal iniciativa. Logo, é no espaço da forma- fessoras e suas práticas pedagógicas, mais
ção continuada, onde nos reunimos quin- precisamente, como as vivências de cada
zenalmente, para estudar, refletir e rever professora influenciam em suas ações e
as práticas pedagógicas do referido grupo concepções acerca da Educação Infantil.
de professoras. Isto porque vislumbramos, Acreditamos que a história de vida dos
na formação em serviço, um potencial de sujeitos repercute em sua prática pedagó-
desenvolvimento profissional, em que a gica e, por meio dos relatos autobiográficos,
troca de experiências com os pares e a so- as pessoas manifestam sua subjetividade
cialização das diversas leituras de mundo e, ao mesmo tempo, refletem sobre suas
possibilitam novas aprendizagens. ações, trazendo à tona aquilo que está
subjacente em suas memórias.
O estudo Conforme mencionamos, nossa
proposta de trabalho tem ocorrido por
Considerando o exposto anterior- meio de reuniões periódicas com o grupo
mente, optamos por trabalhar com a de professoras que atuam em uma insti-
abordagem autobiográfica, sob a forma de tuição de Educação Infantil na Cidade de
relatos de história de vida, contemplando Cáceres. O Grupo de Pesquisa participa
a subjetividade, dando voz aos sujeitos da formação continuada da escola tendo
pesquisados de forma a compreender o como finalidade ouvir as professoras sobre
contexto em que eles se inserem e seu suas experiências de vida e sua prática

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 161-175, jul./dez. 2013. 165


pedagógica, dando-lhes oportunidade de decorrentes, foi possível obter aquiescência
compartilhar conhecimentos sobre a Edu- do grupo de professoras para construção
cação Infantil, suas dificuldades, anseios deste e doutros textos vindouros.
etc., bem como apresentar sugestões para Com o propósito de compreender
superar os obstáculos encontrados. como as experiências de vida influenciam
No decorrer dos encontros, suge- na prática docente das professoras orga-
rimos que as professoras expressassem nizamos fragmentos dos relatos em três
a forma de inserção neste segmento e o categorias: Formação inicial, Formação
que a Educação Infantil representa para continuada e Experiência de vida (pesso-
cada uma. Na sequência, solicitamos que al e profissional). Tal distribuição teve como
elaborassem um relato autobiográfico, objetivo aprofundar cada categoria, à luz
contando como suas experiências de de uma fundamentação teórica que ajude
vida pessoal, formação inicial, formação a compreender as crenças instituídas e,
continuada (profissional) influenciavam quem sabe, promover uma transformação
na prática pedagógica. Após elaboração nas práticas pedagógicas adotadas pelo
dos relatos, propusemos a discussão de grupo estudado.
um texto de Paulo Freire (Professora sim, Assim, a opção por trabalhar com a
tia não), com o objetivo de provocar uma categoria “Formação inicial” se deu pelo
reflexão acerca da descaracterização da fato de todas as professoras pesquisadas
função docente, envolvendo desde as difi- já terem concluído o curso de pedagogia,
culdades decorrentes da formação inicial, superando a exigência de formação profis-
das condições de trabalho, dos baixos sa- sional para atuar na Educação Infantil de
lários, do desprestígio social, incluindo até que trata a LDB 9.394/96 ao preconizar, em
mesmo as relações estabelecidas com a seu art. 61, que “A formação de docentes
comunidade escolar, entre outros aspectos. para atuar na educação básica far-se-á em
Entretanto, para elaboração deste nível superior [...], admitida, como formação
texto, selecionamos 12 relatos autobio- mínima para o exercício na educação
gráficos das professoras participantes. infantil e nas quatro primeiras séries do
Para produção desses relatos solicitamos ensino fundamental, a oferecida em nível
às professoras que respondessem à médio, modalidade Normal”.
seguinte proposição: “Como as minhas É certo que essa exigência de nível
experiências de vida (pessoal, formação médio como formação mínima para atuar
inicial, formação continuada e profissional) na Educação Infantil e nos anos iniciais
influenciaram ou influenciam na minha demonstra indícios de alteração para
prática pedagógica?”. Para fins de análise formação superior, ainda assim, as profes-
dos referidos relatos, optamos por nomeá- soras pesquisadas continuarão atendendo
los de R1 (relato 1) até R12. Vale informar a essa nova exigência. Neste sentido, com
que, mediante explicações acerca desta esta categoria, o nosso propósito foi veri-
pesquisa, bem como das produções dela ficar se a formação inicial ofertada pelo

166 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
curdo de Pedagogia tem contribuído para diferentes. A esse respeito, concordamos
a prática pedagógica dessas professoras. com os princípios da SEDUC/MT de que
Quanto à categoria “Formação con- todo servidor que atua na escola seja con-
tinuada”, entendemos que essa proposta siderado educador, entretanto, para atender
de trabalho tem como finalidade direta as necessidades formativas dos diversos
intervir/contribuir para a atualização dos segmentos existentes no âmbito escolar,
professores no que se refere a sua área de faz-se necessária uma formação específica,
atuação, por isso a formação continuada dirigida para cada área de atuação o que,
é entendida também como formação em a nosso ver, isso não tem ocorrido.
serviço. Vale mencionar que a formação No que se refere à categoria “Expe-
continuada praticada pela SME segue as riência de vida” (pessoal e profissional)
diretrizes da SEDUC/MT, que tem como pretendíamos compreender como se dá
propósito transformar a escola como lócus a influência das experiências de vida das
de estudo e construção de novos saberes, professoras em suas práticas pedagógicas.
de modo que, para alcançar tal objetivo, Ao lançar mão da reflexão sobre as expe-
tem incentivado a formação continuada riências de vida das professoras, trabalha-
por meio de uma política que viabilize mos com elas no sentido de pormos em
espaço de estudos na instituição escolar. evidência o fato de que elas são sujeitos,
Assim, as atividades destinadas à formação mais ou menos ativos ou passivos, da
continuada ficam sob a responsabilidade sua formação e o de que podem dar a si
do coordenador pedagógico. Esse profissio- próprias os meios de serem cada vez mais
nal, junto ao coletivo da escola, organiza conscientes (JOSSO, 2010). Entendemos que
o projeto anual de formação em serviço a proposta de revisitar o passado possibilita
que, em Mato Grosso, denomina-se de um olhar nas posturas, crenças, convicções
“hora atividade”. em que, com o passar dos anos, sequer
É importante informar que a pró- nos damos conta daquilo que acreditamos
pria SEDUC/MT considera educador todo e acabamos por perpetuar. Nesse intuito,
servidor que atua no espaço escolar, do os relatos nos convidam a refletir sobre a
que decorre que a formação continuada criação que tivemos, as primeiras experiên-
oferecida pela instituição de ensino deve cias como alunos, os diversos espaços onde
ser estendida a professores, técnicos ad- circulamos e que muitas vezes servem de
ministrativos e pessoal de apoio. Nesse espelho para reproduzirmos (ou reelaborar)
espaço de múltiplos segmentos, desen- nossos fazeres no cotidiano escolar.
volvemos nosso projeto, o que exige do
grupo de pesquisadores um desafio e Análise dos relatos
uma oportunidade de refletir sobre as
condições de trabalho dos professores e Esta primeira experiência, de escre-
demais profissionais que atuam na escola, ver um relato, revelou-se como um desafio
que, a nosso ver, possuem necessidades às professoras ao terem que escrever sobre

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 161-175, jul./dez. 2013. 167


si, mobilizando-as a relembrar e selecionar quem escreveu aquilo!”... foram ouvidas ao
experiências vividas, estabelecer conexões longo da exposição.
e, ainda, lidar com a tessitura de um texto Ao solicitar ao grupo que lesse um
que requer coerência e coesão. Logo, no fragmento do relato 8, quando a professora
decorrer das leituras dos relatos, pudemos afirma que sua experiência na pastoral da
perceber que as professoras apontam di- criança “despertou sua vocação” para ser
versas experiências pelas quais passaram professora, questionamos ao grupo em
no percurso de suas vidas, entretanto elas que medida o “ser professor” depende da
não indicam “como”, “de que forma” ou “em vocação. Dos 24 presentes, 19 afirmaram a
quais aspectos” essas experiências influen- vocação como fator primordial para exercer
ciaram em suas práticas pedagógicas. a função docente.
A maioria dos relatos apresenta Sobre as opiniões das professo-
fatos que, à primeira leitura, nos parecem ras acerca da vocação, identificamos a
desconexos, pois as professoras falam da emergência de discutirmos com o grupo
sua infância, das precárias condições so- sobre profissionalidade docente, conforme
cioeconômicas, da inserção na escola e no defende Roldão (2007) ao afirmar que en-
mundo profissional, mas não conseguem sinar “configura-se, essencialmente como
estabelecer ligação entre o que viveram e especialidade de fazer aprender alguma
o que são hoje como profissionais. Como coisa [...] a alguém (p. 3).” Para a autora, o
exemplo, algumas professoras iniciam conhecimento sobre a profissão docente
sua narrativa afirmando que tiveram uma tem se configurado como o “elo mais fraco”
educação familiar muito rígida, em seguida dessa profissão, porque:
descrevem a entrada na universidade e [...] Saber produzir essa mediação não
logo falam da importância da formação é um dom, embora alguns o tenham;
continuada na prática pedagógica sem não é uma técnica, embora requeira
abordar a influência dessas experiências uma excelente operacionalização
na sua atuação docente. Essa constatação técnico-estratégica; não é uma vo-
nos fez provocar uma discussão no grupo cação, embora alguns a possam
acerca da não existência em seus relatos sentir. É ser um profissional de ensi-
sobre a relação entre suas experiências e no, legitimado por um conhecimento
específico exigente e complexo [...].
a atuação docente na Educação Infantil.
(ROLDÃO, 2007, p. 10, Grifo nosso)
À medida que íamos explicando ao
grupo o tratamento dado aos relatos, ob-
Categoria 1: Formação inicial
servamos a perplexidade das professoras
ao ver suas experiências de vida como No que se refere à formação inicial,
objeto de estudo. Expressões orais como: o grupo rememora dificuldades para cur-
“eu não tinha ideia do que vocês iriam sar a graduação no que toca ao ingresso
fazer com nossos escritos!”, “Isso tudo é tardio na universidade, a sua situação
muito novo para mim!”, “Olha eu ali, fui eu financeira e às condições de locomoção

168 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
para frequentar o curso, uma vez que outras 7 sequer mencionam o curso em
algumas professoras residiam distante da seus relatos. Três dessas professoras (R7,
universidade, aliado ao fato de a cidade R8 e R12) fazem menção ao estágio, duas
não oferecer meio de transporte regular dizendo que foi bom e uma diz que quase
que as conduzisse até a faculdade. desistiu por causa das dificuldades que
Ao referirem-se às contribuições da enfrentava em sala.
formação inicial, 5 professoras mencionam Ao que parece, para a maioria das
que o curso contribuiu para a sua prática professoras pesquisadas, a passagem pela
na Educação Infantil , a partir das seguintes graduação teve pouca significação para
menções: atuação na profissão docente. Observa-
se em seus relatos que elas não fazem
No curso de pedagogia, aprendi
questões necessárias sobre o proces-
ligação de sua prática pedagógica com a
so de ensino-aprendizagem [...]. (R6) formação inicial, mais especificamente, ao
curso de pedagogia. Isso se pode explicar
A faculdade veio aprimorar ainda pelo fato de não nos darmos conta das
mais novos conhecimentos. Estes co-
aprendizagens adquiridas ao longo das ex-
nhecimentos adquiridos, juntamente
com o estagio ajudaram e influencia-
periências formativas na formação inicial.
ram na maneira de trabalhar com as Por outro lado, os cursos de peda-
crianças [...]. (R8) gogia, de modo geral, não atendem as
necessidades de formação específica
[...] tivemos excelentes professores que
para atuar com essa etapa da educação
nos incentivavam e orientavam. (R11)
básica, ou seja, “[...] mesmo que os edu-
“Ampliei muito meus conhecimentos cadores tenham formação superior, não
e teorias. O estágio foi muito satisfa- significa que possuam qualificação para
tório, contribuiu muito para minha atuar com crianças de até seis anos de
prática pedagógica”. (R12)
idade” (OLIVEIRA, 2007, p. 176). A autora
Durante o estágio em sala de aula ressalta, ainda, que entende por “formação
tive vontade de desistir mediante os específica aquela cujo conteúdo progra-
problemas que foram acontecendo no mático esteja voltado para a atuação com
decorrer desse processo, crianças com essa faixa etária, seja ela oferecida em nível
dificuldade de aprendizagem, falta de
médio, superior ou especialização”.
carinho [...]. (R7)
Nesse sentido podemos afirmar
No final do relato, a professora acres- que as professoras pesquisadas não pos-
centa: “pretendo colocar em prática tudo suem uma formação sólida para atuar
aquilo que aprendi na faculdade [...]”. (R7) na Educação Infantil já que o curso de
Nota-se que apenas 5 professoras pedagogia da região, até pouco tempo,
mencionam em seus relatos o curso de em sua matriz curricular, oferecia apenas
Pedagogia sem, no entanto, aprofundarem uma disciplina voltada para a educação
“como” ele contribuiu para sua prática. As infantil, na área de fundamentos. Somente

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 161-175, jul./dez. 2013. 169


após a Resolução n. 1 de 2006, que institui qual a professora faz menção a alguns
as Diretrizes Curriculares Nacionais para cursos de formação que tem frequentado
o Curso de Pedagogia, incluem-se novas e que contribuíram para sua formação.
disciplinas voltadas para a docência com Em outros dois relatos, as profes-
essa faixa etária, entretanto, ainda assim, a soras não mencionam diretamente a
carga horária destinada às disciplinas que contribuição da formação continuada, mas
abordam as especificidades da Educação uma delas diz que, em sua experiência no
infantil é exígua. ensino fundamental, a coordenadora con-
tribuiu muito com sua prática da pedagó-
Categoria 2: Formação Continuada gica (R2), e a outra menciona que procura
investir na sua formação “participando de
No que concerne à importância da
cursos, palestras, oficinas, seminários e
formação continuada para o trabalho na
outros” (R5).
Educação Infantil, obtivemos 5 depoimen-
Observa-se que, das 12 professoras,
tos nos quais as professoras mencionam
somente 5 reconhecem a formação con-
a contribuição dessa formação para a sua
tinuada como um espaço de crescimento
prática docente.
profissional, o que nos convida a investigar
Uma professora relata que a forma-
posteriormente as opiniões do grupo sobre
ção continuada ajudou na sua experiên-
os cursos de formação continuada, bem
cia em sala de aula e diz que ficou mais
como identificar as reais contribuições que
desinibida e mudou seu “modo de pensar
cada uma identifica no seu dia a dia, ao
em relação às crianças, pois achava que
participar da hora atividade desenvolvida
não iria ter paciência com elas (R1)”. Outra
na escola. Isto porque acreditamos que
professora enxerga a troca de experiências
o êxito de uma proposta de formação
com os colegas na formação continuada
continuada depende do envolvimento de
como contribuições para o crescimento
todos os sujeitos (formador e formando),
profissional, reforçando que tem “servido
na concepção das atividades a serem
como meio de suprir as dificuldades que
desenvolvidas.
surgem no cotidiano escolar” (R 8).
No relato 9, a professora afirma Categoria 3: Experiência de vida
que, ao longo de 10 anos de experiência, (pessoal e profissional)
participou de diversos cursos de formação
e ressalta que “alguns contribuíram muito Nesta categoria, observa-se uma
para minha prática pedagógica, outros dei- profusão de elementos que contribuíram
xaram a desejar”. A professora do relato 11 na escolha profissional das professoras, a
reconhece que “os depoimentos de outros considerar os variados espaços de apren-
professores e os temas que são debatidos dizado que propiciaram conteúdos para
na formação continuada ajudam-na mui- compor o modo de estar na profissão
to”, o mesmo ocorre com o relato 12, no docente. Isto se revela mediante influência

170 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
dos outros significativos, na inserção nos núltima, praticamente nasci tia, depois de
espaços religiosos, nas dificuldades oriun- uma certa idade comecei a ajudar, cuidar
das de crises existenciais como perdas de dos sobrinhos”.
familiares, reintegração no universo escolar Outra professora relata que sua
após anos de afastamento, dentre outros primeira experiência começou na pastoral
fatores, os quais delineiam as marcas da criança, ela afirma: “na vivência do dia
que cada experiência vivida e significada a dia [...] fui adquirindo cada vez mais ex-
empreende nas professoras pesquisadas. periência” e participar dos cursos de capa-
Apesar das diversas experiências citação na pastoral da criança “despertou
narradas, apenas uma, das doze profes- a vocação para o curso de pedagogia”.
soras, tenta estabelecer a ligação entre as Essa professora menciona, ainda, que “a
experiências vividas no passado e seus pastoral trabalha abrangendo desde a ali-
reflexos no presente, quando explica que mentação, o cuidado e o desenvolvimento
teve sua infância na zona rural, alegando integral da criança” (R8). Nesta fala, ela
ser uma pessoa tímida pelo fato de “ter tido demonstra conhecer a função de educar
pouco contato com pessoas” (R6). Também, e cuidar na Educação Infantil, ou seja,
essa mesma professora fala da infância acreditamos, então, que sua experiência na
difícil marcada por perda de pai, separação pastoral tenha repercutido na sua prática
do convívio dos irmãos, das mais diversas docente na Educação Infantil, já que lhe
violências a que foi submetida, para jus- proporcionou um embasamento teórico e
tificar o “complexo de inferioridade”, que, prático na área. Como a própria professora
segundo ela, influencia na sua profissão. relata: “Quando comecei o curso de peda-
Essa mesma professora ainda revela que gogia já tinha um conhecimento prévio
a sua experiência na profissão não foi em sobre as fases do desenvolvimento infantil”.
decorrência da formação, mas da vivência Tais afirmações nos remetem à
cotidiana nos espaços de trabalho. Ela categoria 1, em que as professoras pouco
alega que foi “observando a prática de reconhecem as contribuições do curso de
outras professoras” que aprendeu a lidar pedagogia na sua prática pedagógica,
com as crianças. bem como nos convidam a refletir sobre a
No relato 1, observa-se uma iden- atual proposta desses cursos que, a nosso
tificação da professora com profissão, ver, não proporcionam oportunidade de
ao mencionar que teve a oportunidade convivência das futuras professoras com
de trabalhar com uma sala do ensino a realidade das escolas já que o tempo
fundamental e, a partir dessa experiência, e o formato destinados ao estágio não
percebeu que as crianças “faziam parte têm sido suficientes e não garantem uma
de sua vida”. Já no relato 9, constatamos formação sólida para lidar com criança
que a experiência mais marcante para a nessa faixa etária.
professora foi no âmbito familiar quando Ainda na categoria Experiência de
ela menciona: “[...] de 10 filhos sou a pe- Vida, no que tange ao aspecto profissional,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 161-175, jul./dez. 2013. 171


foi possível perceber que, apesar das atuais da atividade humana. Como nos alerta
condições de trabalho (a contar com os Freire (1997, p. 161) “É digna de nota a ca-
baixos salários, a precária infraestrutura pacidade que tem a experiência pedagógi-
que propicie um ambiente mais favorável ca para despertar, estimular e desenvolver
para o aprendizado das crianças, entre em nós o gosto de querer bem e o gosto
outros aspectos), a maioria das professoras da alegria, sem a qual a prática educativa
se diz satisfeita com a profissão, posto que, perde o sentido”. Entendemos, assim, que
dos 12 relatos analisados, 8 evidenciam o “gostar do que faz” é essencial para
esse “gostar do que fazem”. No relato 1, a um profissional que atua na Educação
professora menciona: “Hoje, me considero Infantil, mas só o gostar não é suficiente,
uma pessoa feliz, estou aqui onde, por é preciso que a professora tenha clareza
onde passo sou respeitada como ser hu- do seu papel de educadora na formação
mano e profissional”, ela acrescenta, ainda: da criança. Nesse sentido, Freire (1997, p.
“[...] minha vida é Educação Infantil, porque 160-161) nos diz que “A afetividade não
é tão gratificante olhar para a carinha deles se acha excluída da cognoscibilidade” e
e vê que você é útil, que eles precisam do insiste para não pensarmos que “a prática
seu carinho e que você pode protegê-los educativa vivida com afetividade e alegria
de alguma maneira [...]. prescinda da formação científica séria e
Outra professora (R2) menciona que, da clareza política dos educadores e das
em seu primeiro trabalho como monitora, educadoras”.
gostou de imediato de trabalhar com a É interessante encerrar essa análise
faixa etária de Educação Infantil, pelo fato ressaltando o que uma das professoras
de as crianças serem “muito carinhosas”. menciona em seu relato, mas que acredita-
No relato 3, a professora diz que, no ano mos representar a maioria de suas colegas
de 2012, fez a opção por trabalhar com a profissionais.
Educação Infantil e afirma: “estou muito Com toda experiência que tive com
feliz”. Constatamos, ainda, nos relatos algu- o ensino fundamental e médio, com
mas colocações como “[...] faço o que gosto” certeza a que me influenciou mais na
(R4); “[...] gostei muito dessa faixa etária e minha prática pedagógica foi a Educa-
pretendo continuar com ela” (R5); “[...] gosto ção Infantil, por lá eu encontrei amor,
de ser professora e quero ser melhor a carinho sincero e força para continuar
cada dia” (R6); “[...] estou com uma turma neste caminho abençoado por Deus.
de 2 anos e adoro eles e o que faço” (R7) Dar e receber é muito gratificante. É
e “[...] percebi que estava no lugar certo, muito bom sentir esse calor que eles
fazendo algo que eu gosto e me realizo [as crianças] nos transmitem. (R1)
profissionalmente” (R9). O relato dessa professora nos faz
Gostar do que fazem, conforme a co- reportar a Freire (1997, p. 161) quando
locações acima, é essencial para o desen- esclarece que “É essa força misteriosa, às
volvimento do trabalho em qualquer área vezes chamada vocação, que explica a

172 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
quase devoção com que grande maioria Na leitura dos relatos, observamos a
do magistério nele permanece, apesar da tendência das professoras em não trazer
imoralidade dos salários. E não apenas à tona a contribuição dos fundamentos
permanece, mas cumpre, como pode, seu trabalhados ao longo do curso de peda-
dever. Amorosamente, acrescento”. gogia, e poucas mencionaram os cursos
Comungamos com Oliveira (2007), que frequentaram ao longo da trajetória
quando reflete sobre o discurso consen- profissional. Há uma supervalorização das
sual das professoras que, ao expressarem trocas de experiência, em detrimento das
sua afetividade e seu sentimento no que teorias que necessariamente fundamen-
toca ao ser professor, geralmente o fazem tam suas práticas. A dicotomia entre teoria
ancoradas nas expressões de amor, dedi- e prática, implícita em suas narrativas, é um
cação, carinho, principalmente quando se aspecto a ser refletido com o grupo. Isto, a
referem à Educação Infantil. No entanto a nosso ver, compreende um grande desafio
autora chama atenção para a importância a ser enfrentado ao longo do nosso projeto,
da afetividade na ação docente, desde que pois defendemos a ideia de que nenhu-
aliada a uma profissionalidade que não ma prática pedagógica seja destituída de
prescinde de uma formação específica uma teoria que a sustente, mesmo que
para o exercício da ação docente. o sujeito da ação docente não considere
tal proposição. Conforme afirma Micarello
Considerações (2005, p. 146-148):
Quando emerge o discurso enal- [...] não é possível sair da teoria e
tecendo a experiência e a troca com os entrar na prática, pois ao praticar,
o professor reconstrói a teoria, que,
pares, deixando ao esquecimento os sa-
por sua vez, reiventa a prática. [...] as
beres adquiridos na trajetória escolar na dimensões da teoria e da prática são
condição de aluno, nos remetemos aos indissociáveis, já que a teoria é um
ensinamentos de Tardif (2005) ao alertar conjunto de regras também práticas
que a profissão docente tem como pecu- e que a prática não é um ato qual-
liaridade uma imersão nela antes de nos quer, mas um ato que concretiza um
tornarmos professores, a contar que, como objetivo e é pensado em relação a
alunos, ao longo de aproximadamente 16 princípios. Essa ação refletida remete
anos, construímos quadros de referência ao conceito de práxis.
do que venha a ser um professor. Sobre Ao retomar os relatos biográficos com
esse aspecto ressaltado pelo referido autor, as professoras, o fizemos com a intenção de
constatamos que, exceto uma professora, a levá-las a compreender (e/ou repensar) de-
maioria não estabelece ligação entre aqui- terminados sentidos que dão àquilo em que
lo que viveram como alunas, na formação acreditam, pois, no movimento de realizar
inicial e o que vivenciam no seu cotidiano importantes ligações de fatos passados, os
de trabalho com as crianças. sujeitos constroem suas compreensões pre-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 161-175, jul./dez. 2013. 173


sentes. É o que Dominicé (apud CHAMLIAN, relatos e após devolução ao grupo, enten-
2010, p. 145) denomina de “ligas de saberes”. demos os variados contornos a se dar ao
No entanto, vale lembrar, conforme trabalho de formação continuada com as
explicita Chamlian (2010), que nem sempre professoras. A partir daí, estudos sobre pro-
esse exercício de rever o passado por meio fissionalidade docente, desmistificação da
da narrativa pessoal provoca necessaria- prática em detrimento da teoria e formação
mente mudanças no pensar, de modo continuada são temas a serem sugeridos
que alguns sujeitos podem rememorar o para os próximos encontros.
passado ausentando-se da reflexão, o que Vale ressaltar que o trabalho com os
pode sugerir que a experiência se revele relatos autobiográficos seguirá com o ob-
como mera reprodução e reafirmação das jetivo de auxiliar ao grupo de professoras
convicções presentes. na tomada de consciência de seu papel
Diante dos achados nesses 12 como profissional docente.

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mo. In: ARCE, Alessandra; MARTINS, Ligia M. (Orgs.). Quem tem medo de ensinar na Educação
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ção. Parecer 022/98. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, 1998.
______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular
Nacional para a Educação Infantil. Brasília, 1998.
______. Presidência da República. Casa Civil. Lei 11.274, Dispõe sobre a duração de 9 (nove)
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Brasília, 2005.
______. Conselho nacional de Educação. Conselho Pleno. Resolução CNE/CP 01/06. Institui
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Brasília, 2006.
______. Ministério da Educação. Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação.
Resolução CEB 05/09. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, 2009.
______. Casa Civil. Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Emenda Constitucional n. 59.
Dá nova redação aos art. 208, 211, 212 e 214 da Constituição Federal. Brasília, 2009.

174 Maria Izete de OLIVEIRA; Rinalda Bezerra CARLOS. Relato biográfico: uma tentativa...
CÁCERES. Secretaria Municipal de Educação. Conselho Municipal de Educação. Resolução n.
008/2009. Estabelece normas para a Educação Infantil no âmbito do Sistema Municipal de
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CHAMLIAN, H. C. Pesquisa (Auto) Biográfica na formação de professores para o ensino superior.
In: PINAZZA, M. A.; BARBOSA, R. L. L. (Orgs.). Modos de narrar a vida: cinema, fotografia, literatura
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
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JOSSO, Marie-Christine. Da formação do sujeito... ao sujeito da formação. In: NÓVOA, Antônio;
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PINO, A. A psicologia concreta de Vigotiski: implicações para a educação. In: PLACCO, M. N. S.
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ROLDÃO, Maria do Céu. Função docente: natureza e construção do conhecimento profissional.
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TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude. O trabalho docente. Elementos para uma teoria da docência
como profissão de interações humanas. Petrópolis, RJ, 2005.

Recebido em agosto de 2012


Aprovado para publicação em dezembro de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 161-175, jul./dez. 2013. 175


Para pensar a educação: sobre produção de
subjetividades, afetos e girassóis
To think about education: production of
subjectivities, affections and sunflowers
Norma Silvia Trindade de Lima*

* Doutora em Educação. Psicodramatista e Psicóloga.


Docente do Programa de Mestrado em Educação e do
Curso de Psicologia do Centro Universitário Salesiano de
São Paulo (UNISAL) – Unidade de Ensino Americana, SP.
E-mails: norma.lima@am.unisal.br; normastl@superig.com.br

Resumo
Somos seres prenhes de necessidade e imaginação, atravessados por fluxos que nos afetam e nos pro-
duzem. Olhares e dizeres pronunciados, insinuados e interditados. Identidades e diferenças nos compõem
como mosaicos. A identidade é uma história narrada, e a diferença, uma contingência velada. Nossa
história é uma narrativa criada, contada, ouvida, repetida, inacabada. Tanto mais fidedigna, quanto a
repetição e o testemunho. A potência humana é um mistério que se realiza ao acaso, por afecções. Assim,
sugere-se que os espaços e ações educativas assumam a intencionalidade de colaborar com processos
de singularização, estimulando o vigor e a potência de cada ser. Portanto este texto é uma narrativa sobre
educação, dando ênfase à produção de subjetividades e diferenças no âmbito do educar e do existir.
Palavras-chave
Educação. Produção de subjetividades. Diferença.

Abstract
We are beings full of needs and imagination, crossed by streams that affect us and produce us. Pronounced
glances and sayings, insinuated and interdicted. Identities and differences form us as mosaics. Identity
is a story narrated, and difference is a contingency veiled. Our history is a created narration, reported,
heard, repeated, unfinished. It is more trusted the more it is repeated and witnessed. The human power is
a mystery that happens by chance, by affecting conditions. Thus, it is suggested that educational spaces
and actions take the intent of collaborating with the processes of singularization, stimulating the potential
and vigor of every being. Therefore, this text is a narrative on education, emphasizing the production of
subjectivities and differences in the field of education and existence.
Key words
Education. Production of subjectivities. Difference.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 177-187, jul./dez. 2013
Contornos de um cenário Digressões possíveis (?)
Este escrito foi produzido por oca- A palavra educação enquanto signo,
sião do IV Congresso Internacional de não apresenta ou carrega em si nenhuma
Pedagogia Social, realizado em julho de essência, mas um fluxo de sentidos e signi-
2012, a propósito de um convite para a ficados. Conforme o conceito de différence,
mesa redonda, “Educação social e esco- uma característica do signo é o diferimento,
lar”, sugerindo o debate entre pedagogia ou seja, o adiamento da presença e a
social e escolar em suas proximidades, marcação da diferença relativa a outros
distanciamentos, intersecções e atuações signos (DERRIDA apud SILVA, 2000). A
de educadores. atribuição de significados e sentidos a um
Debruço-me, então, sobre uma jane- signo é um processo social e simbólico que
la, a fim de alucinar a paisagem sugerida. implica necessariamente relações sociais e
Meus olhos buscam uma miragem fresca, relações de poder. O poder de nomear, de
todavia constato que pensamos por meio significar, de definir, envolve e/ou agencia
de uma engrenagem estabelecida, uma uma eleição arbitrária, todavia legitimada,
lógica ordenadora de fluxos e fragmentos, num dado contexto cultural compartilhado.
e o olhar, capturado pela ordenação, tende Trata-se de vetores oriundos de interesses
à repetição. Os contornos de figuras visa- comuns num dado momento histórico,
das percebidos inspiram o pensar, sentir e, sejam estes políticos, culturais, econômicos,
enfim, compartilhar, a partir de vicissitudes sociais e tantos outros possíveis, conferindo
e tessituras de sentidos e significados legitimidade às criações e atribuições so-
constituídos socialmente. Nesse sentido, ciais. Entretanto esse aspecto não costuma
este escrito se compõe a partir de um ser explicitado, uma vez que as definições
percurso existencial-acadêmico e seus có- conceituais são apresentadas como ver-
digos de tradução e nomeação, expressão dades, como se estas não fossem uma
possível de modos de subjetivação que me invenção instituída, portanto, legitimada
atravessam e me permitem dizer sobre as por certos segmentos sociais, assim como
temáticas propostas. Estas, pensadas à sua visibilidade.
luz de inquietações sobre processos de O signo é ausência, está no lugar de
subjetivação engendrados no ambiente uma presença que nunca se realiza, não
educacional, sejam estes na escola, apesar é a coisa mesma, posto tratar-se de um
ou para além dela. Enfim, a educação so- processo de substituição ou simbolização.
cial e a escolar serão discutidas pelo vértice Nessa perspectiva, significado puro, abso-
da produção de subjetividades inerentes luto não é possível, devido a uma estrutura
às ações educativas, na perspectiva da instável e incerta da linguagem. Se o signo
inclusão e da diferença. adia a captura de totalização, então, a
palavra educação pode conferir uma infi-
nidade de significados e diferimentos. Aliás,

178 Norma Silvia Trindade de LIMA. Para pensar a educação: sobre a produção...
é o que constatamos frente à pluralidade de verdades”, conforme a legitimidade com-
de nomeações que adjetivam o substan- partilhada e instituída por grupos sociais.
tivo educação. O que parece justificar a Nesse sentido, existe o esforço para
proposta de diálogo entre dois conjuntos conceituar de modo distintivo a educação
de entendimentos, delineamentos e regu- social e a escolar, cujos propósitos ou
lações ligados à educação, o social e o efeitos seriam diferentes, embora (possi-
escolar. Ou, ainda, entre pedagogia social velmente?) complementares ou suplemen-
e escolar. Todavia as adjetivações como tares, posto ser a educação compreendida
sintomas parecem indicar uma reivindica- como processo social da existência, em
ção, expressão de algo latente, esquecido, seus modos de subjetivação e produção
suprimido. Necessidades produzidas num de identidades e diferenças. Nesse sentido,
dado momento histórico. Foucault (1979) não é possível falar de existência humana
havia chamado atenção para a irrupção sem pertencimento, sem relação social
e os efeitos de determinados enunciados num contexto datado, com características
que indicam uma descontinuidade na que se apresentam compondo um cená-
linearidade da história e que constituiriam rio, onde a trama e o drama humano se
“regimes de verdade”. Nesse caso, verdade desenvolvem.
não se refere a verdadeiro ou falso, mas Sobre o questionamento de mais
a uma circularidade entre saber e poder, uma adjetivação para a educação e/ou
demarcando quesitos de distinção e reco- para a pedagogia, Otto (2009) destaca
nhecimento que atribuem legitimidade a que os fundadores da pedagogia social
um conjunto de proposições que visam não tinham o propósito de criar mais
nomear e regular. Pelo próprio autor: uma categoria no campo educacional,
Por “verdade”, entender um conjunto mas refutar uma perspectiva de homem
de procedimentos regulados para a individualista, preconizando um educando
produção, a lei, a repartição, a circu- contextualizado em seu entorno vital, ou
lação e o funcionamento de enun- seja, “uma crítica da Educação focada no
ciados. A verdade está circularmente desenvolvimento dos indivíduos sem con-
ligada a sistemas de poder que a pro- siderar as dimensões sociais da existência
duzem e apoiam, e a efeitos de poder humana” (OTTO, 2009, p. 33).
que ela induz e que a reproduzem. Vale comentar que a concepção
“Regime” da verdade. (FOUCAULT, fragmentada e metafísica de fenômenos
1979, p. 14).
humanos e sociais remonta à penetração
As adjetivações sobre educação da perspectiva científico-cartesiana no
pensadas sob o prisma das circularidades campo educacional, professando um edu-
entre saber e poder, além de indicarem cando e um cenário educacional correlato
especificidades, distinções legais, proce- dissociados de uma gama de experiências
dimentais, espaciais, e, por conseguinte, significativas no plano existencial, cultural
proposicionais, quiçá constituam “regimes ou socioafetivo, tanto no que diz respeito

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 177-187, jul./dez. 2013. 179


à produção de saberes quanto aos fa- os seres, suas manifestações e problemá-
zeres educacionais, como no âmbito da ticas humanas.
produção de subjetividades, identidades e Sendo assim, segue a constatação
diferenças. Dito de outro modo, os parâme- de que a Educação trabalha, ainda, com
tros epistemológicos da Ciência moderna, um paradigma e lógica de pensamento
consubstanciados na proposição cartesia- desgastado, retrógrado, ineficiente e abu-
na, desdobraram-se sobre o mundo social, sivo, sobretudo, por produzir exclusões
especialmente, na mentalidade e cultura de vários tipos, ao preconizar um sujeito
educacional, instituindo um modo de “abstrato e universal”, o “educando normal”
pensar e agir fragmentado, dicotomizado, e, portanto, generalizável aos cenários
desencarnado, autoritário e excludente. A educacionais, no âmbito das expectativas
soberania de uma racionalidade asséptica, identitárias, norteadoras das intencionali-
pretensamente objetiva, neutra, imparcial, dades educativas.
isenta de contradições e emoções, em Ora, os enfrentamentos de deman-
busca de relações causais, passíveis de das e transformações contemporâneas
generalização e previsão, foram quesitos tangem o modo como se pensa e se
de uma aura cientificista que se enraizou compreende o homem, assim como se
no universo educacional. produzem subjetividades no contexto das
A lógica dualista, herdeira do pen- ações sociais, pedagógicas e educativas.
samento socrático-platônico, em busca Muitos pensadores, entre eles, Morin
de verdades puras e racionais, apartada (2001), já há algum tempo, ao ser convi-
das experiências e emoções, foi revitali- dado por Claude Allègre, então, Ministro
zada, sob o cunho do status científico, na da Educação da França, em 1997, para
Idade moderna. Um “regime de verdade”, colaborar com a reforma do ensino médio,
autoritário e excludente por pretender-se discutiu as implicações da transposição
absoluto e universal. Nessa perspectiva, a do modelo de pensamento da ciência
Razão como faculdade soberana, chave de moderna para a educação. Enfatizou a
compreensão do mundo e dos seres, não necessidade de se reformar o pensar para
só alavancou a Ciência, como penetrou no se viabilizar alguma transformação no
cotidiano da vida social, sobretudo educa- sistema educacional. Na perspectiva de
cional, haja vista o esvaziamento ou com- uma epistemologia da complexidade, as
prometimento do sentido e significado do questões de nosso tempo precisam ser
“conhecer”, decorrentes de uma fragmen- repensadas a partir do reconhecimento de
tação, especialização e hierarquização dos uma relação de reciprocidade e interdepen-
conhecimentos, ministrados em disciplinas dência, ou seja, um olhar multidimensional
estanques e atores que não dialogam. que concebe uma relação de retroalimen-
Sofremos e problematizamos con- tação entre sociedade e educação.
sequências de uma racionalidade que, De outro modo, Gallo (1999, p. 30)
historicamente, opera descontextualizando propõe pensar a educação menos como

180 Norma Silvia Trindade de LIMA. Para pensar a educação: sobre a produção...
ciência, mas,como “um espaço de inter- novos modos de subjetivação e novas
secção de saberes múltiplos”, de inspira- possibilidades estéticas, à luz de exemplos
ção rizomática. Isto quer dizer, refutar a clássicos, trágicos, traduzidos e/ou sugeri-
metáfora arbórea, em sua ordenação do dos pela arte.
fluxo do saber e conhecer, em seus modos A pertinência da crítica de Nietzsche
ascendente, fragmentado e hierárquico. De atualiza-se, perante o apelo exclusivo à
fato, o paradigma arbóreo do conhecimen- preparação de mão de obra para o mer-
to, de inspiração cartesiana, não responde cado, na perspectiva técnico-instrumental
à urgência de um novo pensar. e do consumo, desprezando a formação
Recuando um pouco, final do século cultural e humanística, tanto no âmbito da
XIX, na Basiléia, por ocasião de um ciclo educação social quanto da escolar.
de conferências proferidas sobre o futuro Uma constatação possível, quanto
dos estabelecimentos de ensino, Nietzsche às implicações dessas críticas, diz respeito
(2011) havia pronunciado uma crítica à ao distanciamento que o pensamento
emergência tendenciosa de um pragma- educacional estabeleceu das experiências
tismo cientificista no sistema educacional existenciais, ou seja, a educação apartou-
(no caso, alemão, à época), substituindo se da vida e do vigor.
uma perspectiva de formação humanística.
Nessas conferências, o papel da cultura é A educação e a perspectiva inclusiva
reverenciado para a formação educacional,
compreendida na perspectiva da dimensão A educação social parece ser defini-
humana e social, cuja máxima seria possi- da como a busca de ligação entre os pro-
bilitar o pensar sobre a existência humana. cessos sociais e pedagógicos, contemplan-
Nietzsche condenou a massificação da do as aflições sociais. Segundo Caro (2009),
cultura e da educação aliada à suprema- a experiência da educação social no que
cia do mercado. Ingerências oriundas de diz respeito à qualidade das relações esta-
interesses, sobretudo, político e econômico belecidas entre educador e educando, pode
na esfera educacional. contribuir com a educação de uma forma
A partir dessa obra, a educação mais ampla, especialmente com a escolar,
compreendida à luz da perspectiva trágica, sobretudo por, historicamente, contemplar
o homem é um herói. Luta e combate aos e/ou enfrentar questões sociais emergen-
desígnios impostos, em busca de uma re- tes e de exclusão, nos processos sociais e
alização viável socialmente, coletivamente. ações pedagógicas.
Nessa perspectiva educacional trágica, a Sobre a educação escolar, enten-
educação é um campo de possibilidades, demos as práticas formativas regulares e
no âmbito da formação humana, capaz de formais que ocorrem legisladas por uma
potencializar o vigor do pensar o sentido regulamentação geral, oficial e exterior ao
e dilemas da existência humana, a fim espaço e, em geral, aos atores educativos.
de criar novos modos de existir. Ensejar Como é o caso da organização do trabalho

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 177-187, jul./dez. 2013. 181


pedagógico, por meio de institucionali- de identidades, muito embora ainda não
zações de tempos, hierarquização dos se trate de um “regime de verdade”. Apesar
saberes, forma, conteúdo e mensuração. da concepção de inclusão ainda ser uma
A escola seria, então, a agência legal de polissemia, entendemos como a urgência
formação escolar, um direito constitucional da criação de (novos) modos e estilos de
de todos os cidadãos, enquanto instituição existência, de estéticas, portanto de novas
legítima de socialização do patrimônio possibilidades de subjetivações. Diferen-
cultural da humanidade. Todavia, apesar tes vetores e fluxos, como forças, podem
de um direito constitucional previsto na compor e propor maneiras, estilos de se
Carta Magna de 1988 e em vários outros viver, ou seja, outras estéticas existenciais,
documentos nacionais e internacionais, o conforme discute Deleuze (1992).
acesso e a permanência no ambiente es- Consideramos que a educação
colar ainda parece legítimo somente para produz sujeitos, encaminha políticas e pro-
alguns, aqueles que conferem identidade a cessos de individuação em seus modos de
uma abstração construída e compartilhada subjetivação por meio de agenciamentos
histórico-socialmente, “o aluno normal”, de enunciados coletivos (GUATTARI; ROL-
consentâneo a um padrão de expectativa NIK, 2010). Isto é, os ambientes educacio-
e de desempenho escolar. Os outros, os nais orquestram relações sociais e afetivas
que diferem, encontram uma série de estabelecidas entre os atores, sejam estes,
obstáculos até a exclusão. educador, educando, gestor e outros. A
Uma relação possível entre educa- regência dessa orquestra é marcada por
ção social e escolar conflui e/ou delineia- padrões de expectativas de desempenho,
se, a meu ver, na premência de abertura por valores explícitos e implícitos, por
à diferença – o que implica (re) pensar a procedimentos institucionais, enfim, por
noção de sujeito, de subjetividade e mo- práticas discursivas e não discursivas que,
dos de subjetivação encaminhados pelas por repetição e testemunho, legitimam
ações sociais pedagógicas ou não, mas enunciados sobre os sujeitos. Esses enun-
que passam pelos afetos ou condição de ciados, nomeações, discursos, funcionam
afetarmos e sermos afetados. como força que afeta o íntimo das pes-
Nesse sentido, evoca-se a discussão soas. Assim, tais enunciados ou “atos de
sobre o conceito de inclusão – sobre o qual nomeação”, quando são compartilhados
tenho discutido. Por inclusão compreendo e legitimados em um segmento, grupo ou
uma abertura ao novo, ao acontecimento filiação social significativo, incidem sobre
como impensável, a irrupção do inusitado. a subjetividade. Em outras palavras, as
Em tempos contemporâneos, educacionais, relações sociais instituem sujeitos. Dito de
a inclusão afirma e reconhece a legitimi- outra forma, as práticas discursivas e não
dade da diferença, como uma desconti- discursivas agenciam uma produtividade
nuidade, no sentido dado por Foucault, que ocorre no nível da intimidade, ou da
nos modos de subjetivação e produção subjetividade. Nesse sentido é que com-

182 Norma Silvia Trindade de LIMA. Para pensar a educação: sobre a produção...
preendo o ambiente educacional como Sendo assim, educação social e a
cenário e palco produtor de identidades escolar parecem compartilhar um “lugar
e diferenças, no âmbito dos processos de comum”, qual seja, dedicarem-se à for-
subjetivação. Estes, podendo encaminhar mação humana, cultural e social, nesse
processos de singularização, quando sentido, à produção de subjetividades,
singularizam, ou de alienação quando conforme já mencionado. Destaco, assim, o
massificam as singularidades. Um exemplo recorte de minhas reflexões, as intrínsecas
seria a normalização ou eliminação de um relações entre educação e produção de
“desvio”, em seus variáveis modos de ex- subjetividades à luz de uma perspectiva
pressão, como a eugenia. Aliás, um exem- inclusiva. Justifico o recorte em função de
plo característico a respeito do tratamento uma confluência que demarca uma traje-
conferido por certas cidades aos moradores tória de estudos (LIMA, 2003, 2007, 2008,
de rua. Nessa perspectiva, a educação, por 2009, 2010, 2011).
meio de suas práticas, posiciona sujeitos
na perspectiva de tessitura cultural e sim- Uma proposição educacional: penso
bólica, ou seja, na relação com a produção, quando sou afetada, desejo quando
apropriação e acesso a artefatos culturais. me sinto livre, nomeio quando não
Dito isto, a educação é um atributo posso ou não quero mais calar...
do existir humano, o que, portanto, nos
remete a modos de existência e, portanto, Já sei namorar; Já sei beijar de língua;
de relações que se afetam mutuamente Agora só me resta sonhar... Já sei aon-
e se configuram numa relação de inter- de ir; Já sei onde ficar; Agora só me
dependência e sobredeterminação. Nesta falta sair... (Já sei namorar. ANTUNES;
BROWN; MONTE, 2002)
feita, os sujeitos são forjados num campo
múltiplo de sobredeterminação. Quero com Como um disparador, evoco uma
isto dizer que a vida se realiza num cenário criação coletiva, a obra musical “Já sei na-
plural de vetores o qual compõe maneiras morar”, dos compositores: Arnaldo Antunes,
de pensar, dizer, querer, simbolizar e pro- Carlinhos Brown e Marisa Monte, a fim de
duzir. Ou seja, estamos falando de modos digredir sobre questões que parecem ex-
de subjetivação que afetam sujeitos que tremamente contemporâneas e presentes
animam e produzem os modos de sub- em contextos educacionais. Estas dizem
jetivação, numa promoção de sentidos e respeito às novas configurações e expres-
significados que vão desenhando o que se sões sobre existir, pensar e desejar. Muito
nomeia como cultura. Então, vale ressaltar embora, dissonâncias e diferenças sejam
que o conceito de cultura não é um pro- vividas como desafios. Protagonização de
duto, mas o próprio processo de criação e novos anseios, estilos, estéticas? Conflitos e
atribuição de sentidos e significados que estranhamentos frente ao pulsar de fluxos
conferem possibilidade de codificação e e figuras que despontam, racham, fissuram
compartilhamento (SILVA, 2000). cartografias educacionais postas, sobre as

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 177-187, jul./dez. 2013. 183


quais, nos debruçamos, neste momento, a meu também. (Já sei namorar, AN-
Educação social e a Escolar. TUNES; BROWN; MONTE, 2002)
Isto posto, valho-me da composição
Escuto sobre o que não mais captu-
“Já sei namorar” por compreendê-la como
ra, o que não mais interessa, a televisão,
protagonização de uma “nova” estética
a solidão, e ouço o anúncio de uma
existencial. Novo no sentido da irrupção
expansão, um transbordamento, uma
de algo ainda não normatizado, traduzido,
ambiguidade “eu sou de ninguém” mas
ordenado. A letra mencionada anuncia a
de “todo mundo” e “todo mundo é meu
emergência de um diferente modo de estar
também”. Uma conexão, um modo de se
no mundo, sentir, desejar e se relacionar.
relacionar sem fronteiras excludentes, ou
Em outras palavras, canta um processo de
isto ou aquilo. O eu está presente, preser-
singularização em curso. Uma possibilida-
vado e em reciprocidade, ele se relaciona
de de diferir, do ponto de vista existencial e
com o todo, com o mundo, e o mundo é
estético - o modo de se viver a vida.
recíproco. Outra forma de amar? Outro
Dado o propósito deste escrito, des-
modo de se relacionar, não mais em partes,
tacarei algumas pausas na letra da música
em fragmentos. O todo, conjunto, seriam
para servirem de bordas a partir das quais
redes afetivas?
podemos mergulhar ou saltar.
Mas, não se trata de completude,
Em sua primeira estrofe, há reconhe-
reconhecidamente “já sei ...” não está tudo
cida uma iniciação, uma série de saberes,
resolvido, ainda falta ganhar. “já sei namo-
aprendizagens, “já sei namorar, já sei beijar
rar, já sei chutar a bola, agora só me falta
de língua... agora só me resta sonhar...”.
ganhar”. Ganhar o quê? Reconhecimento,
Resta sonhar! Podemos ouvir como uma
legitimidade? Enfim, se a música puder
pista? Um pedido, uma necessidade, um
ser expressão de um devir, o que signifi-
desejo?
caria o florescimento do novo no âmbito
Podemos escutar, na música, que a
educacional?
aprendizagem não é o cerne, “já sei!”
O que significaria pensar a educa-
Mas resta sonhar!
ção, como campo de intersecções, como
Na sequência, eles cantam “Já sei
propõe Gallo, a partir de uma concepção
aonde ir, já sei onde ficar, agora só me
de devir humano? Poderíamos articular a
falta sair”.
noção de inclusão?
Sair! Partir? Deslocamento de um
lugar/ordem estabelecida, dada, instituída? Inclusão e devir: nascimento e(m)
Não tenho paciência pra televisão, educação
eu não sou audiência para a
solidão, eu sou de ninguém, eu sou A inclusão implica um questiona-
de todo mundo, e Todo Mundo me mento sobre fronteiras, quesitos e enun-
quer bem, Eu sou de ninguém, Eu sou ciados, ou seja, critérios e condições de
de todo mundo, E todo m u n d o é pertencimento, assim como nomeações

184 Norma Silvia Trindade de LIMA. Para pensar a educação: sobre a produção...
sobre o outro. O que se exige para fazer enquanto devir, dada a possibilidade de
parte de um dado grupo social? E, quais criar. Segundo Larrosa (1998), o nascimento
são as enunciações que vão sendo produ- remete à interrupção de uma cronologia.
zidas nesse processo de pertencer, diante Nas palavras deste autor:
e sobre o outro? Como essas indagações [...] a educação é a forma em que
e respostas se articulam? Quais são seus o mundo recebe os que nascem.
efeitos, do ponto de vista social e do indiví- Responder é abrir-se à interpelação
duo? ou melhor dizendo, da subjetividade de uma chamada e aceitar uma res-
produzida a partir de um delineamento ponsabilidade. Receber é fazer lugar:
produzido por enunciados que dizem abrir um espaço no qual aquele que
quem é o outro. vem possa habitar, colocar-se à dispo-
Trata-se de se refutar concepções sição daquele que vem sem pretender
dadas a priori, uma transmutação de va- reduzi-lo à lógica que rege em nossa
lores no que diz respeito às condições de casa. (LARROSA,1998, p. 73).
pertencer, pensar para, enfim, saltar sobre Leio nesse fragmento que educar
ares rarefeitos. tem a ver com receber, ou em outras pala-
A contemporaneidade, momento vras, com hospitalidade. Estar com o outro
histórico sobre o qual vivemos, apresenta demanda transpor uma fronteira muito
um esgotamento de modelos que orienta- complexa, pois o presente coloca em xeque
vam, outrora, o mundo social (HALL, 2000). todo um passado, em vista do futuro, de um
Parece que a marca de nosso tempo é a porvir. E é bastante difícil viver numa noção
instabilidade, a incerteza, a mudança, o temporal do presente. O relacionamento
fluxo incessante e heterogêneo que nos humano é um desafio dado, em vistas de
afeta e nos arrebata. Vários são os desafios. um Encontro existencial, como Caetano
Entre tantos, lidar com o que foge ao con- cantou em Sampa, “alguma coisa acontece
trole e à identidade como instância dada, em meu coração é que quando eu cheguei
naturalizada, fixada, previsível, portanto, por aqui eu nada entendi...”
passível de controle e adestramento. Outro pensamento estabelece rela-
Por outro lado, lidar com o outro, ção entre nascimento e educação, Arendt
enquanto alteridade, descontinuidade, (1997, p. 234)
envolve a possibilidade de diferir, trans-
mutar, nascer. A educação está entre as atividades
mais elementares e necessárias da
Quem nasce ou como podemos
sociedade humana, que jamais per-
nascer, hoje?
manece tal qual é, porém se renova
Como a educação favorece ao nas- continuamente através do nascimen-
cimento? to, da vinda de novos seres humanos.
Essa questão tem um duplo sentido,
referindo-se tanto a quem nasce, a criança Forjo dessas citações o questio-
que chega ao mundo, como aos já nascidos, namento sobre a possibilidade de se

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 177-187, jul./dez. 2013. 185


perspectivar, no campo da educação, uma educação social, seja na já institucionali-
brecha para a fertilidade, para a criação, zada educação escolar.
para a novidade, para a diferença, face Para concluir..., proponho: invente-
aos esforços de padronização típicos da mos outras versões... senão, nos tornamos
institucionalização da educação, seja na girassóis, destinados a seguir o sol.

Referências

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nomotor Records/EMI, 2002. 1 CD. Faixa 12.
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DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 1. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
GALLO, S. Transversalidade e educação: pensando uma educação não-disciplinar. In: ALVES, N.;
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GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
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LIMA, N. S. T. Educação, psicodrama e inclusão. Revista de Ciências da Educação, Americana,
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EDUCAÇÃO DA REGIÃO SUDESTE: PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NA REGIÃO SUDESTE
EM SUAS MÚLTIPLAS DIMENSÕES, 10., 10-13 jul. 2011, Rio de Janeiro. Caderno de resumos...
Rio de Janeiro: UFRJ, 2011.
______. Estudos sobre inclusão. In: ENCONTRO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO DA REGIÃO SU-
DESTE - PESQUISA EM EDUCAÇÃO NO BRASIL: UM BALANÇO DO SÉCULO XX E DESAFIOS DO
SÉCULO XXI, 9., 8-11 jul. 2009, São Carlos. Anais... São Carlos, 2009.
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Educação da Universidade Federal de Juiz de fora, Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 147-158, mar./ago. 2008.

186 Norma Silvia Trindade de LIMA. Para pensar a educação: sobre a produção...
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Bertrand Brasil, 2001.
NIETZSCHE. F. Escritos sobre educação. 5. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Loyola, 2011.
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SILVA. T. T. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T. T. Identidade e diferença
(Org.). Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

Recebido em agosto de 2012


Aprovado para publicação em abril de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 177-187, jul./dez. 2013. 187


Bioexpressão: uma proposta de formação integral
dos alunos do curso de Pedagogia*
Bioexpression: a proposal of integral formation of
the Pedagogy students
Lucia Helena Pena Pereira*
Cíntia Lúcia de Lima**
* Este trabalho, inicialmente, foi apresentado em
fevereiro de 2012, no 8o Congreso Internacional de
Educacion Superior – UNIVERSIDAD, 2012, na cidade
de Havana, Cuba, tendo sido ampliado e aprofundado
posteriormente.
** Profa. Doutora do Departamento das Ciências da Educa-
ção e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPE-
DU), da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
E-mail: luciahelenapp@gmail.com
*** Mestra em Educação pela UFSJ. Professora da Univer-
sidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).
E-mail: cintidlima@yahoo.com.br

Resumo
Este trabalho apresenta a síntese de pesquisa de Mestrado que teve por objetivo geral analisar a Bio-
expressão como possibilidade de formação integral dos graduandos do Curso de Pedagogia de uma
universidade federal mineira. A Bioexpressão é um conjunto de conhecimentos teórico-vivenciais que visa
à compreensão de si e das dificuldades de expressão própria que dificultam a vida, o exercício profissional
e as inter-relações, considerando o desenvolvimento do ser em sua integralidade, o que abarca as dimen-
sões cognitiva, afetiva, corporal, social e espiritual. O trabalho tem sua base nas teorias de Wilhelm Reich
e seus continuadores – Alexander Lowen, Stanley Keleman e David Boadella. As atividades bioexpressivas
se mostram como possibilidades de estimular o autoconhecimento do profissional em formação, seu olhar
para o outro e seu entorno, gerando reflexões e propostas de novas formas de atuação.
Palavras-chave
Bioexpressão. Formação integral. Curso de Pedagogia.

Abstract
This study presents the synthesis of research of Master’s Degree having a general goal to analyze the Bio-
expression as a possibility of integral formation of the Pedagogy students of a Federal University of Minas
Gerais. The Bioexpression is a set of theoretical and experiential knowledge which aims self-understand-
ing and of the difficulties self-expression that make life difficult, professional practice and inter-relationships,
considering the development of human being in its integrality, which includes the dimensions cognitive,

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 189-205, jul./dez. 2013
affective, bodily, social and spiritual. The work has its basis in the theories of Wilhelm Reich and his
followers – Alexander Lowen, Stanley Keleman and David Boadella. The activities of the bioexpression
are shown as possibilities for stimulating the self of the trainees, their look for anothet and their enviro-
ment, generating reflections and proposals for new ways of acting.
Key words
Bioexpression. Integral formation. Pedagogy Course.

Introdução a motora e a espiritual, gera limitações


ao seu desenvolvimento (REICH, 1995;
A partir da Resolução CNE1 n. 1 de DAMÁSIO, 1996; MATURANA, 2001). A par-
15/05/2006, a Universidade é o espaço de tir desse entendimento, ao longo de muitos
formação do futuro professor de educação anos de prática na sala de aula e estudos
da criança através do Curso de Pedagogia. de sua criadora, surgiu a Bioexpressão,
A educação infantil e a primeira etapa um conjunto de conhecimentos teórico-vi-
do ensino fundamental (do 1o ao 5o ano) venciais que tem por finalidade a compre-
são encargos do futuro pedagogo. Face às ensão de si e das dificuldades de expressão
necessidades prementes, oriundas de uma própria que dificultam a vida, o exercício
sociedade em contínuo processo de mu- profissional e as inter-relações.
dança, torna-se relevante a reflexão sobre O campo teórico-prático da Bioex-
o papel do professor que se insere nesse pressão foi configurado em pesquisa de
contexto. Para que a criança se desenvolva doutorado (PEREIRA, 2005), e os estudos
em suas dimensões cognitiva, afetiva e continuaram a ser desenvolvidos por
motora, o futuro educador deve ter clareza uma das linhas de pesquisa do Núcleo
de sua responsabilidade nesse processo. de Estudos Corpo, Cultura, Expressão e
Mas, para assumi-la, esse profissional em Linguagens (NECCEL) da Universidade
formação deverá, além de conhecimentos Federal de São João del-Rei (certificado
específicos de sua área de estudos, viven- pelo CNPq), abrindo espaço para estudos
ciar possibilidades de ação, refletir sobre de Iniciação Científica e Pós-Graduação.
elas e ser capaz, a partir da apropriação Os dados da pesquisa de campo que aqui
do aporte teórico-metodológico oferecido, apresentamos fazem parte da pesquisa de
de recriar esse conhecimento e adequá-lo Mestrado da coautora deste texto.
à sua prática de sala de aula. Este trabalho teve por objetivo geral
O intelecto é uma das dimensões analisar a Bioexpressão como possibilida-
fundamentais do ser humano, entretanto, de de formação integral dos graduandos
se tomada dissociadamente das outras do Curso de Pedagogia. Para tal, foram
dimensões – a emocional, a corporal, observadas três turmas da disciplina ofe-
recida durante um semestre letivo (de fe-
1
Conselho Nacional de Educação
vereiro a julho de 2011), sendo registrados

190 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
o desenvolvimento teórico e vivencial das zando dimensões até então adormecidas
aulas e os depoimentos ao longo de todo em si próprio. A Bioexpressão, por meio de
o processo; e feitas entrevistas (uma inicial suas atividades, pode proporcionar àqueles
e outra final) com um grupo de voluntárias alunos que com ela tiveram contato, um
composto por treze alunas universitárias. maior grau de flexibilidade corporal, maior
A Bioexpressão2 busca formas de capacidade respiratória e o consequente
minimizar limitações comuns a todos nós aumento de vitalidade, uma diminuição
e de com elas conviver de modo mais sau- das dores e tensões musculares, algumas
dável, estimulando o autoconhecimento, o estratégias para facilitar a expressão dos
cuidar de si, a autoexpressão e a reflexão seus desejos e de suas angústias, maior
sobre a corporeidade e o sensível na prá- equilíbrio e, em decorrência desses ganhos,
tica pedagógica. Para tal é apresentado ter maiores possibilidades de encontrar
um conjunto de vivências corporais – ati- soluções e/ou lidar mais facilmente com
vidades em que o movimento expressivo os percalços naturais do cotidiano e da
e/ou a percepção corporal permitem que prática docente.
entremos em maior contato conosco, que
aprendamos a fazer melhor uso da respi- Bioexpressão: um olhar mais
ração, a ouvir mais nosso corpo, perceber abrangente sobre o ser humano
e liberar tensões, criando estratégias para
A Bioexpressão é uma proposta pe-
lidar com as dificuldades do dia a dia (PE-
dagógica que apresenta possibilidades de
REIRA, 2005). Acreditamos que isso é pos-
trabalhar a integralidade do ser humano
sível, quando observamos que, através da
– corpo, emoção, mente e espírito. Não é
Bioexpressão, criamos oportunidades para
uma “disciplina” como geralmente a co-
que o ser humano se perceba como um
nhecemos, com conteúdos a serem apren-
ser integrado, que se relaciona, conectando
didos, mas, especialmente, um conjunto de
seus conhecimentos, ações e emoções.
conhecimentos, técnicas e vivências que
A criatividade e a expressividade podem
possibilitam expandir as condições de vida
vivificar-se, desenhando novos esboços na
e de expressá-la, levando ao futuro educa-
sua trajetória de vida. Através do processo
dor, ou mesmo, a educadores graduados,
de maior percepção de si, de autocuidado,
possibilidades de se conhecerem mais, de
de autoexpressão, o futuro professor tem
se expressarem em sua singularidade, de
a possibilidade de criar e alimentar novos
investirem em um permanente processo
canais de ser e estar no mundo, valori-
de autoformação e de autocuidado, e de
se relacionarem melhor consigo mesmos
2
A Bioexpressão é um modo de compreender o e com seus educandos para que possam
ser humano, tendo sido, desde o primeiro semestre atuar com mais abertura em sua prática pro-
de 1997, ministrada como disciplina eletiva em
licenciaturas e Pedagogia na Universidade Federal
fissional, o que é compatível com qualquer
de São João del-Rei (UFSJ). campo de conhecimento (PEREIRA, 2005).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 189-205, jul./dez. 2013. 191


As atividades bioexpressivas têm em detrimento da outra – corpo e espírito
como base o princípio reicheano de uni- são aspectos da personalidade que devem
dade e antítese do funcionamento psicos- ser integrados. Segundo Boff (2001), que
somático. Trabalha-se o aspecto corporal tem uma visão que se aproxima bastante
de forma mais evidente, mas o objetivo é da compreensão de Lowen e Boadella, e
trabalhar o ser humano como uma totali- da qual compartilhamos, espiritualidade
dade, uma vez que, na visão de Wilhelm é o que produz uma mudança em nosso
Reich, sempre que se trabalha o corpo, interior, não uma mudança superficial,
trabalham-se as emoções e o pensamento. mas aquela que transforma nossa estru-
Alexander Lowen, Stanley Keleman e David tura de base. A espiritualidade não está,
Boadella, continuadores de Reich, trazem necessariamente, vinculada a qualquer
estudos que ampliam a teoria reicheana, crença religiosa, mas sim vinculada a uma
também contribuindo para a Bioexpressão. dimensão mais profunda do ser humano,
Boadella (1992) acredita ser o es- que nos induz a viver com mais plenitude
pírito a qualidade de cura que é inerente e solidariedade, em maior conexão com a
ao ser humano e que possibilita que nos humanidade, gerando possibilidades de
integremos e manifestemos, na vida diária, um melhor modo de viver e conviver.
qualidades latentes de nossa essência Outro aspecto que a Bioexpressão
(self). É podermos estar integrados ao que tem como foco é o desenvolvimento da
fazemos, às pessoas e à nossa cultura. A resiliência. Segundo Tavares, do ponto
possibilidade de uma transformação mais de vista psicológico, a resiliência é a
profunda ocorre quando nossa essência é capacidade de as pessoas, tanto indivi-
tocada, o que pode acontecer de diferentes dualmente quanto em grupo, resistirem a
formas; mas, seja qual for, sempre é neces- situações desfavoráveis sem perderem o
sário que as couraças sejam flexibilizadas, seu equilíbrio, ou seja, a capacidade de se
ou seja, que os bloqueios que se manifes- acomodarem, e retomarem seu equilíbrio
tam no psíquico e no somático, simulta- incessantemente. Afirma que
neamente, possam se alargar como nós [...] o desenvolvimento de capacida-
apertados que, pouco a pouco, se tornam des de resiliência nos sujeitos passa
mais frouxos. E é exatamente isso que as pela mobilização e ativação das
atividades bioexpressivas têm por objetivo. suas capacidades de ser, estar, ter,
Quando nossa energia se volta de- poder e querer, ou seja, passa pela
masiadamente para as questões de ordem sua capacidade de auto-regulação e
externa, como na busca de poder e de auto-estima [...]. (TAVARES, 2001, p. 52).
ganhos materiais, nos afastamos de nós Podemos acrescentar que essa capa-
mesmos. Por outro lado, se negamos nosso cidade resiliente passa, também, pelo de-
corpo, sufocando necessidades básicas senvolvimento de um maior conhecimento
físicas e emocionais, também se cria uma e percepção de si e de autocuidado. Olhar
cisão. Uma parte não pode ser negada mais para si e cuidar-se, no sentido aqui

192 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
proposto, significa abrir-se para o outro e os impulsos são reprimidos para que a
entrar em contato com possibilidades de integridade do indivíduo seja preservada.
ação, o que pode ser viabilizado com as Esse mecanismo é, a princípio, salutar
atividades bioexpressivas. e natural. Mas, se somos levados a nos
defender consecutivamente de agressões
A unicidade soma-psique externas, não permitindo que os impulsos
naturais se mostrem, as defesas acabam se
Reich, psiquiatra austríaco, postulou
tornando automáticas e inconscientes, ou
a unidade funcional entre o psíquico e o
seja, se manifestam mesmo não havendo
somático, concluindo que a mesma ener-
mais a situação externa que representava
gia alimenta esses dois aspectos, gerando
ameaça. Podemos dizer que as estases,
a relação e a mútua influência entre
estagnações da energia vital, são cronifica-
atitudes corporais e atitudes psíquicas.
Estudiosos de áreas diferenciadas, como ções de soluções que foram bem sucedidas
Maturana (2001) e Damásio (1996), ao para resolver problemas específicos em um
longo de quase um século do início das determinado momento, mas que, como
pesquisas de Reich, vêm comprovando o formas de proteção não mais necessárias
conceito de que corpo e psique são faces e que se tornaram recorrentes, impedem
de uma totalidade. que se criem novas soluções, que se vis-
Reich (1995; 1998) desenvolveu o lumbrem novas possibilidades, que haja
conceito de couraças musculares ou de maior flexibilidade (REICH, 1995; 1998).
caráter, que são defesas criadas pelo ego, As funções biológicas fundamentais
parte do indivíduo com a qual administra de contração e de expansão foram obser-
sua relação com o mundo. O caráter, para vadas por Reich tanto no psíquico quanto
Reich, não é algo inato, mas sim uma no somático. Essas duas funções básicas
estrutura resultante de situações vividas, se relacionam com o funcionamento do
de um processo de construção histórica. sistema nervoso vegetativo ou autônomo.
É com ele que vivemos nosso cotidiano, Esse sistema regula processos corporais
que somos e que nos relacionamos. Daí a básicos como respiração, pulsação cardí-
afirmação de Reich de que nossa história aca, circulação, digestão, entre outras, e se
de vida está congelada em nossos corpos. subdivide em sistema nervoso simpático e
Os nossos impulsos naturais se parassimpático, que funcionam de forma
expandem e se expressam, em uma ida- antitética: o parassimpático opera na dire-
de mais tenra, como uma manifestação ção da expansão, do prazer e da alegria;
psicobiológica básica e natural da vida. ao contrário, o simpático opera na direção
Quando, entretanto, são proibidos de se- da contração, da tristeza, do desprazer. “O
rem expressos (por atitudes de desamor, processo vital consiste em uma contínua
de desrespeito, de violência, enfim, por alternância entre expansão e contração”
situações vividas como ameaçadoras), (REICH, 1995, p. 246).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 189-205, jul./dez. 2013. 193


O encouraçamento se dá pela es- pelas couraças musculares. Os estudos de
tagnação da bioenergia ou energia vital Reich contribuem, também, para o entendi-
(estase), que deixa de fluir livremente mento de que a liberação ou mobilização
pelo corpo, havendo uma diminuição da de algumas dessas couraças pode tornar
pulsação e do fluxo energético. Acaba por a expressão mais viva, mais livre e mais
haver uma estagnação mais acentuada na espontânea, o que implica estar mais cen-
contração (na tensão, na preparação para a trado, em maior contato consigo mesmo,
ação de luta ou fuga) ou na expansão (no com maiores condições de interagir com
estado de relaxamento, na inação). “O en- pessoas e situações de forma mais flexível
couraçamento afasta os indivíduos do pro- e, por isso mesmo, mais saudável.
cesso dinâmico básico da vida. A vida para
de fluir” (CÂMARA, 1998, p. 81). Keleman Flexibilizando as couraças e
(1992) pontua que um bom tônus muscular equilibrando o processo de expansão
e um maior equilíbrio emocional têm como e contração
base a pulsação regular do organismo, sua Os teóricos da área da psicossomá-
capacidade de expansão e contração, ou tica que dão fundamentos à Bioexpressão
dizendo de outra maneira, têm por base um – Wilhelm Reich, Alexander Lowen, Stanley
fluxo contínuo da bioenergia. As respostas Keleman e David Boadella – mostram que
que cada um dá ao mundo criam uma os bloqueios da energia são criados em
forma emocional particular, e cada indiví- função de nossa história de vida, fixando-
duo responde de acordo com sua herança se em nosso corpo, mas que é possível
emocional genética, com sua forma própria haver uma restauração do fluxo natural
de interagir com as “demandas” sociais e da bioenergia através da flexibilização das
se autoorganizar. Ter consciência desse pro- couraças e do restabelecimento do fluxo da
cesso é o primeiro passo para conhecer um energia vital. E os estudos da Bioexpressão
pouco mais a si mesmo e gerar mudanças. nos permitem a compreensão de que as
Como a busca da Bioexpressão é atividades lúdicas, artísticas, expressivas e
possibilitar ao educador se conhecer um criativas podem ser um recurso para flexi-
pouco mais e contribuir para que, nele, a bilizar as couraças. Além disso, já existem
vida se expresse através de pensamentos, estudos que mostram que as atividades
sentimentos e movimentos, ou seja, que lúdicas podem abrir espaço para o de-
o futuro educador possa adquirir maior senvolvimento da resiliência, como o de
fluidez, a teoria reicheana pode dar suporte Machado (2010).
para a compreensão de como a expressivi- As atividades da Bioexpressão, que
dade e a autorregulação3 são constringidas se alimentam da ludicidade, se caracteri-

3
A autorregulação pode ser entendida como a ca- criativa e adequada para responder às exigências
pacidade de o ser humano agir de forma autônoma, e necessidades da vida.

194 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
zam como atividades não impostas e, sim, firmeza, sua força, trazendo a sensação de
compartilhadas, tendo como finalidade que estão enraizados.
a vivência do momento. Podem facilitar Embora alguns anos depois, po-
aos seus participantes a consciência de si demos dizer que algumas afirmações
mesmos e a autoexpressão, o que significa de Lowen estão absolutamente atuais. O
aumento do fluxo de sua energia vital. As autor observa que “é comum falar-se que
limitações da expressividade, como vimos, o indivíduo de hoje em dia está alienado
mantêm uma relação com as couraças que ou isolado. É mais raro ouvir-se dizer que
vamos criando e com o desequilíbrio do ele não tem base, que está desenraizado”
fluxo de energia daí decorrente. (LOWEN, 1982, p. 85). Podemos trazer essa
São três os elementos que fazem asserção para nossos dias, quando per-
parte de qualquer vivência da Bioex- cebemos que há ausência de contato do
pressão: o grounding, o centramento e a ser humano consigo, com o outro e com
expressão pessoal. O grounding (base ou a sua bioenergia.
enraizamento) é um dos grandes eixos Na bioenergética, grounding signifi-
da Bioexpressão, desenvolvido através de ca entrar em contato com o chão, não de
atividades diversificadas (como a dança e forma mecânica, mas energética. Muitas
trabalhos com ritmo), porque, como obser- são as razões para essa perda de contato,
va Lowen (1984), o grounding permite o e o autor cita algumas causas como o
contato com a própria sustentação. uso excessivo do carro, do avião, a falta
As atividades de base (grounding) de contato físico da criança com sua
trabalham a autoconfiança, aumentam o mãe (ou substituta), que é o seu primeiro
senso de segurança, descarregam tensões, chão. Falta-nos contato com a terra, com
trazendo-nos para o aqui-agora. Isso per- a natureza. A criança, hoje, de modo geral,
mite que os participantes das atividades não brinca mais na rua, não sobe mais
se sintam seguros e acolhidos por si em árvores, não rola no chão, não pode se
mesmos para expressarem o que, muitas sujar, não pode fazer barulho, não pode...,
vezes, está reprimido em seus corpos. Es- não pode... Sua energia está contida, do-
sas atividades propiciam o fortalecimento minada, buscando formas de se expandir.
do contato com a realidade. Através de Essa criança cresce e, provavelmente, se
exercícios que priorizam o trabalho com tornará um adulto com muitas dificuldades
as pernas e os pés, mantêm um contato e inseguranças. Talvez alguém que tenha
mais concreto com sua base e com seu muitos medos, que seja tímido, que ali-
eixo. Quando os participantes pisam mais mente sintomas de baixa autoestima, que
firme no chão, conseguem transportar para não consiga se relacionar naturalmente,
a sua vida possibilidades de lidar com as que se enclausure nos seus sentimentos.
situações cotidianas com mais firmeza e Essa criança corre o sério risco de se tornar
mais segurança. Enfim, são exercícios que um adulto infeliz e insatisfeito com sua
os ajudam a manterem contato com sua trajetória de vida. Por isso, a intenção de se

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 189-205, jul./dez. 2013. 195


trabalhar a pessoa em sua totalidade, des- mover-se livremente e sentir com inten-
de cedo, para que ela cresça rodeada de sidade”. Habitualmente, respiramos de
possibilidades de vivenciar uma situação maneira limitada, não aproveitando todos
pessoal mais satisfatória. Como salienta os recursos disponíveis em nós. Isso pode
Keleman (1996, p. 87), “formar-se, crescer, acarretar uma sensível diminuição do
requer compromisso emocional. Requer nível de vitalidade. E a respiração feita de
uma expressividade em contínua matura- modo consciente desencadeia um maior
ção, um estilo de vida que se instala na equilíbrio energético e melhores condições
agradabilidade do viver em vez do poder”. de concentração. Quando aumentamos o
As atividades de grounding são poder de concentração, somos capazes de
realizadas, preferencialmente, ao som de estar frente às situações, com mais atenção,
ritmos bem marcados (danças indígenas equilíbrio e prontidão. Reich (1995, p. 261)
e africanas, por exemplo) e de pés des- observa que “conter a respiração parece ser
calços. Esse contato direto dos pés com o uma proteção, uma couraça, uma proteção
chão permite o sentir e o conectar-se com do eu. Mas, ao fazer isso, ficamos ainda
as forças que vêm da terra, e perceber a mais indefesos”. Respirar é equilibrar a
sustentação das pernas. Isto é fundamental pulsação vital, ou seja, equilibrar todo o
para que o sujeito perceba essa força em organismo; é uma forma eficaz de relaxar
si mesmo, o que, provavelmente, lhe pos- e energizar-se, que deve ter nossa atenção.
sibilitará condições de se posicionar com Na Bioexpressão, a expressão pes-
mais firmeza em seu meio. soal se manifesta nas vivências que criam
O centramento é utilizado pela Bio- a possibilidade de a pessoa expressar-se
expressão com o objetivo de facilitar o res- com maior autenticidade, seja através do
tabelecimento do ritmo do fluxo de energia contato visual, do movimento ou da comu-
metabólica e do equilíbrio entre as duas nicação verbal. É a fala conectada com a
partes do sistema nervoso vegetativo – sis- emoção, com o pensamento e a ação. A
tema simpático e parassimpático. Ou seja, voz é um recurso significativo de expressão,
tem por objetivo estimular uma respiração como frisam Reich (1995) e Boadella (1992,
mais profunda e favorecer o equilíbrio p. 113), que ressalta, citando Pierrakos:
emocional. Também não podemos esque- “Engolir os sentimentos e calar-se significa
cer que, ao reequilibrarmos a respiração, reprimir e comprimir a alma”.
estamos reequilibrando a energia emocio- Quando educador e educando
nal e evitando tensões musculares. Através estabelecem uma relação de confiança
da respiração profunda, é possível oxigenar e acolhimento, a expressão pessoal tem
todo o organismo, há aumento da carga espaço para se mostrar; há a possibilidade
energética, o que significa, literalmente, de que o educando, futuro educador, faça
que o corpo ganha mais vida. um contato profundo consigo mesmo e
Lowen (1984, p. 31) observa que “es- com sua força. A expressão é resultado de
tar cheio de vida é respirar profundamente, uma série de atividades e vivências que

196 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
vão, progressivamente, criando um clima por quase todos (algumas vezes, todos) os
de confiança, respeito e permissão. sujeitos da pesquisa. Os resultados foram
analisados tendo por base o referencial
Analisando os dados e apresentando teórico utilizado e os eixos da Bioexpressão.
alguns resultados Através da observação das vivên-
cias, pudemos acompanhar um processo
A pesquisa empírica de cunho qua- de entrega gradual e de mudanças na
litativo se constituiu de observações das expressão corporal. Olhares desconfiados,
atividades desenvolvidas em sala de aula, movimentos sem fluidez, mais pensados
de depoimentos colhidos ao longo de todo que sentidos, respiração superficial, testas
este período (de fevereiro a julho de 2011), franzidas, contenção e acanhamento foram
e de entrevistas iniciais – em fevereiro de sendo substituídos por olhares mais tran-
2011 e finais – em julho de 2011. A orga- quilos, movimentos fluidos, rostos e corpos
nização e análise dos dados por categorias relaxados, respiração mais profunda e rit-
(BARDIN, 2008) nos permitiram observar mada, enfim, por uma entrega à atividade
resultados semelhantes experimentados e pelo prazer em desenvolvê-la.

Foto 1 – Dança Circular

Reich (1995) afirma que as resistên- nos defender, e lidar com isso é difícil. As
cias são inconscientes e se manifestam vivências flexibilizam essas defesas, e essa
como forma de defesa. Temos medo de so- flexibilização permite que a energia em
frer novamente aquilo de que precisamos estase se movimente. Nosso lado saudável

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 189-205, jul./dez. 2013. 197


poderá ir promovendo mudanças de forma Faço exercícios de respiração e funciona
lenta e gradual (autorregulação). Nossos realmente”.
educandos não precisam saber disso teo- O centramento e o grounding eram
ricamente, mas a permissão para “ser do muito enfatizados em nossos encontros.
jeito que se é” é uma forma de lhes darmos Muitos exercícios de respiração foram feitos,
grounding, isto é, sustentação. além de uma constante observação para
Os dados colhidos foram distribuídos que não a prendessem, pois há uma forte
em três categorias de análise: Percepção tendência de o fazermos em qualquer situ-
sensorial e percepção da respiração; ação de tensão ou constrangimento. Por ou-
Cuidado de si e do outro; Significados in- tro lado, como enfatiza Lowen, a respiração
corporados. limitada gera dificuldade de concentração,
intranquilidade, irritabilidade e tensão.
a) Percepção sensorial e percepção da A dificuldade de respirar profunda-
respiração mente está associada ao medo de
sentir. A respiração cria sensações. [...]
A maior percepção da respiração e [As pessoas] têm medo de sentir sua
seu uso como forma de acalmar ou lidar tristeza, sua raiva e suas apreensões.
com momentos difíceis foi uma tônica das Quando eram crianças seguravam a
respiração para não chorar, puxavam
falas, como mostra Safira: “Presto mais aten-
o ombro para trás, tensionando o pei-
ção na minha respiração. Principalmente, to para conter a raiva, e apertavam a
quando estou nervosa, procuro colocar garganta para evitar o grito. (LOWEN,
o que aprendi com a Bioexpressão. (...) 1984, p. 33-34).

Foto 2 – Atividades de Respiração

198 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
Outro ponto que se repete nas falas nas costas, uma tensão no ombro. E aí eu
é a maior percepção de si, daquilo que o tento percebê-las, cada vez mais, pra poder
corpo expressa e a busca por soluções aliviar [as dores]”. Jade afirma: “Ficam mais
como nos mostra a fala de Ágata: “Consigo nítidas agora as sensações do meu corpo.
perceber se a dor é por cansaço, por estres- (...) Eu sei de onde vem a dor, o motivo que
se, por ansiedade. E o corpo realmente dá a está gerando. (...) Fica mais fácil fazer
sinal. Ou é uma dor de cabeça ou uma dor algo se a gente está percebendo a causa”.

Foto 3 – Palmas dançadas

b) Cuidado de si e do outro novas formas de olhar o que estava a sua


volta. Dançar e expressar-se criativamente
As várias formas de atividade (dança, são formas de expressar-se com maior
massagem, meditação ativa, movimentos liberdade, de deixar as emoções fluírem,
expressivos) possibilitaram que cada par- de travar maior contato consigo e com o
ticipante se percebesse um pouco mais, outro, quando o trabalho é em dupla ou
que percebesse sua energia fluindo, a em grupo (PEREIRA, 2011).
possibilidade de superar limites, de ter

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 189-205, jul./dez. 2013. 199


Foto 4 – Massagem em dupla

A questão de cuidar de si mesmo e cuidado comigo mesma também...


do outro, do respeito aos limites próprios Não só fisicamente, mas também
e dos daqueles que estão à nossa volta procurando entender mais o meu
foi muito visível nos encontros do grupo corpo, a minha saúde, o equilíbrio e
o bem-estar (Água-Marinha).
e esteve muito presente nos depoimentos
como podemos observar nas falas abaixo: Segundo Lowen (1989), a compre-
O botão off foi acionado, devo parar e ensão de nós começa no próprio corpo,
repensar minha rotina, as prioridades, que responde com inteligência ao meio
devo entender meu corpo, cuidar de ambiente. Acrescenta que essas impres-
mim para, através disso, cuidar e sões sensoriais têm um significado que
gostar do outro. Ninguém vive sem é apreendido pelas mentes através da
o outro [...] Aprendi que se eu não história evolutiva de sua espécie. Sob essa
me respeito, o outro também não visão, entrar em contato com nosso corpo,
faz isso; que eu sou responsável por com nossas percepções, nos ajuda a nos
mim (Cristal). conhecer um pouco mais e o que nos es-
Antes, eu cuidava mais do outro do timula, o que nos causa medo, o que nos
que de mim, [...], eu sempre estava traz bem-estar, quais são nossos limites e
atenta, procurando estar ao lado da nossas possibilidades.
pessoa que tivesse precisando, ofe- Entretanto, para que possamos, de
recendo apoio, ajuda e, às vezes, me fato, entrar em contato com nossos corpos,
deixava de lado. Agora tenho mais precisamos de um ambiente que nos tra-

200 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
ga segurança, confiança, suporte afetivo, a solidariedade, a colocação de limites.
enfim, precisamos criar um grupo coeso. Apropriamo-nos das palavras de Madalena
Nosso grupo, como qualquer grupo, não Freire (2001, p. 65): “um grupo se constrói
nasceu pronto, ele se construiu com as no espaço heterogêneo das diferenças
bagagens, dificuldades e peculiaridades entre cada participante: – da timidez de um,
de seus componentes. Construiu-se tendo do afobamento do outro; da serenidade de
por base a confiança que também preci- um, da explosão do outro; do pânico de um,
sou ser construída, alimentada, cuidada; da sensatez do outro; da mudez de um, da
tendo por base o respeito, o acolhimento, tagarelice do outro [...]”.

Foto 5 – Roda de Embalamento

c) Significados in-corporados As futuras pedagogas que partici-


param da pesquisa desenvolveram uma
As atividades de Bioexpressão e as atenção maior para sua forma de estar no
reflexões sobre a teoria que as embasa per- mundo e a olhar mais a sua volta como
mitiu que as participantes da pesquisa pa- mostram as falas abaixo.
rassem por momentos para olhar para suas A gente passa a perceber mais as
atitudes, para sua forma de lidar consigo coisas. Sentir mais as pessoas [...] a
mesmas, para suas emoções e investissem gente vive num mundo muito cor-
em pequenas mudanças que, gradualmente, rido, muito automático... E quando
foram sendo in-corporadas – trazidas para a gente tá na Bioexpressão, a gente
seus corpos e para seu dia a dia. aprende a parar, a perceber, a sentir

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 189-205, jul./dez. 2013. 201


que a outra pessoa também sente as constantemente construindo nossa identi-
coisas... Que a pessoa também tem dade. E isso é possível a partir do momento
um sentimento, do mesmo jeito que a que tomamos contato com o nosso corpo.
gente tem. Então a gente consegue... Para percorrermos esse caminho, é ne-
dar uma chance pro outro, sabe? E se
cessário nos conscientizarmos dos nossos
dar uma chance também. Achei isso
sentimentos. Além disso, Lowen (1979, p.
muito bom (Turquesa).
16) cita que o indivíduo “deve conhecer a
Eu aprendi a andar mais devagar expressão de seu rosto, a sua postura e a
porque eu andava muito correndo. forma de movimentar-se. Sem esta cons-
Aprendi a observar mais as pessoas,
ciência da sensação e atitude corporais,
as coisas que estão ao meu redor,
a pessoa torna-se dividida: um espírito
porque antes eu não observava.
Aprendi a respirar melhor, mais deva- desencarnado e um corpo sem alma”.
gar, percebendo a minha respiração. Keleman (1996, p. 53) nos mostra
Aprendi a lidar com as necessidades que é possível transformar-se e enfati-
da criança, do movimento corporal e za que “a porta nunca está fechada. A
o que eu posso dizer mesmo é que formação do caráter está enraizada no
eu aprendi a lidar com as minhas mesmo processo em aberto que nos for-
emoções, a dizer não. O que eu posso ma enquanto corpos”. Vale lembrar que
afirmar é que a Bioexpressão trouxe, Paulo Freire (2004, p. 58) afirma que é “na
não só algo relevante prá minha inconclusão do ser, que se sabe como tal,
prática pedagógica, como também
que se funda a educação como processo
prá minha vida cotidiana, porque eu
permanente”. Assim, o que faz com que
modifiquei muitas coisas na minha
vida e creio que modificarei também nós, adultos, nos tornemos educáveis não é
na prática pedagógica (Topázio). a educação em si, mas a nossa consciência
da inconclusão.
Para Lowen (1989, p. 11-12), “por Algumas das graduandas já traba-
termos medo da vida, procuramos controlá- lham como professoras, e contaram que le-
la, dominá-la. Acreditamos que é ruim ou vam as atividades adaptadas a sua prática
perigoso sermos levados de roldão por profissional e que têm um novo olhar para
nossas emoções”. Mas o desejo de nos suas crianças assim como para si mesmas.
tornarmos cheios de vida está presente,
apesar de o medo se manifestar através da Eu já considerava muito o corpo da
criança presente em sala de aula. Só
permanência na correria e na necessidade
que, com a Bioexpressão, considero
de uma ocupação para que o sentimento mais ainda [...] às vezes, a criança
não flua, não nos perturbe. está querendo liberar um pouco de
Olhar para si, perceber o que precisa energia. [...] Então, eu sempre planejo,
ser mudado e investir em mudanças exige assim, umas coisas que eu posso
não só coragem, mas também a compre- inserir na minha aula, que dá para
ensão de que podemos fazê-lo. Estamos trabalhar mais coisas do corpo, liberar

202 Lucia Helena Pena PEREIRA; Cíntia Lúcia de LIMA. Bioexpressão: uma proposta de formação...
as tensões deles. Porque, às vezes, a para os cuidados consigo e com o outro,
gente policia tanto a gente mesmo, as alcançando maior equilíbrio através da
crianças a ficarem sentadas, postas respiração e do conhecimento de si. Dessa
numa posição, de uma forma só. A maneira, ele pode se tornar mais capaz
gente exige deles um comportamento
de repensar seu modo de vida, buscar
que não é de criança. Criança tem
que liberar tensão, tem que liberar
alternativas mais efetivas para o seu pró-
o estresse, senão chega num adulto prio bem-estar e, consequentemente, criar
como eu, todo travado (Esmeralda). melhores possibilidades de lidar com as
dificuldades inerentes à vida.
Passei a entender melhor meus peti-
A Bioexpressão trouxe possibilidades
tinhos de dois anos. E agora, quando
eles estão, assim, agitados, estão para que os educadores em formação en-
nervosos, eu pego e paro tudo. Vamos trassem em contato consigo, organizando
relaxar. Aí coloco uma música, no seu campo energético, flexibilizando coura-
outro dia deitei todo mundo no tapete ças e aumentando o fluxo da energia vital,
e quase todo mundo dormiu. (Risos) o que, acreditamos, possa ajudá-los a levar
Deitei todo mundo, fiz massagem em para suas salas de aula e para suas vidas
todo mundo. Comecei a exercer a uma nova visão de mundo e de educação.
massagem, uns com os outros. Então, Quando estamos em contato conosco,
assim, muito significativa a Bioexpres- ou seja, quando estamos equilibrados,
são pra mim (Turmalina).
centrados em nós, estamos mais inteiros.
Consideramos muito significativo Isso nos possibilita maior segurança e,
que a transferência de conhecimento es- consequentemente, uma expressão mais
teja sendo feita também para suas salas autêntica.
de aula, pois, como observa Matthiesen As atividades bioexpressivas se mos-
(2009, p. 157), tram como estratégias significativas para
[...] devemos registrar, em alto e bom os graduandos, não só os de Pedagogia,
som, que o corpo fala, ainda que a mas de outras licenciaturas, que atuarão
educação contemporânea pareça com alunos do segundo segmento do
surda às suas apelações e evidências. Ensino Fundamental e Ensino Médio, como
É preciso olhar para o que ele diz. mostram os estudos de doutoramento de
Pereira (2005). Tais atividades permitem
Finalizando... que o futuro educador, ou mesmo edu-
cadores graduados, alcancem um estado
É fundamental oferecermos con- de inteireza mais conveniente com suas
dições para que o futuro educador se necessidades pessoais e profissionais,
perceba como um ser indivisível que tem pois trazem possibilidades de contatar
corpo, emoções, intelecto e espiritualida- sentimentos e emoções na vivência do
de, e convive em sociedade, funcionando momento presente, propiciando a compre-
de forma integrada, despertando, assim, ensão do que se passa em nós, estimulan-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 189-205, jul./dez. 2013. 203


do o autoconhecimento, o contato com o O educador que se propõe a desen-
sensível e a possibilidade de olhar para si, volver uma prática visando à formação in-
para o outro e para o nosso entorno, refletir tegral de seus alunos deve estar preparado
e propor novas possibilidades. para o diálogo, para acolher e estimular
Pela prática da Bioexpressão, pude- seus educandos, e também estabelecer
mos perceber que as alunas participantes limites para que todos tenham seus direitos
do projeto, adquiriram maior elasticidade garantidos; para estimular o respeito entre
corporal, melhoraram a respiração, me- todos os participantes do grupo e o res-
lhoraram o relacionamento aluno-aluno e peito de cada um por si mesmo. É aquele
aluno-professor, expressaram com mais faci- que não pretende que o educando pense
lidade seus desejos, emoções e angústias, e como ele, mas que pense por si mesmo
apresentaram maior flexibilidade para lidar e aprenda a viver e a conviver, pois, na
com o cotidiano. Revelaram, através dos convivência verdadeira com o outro, que
seus depoimentos, mais segurança para en- vai muito além de estar junto em um
frentar as situações pessoais e profissionais, mesmo espaço, aprendemos muito sobre
o que nos leva a refletir sobre a importância o ser humano e a vida. Educar, a nosso
de se concretizar um espaço para ações e ver, é levar nosso educando a descobrir-se
aprendizados desta natureza nos cursos de e descobrir possibilidades de viver a vida
licenciatura e, principalmente, de pedagogia. com mais inteireza e de ser mais feliz.

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Recebido em maio de 2012


Aprovado para publicação em fevereiro de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 189-205, jul./dez. 2013. 205


A linguagem do Opressor e do Oprimido presentes
na obra “Pygmalion”, de Bernard Shaw
The Oppressor and Oppressed language present in
the work “Pygmalion” by Bernard Shaw
Magali Rosa de Sant’Anna*
* Doutora em Linguística pela FFLCH/USP. Professora da
Graduação (Letras) e da Pós-Graduação (Educação) na
UNINOVE. E-mail: magalirosas@uninove.br

Resumo
Este artigo apresenta os aspectos da linguagem do opressor em oposição à do oprimido, na obra “Pyg-
malion”, de Bernard Shaw. Depois de ler a peça, buscou-se a versão cinematográfica “My Fair Lady” de
forma a ter a sustentação necessária para tratar da linguagem oral presente no texto. Eliza Doolittle é a
voz do oprimido na peça. Ela passa de uma vendedora de flores a uma mulher da burguesia. E, ao ter
sua postura e fala modificadas, perde sua identidade.
Palavras-chave
Bernard Shaw. Língua Inglesa. Linguagem do Oprimido.

Abstract
This paper presents aspects of the language of the oppressor as opposed to the oppressed, in the book
“Pygmalion” by Bernard Shaw. After reading this play, the film version “My Fair Lady” was looked for in
order to have the necessary support to address oral language in the text. Eliza Doolittle is the voice of the
oppressed in the play. She goes from a flower girl to a woman of the bourgeoisie. And as she have her
speech and posture changed, she loses her identity.
Key words
Bernard Shaw. English. Language of the Oppressed.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 207-219, jul./dez. 2013
Introdução criativo e mantinha em suas obras uma
linguagem corrosiva com críticas severas
Entender a realidade é algo que à hipocrisia moral e à sociedade vitoriana
o ser humano sempre almejou. E assim, acomodada, apresentando em seus textos
grandes estudiosos conseguiram construir indícios de uma reforma cultural e social.
sistemas e teorias complexas sobre os mais Escreveu vários textos, dentre eles
variados assuntos. Inclusive as teorias lin- a peça que parece ter refletido a vida
guísticas sobre a natureza da linguagem. emocional e amorosa de Shaw, Pygmalion
Como a realidade é dinâmica, aqui- (1913), originalmente escrita para atriz e
lo que era observado num determinado viúva chamada Patrick Campbell. É sua
momento quando a língua é usada, no obra mais conhecida, a qual inspirou o
instante seguinte pode não ser mais da- filme My Fair Lady (1938 e 1964) e também
quela forma, pode ter-se modificado, estar um musical homônimo em 1956.
diferente, ter-se transformado. Esse fato
ocorre porque a relação ‘sujeito X objeto’ A obra Pygmalion
está em constante alteração. É pura dia-
lética. Se a contradição existe, observar a Esta é, sem sombra de dúvidas, a
evolução da linguagem depende de um melhor obra de Shaw em termos literários.
esforço permanente para uma reelabo- Baseada num mito grego clássico, trata
ração conceitual. Caso contrário, pode-se das complicadas relações humanas na
prejudicar a evolução do conhecimento. sociedade. Portanto serve para qualquer
A linguagem do ser humano é sociedade, em qualquer tempo ou lugar.
complexa. Cada língua possui uma mul- Para melhor compreensão dessa
tiplicidade de combinações fonológicas, peça de Shaw, tal mito, segundo Franchini
morfológicas, sintáticas e estilísticas. Todas e Seganfredo (2003), é uma história conta-
elas são descritas teoricamente, mas estão da em trinta e um dias. Pygmalion foi um
sujeitas a sofrer mudanças. escultor que viajou para Chipre (ilha situada
Assim, para este artigo, os aspectos no Mar Mediterrâneo, ao sul da Turquia) em
da linguagem do opressor em oposição à busca da luminosidade peculiar da ilha.
do oprimido presentes na obra “Pygmalion”, Fazia muito calor e, enquanto aguardava
de Bernard Shaw, serão exemplos da lín- o bloco de mármore que encomendara,
gua inglesa (LI) retirados dessa peça. resolveu passear pela ilha. Iniciou seu
trabalho no quarto dia. Decidiu esculpir
Aspectos da biografia de Shaw a figura de mulher. Levou cinco dias para
moldar o rosto mais belo que ele já vira. No
O irlandês George Bernard Shaw dia seguinte, começou a esculpir o torso e
(1856-1950) era um idealista, além de ter concluiu a escultura de uma linda mulher
sido um grande escritor e crítico literário, nua no vigésimo quinto dia. Chamou-a de
fundador do teatro inglês. Foi bastante ‘Galatéia’. Resolveu cobri-la de seda e joias.

208 Magali Rosa de SANT’ANNA. A linguagem do Opressor e do Oprimido presentes na obra...


Cobriu-a com um vestido azul e ficou a Como, no outro dia, a vendedora de
observá-la sem cessar. No vigésimo sétimo flores aparece na casa de Higgins para
dia, ficou tão encantado que a retirou do pedir aulas de dicção, ela lhe explica que
pedestal e colocou-a em seu leito. Quando seu objetivo é falar bem o suficiente para
retornou ao seu quarto, ela lhe parecia viva. trabalhar em uma floricultura. O professor
Ele a amava! Beijou mesmo sabendo que debocha dela, mas é seduzido pela ideia
ela era de mármore. No vigésimo nono dia, de transformá-la, quando Pickering incita-o
participou da procissão e festividades de dizendo que cobrirá as despesas. Higgins
Vênus. Ele desejou que sua ‘Galatéia’ fosse concorda com o experimento – transfor-
real. Então, no outro dia, foi até o templo de mar Eliza em uma duquesa até a festa de
Vênus fazer seu pedido, conceder-lhe que um embaixador, dentro de alguns meses.
sua ‘Galatéia’ fosse uma mulher de verdade. Higgins inicia as atividades mandando
Ele só retornou a seus aposentou na noite sua governanta banhar Eliza e dar-lhe
do trigésimo primeiro dia. Quando chegou, roupas novas. Ele sente uma aversão e
beijou-lhe os lábios. Descobriu-a e abraçou- repugnância pela florista naquele mo-
a, acordando-a. Ela abriu os olhos. Estava mento, mas que vai sendo superado pela
viva! Vênus havia atendido ao seu pedido. transformação da florista em uma dama
Em analogia, a peça de Shaw co- da sociedade burguesa. Higgins inicia
meça com dois senhores de idade que o trabalho árduo de transformar a fala
se encontram numa noite de chuva, no cockney dela no inglês londrino padrão,
Covent Garden. Um deles é o professor supervisionado por Pickering.
Higgins, um perito em linguística, versa- O pai de Eliza, um lixeiro de Londres,
do em linguagem e sotaques da LI, e o vai até a casa de Higgins pedindo uma
outro é o Coronel Pickering, um linguista compensação financeira. Na verdade ele
especialista em dialetos indianos. Ambos pede muito pouco, 5 libras pela filha, pois
apostam que o professor poderia, com o deseja continuar pobre e feliz e se tiver
seu conhecimento sobre fonética ingle- mais dinheiro irá chamar atenção, inclusive
sa, em poucos meses, transformar Eliza de sua companheira.
Doolittle em uma mulher capaz de usar a LI Higgins treina Eliza a falar correta-
padrão de Londres, uma vez que ela utiliza mente, durante alguns meses. Na verdade,
o dialeto cockney1. E o acordado entre os
ela tem que se sair bem em dois momentos
dois era que o professor, depois de treinar
reais: na casa da mãe de Higgins e na
Eliza, teria que convencer a nobreza local
festa do embaixador. Na casa da senhora
de que ela se tratava de uma duquesa.
Higgins, Eliza é introduzida ao trio: mãe,
filha e filho Eynsford Hill. O filho, Freddy,
1
Cockney = É um dialeto com pronúncia distinta sente-se muito atraído por ela, mas a
do East End de Londres, na qual os falantes falam
“conversa fiada” de Eliza parece-lhe afe-
por meio de gírias que rimam (rhyming slang ou
Cockney rhyming slang). tada quando ela desliza seu cockney. O

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 207-219, jul./dez. 2013. 209


professor preocupa-se com a experiência, A princípio, pode-se depreender
pensando que poderá trazer problemas que Shaw utiliza toda sua criticidade para
futuros. Alguns meses mais tarde, na festa mostrar como as pessoas julgam umas
do embaixador, o experimento é um su- as outras por sua aparência e pelas pri-
cesso. A aposta é, definitivamente, ganha, meiras impressões que elas causam. Num
contudo Higgins e Pickering se entediam segundo momento, pode-se verificar que a
com o projeto. O resultado faz com que linguagem do oprimido, no caso de Eliza
Eliza se magoe depois de uma pequena Doolittle, ao se transformar na linguagem
discussão com Higgins, ela não entende o do opressor Higgins, também modifica a
que se tornou e ele sugere que ela se case relação entre os dois personagens, possi-
com alguém e, para concluir a discussão, bilitando, através da percepção e reflexão
ele afirma que ela era uma ingrata. A joia da realidade, que o diálogo a partir desse
que lhe fora emprestada para o evento do momento deva ser diferente, uma vez que
embaixador é devolvida. a liber(t)ação do oprimido se concretiza.
O coronel e o professor, no outro
dia, dirigem-se à casa da senhora Higgins, Sobre os personagens
em pânico porque Eliza havia fugido. A
senhora Higgins repreende os dois por A descrição dos personagens foi
jogar com os sentimentos da moça. Nesse adaptada de Sant’Anna (2011).
momento, Eliza, que havia se refugiado na Henry Higgins é professor de fonéti-
casa dela, entra e agradece Pickering por ca que age na peça como Pigmaleão frente
tê-la tratado como uma dama, mas ame- à Eliza Doolittle, a Galatéia. É autor do
aça Higgins dizendo que ela vai trabalhar alfabeto universal e estuda a fala por meio
com o foneticista rival, Nepommuck. A de gravações e material fonográfico para
partir daí, o professor admira sua postura, documentar os assuntos fonéticos. Dessa
entendendo que ela não poderá mais ser forma, reduz as pessoas a seus respectivos
tratada como um objeto, mas sim como dialetos. Embora muito impaciente com a
uma senhora dona de sua própria vida. nobreza, as pessoas não o crucificam, pois
Eliza se despede e vai embora, enquanto é dotado de bom coração e é praticamente
Higgins grita uma série de recomendações inofensivo. Seu problema é ser tirânico e
para ela, inclusive que ela poderá voltar a um homem rude. Devido a sua educação,
procurá-lo. Eliza descobre que sente uma as pessoas esperam que ele seja exata-
paixão por Freddy e, uma vez que sabe mente o contrário, um cavalheiro, porém
como se comportar frente à burguesia, ele está muito longe de ser gentil. Higgins
deixa a dúvida qual caminho irá tomar. acredita que não é importante como ele
Visto isso, nota-se a semelhança trata as pessoas e que não faz diferença
com o mito de Pigmaleão, a obsessão do se as tratar igualmente.
escultor pela Galatéia; na peça o professor Eliza Doolittle não é uma persona-
é que fica obcecado pela florista. gem convencional. Não é uma figura ou

210 Magali Rosa de SANT’ANNA. A linguagem do Opressor e do Oprimido presentes na obra...


heroína romântica. Quando ela se transfor- covarde e sem recursos para sustentar sua
ma de uma vendedora de flores atrevida e mãe e irmã. É um personagem envolvido
“bocuda” com um inglês deplorável, numa comicamente por Eliza, a “duquesa” que
dama que se relaciona com a nobreza ainda fala cockney. Ele se apaixona por ela
da época, essa transformação nada tem e a corteja com cartas. Ao final da peça, ele é
a ver com suas qualidades inatas como a possibilidade de um casamento para Eliza.
uma heroína de contos de fada. O ápice
de seu personagem dá-se depois da festa Exemplos da fala Cockney na obra
do embaixador, quando Eliza explode Pygmalion
contra o tratamento insensível de Higgins,
tornando-se não uma duquesa, mas sim O dialeto inglês cockney possui
uma mulher independente. E é por conta pronúncia distinta, seus falantes usam
disso que ela se torna uma pessoa digna gírias que rimam, resultando numa
da admiração de Higgins. construção que consiste em trocar uma
Coronel Pickering é autor do Sâns- palavra comum por uma frase de duas
crito falado e não possui o mesmo amor ou três palavras. Este sotaque pode não
que Higgins pela fonética. É um cavalheiro ser compreendido pelos os ouvintes não
atencioso. Ajuda no experimento de Eliza familiarizados. É considerado uma fala
cobrindo os custos e, diferentemente de não privilegiada, pois não pertence ao
Higgins, que só ensina a ela a pronúncia inglês padrão.
correta de uma dama, Pickering trata-a O leitor encontra trechos que mui-
com muito respeito e educação, ensinan- tas vezes não se é capaz de entender na
do-lhe a ter amor próprio. primeira leitura. Por isso, o leitor deve ler
Alfred Doolittle é o pai de Eliza. e reler vagarosamente para que as pala-
Lixeiro idoso e humilde que esteve com vras possam fazer algum sentido. Shaw
umas seis mulheres durante sua vida. transcreve esse dialeto para representar
Ao descobrir que sua filha está residindo as falas da Eliza Doolittle, a vendedora de
na casa do professor Higgins, tenta tirar flores, e de seu pai, Alfred Doolittle, e uma
proveito financeiro da situação. Durante do narrador, no primeiro ato da peça. Já
toda a peça ele tenta vender sua filha para a partir do segundo ato, o cockney passa
fazer dinheiro. a ser escrito na forma comum da LI, mas,
Senhora Higgins é a mãe sessen- pelo contexto, percebe-se que é o dialeto
tona do professor Higgins. Uma senhora usado pela vendedora de flores. Em alguns
imponente que considera a experiência de casos, foi preciso assistir ao filme My Fair
seu filho com a vendedora de flores uma Lady (1964) para poder ilustrar correta-
grande besteira. Para ela, Higgins e Picke- mente o cockney, e assim confirmar o uso
ring são duas crianças tolas em realizá-lo. do dialeto.
Freddy Eysnford Hill, segundo Hi- Nos trechos retirados da peça,
ggins, Freddy é um tolo. Ele é um lacaio apresenta-se o uso do cockney, as palavras

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 207-219, jul./dez. 2013. 211


ou frases destacadas estão sublinhadas Uso da gramática:
para melhor entendimento da análise e
discussão delas, as quais são explicadas Algumas vezes, há problemas rela-
logo em seguida. tivos à gramática da LI. Após o trecho da
obra, as palavras sublinhadas são escritas,
Uso excessivo de sons vocálicos: seguindo a gramática do inglês padrão.

Ato I – página 28 Ato II – página 58


THE FLOWER GIRL [picking up a half- DOOLITTLE Listen here, Governor. You and
crown] Ah-ow-ooh! [Picking up several me is men of the world, aint we?
coins] Aaaaaah-ow-ooh! [Picking up a You and me is = You and me are
half-sovereign] Aaaaaaaaaaaah-ow- Ato II – página 61
ooh!!! DOOLITTLE Tell her so, Governor: tell her
Neste exemplo, não há como tra- so. I’m willing. It’s me that suffers by it.
duzir, ou seja, a tradução seria a mesma, Ive no hold on her. I got to be agreeable
visto que são sons vocálicos que, como to her. I got to give her presents. I got to
explicados pelo autor [entre colchetes], buy her clothes something sinful. I’m a
representam contentamento pelo dinheiro slave to that woman, Governor, just be-
recebido. cause I’m not her lawful husband. And
she knows it too. Catch her marrying
Ato I – página 16 me! Take my advice, Governor – marry
THE FLOWER GIRL Ow, eez yə-ooa san Eliza while she’s young and don’t know
is e? Wal, fewd dan y’ də-ooty bawmz no better, if you don’t youll be sorry for it
a mather should, eed now bettern to after. If you do she’ll be sorry for it after;
spawl a pore gel’s flahrzn than ran awy but better her than you, because youre
athaht pyin. Will ye-oo py me f’them? a man, and she’s only a woman and
[Her, with apologies, this desperate at- dont know how to be happy anyhow.
tempt to represent her dialect without a I got = I’ve got = I have got
phonetic alphabet must be abandoned dont know no = doesn’t know = knows
as unintelligible outside London]. nothing
No trecho acima, o dialeto cockney dont = doesn’t
pode ficar assim em inglês padrão: Na peça encontra-se o uso da única
THE FLOWER GIRL Oh, he’s your son, isn’t forma aint ou ain’t para negação, substi-
he? Well, for who had done your duty tuindo isn’t, am not, are not, has not, have
that a mother should do, he would know not. E, também, o uso da dupla negação.
better not to spoil of a poor girl’s flowers
than ran away without paying. Will you
pay me for them?

212 Magali Rosa de SANT’ANNA. A linguagem do Opressor e do Oprimido presentes na obra...


Uso de novas palavras: aos dois efes têm som de ‘f’, enquanto que
em ‘of’ o efe tem som de ‘v’.
Encontra-se também na pronúncia
cockney uma união de palavras que for- Ato I – página 15
mam um novo vocábulo, ainda que faça THE FLOWER GIRL Nah then, Freddy: look
sentido no contexto da história. wh’ y’ gowin, deah.
deah = dear
Ato I – página 15
THE FLOWER GIRL [breaking through No dialeto cockney, a letra ‘r’ em
them to the gentleman, crying wildly] posição pós-vocálica não é pronunciada,
Oh, sir, don’t let him charge me. You como nas letras finais –ar, –er ou –or.
dunno what it means to me. Theyll take Dessa forma, Shaw demonstrou essa ca-
away my character and drive me on racterística, quando grafou o vocábulo dear
the streets for speaking to gentlemen. como deah.
They – Ato II – página 47
dunno = don’t know LIZA [weeping] I couldnt. I dursnt. Its
Ato II – página 57 not natural: it would kill me. Ive never
DOOLITTLE Landlady wouldnt have trusted had a bath in my life; not what youd
me with it, Governor. She’s that kind of call a proper one.
woman: you know. I had to give the Neste outro exemplo, os vocábulos
boy a penny afore he trusted me with bath, path são pronunciados com a vogal
it, the little swine. I brought it to her just ‘a’ mais longa, /a:/. Até hoje esta é uma
to oblige you like, and make myself característica da fala Standard Southern
agreeable. Thats all. British, como foi da fala da realeza, o
afore = before Received Pronunciation, que iniciou nos
séculos XVI e XVII em Londres.
Uso da fonética: Nesse dialeto da florista, as letras
Ato I – página 19 ‘th’ (surda) em posição inicial ou final nos
THE FLOWER GIRL Garn! Oh do you buy vocábulos são pronunciadas com outros
a flower off me, Captain. I can change fonemas próximos, observe que em thick
half-a-crown. Take this for tuppence. ou bath o ‘th’ é trocado por ‘f’. Para o ‘th’
off = of (sonoro) a pronúncia em then ou brother,
tuppence = two pences será sempre ‘v’. Isto ocorre em qualquer
ambiente fonético.
Ambas as preposições ‘off’ e ‘of’
existem no inglês. Cada uma delas usada Ato II – página 57
em contextos diferentes, com traduções dis- DOOLITTLE [appreciatively: relieved at
tintas, bem como sua pronúncia que varia being so well understood] Just so, Go-
apenas com relação a consoante. Para ‘off’ vernor. That’s right.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 207-219, jul./dez. 2013. 213


Para o cockney é comum ocorrer pós-vocálico ou final nos vocábulos, isto
a glotalização dos sons oclusivos /p t k/, é, o ‘l’ é articulado como ‘u’.
principalmente do /t/, em várias posições
Ato II – página 56
no vocábulo. No caso do exemplo abaixo,
DOOLITTLE [‘most musical, most melan-
nota-se que em ambas as palavras subli-
cholic] I’ll tell you, Governor, if you only
nhadas o ‘t’ não é articulado. Por isso, as
let me get a word in. I’m willing to tell
palavras like e light, park e part podem
you. I’m wanting to tell you. I’m waiting
parecer homófonas na fala cockney. Vale
to tell you.
lembrar que neste dialeto, o grau de aspira-
ção das oclusivas é maior que no Standard Observa-se também que alguns
Southern British. ditongos são modificados. No caso da
palavra ‘waiting’, esta é pronunciada com
Ato II – página 54 ‘ai’ ao invés de ‘ei’ do inglês padrão.
DOOLITTLE [at the door, uncertain which
of the two gentlemen is his man] Pro- Uma possível explicação
fessor Iggins?
Iggins = Higgins a) Do ponto de vista social
Uma outra característica do cockney
presente na peça, ocorre quando a letra ‘h’ Na obra Pygmalion, ambas as
inicial é omitida na pronúncia dos vocábu- falas de Eliza e Alfred Doolittle retratam
los, tais como em house, heat. Ressalta-se claramente o cockney, que por sua vez
que essa característica tem outro signifi- representa socioeconomicamente a classe
cado quando os pronomes he, him, his, baixa da Inglaterra.
her e o verbo have-has-had, articulados Na voz de Higgins, o autor faz uma
em suas formas átonas, quando não são crítica severa ao povo inglês, dizendo que
as palavras mais importantes da oração, os pais não ensinam seus filhos a falar
logo são aquelas que têm apenas função corretamente sua língua, permitindo que,
na sequência estrutural, o que ocorre na por isso, a classe baixa seja marginalizada
maioria dos contextos em que são usadas. e desprezada por todos. Comprovando
Nesses casos, a letra ‘h’ facilita o ritmo que Shaw foi um defensor da reforma
peculiar da LI, não havendo nenhuma ortográfica da LI e consequentemente um
relação com o dialeto cockney. defensor da pronúncia correta. Ele costu-
mava afirmar que o falante que articulasse
Ato II – página 48 a LI corretamente, podia ser uma pessoa
LIZA Do you mean change into cold bem-sucedida para alcançar seus objetivos
things and lie awake shivering half of pessoais.
the night? You want to kill me, you do. Ao longo de suas publicações, Shaw
Em inglês, no dialeto cockney, é discute a arbitrariedade da língua no que
normal que ocorra a vocalização do ‘l’ diz respeito à escrita e à fala da LI. Nesses

214 Magali Rosa de SANT’ANNA. A linguagem do Opressor e do Oprimido presentes na obra...


estudos, ele afirma que, com o passar dos professor Higgins para que ele pudesse
anos, a referida língua adotou uma gra- ensinar-lhe falar corretamente. Pode-se
fia que não representa a pronúncia das depreender, desde o início da peça, que
palavras, transformando-a numa língua ela tem consciência de sua atual situação
opaca, não somente as consoantes são problemática e parte para reivindicar uma
escritas com letras que representam sons posição social mais adequada à sociedade
diferentes, mas também, e principalmente, da época (FREIRE, 1980).
as vogais são escritas com letras que rara- O enfoque é dado à fala correta
mente representam a vogal que deve ser como meio de ascensão social, por ser
articulada. Esta é uma herança deixada uma fala considerada de prestígio. O que
pelos povos que passaram pela Inglaterra a peça de Shaw se refere em termos da
e influenciaram tanto a escrita como a fala das pessoas é que não se deve julgar
fala da LI, tornando-a uma língua híbrida. as pessoas de acordo com sua classe so-
E a LI continua a mesma, sem cial e o uso desse ou daquele dialeto. No
mudanças ortográficas ou fonéticas. A primeiro ato, Eliza Doolittle é julgada pelo
fala e a escrita trazem dificuldades para professor Higgins como uma pessoa que
os nativos no início do aprendizado e, não poderia nem estar próxima das colu-
principalmente, para os estrangeiros que nas de Convent Garden, desprezando-a
almejam a fluência da LI. Para o falante da num pré-julgamento por causa do uso do
língua portuguesa, por exemplo, isto ocorre dialeto sem prestígio, o cockney. Trocando
porque o português é considerado pelos em miúdos, a linguagem do burguês, do
linguistas/foneticistas como uma língua opressor permeia toda a peça. Eliza, opri-
transparente. O que significa dizer que, ge- mida por sua condição, por ser pobre, sem
ralmente, no português as consoantes e as modos, sem saber se comportar como uma
vogais nem sempre sofrem modificações senhora ou senhorita daquela época, e
sonoras, ou seja, a letra ‘a’ terá sempre a ainda por não usar o inglês padrão, almeja
mesma pronúncia. obter com o uso considerado “correto” da LI
A peça de Shaw apresenta dife- como uma ponte para tornar-se alguém. O
renças de status cultural e social que que ela não esperava era que essa mudan-
permeiam as relações das classes sociais. ça pudesse trazer-lhe sofrimento, por não
Nota-se que na classe alta ou média, as se reconhecer mais como Eliza Doolittle.
pessoas são bem tratadas e educadas, A existência, porque humana, não
enquanto que as pessoas da classe baixa, pode ser muda, silenciosa, nem tam-
mesmo quando se comportam bem, elas pouco pode nutrir-se de falsas pala-
são maltratadas pelas outras pessoas. Na vras verdadeiras, com que os homens
realidade, ninguém quer se sentir um “lixo” transformam o mundo. Existir huma-
perante os outros. E, retomando a peça, nisticamente, é pronunciar o mundo,
é este sentimento o da transformação, é modificá-lo. O mundo pronunciado,
que motivou Eliza Doolittle a procurar o por sua vez, se volta problematizado

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 207-219, jul./dez. 2013. 215


aos sujeitos pronunciantes, a exigir ou mesmo negativo, esteja relacionada
deles novo pronunciar. (FREIRE, 1980, ao uso da língua ou à desigualdade das
p. 92). classes sociais. No caso de Eliza, Shaw
Ainda sem saber o que a mudança não deixa transparecer se ela irá ou não
pode lhe causar, para Eliza há a expecta- superar (ou seja, algo positivo ou negativo)
tiva de que o professor um dia a trate de e se adaptar à mudança. Ao que parece,
maneira mais educada, enquanto para ela irá seguir com sua vida, distante de
ele o resultado final de seu experimento é Higgins, porém há uma leve possibilidade
importante. Assim é nesse momento, o que de que ela volte para seu lado. Higgins está
ela precisa é romper com seu “eu oprimido” encantado com quem Eliza se transformou.
e reconhecer a contradição em que sua Essa contradição que existe nessa
vida se encontra (FREIRE, 1980). Entretanto obra de Shaw demonstra como as relações
a sua mudança, que é isolada, eleva a dor entre oprimidos e opressores ocorre de fato,
e o sofrimento do rompimento do seu “eu criando num primeiro momento a dúvida
anterior” e o seu “novo eu”. do oprimido sobre sua própria realidade
O que ele não previu foi que, ao final para que posteriormente este se liberte
da mudança ocorrida na fala e comporta- definitivamente de seu opressor.
mento de Eliza, a aluna se desprendesse de b) Do ponto de vista linguístico
seu domínio e se tornasse independente,
essa atitude de independência é que faz Entender a realidade é algo que
com ele a admire e mude seus sentimen- o ser humano sempre almejou. E assim,
tos com relação a ela. Nesse momento grandes estudiosos conseguiram construir
da peça, pode-se identificar com clareza sistemas e teorias complexas sobre os mais
que, na transformação de Eliza em uma variados assuntos, inclusive as teorias lin-
dama da sociedade vitoriana, houve um guísticas sobre a natureza da linguagem.
rompimento na relação da oprimida com Como a realidade é dinâmica,
seu opressor. Na verdade, a pretensão aquilo que fora observado, já não é mais
de Higgins é que ela tivesse sido ape- daquela forma, pode estar diferente, já se
nas “domesticada”, sem que ela pudesse transformou. Este fato ocorre porque a
despertar para a realidade de ter domínio relação sujeito X objeto está em constante
sobre sua própria vida. Ele gostaria que alteração. É pura dialética. Se a contradição
ela fosse eternamente dependente dele. existe, observar a evolução da linguagem
Ela não consegue entender se o ama ou depende de um esforço permanente para
se o odeia por tê-la modificado tanto. E ele uma reelaboração conceitual. Caso con-
por sua vez, ama-a por quem ela se tornou trário, pode-se prejudicar a evolução do
uma dama. conhecimento.
Pode-se dizer que a mudança tem A linguagem do ser humano é
força para ser encarada como algo positivo complexa. Cada língua possui uma

216 Magali Rosa de SANT’ANNA. A linguagem do Opressor e do Oprimido presentes na obra...


multiplicidade de combinações sintáticas, acontecer. As pessoas podem decidir por
morfológicas, fonológicas e estilísticas. To- continuar utilizando a fala não padrão.
das elas são descritas teoricamente, mas Dessa forma, serão reconhecidas social-
estão sujeitas a mudanças. mente como falantes daquele dialeto,
É através da comunicação que as grupo ou comunidade.
pessoas mantêm as velhas relações e/ Os linguistas não podem tratar de
ou iniciam novas. Pode-se afirmar que forma estática e preconceituosa os compor-
falar bem traz benefícios sociais e pro- tamentos de fala das pessoas de diferentes
fissionais, além de proporcionar que ela classes sociais. Talvez uma das possibilida-
seja aceita pela sociedade que a oprime. des de caminho para iniciar essa discussão
Muitas vezes as pessoas são incapazes de seja descrever e entender o porquê de o
perceber essa possibilidade. Por isso cabe uso da norma ter sido alterado. Contudo,
aos professores esse papel tão delicado, o para que isso aconteça, os estudiosos da
de mostrar aos seus alunos os caminhos linguagem precisam se desprender dos
que serão abertos com o uso da norma velhos conceitos e aceitar a realidade que
padrão. Se essas pessoas tiveram acesso está sendo imposta.
à educação, certamente a oportunidade Novas formas de comunicação es-
lhes foi oferecida. Entretanto, se os alunos tão sempre surgindo. É o caso da grafia
irão usar a norma padrão de fala ou não, utilizada na Internet em sites de grupos
este caminho é uma escolha que deve ser sociais, ou mesmo nas mensagens de texto
feita por eles mesmos. escritas e enviadas pelo celular. Cabe aos
Na peça de Bernard Shaw observou- linguistas e foneticistas aceitá-las, entendê-
se a versão mais moderna do mito de las, descrevê-las e incorporá-las às novas
Pigmaleão. Na verdade, Eliza Doolitle, inicia teorias linguísticas.
a peça como uma mulher do povo, oprimi- O conhecimento é um desafio eter-
da, que fazia uso de uma linguagem não no e infinito. Não pode ser perdido com a
privilegiada, o dialeto cockney, e que, após não aceitação daquilo que é novo. O novo
meses de aulas de fonética com o profes- incorpora transformações. E estas ocorrem
sor Higgins, tem sua fala e maneiras de para que se possa progredir cientificamen-
se comportar transformadas, ela se torna te, desde que analisadas sem preconceito
uma dama da alta sociedade da época. linguístico (BAGNO, 2007).
Liza fortalece-se com sua nova posição e Ao estudar a LI percebe-se que esta
impõe-se como uma mulher independente. é uma língua multifacetada, uma língua
Consequentemente, essa atitude faz com que se desenvolveu sob a influência de po-
que ela seja admirada pelo seu professor. vos variados. É citada por Shaw como uma
Este é um exemplo de uma pessoa língua bastarda. Walter (1997) apresenta a
que não utilizava a norma padrão e faz LI com origem numa gama de povos que
a opção de usá-la para posicionar-se contribuíram para o que ela é e o que ela
socialmente. O contrário também pode representa hoje mundialmente.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 207-219, jul./dez. 2013. 217


Portanto não se pode perder de vista e sua transformação, graças à aposta feita
que muitas mudanças ocorreram e outras pelo professor e seu amigo, é muito maior
ainda estão por vir para que a evolução do que esperava, proporcionando-lhe
de todas as línguas aconteça. Aquilo que distanciar-se da ignorância em que vivia
é importante hoje, seja em termos foné- para vivenciar situações em que ela não
ticos, morfológicos, sintáticos semânticos entende seu real papel. Quando compre-
ou estilísticos, pode não ser amanhã por ende sua situação, ela se sente obrigada
conta de uma alteração que um grupo de a tomar uma atitude, pois compreende
falantes tenha posto em uso. criticamente o que deve fazer, qual será
sua ação (FREIRE, 1971). Ela começa a se
Outras considerações conscientizar de sua realidade, bem como
nas contradições presentes em sua vida; e
Bernard Shaw apropria-se do mito
não consegue superá-la, ela não consegue
do Pigmaleão para escrever essa peça, que
entender quem ela é, nem mesmo sabe o
apresenta em seu conteúdo uma discus-
que fazer com o que se tornou. Ela não
são fonética sobre a fala padrão e a não
é mais a vendedora de flores das ruas (o
padrão. Contudo, por trás dessa discussão,
que ela era), e também não tem como ser
vê-se o preconceito com que a vendedora
aquela mulher que seria a balconista de
de flores era tratada pela burguesia de
uma loja (o que ela almejava). Ela é mais
Londres. E vitoriosa é a fala padrão.
que isso. E toda esta reflexão lhe dá forças
Usar a língua padrão pode significar
para tomar uma atitude radical. Ela rompe
entendimento de uma realidade que deve
com seu opressor, o professor de fonética.
ser alterada. Por exemplo, Eliza queria
E sai em busca de sua nova vida, sentindo
aprender o inglês padrão para poder
a dor de sua situação real e atual.
trabalhar como vendedora de flores, não
Concluindo, a fala elitizada como
mais nas ruas, mas em uma loja. Então,
prática da dominação não deveria existir,
o que isto quer dizer? Na realidade, Eliza
nem deveria impedir ideologicamente as
buscava com a mudança na sua fala uma
classes inferiores de se conscientizar, de
ascensão social. Ela não queria mais ser
se libertar de seus opressores.
pobre. Ela foi em busca dessa mudança,

Referências

BAGNO, M. The Preconceito linguístico. O que é, como se faz. 49. ed. São Paulo: Loyola, 2007.
CRYSTAL, D. The Cambridge Encyclopedia of the English Language. Second edition. New York:
Cambridge University Press, 2003.
FRANCHINI, A. S.; SEGANFREDO, C. As 100 melhores histórias da mitologia. Deuses, heróis,
monstros e guerras da tradição greco-romana. Porto Alegre: L&PM, 2003.

218 Magali Rosa de SANT’ANNA. A linguagem do Opressor e do Oprimido presentes na obra...


FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971.
______. Pedagogia do Oprimido. 8. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
JONES, D. English pronouncing dictionary. New York: Cambridge University Press, 1997.
SANT’ANNA, M. R. A representação da língua inglesa falada na obra Pygmalion, de Bernard
Shaw. São Paulo: Arte-Livros, 2011.
SHAW, G. B. Pygmalion. Reprinted edition. London: Penguin Books, 1978.
WALTER, H. A aventura das línguas ocidentais. Origem, História e Geografia. Tradução de Sérgio
Cunha dos Santos. São Paulo: Mandarin, 1997.

Webgrafia

SCHÜTZ, R. História da Língua Inglesa. English Made in Brazil, 28 de março de 2008. Disponível
em: <http://www.sk.com.br/sk-enhis.html>. Acesso em: 29 jan. 2011.
WIKIPEDIA. George Bernard Shaw. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/George_Ber-
nard_Shaw>. Acesso em: 20 mar. 2011.
WIKIPEDIA. Alfabeto fonético internacional. <http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfabeto_fon%C3%A9tico_
internacional>. Acesso em: 20 mar. 2011.

Videografia

MY FAIR Lady. Direção: George Cukor. Produção: Jack Leonard Warner. Restaurado por Robert A.
Harris & James C. Katz e produzido no polo industrial de Manaus. Manaus: Videolar S/A, 1999.
Apresentado no formato ‘letterbox’ de tela larga preservando o aspecto ‘scope’ da exibição de
cinema original. Realçado para TV widescreen. 1 DVD (170 min.), Doubly digital, Color.

Recebido em julho de 2013


Aprovado para publicação em setembro de 2013

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 207-219, jul./dez. 2013. 219


Aspectos das práticas escolares da escola de Língua
Japonesa e Internato de Pilar do Sul: rituais e festas
The differents practices at the “Japanese Language and
Bording School” in Pilar do Sul: rituals and festivals
Adriana Aparecida Alves da Silva*
Wilson Sandano**
* Doutora e Mestre em Educação pela Universidade de
Sorocaba. Graduada em Pedagogia. Professora titular da
Universidade de Sorocaba (UNISO).
E-mai: xx.dri@bol.com.br
** Doutor e Mestre em Educação pela Universidade
Metodista de Piracicaba. Graduado em Pedagogia pela
Universidade de Sorocaba. Professor titular da Universidade
de Sorocaba (UNISO).
E-mail: wilsonsandano@uol.com.br

Resumo
Os resultados apresentados neste artigo fazem parte de pesquisa que investigou o campo escolar de Pilar
do Sul, SP. Em meados da década de 50, esse campo era constituído por quatro escolas, entre as quais
a Escola de Língua Japonesa. Este trabalho busca compreender a história dessa escola, analisando os
rituais e festas do cotidiano escolar como parte de suas práticas que compõem as “culturas escolares”
no período referente a 1950, ano de fundação, a 1970, ano de fechamento da escola. Foram utilizadas
fontes escritas, orais e iconográficas, considerando a posição de Le Goff (1990) sobre a ampliação da
noção do documento. A análise evidenciou, entre outros aspectos, que os rituais e festas eram mais do
que atividades escolares, eram momentos propícios para a difusão de conhecimentos, normas e valores
legitimados pela escola e pela comunidade japonesa.
Palavras-chave
Imigração Japonesa. Rituais e Festas escolares. Pilar do Sul.

Abstrat
The results presented in this paper are part of a research carried out about schools in Pilar do Sul, SP.
In the middle of the 50s, the city only had four schools, including the Japanese language and boarding
school. This paper looks at understanding the history of this school, analysing the habits and festivals
and the schools routine as part of it´s practices that makes up the schools culture from 1950 to 1970
(from the opening of the school to the closing of the school) We used written, oral and iconographic
sources, following Le Goff (1990) guidelines about the expansion of the document concept. The analysis
showed, among other things that the rituals and festivities were more than simple school activities, the-
se were prosperous times to share knowledge, values and norms legitimized by the school and by the
Japanese community.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 221-236, jul./dez. 2013
Key words:
Japanese Immigration. Rituals and Celebrations school. Pilar do Sul.

Introdução permitir analisar, segundo Viñao Frago


(1995, p. 200), a organização, valores,
Este trabalho apresenta parte dos saberes, estratégias e diferentes práticas
resultados obtidos na pesquisa que aborda estabelecidas e compartilhadas no interior
o campo escolar de Pilar do Sul1, que era das escolas por todos os sujeitos envolvi-
composto por quatro tipos de escolas: as dos nas atividades específicas de natureza
isoladas rurais, o grupo escolar, o ginásio escolar, sejam elas realizadas por alunos,
estadual e a Escola de Língua Japonesa professores, outros profissionais da escola
e Internato. ou até mesmo pela comunidade.
Procuramos analisar os rituais e Tendo em vista a abrangência dessa
festas da Escola de Língua Japonesa e categoria, fizemos um recorte em nossa
Internato de Pilar do Sul, no período com- problemática, priorizando os rituais e festas
preendido entre 1950 a 1970. do cotidiano da Escola de Língua Japonesa
Consideramos os rituais e festas e Internato de Pilar do Sul.
como parte das práticas que compõem Compreendemos os rituais como
a cultura escolar. Entendemos a cultura um conjunto de gestos, palavras e for-
escolar no mesmo sentido adotado por malidades, várias vezes imbuídos de um
Dominique Julia: valor simbólico, cuja performance é usual-
Poder-se-ia descrever a cultura escolar mente prescrita por uma religião ou pelas
como um conjunto de normas que tradições da comunidade. Eles podem ser
definem conhecimentos a ensinar e executados por um único indivíduo, um
condutas a inculcar, e um conjunto de grupo, ou por uma comunidade inteira,
práticas que permitem a transmissão em locais específicos ou diante de deter-
desses conhecimentos e a incorpora- minadas pessoas.
ção desses comportamentos; normas Assim como os rituais, as festas pos-
e práticas coordenadas a finalidades suem formas de organização, seleção, com
que podem variar segundo as épocas.
regras próprias, que também são imbuídas
(JULIA, 2000, p. 10).
de um valor simbólico e de significados.
Optamos por utilizar a cultura es- Nesse sentido esses eventos podem ser
colar como categoria de análise, por nos apreendidos como registro da identidade
cultural de um grupo.
1
De acordo com Bencostta:
Pilar do Sul, atualmente possui aproximadamente
26.000 habitantes, economia baseada na produção As festas escolares são compreendi-
agrícola e localizada na região sudoeste do estado das como emissoras de uma lingua-
de São Paulo, BR. gem coletiva que não deixa de lado

222 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
sua característica primaz: expressar de informação. Dentre estas, o relato
planos simbólicos diversos, aprendi- oral, quando possível, é o que mais
dos por aqueles que delas têm algum se acomoda às tramas da memória.
tipo de participação [...]. (BENCOSTTA, (MAUAD, 2009, p. 03).
2006, p. 3.858).
Tendo em vista o cotejamento de
Para analisar os rituais e festas da informações entre as fontes, utilizamos a
Escola de Língua Japonesa e Internato fotografia entrelaçada, principalmente, com
de Pilar do Sul, foram utilizadas fontes fontes orais, sem a exclusão das demais
secundárias e primárias como documentos fontes.
escritos, fontes orais e iconográficas. Fruto desse constante diálogo com
Le Goff (1990) adverte sobre a am- as fontes, apresentaremos de forma breve
pliação da noção do documento, tomando- a presença dos imigrantes japoneses em
o em um sentido mais amplo, “documento Pilar do Sul, a criação da escola japonesa
escrito, ilustrado, transmitido pelo som, e seu processo de legalização e por fim
imagem ou qualquer outra maneira”. os rituais e festas da Escola de Língua
Destaca ainda que, na falta do documento Japonesa e Internato de Pilar do Sul, como
escrito, cabe ao historiador “fabricar o seu parte da cultura escolar que indicava tra-
mel, na falta das flores habituais”, com dições, comportamentos e valores que se
palavras ou outros meios. pretendia perpétua.
As fontes orais e as iconográficas
se tornaram imprescindíveis para esta A chegada e presença dos imigrantes
pesquisa, principalmente pela escassez de japoneses em Pilar do Sul
documentos escritos sobre os japoneses
em Pilar do Sul, além de que os poucos Os imigrantes japoneses chegaram
existentes, redigidos estão em japonês. a Pilar do Sul em 1945, após terem vivido
O entrelaçamento das diversas anos em fazendas, principalmente de café,
fontes orais com as imagens permitiu a em outras regiões do Estado de São Paulo,
interpretação das memórias dos imigrantes e estavam tentando comprar suas próprias
japoneses em Pilar do Sul e suas imagens. terras depois de tempos de economia.
Segundo Mauad: A região era considerada ideal para
se estabelecerem, pois possuíam muitas
[...] as imagens não falam por si mes- terras apropriadas para o plantio dos no-
mas, interpretar seus significados,
vos produtos que os imigrantes japoneses
atribuir-lhe valor estético, compreen-
der suas representações sociais, des-
queriam cultivar. Eles sabiam identificar
crever seus espaços de sociabilidades a qualidade das terras, o melhor clima
comportamentos subjacentes, iden- e tinham conhecimento de técnicas de
tificar seus personagens, tudo isso manejo, possibilitando assim uma maior
obriga aos estudiosos das imagens produção. Algumas poucas famílias japo-
do passado o recurso a outras fontes nesas chegaram a Pilar do Sul já com suas

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 221-236, jul./dez. 2013. 223


terras compradas, pois o dono da Fazenda ampliarem sua forma de comercializar o
Moquém tinha loteado a fazenda, e vários seu produto, o que foi feito por meio do
corretores tinham vendido esses lotes cooperativismo3. Segundo Ricciardi (1990):
para os japoneses e seus descendentes. A premissa das cooperativas japo-
A grande maioria comprou as terras após nesas eram as mesmas do coope-
chegarem à cidade. rativismo: tendo como identidade de
Esses japoneses e seus descenden- propósitos e interesses; ação conjunta,
tes chegaram com a proposta de comprar voluntária e objetiva para a coorde-
as terras que não eram cultivadas pelos nação de contribuição e serviços;
antigos moradores. Adquiriam as terras obtenção de resultado útil e comum
deixando os moradores locais em suas a todos. (RICCIARDI, 1990, p. 101).
casas e lhes ofereciam emprego. As cooperativas tiveram grande im-
As famílias que se estabeleceram em portância na produção e comercialização de
Pilar do Sul procuravam facilitar a vinda produtos da agricultura, atuando em todas
de outras famílias japonesas para a região, as fases do complexo agroindustrial, pro-
estivessem elas no Brasil ou no Japão, au- duzindo insumos4, principalmente ração e
mentando assim o número de imigrantes fertilizantes, promovendo a produção agro-
japoneses e a formação de colônias2. Se- pecuária e realizando a comercialização.
gundo documentos da Associação Cultural As cooperativas contribuíram para a
e Desportiva (KAIKAN), foram fundadas em ascensão social dos imigrantes japoneses
Pilar do Sul as colônias “Sertão”, “Barra”, e o desenvolvimento econômico da cidade.
“Bandeirantes”, “Sul Brasil” e “Tozan”. Segundo documento fornecido pelo AME5
Com o crescimento das colônias, foi à Prefeitura Municipal, Pilar do Sul foi con-
necessária a organização de uma nova siderado, na década de 50, o quarto mu-
forma de comercializar os produtos que nicípio com maior produção agropecuária
eram cultivados pelas famílias, pois elas da região e um dos maiores produtores de
encontravam dificuldades para o escoa- batata, tomate e uva Itália, sendo superado
mento da produção até São Paulo. O de- apenas pelos municípios de Itapetininga,
senvolvimento do sistema de comercializa- Piedade e São Miguel Arcanjo.
ção estava estreitamente relacionado com Esse crescimento econômico contri-
o desenvolvimento global da economia, ou buiu para o processo de urbanização na
seja, havia a necessidade de as colônias
3
É uma forma de associação de pessoas que se
2 reúnem para atender a necessidades comuns por
As informações sobre as colônias japonesas de
meio de uma atividade econômica.
Pilar do Sul foram extraídas da revista de comemo-
4
ração do cinquentenário da imigração japonesa Combinação dos fatores de produção que entram
em Pilar do Sul. As colônias eram formadas por na produção de determinada quantidade de bens
grupos de famílias japonesas em diversas regiões ou de serviço.
5
rurais de Pilar do Sul. Não encontrei nenhuma informação sobre a sigla.

224 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
década de 50 e para a melhoria da infra- restrições continuaram a ser praticadas por
estrutura da cidade. Em diversas atas de alguns anos, após o fim da guerra. Segun-
sessões da Câmara Municipal, entre 1953 do Morais (2001, p. 335), foi somente em
e 1959, há registro sobre o andamento 1956, no governo de Juscelino Kubitschek,
da instalação de serviço de correio, água que as restrições de guerra impostas aos
e esgoto, coleta de lixo, instalação de um imigrantes japoneses foram abolidas, e os
campo de aviação e informações sobre o presos japoneses foram libertados. Na vida
convênio com o governo do Estado para cotidiana, porém, os imigrantes japoneses
fornecimento de energia elétrica. e seus descendentes ainda se sentiam
A presença da imigração japonesa censurados, pelas formas de tratamento
mudou a economia, ampliou os serviços que a população brasileira impunha aos
da cidade e trouxe principalmente novos estrangeiros ou seus descendentes, princi-
modos de viver e pensar que causaram palmente japoneses (mesmo porque, estes
euforia, estranhamento, curiosidade, dis- não tinham como esconder sua nacionali-
tanciamento e até repressão. dade, estampada em sua fisionomia).
Nos primeiros anos, os antigos Os moradores japoneses ou seus
moradores de Pilar do Sul estranhavam descendentes de Pilar do Sul continuavam
sua forma de viver e se relacionar. Os constrangidos em falar a língua japonesa
imigrantes, por sua vez, também estra- fora das colônias, devido à repressão
nhavam os costumes do povo local. Esse não declarada, e isso também acontecia
estranhamento gerava formas de exclusão com qualquer outro tipo de manifestação
de ambas as partes, que eram frutos das cultural.
diferenças culturais e também resquícios Em Pilar do Sul, desde sua chegada,
das restrições impostas aos imigrantes os japoneses se relacionavam mais com
japoneses durante o período de guerra. seus pares devido à dificuldade de falar
Durante a Segunda Guerra Mundial, português e também com intuito de man-
os imigrantes japoneses, assim como os ter suas tradições. Preservavam o culto ao
alemães e italianos, sofreram restrições, imperador, as festas típicas, os costumes do
foram proibidos de possuir aparelhos de cotidiano, sobretudo os voltados à alimen-
rádio, falar a língua materna em público, tação e, principalmente, mantinham como
fazer reuniões, foi imposto o salvo con- exigência entre os mais jovens o casamen-
duto6 e as escolas foram fechadas. Essas to entre japoneses ou descendentes.
Pedro Antonio de Carvalho, morador
6
local, relata como sua mãe e as mulheres
O salvo conduto foi introduzido no Brasil pela
polícia do Distrito Federal, com base nas Portarias
n. 7576, de 26 de janeiro, e n. 8604, de 30 de outu- obrigados a portar um documento temporário que
bro de 1942, legalizando o controle aos chamados controlava o ato de “ir e vir” de todos os cidadãos
“súditos do Eixo”. Assim, para se locomover de uma alemães, japoneses ou italianos [...] (TAKEUSHI,
localidade para outra, esses estrangeiros eram 2002, p. 32).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 221-236, jul./dez. 2013. 225


da região estranhavam a forma como as colar para serem alertados dessa proibição
mulheres japonesas se vestiam, com chine- e o risco de serem presos.
los e meias; achavam que elas não sabiam Para os imigrantes japoneses não
cozinhar e por isso comiam tudo meio cru. foi fácil chegar a uma nova cidade, des-
Muitas zombavam das japonesas por não bravando novas terras, quase não falando
saberem ordenhar as vacas, o que para português, com costumes muitos diferentes
elas era uma habilidade essencial que se dos da população local. Para os moradores
aprendia quando criança. locais, também não foi fácil aprender a
Os japoneses e descendentes tam- conviver com os recém-chegados. Essas
bém estranhavam a forma de viver do dificuldades criaram uma barreira de estra-
povo local, com uma alimentação regada nhamento e exclusão que foi superada aos
a banha de porco, muito enfarinhada. poucos, no decorrer dos anos, por meio do
Estranhavam também seus hábitos de convívio no cotidiano e principalmente na
higiene, com banhos em bacias, já que relação de trabalho e no contexto escolar.
as casas, apesar de grandes, não tinham A autorização legal para o funcionamento
uma sala de banho. da Escola de Língua Japonesa e a criação
Os hábitos e costumes do cotidiano do Internato, em 1962, contribuíram para
japonês eram considerados estranhos dissolver essas barreiras.
pelos antigos moradores da cidade. Estes,
depois que perceberam que as terras que A Escola de Língua Japonesa e
haviam vendido estavam produzindo e Internato de Pilar do Sul
gerando lucro, revoltaram-se contra os
japoneses, o que criou mecanismos e Nas colônias japonesas, um dos
estratégias de repressão. objetivos era a educação dos filhos e a
A revolta não foi de toda a popu- promoção da cooperação entre os mem-
lação, mas sim de um grupo dentro dela, bros da comunidade. Algumas vezes, antes
formado por aqueles que tinham vendido mesmo da construção das sedes de asso-
suas terras aos imigrantes japoneses; os ciações para seus encontros comunitários
proprietários rurais e os comerciantes e sociais, os japoneses procuravam cons-
locais se sentiram enganados quando truir uma escola. Era aí que se reuniam
perceberam o crescimento econômico das para discutir os problemas da comunidade
famílias japonesas e seus descendentes. ou simplesmente comer e beber (HANDA,
Reprimiam a Associação Japonesa, 1987).
fazendo denúncias. Entre elas, denuncia- Na colônia “Sertão”, em 1949, com
vam a escola japonesa, já que, durante dez famílias, foi fundada a primeira sei-
certo período, foi proibido o ensino em nenkai (associação dos jovens), onde
língua estrangeira para crianças menores começou a funcionar, em 1950, a primeira
de doze anos. Várias vezes os imigrantes escola japonesa. Era uma pequena escola
japoneses foram chamados ao Grupo Es- construída com a sobra da madeira que foi

226 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
retirada do local onde foram cultivadas as A direção do Grupo Escolar comu-
plantações. O professor Furutani ensinava nicou os pais por três vezes, mas as aulas
às crianças a língua escrita e as tradições continuaram sendo dadas, apesar da
japonesas. ilegalidade, em casas de colonos da zona
No início da imigração, a escola rural e, a partir de 1956, na garagem da
construída pelos japoneses, principalmente Cooperativa Agrícola de Cotia, no centro
nas colônias, não exigia muitos gastos. da cidade. Em 1959, com autorização para
Dependendo do caso, uma casa de pau a a abertura da escola, o Kaikan adquiriu
pique já servia, com as paredes de barro, da Cooperativa Agrícola Cotia um terreno,
a cobertura de sapé e o chão batido. Se onde passaram a funcionar, em 1962, a
o número de alunos fosse pequeno, as Escola de Língua Japonesa e Internato de
aulas podiam ser ministradas em alguma Pilar do Sul.
casa particular. A escola da colônia “Ser- A Escola de Língua Japonesa e Inter-
tão” se encaixava nessas características nato de Pilar do Sul começou a funcionar
(CEHOAJIB,1992, p. 32). legalmente em 1962, e tinha como objetivo
A escola foi fechada após o faleci- manter as tradições japonesas por meio da
mento do professor Furutani e voltou a educação. Os alunos frequentavam o Gru-
funcionar em 1952, com o professor Soichi po Escolar ou Ginásio e, no outro período,
Yoshiba. Este professor, após fundar um a Escola de Língua Japonesa.
curso noturno na cidade, na casa de Guiti Segundo Demartine (1995), a preo-
Watanabe e no barracão de Omori, come- cupação dos japoneses em educar seus
çou a ir de bicicleta lecionar na colônia filhos no Brasil foi influenciada por dois
“Sertão” e na “Barra”7. fatores: primeiro, valorização da educação
Após dois anos viajando de bicicle- no começo do século XX no Japão, na Era
ta, com a fundação do Kaikan na cidade, Meiji; segundo, o alto grau de escolaridade
o professor Soichi Yoshiba passou a residir dos nipônicos em relação a outras levas de
na colônia “Barra”, onde continuou a ensi- imigrantes, sendo superados apenas pelos
nar a língua japonesa e frequentemente alemães8. Miyao afirma:
organizava festas da cultura japonesa. A revolução política e social iniciada
na Era Meiji, em 1868, trouxe pro-
7
As aulas não eram diárias, pois as colônias eram funda transformação no regime da
distantes da cidade, como também eram distantes nação nipônica, dando prioridade à
uma das outras e as estradas eram precárias. As difusão da educação, difundindo-a
aulas das colônias aconteciam em forma de rodízio. de modo drástico [...]. Desde então o
No período que a escola funcionava na ilegalidade
ela teve os sguintes professores Furutami – 1950,
8
Yoshiwa Soishi – 1952, Yasuda – 1953, Nagatomo Segundo pesquisa da Secretaria de Agricultura do
– 1953, Saito Masako – 1956 e Kobayashi Tadashi – Estado de São Paulo, que fez um levantamento a
1956 a 1964. Não encontramos informações sobre esse respeito com os imigrantes que desembarca-
sobre a formação desses professores. ram no Porto de Santos entre 1908 e 1932.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 221-236, jul./dez. 2013. 227


Japão emergiu de uma nação fecha- materiais e manter a estrutura da escola,
da, de 300 anos de isolacionismo, tendo como parâmetro o modelo de esco-
conseguindo rápida modernização las japonesas. Os imigrantes consideravam
com a introdução maciça da cultura que dessa forma aproximariam as crianças
ocidental. O japonês que viveu uma
das tradições japonesas, uma vez que
época assim peculiar sentia no seu
âmago que a instrução era a coisa
aprendendo a língua e os costumes dos
mais importante da vida, sobrepondo- pais elas teriam uma formação adequada
se a qualquer outra opção. O imigran- para viver no Japão.
te japonês que começou a chegar ao Diferentemente de outras escolas
Brasil em 1908 também foi criado japonesas que funcionaram no Estado
nesse ambiente. (MIYAO, 1980, p. 91). de São Paulo que foram pesquisadas por
Essa preocupação pode ser consta- Demartini e Kreutz, a Escola de Língua Ja-
tada entre os japoneses e seus descenden- ponesa e Internato de Pilar do Sul não era
tes, em Pilar do Sul, por meio das iniciativas uma escola primária ou secundária. Seus
de organização de associações e abertura alunos, mesmos os internos, a frequenta-
da escola, que, mesmo sofrendo represá- vam em horário que não conflitasse com
lias e ameaças caso fosse descoberta, era o do funcionamento do Grupo Escolar
mantida em funcionamento na ilegalidade, “Padre Anchieta” ou do Ginásio Estadual
até conseguir obter sua autorização legal de Pilar do Sul.
de funcionamento. Além de vivenciar as tradições e
A Escola de Língua Japonesa e um pouco da cultura japonesa, os alu-
Internato de Pilar do Sul era uma escola nos estudavam principalmente a língua
comunitária, mantida pela contribuição japonesa escrita, uma vez que a língua
social, o que Cehoaijb denomina como oral só precisava ser aprimorada, já que
os alunos a aprendiam em casa com
contribuição social (mensalidade a família. Segundo o depoimento do
paga à Associação de Japoneses
morador local Mineo Maruya, nas casas
pelos sócios), doações espontâneas,
subsídio oficial etc. O principal item
dos japoneses ou seus descendentes,
das despesas é a remuneração do uma criança aprendia primeiro a falar
professor, mínima de 100 mil-réis e o japonês e depois o português. Elas
máxima de 400 mil-réis. [...] Quanto à ingressavam na escola japonesa para
mensalidade escolar, varia conforme aprender a escrever, ler e conhecer um
a situação dos pais (proprietário ou pouco das tradições.
arrendatário, e ainda do número de As atividades não eram divididas em
crianças que uma família manda à disciplinas. Elas compunham um bloco de
escola). (CEHOAIJB, 1992, p. 127). atividades e, como já destacamos, o méto-
A contribuição social era destinada do de ensino utilizado tentava aproximar-
para pagar os professores, comprar livros, se ao máximo do método utilizado do

228 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
Japão, com materiais e livros utilizados nas participando das diferentes atividades da
escolas japonesas. escola, como aulas de língua japonesa,
O método de ensino na seção de idio- atividades sobre a história, geografia,
ma nipônico nas escolas segue geral- cultura japonesa, atletismo ou curso de
mente o modelo japonês, regime de corte e costura9.
seis anos... As matérias são vernáculo, Segundo depoimento da ex-aluna
educação moral, aritmética, geografia, Yoshi Yonemura Sasaki, assim como ela,
história, ciências, ginástica e canções. muitas crianças, mesmo antes de ingressar
Os livros escolares estavam baseados no grupo escolar, frequentavam a escola
nos textos oficiais de ensino primário japonesa, na qual ela ingressou com cinco
do Ministério da Educação do Japão. anos.
De maneira que havia muitas coisas
As fotografias a seguir retratam mais
incompreensíveis para os alunos, por
muito que o professor se esforçasse
que um momento escolar. Elas eternizam
em explicá-las. (CEHOAIJB, 1992, p.
o cotidiano da escola, o grupo de alunos
126) e professores. A disciplina e rigidez são
representadas nas fotos pousadas, mas
Além dos conteúdos regulares, a es- também a espontaneidade da infância
cola oferecia atividades esportivas e cursos, nas brincadeiras, nos sorrisos e até mesmo
como o de corte costura, para meninas. no cachorrinho de estimação do professor
Segundo ex-alunos dessa instituição, Kobayashi são registrados.
as crianças, para serem matriculadas, de-
veriam ser japonesas ou descendentes de
japoneses, não sendo aceita a matrícula
de crianças não descendentes de japonês
ou de outra nacionalidade. Nas décadas
de 1960 e 1970, se um dos pais da criança
não fosse japonês ou descendente, sua
matrícula também não era aceita, o que
a impedia de frequentar a escola e as
atividades do Kaikan.
Analisando os depoimentos dos ex-
alunos e fotografias da Escola de Língua
Japonesa e Internato, podemos destacar a 9
A professora Miyo Yoshiba deu aulas de corte e
presença de alunos de diferentes idades costura por quase dez anos na Escola de Língua
no mesmo grupo. Isso ocorria porque a Japonesa de Pilar do Sul. Era formada como pro-
escola não era seriada, diferentemente do fessora de língua japonesa e corte e costura Além
dessa professora, a Escola de Língua Japonesa
modelo de escola graduada das escolas
e Internato de Pilar do Sul teve os professores
estaduais, como o grupo escolar e o gi- Kobayashi Tadashi – 1956 a 1964, Osaki Mamoru
násio. Existia apenas um grupo de alunos – 1964, Jujii – 1968.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 221-236, jul./dez. 2013. 229


Figura 01 – Alunos da Escola de Língua Japonesa e
Internato e os professores Kobayashi e Miyo.
Fonte: Arquivo pessoal professora Miyo Yoshiba

Figura 02 – Alunos da Escola de Língua Japonesa e


Internato e os professores Kobayashi e Miyo.
Fonte: Arquivo pessoal professora Miyo Yoshiba

230 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
Mergulhar no interior da escola respeito devido a quem de direito: aos que
japonesa e analisar práticas peculiares têm mais idade, consequentemente mais
da cultura escolar propicia compreender experiência, ao Imperador, à família, aos
não só o contexto escolar, mas também costumes e às tradições.
a insistência de um povo distante de sua Para que a disciplina fosse mantida,
terra natal em manter seus costumes e castigos corporais eram utilizados. As crian-
tradições perpetuando sua cultura entre ças que não seguissem as regras discipli-
as novas gerações. nares, como o cumprimento de horários,
Nesse contexto, as festas e rituais o silêncio em sala, o respeito aos mais
tinham papel importante dentro da orga- velhos e o culto ao imperador do Japão,
nização escolar, pois eram uma forma de eram castigadas. Segundo depoimento
proporcionar experiências e vivências da da ex-aluna Yoshie Yonemura Sasaki, os
cultura japonesa. castigos corporais eram frequentes: “se
fizesse alguma coisa errada apanhava com
Rituais e festas varinha de marmelo”.
Para que o aluno recebesse uma
Analisar a história da Escola Japone- formação que articulasse corpo, mente
sa e Internato significa falar de uma cultura e alma e pudesse mergulhar um pouco
escolar peculiar, com tradições e costumes nas tradições japonesas, os rituais e festas
singulares segundo os quais o ensino era tinham um lugar de destaque.
pautado por diretrizes e normas disciplina- Segundo depoimentos de ex-alunos,
res similares às das escolas no Japão. Essa o ano escolar da Escola Japonesa e Inter-
escola não se restringia apenas ao ensino nato começava com a limpeza geral do
de língua japonesa, mas também de regras prédio, realizada por todos os alunos e pais
disciplinares, conteúdos e práticas que e, em seguida, com uma aula inaugural.
tinham como intuito a formação do corpo, O ano escolar terminava com a festa de
mente e alma, proporcionando subsídios formatura reunindo toda a comunidade. A
para que a criança, quando adulta, tivesse solenidade de formatura iniciava-se com
condições de viver no Japão. o hino nacional japonês, entrada dos for-
A questão da hierarquia era muito mandos, discursos dos diretores do Kaikan,
importante, pois esta era uma forma de entrega de certificados e premiações aos
manter a disciplina e criar hábitos para a alunos, discursos de encerramento e mú-
vida em família e sociedade. Na cultura ja- sica de entoada por todos os membros da
ponesa, o respeito aos mais velhos é muito escola. Da solenidade de formatura, todos
importante. Quando alguém de mais idade os alunos participavam, mesmo os não
fala, o mais jovem obedece sem discutir. formandos. A cada pessoa que tomava
A disciplina era rígida, com horários a tribuna para discursar, os alunos se
seguidos com precisão, e toda atividade a levantavam e faziam reverência, assim
ser realizada tinha um ritual indicativo do como cada formando fazia reverência ao

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 221-236, jul./dez. 2013. 231


público após o recebimento do certificado. uma confraternização, registrada nas fotos
Após a solenidade de formatura, acontecia a seguir.

Figura 03 – Confraternização dos alunos da Escola


Japonesa e Internato.
Fonte: Arquivo pessoal professora Miyo Yoshiba

Os rituais estavam presentes, tam- silêncio. O espaço onde foram realizadas


bém, no cotidiano escolar, e não apenas as refeições tinha que ser deixado em
em momentos especiais. Boa parte dos perfeita ordem. Os alunos internos tinham
alunos, mesmo os não internos, realizava as refeições oferecidas pela escola. Os não
suas refeições na escola. No horário mar- internos, conquanto pudessem fazer as
cado, todos deveriam entrar em fila, em refeições na escola, tinham que trazer o ali-
silêncio, posicionar-se próximos ao seu mento de casa. Boa parte dos alunos que
lugar e esperar a ordem do professor ou não ficava no internato morava na cidade
responsável para se sentar. Deveriam, em e fazia as refeições em sua própria casa.
seguida, agradecer dizendo “itadakimassu”, As aulas de caligrafia auxiliavam
que é uma expressão de saudação usada a disciplinar mente e alma, exercitando a
no início da refeição. Após isso, a refeição concentração e a paciência. Os exercícios
era servida. Depois dela, os alunos deve- de grafia eram essenciais para o bom
riam esperar o comando do professor para entendimento da língua, mesmo porque
se levantar, dizendo “gotissousama”, que os trabalhos tinham sempre que ser feitos
significa comida saborosa, e se retirar em com extrema organização e capricho.

232 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
Havia várias festas durante o ano, rapazes saem correndo, cada um pega
mas gostaríamos de destacar as princi- um cartão e vai até o grupo de moças,
pais: a comemoração do aniversário do procurando e chamando pela jovem
Imperador do Japão, a festa da colheita cujo nome pegou. Assim que encontra
e o Undokay (gincana esportiva familiar). seu par, ambos devem correr de mãos
A festa em comemoração ao ani- dadas até a linha de chegada.
versário do Imperador do Japão, apesar f) O “Supuun reesu” – equilibrando um
de simples, era considerada importante. ovo em uma colher de sopa em uma
Segundo depoimento do ex-aluno Akira das mãos, as senhoras devem percorrer
Morioka, os alunos realizavam juramentos 50 metros sem deixar o ovo cair.
de lealdade e prestavam homenagens g) O “Karimono kyoso”, corrida do “em-
ao Imperador se posicionando e fazendo préstimo”, na qual meninos e meninas
reverências para o lado do sol nascente. correm numa pista que tem na metade
Segundo Akira Morioka, o Undokay do percurso cartões com o nome de um
acontecia sempre entre maio ou junho e objeto comum (cinto, lenço, relógio de
durava o dia todo. A festa, organizada pelo pulso, presilha de cabelo, pulseira etc.).
Kaikan, envolvia todas as famílias em um Cada um pega um cartão e vai até ami-
momento de encontro e de confraterniza- gos e familiares, pedindo emprestado
ção entre as gerações, com a participação o objeto citado no cartão. Assim que
em diversas atividades. As principais eram: alguém lhe dá o objeto, a criança volta
a) O “Gojyû meetoru kyoso”, corrida de 50 ao percurso para terminar a corrida e
metros para crianças. devolve o objeto a seu dono.
b) O “Hyaku meetoru kyoso”, corrida de 100 h) O “Tsunahiki”, cabo-de-guerra.
metros. i) O “Takara sagashi”, corrida da “caça ao
c) O “Riree”, corrida de revezamento 4 x 100 tesouro”, na qual se divide a distância a
metros. ser percorrida em 3 terços. A um terço da
d) O “Ninin sankyaku”, corrida de 3 pernas linha de partida, são colocados cartões
– amarra-se a perna direita de uma no chão, com o desenho de um objeto, a
pessoa à perna esquerda da outra e, dois terços são colocados fora de ordem
abraçadas pelos ombros ou pela cintura cartões com o nome de cada objeto
correm juntas por 50 metros. correspondente. As crianças devem sair
e) O “Yomesan sagashi”, corrida da “pro- correndo, pegar um cartão desenhado,
cura de noiva” – um grupo de rapazes chegar aos cartões escritos e encontrar
é formado na linha de partida, e um aquele que corresponde ao cartão dese-
grupo de igual número de moças é nhado. Assim que achar o cartão correto,
formado na metade do percurso da devem terminar o percurso.
corrida. Na metade da distância entre j) O “Taiya korogashi kyoso”, corrida de
os dois grupos, cartões com os nomes pneus.
de cada moça são deixados no chão. Os k) O “Kani kyoso”, corrida de caranguejo.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 221-236, jul./dez. 2013. 233


l) O “Keisan kyoso”, corrida do cálculo, em dois times, que correspondem às cores
que cartões com uma proposta de cálcu- – geralmente branco e vermelho – de
lo simples sem o resultado são deixados dezenas de bolinhas de pano, rechea-
no chão, na metade do percurso (por das com retalhos, do tamanho de bolas
exemplo, 5+3=, 7x2=, 10-8= etc.). Muni- de beisebol. Uma pessoa, de preferência
das com um lápis, cada criança corre, com um capacete na cabeça, segura no
pega um cartão, escreve o resultado e centro do campo um grande balde ins-
termina o percurso. Obviamente vence talado na ponta de uma vara ou cano
a criança que chegar primeiro com o com aproximadamente 4 m de altura,
resultado correto escrito no cartão. no qual as crianças devem, durante 5
m) O “Tamaire kyoso”, bolinhas ao cesto, minutos, jogar e tentar encestar o maior
em que as crianças são divididas em número de bolas da cor de seu time.

Figura 04 - Alunas da Escola de Língua Japonesa e


Internato participando do Undokay.
Fonte: Arquivo pessoal família Takahashi

O Undokay era encerrado com as vara. Quando ele era quebrado, caia uma
crianças jogando bolinhas para quebrar chuva de pedaços de papel, como pode-
um recipiente que ficava no alto de uma mos observar na figura 05.

234 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
danças. Os rituais e festas eram mais do
que atividades escolares: eram momentos
de encontro das famílias e de reviver e
perpetuar a cultura japonesa entre as
gerações.

Considerações Finais
A Escola de Língua Japonesa e Inter-
nato de Pilar do Sul não apenas ensinava
os costumes, valores e tradições japonesas,
era a guardiã desses valores que constituí-
am a identidade e a memória de um grupo.
Dessa forma, ao estudar os rituais e
festas escolares não podemos reduzi-los a
momentos do cotidiano ou confraterniza-
ção, descontração e alegria, mas precisamos
entendê-los como momentos especiais, de
integração, de exaltação de valores e tradi-
Figura 05 - Crianças durante o encerra- ções de um grupo. Em outras palavras, os
mento do Undokay. rituais e festas eram momentos propícios
Fonte: Arquivo pessoal Miyo Yoshiba para a difusão de conhecimentos, normas
e valores legitimados pela escola e pela co-
A festa em comemoração à colhei- munidade japonesa. Compostos por normas
ta era o momento de agradecer a boa práticas com objetivos educativos, os rituais
colheita e confraternizar depois de meses e festas escolares revelam características
de trabalho, realizando danças por toda importantes da cultura escolar. Sendo pró-
comunidade e cantos. prios da cultura escolar, os rituais e festas
As festas reuniam os alunos e os transformam-se de acordo com o momento
pais: eram momentos em que os trabalhos histórico e, nesse sentido, são concebidos,
escolares eram expostos, os alunos e os apropriados e representados pelos sujeitos
pais faziam apresentações de música e envolvidos de diferentes maneiras.

Referências

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6., 2006, Uberlândia. Anais... Uberlândia: UFU, 2006. p. 3857-3868.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 221-236, jul./dez. 2013. 235


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JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da
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KREUTZ, Lúcio. Escolas comunitárias de imigrantes no Brasil: instâncias de coordenação e
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Nilda (Orgs.). A leitura de imagens na pesquisa social. História, Comunicação e Educação. São
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MORAIS, Fernando. Corações Sujos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RICCIARDI, Luiz. Cooperativismo: uma solução para os problemas atuais. Vitória: Lineart, 1990.
SAKURAI, Célia. Os japoneses. São Paulo: Contexto, 2007.
VIÑAO FRAGO. Historia de la educación e historia cultural: posibilidades, problemas, cuestiones.
Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 0, p. 63-82, 1995.

Recebido em abril de 2013


Aprovado para publicação em maio de 2013

236 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
A imprensa brasileira nos oitocentos e a história da
educação: Hipólito da Costa e o Correio Braziliense1
Brazilian press in eighteen hundred and history
of education: Hipólito da Costa and the “Correio
Braziliense”
Marcília Rosa Periotto*
* Doutora em História da Educação pela Universidade Esta-
dual de Campinas (UNICAMP/SP). Professora do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual
de Maringá (UEM/PR).
E-mail: mrperiotto@uem.br

Resumo
É um estudo sobre a relação imprensa e educação. A imprensa brasileira dos oitocentos é vista como uma
fonte profícua para o entendimento do processo educativo ao qual se submeteu a sociedade brasileira
em meio à construção de uma dada ideia de Nação nos albores do século XIX. Hipólito da Costa e o
jornal Correio Braziliense são, então, objetos de estudo, no qual o objetivo é analisar o debate travado em
nome da aplicação das ideias liberais em oposição ao absolutismo, cujo resultado consistiu na formação
dos brasileiros e contribuiu para levá-los ao movimento da independência, na medida em que contribuiu
com ideias necessárias ao enfrentamento político contra a metrópole portuguesa.
Palavras-chave
Imprensa-Educação. Hipólito da Costa-Correio Braziliense. Século XIX.

Abstrat
It is a study on the relationship the press and education. The Brazilian press of the eighteen century is seen
as a fruitful source for understanding the educational process to which Brazilian society was submitted
through the construction of a given idea of nation at the dawn of the nineteenth century. Hipólito da
Costa and the newspaper “Correio Braziliense” are then objects of study, in which the goal is to analyze
the debate made on behalf of the application of liberal ideas in opposition to absolutism, whose result
was the formation of the Brazilian, and helped lead them to the movement of independence, in that it
contributed to the necessary ideas for the political confrontation against the Portuguese metropolis.
Key words:
Press, Education. Hipólito da Costa-“Correio Braziliense”. nineteenth century.

1
Este artigo é parte do Relatório Final de pesquisa pós-doutora, realizada entre 2007 a 2009, na FaE/
UFMG. Foram apresentados em eventos e revistas da área temas correlatos ao texto.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 237-252, jul./dez. 2013
Introdução por uma intensa renovação. Mesmo
considerando a enorme fascinação
A pesquisa educacional na atua- do campo pedagógico pelo novo, logo
lidade dedica à imprensa brasileira dos produzido como positivo, no caso da
anos oitocentos uma atenção especial na história da educação, ao que tudo
eleição de novas temáticas e objetos, tor- indica, a renovação tem significado
nando-a uma fonte vigorosa para estudos um enriquecimento das abordagens
teórico-metodológicas, uma amplia-
historiográficos sobre o caráter educativo
ção das fontes, a diversificação dos
implícito na construção de uma ideia de
objetos e a elaboração de perguntas
nação e de uma sociedade substituta das inimagináveis há algumas décadas.
relações coloniais. Na aurora do século No seu conjunto, tais procedimentos
XIX, o entendimento sobre o significado têm redimensionado o nosso campo
de nação passou a ser um requisito da de estudos. (FARIA FILHO, 2006, p. 7).
burguesia na busca pela consolidação
Novas fontes, novos objetos, novas
dos Estados Nacionais. Ana Rosa Clocet da
interpretações surgem e se mantêm como
Silva anota que, no debate sobre a nação,
possibilidades de leituras inéditas sobre
nos domínios da teoria:
os acontecimentos históricos brasileiros, e
... a grande questão debatida pelos também permitem releituras metodológicas
estadistas e intelectuais dos diversos que propõem abordagens dissonantes às
países europeus e americanos, que que predominam na área. Assim, se não
se consolidava como Estados inde-
importam os resultados, é a história da
pendentes, versava sobre os possíveis
educação quem ganha ao ter revelado seu
significados do termo Nação, bem
como sobre a definição de critérios que processo constitutivo, observado desde as
possibilitassem classificar uma dada primeiras manifestações formais da edu-
região como tal. (SILVA, 1999, p. 66). cação até o conteúdo educativo necessário
para constituir-se num corpo unificado de
Os jornais e revistas do período fo- propósitos, marcado com intensidade nos
ram parceiros dessa construção e, ao mes- periódicos do século XIX.
mo tempo, difusores de ideias subsumi- A historiografia, portanto, passa por
das aos negócios dos distintos grupos um período profícuo com a disposição
políticos aproximados ao poder central e ampliada dos pesquisadores em vasculhar
de intelectuais voltados à veiculação dos arquivos que possam alojar fontes então
conhecimentos úteis ao desenvolvimento desconhecidas ou resgatar aquelas que
social e econômico. já foram identificadas, mas ainda não
Essa renovação nos estudos histó- submetidas à análise. Embora se saiba
ricos, em especial a história da educação, que as condições de guardo nos arquivos
na opinião de Faria Filho, é intensa: e bibliotecas brasileiras são ainda inade-
Já há muitos anos, diz-se que a pes- quadas, na medida em que escasseiam re-
quisa em história da educação passa cursos, aliados à ausência de uma cultura

238 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
de preservação, há ainda muito acervo surgiram no ano de 1808, um inaugurando
documental à espera de serem descober- a liberação da imprensa no Brasil, o outro
tos e expostos à luz do dia. Esse material na defesa de maior liberdade de expressão
aguarda constituírem-se em auxiliares para essa mesma imprensa como meio de
das pesquisas que se debruçam sobre propagação das ideias liberais.
o processo de construção da sociedade Após anos de esquecimento e em
brasileira nas mais diferentes perspectivas condições impróprias à preservação, os
teórico-metodológicas. jornais foram alçados à categoria de fontes
Igual constatação se observa em históricas. Essa assunção ao quadro dos
José Marques de Melo (2005), coordenador interesses dos pesquisadores referenda a
de uma coleção “que pretende mostrar a renovação temática na pesquisa e emerge
imprensa brasileira e os personagens que do esforço realizado em prol do desenvol-
nela fizeram história”, refere-se ao incêndio vimento científico e tecnológico brasileiro,
que “destruiu preciosos originais deposita- visando formar recursos humanos para as
dos nos prelos da Imprensa Nacional: mais diversas áreas do conhecimento, e
Esse episódio sinaliza a maldição que nas quais se inclui a educação e a história
se projetaria sobre a memória da nossa da educação.
imprensa, penalizada pela incúria ins- Quanto ao significado de fonte, é
titucional e desprezada pelas nossas oportuno explicitar que as fontes, por si
vanguardas intelectuais. Esse descaso só, não representam a História. Dermeval
em relação à memória da imprensa Saviani (2006, p. 5-6) afirma que as fontes
traduz em certo sentido a atitude pátria são apenas documentos que registram o
referente à própria memória nacional, movimento da história de inúmeras ma-
principalmente no âmbito da cultura neiras, entre as quais, a título de exemplo,
não erudita, condenando ao esque-
podem-se citar os achados arqueológicos,
cimento as instituições, os fatos e os
personagens que também fizeram
as vestimentas, as construções e estilos
História. (MELO, 2005, p. 1). arquitetônicos, o mobiliário, os pergami-
nhos etc., etc., até os jornais e revistas dos
Em oposição ao desmazelo no tempos da prensa e dos tipos inaugurados
trato da memória documental brasileira, por Gutenberg. As fontes, então,
o quadro hoje se apresenta promissor
[...] constituem o ponto de partida, a
com o surgimento de um debate sobre
base, o ponto de apoio da construção
a conservação da memória brasileira, e
historiográfica que é a reconstrução,
pela adoção de políticas que ensejam no plano do conhecimento do objeto
esse guardo em condições compatíveis histórico estudado. Assim, as fontes
aos grandes arquivos e bibliotecas estran- históricas não são a fonte da história,
geiras. Além disso, aumentam os estudos, ou seja, não é delas que brota e flui
interpretativos ou não, sobre a imprensa a história. Elas, enquanto registros,
brasileira desde que a Gazeta e o Correio enquanto testemunhos dos atos his-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 237-252 jul./dez. 2013. 239


tóricos, são a fonte do nosso conhe- tornar passíveis das mais variadas interpre-
cimento histórico, isto é, é delas que tações, vasculhadas naqueles elementos
brota, é nelas que se apóia o conhe- emaranhados no que se denomina a “sua
cimento que produzimos a respeito da verdade”. Tirá-las do alcance de qualquer
história. (SAVIANI, 2006, p. 5-6). outro pesquisador, em outras palavras, re-
A afirmação de Dermeval Saviani presenta obstar a marcha da historiografia,
explicita o papel das fontes no âmbito que busca refletir o passado para entender
da produção historiográfica e não retira o presente que a vida humana comporta.
delas a aptidão de expressar os fatos his- Dessa forma, e entre outros a critério
tóricos. Entretanto não lhe imputa outra do pesquisador, os jornais e revistas do
coisa senão a condição de ser o registro século XIX poderão ser compreendidos.
documental desses fatos e nunca a ação Quanto à educação, pouco se anuncia
histórica em si, a que transforma, muda ou claramente sobre o debate realizado em
reforma os homens no interior das suas seu nome, entretanto denota-se um ca-
relações sociais. ráter educativo intrínseco aos discursos
A princípio, tudo que existe preser- realizados, preenchidos de conteúdos
vado, seja em boas condições físicas e objetivamente ordenados para difundir
materiais, ou não, tendemos a ver como ideias e arregimentar adeptos às causas
fonte. Entretanto aquilo que prontamen- defendidas.
te é definido por fonte somente ganha Gilberto Freyre, quando realizou
essa condição quando se a coloca em estudos sobre a imprensa, foi um dos
movimento. É o pesquisador que diz ser primeiros a alertar sobre a necessidade
“fonte” aquele documento penosamente de se realizarem estudos sobre os jornais
garimpado nos arquivos, geralmente do século XIX. Celina Murasse afirma que:
tomados pelo mofo, exatamente porque Fazer uso de periódicos como fonte de
ele se achega da fonte já determinado a pesquisa é uma abordagem inaugu-
cumprir as exigências que o objeto reclama rada por Gilberto Freyre (1900-1987).
e certamente secundado por um dado eixo Ele foi o primeiro a tratar cientifica-
metodológico definido a priori. mente o conteúdo dos jornais. Essa
Ao largo desse entendimento, so- metodologia de pesquisa “iria revo-
bressai a compreensão de que as fontes lucionar por completo os processos
não têm “dono”. A partir do momento em da nossa historiografia social”. Essa
técnica destaca Freyre (1979, p. LXI),
que são submetidas à reflexão, oferecem
“não foi nova apenas para os estudos
uma resposta que se torna também objeto sociais no Brasil, mas para os estu-
de estudo, referência de uma discussão dos sociais em geral: em qualquer
do pesquisador com a história, em que país”. Em 1934 o autor proferiu uma
novos dados foram obtidos bem como conferência na qual apresentou, pela
novas respostas. Isto significa dizer que primeira vez, os resultados das inves-
democraticamente as fontes devem se tigações iniciadas em 1932, a partir

240 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
de anúncios veiculados em jornais medida em que se instituíam em cartilhas
brasileiros do século XIX. Em 1935 pedagógicas, e nelas se encontrava, possi-
tornou público o ensaio “O escravo velmente, o único acesso de muitos a um
nos anúncios de jornal do tempo do saber restrito aos letrados.
Império”. (MURASSE, 2006, p. 2). Os jornais comportavam uma na-
Essas fontes, guardiãs do movi- tureza peculiar em relação aos interesses
mento histórico, permitem reconstituir os que previam ser incorporados pelos leito-
fatos históricos expressivos do processo res: ou eram noticiosos ou doutrinários.
contraditório das relações sociais, as quais Na visão de Marcos Bahé e Pierre Lucena
estão perfeitamente inoculadas no fazer de (2008), essa distinção será tomada pela
quem redigia as notícias, emitia opiniões historiografia de maneira rigorosa. Ambos
ou dos colaboradores que provavelmente alertam para o fato de que um jornal podia
aprontavam, com presteza e sob encomen- ser noticioso e doutrinário ao mesmo tem-
da, o discurso do grupo político a quem po, como se observa amiúde nas páginas
serviam. Na visão de Olinda Noronha, do Correio Braziliense:
[...] a investigação histórica tem de, A historiografia que lida com a im-
ao abordar as fontes documentais, prensa no Brasil nesse período, tanto
ter em conta que elas expressam no que concerne à forma quanto ao
a síntese de uma multiplicidade de conteúdo dos periódicos, costuma
determinações históricas. Expressam dividir a imprensa nascente em dois
as contradições e os conflitos de tipos: a doutrinária e a noticiosa. O
interlocutores aliados e adversários. noticioso se distinguiria do doutrinário
Deste modo, o diálogo com um do- pelas notícias oficiais – geralmente,
cumento histórico deve refletir uma logo nas primeiras páginas. Algumas
posição de leitura que o toma como vezes com cartas oficiais, decretos
síntese consensual do passado. E não Reais, estrangeiros ou locais. Contudo,
como a simples soma das vontades e no mais das vezes, as notícias eram
intervenções. (NORONHA, 1998, p. 33). de cunho administrativo. Por sua vez,
os periódicos de caráter doutrinário
A utilização de jornais e revistas do (embora as notícias oficiais e os
século XIX como fonte historiográfica, se acontecimentos também povoassem
ainda é recente, já deu sinais evidentes suas páginas) obedeciam a outra
de produção de bons frutos, crescendo ordem. Não traziam apenas notícias,
em número e qualidade os estudos sobre mas, sobretudo, artigos e cartas, não
como ‘descrições imparciais da reali-
a imprensa periódica que trata de temas
dade’, mas, antes, como argumento a
gerais, nos quais se incluem o debate ser provado. Mas, as notícias também
político, econômico e social. Não se deve estavam presentes. No cotidiano
esquecer, também, das manifestações desses dois periódicos, o doutrinário
culturais representativas do cotidiano de e o noticioso estavam imbricados
um povo, eivadas de caráter educativo na de tal maneira que dificilmente

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 237-252 jul./dez. 2013. 241


poderíamos usar essas distinções tornando-se verdadeira pedra funda-
como classificações binárias, do tipo: mental para o desenvolvimento dos
Correio Braziliense – doutrinário; Ga- espaços públicos do século XIX. Ade-
zeta do Rio - noticioso. Como vimos, mais, por meio da imprensa, diversas
é problemático usar essa distinção personagens encontraram o espaço
para classificar os periódicos desse privilegiado para expressão de suas
período. É preciso olhar com cautela vozes [...]. (MOREIRA, 2008, p. 26).
o caráter noticioso e o caráter dou-
O uso dos jornais e revistas do
trinário, pensar de forma atenta os
século XIX como fontes que possibilitam
significados destes termos naqueles
tempos. (BAHÉ; LUCENA, 2008). o entendimento das práticas sociais do
passado tem um significado relevante para
Ao serem doutrinários e divulgarem a história: se neles se encontra o registro
ideias – liberais ou não –, os jornais tam- dos embates de uma época é possível que
bém concorreram, dentro de suas particu- também ali estejam inscritas as respostas
laridades e limites, para reproduzi-las num que essas mesmas épocas deram às suas
ambiente em que o calor da hora definia pendências e necessidades, como postu-
a ousadia dos conteúdos e os tornava lam Denice Catani e Maria Helena Câmara
maiores aos olhos do público na disputa Bastos (1997):
com os jornais concorrentes.
A imprensa é um corpus documental
Esse caráter político marcaria em de vastas dimensões, pois se constitui
grande medida a imprensa do século XIX em um testemunho vivo dos métodos
no Brasil, a ponto de tornar-se o veículo e concepções pedagógicas de uma
principal da difusão do pensamento liberal, época e da ideologia moral, política
ao permitir que seu influxo conduzisse e social de um grupo profissional.
os movimentos políticos sociais que a É um excelente observatório, uma
natividade colonial insurgia contra os fotografia da ideologia que preside.
portugueses. A Revolução de 17, do padre Nessa perspectiva, é um guia prático
do cotidiano educacional e escolar,
Roma, inspirou-se naquela fonte numa
permitindo ao pesquisador estudar
antecipação do desiderato entre colônia e o pensamento pedagógico de um
metrópole, tornando evidente um quadro determinado setor ou de um grupo
de insatisfação surda contra os desígnios social a partir da análise do discurso
políticos enfrentados pelos coloniais. Ar- veiculado e da ressonância dos temas
gumenta Luciano da Silva Moreira, num debatidos, dentro e fora do universo
estudo sobre as tipografias mineiras que: escolar. (CATANI; BASTOS, 1997, p. 32).
Existe entre os estudiosos o consen- Voltar-se à reconstituição das bata-
so de que o impresso foi um dos lhas cotidianas, enfrentadas pelos homens
principais ingredientes das culturas quando do seu processo de construção de
políticas e elemento em torno do condições objetivas de vida, é tarefa que
qual foram tecidos conceitos e idéias, encontra, nos periódicos do século XIX, um

242 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
repositório de incalculável riqueza históri- na Carta aos Senhores Eleitores da Provín-
ca. Sem eles, certamente, as transformações cia de Minas Gerais, de 30 de dezembro
das relações sociais no Brasil não seriam de 1827:
apreendidas em minudências, impedindo
Um dos mais profícuos meios de dis-
alçar as coisas mais comezinhas ao qua- seminar a instrução pelos membros
dro de construção da história nacional de uma sociedade é a liberdade de
como fatos e situações às vezes decisivas imprensa; a experiência das nações
ao desenrolar do processo histórico. cultas demonstra com evidência esta
Desse modo, aprofundar estudos verdade. Como poderia uma Nação
sobre a imprensa brasileira do século XIX chegar ao conhecimento do bom ou
e dos escritos que exerceram influência do mau procedimento de seus servi-
nos leitores da época resulta em análises dores, se não houvesse liberdade de
que expõem as concepções de sociedade o publicar pela imprensa. As informa-
imersas nos diversos projetos pensados ções raras vezes são exatas quando
os informantes não temem a pública
pela elite política e econômica. A viabi-
censura. E como se obteria o conhe-
lização desses projetos configurava um cimento dos fatos de que se pede
desenho de nação no qual os interesses informação, se a imprensa não os
dos estratos superiores eram praticamente publicasse? Demais é pela imprensa
as únicas demandas a serem cumpridas, que se propagam os conhecimentos
em detrimento das necessidades da popu- úteis. (VASCONCELLOS, 1978, p. 180).
lação pobre e livre.
A imprensa, na condição de fonte
histórica, resulta em estudos apropriados
A imprensa e a difusão dos conheci-
à historiografia educacional na medida
mentos úteis
em que algumas formas de análise são
A imprensa no Brasil surge a partir pertinentes ao desvelar dos processos
da liberação ordenada por D. João em educativos no século XIX. Entre as diver-
1808, com a fundação da Gazeta do Rio sas temáticas que emergem do estudo
de Janeiro, motivada pela necessidade de da imprensa, ressaltam as diretamente
publicação dos decretos reais e matérias vinculadas à educação, ou seja, anúncios
de interesse da Coroa. Logo surgiram vários sobre escolas, indivíduos que ofereciam
jornais, entre eles Idade d’Ouro do Brasil, seus préstimos para o ensino de línguas
na Bahia e O Patriota (1813-1814), no Rio estrangeiras, gramática, álgebra, os decre-
de Janeiro, e alguns jornais de oposição, tos governamentais destinados ao ensino,
defensores das ideias liberais e inimigos a importância e necessidade de oferecer
da aristocracia. instrução aos brasileiros etc.
A vinculação da imprensa com a A segunda forma não despreza
educação pode ser observada na fala de nenhum dos aspectos acima citados, incor-
Bernardo Pereira de Vasconcellos, redigida pora-os no sentido de revelar as relações

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 237-252 jul./dez. 2013. 243


históricas neles expressas. Trata-se, aqui, da aguçou as animosidades, e foi intérprete
análise histórica, eixo teórico-metodológico de uma situação insustentável para a velha
que visa vincular as manifestações so- aristocracia, cumprindo com pertinácia a
ciais ao movimento da história. Assim, o tarefa histórica de minar o anacrônico
posicionamento ideológico imprimido aos absolutismo português, numa ação que
artigos de jornais, os debates pró e contra Luciano Mendes Faria Filho, Carla Simone
a incorporação de práticas progressistas, a Chamon e Walquiria Miranda Rosa (2006,
luta político-partidária, a literatura, a crítica p. 15) denominaram de “agente cultural,
expõem o esforço da sociedade da época mobilizador de opiniões e propagador de
em dar seguimento ao predomínio das ideais”.
nações mais desenvolvidas. Vê-se, então, que a assunção da
Nesse eixo, portanto, o que importa é imprensa à condição de fonte documental
o caráter educativo assumido pela impren- para a pesquisa histórica é fato já consa-
sa brasileira no século XIX na condição de grado na área educacional. Observa-se a
disseminadora privilegiada de um saber proliferação acentuada de estudos que
ainda incógnito aos brasileiros. Entendê-la buscam relacionar a atuação e conteúdos
parceira desse processo formativo não soa de jornais, folhas, revistas e periódicos
inapropriado, já que afigurava como um com o processo educativo. A relevância da
meio de instruí-los sobre as transformações imprensa para os estudos históricos teve
sociais e informá-los a respeito das técni- início com a Escola dos Annales que, se-
cas de produção de mercadorias, feitas ao gundo Peter Burke (1997, p. 126), expandiu
nível de larga escala, e que deixavam ricas “o campo da história por diversas áreas.
as nações desenvolvidas. O grupo ampliou o território da história...”,
Ao difundir as opiniões da época, entre eles o da história da educação. A
que demoravam a chegar em razão de partir daí, os pesquisadores do campo têm
reiteradas proibições portuguesas quanto à ampliado suas inserções sobre os impres-
difusão e circulação do novo pensamento, sos de modo a obterem informações, ou
a imprensa apresentava-se como um elo ainda, veios explicativos para as práticas
entre a política e o poder, isto é, “com os políticas, sociais, culturais etc., não somente
meios de preservação das relações políticas relatados pela imprensa como, às vezes,
e sociais, que consolidam a dependência estimulados por ela.
do homem livre pobre da capital, não pro- A imprensa, de modo geral, constitui-
prietário de terras e escravos, à tutela dos se num corpo de capital valor para a aná-
senhores da grande propriedade territorial”, lise do processo constitutivo das relações
como afirma Isabel Marson (1974, p. 4). educacionais no Brasil, além de adentrar
A imprensa foi um dos instrumen- no terreno mesmo da realização da história
tos dos mais audazes no rompimento nacional. Como fonte histórica, a imprensa
entre metrópole e colônia. Difundiu ideias, tem sido capaz de revelar processos educa-
sustentou argumentos, insuflou espíritos, tivos, tomados na sua acepção mais geral,

244 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
os quais a chamada história oficial, em A reação desencadeada pelos dois
razão das suas limitações interpretativas, deputados na corte portuguesa, abalizada
não conseguiu vislumbrar como funda- nos interesses brasileiros e representati-
mentais aos movimentos históricos pelos va da posição política de parte da elite,
quais passou a sociedade brasileira. demonstra o quanto a esta importava a
As circunstâncias históricas nas quais existência de um meio propagador do
se encontrava o Brasil nos oitocentos era pensamento capaz de dar unidade à luta
um impedimento descomunal no enfrenta- contra a permanência portuguesa na vida
mento das forças do passado. A imprensa, brasileira. A imprensa, difusora daqueles
notadamente a de oposição, supriu, em ideais de liberdade que haviam movidos
certa medida, a ausência de um ambiente os homens nos séculos anteriores e ainda
educativo e cultural propenso à difusão das os atormentava, circulou então com respei-
ideias e contribuiu, de forma significativa, tável liberdade no Brasil após o retorno de
na formação da elite contrária aos rumos D. João a Portugal, não dando tréguas ao
imprimidos pelos portugueses aos negócios governo nem àqueles que o apoiavam,
coloniais. Nos debates realizados no Con-
opondo-se às tentativas de retornar o Brasil
gresso Português em 1822, na Comissão
à condição colonial.
dos Negócios Sobre o Brasil, instalada no
Nesse momento se produziu uma
Congresso Português, acentuou-se a dispo-
imprensa educativa, forjada naquelas
sição de retornar o Brasil ao estado colonial:
matérias que sustentariam a opinião dos
Antonio Carlos e Zeferino dos Santos brasileiros contra os dissabores da admi-
desvendaram os verdadeiros intuitos nistração portuguesa, reformando a opi-
da Comissão: “Os brasileiros têm os
nião de Hipólito da Costa, jornalista editor
precisos conhecimentos dos seus
verdadeiros interesses, estão muito
do Correio Braziliense (1808-1822), sobre
adiantados em civilização, para serem a incapacidade dos brasileiros em se fazer
tratados como selvagens”, disse Anto- e ser governo, admitindo que os brasileiros
nio Carlos. “Eles vêem”, prosseguiu, “e estivessem preparados para o advento da
todo o mundo vê, a tendência oculta independência. Essa nova posição, sinal
desta medida. Portugal viria a ser o de- dos tempos e filha das circunstâncias
pósito único das produções do Brasil, históricas que se teciam em nome da se-
a ele só concorreriam os estrangeiros paração, ressalta o caráter educativo que
a fornecerem-se destes produtos, e
a imprensa, não só a de Hipólito, cumpriu
no mercado brasileiro desde então
naquele processo, tornando-se uma das
deserto de qualquer outra compe-
tência, ditariam leis os negociantes fontes mais propícias ao movimento po-
portugueses e os seus agentes, e deste lítico da elite contra o governo português.
modo restabelecer-se-ia indiretamente A leitura que se faz sobre a ins-
o odioso comércio exclusivo colonial. talação da imprensa e de seu desenvol-
(RODRIGUES, 1975, p. 125). vimento no Brasil no decorrer do século

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 237-252 jul./dez. 2013. 245


XIX, período de construção primeiramente sociedade recém-vitoriosa pós-1789, e que
de um sentido de nação, depois de luta amplia os horizontes culturais, permite que
para consolidá-lo, passa necessariamente se trace um panorama do período de atu-
pelo crivo da educação, mas um tipo de ação de certos jornais, mas não somente
educação que não se confunde apenas isso. Os registros feitos sobre as condições
com a formalizada nos recintos escolares, da época, as opiniões elaboradas para
mas disseminadora das questões que a atrair aliados, o pensamento que se que-
sociedade burguesa necessitava impor ria impregnado e difundido em nome de
ou destruir, abrindo vias para predicarem certos interesses representam o papel edu-
as sociedades locais, por instâncias que cativo que cerca a imprensa dos tempos
consentissem usufruir de condições pro- idos. Esse caráter confere à imprensa do
gressistas, as quais seriam o sustentáculo século XIX a condição de “educadora”, na
na dominação das relações capitalistas. medida em que realizou a expansão de
Nesse contexto, a imprensa e a edu- ideias e saberes que os centros escolares
cação estiveram entrelaçadas, servindo a só fariam anos depois.
primeira de veículo para as propostas po- Para Sérgio Góes de Paula, no
líticas emergentes dos grupos que disputa- estudo realizado sobre Hipólito e o Cor-
vam o poder, e a segunda, para conformar reio, somente na observação do contexto
uma visão social própria aos interesses da histórico no qual estavam inseridos é
elite, peculiar às circunstâncias históricas possível conferir as “qualidades do editor”
no Brasil, mas não menos expressiva das e as “características das facções com que
relações dominantes de então. Esse enlace ele se alia”:
explica, em parte, o poder doutrinário da
Tais atributos só podem ser entendi-
imprensa brasileira nos oitocentos. dos se considerarmos os significados
de nossa “breve época das luzes”, em
O Correio Braziliense e a educação que os intelectuais deixaram de ambi-
cionar o estatuto de artistas, voltaram-
A análise sobre Hipólito da Costa
se para a aplicação prática das idéias
e o Correio Braziliense, embasada na
e tomaram como missão esclarecer a
observação dos condicionantes históricos sociedade. (PAULA, 2001, p. 25).
mundiais, reafirma a crescente aliança
entre imprensa do século XIX e história Em 1o de junho de 1808, Hipólito da
da educação, cujas pesquisas vêm se Costa inaugurava em Londres o Correio
tornando corriqueira no campo, como já Braziliense, jornal que faria oposição sis-
se demonstrou no texto acima. temática ao regime absolutista até a inde-
A relação entre a educação e o jor- pendência política em 1822. A monarquia
nal que difunde ideias, conquista adeptos portuguesa, secundada pela aristocracia,
às causas defendidas, que instrui para a administrava a colônia sem conceder aos
luta política nascida da emergência da brasileiros nem liberdade, nem parceria na

246 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
condução das atividades mercantis, numa e Brasil fazia-se mais seguramente
política de salvaguardar os interesses lusi- através dos navios ingleses que não
tanos, já abalados seriamente na Metrópo- eram vistoriados pelas autoridades
le posteriormente aos desdobramentos do portuguesas. (TENGARRINHA, 1965,
p. 222-3).
embargo napoleônico e da assinatura do
Tratado de 1810 com os ingleses. A Inglaterra, na primeira década dos
A atuação político-educativa do oitocentos, não só se tornara local de aco-
jornal foi de 14 anos, tempo suficiente lhimento dos exilados portugueses, Hipólito
para marcar o processo separatista com da Costa, principalmente, mas também
conteúdos liberais. Escrito e editado em espaço onde a oposição aos governantes
Londres, proibido e contrabandeado ao portugueses se organizou na forma de
Brasil, o Correio expressou a emergência jornais e periódicos políticos, atuando com
de um novo tempo trazido pela consoli- críticas profundas à incapacidade da no-
dação definitiva da sociedade burguesa breza no exercício do poder e nas decisões
com a Revolução Francesa. Conforme José inapropriadas aos interesses do reino.
Tengarrinha, Desse modo, muito mais que ao Rei,
O aparecimento de jornais escritos as admoestações da imprensa de oposição
em português no estrangeiro em visavam atingir à aristocracia e aos conse-
considerável número e com grande lheiros reais, cujas opiniões baseavam-se
vitalidade nos anos que antecede- no velho regime, na compreensão da eco-
ram a Revolução Liberal de 1820 foi nomia política versada no mercantilismo
um fenômeno inteiramente novo na e completamente alheia ao estágio de
história da imprensa lusa. (TENGAR- desenvolvimento material da sociedade de
RINHA, 1965, p. 219). então e das ordenações que esta produzia.
A escolha da capital inglesa como Recorrendo mais uma vez a Tengar-
base do jornalismo de contestação ao go- rinha (1965, p. 226), sabe-se que a impren-
verno português e também de refutação ao sa portuguesa, no período de ocupação
mesmo jornalismo, para Tengarrinha, deu- francesa, desfrutou de condições excepcio-
se em razão de Londres ostentar o signo nais de existência garantidas pelo próprio
de “vértice decisivo na relação triangular governo português, isto numa situação
com Lisboa e Rio de Janeiro”: oposta ao que existia anteriormente a
Napoleão, embora na primeira ocupação,
Londres era, ainda, o centro dos
negócios do mundo, além dos de
Junot, general francês que ficou com o
Portugal, garantindo mais facilidades mando do poder em Portugal, exercesse
de comunicação com o Brasil do “intensa vigilância”. De coibida, controlada,
que através de Lisboa. Aí chegavam foi estimulada ao ponto de, em 1809, circu-
de todo o mundo as mais rápidas e lar livremente 24 jornais recém-fundados
abundantes informações. Além de e assim existir até a derrota dos franceses
que o envio dos jornais para Portugal em 1810.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 237-252 jul./dez. 2013. 247


Entretanto, a partir desse período, a do governo definitivamente instalada no
imprensa retornou ao domínio da censura, Rio de Janeiro.
uma resposta às insistentes críticas ao rei, No entanto a entrada do jornal no
que se recusava a sair do Brasil e retornar Brasil foi seguida de ressalvas que vieram
a Portugal, e ao estado nevrálgico da eco- na forma de decreto alvitrado pelo outrora
nomia portuguesa, causado, entre outros amigo de Hipólito, D. Rodrigo de Souza
fatores, por uma classe dirigente velha Coutinho, o Conde de Linhares, um presti-
diante dos novos tempos. Assim, os que gioso ministro do Rei, que proibia a sua li-
foram proibidos de publicar em Portugal vre circulação. Medida inócua, já que entre
se dirigiram a Londres e lá continuaram os letrados e elite o Correio, contrabandea-
a praticar o jornalismo de crítica política: do, era leitura obrigatória, com subscrição,
Nada mais restava aos jornalistas li- inclusive, de Francisco Oliveira, o Chalaça,
berais que se haviam empenhado no secretário e amigo dileto de Pedro I e mal
debate político durante cerca de dois querido pelos áulicos de plantão.
anos do que retomá-lo no estrangeiro, Fernanda Cinque (2007) afirma
em condições de maior liberdade que que a burguesia via na imprensa um seu
lhes permitiam sair em defesa aberta aliado, por publicar dados relativos aos
de uma nova ordem constitucional e preços dos produtos, do volume da pro-
criticar duramente a degradante situ- dução, sobre as novas mercadorias, mas
ação nacional. E, desta maneira, não que a penetração propriamente dita das
só procurar influenciar os meios polí-
ideias inovadoras nos territórios do Ultra-
ticos e diplomáticos estrangeiros, mas
também ter algum peso nos centros
mar encontrava obstáculos nos governos
de decisão de Portugal e Brasil, bem absolutos e que, por se fixarem ainda nas
como espalhar as idéias liberais em práticas mercantilistas, desenvolveram
círculos politizados. (TENGARRINHA, verdadeira aversão à aproximação dos po-
1965, p. 227). vos ao ideário libertador que conduzia as
nações progressistas ao desenvolvimento
O Correio Braziliense nasceu sob
material:
condições diferenciadas aos demais jornais
portugueses. Hipólito da Costa encontrou, A penetração das idéias liberais
na Inglaterra, a segurança perfeita- era encontrou obstáculos em países que
protegido do Duque de Sussex, filho do não haviam acompanhado de perto
as conquistas burguesas da Inglater-
rei George- para intentar a fundação de
ra, França e Holanda. Nesse processo,
um órgão de imprensa meticulosamente
a ação da imprensa teve relevância
preparado para a difusão de ideias e de porque serviu como instrumento na
propostas a qual visava ao desenvolvi- divulgação do pensamento liberal, o
mento social do Brasil e, em extensão, ao que lhe rendeu ferrenha persegui-
de Portugal porquanto era um defensor ção dos governos absolutistas que,
da unidade dos reinos, porém com a sede juntamente com o poder clerical,

248 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
combatiam as idéias mais avançadas, alguns momentos revolucionários como o
destruindo as prensas, confiscando os foram na América Espanhola, mas todos
tipos e aprisionando os responsáveis. exclusivamente relacionados ao avançar
No território francês, por exemplo, da sociedade burguesa nas colônias ultra-
o clero detinha o poder da palavra marinas, e nas quais se esperava afirmar
e censurava todos os escritos que
práticas políticas e econômicas mais avan-
considerava ameaçadores ao poder
e dominação que exercia. (CINQUE,
tajadas ao grau de desenvolvimento mate-
2007, p. 2). rial obtido por algumas nações europeias.
O caminho que levou os brasileiros
Embora tardiamente, as ideias liber- a conquistarem a independência não foi
tadoras se difundiam, e “quem quisesse, curto nem fácil. Enormes obstáculos se in-
no Brasil, publicar alguma coisa, percorria terpunham a uma ação mais concatenada
um longo caminho. Todo o original devia por parte dos insatisfeitos com o governo,
ser inicialmente enviado ao ministro dos entre eles a exiguidade do debate, em
Estrangeiros e da Guerra. Dali ia ser exa- razão da pobreza das ideias, embora elas
minado pelo Desembargo do Paço e pela já circulassem, sem que tivessem, no en-
mesa Censória” (LUSTOSA, 2000, p. 106). tanto, ampla competência, além do temor
A providência de 14 de outubro de 1808 de conflitos prejudiciais aos envolvidos. Em
exigia que tudo a ser publicado passasse suma, sabia-se da necessidade de prepa-
antes pela Junta Diretora, fato que sugere rar os brasileiros e também portugueses
a Martins que “a introdução de uma im- descontentes com aquele estado de coisas
prensa oficial no Brasil não correspondeu a um enfrentamento político mais conse-
à implantação automática da liberdade de quente, definido por propósitos plausíveis
pensamento (pode-se mesmo, presumir e expressivos de uma camada avolumada
facilmente que, de certa forma, ela serviria de indivíduos.
para cerceá-la)” (MARTINS, 1978, p. 309). Hipólito da Costa não esteve alheio
Se a inauguração da Gazeta do Rio àquele jogo de forças. Vítima da opressão
de Janeiro, em 1808, voltada à publicação portuguesa e da intolerância religiosa –
dos atos oficiais abriu caminho para outros na qual a Igreja se movia pelo receio de
órgãos da imprensa, o fato é que a partir difusão e consolidação do pensamento
dela surgiram outros jornais, periódicos e liberal que lhe eram tão desfavoráveis –,
gazetas, muitos com o propósito de atingir inaugurou seu jornal já decidido qual o
o governo monárquico e denunciar os caminho tomaria naquele embate entre o
privilégios exclusivos dos portugueses e velho e o novo mundo, quais os princípios
tornando a circulação do pensamento seriam seguidos a fim de conduzir seu in-
liberal fato corriqueiro nos maiores centros tento com sucesso e, principalmente, como
urbano de então. organizaria sua obra a fim de cumprir a
O nascimento do Correio orientou-se tarefa que escolheu enquanto militante
pelas exigências dos novos tempos, em das forças avançadas.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 237-252 jul./dez. 2013. 249


Desta feita, o Correio não foi tão so- um sistema de governo que não aceitava
mente um jornal político, mas também um incorporar os avanços sociais da burguesia,
corpo teórico, informativo, admiravelmente nem as melhorias que poderiam trazer para
preparado para fazer política educativa a economia do reino.
quando reproduzia as novidades científicas A atuação político-educativa de-
da época, ou se reportava aos acontecimen- sempenhada pelo Correio junto às elites
tos de outros países, sejam políticos, econô- foi uma das molas mestres do movimento
micos ou de natureza diversa, para os quais separatista por colocá-las a par das ideias
se esperava ressonância entre os leitores no e dos acontecimentos além-mar, de res-
Brasil. Para Sérgio Góes de Paula (2001): ponder aos ataques das mais diversas
procedências, inflamar o discurso, mostrar
Na maior parte da existência do jornal,
os motivos que levavam à insuficiência
de 1808 a 1820, o ritmo dos aconteci-
mentos políticos favoreceu sua voca- material do Reino e, fundamentalmente,
ção pedagógica. É quando se dá ao desnudar a aristocracia portuguesa por
luxo de passar cinco anos traduzindo e mostrar-se despreparada para a função
publicando, capítulo a capítulo, a obra administrativa e ignorante diante das re-
de Sismondi...; é quando apresentam gras novas da economia mundial.
consistentemente, mês após mês, O aparecimento do Correio no al-
ano após ano, as taxas cambiais, as vorecer de um novo tempo para o Brasil
cotações do tabaco, do açúcar e dos expressou os anseios de uma época
principais produtos de exportação sequiosa por conhecimentos científicos
brasileiros; é quando se dedica, sem mais elaborados e, no cenário das relações
a pressão do imediato, à tarefa de
sociais e econômicas impostas ao Brasil
instruir, iluminar e formar brasileiros
pela metrópole portuguesa, significou uma
e brasilienses. (PAULA, 2001, p. 28).
porta aberta a um debate de qualidade
Educar sempre foi uma das suas como então a colônia ainda não havia
preocupações. Se assim não fosse, como presenciado; foi um farol a conduzir, desde
adentrar em mentes despreparadas e des- o primeiro número, os brasileiros na luta
conhecedoras do pensamento expressivo pela afirmação de seus interesses e das
das nações materialmente desenvolvidas exigências da burguesia europeia con-
e as quais se queriam igualar? Assim, ao solidada como sociedade dominante na
definir, já no texto inaugural, que sua “meta Revolução de 1789.
era a da esperança” Hipólito, “um ilustrado Nesse sentido, ao definir por objetivo
pragmático”, no dizer de Paula (2001, p. espalhar as luzes da civilidade e manter
15), admitia sua crença na capacidade da os brasileiros informados sobre os acon-
palavra, muito próximo do sentido atribuído tecimentos que importavam para a vida
por Chacon (1984, p. 13) de que “A palavra na colônia, de instruí-los sobre os debates
tanto determina, quanto se vê influenciada que mais significavam ao capital, de esco-
pela ação”, e transformou-a em arma contra lher com apreço os temas e textos de que

250 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
trataria e transcreveria no jornal seguindo lo consciente aos coloniais, tendo enorme
um plano estabelecido, cumpriu sua tarefa participação na formação da intelectuali-
e se fez também responsável pela vinda dade brasileira das décadas seguintes e
da independência. objeto de admiração e de estudos pela
Todo o seu esforço se concentrou, clareza e consistência de suas ideias até
portanto, em realizar na colônia-pátria o os dias de hoje.
movimento peculiar ao período das luzes, Portanto, no quadro das ideias de Hi-
ou seja, nela disseminar a importância pólito e da “vocação pedagógica” (PAULA,
de se adotarem as leis progressistas 2001, p.12) do Correio, exercida com zelo
mostrando-lhes os seus benéficos resul- por autor e criatura, se confirmam um dos
tados. Dessa feita, as ideias que defendeu momentos ricos na construção do processo
nas páginas do Correio situavam-se no histórico da educação no Brasil. Acredita-
interior do debate entre as forças novas se que nele esteja dada a possibilidade
e velhas, na condição de aportes teóricos de extrair elementos para a história da
que propendiam a determinar os passos educação, observando-se o que Maria
que os coloniais deveriam dar em nome de Lourdes Janotti (1977, p. 10) salienta a
do desenvolvimento material. respeito da historiografia brasileira, isto é, a
Ao utilizar a imprensa como meio necessidade de “uma historiografia afinada
de divulgação do novo já em prática na com o problema histórico”, e não apenas
Europa, o jornalista do Correio quis torná- descritiva dos fatos e acontecimentos.

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Recebido em junho de 2013


Aprovado para publicação em outubro de 2013

252 Adriana Aparecida Alves da SILVA; Wilson SANDANO. Aspectos das práticas escolares...
De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico – edu-
cação religiosa e normas de conduta para mulheres
From Eve to Mary: the Church and catholic marriage
– religious education and standards codes of conduct
for women
Jane Soares de Almeida*
Calil de Siqueira Gomes**
* Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade de Sorocaba (UNISO) e pesquisadora do
CNPq. E-mail: janesoaresdealmeida@uol.com.br
** Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção da Universidade de Sorocaba (UNISO).
E-mail: calil.buri@hotmail.com

Resumo:
Este artigo busca resgatar a condição histórica das mulheres marcada pelo domínio masculino, sob a
perspectiva do vínculo matrimonial católico e sua interface com a educação religiosa. Historicamente
esquecidas e ignoradas, as mulheres foram atingidas por estereótipos, culturalmente originados na
Igreja Católica, em relação à sexualidade humana. Alvos de extremada contenção no seio da Igreja, que
incutiu paradoxos, valores e princípios baseados na pureza e meritocracia de fundo sexual, as mulheres
foram as principais destinatárias da ideologia religiosa. Nestas, especialmente, incidiam as penalidades
ou perda de direitos religiosos em caso de transgressão. A educação religiosa, objeto de severas normas
de conduta dentro do matrimônio católico, se erigia ad eternum para a edificação moral das mulheres
e as tornava reféns de ligações matrimoniais irresolutas com a plenitude individual.
Palavras-chave
Igreja Católica. Mulheres. Matrimônio.

Abstract
This article seeks to rescue the historical condition of women marked by male domination, from the
perspective of catholic marriage bond and its interface on religious education. Historically forgotten and
ignored, women were affected by stereotypes, culturally originated to the Catholic Church regarding hu-
man sexuality. Targets of extreme pure contention within the Church, which instilled paradoxes, values
and principles based on purity and meritocracy deep sexual, women were the main recipients of religious
ideology. In these especially focused penalties or loss of religious rights in case of transgression. Reli-
gious education, subject to strict standards codes of conduct within the catholic matrimony, if erected ad
eternum for moral edification of women and made them hostages irresolute matrimonial connections
with individual fulfillment.
Key words
Catholic Church. Women. Marriage.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 253-264, jul./dez. 2013
A religião, parte integrante da cultura Os regramentos comportamentais
de um povo, é decisiva para analisar as re- eram definidos pela instituição religiosa,
lações entre os sexos. A imagem feminina, incumbida de perpetuar a tradição luso-
como destinatária da ideologia religiosa cristã e zelar pelos valores morais. As nor-
católica, revela um especial aporte teórico mas consideradas desviantes e os hábitos
para as possibilidades investigativas nos em desacordo com a moralidade eram
estudos de gênero. severamente punidos pelo acatamento do
A religião representa o ponto nevrál- conceito de pecado, e sua gênese bíblica,
gico para onde convergem as relações de com a ameaça da excomunhão e do in-
poder estabelecidas no nível do simbólico ferno. No adestramento dos corpos, o alvo
e do imaginário, por aglutinar a essen- principal se dirigia à sexualidade feminina;
cialidade da existência humana, que é a se esta ultrapassasse o permitido, ameaça-
ideia de finitude da vida e, por meio dessa ria o equilíbrio da família e do grupo social:
verdade, a necessidade sempre presente Nunca se perdia a oportunidade de
de explicar e atribuir sentido e significado lembrar às mulheres o terrível mito do
às ações individuais e coletivas dos seres Éden, reafirmado e sempre presente
humanos. na história humana. Não era de ad-
A crença no mundo sobrenatural, mirar, por exemplo, que o primeiro
o controle da sexualidade, os arquétipos contato de Eva com as forças do mal,
religiosos ditando normas de pureza e personificadas na serpente, inoculas-
mansidão, sempre normatizaram o com- se na própria natureza do feminino
portamento social, com maior ênfase no algo como um estigma atávico que
sexo feminino. predispunha fatalmente à transgres-
No Brasil, desde o descobrimento, são, e esta, em sua medida extrema,
revelava-se na prática das feiticeiras,
as missões jesuíticas se encarregaram da
detentoras de saberes e poderes
educação e formação religiosa da popu- ensinados por Satanás. (ARAÚJO,
lação. A Igreja católica, como instituição 1997, p. 46).
sagrada hegemônica no País, exerceu con-
siderável influência nesse campo, ditando Esse estigma, de raízes inseridas
regras sociais, morais e de comportamento na sexualidade, fez com que as religiões
religioso pela via do ensino, centralizando cristãs dessem grande importância à ima-
sua atenção especialmente nas elites. Os gética da pureza feminina pelo regramento
segmentos da população permaneciam, o dos corpos e mentes. Os primeiros eram
mais das vezes, à margem das instituições, controlados pela exacerbada vigilância
afastados da escola, unindo-se pelo concu- de pais, irmãos e maridos, encarregados
binato, sem regularizar sua união, batizar de extirpar nas mulheres, sob sua guarda,
os filhos e enterrar os mortos, ausentes das qualquer tentativa de pecado carnal. As
bênçãos dos clérigos e da sacralização dos mentes, por sua vez, eram passíveis de ser
costumes. adestradas pela educação, ao se utilizar

254 Jane S. de ALMEIDA; Calil de S. GOMES. De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico...
uma pedagogia do temor e da culpa, que da expectativa que se tinha da conduta
fazia as mulheres reféns de sua própria considerada certa ou desviante, reprimia e
aura de sedução e capacidade de despertar castigava com a mesma intensidade com
o desejo masculino. a qual criava um esquema de simbologias
A figura do confessor no interior acerca dessa alteridade. Esta poderia estar
das residências, bastante frequente nos na contravenção das expectativas que
séculos XIX e XX, demonstrava a influência o segmento dominante elaborou para o
da sacralidade católica no regramento da desempenho de papeis, fossem eles de
conduta feminina, numa prática voltada natureza sexual, religiosa ou educativa,
para a consciência do pecado que tinha quando não se alinhavam com suas nor-
suas origens no sexo. Por carregar a nódoa mas e regras de conduta.
do pecado original, a mulher deveria ser Esse olhar revelava – como traços
vigiada, mesmo que isso significasse tolher essenciais da alteridade daqueles que
sua liberdade, abafar sua individualidade estão em situação de dominados – frag-
e privá-la do livre arbítrio. mentos imperfeitos, feixes de informações
A religiosidade, pela estreita relação que não eram reveladores da profundidade
que possui com o mundo sobrenatural, e da essência de sua cultura. No entanto,
se revestia de caráter disciplinador e, ao mesmo os atores sociais reduzidos ao si-
mesmo tempo, consolador. Herdeira da lêncio, sempre possuíram formas próprias
tradição e ancorada no território do sa- de se expressar pelas tradições, costumes
grado, a ideologia religiosa atuava como religiosos ou profanos, escritos íntimos,
reguladora da consciência e estabelecia reveladores do sentido da História, enco-
conexões com vários aspectos da práti- bertos em sinais e revelados nos contornos
ca social como a vida cotidiana, a fé, a mágicos dos mitos (GINZBURG, 1989).
economia, a política, a festa, os rituais, a
educação e as relações entre os sexos, es- Mulheres e religião nas imagens do
culpindo assim as interfaces da cultura na cotidiano
convivência entre os seres humanos. Nesse
universo, conviviam as questões ligadas Ginzburg (1989, p. 143) refere-se ao
à subjetividade, à identidade, ao sonho, à paradigma que emergiu no século XIX,
magia, às crenças e às representações. As ainda não explicitamente teorizado, que
simbologias referentes ao sexo feminino pode “ajudar a sair dos incômodos da con-
emergiam como categorizações distintas traposição entre racionalismo e irraciona-
do mundo masculino, sendo vistas como lismo”, o que denominou “saber indiciário.”
portadoras de diferenças relacionais. Ao abordar as possibilidades de recriar o
O olhar dominante, no exercício das passado pelos fragmentos do cotidiano de
relações de poder, também era passível personagens comuns, introduz uma visão
de atribuir defeitos e qualidades nas suas diferenciada para fazer História, não mais
relações de alteridade e, dependendo apenas a vista pela ótica dos vencedores.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 253-264, jul./dez. 2013. 255


Para estudar os aspectos relacionais do Houtart (1994, p. 32) considera que os
gênero, quando se introduz o conceito da elementos constitutivos dos sistemas reli-
diferença e sua absorção pela igualdade, é giosos são as significações, as expressões,
importante adentrar no terreno do sagrado a ética com referência religiosa e as orga-
e da religiosidade, como determinante para nizações. Por ser um sistema de crenças,
as práticas representativas e o protagonis- “toda religião produz sentidos, ou seja, uma
mo social feminino. interpretação da realidade, da história, do
A religião, de qualquer origem, sem- homem e do mundo”.
pre foi decisiva na definição de padrões No caso brasileiro, a miscigenação
comportamentais femininos. O catolicis- religiosa incorpora à sacralidade original
mo, ao impor às mulheres a imagem da da simbologia europeia cristã, a religião
Virgem e Mãe, arquétipos dicotômicos; o de origem africana trazida pelos escravos;
protestantismo com seus ideais ascéticos e a religião indígena dos naturais da terra,
puritanos derivados da doutrina calvinista; acrescidas ainda por crenças asiáticas.
o islamismo infringindo ao sexo feminino Esse sincretismo religioso se traduz em
as mais pungentes humilhações e cer- diferentes liturgias, seja nos grandes
ceamento de liberdade individual, para templos católicos e evangélicos, seja nos
citar apenas algumas ainda atuantes e cultos domésticos e nos de origem afri-
decisivas no cenário mundial. cana, estruturando-se um misticismo de
Essas religiões contribuíram para várias faces, não necessariamente fiéis a
imposições de origem cultural e religiosa uma ou outra fé, mas permitindo a sua
que, ao longo dos séculos, colocaram as coexistência, dada a histórica liberdade
mulheres na ordem hierárquica inferior de crença garantida pela Constituição
do poder, o que vem sendo incisivamente Brasileira desde o século XIX, assim como
denunciado nos veículos de comunicação a tolerância religiosa.
no limiar do século XXI. Nesse sentido, a As expressões religiosas diferem se-
ideologia religiosa pode tanto deformar a gundo a cultura, a educação e os diversos
realidade, como solidificar as ideias que são grupos sociais.
veiculadas pela cultura, o que gera diferen- A Igreja Católica, veiculadora da reli-
tes comportamentos humanos que estão gião dominante, marcadamente tradicional
ligados ao clima, às etnias, à geografia, ao e afastada da população iletrada do Brasil
desenvolvimento da economia e da política, dos primeiros períodos, nas últimas déca-
alicerçando na sociedade um sistema de das tem feito tentativas de se aproximar da
crenças e de comportamentos coletivos. população, o que parece estar se coroando
Nesse sistema de crenças, a fé no de êxito. Nesta, o padre, por meio da con-
mundo sobrenatural ocupa um lugar de- fissão e expiação dos pecados, aproxima
terminante nas manifestações culturais, os seres humanos do Divino.
modelando o imaginário e instaurando As igrejas protestantes possuidoras
comportamentos ditados pela ideologia. de uma liturgia de caráter racional ex-

256 Jane S. de ALMEIDA; Calil de S. GOMES. De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico...
pressam uma ética própria, voltada para na religião as metáforas e analogias para
a vida material plenamente desfrutada definir mulheres-mães com atributos de
como uma maneira de se aproximar de santas, abnegadas, anjos de bondade e
Deus. No protestantismo, a figura do pastor pureza, qualidades que todas deveriam
é de interlocução, e homens e mulheres possuir para serem dignas de coabitar com
somente devem prestar contas de seus atos os homens e com eles gerar e criar filhos.
diretamente ao Altíssimo.
Os demais credos que perpassam a A Igreja Católica e seu papel na edifi-
organização cultural brasileira também se cação moral das mulheres
valem da dimensão sobrenatural, que visa
preparar os seres humanos para enfrentar A Igreja Católica associava a fi-
a sua suprema angústia existencial que gura das mulheres, feitas à imagem de
é o medo da morte. As diversas seitas Maria, com a pureza de corpo e espírito,
religiosas sempre souberam explorar esse enquanto as desviantes, transgressoras,
medo; e o temor do que esperar após o fim principalmente as prostituídas, seriam
da existência se configura como fórmula ligadas à maldade, à perfídia, ao pecado
infalível para manter a dominação sobre e à decadência. Se as primeiras eram o
seus fiéis. espírito e a santidade, as outras seriam
Quanto às mulheres, um mode- carnais e pecadoras, levando os homens
lo normativo, criado desde meados do à corrupção do caráter e do corpo. Ambas
século XIX, inspirado nos arquétipos do deveriam ser submissas e dependentes,
Cristianismo, espelhava a cultura vigente pois a ordenação social assim o exigia; e
instituindo formas de comportamento, a ordem natural das coisas não deveria
em que se exaltavam virtudes femininas ser questionada por aquelas que eram as
como castidade e abnegação, forjando destinatárias de um processo de controle
uma representação simbólica por meio ideológico altamente repressor quanto à
de uma ideologia imposta pela religião e sexualidade.
pela sociedade, na qual o perigo era, prin- A ideia de sexo para as mulheres
cipalmente, representado pela sexualidade. honradas estava intimamente ligada à
Essa ideologia desqualificava as mulheres negação do corpo feminino, com o poten-
do ponto de vista profissional, político e in- cial explícito do prazer sexual. As mulheres
telectual, partindo do “pressuposto de que não deveriam sentir paixão ou desejo no
a mulher em si não é nada, de que deve intercurso sexual e, de preferência, man-
esquecer-se deliberadamente de si mesma ter a castidade, mesmo no casamento. A
e realizar-se através dos êxitos dos filhos e forma de preservar essa castidade seria
do marido” (RAGO, 1991, p. 65). relacionarem-se sexualmente apenas para
O uso de uma linguagem mística a procriação, evitando os excessos que
para qualificar o papel feminino era utiliza- causariam dano à saúde e à vida espiritual
do pela ideologia cultural, a qual buscava feminina.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 253-264, jul./dez. 2013. 257


O desejo e o prazer eram reservados um destino profetizado e depois casadas
aos homens, os quais, segundo o discurso nas igrejas, vestidas de branco para de-
médico, eram biologicamente voltados monstrar a virgindade. Na visão da socie-
para a essência carnal por conta da virili- dade misógina, a maternidade era o ápice
dade. Isso justificaria “a busca da prostituta na vida de todas as mulheres. Doravante,
pelo marido que respeita a esposa, mas elas se afastavam de Eva e aproximavam-
que precisa reafirmar quotidianamente se de Maria, a mulher que pariu virgem o
sua virilidade. A influência do padre, menino judeu, que teria como missão ser
multiplicando as interdições sobre o sexo o Salvador do mundo.
conjugal, reforça este modelo de casal que A indissolubilidade do casamento
permanece inquestionável até a década de religioso acompanhava as leis civis e
60” (RAGO, 1991, p. 84). casava-se para sempre. Como interpretar
A ideologia de caráter religioso esse ad eternum, quando se processava
regrou a sexualidade da mulher e do a revelia dos cônjuges? Como inserir fe-
casal, perpassando toda a vida social do licidade em ligações sólidas, porém sem
século XIX e estendeu-se ao século XX; afetividade, resultantes de amores naufra-
se veiculou na sociedade, na família e na gados nas dificuldades cotidianas? E como
educação. Nas escolas, as moças seriam impedir que disso derivasse o adultério,
instruídas quanto à importância da cas- tão veementemente rejeitado pela Igreja
tidade e da pureza; na igreja deveriam e pela Sociedade, embora fosse uma
confessar ao padre quaisquer pensamen- prática tolerada, quando decorrente do
tos ditos impuros; na família se impediria comportamento masculino e até mesmo
toda e qualquer manifestação voltada para dos padres? A História está recheada de
explorar ou exercer a sexualidade, embora exemplos!
houvesse transgressões que costumavam
ser severamente punidas. “Até a que a morte os separe” – a
O casamento e a maternidade eram Igreja emancipadora e reguladora
a salvação feminina; honestas eram as
esposas mães de família; desonradas É bem possível a identificação da
eram as transgressoras que dessem livre influência que a Igreja Católica teve nas
curso aos desejos sexuais ou tivessem sociedades ocidentais em relação aos ma-
comportamentos em desacordo com a trimônios. Após a instauração da religião
moral cristã. católica como hegemônica nas várias so-
Para a missão materna, as meni- ciedades, a participação do clero era ativa,
nas eram preparadas desde a mais tenra e, após o ritual religioso, os sacerdotes
idade, nos colégios católicos, nas escolas abençoavam os casais na porta de seus
protestantes ou nas instituições públicas. aposentos. Tornou-se comum que a cama
As meninas tornavam-se esposas e mães dos cônjuges fosse incensada e aspergida
honradas, criadas na casa dos pais com com água benta. O matrimônio sacramen-

258 Jane S. de ALMEIDA; Calil de S. GOMES. De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico...
tado se configurou como o único espaço A Igreja Católica normatizou a moral
aceito socialmente para a prática da se- cristã com a instituição do sacramento do
xualidade, com objetivo exclusivo para a matrimônio como monogâmico e indisso-
procriação. Excluindo-se essa necessidade, lúvel, transferindo suas celebrações, até
o demais era considerado uma perversão então simples, das casas de família aos
e resultava na condenação da bastardia templos, em cerimônias conduzidas por
e toda uma descendência seria assim bispos e sacerdotes. A sua estruturação
contaminada. Uniões não ungidas pelos legitimava o uso dos prazeres carnais,
sacramentos católicos eram condenadas logicamente voltados para o fim natu-
e empurravam os casais assim formados ral. A procriação, como dívida conjugal,
para o degredo social. tornou-se algo obrigatório dentro do
Ao mesmo tempo, nos vários devires contrato estabelecido. Porém qualquer
históricos, a Igreja Católica adotou uma po- ardor na relação carnal entre os cônjuges
sição paradoxal em relação ao matrimônio, era expressamente proibido e condenado
pois houve católicos que o aceitavam, na veementemente, necessitando-se de con-
possibilidade do uso legítimo da sexuali- fissão para ser edificada como uma vida
dade; outros que não permitiam qualquer saudável: “por meio da confissão, a Igreja
tipo de concubinato e insistiam na virtude Católica controlava as palavras, os pensa-
de viver uma ascese mais contundente mentos, os desejos carnais, o prazer e os
por meio da castidade, da virgindade e da pecados que envolviam os atos sexuais”
(FOUCAULT, 1988, p. 26).
continência para entrar no reino dos céus.
Marx (1990) reforçou a ideia de
A instituição católica impôs o ca-
que a dessacralização do poder da Igreja
samento para dar vazão à sexualidade e
retirou os véus da ilusão religiosa. Eviden-
como um freio para os libertinos, por conta
ciou o procedimento malthusiano que põe
da frequência do incesto, da sodomia e
em relevância a dominação masculina,
das ligações livres. Para corrigir realidades
na qual a procriação deixaria de ser a
similares, Paulo, o apóstolo dos gentios,
finalidade principal do casamento, e os
descreveu o matrimônio: “para evitar a
propósitos econômicos e psicológicos
fornicação, tenha cada homem a sua mu- do casal passariam a serem os objetivos
lher e cada mulher o seu marido. Contudo, centrais. Para Marx, a ideologia do amor
digo às pessoas solteiras e às viúvas que é romântico, usada para justificar a ausência
bom ficarem como eu. Mas, se não podem dos filhos, seria uma profanação da sacra-
guardar a continência, casem-se, pois é lidade do matrimônio, “tudo que era sólido
melhor casar-se do que ficar abrasado” e estável evapora-se, tudo que era sagrado
(1CORÍNTIOS, 7,1.9)1. é profanado, e os homens são, finalmente,
obrigados a encarar com serenidade suas
1
Bíblia de Jerusalém, 1989, p. 2156. Primeira Epís- condições de existência e suas relações
tola de São Paulo aos Coríntios. recíprocas” (MARX; ENGELS, 1990, p. 79).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 253-264, jul./dez. 2013. 259


Foucault (1988), ao analisar a his- mulheres foram moedas de troca nos
tória da sexualidade, observa que são contratos conjugais e eram legalmente
evidentes duas rupturas: uma ocorreu no consideradas sócias de propriedades, de
século XVIII, representada pelo nascimento acordo com a regra dos matrimônios rea-
das grandes proibições, quanto às obsceni- lizados com comunhão universal de bens.
dades, as casas de prostituição, os hospitais A representação religiosa do casa-
psiquiátricos, com valorização exclusiva da mento e do amor, de acordo com Costa
sexualidade adulta e matrimonial, os impe- (1979, p. 218), “colaborou intensamente
rativos de decência, a esquiva obrigatória para a ausência de substrato afetivo na
do corpo, a contenção e pudores impera- constituição do casal”. O amor conjugal, de
tivos da linguagem. Aos que extrapolavam acordo com a imagética católica, era um
tais espaços, era imposto um tríplice decre- empecilho na aproximação dos homens
to de interdição, inexistência e mutismo e com Deus e, citando o Padre Vieira, “ainda
havia uma repressão ao discurso sobre que não houvera inferno, nem paraíso,
a sexualidade. A outra ocorreu no século nem cristandade, nem religião, bastava
XX, momento em que os mecanismos da só ter o entendimento e juízo para que
repressão teriam começado a se afrou- esta apreensão e quimera que se chama
xar; passar-se-ia das interdições sexuais amor fosse aborrecida e detestada como
imperiosas a uma relativa tolerância a rematada loucura”.
propósito das relações pré-nupciais ou A Igreja Católica foi enfática ao
extramatrimoniais: “a desqualificação dos definir o matrimônio como aliança, um
perversos e sua condenação pela lei foram contrato entre duas pessoas que se davam
atenuadas e se eliminou, em grande parte, totalmente uma à outra, a fim de se ajuda-
os tabus que pesavam sobre a sexualidade rem mutuamente a atingir as finalidades
das crianças” como a masturbação e a de unidade, indissolubilidade e fidelidade.
sodomia (FOUCAULT, 1988, p. 109). Dessa mútua complementação, nasceria a
Giddens (1993) afirma que as pro- prole, expressão do amor recíproco de es-
priedades de um relacionamento puro poso e esposa. Corroborando a lei natural,
poderiam ser encontradas na ascensão a doutrina da Igreja Católica ensina que
do amor romântico, a diferença é que, o matrimônio sacramental validamente
por muito tempo, as mulheres foram mais contraído e consumado, isto é, completado
afetadas pelos seus ideais, e os sonhos pela cópula sexual, só pode ser dissolvido
românticos conduziram-nas a uma severa pela morte; nunca é anulado.
sujeição doméstica. O ethos do amor ro- O que pode acontecer, porém, é que,
mântico afetou duplamente a condição das apesar das aparências, nunca tenha havi-
mulheres, colocou-as no espaço privado do matrimônio. Isso porque faltou alguma
dos lares e reforçou o compromisso com condição essencial à validade do casamen-
o machismo ativo e radical da sociedade to; por haver falhas no consentimento dos
moderna. Tradicionalmente no Brasil, as nubentes; quando é contraído apesar de

260 Jane S. de ALMEIDA; Calil de S. GOMES. De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico...
impedimentos dirimentes, anulantes ou agredir muito [...]. Por causa de suas
mantidos ocultos; quando falta a forma infidelidades sempre me agredia, por
canônica na celebração do sacramento. conta de eu questioná-lo.2
Atualmente isso se configura numa A Igreja Católica não permite o di-
situação muito complexa, que afeta dire- vórcio, seguindo uma tradicional linha de
tamente a vida dos cônjuges, em especial pensamento apoiada nos ensinamentos de
às mulheres, por causarem profundas e Jesus de Nazaré, segundo a qual o matri-
amargas tristezas nos relacionamentos. Eti- mônio é indissolúvel: “Todo aquele que re-
mologicamente, a palavra cônjuge, jugum, pudiar sua mulher e desposar outra comete
era o nome dado pelos romanos à canga adultério, e quem desposar uma repudiada
ou aos arreios que prendiam os animais por seu marido comete adultério” (LUCAS,
às carruagens. O verbo conjugare, de cum 16,18; MARCOS 10,11). Os textos bíblicos
jugare, entre outros sentidos, significa reafirmam a indissolubilidade, rejeitando a
a união de duas pessoas sob a mesma possibilidade de repudiar a mulher. O laço
canga, onde conjugis quer dizer ligado ao matrimonial é considerado irrevogável para
mesmo jugo ou ao mesmo cativeiro. a participação no ágape divino3.
A união conjugal tem passado
A declaração de nulidade de um ato por diversas crises sociais, econômicas e
que não existiu religiosas, que ganharam destaque nas
É bastante comum existirem coa- mais diversas camadas sociais. A cada dia
ções e pressões sociais para o casamento, acontecem matrimônios fracassados. As
pelos motivos de perda da virgindade ou explicações podem ser várias e, dentre elas,
em caso de gravidez. Existem violências a imaturidade, a infidelidade, os transtornos
verbais de baixo calão que ferem a digni- psicológicos e afetivos, a falta de respon-
dade das mulheres e implicam traumas e sabilidade com as obrigações e deveres
cicatrizes visíveis em suas almas. A justifi- conjugais, como a subsistência da prole. A
cativa se insere na pedagogia do domínio culpa, a compaixão, o ódio ou a preocupa-
masculino, a masculinidade como nobreza, ção com os filhos, motivada na sua essência
pesquisada por Bourdieu (1998), paradoxal por necessidade econômica, fazem que os
e sem sentido, na crença tão difundida
entre ambos os sexos, segundo a qual as 2
Excerto de depoimento retirado de um processo
mulheres são mais frágeis e precisam ser de nulidade de matrimônio. Por razões imperativas
dominadas. de sigilo, os nomes e fontes sempre serão omitidos.
Aponta-se a dificuldade de se lidar com esses da-
Eu só me casei porque estava grávida.
dos, pela necessidade de manter os envolvidos no
Os problemas da vida a dois continu- abrigo da privacidade, assim como o difícil acesso
aram. Se não bastassem as discus- aos mesmos.
sões e tensões, após o nascimento 3
Bíblia de Jerusalém (1989, p. 1912 e 1961). Evan-
de minha filha [...] ele começou a me gelho de Lucas e Marcos.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 253-264, jul./dez. 2013. 261


cônjuges permaneçam muito tempo insis- igualdade. Ainda há necessidade de mais
tindo em relacionamentos falidos. pesquisas que relacionem educação das
Nesses casos, a Igreja Católica pode mulheres e divórcios, ou simplesmente o
instaurar um processo para averiguar a rompimento de relações estáveis.
nulidade do matrimônio. Uma vez esta No caso do casamento religioso, exis-
comprovada, a instituição declara nulo o tem dificuldades dos cônjuges em romper
casamento pelo Tribunal Eclesiástico, que um vínculo estabelecido para ser eterno
é composto pelo Vigário Judicial ou Presi- segundo a Igreja Católica. Com a separa-
dente, que atua colegialmente em turnos ção, abala-se a identidade da pessoa, e é
com outros três juízes, (juízes adjuntos), doloroso tomar a iniciativa, mesmo que seja
normalmente sacerdotes, porém o Código para pôr fim à infelicidade. Levam-se em
de Direito Canônico faculta a nomeação conta a oposição e comentários da família,
de juízes leigos; um advogado designado a não aceitação dos filhos, as críticas dos
pelo Tribunal que acompanhará o processo vizinhos, o temor pelo futuro, o medo da
e fará defesa do interessado (a); o promotor solidão, a situação financeira e, no caso de
que atuará na causa em favor da Igreja, pessoas bastante religiosas, essencialmen-
que no processo canônico tem o nome de te, a perda dos direitos ligados à fé, como
‘Defensor do Vínculo’ e, por fim, a pessoa participar do sacramento da eucaristia.
que exerce a função de notário, respon- O desrespeito para com as mulheres
sável pelo registro escrito dos depoentes. se evidencia em alguns depoimentos, que
Historicamente, o matrimônio teve revelam o abandono financeiro e afetivo
instaurada sua função social de com- que as faz buscar nulidade do matrimônio:
plementaridade e companheirismo para
Depois da separação, ele nada me
entender os conflitos naturais de um rela- ofereceu, nem a mim nem a minha
cionamento entre duas pessoas. A Igreja filha, nenhum suporte ele nos deu.
Católica o instituiu como sagrado, instou o Abandonou a minha filha, ele queria
casal ad convolare nupcias, até que a mor- que eu arrumasse outro homem para
te os separasse. Qual morte? De um dos me sustentar.4
cônjuges, ou do afeto e do compromisso
O modelo que herdamos, ao estabe-
que os levou a se unir?
lecer um modelo de família, com origem
O índice de divórcios é alto em todas
patriarcal predispõe ao casamento e apos-
as camadas sociais. Várias hipóteses po-
ta na sua manutenção. O homem sempre
dem ser elencadas para a explicação desse
ocupou o espaço público, lugar de plenas
aumento: mais direitos concedidos por lei
decisões, enquanto que às mulheres so-
às mulheres; as derivações dos movimen-
mente ficou reservado o espaço privado
tos feministas; a necessidade de trabalho e
profissão, que abriu maior independência
econômica feminina; ampliação das infor- 4
Excerto de depoimento retirado de um processo
mações; uma educação familiar com mais de nulidade de matrimônio.

262 Jane S. de ALMEIDA; Calil de S. GOMES. De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico...
para cuidar da família e do lar. Desse modo, Os desiquilíbrios que envolvem a
caracterizaram-se dois mundos, um da ruptura das tradições, dos usos e costumes,
dominação masculina (BOURDIEU, 1998), das mentalidades estagnadas em práticas
produtor, com função paternalista; e o outro ultrapassadas tornaram-se terreno fértil
de submissão, interno e reprodutor, que foi ao surgimento de conflitos, evidenciando
mantida pela Igreja Católica por longo tem- as desavenças e violência emocional e
po, reservando para o sexo feminino uma psicológica, cujo ápice se revela na vio-
educação de controle, na qual se incluía lência física. Nos processos de nulidade,
a virgindade, a restrição ao exercício da destacam-se as dificuldades e as falhas
sexualidade e a sacralização da materni- no cumprimento de papéis de gênero,
dade. Porém homens e mulheres, maridos especialmente quando as mulheres são
e esposas estavam sujeitos aos ditames alvo de reações adversas:
religiosos quanto à esfera da sexualidade: [...] Falou palavrões, me bateu tanto,
O catolicismo condenava, em primei- me chutou, me pegou pelos cabelos,
ro lugar, a sexualidade autônoma, encostou um canivete em meu rosto
rebelde, que se recusava a obedecer [...] corri desesperadamente e me es-
ao princípio da procriação. Como condi num paiolzinho [...] fiquei toda
o onanismo, a sodomia, etc. Em machucada e suja.5
segundo lugar, a sexualidade fora Diminuiu-se consideravelmente a
do casamento, que pretendia gozar crença da segurança nos relacionamentos
de liberdade sem responsabilidades.
matrimoniais. A separação, apesar de ser
Como no caso do adultério. Em tercei-
um trauma familiar doloroso, tornou-se
ro lugar, a sexualidade que, embora
legal, fosse excessiva. Que incorresse para muitos/as um remédio útil e neces-
não só na infração do prazer gra- sário. No contexto religioso, e na visão da
tuito, sem reprodução, mas também Igreja Católica, a família é a célula mater
no excesso de devoção amorosa ao da sociedade. Esse conceito leva à preser-
cônjuge. (COSTA, 1979, p. 227). vação do matrimônio a todo custo, dificul-
tando sua dissolução na esfera religiosa,
Com a emancipação das mulheres,
o que não acontece no espaço civil, com
surgiu uma nova postura, e impôs-se uma
o divórcio perante a lei. Para o catolicismo,
redefinição ao modelo ideal de família. Ao
é uma prova de amor a Deus viver o sofri-
entrarem no mercado de trabalho, estas
mento como martírio no cotidiano (JOÃO
deixaram o lar e passaram a cobrar dos
PAULO II, 1994, p. 17). Conforme prega
homens a responsabilidade na divisão das
o Cristianismo, a vida eterna impõe-se à
tarefas. Ao se aliarem com os tempos em
felicidade terrena.
que se reivindica a igualdade entre ho-
mens e mulheres, estas também exigiram
a contrapartida no vínculo conjugal, como 5
Excerto de depoimento retirado de um processo
a fidelidade, o respeito, a harmonia. de nulidade de matrimônio.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 253-264, jul./dez. 2013. 263


Referências

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das mulheres no Brasil. São Paulo: Editora da Unesp, 1997.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 4. reimpressão. Primeira Epístola aos Coríntios, Evangelho de Lucas e
Marcos. São Paulo: Paulinas, 1989.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11. ed. Tradução Maria Helena Kühner. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
COSTA, Jurandir Freire da. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
Volume I.
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade. Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades
modernas. São Paulo: Editora da Unesp, 1993.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
HOUTART, François. Sociologia da religião. São Paulo: Ática, 1994.
JOÃO PAULO II. Carta às famílias. Nº 256. Documentos Pontifícios. Petrópolis: Vozes, 1994.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Global, 1990.
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São
Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

Recebido em agosto de 2013


Aprovado para publicação em setembro de 2013

264 Jane S. de ALMEIDA; Calil de S. GOMES. De Eva a Maria: a Igreja e o matrimônio católico...
Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y
asuncenos – a Revolucao dos Comuneros e a suas
consecuencias no espaco das misiones
Conflict and territorial disputes between jesuits
and asuncenos – a Comuneros Revolution and its
consequences in the missions
Mercedes Avellaneda*
* Doctora en Antropología pela Universidad de Buenos
Aires Pesquizadora e profesora do Instituto de Antropología,
Sección Etnohistoria. E-mail: bocca@fibertel.com.ar

Resumo
A lo largo del siglo XVII, los jesuitas establecieron en el Paraguay unas treinta reducciones, que fueron
por 150 años la prueba más fehaciente del éxito de su empresa evangelizadora en América. Sin embargo
la expansión del frente misional produjo tensiones permanentes con los asunceños que terminaron por
manifestarse en un conflicto de gran envergadura a principios del siglo XVIII que el P. Lozano llamó la
Revolución de los Comuneros. El presente trabajo intenta, develar los conflictos suscitados entre asun-
cenos, jesuitas y guaraníes en la frontera del río Tebicuary y ahonda en las consecuencias de la intensa
movilización de las milicias guaraníes durante ese período en el territorio misionero y busca dar cuenta
del impacto de la Revolución de los Comuneros sobre la alianza jesuita guaraní.
Palabras-claves
Milicias Guaraníes. Comuneros de Paraguay. Reducciones Jesuitas.

Abstract
Throughout the seventeenth century, the Jesuits established in Paraguay thirty settlements, which was
for 150 years the best evidence of successful evangelization in America. However, the expansion of the
mission produced permanent tensions with Asuncenos that eventually manifest in a major conflict in
the early eighteenth century that the P. Lozano called the Revolution of the Communards on Paraguay.
This study tries to reveal the conflicts arising between Asuncion, Jesuit and Guarani at the border of river
Tebicuary and goes into greater detail about the consequences of the intense mobilization of militias
Guarani during that period in the mission territory and seeks to account for the impact of the Revolution
of the Communards on the alliance Jesuit- Guaraní.
Key Words
Militias Guarani. Communards of Paraguay. Jesuits Reductions.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 265-286, jul./dez. 2013
Introducción movilización de las milicias, al desabaste-
cimiento interno de las reducciones, y a la
La Revolución de los Comuneros fue excesiva disciplina y explotación laboral de
un conflicto social general que enfrentó a los misioneros, Maeder (2003, p. 115-129)
los asuncenos con los jesuitas por más de y Robert H. Jackson ponderó los efectos
una década y demando la movilización de de las tres epidemias que afectaron las
las milicias guaraníes por tiempo prolonga- reducciones, Jackson (2005, p. 129-135). To-
do. En 1724 los dos ejércitos se enfrentaron dos ellos explicaron las causas de la crisis
y los guaraníes sufrieron la perdida de como una sumatoria de factores externos
numerosos soldados que fueron muertos y que golpearon la organización interna
hechos prisioneros en el campo de guerra. de las reducciones sin tener en cuenta la
Dos veces los jesuitas fueron expulsos lógica de las relaciones interétnicas jesuita-
de la ciudad y la segunda su ejercito fue guaraní y la alianza concertada.
movilizado sobre el río Tebicuarí por tres En el presente trabajo nos propo-
años consecutivos. nemos ahondar en las consecuencias
Los intensos desplazamientos de de la Revolución de los Comuneros para
las milicias para defender sus pueblos analizar desde la perspectiva del conflicto,
y cumplir con la defensa de Montevideo el desgaste de la guerra en las relaciones
y Colonia del Sacramento, afectó como interétnicas al interior de las misiones
veremos, profundamente la alianza de los jesuíticas y sus consecuencias en la alian-
guaraníes con los jesuitas. Las milicias za jesuita guaraní. Con ello esperamos
fueron movilizadas simultáneamente comprender la magnitud de la crisis, el
para la construcción de Montevideo, para deterioro de las relaciones al interior de
el sitio de Colonia de Sacramento y para las reducciones y los esfuerzos realizados
la defensa de las misiones sobre el río por los jesuitas para recomponer la alianza
Tebicuary. Si bien la historiografía jesuita resquebrajada. En un primer momento,
no se ha ocupado de este tema, algunos analizaremos el desempeño de las milicias
historiadores si advirtieron el deterioro guaraníes en la Revolución de los Comu-
de las reducciones y buscaron esclarecer neros en las diferentes etapas del conflicto.
sus causas tanto internas como externas. Luego, los efectos de la movilización de las
Guillermo Furlong atribuyó el deterioro de milicias en la organización social interna
las reducciones, a la movilización prolon- de las reducciones, a través de una docu-
gada de las milicias en la Revolución de mentación que ha sido casi ignorada hasta
los Comuneros y en la defensa de Colonia el momento: las Cartas Anuas del período
de Sacramento. Furlong S. J. (1962, p. 632- 1730-1735 y 1735-17431. y el censo de
632). Magnus Morner al problema de las
vaquerías y del tributo adeudado por las 1
Este material fotografiado de los cuadernos, tradu-
reducciones. Morner (1968, p. 125-133) cidos por el padre Carlos Leonhart S. J. años 1730-
Ernesto Maeder adjudicó sus causas a la 1743, que se encuentran en el Instituto Anchietano

266 Mercedes AVELLANEDA. Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y asuncenos...


1735 de todas las reducciones. Por último, sobre el río Tebicuary en 1724, las reduc-
intentaremos comprender los esfuerzos ciones tuvieron que lamentar 300 muertes
realizados por la Compañía de Jesús para y la pérdida de más de tres mil animales
revertir la situación y frenar el importante entre caballos, mulas y armas de fuego
éxodo de las reducciones. capturadas por los asuncenos. Y ante
una inminente ocupación de las cuatro
Las milicias guaraníes en la Revoluci- reducciones más próximas a Asunción,
ón de los Comuneros todos los guaraníes de esos pueblos se
dispersaron en el monte.3 Las huidas al
En el período de 1724 a 1735, los
parecer resultaron una práctica bastante
jesuitas y las milicias guaraníes, se alinea-
frecuente. En una información el padre
ron contra los comuneros y desempeñaron
Bernardo Nusdorffer, superior de las Misio-
un rol protagónico en la restitución del
nes del Paraná y del Uruguay, señalaba el
orden colonial.2 Con el enfrentamiento
costo humano de los desplazamientos de
las campañas militares:
de Pesquisas, UNISINOS, ha sido gentilmente A más que en estas ausencias que
facilitado por el historiador y colega Ignacio Telesca. hacen los indios de sus pueblos, se
Si bien es sabido que las cartas anuas tienen un
mueren, pierden y huyen no pocos,
propósito edificante y revelan poco de los conflictos
al interior de las reducciones, estas últimas revelan
quedando viudas muchas indias y
en toda su dimensión el conflicto desatado con la muchas muchachas y muchachos
sociedad asuncena, las duras criticas que le hacen huérfanos…A que se añade que con la
a La Compañía de Jesús en el Paraguay y el drama libertad de los soldados y con los es-
que se vive al interior de las reducciones. píritus marciales que se les infunden,
2
La Revolución de los Comuneros puede dividirse vuelven no pocos indios con malos
en tres períodos, el primero (1722-1724), años en los resabios y menos humildes y así en
cuales el gobernador Reyes Balmaceda es destitui- yéndoles a la mano, se huyen sin re-
do y asume el juez visitador Don José de Antequera medio, para vivir con mas libertad en
y Castro, los jesuitas son expulsos de Asunción y la fragosidad de los muchos montes
con el beneplácito del Virrey, las milicias guara- que hay en estas tierras. Todo lo cual
níes se preparan para la retoma de la ciudad y se lo tengo notado y experimentado y
enfrentan con las milicias asuncenas en la batalla
lo han notado y experimentado los
sobre el río Tebicuary. El segundo período (1724-
1730), está marcado por la lucha en los tribunales misioneros mas ejemplares y de
de Justicia y por el gobierno de Martín de Barúa mas celo en el servicio de ambas
que apoya los reclamos de los asuncenos. El tercer Majestades y por eso lo certifico con
período (1730-1735) con la violencia generalizada, la ingenuidad que debo y profeso.
el conflicto recrudece y el enfrentamiento entre (Manuscritos Colección De Angelis,
las misiones y los asuncenos se expande a las 1955, v. 5, p. 305)
milicias rurales, se cometen todo tipo de excesos y
finalmente la provincia del Paraguay es controlada
3
por el enviado del rey, Mauricio Bruna de Zavala, Estas reducciones fueron San Ignacio Guazú, Nra.
ex gobernador de Buenos Aires por varios períodos. Sra. de Fé, Santiago y Santa Rosa.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 265-286, jul./dez. 2013. 267


Probablemente los guaraníes vi- hallan descuidados y en los pasajeros,
vieron las campañas militares como un y tan frecuentes los robos y violencias
desahogo a la vida regulada por los mi- que han practicado y practican con
sioneros donde además de proporcionarles los vecinos del Paraguay y los de la
ciudad de Corrientes que fuera nece-
carne en abundancia para su alimentación
sario mucho tiempo y desembarazo
toleraba todos los excesos cometidos en para referir sus maldades y violencias.
el campo de batalla y en la búsqueda del Pero son tan notorias a todos los
botín de guerra. En el primer enfrentamien- españoles de aquellas partes que
to armado sobre el río Tebicuary, y en sus el común concepto, tedio y horror
recorridas como espías por las estancias que tienen a tales indios, excusa la
de los españoles, cometieron numerosos expresión que pudiera hacer en este
robos de ganado. La guerra contra un particular y solo diré que en el tiempo
enemigo de la Corona les posibilitaba ex- que he andado por aquellas partes,
perimentar la libertad traducida en poder han ejecutado con los españoles tres
o cuatro casos de suma crueldad y
bélico, excesos, despojos, impunidad y reco-
atrevimiento y rigor. (ANGLÉS; GOR-
nocimiento del propio grupo para auto afir- TARI, [1769]1905, p. 273).
marse como valientes guerreros. El regreso
debió ser siempre un momento de tensión Además de los excesos de las mili-
para el orden interno de los pueblos y para cias movilizadas, los indios que se fugaban
la autoridad de los religiosos que tenían de las misiones se juntaban con los indios
que adaptarse al reacomodo de los guara- no reducidos y vivían del robo de ganado
níes para no provocar deserciones o fugas. que podían proporcionarse en las estan-
Si bien la derrota del Tebicuary y el temor cias, del asalto a las tropas yerbateras y
a ser tomados prisioneros provocaron la a los viajeros. Como estaban entrenados
huida general de los guaraníes la mayoría en las armas de fuego, eran doblemente
solo regresaron a sus pueblos, cuando el temidos por todos aquellos que debían
gobernador Antequera dio su palabra a los transitar los montes de los yerbales o las
caciques y a los jesuitas presentes que no regiones despobladas de Corrientes a San-
serían encomendados. En otras palabras, ta Fe. Fuera del control de los misioneros
cuando obtuvieron una seguridad jurídica encontraban refugio o se confederaban
que su independencia sería respetada. En con los mbayá, charrúa y payaguá para
su informe el visitador Matías de Anglés y realizar sus asaltos. Por su tradicional odio
Gortari, resaltaba los excesos de las milicias a los españoles y por su conocimiento de
guaraníes: tácticas militares eran aceptados entre los
No tienen los Españoles mas enco- grupos infieles que se extendían por todo
nados y alevosos enemigos que los el espacio fuera del territorio controlado de
dichos indios Misioneros, y son tantos las reducciones y de los españoles. El padre
los ejemplares de las traiciones y mor- Lozano escribía por esos años: “otros tapes
tandades, que efectúan en los que fugitivos de sus pueblos tienen su refugio

268 Mercedes AVELLANEDA. Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y asuncenos...


entre los charrúa y viven a su libertad que les proveía yerba y tabaco y cada vez se
es el reclamo de su fuga” Lozano (1905, gastaban más animales para mantener los
p. 273). Los religiosos debían organizar contingentes y para ayudar a sus familias
expediciones para ir en busca de los indios que se veían imposibilitadas de sustentarse
huidos por representar un mal ejemplo de sus sementeras. Siempre eran elegidos
para los guaraníes reducidos. para los traslados los hombres más confia-
En 1724, fueron trasladados además bles de los pueblos y los más trabajadores
de los tres mil indios derrotados en el por temor a la indisciplina y a los excesos
Tebicuary, otros cuatro mil para defender de las milicias. Ello repercutió necesaria-
Montevideo de la posible ocupación de mente en la superficie trabajada de las
los portugueses. Unos dos mil regresaron sementeras. Por otra parte, los traslados
después de haber estado un mes ausente implicaban la pérdida de mulas y caballos,
de sus pueblos y otros dos mil se quedaron y el consumo de una cantidad desmesura-
durante un año y dos meses en Monte- da de ganado. En ese entonces existía la
video para trabajar en la fortificación del Vaquería del Mar que se ubicaban al norte
fuerte, aportando sus armas, herramientas, de Santa Fe, Buenos Aires y Corrientes, y la
caballos y bastimentos. Al regresar a sus de los Pinares al norte de las reducciones
reducciones, otros cuatrocientos fueron en- ubicadas sobre el río Uruguay, ambas eran
viados en su reemplazo. Desde 1727 hasta sobre explotada por todos los habitantes de
1729, todos los años se los relevaba y se esas ciudades y por los portugueses, lo que
los cambiaba por un nuevo contingente. El impedía un abastecimiento normal de las
mismo sistema de remuda se utilizo para estancias de las reducciones. Este recurso
cumplir con la necesidad de enviar mano de ganado cimarrón en disminución, era
de obra indígena para construir el fuerte vital para el sustento de los pueblos ya
de Buenos Aires. En este caso se alternaron que representaba la única base segura de
contingentes de 160 guaraníes durante alimento disponible para contrarrestar las
1724, 1725 y 1726. También en 1725 malas cosechas. El problema se agravaba
fueron enviados guaraníes por un mes aún más para los jesuitas que no estaban
para construir un cerco en Santa Fe para en condiciones de negar la ayuda de las
defensa de abipones y mocovíes. Todo ello milicias al Gobernador de Buenos Aires
fue consignado por Bernardo Nusdorffer, por todo lo actuado a su favor, aunque
superior de las Misiones en un interrogato- representara una carga muy pesada para
rio sobre los indios guaraníes en virtud de las reducciones. En el siglo anterior los
su carácter, producción y antecedentes (M. religiosos rechazaron con frecuencia la
C. D. A., 1955, v. 5, p. 313-316). Los traslados idea de trasladar los guaraníes por tiempo
y permanencias prolongadas alteraban el prolongado para trabajar en las construc-
orden interno de las reducciones, y fueron ciones de Buenos Aires por temor a las
mermando la capacidad de contar con fugas y también por el pacto contraído de
reservas de alimentos. El gobierno solo no obligarlos a trabajar para los españoles.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 265-286, jul./dez. 2013. 269


Aunque las movilizaciones para la guerra mantuvieron en ese lugar hasta febrero
eran cumplidas como servicios a la Corona de 1734 y por orden del Virrey, se efectuó
porque implicaban para los guaraníes una un recambio de tres mil guaraníes sobre
instancia muy deseada de participar en en- el Tebicuarí, para prestar apoyo a Bruno
frentamientos armados, las reducciones no de Zavala, por otros dieciséis meses, todos
se veían afectadas en sus recursos porque estos datos fueron consignados por Nus-
las vaquerías estaban en plena expansión derffor. Con todos esos desplazamientos
y el ganado era abundante. Al contrario los de milicias guaraní y su permanencia
guaraníes podían destacarse como valien- fuera del ámbito de las reducciones, se
tes guerreros y suspender sus obligaciones originaron, s, numerosos desmanes contra
ordinarias dentro de los pueblos, ya que la propiedad privada por el descontrol en
los contingentes eran bien menores y por hacerse de un botín. Sin duda, los excesos
tiempo mas acotado. Sin embargo, ahora y la indisciplina afectaban la organización
la situación era del todo diferente. La Com- interna de las reducciones y la conser-
pañía de Jesús debía demostrar, a través vación de sus reservas. Si sumamos los
de la movilización de numerosas milicias, contingentes con sus recambios desde
su fidelidad a la Corona y su inocencia 1732, tenemos un total de seis mil efecti-
en el Consejo de Indias por las numero- vos guaraníes movilizados de sus pueblos
sas acusaciones de los asuncenos en los durante tres años seguidos. Y si realizamos
tribunales de justicia contra las reduccio- una estimación total desde el principio
nes. Afrontaron la creciente demanda de del conflicto en 1724, vemos que fueron
sus milicias con la remuda de pequeños movilizados más de doce mil contingentes
contingentes evitarían en el corto plazo, de las reducciones por períodos largos
un costo muy alto para todos los pueblos. de forma escalonada durante once años.
Cuando el movimiento comunero de Por otro lado, cuatro mil guaraní fueron
Asunción se radicalizó con la expulsión de enviados al sitio de Colonia entre 1735 y
los jesuitas (1730-1735) por segunda vez 1736. Como vemos la intensa movilización
y la ejecución de José de Antequera y del de las milicias guaraníes representó en la
procurador de la ciudad Juan de Mena. Los última etapa del conflicto una carga muy
misioneros en 1732 movilizaron seis mil pesada para el orden económico de las re-
guaraníes que acamparon ocho meses en ducciones y también para la organización
el pantano de Ñeembucu y luego debieron social interna de las mismas. Los guaraníes
replegarse en el río Aguapey, a pedido de luego de permanecer tanto tiempo fuera de
los asuncenos por los numerosos desma- las reducciones debieron cultivar el gusto
nes producidos contra la propiedad de los por la libertad y por los excesos de las
pobladores, así debían retirarse más al movilizaciones guerreras donde obedecían
este y garantizar una frontera infranque- más a sus caciques que a los religiosos. La
able con las reducciones y prestar apoyo campaña del Tebicuary (1732-1735) fue la
a los enviados del Virrey. Las milicias se más prolongada en toda la historia de las

270 Mercedes AVELLANEDA. Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y asuncenos...


misiones jesuíticas, y como veremos a con- veces estos detalles se mencionan en las
tinuación, tuvo consecuencias desastrosas cartas anuas y menos en los padrones. Sin
para la continuidad de las reducciones y embargo, en el ambiente convulsionado de
el pacto establecido con los jesuitas. Este esos años el padrón general de 1735 da
acuerdo fue establecido entre los jesuitas cuenta de los fugitivos y el padre Lozano,
y los caciques desde el principio de las en las Cartas Anuas abundaba en detalles:
reducciones como una alianza defensiva, Muchos indios tobatines reciente-
reducirse a cambio de armas de fuego para mente reducidos en Santa María
defenderse de los enemigos, permanecer de la Fé, regresaron a sus antiguas
en su territorio, mantener el poder de los moradas por el hambre y la epidemia
caciques, contar con la protección de los que sobrevino. Esta se debió a la se-
religiosos para no tributar ni ser encomen- quía que se presentó a fin de 1733
dados y acceder a los bienes necesario hasta marzo del 1734 que arruinó
para la subsistencia en todos los poblados. todas las cosechas. No eran tantos
los campos trabajados ya que los
Impacto del conflicto sobre las más trabajadores estaban enlistados
en las milicias y no había por parte
reducciones
de los que se quedaban ninguna pre-
El impacto del conflicto se puede disposición para trabajar en lo ajeno.
medir en la fuerte caída demográfica que En el mes de abril el hambre empezó
arrojan los padrones. Tanto Jackson como a apretar en todos los pueblos. En
algunos pueblos que no tenían ga-
Maeder, quienes trabajaron con listados
nado, se desparramaron los indios
de las reducciones, coinciden en señalar
por todas partes, vagando por los
que en 1732 había 141.242 individuos y montes como frenéticos, juntamente
que en 1740 tan solo quedaban 73.910 en con sus mujeres y niños buscando
los 30 pueblos. También Morner, a través algo para comer. Antes el hambre se
de los padrones generales de esos años podía evitar por la cantidad enorme
(1735-1740), advierte una progresiva dis- de ganado cimarrón, ahora en falta
minución de toda la población. A primera por culpa de los españoles y lusita-
vista podemos pensar que el principal nos que comerciaban con el Perú y
factor del derrumbe demográfico fueron Chile o rodeándolos para beneficiar
las tres epidemias encadenadas que impi- los cueros que exportaban a Europa
dieron una rápida recuperación propuestas desde Brasil y desde Buenos Aires.
Los campos de Yapeyú y San Miguel
como hipótesis por Jackson. La primera fue
donde se guardaba el ganado para
en 1733, la segunda en 1735-1736 y la
su reproducción también se acabo.
tercera en 1738-1740. Sin embargo, otros Quedaron completamente depen-
factores que colaboraron con la caída de- dientes de la agricultura que solían
mográfica del 50% en tan corto tiempo fue- ser sus antiguos alimentos. Durante
ron el hambre y las fugas masivas. Raras noviembre y diciembre llovió de forma

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 265-286, jul./dez. 2013. 271


abundante y se consiguió una abun- intensiva. Junto con el hambre sobrevino
dante siembra, pero al estar obligados el contagio de enfermedades y el orden
a vagar para encontrar comida des- de las misiones dejo paso al descontrol
cuidaron la cizaña y la cosecha se social que condenó por primera vez a los
hecho a perder. Los que volvieron de guaraníes a procurarse el alimento fuera
los escondites se echaron sobre los
de los pueblos. Lozano en otra parte del
campos ajenos, prolongando el ham-
bre por un año más… comparado con
documento lamentaba la falta de comida
el censo anterior, se pudo constatar en los tres primeros pueblos más cercanos
la muerte de 10132 indios la mayoría al Tebicuary y señalaba que los guaraníes
adultos y 6090 párvulos [...]4 vendían a sus hijos por carne a los para-
guayos revelando una situación desespe-
Podemos ver que el ganado cimar- rada (Carta Anua, 1730-1735, p. 181). En
rón se había convertido con el tiempo en 1734 muchos buscaron refugio con sus
el principal sustento de las reducciones. parientes no reducidos y muchos volvie-
Los pueblos se proveían desde siempre de ron al monte a tratar de sobrevivir como
la Vaquería del Mar situada al este y sur antes de la caza, la pesca y la recolección.
del río Uruguay y la extrema explotación Los que se quedaron y sembraron fueron
en los últimos 15 años de los habitantes muy pocos y los resultados obtenidos no
de Buenos Aires, Santa Fe y Corriente, las alcanzaron a mejorar la falta de alimentos
habían agotado. Los jesuitas intentaron en los pueblos. Muchos jesuitas debieron
en vano, crear una nueva vaquería en los acompañar el ejército de seis mil hombres
Pinares, mas al norte, que fue saqueada para servir de capellán en su permanencia
por los portugueses5. Por eso las cam- a orillas del Tebicuary y los pocos religiosos
pañas militares prolongadas desde 1724 que quedaron en los pueblos debieron
aceleraron el exterminio de las estancias ocuparse de los moribundos por la peste.
en muchos pueblos al elevar el consumo Sin recursos para hacer frente al hambre
de carne de forma desproporcionada. Las y sin hombres para dedicarse a la rees-
reducciones se enfrentaron con su insu- tructuración interna de las reducciones, el
ficiente base agrícola y con la resistencia compromiso asumido por los jesuitas de
de los guaraníes a practicarla de forma brindarles todo lo necesario para el susten-
to y protegerlos de la explotación colonial
4
Cartas Anuas de 1730 a 1735 del P. Pedro Lozano. ya no se cumplía. Las reducciones dejaron
traducidas del latín por Carlos Leonhardt S.J. Institu- de ser un lugar seguro para sustraerse a
to Anchietano de Pesquisas, Universidade do Vale la mita, por las numerosas movilizaciones
do Río dos Sinos UNISINOS. Sao Leopoldo, Brasil. militares, y tampoco podían garantizar la
Una copia digital de las mismas, me fue ofrecida
generosamente por el historiador Ignacio Telesca subsistencia de las familias reducidas. Las
(Cuaderno IV, páginas 141 a 443). Cartas Annuas nos muestran como la crisis
5
Sobre el tema de las vaquerías ver Morner, 1968, se profundizó por el hambre en los años
p. 121-124. subsiguientes:

272 Mercedes AVELLANEDA. Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y asuncenos...


El 1735, año que hubo mas hambre parcialidades guaraníes que decidieron
que en el anterior y muchas huidas unirse a la nueva población y el grado de
de los indios e indias a las selvas coerción interna que habían alcanzado.
y dilatados campos. Se iban con La reducción duró dos años y terminó con
los indios no reducidos y con los el ataque e incendio perpetrado por los
charrúas dedicados al trato carnal y correntinos con la ayuda de las milicias
para aumentar el número de mujeres
jesuíticas El pueblo de desertores debía ser
mataban a sus maridos. Los mas
eliminado para que no prosperase el mal
sabios se retiraron a la laguna del
Iberá fueron reducidos por los que ejemplo en el resto de las reducciones. A
tenían más capacidad, realizaban principios de 1736, las cartas annuas dan
algunas ceremonias y se arrogaban cuenta de la persistencia del hambre y la
el cargo de párrocos y se casaban con falta de sembradíos suficientes al regreso
su licencia. Para sustentarse hacían de las milicias de Colonia del Sacramento
invasiones hostiles a la vecindad de la y el aumento del número de desertores:
ciudad de Corriente y a las estancias Podían verse tropas de 80 a 100 in-
de ganado de los españoles. Ese año dios sin contar con los párvulos y las
había 8022 personas desaparecidas mujeres que los seguían, vagaban por
que formaban 1354 familias fuera de las estancias asaltando y matando a
los difuntos 2637 adultos y 3407 pár- los cuidadores de ganado. Inundaban
vulos. Muchos dispersos se murieron los caminos públicos atropellando tro-
por el camino o por las peleas entre pas enteras de ladrones a los viajeros
si o por otras razones. Cartas Anuas despojándolos de todo lo que tenían
manuscritas del P. Lozano (Cuaderno y en caso de resistirse acabarían con
4, p. 459-461). ellos. Los agricultores tuvieron que
De acuerdo a las cifras anteriores las librar verdaderas batallas contra ellos
para defender sus siembras, ganado
muertes disminuyeron y aumentaron las ci-
y propia vida, y ponerse bajo armas,
fras de los huidos de todas las reducciones. logrando vencer a los salteadores con
Como los charrúas no eran de fiar, algunos la muerte. Otros fueron vencidos por
líderes decidieron salir de las misiones para los tigres, los demás por puro ham-
fundar un nuevo poblado. Ernesto Maeder bre […]. Otros que se retiraron por el
quien investigó el tema a través de una monte perecieron de la viruela como
información del padre Bernardo Nusdorffer, otros que se refugiaron por Santa Fe y
señala que los guaraníes formaron un Corrientes y Asunción. En las afueras
de los pueblos se encontraban verda-
poblado con veintitrés hileras de ranchos
deras bandadas de refugiados en los
con su propia organización social donde puestos, en las misiones y en los cam-
la poligamia era aceptada y que todos pos cerca se han hallado muertos de
ellos correspondían a indios provenientes hambre y frío y medio devorados por
de trece reducciones comarcanas (Mae- los perros…. Cada día se enviaba en
der, 1991-1992). Sorprende la cantidad de algunas reducciones empleados para

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 265-286, jul./dez. 2013. 273


recorrer los alrededores del pueblo y grupos de salteadores fueron obligados a
por el mes de agosto volvían trayendo regresar a las reducciones por la fuerza
cadáveres o a un prófugo aun con de las armas. Los que se negaron, fueron
vida, desnudo con perdida de habla asesinados por las patrullas guaraníes
parecía que no se daba cuenta de
que intentaban reestablecer el antiguo
nada […]. Otros se escondieron en las
orden en el territorio de las misiones. El
selvas o se fueron a los infieles […].
(Cartas Anuas, 1735-1743; Cuaderno enfrentamiento armado entre los propios
4, p. 538-540.) guaraníes nos habla de medidas extra-
ordinarias y desesperadas para alcanzar
Como vemos, el éxodo de las reduc- la recomposición del antiguo orden en el
ciones provocado por el hambre no cesó territorio de las misiones.
en los años subsiguientes. La existencia de Cabe preguntarse ¿cuál era la
tropas armadas con sus familias revela la situación de los pueblos en particular y
existencia de numerosas parcialidades que cómo era el impacto del conflicto en el
decidieron abandonar las reducciones y conjunto de las misiones? Lozano señala
dedicarse al asalto y al robo para sobrevivir. que los pueblos más afectados en el norte
Otras alternativas fueron la servidumbre por el hambre y las enfermedades fueron
en las ciudades, la unión con otras tribus, Santa Rosa y Nra. Señora de Fe, y también
llegar hasta las reducciones mejor abaste- Loreto que había sido la reducción más
cidas o sobrevivir en el monte en grupos importante y mejor abastecida, y que se
pequeños. Probablemente los pocos que encontraba totalmente arruinada. Cruza-
se quedaron en las reducciones fueron mos los datos con el censo realizado en
aquellos que apostaron al trabajo de la Agosto de 17356 y encontramos que la
siembra y pudieron generar sus propios mayor cantidad de familias fugitivas se
alimentos y defenderlos de los saltea- encontraban en San Ignacio Guazú (333),
dores. En todo este éxodo, las estancias Loreto (325) y Nra. Sra. De la Fé (291). Para
y los puestos de las reducciones fueron una mayor comprensión a continuación
saqueados. El orden interno de las reduc- exponemos el cuadro de familias huidas
ciones que permitía contener un número y de familias restantes pueblo por pueblo
importante de familias se había alterado y de las misiones del Paraná:
los guaraníes frente al hambre y la peste
huían de una posible muerte. Los jesuitas
envueltos en los acontecimientos no pu-
dieron prever el desastre originado por la
falta de alimentos y el desbande general.
6
Los payaguás también aprovecharon el Censo efectuado por orden de Bernardo Nusdorfer
superior de las doctrinas en los 30 pueblos. La noti-
desorden reinante para incrementar sus
cia de su existencia y la referencia me fue facilitada
ataques y cautivar indios prófugos en el por el investigador Takeda Kazuhisa. Ver A.G.N. Sala
río Paraná. Según el relato de Lozano los IX, Legajos 17-3-6, 9-1-18 y 18-8-2.

274 Mercedes AVELLANEDA. Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y asuncenos...


Misiones del Paraná censo 1735 F. fugitivas F restantes Almas
San Ignacio Guazú 333 684 2691
Loreto 325 1200 5523
Nra. Sra. De la Fé 291 914 2465
Trinidad 141 680 1828
Encarnación de Itapuá 120 1038 4361
Corpus Cristi 67 638 2790
San Cosme y Damián 54 514 2143
Santa Rosa 31 448 1780
Candelaria 29 629 2990
Santiago 27 787 3237
Jesús 20 489 2256
Santa Ana Mini 5 924 4083
San Ignacio Mini 1 793 3010
Misiones del Paraná totales 1444 9738 39157
Quadro 1 - Familias fugitivas y familias restantes y totales de almas

El cuadro revela que los efectos de censo con el número más bajo de fugitivos
la guerra fueron muy importantes en los de todos los pueblos y también Trinidad,
dos pueblos más próximos al Tebicuary y que al contrario presenta numerosas fa-
en el más importante sobre el Paraná, sin milias de huidos. Esto último revela que
duda, por tener que socorrer por más las fugas no solo fueron causadas por el
tiempos a las milicias apostadas en sus desabastecimiento de las misiones sino
proximidades. Lozano lamentaba que la también por el descontento general que
fundación de San Antonio de Padua en reinaba en su interior. En las reducciones
el Aguapey con indios de Loreto, había donde había más huidos, el censo señala
sido abandonada y que los guenoas y que algunos de ellos faltaban por más
los guañanes que incursionaban en la de tres y cuatro años de los pueblos. Se
banda oriental del río Uruguay, se resis- daba que dentro de un mismo cacicazgo
tían a reducirse. Los esfuerzos realizados se encontraban familias que iban dejan-
para evangelizar los indios apalabrados do la comunidad de manera escalonada.
quedaban en la nada por el descontento Así encontramos algunos fugitivos de
general y no poder garantizarles la sub- tres años, y numerosos de dos y un año.
sistencia en los primeros años. Según las Muchos eran jóvenes parejas entre los 20
cartas anuas pocas eran las reducciones y 30 años con hijos y solo algunos pocos
del Paraná que se salvaron de la destruc- pasaban los 40 años. En las reducciones
ción del ganado. Estas fueron Santa Ana más próximas al Tebicuary como Santa
Mini y San Ignacio Mini, que figuran en el Rosa, San Ignacio Guazú y Nra. Sra. De la

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 265-286, jul./dez. 2013. 275


Fé además de fugitivos, existían listas muy Lozano una epidemia de sarampión es-
largas de huérfanos y viudas. Todo ello nos talló en Yapeyú y se expandió al resto de
esta señalando que las reducciones que las reducciones. El censo de 1735 vuelve
sufrieron con más fuerza el impacto mortal a registrar un número muy importantes
de la guerra con lo asuncenos, fueron las de fugitivos. Según Lozano, las misiones
más próximas al Tebicuary y que existió más afectadas por el desabastecimiento
un fuerte rechazo de parte de las jóvenes fueron Santo Tomé, Santa Cruz, Yapeyú,
familias de continuar bajo el régimen de San Lorenzo, San Javier, Santa María la
las misiones. En las reducciones del río Mayor, San Luís y San Nicolás. Y aquellas
Uruguay, las cartas anuas, señalan una que se llenaron de huidos fueron San José,
plaga de langostas que destruyó pastos e la Concepción, Santo Tomé, San Carlos, San
hizo estragos en el ganado vacuno. Según Borja y De la Santa Cruz.

Misiones del Uruguay censo 1735 F. fugitivas F. restantes Almas


San Nicolás 327 1603 6986
San Lorenzo 262 1213 5177
San Luis 166 1306 5305
Santa María La Mayor 160 700 2908
San Angel 153 952 4501
Nra. Sra. De la Asunción de la Cruz 99 1153 4377
Yapeyú 92 1320 5106
San José 52 770 3473
San Francisco Javier 47 829 3494
San Borja 41 714 3582
San Carlos 36 607 2400
Santo Tomé 29 792 3282
San Miguel 11 981 4019
Concepción 6 1279 5920
San Juan Bautista 1 1062 4621
Santos Mártires 1 904 3416
Apóstoles S. Pedro y S. Pablo 0 1056 3884
Misiones del Uruguay Totales 1580 17241 72451
Misiones del Paraná Totales 1444 9140 39157
Totales Misiones Paraná y Uruguay 3024 26381 111608
Quadro 2 - Familias fugitivas y familias restantes y totales de almas

El censo 1735, revela en el contexto considerable también en los pueblos so-


general de las misiones una cantidad muy bre el mismo río. En los más alejados de
grande de familias huidas en los pueblos estos dos grupos, los fugitivos fueron casi
al este del río Uruguay, y un número inexisten. Probablemente el problema del

276 Mercedes AVELLANEDA. Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y asuncenos...


desabastecimiento afectó a todos los pue- las familias exentas de tributar por tener
blos más próximos al Paraná y la epidemia reservados7, impedidos8, mayores de 50
de sarampión se propagó más fácilmente años, y fugitivos, eran muchas, y oscilaban
en los pueblos cercanos al río. También el entre un 20 y 40%, por lo tanto la presión
censo revela que las reducciones donde del trabajo comunal debía ser mayor para
había más huidos, todos los cacicazgos las familias más jóvenes que no estaban
tenían varias familias fugitivas de manera exentas. Todo ello, bien pudo haber influido,
escalonada de cinco años a esta parte y en en el abandono de las reducciones y en el
mayor número en los últimos dos. Esto nos descontento general Los totales arrojados
habla de un foco de descontento general por el censo dan cuenta de un número más
que se puede ubicar principalmente en las importante de fugitivos en las reducciones
reducciones del Paraná y Uruguay más del Paraná en relación a la cantidad de fa-
próximas entre si por el rol que debieron milias del Uruguay, sin duda por la presión
desempeñar en la movilizaciones generales constante de las movilizaciones militares.
y en el abastecimiento de las milicias. Al Por lo tanto el descontrol y el deterioro de
igual que en el Paraná arrojan un número las relaciones al interior de las reducciones
mayor de viudas en comparación a los fue mayor. En comparación con las cifras
viudos por lo tanto debemos pensar que consignadas por Lozano, de 1354 familias
el servicio en las milicias era un factor de fugadas para el año de 1735, vimos que en
desestructuración para las familias, por el censo oficial de 1735, se mencionaron
facilitar el contagio de enfermedades mor- también las familias fugadas con anterio-
tales, las huidas o exponerlos a la muerte. ridad. La diferencia que encontramos con
Por otra parte el mismo censo revela que nuestros números nos señala que las fugas
los cacicazgos más numerosos tenían entre consignadas también de los años anterio-
100 y 80 familias, aunque en general solo res fueron considerables y que el proceso
alcanzaba un promedio de 30 a 40 fami- de deserción de las reducciones aumentó
lias por reducción. En las reducciones con con el inicio de las movilizaciones masivas
muchos huidos encontramos la mitad de de las milicias. En el contexto general de
familias fugitivos por cacicazgo, y solo un las reducciones las del Paraná fueron las
cacique fugitivo. La mayoría de ellos per- primeras afectadas por el desabasteci-
manecían en las reducciones, porque allí el
cacicazgo era hereditario y al igual que sus
primogénitos se los reservaba de tributar. 7
Los reservados eran los que estaban exentos de
Donde encontramos un elevado porcen- tributar en todas las reducciones había un número
taje de familias huidas por cacicazgo, las determinado, los caciques e hijos primogénitos, los
menores de 18 años sin casarse, las autoridades
edades oscilaban entre los 40 y 20 años, y el corregidor, los mayordomos y cantores que
en las reducciones con un número menor sumaban un número fijo de doce por reducción.
la mayoría eran jóvenes entre los 18 y 30 8
Los impedidos eran los que tenían algún proble-
años en edad de tributar. En comparación ma y los reservados los que pasaban los 50 años.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 265-286, jul./dez. 2013. 277


miento de ganado y el elevado número También podemos aproximarnos en
de prófugos. También en el Uruguay casi cifras generales a la cantidad de fugados
todas las misiones se vieron afectados por en todos esos años. Sabemos por Morner
la mortandad de animales, el hambre y la que consultó el padrón de 1732 que
llegada de muchos guaraníes huidos. Por había un total de 141.242 individuos en
todo lo expuesto podemos aseverar que las reducciones y por el censo analizado
las misiones ya no constituían lugares por nosotros que en 1735 la cifra había
seguros para sobrevivir y los jesuitas ya no descendido a 111.608 (MORNER, 1968, p.
podían mantener el abastecimiento de las 227). Si comparamos las cifras podemos
reducciones por las circunstancias vivencia- intentar estimar un número aproximado de
das. No es de extrañar que los guaraníes las familias fugitivas en los censos de 1736,
buscaran esparcirse en pequeños grupos 1740 y 17419, para evaluar la intensidad
para subsistir de los recursos del monte y de la crisis al interior de las reducciones y
de los asaltos esporádicos con otros grupos. la dinámica de su recuperación.

Total de Almas x censos Año 1732 Año 1735 Año 1736 Año 1740 Año 1741
Reducciones del Paraná S/D 39157 32.738 31.658 32.418
Reducciones del Uruguay S/D 72451 69.983 42.252 44.542
Totales generales 141.242 111.608 102.721 73.910 76.960

Si tenemos en cuenta que las re- lado del río Uruguay se encontraban los
ducciones del Uruguay fueron golpeadas lusitanos que impedían a los guaraníes,
por la peste y que el recuento efectuado vaquear con libertad para abastecerse. Lo
por Lozano de los muertos entre 1732 y mismo sucedía al sur de las reducciones
1740 para todas las reducciones, haciende con los charrúas y abipones y al norte
a 36,546 personas podemos deducir que con los payaguás. El espacio externo de
hasta el año de 1740 el proceso de éxodo las reducciones dejó de ser un lugar se-
de las reducciones prosiguió declinando y guro por donde transitar y buscar ganado
se fugaron de ellas una 40 mil personas. cimarrón. La sucesión de epidemias y la
Como vemos la intensidad de ese proceso declinación demográfica hasta fines de
fue muy violento, las cartas anuas de esos 1740 nos señala lo difícil que fue encontrar
años describen la tragedia de los pueblos una solución al problema del hambre. Por
con todo el dramatismo del padre Lozano todo ello, podemos decir que la revolución
y las cifras que manejamos concuerdan
con la magnitud de las perdidas. 9
Estos censos se encuentran en el Archivo de Roma
Además de los inconvenientes sus- de la Compañía de Jesús y por gentileza del padre
citados al interior de las misiones, al otro Martín Morales accedí a fotocopiar los originales.

278 Mercedes AVELLANEDA. Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y asuncenos...


de los comuneros con los prolongados Estrategias jesuitas para la recompo-
traslados de las milicias tuvo consecuen- sición de la alianza resquebrajada
cias impensadas para los religiosos en el
conjunto de las misiones. La mayoría de En los años sucesivos la recompo-
las reducciones se transformaron en una sición social fue muy lenta. La Compañía
trampa mortal. Aquellos que huyeron y de Jesús debió realizar un enorme esfuerzo
buscaron refugio en la selva, padecieron económico para asegurar la continuidad
los ataques de los indios infieles y la des- de las reducciones y tuvo que resignar su
trucción de sus rancherías por parte de propósito de fundar nuevas misiones para
las milicias guaraníes para borrar su mal evangelizar los indios infieles y contribuir a
ejemplo. Para los jesuitas debió ser un la pacificación de la frontera. Ello debilitó
duro golpe ver sus queridos pueblos fuera la defensa del territorio más allá de los
de control por el hambre, las epidemias y pueblos. Las incursiones de los abipones,
tener que lamentar tantas muertes y tantos minuanos, charrúas y payaguás se hicieron
huidos. Las reducciones se convirtieron en más frecuentes y hubo una mayor pene-
espacios que expulsaban a sus habitan- tración de los lusitanos desde la costa.
tes, y en esas condiciones extraordinarias, Los esfuerzos debieron concentrarse en
el pacto político con los guaraníes se garantizar la subsistencia al interior de los
deterioraba. Al igual que los asuncenos poblados guaraníes. Según Lozano, con las
que tuvieron que lamentar los excesos primeras buenas cosechas en el año 1739
cometidos por las milicias comuneras en compraron 38 mil cabezas de ganado a
permanente movilización, los jesuitas tu- los españoles para mitigar el hambre en
vieron que vivenciar el descontrol social al sus pueblos (Cartas Anuas, 1735-1743,
interior de las reducciones. Los hechiceros cuaderno 4, p. 580). En los años sucesivos
volvieron a tener un rol protagónico como según Magnus Morner el gobernador de
guías de sus parcialidades en esos años Paraguay fue autorizado a sacar yerba
y los jesuitas intentaron limitar al interior caaminí de los pueblos guaraníes bajo
de las reducciones su influencia. En el año condiciones favorables Morner (1968, p.
de 1734 con motivo de la visita general 126), con lo cual podemos suponer que
del nuevo Provincial Jaime de Aguilar, los en los años sucesivos las reducciones
religiosos se juntaron en la reducción de consiguieron comprar los animales que les
San Lorenzo y le expusieron el problema faltaban con el producto de sus sementa-
de los hechiceros que iban cundiendo en ras o realizaron con ese fin, transacciones
los pueblos, su recomendación fue que con la yerba. Además de recomponer las
tratasen de localizar a los principales y condiciones de subsistencia en todos los
los expulsasen de los pueblos por ser pro- pueblos, los religiosos procuraron evitar los
bables responsables de fugas masivas al servicies de las milicias. Cuando en 1738,
interior de las reducciones. Archivo General el gobernador de Buenos Aires solicitó el
(Biblioteca Nacional, Leg. 70, folio 37-38). apoyo de las milicias para saquear las

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 265-286, jul./dez. 2013. 279


estancias de los portugueses, que se ha- tributo redoblado. La Compañía de Jesús
bían fortificado ese año en Río Grande de pagaba solo un peso por tributario que
San Pedro, el superior tuvo que negarse. se descontaba de la congrua de los 22
El padre Bernardo Nusdorffer se justificó misioneros sobre un padrón muy inferior
por la necesidad de una conducción de que no había sido actualizado desde el
oficiales españoles y la imposibilidad por siglo anterior. El Consejo de Indias envió
el armisticio concertado entre españoles en 1735 el visitador Vásquez de Agüero
y portugueses que también incluía a los a Buenos Aires para averiguar lo cierto
indios de las misiones. Otras razones que de todas las denuncias y recabar tambi-
debieron pesar de igual manera fueron: la én información por la falta del pago del
falta de recursos suficientes, la indisciplina diezmo. Con objeto de evitar una visita a
de las milicias, y el temor de represalias las reducciones, el Provincial Jaime de
lusitanas en los pueblos más cercanos. Aguilar, mandó realizar una información
Por todo lo acaecido, las misiones estaban jurada a los principales religiosos de los
debilitadas en su potencial defensivo y ya pueblos como instrumento jurídico a ser
no podían cumplir empresas arriesgadas presentado ante el visitador y en el Consejo
para complacer las autoridades locales. de Indias. Los religiosos debían volcar en
Los jesuitas no solo debían asegurar el 22 preguntas, los datos de los padrones
alimento al interior de las reducciones sino conocidos, las estimaciones actuales de 19
también limitar los servicios de los guara- mil tributarios, los pagos acostumbrados,
níes para evitar nuevamente el descontrol las limitaciones de los indios, los servicios
y las fugas. Estas fueron condiciones prestados por ellos y los gastos de las
necesarias para reestablecer la alianza reducciones10. Declararon diez padres de
resquebrajada y asegurar la continuidad las reducciones del Uruguay y del Paraná
del sistema redaccional. y el superior de todas ellas quien dejo en-
Otros peligros que cernía a las re- trever que si se aumentaba el tributo los
ducciones por las numerosas denuncias religiosos deberían salir de las reducciones
que habían llegado del Paraguay, fueron y ser relocalizados por la imposibilidad de
el aumento del tributo y la imposición su cumplimiento. Este documento jurídico
del diezmo analizados por el Consejo de junto con cartas de Bruno de Zabala y
Indias. Ello implicaría exigir a los guara- del obispo de Buenos Aires al Rey, donde
níes mayores servicios personales que se elogia el desempeño de las milicias y
probablemente no estarían dispuestos a se aconsejaba no innovar en el diezmo,
aceptar y que causarían nuevas desercio- fueron llevadas por otros procuradores a
nes. El Consejo de Indias, resolvió realizar
una investigación a fondo por el informe 10
M.C.D.A. v. 5, doc. XLI. Interrogatorio sobre a
recibido del gobernador de Paraguay possibilidade dos indios guaraní pagarem tributo,
Martín de Barúa, que mencionaba la cifra em vista do seu carácter, producto e antecedentes,
de 40 mil tributarios que podían pagar un p. 256-333.

280 Mercedes AVELLANEDA. Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y asuncenos...


España para tratar el aumento del tributo. plotar minas, y de adeudar una cantidad
También se realizó el censo de 1735, con astronómica por los tributos atrasados y
la declaración jurada de cada sacerdote ocultar tributarios. Señalaba todos los ser-
de la reducción y refrendado por el padre vicios prestados por las milicias sin costo
superior, para actualizar todos los datos de alguno para el Rey y defendía la actuación
los 20.159 tributarios11 cifra comparable de los guaraníes. También resaltaba que
con las estimaciones. gracias a la no existencia de corregidores
El Padre Gaspar Rodero, procurador en las reducciones estas se mantenían
general de la Compañía de Jesús en el libres de todo tipo de vicios y en especial
Consejo de Indias, tuvo que escribir un de la ausencia de bebidas. Según el pa-
Memorial para defender la orden de todas dre Hernández, Rodero fue citado por los
las críticas que llegaban a ese tribunal12. Ministros del Consejo de Indias que le
Se buscaba gestionar la reconfirmación reprochaban el no haber hecho los religio-
de todos los derechos concedidos a las sos las numeraciones de los tributarios de
misiones jesuíticas del Paraguay, para forma ordenada. También que la tasación
alejar el peligro de cualquier modificación de peso del tributo había sido efectuada en
con respecto al tributo, los diezmos y la base a un padrón antiguo de 9 mil indios
imposición de corregidores. En el Memorial, y ratificado por posteriores cédulas. Sobre
Rodero refutaba las principales críticas que esas críticas el procurador volvió a insistir
podían hacer que el tribunal cambiase de que los indios debían quedar exentos del
parecer sobre la imposición de un tributo diezmo y de un aumento del tributo por
acotado. Mencionaba como infundadas las las numerosas contribuciones a su propia
acusaciones sobre los excesivos caudales expensa (HERNÁNDEZ, 1913, p. 481-194)
percibidos por la venta de la yerba de las Como vemos los jesuitas debieron defen-
misiones. Rechazaba la acusación de ex- der los derechos que permitían consolidar
la alianza al interior de las reducciones,
todas las veces para acallar las críticas reci-
11
Datos extraídos del censo efectuado por orden bidas y defender los derechos alcanzados.
de Bernardo Nusdorfer superior de las doctrinas en El principal argumento era que no se podía
los 30 pueblos. Ver A.G.N, Sala IX, Legajos 17-3-6,
modificar la cédula de Octubre de 1716
9-1-18 y 18-8-2.
12
que había hecho publicar el gobernador de
El Memorial hacía especial referencia a un
documento que le había llegado al Rey de un Buenos Aires Mauricio de Zavala, en todos
abate extranjero que criticaba a los misioneros del los pueblos y en la que el Rey, les prometía
Paraguay, pidiendo licencia al Rey para hacerse no gravarlos en más nada en reconoci-
cargo del remedio de ellas. Ver en Archivo de la Real miento a todos sus servicios. Por último
Academia Española, Hechos de la Verdad contra los Rodero se defendía de la acusación de
Artificios de la Calumnia representado con la más
rendida veneración al Supremo Real Consejo de
no dejar enseñar la lengua española para
las Indias por el padre Gaspar Rodero... Colección embarazar la comunicación y el comercio
Mata Linares leg. 1968. Sin fecha. con los españoles. Sostenía que era el

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 265-286, jul./dez. 2013. 281


único medio para alejar el robo, la idolatría, llamada “La Gran Cédula de 1743” por los
el homicidio y la incontinencia y justificaba jesuitas (PASTELL, 1946, doc. 4326, v. 7, p.
todos los gastos que se hacían sobre los 544-548).
indios y la conservación de las doctrinas. Trece fueron los principales puntos
Todos estos argumentos buscaban frenar en disputa sobre los que se expidió:
la voluntad de los ministros del Consejo,
1. Sobre el tributo, mandó mantener el
de sugerir al Rey modificaciones a los
peso que se cobraba según el padrón de
privilegios vigentes en las reducciones. En
1735 hasta nuevo padrón y les perdonó
apoyo a Rodero estuvo el padre Juan José
lo adeudado con anterioridad. La presión
Rico, desde 1741 realizando numerosas
de abandonar las doctrinas resultó nueva-
presentaciones ante el Consejo de Indias
mente efectiva junto con todos los informes
y dejó entrever la amenaza de abandonar
y presentaciones que lograron obtener del
las reducciones si se aumentaba el tributo.
cabildo eclesiástico, de los gobernadores y
Los ministros, luego de analizar
de los obispos.
las consultas efectuadas por el visitador
en Buenos Aires, y por una comisión en 2. Sobre los frutos y en particular la yerba,
España, con el procurador general de la el Rey dispuso que los religiosos continu-
Compañía de Jesús, estudiaron toda la asen con el comercio, sin novedad y que
documentación en el Archivo de Simancas. los oficiales Reales le informasen sobre las
Finalmente se pronunciaron el 22 de mayo cantidades anuales y calidades de frutos.
de 1743 y fueron del parecer de tomar en Esto revalidaba que todos los indios de las
cuenta la declaración jurada de los jesuitas reducciones quedasen exentos de pagar
del censo de 1735 sobre el número de derechos por la venta de los productos.
tributarios. En su dictamen aconsejaron: De ese modo las reducciones podían con-
no innovar en la forma acostumbrada de tinuar con su comercio de productos de
tributar, en los bienes de comunidad, en la tierra si ver alteradas las excepciones al
el uso de armas y en la sugerencia de pago de gravámenes existentes.
introducir corregidores extranjeros. Si bien
3. Sobre la instrucción del español, se les
tomaban en cuenta las amenazas de los
ordenaba que tuvieran escuelas y que
religiosos de dejar las reducciones por el
procurasen que hablaran el castellano.
aumento del tributo, consideraban que se
debía arreglar con los doctrineros alguna 4. En materia de derecho de propiedad
forma de pagar el diezmo en frutos de la de los guaraníes, el Rey mandaba que
tierra. También sugerían que los cuatro se les asignase una porción de tierra y
pueblos cercanos al Tebicuary fueran que todos los frutos que obtuviesen se
devueltos a la jurisdicción del Paraguay destinen a pagar primero el tributo al Real
(PASTELL, 1946, doc. 4294, v. 7, p. 482-506). Erario, del cuál salían los sínodos de los
El Rey recién se expidió el 28 de curas, los adornos y manutención de las
diciembre de 1743 en lo que fue después iglesias y el sustento y socorro para las

282 Mercedes AVELLANEDA. Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y asuncenos...


viudas, huérfanos, enfermos e impedidos. 9. Sobre las visitas de los obispos el Rey
Esta utilización de los recursos respondía no resolvía nada al respecto. De ese modo
a la lógica del gasto que se practicaba con quedaba librado al celo pastoral de cada
lo producido en las tierras comunales de prelado y los jesuitas podían evitar injeren-
los pueblos. cias inoportunas.
5. Sobre las justicias se ordenaba que 10. Sobre el culto divino en las reducciones
en cada pueblo sean estas los alcaldes el Rey les agradecía todo lo obrado por
indios y que no se pongan corregidores. su celo al respecto. Las Iglesias, las cele-
Con ello lograban mantener el control de braciones, el teatro indígena y la música
sus pueblos y continuar como los hacían que se ejecutaba en las reducciones, eran
hasta entonces. una prueba acabada de la evangelización
6. Con respecto a las artes y oficios, se exitosa de una nueva cristiandad.
mandaba que no se hiciese novedad de lo 11. Con respecto al Patronato Regio, el Rey
que se practicaba en ese entonces, y que resolvió que estas siguieran a cargo y cui-
se continuase con la fabricación de armas dado de los de los Padres de la Compañía,
blancas y de fuego, municiones y pólvora. como se había ordenado por Cedula Real
Con ello quedaban resguardados los de- en 1659, cuando los jesuitas amenazaron
rechos de defenderse con armas de fuego con abandonarlas por intentar convertirlas
para garantizar la superioridad defensiva en doctrinas y ponerlas bajo la órbita de
de las misiones. Este punto era esencial los obispos. A diferencia de la política bor-
para restablecer el permiso a los indios de bónica, a favor de la secularización de las
portar armas de fuego y de garantizar la doctrinas, las reducciones jesuitas volvían
alianza defensiva original. a ser contemplados como una excepción
7. Sobre lo ordenado en 1694 para que gracias al rol geopolítico fundamental
acudiesen con los diezmos a los Obispos, que desempeñaban en la defensa del
y lo sostenido por los jesuitas que no era territorio y en particular las reducciones
costumbre, el Rey resolvía que no se hi- de la región del Río de la Plata. De ese
ciese novedad modo los religiosos alejaban el peligro
de ser reemplazados por doctrineros y de
8. El rey los autorizaba a proseguir con la ingerencia de los obispos al interior de
sus prácticas de ir en busca de indios sus pueblos.
para reducirlos. De ese modo podían
realizar sus rondas en el espacio de las 12. Sobre la disputa sobre la sujeción de los
reducciones para mantener bajo control 30 pueblos bajo la jurisdicción de Buenos
las tribus infieles y también continuar con Aires, se mandaba no innovar en lo par-
los planes de expansión en el Chaco, en ticular. Este decreto había sido alcanzado
Moxos y Chiquitos. recordemos el 14 de octubre de 1726 a
pedido de los procuradores de la Com-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 265-286, jul./dez. 2013. 283


pañía. Sin embargo, los asunceños habían de tributos, armas, propiedades, autorida-
apelado y la Corona había ordenado por des internas de los pueblos, jurisdicción
cédula del 5 de septiembre de 1533 que única de Buenos Aires. También en ella
los cuatro pueblos más cercanos a Asun- el Rey manifestaba su reconocimiento
ción fuesen devueltos a la jurisdicción del a la Compañía de Jesús y agradecía su
Paraguay, cosa que los jesuitas no habían colaboración por haber desvanecido con
acatado por el conflicto y la sublevación sus informes las falsas calumnias13. Sobre
de los comuneros. Para terminar con los el diezmo, el Rey solo mencionaba realizar
reclamos de los asunceños y proteger a los una consulta con los religiosos para que
guaraníes de tener que brindar cualquier determinasen como se podría pagar, lo
servicio a los españoles, era fundamental que equivalía a escuchar la opinión de los
que estuvieran todos bajo la órbita del doctrineros y no una imposición real para
gobierno de Buenos Aires, Como vimos las cumplir con esa obligación. Con todos los
reducciones reclamadas habían sido las privilegios reconfirmados, la Compañía de
que tuvieron mayor cantidad de fugitivos Jesús podía finalmente seguir adelante su
en los años conflictivos. Para reestablecer labor entre los guaraníes sin ningún tipo
el orden y la confianza se hacía necesario de interferencias de los españoles o de
reconfirmar el pacto inicial de sustraerlos las autoridades coloniales en sus reduc-
al servicio personal y mantenerlos libres ciones. Los conflictos de esos años en el
de cualquier inferencia de los asunceños Paraguay y en el Río de la Plata habían
en su territorio. dejado una importante lección, rechazar el
pedido de las movilizaciones prolongadas
13. Sobre las críticas de los jesuitas ex- de las milicias, para evitar el desabaste-
tranjeros en las doctrinas, alimentadas cimiento y las epidemias, la indisciplina
por Aldunate, el gobernador que nunca de los guaraníes y las fugas en masa. El
asumió y que había enviado un informe costo para reestablecer el orden, acallar las
para que se pusiesen corregidores, se críticas ante la Corona y reforzar el pacto
hacía necesario un desagravio por lo político con los guaraníes había sido muy
tanto el Rey ordenaba que quedasen elevado. Las reducciones habían perdido
desvanecidas y manifestaba su gratitud la mitad de su población estable. En lo
Real al Provincial. sucesivo las milicias jesuitas dejaron de
tener un rol en la defensa del territorio y
Como vemos todos los aspectos los religiosos se abocaron por un tiempo
conflictivos en materia de derechos de las más, a reestablecer la paz al interior de
reducciones con las autoridades locales y las reducciones.
con los asunceños quedaban subsanados
con la Cédula Grande. En ella se volvieron
a confirmar todos los privilegios otorgados
a las reducciones del Paraguay en materia 13
Ver Pastell, 1946, doc. 4326, tomo VII, p. 544-548.

284 Mercedes AVELLANEDA. Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y asuncenos...


Referencias

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XVII. In: Memoria de Etnohistoria, F. de F. y L. U.B.A, 1999.
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la Revolución de los Comuneros. In: Historia Paraguaya Anuario de la Academia de la Historia,
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alcances y limitaciones (1649-1756). In: Estudos Ibero-Amercianos, PUCRS, v. XXXIII, n. 1, 2007.
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1955. v. V.
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- Anuario de la Academia de Historia del Paraguay, 1993. v. XXXII (II).
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GANDIA, Enrique de. Indios y conquistadores en el Paraguay. Buenos Aires: García Santos, 1931.
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Jesús. Barcelona: Gustavo Gili. 1931. tomo 1.
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cación y Evangelización. La experiencia de un mundo mejor, Córdoba, 2005
LOZANO, Pedro. Historia de las Revoluciones de la Provincia del Paraguay, 1721-1735. Buenos
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MAEDER, Ernesto J. A. ¿Pasividad Guaraní? Turbulencias y defecciones en las misiones jesuíticas
del Paraguay. In: CONGRESO JESUITA DE CÓRDOBA, FE Y JUSTICIA, 1991-1992, Córdoba, España.
Actas… Córdoba, 1991-1992.
______. Del Esplendor a la crisis. Las misiones de guaraníes entre 1734 y 1744. Temas de Historia
argentina y americana, julio/diciembre 2003. n. 3.
MORNER, Magnus. Actividades políticas y económicas de los jesuitas en el Río de la Plata.
Buenos Aires: Paidos, 1968.
PASTELLS, Pablo S. J. Historia de la Compañía de Jesús en la Provincia del Paraguay. Madrid,
1946. v. VII.

Documentos consultados

Colección de Documentos que contiene los sucesos tocantes a la segunda época de


las conmociones de los Regulares de la Compañía en el Paraguay y señaladamente la

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 265-286, jul./dez. 2013. 285


persecución que hicieron a Don José de Antequera y Casto. Va añadido en esta edición
el Informe de Don Matías Anglés y Gortari. Tomo III, 1769.
Cartas Anuas “no publicadas”. Años 1730-1743 del padre Pedro Lozano, traducidas del
latín por Carlos Leonhardt S.J. Instituto Anchietano de Pesquisas, Universidade do Vale
do Río dos Sinos (UNISINOS), Sao Leopoldo, Brasil.

Recebido em fevereiro de 2012


Aprovado para publicação em julho de 2012

286 Mercedes AVELLANEDA. Conflictos y disputas territoriais entre jesuitas y asuncenos...


Educação técnica e profissional em agropecuária:
o caso da Escola Municipal Agrícola Governador
Arnaldo Estevão de Figueiredo
Technical and professional education in agriculture:
the case of Municipal Agricultural School
Governador Arnaldo Estevão de Figueiredo
Tangria Rosiane Heradão*
Jefferson Carriello do Carmo**
* Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação
em Educação – Mestrado e Doutorado, da Universidade
Católica Dom Bosco.
E-mail: tangriaherradon_1@hotmail.com
** Professor/Pesquisador do programa de Pós-Graduação
em Educação – Mestrado e Doutorado, da Universidade
Católica Dom Bosco. Mestre e Doutor em Educação Aplica-
da às Ciências Sociais – UNICAMP. Pós-Doutor em História
Social do Trabalho – UNICAMP.
E-mail: jeffccprof@gmail.com

Resumo
O objetivo deste estudo é identificar, no plano legal, as políticas relacionadas à Educação Profissional
de Ensino Médio Integrado, no contexto da reforma do Estado brasileiro. Esse objetivo parte da seguinte
hipótese: a política pública do município de Campo Grande, MS, quando trata da implantação de políti-
cas educacionais de ensino médio integrado à educação profissional – técnico em agropecuária – visa
atender aos arranjos produtivos locais, formando profissionais para atender as novas formas de trabalho e
produção. Para atingir o objetivo proposto, o caminho percorrido foi o histórico-analítico em que adotamos
o procedimento da pesquisa documental.
Palavras-chave
Políticas Educacionais. Trabalho e Educação. Ensino Médio Integrado

Abstrat
The objective of this study was to identify the legal plan politics related to Integrated High School Vo-
cational Education, in the context of the Brazilian State’s reform. This objective departs of the following
hypothesis: the public policy of Campo Grande’s municipality, when dealing with the implementation of
educational policies of high school integrated into the professional education – agricultural technician,
aims to meet the local productive arrangements, forming professionals to meet the new forms of work
and production. To achieve the objective proposed the road traveled was the analytical history that we
adopted the procedure of documentary research.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 287-302, jul./dez. 2013
Key words:
Educational Politics. Work and Education. Integrated High School

Introdução Para atingir o objetivo proposto, o


caminho percorrido foi o histórico-analítico
O objetivo deste artigo é identificar, por meio da pesquisa documental.
no plano legal, as políticas que se relacio-
nam à Educação Profissional de Ensino Aspectos históricos e legais da
Médio Integrado, no contexto da reforma Educação Profissional de Ensino
do Estado brasileiro. Sob esse foco, selecio- Médio Integrado no âmbito municipal
namos e analisamos leis e decretos que
orientam a oferta de educação profissional
técnica de nível médio a partir dos anos Em março de 1996, no contexto das
de 1990. reformas do Estado brasileiro, o governo
No âmbito das legislações, verifica- Fernando Henrique Cardoso (FHC) enca-
se que a partir da Constituição Federal minhou ao Congresso Nacional o Projeto
(CF) de 1988 amplia-se a necessidade da de Lei (PL) n. 1.603/961, que já tramitava
discussão acerca das políticas públicas no Congresso desde antes da aprovação e
voltadas para a educação, sendo o ensino promulgação da Lei de Diretrizes e Bases
fundamental como obrigação dos entes (LDBEN)/96. O objetivo desse Projeto de
federais em que, a Constituição Federal Lei era implantar a reforma nas bases
integra o município como ente federativo conceituais e operacionais da política de
e amplia sua autonomia, conferindo-lhe o educação profissional. O documento mo-
poder de elaboração de sua lei orgânica. dificava radicalmente o ensino técnico ao
Com base nessa constatação, propusemos
situar o sistema municipal de ensino no 1
O PL n.1.603/96 foi um projeto de lei elaborado
contexto que também o constitui, discutin- pelo MEC; o ministro na época era o economista
do sucintamente o ordenamento normativo Paulo Renato de Souza, que propunha a reforma
vigente que permeia a sua existência, da educação profissional, principalmente, para a
no âmbito legal da reforma do ensino rede federal e correu paralela à fase final da LDBEN.
Pelo desgaste sofrido na época da discussão do PL,
profissionalizante, ressaltando algumas
o texto final da LDBEN foi aprovado, deixando o
transformações ocorridas. Destacamos, capítulo da referida lei bastante vago. O Ministério
ao final, a implantação da educação transformou o PL no decreto n. 2.208/97 que veio
profissional na Escola Municipal Agrícola dar materialidade ao PL n.1.603/96, cujo processo
Governador Arnaldo Estevão de Figueiredo, de tramitação passou por inúmeras dificuldades. O
que atende a formação geral e a educação decreto, portanto, concretizou a reforma da Educa-
ção Profissional que o texto da Lei de Diretrizes e
profissional (técnico em agropecuária), no Bases da Educação não havia realizado (GARCIA,
âmbito municipal. 2009, p. 33).

288 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
incorrer sobre: desarticulação do currículo tuiu a legislação de 25 anos anteriores3,
integrado (art.8), a uniformização do cur- trazendo avanços significativos: a inclusão
rículo (art. 11), currículos em módulos (art. da educação infantil como primeiro pas-
13), democratização de oportunidade (art. so da educação básica e a possibilidade
4), docentes da formação específica (art. de mudanças nos critérios de acesso às
16), a questão da autonomia (art. 25 a 29 universidades. Com a vigência da Lei n.
e 31 a 34) e a desobrigação do Estado com 9.394/96, sai de cena o PL n. 1.603/96, “com
a educação tecnológica (art. 6 e 32); dentre a justificativa de que ele não estaria em
outros aspectos separava obrigatoriamente consonância com a referida lei máxima da
o ensino médio da educação profissional. educação nacional” (OLIVEIRA, 2003, p. 54).
Dada à relevância das questões A LDBEN/964 definiu os fins e os
relacionadas à educação profissional, o meios da área educacional, incorporou
governo de FHC propôs a discussão do como objetivo da educação a preparação
referido projeto, com a sociedade, por meio e a qualificação para o trabalho. Esse do-
de audiências, simpósios, seminários e cumento delimita o seu objeto específico
encontros2. Entretanto o que se viu nas ao separar a educação informal da edu-
audiências públicas em todo país foi a cação escolar ou formal; afirma que “esta
rejeição de quase todas as propostas do lei disciplina a educação escolar, que se
Projeto de Lei. O PL n. 1.603/96 não agra- desenvolve, predominantemente, por meio
dou os interesses dos diversos segmentos do ensino, em instituições próprias” (§ 1o do
sociais – os estudantes, os professores, os art.1o) e que esta, por sua vez “deverá vin-
trabalhadores, os empresários, a igreja e os cular-se ao mundo do trabalho e à prática
movimentos sociais. Oliveira (2003) destaca social” (§ 2o do art. 1o). Percorrendo os dis-
que o PL n. 1.603/96 desprezou pesquisas positivos legais desse mesmo documento,
e trabalhos consistentes de educadores observa-se, no art. 2o, que a educação “tem
brasileiros que se dedicavam à educação por finalidade o pleno desenvolvimento do
profissional e que o governo preferiu a educando, seu preparo para o exercício
“consultoria dos experts do Banco Mundial, da cidadania e sua qualificação para o
do BID e da Universidade de Oklahoma” trabalho”. Salienta-se, ainda, que, no art.
(OLIVEIRA, 2003, p. 53). 3o, inciso XI, o ensino será ministrado no
A nova LDBEN (Lei n. 9.394/96) foi princípio da “vinculação entre a educação
aprovada no dia 17 de dezembro de 1996
e sancionada pelo Presidente FHC, no dia 3
A Lei n. 9.394/96 substituiu a Lei n. 5.692, de 1971.
20 de dezembro de 1996. Essa lei substi- 4
Foram introduzidas alterações na Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional n. 9.394/96 em
2
Seminário Nacional sobre “Ensino Médio: Constru- relação ao ensino fundamental, ao ensino médio
ção Política” e o Seminário Nacional de "Educação e à educação profissional, através da Lei n. 11.684,
Profissional - Concepções, Experiências, Problemas de 2 de junho de 2008 e pela Lei n. 11.741, de 16
e Propostas". de julho de 2008.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 287-302, jul./dez. 2013. 289


escolar, o trabalho e as práticas sociais”. A LDBEN/96 define como finalidade
Dessa forma, em seus três primeiros artigos, da educação básica “desenvolver o edu-
a LDBEN enfatiza a educação (formal) e cando, assegurar-lhe a formação comum
o trabalho, o que, entretanto, para Tuppy indispensável para o exercício da cidadania
(2007, p. 108), tal “consideração não traz e fornecer-lhe meios para progredir no
elementos realmente novos, uma vez que trabalho e em estudos posteriores” (art. 22).
nossa sociedade está estruturada a partir Essa finalidade constitui uma vinculação
de modelos de produção que envolvem o com o ensino médio. De acordo com Ramos
trabalho humano e livre”. (2004, p. 39) o art. 22 da LDBEN/96, “coloca
Em consonância com a Constituição o aprimoramento da pessoa humana como
Nacional, a LDBEN/96 reafirma a educação uma das finalidades da educação básica”,
como uma tarefa a ser partilhada entre os e acrescenta que “cumprir essa finalidade
Estados e Municípios, “em regime de cola- implicaria retirar o mercado de trabalho
boração, e com assistência da União” (§ 1o do foco do projeto educacional do ensino
do art. 5o); e mais: caso seja comprovada a médio e colocá-lo sobre os sujeitos”. De
negligência da autoridade competente, na acordo com a autora, esses sujeitos não
garantia do cumprimento do oferecimento são abstratos, não vivem isolados, mas
do ensino obrigatório (fundamental), pode- são sujeitos que possuem projeto de vida
rá ela responder por crime de responsabi- construído a partir das relações sociais, que
lidade (§ 4o do art. 5o). buscam a emancipação humana por meio
Com referência à organização da da coletividade, isto é, “que só pode ocorrer
na medida em que os projetos individuais
educação nacional, a LDBEN/96 ratifica o
entram em coerência com um projeto social
texto constitucional, pois determina, no art.
coletivamente construído” (idem, p. 39).
8, que “a União, os Estados, o Distrito Fede-
Pela LDBEN/96, no art. 10, inciso VI,
ral e os Municípios organizarão, em regime
o Estado deve assegurar o ensino funda-
de colaboração, os respectivos sistemas de
mental, além de oferecer, prioritariamente,
ensino” e incumbe a “União de elaborar
o ensino médio. A esse respeito, observe-se
o Plano Nacional de Educação (PNE), em
o que Cury (2002, p. 182) expõe:
colaboração com os Estados, o Distrito Fe-
deral e os Municípios” (art. 9o, inciso I). De Legalmente, então, o ensino médio
– gratuito no âmbito do ensino pú-
acordo com Silveira (2005, p. 66) esse texto
blico – deixou de ser independente
legal, ao retomar a ideia de um PNE – uma
do conjunto da educação básica,
antiga aspiração da sociedade brasileira –, compondo-se com ela e tornando-se
se bem “elaborado preencherá uma lacuna progressivamente obrigatório.
na implementação da tão desejada política
Assim, do ponto de vista jurídico,
nacional de educação, sustentada por uma consideradas as três funções clás-
filosofia educacional consistente e afinada sicas atribuídas ao ensino médio:
com o momento histórico atual”. a função propedêutica, a função

290 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
profissionalizante a função formativa, Há de se observar que, embora a Lei
é esta última que agora, conceitual n. 9.394/96 não tenha atribuído ao ensino
e legalmente, predomina sobre as médio o objetivo de profissionalização
outras. Legalmente falando, o ensino técnica, não tirou dele essa possibilidade.
médio não é como etapa formativa,
(TUPPY, 2007).
nem porta para o ensino superior
De acordo com a LDBEN/96, no § 2o
e nem chave para o mercado de
trabalho. Ele tem uma finalidade em do art. 36, Seção VI do Capítulo II, “o ensino
si, embora seja requisito tanto do médio, atendida a formação geral do edu-
ensino superior quanto da educação cando, poderá prepará-lo para o exercício
profissional de nível técnico. de profissões técnicas”5, ou seja, ele servirá
de habilitação profissional, ao mesmo tem-
Assim, a LDBEN/96 assegura o
po ou em continuidade à formação geral
ensino médio como a etapa conclusiva
do educando. O § 4o do mesmo artigo
da educação básica, tornando-o constitu-
estabelece que “a preparação geral para o
cionalmente gratuito, com duração de três
trabalho e, facultativamente, a habilitação
anos e com um mínimo de 2.400 horas/
profissional, poderão ser desenvolvidas
aula de 60 minutos de duração.
nos próprios estabelecimentos de ensino
Em relação às finalidades desse
nível da escolaridade, a LDBEN/96, em seu médio ou em cooperação com instituições
art. 35, preconiza o seguinte: especializadas em educação profissional”6,
fazendo jus ao art. 205 da CF no que diz
I – a consolidação e o aprofundamen- respeito ao preparo para a cidadania e a
to dos conhecimentos adquiridos no sua qualificação para o trabalho. Dessas
ensino fundamental, possibilitando o
deliberações, apreende-se que o ensino mé-
prosseguimento de estudos;
dio tem como objetivo precípuo o aprofun-
II – a preparação básica para o traba-
damento dos conhecimentos básicos que
lho e a cidadania do educando, para
continuar aprendendo, de modo a ser
se iniciaram no ensino fundamental e sua
capaz de se adaptar com flexibilidade articulação com o mundo produtivo. Por-
a novas condições de ocupação ou tanto a LDBEN deixou aberturas em pontos
aperfeiçoamento posteriores; polêmicos como a educação profissional,
III – o aprimoramento do educando possibilitando a regulamentação por meio
como pessoa humana, incluindo a do Decreto n. 2.208/97; de acordo com esse
formação ética e o desenvolvimento Decreto, a formação profissional só poderá
da autonomia intelectual e do pen- ser realizada pelo estudante ao término do
samento crítico; ensino médio ou simultaneamente a ele.
IV – a compreensão dos fundamentos
científico-tecnológicos dos processos
produtivos, relacionando a teoria com 5
Parágrafo revogado pela Lei n. 11.741, de 16 de
a prática, no ensino de cada discipli- julho de 2008.
na. (BRASIL, 1996, p. 24). 6
Idem.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 287-302, jul./dez. 2013. 291


De fato, foi o Decreto n. 2.208, de 17 que influenciaram na essência da educa-
de abril de 1997, e não a LDBEN, que ção profissional. Cabe destacar que, logo
efetivamente regulamentou a educa- após a publicação do Decreto n. 2.208/97,
ção profissional no Brasil, definindo-a entrou em vigor a Portaria n. 646/97 que,
como o ponto de articulação entre a
entre outras determinações, estipulava o
escola e o mundo do trabalho. Suas
prazo máximo de quatros anos para o
funções foram assim definidas: I) qua-
lificar, requalificar e reprofissionalizar cumprimento do decreto e regulamentava
trabalhadores em geral, independen- os artigos 39 a 42 do Decreto n. 2.208/97.
temente do nível de escolaridade que Esse decreto, por seu turno, regulamenta
possuam no momento de seu acesso; as disposições da LDBEN/96, os pontos
II) habilitar jovens e adultos para o polêmicos e contestados no PL 1.603/96,
exercício de profissões de nível médio referentes ao ensino profissional de nível
e de nível superior; e III) atualizar e médio, expostos no Capítulo III, seção V e
aprofundar conhecimentos tecno- define, em seu art. 1o e alíneas, os objetivos
lógicos voltados para o mundo do da educação profissional:
trabalho. Essas atribuições estariam
condensadas, respectivamente, nos Art. 1o A educação profissional tem
níveis básicos, técnico, e tecnológico por objetivos:
da educação profissional, prevendo-se, I – promover a transição entre a escola
ainda, cursos de atualização, aperfei- e o mundo do trabalho, capacitando
çoamento e especialização técnica. jovens e adultos com conhecimentos
(SOUZA; RAMOS; DELUIZ, 2007, p. 31). e habilidades gerais e específicas para
o exercício de atividades produtivas;
Desse modo, a educação voltada
II – proporcionar a formação de profis-
para o ensino técnico profissionalizante sionais, aptos a exercerem atividades
reforça a dualidade entre trabalho ma- específicas no trabalho, com esco-
nual e trabalho intelectual, mesmo com a laridade correspondente aos níveis
nova forma de abordagem de promoção médio, superior e de pós-graduação;
integral do cidadão em formação, incluída III – especializar, aperfeiçoar e atua-
na LDBEN/96. lizar o trabalhador em seus conheci-
No âmbito da educação profissio- mentos tecnológicos;
nal, sob o argumento de regulamentar a IV – qualificar, reprofissionalizar e atu-
LDBEN/96, o governo editou o Decreto n. alizar jovens e adultos trabalhadores,
2.208/97, atribuindo ao ensino técnico e com qualquer nível de escolaridade,
profissional uma organização própria e in- visando à sua inserção e melhor de-
dependente. Essas duas leis disciplinaram sempenho no exercício do trabalho.
as bases da reforma do ensino profissional (BRASIL, 1997a).
no Brasil. Assim, o Decreto n. 2.208/97 va- Assim, é importante ressaltar que
leu-se da Medida Provisória 1.549/97 e da os objetivos da educação profissional,
Portaria 646/97, acarretando modificações definidos pelo Decreto n. 2.208/97 e pela

292 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
Portaria n. 646/97, revelam o imediatismo, Com a eleição de Luiz Inácio Lula da
carregados de uma concepção econômica Silva, em 2003, as críticas da reforma da
de educação. Dessa forma, a educação educação profissional, da qual o Decreto n.
profissional é vista como um treinamento 2.208/97 é parte, ganharam força política
para o mercado de trabalho ao incentivar o ocorrendo a sua revogação pelo Decreto
trabalhador a competir por oportunidades n. 5.154, de 23 de julho de 2004. Esse
de trabalho, portanto a formação integral decreto garante novamente a educação
é praticamente inexistente. De acordo com técnica vinculada à educação básica no
Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005), historica- ensino médio, instituindo as formas como
mente, as políticas voltadas para o ensino se dará essa articulação, que pode ser
médio têm sido estabelecidas em torno ofertada de forma integrada, concomitante
da relação capital e trabalho, atendendo, ou subsequente. Frigotto, Ciavatta e Ramos,
em geral, aos interesses do mercado, con- (2005) assinalam que, em 23 de julho de
sequentemente, aos interesses do capital. 2004, atendendo em parte às pressões e
O Decreto n. 2.208/97 foi importante buscando cumprir os compromissos de
por abrir a possibilidade de estabelecer a campanha, o governo do presidente Lula
integração entre o ensino médio e a edu- da Silva revogou, com ato do Poder Exe-
cação profissional, promover a extinção do cutivo, o Decreto n. 2.208/97, propiciando
nível básico, que era criticado por aceitar novamente a articulação entre o ensino
alunos sem qualquer escolaridade e de- médio e o ensino técnico, por meio do De-
terminar a eliminação do ensino modular creto n. 5.154/2004. Esse Decreto passou,
que fragmentava e conferia um caráter então, a regulamentar o art. 36 do § 2o e
pontual ao ensino. os arts. 39 a 42 da LDBEN n. 9394/96, e,
Posteriormente, ao discutir sobre as consequentemente, revogou o Decreto n.
perspectivas sociais e políticas da formação 2.208/97, definindo novas orientações para
de nível médio, Frigotto e Ciavatta (2011, p. a educação profissional referentemente
626) reforçam que a revogação do Decreto aos níveis dessa modalidade de educação,
n. 2.208/97 pelo Decreto n. 5.154/04 “con- que passou a se configurar do seguinte
trariou os termos da Lei, e é uma síntese modo:
emblemática do ideário da educação para
Art. 1o A educação profissional, previs-
o mercado, separando o ensino médio da
ta no art. 39 da Lei n. 9.394, de 20 de
educação profissional”. Acentuam, ainda, dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes
que a educação profissional determinada e Bases da Educação Nacional),
pelo Decreto n. 5.154/04 também responde observadas as diretrizes curriculares
aos interesses dos setores governamentais, nacionais definidas pelo Conselho
ao diminuir a demanda para o ensino Nacional de Educação, será desenvol-
superior, e, também, do setor produtivo, ao vida por meio de cursos e programas
realizar capacitação rápida dos trabalhado- de: I – formação inicial e continuada
res para inseri-los no mercado de trabalho. de trabalhadores;

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 287-302, jul./dez. 2013. 293


II – educação profissional técnica de pertencentes aos setores da economia
nível médio; e e promover, simultaneamente, a ele-
III – educação profissional tecnológica vação da escolaridade dos trabalha-
de graduação e de pós-graduação. dores. (idem p. 14).
(BRASIL, 2004). Nota-se, com a arguição desses au-
A formação inicial, para Frigotto, tores, que seria importante que a educação
Ciavatta e Ramos (2005), refere-se aos profissional obtivesse aprovação legal por
cursos que iniciam os trabalhadores numa meio de certificação escolar reconhecida
área profissional como uma primeira pelos Ministérios da Educação e do Tra-
formação; já a formação continuada diz balho. Desse modo, seria vinculada a pro-
respeito a todas as outras experiências cessos regulares de ensino e, consequen-
de formação que o trabalhador adquiriu temente, reconhecida e considerada pelas
após sua primeira formação profissional, empresas, nas negociações de trabalho.
tais como especialização, aperfeiçoamento, O Decreto n. 5.154/04 garante no-
aprimoramento profissional, dentre outros, vamente a educação técnica vinculada à
podendo ser na mesma área profissional educação básica no ensino médio, insti-
ou em áreas diferentes. tuindo uma nova configuração no que se
O Decreto n. 5.154/04 preconiza, em refere às formas pelas quais a educação
seu art. 2o, que a educação profissional profissional técnica de nível médio e o
observará as seguintes premissas: ensino médio serão ofertados, conforme
determina o art. 4o:
I – organização, por áreas profissio-
nais, em função da estrutura sócio- I – integrada, oferecida somente a
ocupacional e tecnológica; quem já tenha concluído o ensino
fundamental, sendo o curso plane-
II – articulação de esforços das áreas
jado de modo a conduzir o aluno à
da educação, do trabalho e emprego, e habilitação profissional técnica de
da ciência e tecnologia. (BRASIL, 2004). nível médio, na mesma instituição
Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005), ao de ensino, contando com matrícula
analisarem as preocupações que subjazem única para cada aluno;
às premissas descritas no art. 2o, não es- II – concomitante, oferecida somente
condem a conotação ideológica do Decreto, a quem já tenha concluído o ensino
em relação à empregabilidade socialmente fundamental ou esteja cursando o
ensino médio, na qual a complemen-
disseminada. Todavia afirmam que:
taridade entre a educação profissional
[...] a qualificação e a requalifica- técnica de nível médio e o ensino
ção, seja na forma de cursos ou de médio pressupõe a existência de
módulos, deveriam ser organizadas matrículas distintas para cada curso,
de modo a construir itinerários podendo ocorrer:
formativos correspondentes às dife- a) na mesma instituição de ensino,
rentes especialidades ou ocupações aproveitando-se as oportunidades

294 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
educacionais disponíveis; eixo estruturador, de acordo com Gomes e
b) em instituições de ensino distintas, Sobrinho (2006, p. 8), “a flexibilidade e não
aproveitando-se as oportunidades parece pretender romper com a institucio-
educacionais disponíveis; ou nalidade construída na reforma anterior”.
c) em instituições de ensino distintas, Para Carmo (2010, p. 12), todavia
mediante convênios de intercomple- O Decreto n. 5.154/04 garante nova-
mentaridade, visando ao planejamen- mente a educação técnica vinculada
to e ao desenvolvimento de projetos à educação básica no ensino médio
pedagógicos unificados; do país, instituindo as formas como
III - subsequente, oferecida somente se dará essa articulação. Ao assegurar
a quem já tenha concluído o ensino o cumprimento da formação geral e
médio. (BRASIL, 2004). da preparação técnica, com a am-
Pode-se constatar, com a análise pliação da carga horária do curso, e
desse artigo, que o Decreto n. 5.154/04 não priorizar a formação técnica em
detrimento da formação básica.
contempla a articulação entre o ensino
médio e a educação profissional de nível A revogação do Decreto n. 2.208/97
técnico já existente na reforma anterior, possibilitou o restabelecimento de integra-
nas formas subsequente e concomitante, ção curricular dos ensinos médio e técnico;
e inclui mais uma possibilidade, a forma entretanto, para superar a fragmentação
integrada. Na argumentação de Frigotto, da formação profissional de nível médio,
Ciavatta e Ramos (2005), aspirava-se com levará algum tempo, segundo Tuppy (2007,
o Decreto n. 5.154/04 a que a política p. 114): “a ausência de uma política pública
de integração fosse uma prioridade do que dê conta de integrar programas isola-
Ministério da Educação, que articularia a dos e contingentes que têm caracterizado
concepção de ensino médio e educação as iniciativas de formação profissional, em
profissional sob os princípios do trabalho, detrimento de um projeto mais amplo”.
da ciência e da cultura.
Entretanto, apesar das alterações O Ensino Médio Integrado à Educação
pontuais promovidas, o “novo” decreto Profissional: técnico em agropecuária
não modifica substancialmente o desenho na Escola Municipal Agrícola Gover-
operacional da educação profissional im- nador Arnaldo Estevão de Figueiredo
presso pelo decreto de 1997, muito embora
agregue às modalidades de articulação Este tópico tem como objetivo
anteriormente previstas (concomitante e analisar alguns dos aspectos legais da
sequencial) outra possibilidade de articu- implantação do Ensino Médio Integrado à
lação entre o ensino médio e a educação Educação Profissional, na Escola Municipal
profissional, que passa a ser chamada de Agrícola Governador Arnaldo Estevão de
ensino médio integrado. Pode-se inferir Figueiredo, com habilitação de “Técnico
que o Decreto n. 5.154/04 possui como em Agropecuária”, no município de Campo

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 287-302, jul./dez. 2013. 295


Grande, estado de Mato Grosso do Sul, no que a educação escolar deverá vincular-se
período de 2003-2010. Ressalta-se que ao mundo do trabalho e à prática social;
essa escola está inserida na educação há respaldo, ainda, nos objetivos contidos
básica, na modalidade de ensino – Edu- no art. 36, § 2o, que estabelece que “o
cação do Campo. ensino médio, atendida à formação geral
Como visto anteriormente, no cam- do educando, poderá prepará-lo para o
po da educação profissional, a revogação exercício de profissões técnicas”. O art. 40
do Decreto n. 2.208/97 pelo Decreto n. da mesma lei determina que a “educação
5.154/2004 proporcionou uma mudança profissional será desenvolvida em articula-
nessa modalidade de ensino, ao gerar a ção com o ensino regular ou por diferentes
possibilidade da integração curricular entre estratégias de educação continuada, em
o ensino médio e a educação profissional instituições especializadas ou no ambiente
técnica. O Decreto n. 5.154/2004 oportuni- de trabalho”.
zou, por meio da organização do trabalho Nessa perspectiva, o Referencial
escolar, experiências educativas e a pre- Curricular da Educação Básica da Rede
paração profissional. Nessa perspectiva, Estadual de Ensino de Mato Grosso do
esse decreto prevê que uma das formas Sul, considera que
de articulação entre a educação básica e [...] a articulação entre educação pro-
a educação profissional técnica de nível fissional e ensino médio, a vinculação
médio é a forma integrada, ou seja, com- entre educação escolar e mundo do
preende a matrícula como único curso, com trabalho encontra-se amparada pelo
proposta pedagógica, proposta curricular e Decreto n. 5.154/2004, que preconiza
matrícula única, contemplando formação a oferta de educação profissional
geral e formação profissional unificadas. nas formas integrada, concomitante/
A modalidade ensino médio integra- ou subsequente à educação básica.
(MATO GROSSO DO SUL, 2012, p. 24).
do à educação profissional é respaldada
no art. 205 da Constituição Federal (CF), em Vale destacar que a política do
que a educação é “direito de todos e dever ensino médio, voltada para a educação
do Estado e da família, será promovida e profissional no estado de Mato Grosso do
incentivada com a colaboração da socie- Sul (MS), foi empreendida pela Secretaria
dade, visando ao pleno desenvolvimento de Educação de Estado (SEE), durante a
da pessoa, seu preparo para o exercício gestão do governador José Orcírio Miranda
da cidadania e sua qualificação para o dos Santos, no período de 1999 a 2006, e
trabalho”. No art. 227, a CF define a pro- teve como objetivo garantir a educação
fissionalização como um dos deveres da como direito de todos, como fator de de-
família, da sociedade e do Estado a ser senvolvimento social e econômico e como
assegurado com absoluta prioridade. Tam- instrumento de inclusão social.
bém no sentido de explicitar essa conexão, O governo do Estado de Mato Gros-
a LDBEN/96, estabelece, no art. 1o, § 2o so do Sul, por meio do Plano Estadual de

296 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
Educação de Mato Grosso do Sul (MS, normatização pelo sistema de ensino
2004), trata a educação profissional como de Mato Grosso do Sul, a educação
uma política educacional vinculada a uma profissional adquiriu identidade e
espaço no contexto educacional do
política de geração de renda e trabalho.
Estado.
Isso significa preparar para a vida, quali-
Antes, a oferta da verdadeira edu-
ficar para a cidadania e capacitar para o
cação profissional, que preparava o
aprendizado permanente, seja no prosse- egresso para o mercado de trabalho,
guimento dos estudos, seja no mundo do era realizada no âmbito de apenas al-
trabalho (BRASIL, 2000, p. 9). Carmo (2012), gumas instituições específicas. Hoje, é
ao discutir sobre as ações do governo aberta a todos os estabelecimentos de
do Estado de Mato Grosso do Sul para o ensino que apresentem as condições
crescimento industrial no segundo setor requeridas para tanto e está voltada
e a educação profissional, mostra que, para o atendimento às demandas
no Plano Estadual de Educação de Mato localizadas, mediante cursos de edu-
Grosso do Sul (MS, 2004), a educação para cação profissional. Contudo, trata-se
o trabalho esteve contextualizada dentro atualmente neste Estado de prerro-
gativa das instituições privadas, uma
da nova ordem legislativa da educação
vez que o poder público tem revelado
profissional sem, contudo, perder de vista timidez com relação à atuação nesse
as características econômicas, sociais e de campo educacional, o que, de certa
parcerias entre os setores públicos esta- maneira, tem ocasionado restrições
duais, municipais como também com os de atendimento e constituído aspecto
organismos não governamentais. inibidor ao acesso de significativo
De acordo com o Plano Estadual de contingente de jovens e adultos a
Educação de MS (MS, 2004, p. 39): essa formação.
[...] Em Mato Grosso do Sul, até 1996, Na citação acima, podemos observar
a formação profissional fora tratada que o Estado reconhece as dificuldades re-
no interior dos cursos de ensino de lativas à educação profissional e apresenta,
2o Grau, conferindo aos concluintes para a sociedade sul-mato-grossense, os
habilitações específicas como as de procedimentos que orientam para uma
Magistério de 1o Grau e Técnico em
oferta de qualidade a ponto de correspon-
Contabilidade. Este procedimento foi
der aos anseios e interesses da demanda
adotado maciçamente pelas escolas,
desprovido, entretanto, da intenção de emergente dessa modalidade de educa-
promover a profissionalização, mas ção. Nesse sentido, o Estado buscou, na
tão somente para dar cumprimento esfera educacional, por meio das ações
à determinação legal da época. do governo estadual, “adequar as políticas
A partir da vigência da Lei de Dire- educacionais tanto no que se refere às
trizes e Bases da Educação Nacional necessidades do desenvolvimento econô-
nº 9.394, de 1996, e da conseqüente mico quanto aos aspectos operacionais de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 287-302, jul./dez. 2013. 297


treinamento para o exercício da mão de instituições do Sistema Municipal
obra qualificada” (CARMO, 2012, p. 104). de Ensino observará o disposto no
Na Lei Orgânica do Município de Decreto n. 5.154/2004, na Deliberação
Campo Grande (1990), a educação pro- CME/MS n. 254/2003 e na presente
fissional é tratada no Capítulo VI – Da Deliberação.
Educação, da Cultura e do Desporto, na Art. 2o O curso de Educação Profissio-
Seção I – Da Educação, no art. 170, inciso nal Técnica de Nível médio deverá ser
II, indicando que essa modalidade educa- oferecido de forma integrada como
único curso, com proposta pedagógica,
cional é prerrogativa do Estado, entretanto
proposta curricular e matrícula única.
o município poderá atuar no 2o grau,
excepcionalmente, em áreas de formação No final de 2005, atendendo a vá-
profissional, havendo carência de mão rias solicitações dos pais dos alunos e da
de obra, assim este ensino passa a ser, comunidade de Três Barras, o Conselho
também, de sua responsabilidade. Com Municipal Educação (CME) autorizou, e
essa prerrogativa, a Prefeitura Municipal de a Prefeitura Municipal de Campo Grande
Campo Grande assumiu o ensino médio implantou o curso de Educação Profissio-
integrado à educação profissional – técni- nal (Técnico em Agropecuária) Integrado
co em agropecuária na Escola Municipal ao Ensino Médio, visando dar continuidade
Agrícola Governador Arnaldo Estevão de ao estudo para os alunos que termina-
Figueiredo. vam o 8o ano do ensino fundamental,
No Município de Campo Grande, oportunizando a qualificação profissional,
MS, o Curso Profissional (Técnico em garantindo o acesso para o mercado de
Agropecuária) Integrado ao Ensino Médio trabalho. No dia 26 de janeiro de 2006, foi
foi autorizado por meio da Deliberação aprovado, por meio da Deliberação CME/
CME/MS n. 475, de 19 de dezembro de MS n. 476, de 26 de janeiro de 2006, o
2005, sendo vinculado à Escola Municipal Plano de Curso:
Agrícola Governador Arnaldo Estevão de Art. 1o Fica aprovado o Plano de
Figueiredo, criada através da Lei n. 3.291 de Curso, autorizado o funcionamento
08 de novembro de 1996, implantada em do Curso de Educação Profissional
1997, para atender à demanda da região Técnica de Nível Médio integrada ao
de Três Barras. A Deliberação CME/MS n. Ensino Médio – Técnico em Agrope-
475, de 19 de dezembro de 2005, estabe- cuária e credenciada à Escola Muni-
lece normas para a educação profissional cipal Agrícola Gov. Arnaldo Estevão
técnica de nível médio nas instituições de de Figueiredo, de Campo Grande-MS,
ensino do sistema municipal de ensino de para oferecer essa etapa de ensino
Campo Grande, MS, deliberando: pelo prazo de cinco anos, a partir de
2006. (CAMPO GRANDE, 2006, p. 14).
Art.1o A oferta de cursos e progra-
mas de Educação Profissional em A Escola Municipal Agrícola Go-
articulação com o Ensino médio nas vernador Estevão de Figueiredo, em seu

298 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
Projeto Político Pedagógico (PPP) (CAMPO graças à qualificação técnica de nível
GRANDE, 2008, p. 119) destaca: média, adquirida. (idem, p. 119).
[...] tendo em vista as considerações Nesse sentido, a escola ressalta, em
dos Referenciais Curriculares Nacio- seu PPP, que está atenta às mudanças da
nais da Educação Profissional de Nível sociedade e demonstra visão crítica do
Técnico (RCNEP), do Parecer CEB/CNE que acontece à sua volta; entende que a
n. 16/99, que entende a educação pro- educação não pode se resumir à formação
fissional técnica de nível médio como
intelectual, mas à valorização, também, do
expressão dos valores estéticos, políti-
desenvolvimento integral para o sucesso
cos e éticos comuns aos da educação
básica, numa dimensão formativa; do no mundo do trabalho. A unidade escolar
Decreto n. 5.154/04 que prevê várias oferece a seus alunos a possibilidade de
alternativas entre o ensino médio e o receber a formação articulada e integrada
ensino técnico, sendo a principal delas ao ensino médio, a qualificação profissio-
a integração entre ambos, resgatando nal de nível técnico em agropecuária.
a chance dos estudantes saírem desta
fase do ensino com qualificação pro- Considerações finais
fissional que possibilite disputar uma
oportunidade no mercado de trabalho; O trabalho teve como objetivo geral
a demanda reprimida existente na Es- identificar, no plano legal, as políticas que
cola Municipal Agrícola Gov. Arnaldo relacionam a Educação Profissional de
Estevão de Figueiredo, resultante da Ensino Médio Integrado, no contexto da
pré-qualificação oferecida aos alunos reforma do Estado brasileiro. Para tanto,
do Ensino Fundamental (séries finais) selecionaram-se e analisaram-se leis e de-
e, especialmente, a região onde está
cretos que orientam a oferta de educação
instalada a unidade escolar, propõe
profissional técnica de nível médio a partir
oferecer o Curso Educação Profissio-
nal Técnica de Nível Médio integrada dos anos de 1990.
em Agropecuária na mesma escola a Observaram-se as formulações e
seus alunos. implantações das políticas que relacionam
a educação profissional de ensino médio
Acrescenta: integrado, no contexto da reforma do Esta-
O Ensino Médio implantado na Escola do brasileiro. Sob este foco, analisaram-se
Municipal Agrícola Governador Este- a LDBEN/96 e os Decretos n. 2.208/1997
vão de Figueiredo tem por finalidade e n. 5.154/0, que discutem as políticas pú-
atender duas exigências fundamen- blicas de educação que orientam a oferta
tais: ter uma sólida formação geral de educação profissional técnica de nível
e uma boa educação profissional.
médio integrada ao ensino médio a partir
Nesse aspecto, o estudante poderá
escolher entre usar o ensino médio dos anos de 1990.
como trampolim para a universida- Verificou-se que o Decreto n. 2.208/97
de ou para o mercado de trabalho, separava o ensino médio da educação

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 287-302, jul./dez. 2013. 299


profissional e evidenciava a educação a apropriação dos fundamentos científicos
para o mercado de trabalho. A formação e tecnológicos dos processos produtivos e
profissional, de acordo com esse decreto, das relações sociais de produção.
só era cursada pelo estudante ao término Verificou-se, ainda, aqui, no âmbito
do ensino médio ou simultaneamente do processo de emancipação dos municí-
a ele, fato que dificultava o ingresso do pios em nosso país no campo educacional,
estudante em cursos superiores. Em 2004, a constituição de sistemas locais de ensino
esse decreto foi revogado pelo Decreto n. relativamente autônomos em relação aos
5.154/04 e reintroduziu o ensino médio estados e à União. Relativamente ao pal-
integrado à educação profissional. Dessa co da educação profissional, constata-se
forma, pode-se constatar que as políticas que a comuna de Campo Grande, MS
voltadas para o ensino médio foram de- assumiu a educação profissional (técnico
finidas pela classe dominante brasileira, em agropecuária) integrada ao ensino
sendo estabelecidas em torno da relação médio em uma escola da REME, para
capital e trabalho. atender à demanda da região de Três
Nesse sentido, a educação profis- Barras, incluindo propostas de aumento
sional, ao longo dos anos de 1990, no de escolaridade dos trabalhadores tendo
contexto da reforma do Estado e das em vista as mudanças que vêm ocorrendo
mudanças no processo de produção e no município quanto à oferta de trabalho,
trabalho, passou por significativa transfor- por conta das transformações oriundas das
mação, haja vista que o fato mais signi- novas formas de produção, e o aumento
ficativo expressou-se na separação entre das novas tecnologias empregadas no
o ensino médio e o ensino profissional, processo de produção. Diante disso, é
passando ambos a possuírem organiza- possível afirmar que, historicamente, as
ção e currículos próprios e independentes, políticas voltadas para o ensino médio têm
propiciando a formulação de propostas de sido estabelecidas em torno da relação
educação de ensino médio integrado à capital e trabalho, atendendo, em geral, aos
educação profissional–técnica, ou seja, a interesses do mercado, consequentemente
concepção de formação assumida implica aos interesses do capital.

Referências

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Recebido em setembro de 2013


Aprovado para publicação em novembro de 2013

302 Tangria Rosiane HERADÃO; Jefferson Carriello do CARMO. Educação técnica e profissional...
A participação de professores indígenas na imple-
mentação da Política Nacional de Gestão Territorial
e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) no Brasil
The participation of indigenous teachers in the
implementation of the National Policy of Territorial
and Environmental Management of Indigenous
Territories (PNGATI) in Brasil
Fabiana Pereira de Souza*
Heitor Queiroz de Medeiros**
Elias dos Santos Bigio***
* Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências
Ambientais da Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT). E-mail: fabiagronomia@hotmail.com
** Doutor em Ciências – Ecologia e Recursos Naturais pela
UFSCar. Professor no Programa de Mestrado e Doutorado
em Educação (UCDB) e no Programa de Pós-Graduação
em Ciências Ambientais da Universidade do Estado de
Mato Grosso (UNEMAT). E-mail: heitor.medeiros@ucdb.br
*** Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB).
Técnico da Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
E-mail: eliasbigio@uol.com.br

Resumo
Essa pesquisa desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (Mestrado),
da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), busca analisar em que medida a Política Nacional
de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), instituída através do Decreto Presidencial
n. 7.747/2012, vem sendo implementada nas terras indígenas no Brasil, contribuindo com a proteção dos
territórios de reconhecido valor cultural e ambiental, face às mudanças decorrentes da política de ocupação
do solo no Brasil. Um dos focos dessa análise se dá junto aos professores indígenas alunos na Faculdade
Indígena Intercultural da UNEMAT, Campus de Barra do Bugres, MT. A metodologia utilizada para levantamento
e análise dos dados envolveu procedimentos e técnicas de pesquisa quali-quantitativa, através da pesquisa
exploratória e de análise documental. Como resultado parcial, percebe-se que os professores indígenas
reconhecem a PNGATI como um instrumento importante para a gestão territorial de suas áreas, contudo
verifica-se a necessidade de maior participação destes na implementação dessa política, pois a participação
efetiva dos povos indígenas é essencial para que os objetivos propostos na PNGATI sejam cumpridos.
Palavras-chave
Áreas indígenas. Professores indígenas. Gestão territorial e ambiental.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 303-318, jul./dez. 2013
Abstract
This research was developed in the Pos – graduation program of Environmental Science (Master), in
the Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT). It intends to analyse how the National Police of
Territorial and Environmental Management of Indigenous Lands (PNGATI), instituted by the Presidential
Decree n. 7.747/2012 has been implemented on indigenous lands in Brazil, contributing for the protection
of the territories with an environmental and cultural value internationally recognized, due to changes in
the soil occupation police in Brazil. One of the focuses of this analyze is with indigenous teachers that are
students in the Faculdade Indígena Intercultural of UNEMAT, Campus Barra do Bugres, MT. The methodol-
ogy used for the data collection and data analysis involved qualitative and quantitative techniques and
procedures, through exploratory research and documental analyses. As a partial result it´s possible to notice
that indigenous teachers recognize PNGATI as an important instrument for the territorial management of
their areas, but it has been verified the need of a more expressive participation of the indigenous people
in the implementation of this police in order to reach the objectives proposed in PNGATI.
Key words
Indigenous areas. Indigenous teachers. Territorial and environmental management.

Introdução genas, das entidades indígenas e indige-


nistas, do poder pública federal, com foco
Este trabalho é resultado parcial na Fundação Nacional do Índio (FUNAI,
da pesquisa desenvolvida no âmbito do Ministério do Meio Ambiente ((MMA) e
Programa de Pós-Graduação em Ciências Instituto Chico Mendes de Biodiversidade
Ambientais (PPGCA), em nível de Mestra- (ICMBio), de agências de cooperação inter-
do, na Universidade do Estado de Mato nacional, do órgão ambiental do Estado de
Grosso (UNEMAT), buscando analisar em Mato Grosso, e da comunidade científica,
que medida os professores indígenas que na articulação e na efetiva implementação
são discentes na Faculdade Indígena dessa política, , buscando entender se a
Intercultural da UNEMAT, participaram da referida política tem trazido resultados na
construção e participam da implementação consolidação de um modelo de gestão
da Política Nacional de Gestão Territorial territorial que efetivamente garanta os
e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), direitos dos povos indígenas no Brasil ao
instituída através do Decreto Presidencial uso das Terras Indígenas (TI).
n. 7.747/2012, e que vem sendo implemen- Um dos focos dessa análise se dá
tada nas terras indígenas no Brasil, com o junto aos professores indígenas alunos
objetivo de contribuir com a proteção dos na Faculdade Indígena Intercultural da
territórios de reconhecido valor cultural e UNEMAT, Campus de Barra do Bugres,
ambiental, face às mudanças decorrentes MT. Para compreender como tem sido o
da política de ocupação do solo no Brasil, envolvimento desses professores indígenas
que são as Terras Indígenas (TI). na implementação dessa política, foram
A pesquisa, em sua totalidade, busca realizadas entrevistas com 57 professores,
investigar o envolvimento dos povos indí- sendo 11 mulheres e 46 homens, de 29

304 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
etnias, 23 terras indígenas, atuando em 41 constitui o território de um povo indígena,
escolas indígenas em 42 aldeias. englobando os seus saberes tradicionais e
Os professores indígenas entrevista- suas práticas quanto ao uso dos recursos
dos nessa fase da pesquisa pertencem às naturais e da biodiversidade, considerando
etnias Tapayuna, Cinta Larga, Suruí, Me- ainda a dimensão dos mecanismos, dos
bengokre, Terena, Pareci, Trumai, Umutina, processos e das instâncias culturais de
Mehinako, Kalapalo, Nambikuara, Yawala- decisão relacionados aos acordos de uso
piti, Munduruku, Rikbaktsa, Karajá, Kuiruro, e os consensos internos próprios de cada
Apiaká, Kayabi, Waurá, Tapirapé, Xavante, povo, e que são necessários para a busca
Chiquitano, Juruna, Bororo, Kamayurá, da sustentabilidade ambiental das terras
Myky, Suyá, Bakairi e Ikpeng e foram en- indígenas.
trevistados durante a etapa intermediária,
no mês de julho de 2013, da Faculdade 1 Material e métodos
Indígena Intercultural da UNEMAT.
A Faculdade Indígena Intercultu- A presente pesquisa está estruturada
ral da Universidade do Estado de Mato a partir da metodologia quali-quantitativa,
Grosso (UNEMAT) foi aprovada como tal, em que, segundo Godoi et al. (2006), o in-
em 2008, pelo Congresso Universitário teresse do pesquisador está voltado para o
dessa IES, mas suas atividades iniciaram entendimento de um determinado proces-
efetivamente em 2001, com o primeiro ves- so social e para as relações estabelecidas
tibular para a primeira turma dos cursos de entre as variáveis.
licenciaturas específicos para a Formação Enquadra-se também nos preceitos
de Professores Indígenas, na campus da da pesquisa exploratória, que, segundo
UNEMAT em Barra do Bugres, MT. Gil (2007), tem como objetivo o estudo
O decreto presidencial n. 7.747/2012 sobre o problema, com vistas a torná-lo
instituiu a PNGATI, que tem o objetivo de mais explícito, envolvendo os seguintes
garantir e promover a proteção, a recupe- procedimentos: revisão bibliográfica e
ração, a conservação e o uso sustentável levantamento em fontes escritas sobre o
dos recursos naturais das terras e territó- PNGATI, aplicação de um questionário com
rios indígenas, assegurando a integridade pessoas que possuem experiências com
do patrimônio indígena, a melhoria da relação ao problema pesquisado e, no caso
qualidade de vida e as condições plenas desse artigo, com os professores indígenas
de reprodução física e cultural das atuais que estudam na Faculdade Indígena Inter-
e futuras gerações dos povos indígenas, cultural da UNEMAT, além de entrevistas
respeitando sua autonomia sociocultural, que foram gravadas e transcritas conforme
nos termos da legislação vigente. A gestão recomendações de Minayo (1993, p. 69),
territorial e ambiental de terras indígenas que ressalta a importância do registro
é entendida aqui como um conjunto de fidedigno “para ter uma boa compreensão
domínio político e simbólico do espaço que do grupo ou da coletividade estudada”.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 303-318, jul./dez. 2013. 305


Também foram desenvolvidas ativi- XX, empreendida essencialmente para a
dades de análise documental que, segun- consolidação de povoamentos urbanos,
do Ludke e André (1986, p. 39), constituiu expansão do agronegócio e da produção
uma fonte “natural” de informação, pos- primária, novos desafios são observados
suindo grande importância em trabalhos atualmente com relação ao fortalecimen-
científicos. to da diversidade cultural indígena e da
Os professores indígenas, que segurança e manutenção das áreas não
responderam ao questionário e também desmatadas ainda existentes no país.
foram entrevistados, foram alunos e alunas Inúmeros dispositivos legais foram
que estudam nas Licenciaturas Intercul- criados pelo governo brasileiro com o intui-
turais Indígenas da UNEMAT, no campus to de criar mecanismos capazes de assegu-
de Barra do Bugres (MT), de 29 etnias, rar a proteção de áreas que possuem valor
distribuídos em uma a quatro pessoas por biológico, cultural, histórico, turístico, dentre
etnia e totalizando 57 indivíduos. As etnias outros, nas quais se incluem as terras
entrevistadas foram Tapayuna, Cinta Larga, indígenas; todavia a falta de instrumentos
Suruí, Mebengokre, Terena, Pareci, Trumai, legais eficazes, bem como a inaplicação
Umutina, Mehinako, Kalapalo, Nambi- dos instrumentos existentes, na defesa dos
kuara, Yawalapiti, Munduruku, Rikbaktsa, direitos socioambientais, as políticas gover-
Karajá, Kuiruro, Apiaká, Kayabi, Waurá, Ta- namentais poucos resultados conseguiram
pirapé, Xavante, Chiquitano, Juruna, Bororo, na efetivação desses objetivos.
Kamayurá, Myky, Suyá, Bakairi e Ikpeng. Em 5 de junho 2012, o aparato
Para o tratamento e análise do jurídico brasileiro foi reforçado nesse
material empírico e documental, foram sentido através do Decreto Presidencial n.
seguidas as etapas indicadas por Minayo 7.747/2012, que institui a Política Nacional
(op cit.): ordenação, classificação e análise de Gestão Territorial e Ambiental de Terras
propriamente dita dos dados. Após o levan- Indígenas (PNGATI), configurando-se como
tamento em fontes bibliográficas, ocorreu a um instrumento criado para assegurar
coleta de materiais no trabalho de campo, dentre outros objetivos, a conservação
colocando-se em ordem essas informações, ambiental e a permanência de áreas não
selecionadas conforme o grau de relevân- desmatadas em território brasileiro.
cia e assunto, para análise e interpretação Além disso, a PNGATI serve como
na forma de texto e artigo científico. um mecanismo capaz de possibilitar a
manutenção da diversidade cultural ao
2 Resultados e discussões garantir que os indígenas desfrutem de
um território que lhes permita o exercício
Face às mudanças socioambientais de um modo de vida próprio e recursos
decorrentes da política de ocupação e uso necessários a sua sobrevivência, assim
do solo, desenvolvidas a oeste do territó- como surgiu pela necessidade de fortalecer
rio brasileiro, a partir do início do século e reafirmar os direitos indígenas e depende

306 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
também do engajamento de diferentes Como resultado parcial dos dados
atores sociais. levantados, verificou-se que 32 professores
No sentido de entender em que indígenas, ou seja, 56,14% dos entrevista-
medida os povos indígenas participaram dos, conhecem a PNGATI, portanto pouco
efetivamente da proposta de estruturação e mais da metade dos entrevistados, sendo
do processo de implementação da PNGATI, que 25 professores indígenas, ou seja
é que se optou por incluir na pesquisa os 43,85%, não a conhecem. (figura 1).
professores indígenas que são alunos na
Faculdade Indígenas Intercultural da UNE-
43,85% 56,14% Sim
MAT, no campus de Barra do Bugres, MT,
principalmente pelo fato de terem eles um Não
papel de destaque dentro de suas comuni-
dades em face da importância das escolas Figura 1 - Respostas à pergunta: Você
indígenas nessas comunidades e também conhece a PNGATI?
do papel representado pelos professores
Segundo as respostas da maioria dos
indígenas dessas escolas diante de seus
professores entrevistados que não conhe-
grupos étnicos.
cem a política, justificam isso inicialmente
As entrevistas ocorreram com 57
pelo fato de não ter participado das reuniões
professores indígenas, dentre os quais 11
de discussões para a construção da propos-
mulheres e 46 homens de 23 terras indí-
ta da PNGATI, tanto as que ocorreram dentro
genas e atuantes em 41 escolas indígenas
das aldeias, como fora delas (8 pessoas ou
de 42 aldeias. Oscila entre 21 a 42 anos a
32%). Em segundo lugar, atribuem o não
idade dos entrevistados, cuja média é de
conhecimento sobre a política à falta de diá-
30 anos, e o tempo médio de serviço como
logo das instituições indígenas, indigenistas
professores indígenas nessas escolas, de
e do governo com a comunidade indígena
cerca de 7 anos.
(5 pessoas ou 20%) (figura 2).

Por que você não conhece a PNGATI?


Falta de participação nas
reuniões
Falta de diálogo com as
4% 12%
8% 32% comunidades indígenas
Aldeia é isolada e/ou de
12% difícil acesso
12% 20% Falta de estudo sobre o
PNGATI
Falta de comunicação entre a
comunidade indígena
Não deu tempo de conhecer
a política ainda

Figura 2 - Respostas à pergunta: Você conhece a PNGATI?

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 303-318, jul./dez. 2013. 307


É importante salientar que o enga- A gestão territorial indígena se apre-
jamento dos atores sociais vem a ser um senta como um conjunto de instru-
dos critérios fundamentais e prioritário mentos e metodologias de gestão a
para que os objetivos propostos na PNGATI serem apropriados pelos povos indíge-
sejam cumpridos. nas, construídos de forma participativa.
Sobre esse assunto podemos des- Até agora apenas algumas etnias
tacar a posição do governo em relação à elaboraram seus planos de gestão, dentre
implementação da PNGATI no Estado de eles, os Irantxe, os Myky e os Nambiqua-
Mato Grosso e a necessidade de maior ra, das terras indígenas Myky, Manoki e
articulação em prol da divulgação dessa Pirineus de Souza respectivamente, locali-
política em todas as esferas sociais. Segun- zados na bacia do rio Juruena, a noroeste
do a Operação Amazônia Nativa (OPAN), do Estado de Mato Grosso. O processo de
durante uma reunião realizada entre repre- elaboração dos planos de gestão territorial
sentantes de onze etnias indígenas e do dessas etnias começou em 2011, como
governo federal e estadual, com o objetivo parte das ações do Projeto Berço das Águas,
celebrar os planos de gestão formulados realizado pela OPAN, com o apoio da Pe-
por esses grupos indígenas, o governo trobrás Ambiental. Além desses, em 2008, o
reconheceu que a PNGATI e os planos de povo Paiter Suruí, da Terra Indígena Sete de
gestão são temas recém-conhecidos pelo Setembro também concluiu esse trabalho,
Estado, mas garantindo que a administra- sendo que atualmente, são Bakairi que
ção está disposta a estabelecer parcerias estão realizando os planos de gestão junto
para promover uma implementação eficaz à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e
dos planos de gestão. (OPAN, 2013). outros parceiros (LIMA et al., 2012).
Os planos de gestão fazem parte da A meta é elaborar e/ou implementar,
PNGATI e são elaborados pelos próprios até 2015, 32 planos de gestão ambiental
indígenas com o objetivo de revelar os e territorial em terras indígenas estaduais
anseios das comunidades indígenas, suas e no âmbito nacional, a FUNAI pretende
propostas e enfrentamentos em relação implementar 51 planos de gestão. (OPAN,
à administração de seu território. Esses 2013, BRASIL, 2011).
planos servem como instrumentos norte- Dentro da FUNAI, os planos de ges-
adores da PNGATI, facilitando o processo tão são elaborados através dos projetos
de tomada de decisões e aplicação dos de Gestão Ambiental e Territorial Indígena
recursos financeiros para a realização da (GATI), cujo objetivo é “fortalecer as práticas
política de acordo com as necessidades e indígenas de manejo, uso sustentável e
realidades de cada comunidade indígena. conservação dos recursos naturais e a in-
Comentando sobre a importância da clusão social dos povos indígenas, consoli-
participação dos indígenas na formulação dando a contribuição das terras indígenas
de documentos de gestão que lhes afetem como áreas essenciais para conservação ”
diretamente, Arruda (2010, p. 4) afirma que (BRASIL, p. 6, 2013).

308 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
Numa das reuniões sobre a PNGATI A participação dos indígenas por
que foi realizada na cidade de Poconé, no etnia nas reuniões estaduais para discutir
dia 21 de março de 2013, os indígenas sobre a PNGATI, segundo os entrevista-
aproveitaram a oportunidade para cobrar dos, foi variável, houve professores que
mais agilidade do governo na implementa- afirmaram que nenhum representante de
ção dos planos de gestão, através de uma sua etnia participou das reuniões, outros
carta que foi encaminhada à comissão citaram pelo menos quatro pessoas de
responsável pela implementação da PN- sua etnia que participaram das reuniões,
GATI (OPAN, 2013). e ainda alguns não souberam precisar a
Outro indicador que aponta para quantidade de representantes e/ou se hou-
a falta de uma discussão mais ampla e ve representantes de sua etnia. A média foi
informação sobre a política é que, dos 32 de cerca de 2 a 3 representantes por etnia
professores que conhecem a política, 9 não nas reuniões de âmbito estadual, incluindo
a conhecem em detalhes. Dessa forma, os que souberam precisar o número de
os que não conhecem a política e os que representantes e os que afirmaram que
não a conhecem em detalhes representam nenhum representante participou.
A necessidade de maior engaja-
quase 60% dos entrevistados.
mento dos povos indígenas no processo
Contudo, quando questionados se
de implementação da PNGATI e de maior
houve alguma discussão com os povos
articulação entre todos aos atores sociais
indígenas para a elaboração da política,
fica evidente a partir da análise das respos-
a maioria dos professores que conhecem
tas dos professores entrevistados:
a política, 21 entrevistados, ou seja, 65,6%
dos professores indígenas, reconhecem Esta tendo algumas consultas para
a nossa participação, mas tem que
que os povos indígenas foram consultados
desenvolver, tem que avançar. Porque
para a elaboração da política, mas desta- nós somos cidadãos brasileiros, nos
caram a necessidade de maior articulação somos seres humanos. A gente não
entre os povos indígenas e os demais tem nem diferença dos não índios, o
atores sociais. que muda é só a cor da pele. (Profes-
Dos 21 professores que reconhecem sor indígena, 25 anos).
a participação dos povos indígenas como A gente tem alguns pontos estabele-
fundamental para o sucesso da PNGATI, cidos na convenção 169, que tem que
18 professores indígenas, ou seja, 85,71% ter consulta aos povos indígenas toda
deles souberam explicar como ocorreram vez que for fazer uma ação que ve-
nha a afetar os povos indígenas. Mas
as discussões no Estado, sendo que destes,
quando vem o problema, as ações
apenas 8 professores indígenas ou seja, já estão em andamento. (Professor
44,44% participaram das reuniões que indígena, 29 anos).
ocorreram para discutir sobre essa política No Xingu, nós temos alguma coisa
de âmbito estadual. de hectares e 16 etnias, então foram

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 303-318, jul./dez. 2013. 309


discutidas em algumas aldeias, não próprios indígenas, das organizações não
sei se na minha aldeia foi, porque governamentais e também do governo, en-
se aconteceu, mas eu não estive lá. volvendo pessoas com diferentes tipos de
(Professor indígena, 29 anos). conhecimento, precisa levar em considera-
Considerando a obrigatoriedade de ção que os diferentes interesses dos atores
uma consulta prévia aos povos indígenas sociais também são fatores que podem
estabelecida na Convenção 169 da Orga- gerar atrito, dificultando a implementação
nização Internacional do Trabalho (OIT) e de determinadas propostas.
ratificada pelo Brasil em 2003 (OIT, 2011), Jacobi (2000, p. 134), destacando a
percebe-se a falta de outro aparato legal importância da cooperação entre diferentes
que regulamente como devem ser feitas atores sociais na formação de redes para o
as consultas, em que tempo e quem deve alcance de objetivos, descreve que
ser ouvido, o que gera falhas na aplicação As redes se inscrevem numa lógica
da norma. que demanda articulações e solidarie-
Como apresentado, essa foi uma dade, definição de objetivos comuns
das questões mais discutidas e cobradas e redução de atritos e conflitos [...],
pelos professores nas entrevistas, haja vista considerando as características com-
a necessidade de maior articulação entre plexas e heterogêneas da sociedade”.
as organizações responsáveis pela imple- Para o desenvolvimento das propos-
mentação da PNGATI e os povos indígenas. tas estabelecidas na PNGATI, é necessária,
Ao mesmo tempo, para que os sobretudo, a articulação entre os diferen-
povos indígenas sejam envolvidos nas tes atores sociais comprometidos com a
discussões, é necessário que os órgãos sua implementação em prol de objetivos
responsáveis por esse processo superem os comuns.
desafios da escassez de recursos e pessoal Através das entrevistas realizadas
disponível. Além disso, deve ser considera- com os professores indígenas da Facul-
da a diversidade cultural existente no país dade Indígena Intercultural da UNEMAT,
e as diferentes concepções cosmológicas e também foi possível obter informações
sociais presentes em cada etnia. acerca do engajamento das instituições
Diferentes grupos étnicos indígenas indígenas no processo de elaboração da
se relacionam e interagem com a natu- PNGATI, sendo que dos 32 professores
reza de maneiras diversas, sendo que indígenas que conhecem a política, 22
esse modo peculiar de relacionamento foi deles, ou seja, 68,75% citaram quais or-
desenvolvido ao longo de vários séculos, ganizações indígenas participaram das
respeitando a natureza e os seus limites reuniões e 10 deles, ou seja, 31,25% não
próprios (PNUD, 2011). souberam responder.
O diálogo para a construção e imple- As organizações indígenas mais
mentação da PNGATI, que deve ser coletivo citadas pelos professores indígenas
e interdisciplinar, ou seja, deve partir dos entrevistados foram: Associação Terra

310 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
Indígena do Xingu (ATIX), Coordenação Instituto de Pesquisas Etno-Ambiental do
das Organizações Indígenas da Amazônia Xingu (IPEAX); Instituição Raoni; Intituto
(COIAB) e Instituto Maiwu. Outras institui- Munduruku e Associação Enumaniá.
ções citadas foram: Associação Indígena A participação não apenas das or-
Kisêdjê (AIKA); Associação Kura-Bakairi ganizações indígenas, mas dos indígenas
(ACURAB); Associação Indígena Kuikuro de modo geral, é preponderante para o
do Alto Xingu (AIKAX); Associação Indí- sucesso da política no Brasil. De acordo
gena das Mulheres Rikbaktsa (AIMURIK); com as entrevistas, 19 professores indí-
Associação Indígena Pahyhy’p (AIP); Arti- genas, ou seja, 59,37% afirmaram que o
culação dos Povos Indígenas do Nordeste, governo tem garantido que os indígenas
Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME); participem de todas as etapas e decisões
Articulação dos Povos Indígenas da Região da PNGATI, e 10 professores indígenas, ou
Sul do Brasil (ARPINSUL); Associação do seja, 31,25% afirmaram que essa garan-
Povo Indígena Rikbaktsa (ASIRIK); Orga- tia não tem acontecido e 3 professores
nização dos Profissionais da Educação indígenas, ou seja, 9,37% não souberam
Escolar Indígena de Mato Grosso (OPRIMT), responder (figura 3).

O governo tem garantido que os indígenas partici-


pem de todas as decisões e etapas da PNGATI?
9,37%
31,25% 59,37% Sim
Não
Não sei

Figura 3 - Respostas acerca da participação indígena


na PNGATI.

Mesmo que, de alguma forma diver- apenas através da inclusão dos povos
sa, o governo esteja envolvendo indígenas indígenas nesse processo.
no processo de implementação da PNGATI, Há que se superar a concepção dos
muitos entrevistados afirmaram que é indígenas como tutelados e submissos e
necessária uma discussão mais ampla garantir cada vez mais espaços abertos à
e aprofundada com os povos indígenas, manifestação de suas ideias, opiniões e do
pois a construção de uma política que exercício pleno de sua cultura, ressaltando
atenda as especificidades de cada etnia é que, em comparação ao passado de sub-
um grande desafio e pode ser alcançado missão e alguns casos até de escravidão a

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 303-318, jul./dez. 2013. 311


que foram submetidos, mesmo que muitas gestão territorial elaborados pelas comu-
ações de inclusão e atendimento aos in- nidades indígenas é muito importante,
dígenas tenham sido realizadas, sabemos mas esse esforço requer detalhamento,
que ainda há muito para ser feito. consistência e abrangência, ou seja, inú-
Como afirma Luciano (2006, p. 84): meras etnias devem ter sua participação
Na atualidade, a principal dificuldade garantida na elaboração desses instrumen-
dos povos indígenas é manter e ga- tos de gestão.
rantir os direitos já adquiridos, além O relatório do PNUD ainda desta-
de lutar por outros direitos que ainda ca a maior experiência quanto à gestão
precisam ser conquistados [...], enter- ambiental de alguns órgãos em relação a
rando de vez a ameaça de extinção outros e a especialidade de alguns órgãos
desses povos. em atividades adaptadas ao contexto dos
Para exemplificar a dificuldade em povos indígenas (PNUD, 2009).
se estabelecer um diagnóstico efetivo das Assim, podemos perceber que a
necessidades dos povos indígenas e a ação conjunta e articulada entre as diver-
dificuldade existente no diálogo entre os sas organizações indígenas, indigenistas,
representantes governamentais e a socie- ambientais, dentre outras, e destas com as
dade indígena, podemos destacar o modo comunidades indígenas é essencial para
de abordagem e sistematização das ações o sucesso e a consolidação das propostas
de levantamento etnoecológicos. de gestão territorial e ambiental expressas
De acordo com o Programa das na PNGATI.
Nações Unidas para o Desenvolvimento Quando questionados sobre a im-
(PNUD), a dificuldade nas discussões do portância da Política Nacional de Gestão
poder público com os povos indígenas é Territorial e Ambiental de Terras Indígenas
decorrente da falta de uma consulta mais (PNGATI), dos 32 professores indígenas
aprofundada e detalhada aos povos indí- entrevistados e que conhecem a política,
genas e, segundo relatório desse órgão, 24 deles, ou seja, 75%, consideram impor-
muitas vezes as informações colhidas tante a sua implementação, sendo que 4
pelos órgãos gestores “contêm poucos professores indígenas entrevistados, ou
detalhes sobre aquilo que os grupos in- seja, 12,5%, não a consideram importante,
dígenas consideram ser ‘boas práticas de e 4 professores indígenas entrevistados, ou
manejo’ para os recursos que exploram seja, 12,5% não souberam responder por
comercialmente” (PNUD, 2009). faltar-lhes informações sobre a política
O estabelecimento de planos de (figura 4).

312 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
Você acha importante a implementação da PNGATI?

12,50%
12,50% Sim
75%
Não

Não sei

Figura 4 - Importância da implementação da PNGATI.

A principal justificativa dos profes- Acho que vai ter mais desenvolvi-
sores indígenas entrevistados no tocante mento dos nossos conhecimentos e
à importância da PNGATI centrou-se na saberes. (Professor indígena, 31 anos).
questão ambiental, o que demonstra Para fazer com que os indígenas te-
a grande preocupação dos professores nham formação de gestão. (Professor
indígenas com a destruição gradativa do indígena, 30 anos).
meio ambiente em função da expansão Que eu percebi, é importante princi-
tecnológica e produtiva impulsionadas palmente na educação. Como melho-
rar a educação. Mas não só educação,
pelo capitalismo.
como melhorar a saúde e tudo mais.
Será importante se ela ajudar nas (Professor indígena, 28 anos).
questões ambientais e territoriais. Logo, a expectativa dos professores,
(Professora indígena, 36 anos).
segundo as entrevistas, é de que a PNGA-
Porque traz projetos, tem a preserva- TI seja um instrumento que possa trazer
ção do meio ambiente e da cultura.
conhecimento e informação para a aldeia,
(Professor indígena, 23 anos).
além de proporcionar mecanismos que
Acho muito importante isso para
auxiliem na gestão ambiental e territorial,
preservar o meio ambiente. Isso é
trazendo mais segurança e bem-estar,
importante pra nós. Preservar o meio
ambiente, nossa terra. (Professor indí- através da regularização e demarcação
gena, 40 anos). fundiária das Terras Indígenas (TI) e de
ações de melhoria da qualidade ambiental
Além da questão ambiental, outro e de vida desses povos em suas áreas.
aspecto levantado pelos professores in- Um dos principais desafios para a
dígenas é a educação, a formação que implementação dessa política é lidar com
a política pode proporcionar através do as ameaças à integridade ecológica e cul-
contato entre os diferentes atores sociais tural das terras indígenas, especialmente
envolvidos na implementação das propos- com aquelas relacionadas a pressões so-
tas estabelecidas. bre a paisagem do entorno. A contradição

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 303-318, jul./dez. 2013. 313


entre os programas políticos voltados à pois teme-se que a implantação da política
conservação ambiental e aqueles voltados venha a restringir a territorialidade indíge-
para o desenvolvimento econômico e urba- na, interferindo na organização política e
nização, como o Programa de Aceleração social de cada etnia.
do Crescimento (PAC), são alguns dos prin- Esse é um risco que tem preocupado
cipais entraves à implantação da PNGATI. lideranças e comunidades indígenas, como
Como salientam Silva e Sato (2012): afirmou um dos professores indígenas: “
Atualmente vivenciamos as ações E se prejudicar os povos indígenas
do Programa de Aceleração do Cres- no zoneamento, causando mudanças
cimento (PAC) que, pela forma como nos territórios indígenas? Eles (os líde-
vem sendo conduzido, demonstra res da aldeia) não aceitaram porque
uma repetição desses processos de as terras vão ser zoneadas, vão ser
imposição e arbitrariedade ao am- fragmentadas dentro das terras indí-
biente e aos povos que o habitam. genas. (Professor indígena, 31 anos).
A contradição entre as ações políti- Ao mesmo tempo, o zoneamento e
cas de conservação ambiental e cultural mapeamento das terras indígenas e suas
e as de desenvolvimento agrícola e urba- características pedológicas, geomorfológi-
no, por meio de projetos de incentivo à cas, dentre outras, podem tornar essas áre-
colonização e abertura de novas áreas, as mais vulneráveis a possíveis ameaças
construção de estradas, rodovias, centrais de empresas e multinacionais interessadas
hidrelétricas, dentre outros, é uma das prin- em recursos presentes em terras indígenas.
cipais ameaças a realização dos objetivos Para minimizar esse risco, é necessário
da PNGATI. A política de infraestrutura e maior representatividade e participação
desenvolvimento realizada no país deve
dos indígenas e dos movimentos indígenas
considerar até que ponto essas ações e in-
das diferentes regiões do país em todo o
teresses não ferem a autonomia e o direito
processo.
dos povos indígenas e das comunidades
tradicionais. O governo entende que, uma vez que
Além dessas ações governamentais, tenha representação lá dentro, os indí-
vivenciamos um momento de flexibilização genas estão sendo representados [...].
do Código Florestal Brasileiro (BRASIL, Então existe ajudar um pouco defor-
mado, não sei. É necessário trabalhar
2012a) e de criação de inúmeras Propostas
de uma forma que possa abranger os
de Emendas Constitucionais (PECs) que
povos indígenas, devido à diversidade.
têm gerado polêmicas e insatisfação entre (Professor indígena, 30 anos).
os povos indígenas e movimentos sociais.
Ademais, cabe questionar até que Outra questão a superar é a falta de
ponto as propostas e ações da PNGATI tra- debates e ações educativas sobre a PNGATI.
rão benefícios e melhoria na qualidade de Mesmo que a educação e a participação
vida dos povos indígenas, como proposto, nas decisões dessa política estejam entre

314 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
os principais anseios e reivindicações ainda não vem sendo implantada nas
dos professores indígenas, quando ques- aldeias, sendo que essa preocupação foi
tionados sobre a existência de ações de apontada por 25 dos professores indíge-
formação sobre a PNGATI, a maioria dos nas entrevistados ou seja, 78,12% deles
professores afirmou que essa formação (figura 5).

Tem sido executada qualificação/formação sobre a


PNGATI na aldeia?
21,87%
78,12% Sim

Não

Figura 5 - Processos formativos sobre a PNGATI.

Dentre as atividades de formação e de Florestas (REDD), esse reconhecimento


qualificação que têm sido realizadas nas pode gerar incentivos financeiros e garantir
aldeias, segundo os professores indígenas benefícios ambientais, melhorando as con-
entrevistados, e que estão incluídas dentro dições sociais e econômicas dos indígenas
dos objetivos da PNGATI, foram citadas: (MOUTINHO, 2011; BRASIL, 2012b).
A formação de brigadistas indígenas no Contudo a implementação das ações
combate a incêndios florestais; Palestras de crédito de carbono e do pagamento por
sobre a poluição nas margens dos rios; serviços ambientais entre comunidades
Formação sobre reflorestamento nas mar- indígenas é um tema que tem despertado
gens de rios e no entorno de terras indí- polêmica, sendo que diversas instituições
genas; Qualificação sobre o Programa de têm apontado os perigos e contradições
Reduções de Emissões de gases de efeito da mercantilização dos recursos naturais
estufa por Desmatamento e Degradação de como uma solução para a questão da
Florestas (REDD) e o Programa de Carbono, emissão de carbono (OPAN, 2011).
estabelecida nas diretrizes da PNGATI que
preconiza o “reconhecimento dos direitos Considerações finais
dos povos indígenas relativos a serviços Considerando a emergente Política
ambientais [...]”. Nacional de Gestão Territorial e Ambiental
De acordo com o Programa de de Terras Indígenas (PNGATI) e os possíveis
Reduções de Emissões de gases de efeito desafios de sua implementação no cenário
estufa por Desmatamento e Degradação nacional, observa-se a necessidade de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 303-318, jul./dez. 2013. 315


uma maior participação e envolvimento Indígena Intercultural da Universidade
dos povos indígenas de todas as regiões do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), no
do país nos processos de discussão e Campus de Barra do Bugres, MT, existe
planejamento para sua implementação, grande preocupação deles quanto ao
como previsto nos princípios e objetivos sucesso dessa política, principalmente por
dessa política. esta não estar ainda devidamente inserida
Num contexto de criação de projetos no âmbito das comunidades que vivem
políticos antagônicos aos interesses dos nas aldeias nas diversas terras indígenas
povos indígenas no Brasil, desenvolvidos existentes no estado.
em prol da maximização produtiva, prin- Outra questão está ligada ao mo-
cipalmente do agronegócio, com grandes vimento organizado no país, por parte de
impactos ambientais e sociais, tanto para grupos econômicos e político com interesse
os povos indígenas como para toda a em flexibilizar os direitos dos povos indí-
população brasileira, a implementação da genas garantidos tanto na Constituição
PNGATI pode se transformar num marco Federal como em outros instrumentos le-
regulatório de extrema importância para a gais, na busca de não permitir a ampliação
gestão territorial e ambiental no país. dos territórios reivindicados pelos povos
O sucesso ou não da implemen- indígenas e, mais do que isso, reduzir as
tação da Política Nacional de Gestão terras indígenas já demarcadas.
Territorial e Ambiental de Terras Indígenas Diante desse quadro, busca-se
(PNGATI) no Estado de Mato Grosso e através de estudos realizados pela comu-
em todo o país está ligado, sem sobra de nidade científica um diálogo com os povos
dúvida, primeiro à vontade política dos indígenas, a construção de conhecimentos
governos federal e estadual numa efetiva que seja capaz de contribuir com o proces-
implementação dessa política, bem como so de implementação da Política Nacional
no envolvimento dos povos indígenas, de Gestão Territorial e Ambiental de Terras
através do diálogo com suas lideranças, Indígenas (PNGATI) no sentido de que esta
nos processos de decisão para implemen- se efetive a partir de sua proposta original
tação desse processo. de ser mais um mecanismos de gestão pú-
A partir do que pôde ser observado blica que possa trazer benefícios aos povos
pela visão dos professores indígenas en- indígenas e, por conseguinte, à política de
trevistados, que são alunos da Faculdade conservação ambiental do Brasil.

Referências

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de atividades de 2010.
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316 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
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Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 303-318, jul./dez. 2013. 317


PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO - PNUD. Catalisação da con-
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SILVA, M. J.; SATO, M. T. Territórios em tensão: o mapeamento dos conflitos socioambientais do
Estado de Mato Grosso – Brasil. São Paulo, Ambiente & Sociedade, v. 15, n. 1, p. 1 -28, jan./abr.
2012.

Recebido em junho de 2013


Aprovado para publicação em outubro de 2013

318 Fabiana P. SOUSA; Heitor Q. MEDEIROS; Elias S. BIGIO. A participação dos professores indígenas...
Educação e diversidade cultural nos periódicos
InterMeio e Série-Estudos
Education and cultural diversity in journals
InterMeio and Série-Estudos
Fernanda Ros Ortiz*
Jacira Helena do Valle Pereira**
* Mestranda em educação. PPGEdu/UFMS, Campo Grande,
MS. E-mail: nanda_ortiz@hotmail.com
** Doutora em educação. UFMS, Campo Grande, MS. E-mail:
jp.dou@terra.com.br

Resumo
Este artigo apresenta uma análise panorâmica das produções acadêmicas na temática “Educação e
Diversidade Cultural”, publicadas em dois periódicos pertencentes aos dois primeiros Programas de Pós-
graduação em Educação, no Mato Grosso do Sul, a saber: InterMeio, da UFMS, e Série-Estudos, da UCDB.
Do ponto de vista metodológico, realizaram-se buscas com emprego de palavras-chave na temática da
diversidade cultural. Organizamos o mapeamento destas, focalizando frequência, categorias, metodologias
e concepções adotadas. Em síntese, foi possível compreender como as produções apresentam reflexões
sobre a pluralidade no contexto escolar, embora, em consideração às pertenças étnico-culturais do referido
estado, as produções sejam tímidas.
Palavras-chave
Diversidade cultural. Educação. Periódicos.

Abstract
The present paper is the result of a research and presents an analysis of academic productions on the theme
“Education and Diversity”, published in two journals from the oldest and most traditional pos graduated
programs in Education in Mato Grosso do Sul – InterMeio, from UFMS, and Série-Estudos, from UCDB.
The methodological approach was based on searching texts and journals with cultural diversity keywords.
After that, these information were organized in frequency, categories, methodologies and concepts. For the
analysis of results and discussions, Silva (2003) and Valente (1999) were used, among others authors. In
summary, it was possible to understand that the productions talks about diversity at school, although the
ethnic and cultural analysis referred specially to Mato Grosso do Sul are still insufficient.
Key words
Cultural diversity. Education. Journals.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 319-331, jul./dez. 2013
Introdução riódicos1. As produções contidas nesses
suportes possuem caráter científico, visto
A diversidade cultural surge das que passam por revisões e aprovações de
semelhanças e diferenças de fazeres e de pareceristas e editores competentes para
saberes de um grupo social na sua relação a tarefa, os quais definem as normas e o
com os outros e é inerente à condição rigor necessários para publicação, delimi-
humana, enriquecendo nossa vivência. A tando, assim, a clareza e a segurança das
interação que as diferentes culturas reali- informações presentes.
zam no âmbito social faz dessa diversidade Buscamos, portanto, responder às
um fenômeno determinante no cresci- seguintes indagações: o que os periódicos
mento das sociedades em geral já que a InterMeio (UFMS) e Série-Estudos (UCDB)
diversidade humana é fruto das diferenças têm produzido/divulgado a respeito da
culturais e históricas (VALENTE, 1999). diversidade cultural? Qual a quantidade de
A intenção do presente texto é produções existentes no período de 1994 a
apresentar um estudo realizado com dois 2011? Como a realidade cultural em que
periódicos acadêmicos no estado de Mato estão inseridas é focalizada a exemplo
Grosso do Sul, intitulados InterMeio e das questões do pantanal, da fronteira,
Série-Estudos, os quais trazem produções dos quilombolas, dos diferentes grupos
acadêmicas de diversos pesquisadores étnicos que convivem no estado de Mato
internacionais e nacionais, mas, em espe- Grosso do Sul?
cial, as produções frutos de dissertações e O artigo está organizado da seguinte
teses produzidas no referido estado. Para forma: no primeiro momento, “Imersão
tanto, debruçamos sobre o início das pu- nas produções científicas dos periódicos
blicações (1995 e 1994, respectivamente)
até o ano de dezembro do ano de 2008,
com o objetivo de conhecer as temáticas,
1
O Qualis constitui-se num conjunto de procedi-
mentos utilizados pela Capes para estratificar a
os conceitos e teorias expressas nesses ar- qualidade da produção intelectual dos programas
tigos durante o período supramencionado de pós-graduação. Nesse sentido, os periódicos cien-
acerca da diversidade cultural, bem como tíficos são avaliados anualmente por áreas, sendo
a quantidade de produções dedicadas à que os resultados não traduzem uma classificação
temática privilegiada. absoluta, mas a qualidade daquele momento em
determinada área abordada pelo periódico. Há pe-
O trabalho com esse tipo de ma- riódicos inscritos com o mesmo nome, mas atuando
terial é rico e oportuno por lidar com a em diferentes áreas tais como educação e história,
divulgação do conhecimento de maneira por exemplo. Cada avaliação será pertinente a uma
dinâmica. Em parte, esse movimento é área, sendo realizada por um corpo de estudiosos
possível e acontece na medida em que desta. A título de curiosidade, a classificação do
Qualis possui oito estratos: A1 (o mais elevado),
as informações são circuladas agilmente, A2, B1, B2, B3, B4, B5, C (com peso zero). Os cinco
o que não significa má qualidade, haja primeiros estratos são os que sugerem resultados
vista os programas de avaliação de pe- satisfatórios da avaliação dos periódicos.

320 Fernanda R. ORTIZ; Jacira H. V. PEREIRA. Educação e diversidade cultural nos periódicos...
InterMeio e Série-Estudos”, no qual são respectivamente. Na última avaliação da
apresentados a qualificação dos materiais, Capes (2010), o Programa de Mestrado
os critérios de escolha de produções e os em Educação da UFMS (InterMeio) obteve
procedimentos metodológicos como lei- conceito 3, e o da UCDB (Série-Estudos)
tura prévia dos resumos. Em seguida, em recebeu conceito 4.
“Da recolha de dados: visão panorâmica” Para seleção dos artigos a serem
mostra-se o quantitativo de produções estudados, inicialmente foi realizado um
levantadas e possíveis causas para o levantamento nas páginas eletrônicas dos
aumento ou decréscimo deste. No terceiro periódicos, buscando informações gerais a
tópico, “Em análise a diversidade cultural respeito deles e arquivos com as edições dis-
nos periódicos InterMeio e Série-Estudos”, poníveis a serem acessadas. Foram também
as categorias eleitas para compor o ensaio consultados profissionais/pessoas engaja-
são descritas e, sobre cada uma delas, dos no trabalho com o periódico (editores/
são tecidos comentários objetivando de- ex-editores), a fim de conhecer um pouco
monstrar uma síntese das informações da forma como são elaboradas as edições.
encontradas nos textos selecionados para Em seguida, procedemos à leitura de
a pesquisa. “À guisa de considerações resumos, palavras-chave e textos comple-
finais” conclui as reflexões em torno dos tos que contemplassem questões relacio-
elementos trazidos das produções. nadas à diversidade/pluralidade cultural,
diferenças, etnia, cultura, regionalismo/
Imersão nas produções científicas dos regionalidade, migrantes, entre outros que
periódicos InterMeio e Série-Estudos abranjam as particularidades da temáti-
ca. Destarte, traçamos um panorama da
Ao olhar nas produções dos periódi- quantidade e qualidade das produções, en-
cos, buscamos compreender a frequência contrando regularidades que forneceram
de estudos sobre “educação e diversidade subsídios para o entendimento de como se
cultural” na área de Educação, ou seja, que processa a discussão, no meio acadêmico,
objetos são abordados, que aportes teóri- dos subtemas relacionados à diversidade
cos são empregados, de que tipo de pes- cultural no âmbito da educação.
quisas as produções são frutos, quem são
os autores e como é focalizado o contexto Da recolha de dados: visão panorâmica
cultural ou étnico cultural de Mato Grosso
do Sul, entre outros questionamentos. O primeiro momento foi de levanta-
Para ilustrar a qualidade das fontes, mento numérico e tabulação da quantidade
consultamos a avaliação do Qualis divul- total de edições e produções existentes no
gada em março de 2012, com base nas período selecionado. Para tanto, organiza-
publicações de 2010-2012. Os conceitos mos quadros ilustrativos sobre as publi-
atribuídos aos periódicos selecionados, cações, demonstrando o ano, número de
InterMeio e Série-Estudos, foram B3 e B2, edições e volumes de cada periódico, a fim

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 319-331, jul./dez. 2013. 321


de introduzir a relação entre os números e Meio reúne 29 edições, e a Série-Estudos, 32.
o desenvolvimento dos estudos no campo Na relação de artigos pertinentes à
da educação e diversidade cultural. Do início diversidade/pluralidade cultural, publica-
das publicações até o ano de 2011, a Inter- dos em cada ano, nos periódicos, constam:

TOTAL DE ARTIGOS/TEXTOS
PERIÓDICOS ANO PORCENTAGEM
ARTIGOS/TEXTOS NA ÁREA
Série-Estudos 1994* 10 0 0,00%
InterMeio 1995 17 1 5,88%
Série-Estudos 1995 9 0 0,00%
InterMeio 1996 9 1 11,11%
Série-Estudos 1996 22 0 0,00%
InterMeio 1997 16 0 0,00%
Série-Estudos 1997 10 1 10,00%
InterMeio 1998 19 2 10,53%
Série-Estudos 1998 9 0 0,00%
InterMeio 1999 6 1 16,67%
Série-Estudos 1999 13 1 7,69%
InterMeio 2000 junto com 1999 - -
Série-Estudos 2000 16 0 0,00%
InterMeio 2001 5 0 0,00%
Série-Estudos 2001 25 1 4,00%
InterMeio 2002 14 1 7,14%
Série-Estudos 2002 21 1 4,76%
InterMeio 2003 16 1 6,25%
Série-Estudos 2003 32 11 34,38%
InterMeio 2004 11 0 0,00%
Série-Estudos 2004 32 1 3,13%
InterMeio 2005 13 0 0,00%
Série-Estudos 2005 31 4 12,90%
InterMeio 2006 12 4 33,33%
Série-Estudos 2006 27 10 37,04%
InterMeio 2007 19 3 15,79%
Série-Estudos 2007 27 2 7,41%
InterMeio 2008 24 3 12,50%
Série-Estudos 2008 30 0 0,00%
InterMeio 2009 26 3 11,54%
Série-Estudos 2009 30 5 16,67%
InterMeio 2010 30 1 3,33%
Série-Estudos 2010 37 3 8,11%
InterMeio 2011 13 0 0,00%
Série-Estudos 2011 33 12 36,36%
TOTAL 664 73 10,99%
Quadro 1
* Somente o periódico Série-Estudos havia iniciado suas publicações neste ano.
Fontes: Periódicos InterMeio e Série-Estudos.

322 Fernanda R. ORTIZ; Jacira H. V. PEREIRA. Educação e diversidade cultural nos periódicos...
Do total de 664 artigos/textos identi- Em análise a diversidade cultural nos
ficados, somente 10,99% deles trataram da periódicos InterMeio e Série-Estudos
temática da diversidade, o que corresponde
a 73 textos. É possível perceber ainda um Os trabalhos foram divididos em
crescimento de publicações, mesmo que sete categorias, as quais se mostraram
tímido, a partir de 2003. relevantes à temática em estudo. É impor-
Podemos entendê-lo sob a égide tante esclarecer que alguns textos/artigos
da ocorrência de algumas mudanças no mantinham interesse em mais de uma
campo da educação em relação à diversi- das categorias, porém o foco principal era
dade cultural nesse período, seja por con- somente uma delas. Por vezes, tornou-se
sequência de elaboração de políticas ou complicada a inserção de determinados
programas ou mesmo a efervescência de artigos em categorias pré-estabelecidas,
questões relacionadas às diferenças cultu- afinal muitos deles tenderam a demonstrar
rais no Brasil e no mundo, apesar de não posicionamentos em relação a diversos
serem novas, como sabemos, as discussões assuntos relacionados na temática da
sobre a pluralidade. Entretanto, Valente diversidade.
(1999, p. 108) nos provoca a considerar Para a realização da pesquisa, diver-
que: “Não cabe questionar a importância sos tipos de textos presentes nos periódicos
da discussão sobre as diferenças culturais, foram inclusos, tais como: pontos de vista,
mas como, de que maneira ela é ou pode resenhas, textos componentes dos dossiês
ser conduzida.”. e artigos em geral, por vezes resultados
Deve-se levar em conta também que de apresentações em fóruns e encontros.
as mudanças apontadas dizem respeito, Isso ocorreu por haver uma quantidade
inclusive, a uma maior preocupação dos reduzida de produções. Somente foram
órgãos públicos com a temática, por exem- excluídos das análises resumos de dis-
plo, no Brasil, com a criação da Secretaria sertações defendidas e encartes especiais
de Educação Continuada, Alfabetização e publicados em diferentes temáticas, que
Diversidade/ SECAD, funcionando desde não eram pertinentes à área das atuais
julho de 2004, responsável pela elaboração pesquisas em educação.
de propostas na área da pluralidade para
a educação.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 319-331, jul./dez. 2013. 323


Discorrem sobre os grupos sociais dos negros, suas peculiaridades, lutas
Identidade negra
e valores culturais.
Apresentam dados a respeito de grupos sociais oriundos desses povos,
relacionando seu modo de ser, pensar e agir no contexto social atual, os
Cultura indígena quais implicam determinadas necessidades para se elaborar currículos
que privilegiem e reflitam sobre a pluralidade de ideias e vivências
culturais.
Tratam de histórias de migrantes de diferentes etnias, demonstrando os
Migração
aspectos culturais inerentes aos processos, nos quais se inclui a educação.
Abordam a relação entre sujeitos de países fronteiriços, integrando os
Fronteira
efeitos dela sobre a educação.
Apresentam histórias de grupos sociais e suas manifestações culturais
Manifestações
enquanto forma de viver e ser dentro da sociedade, aspectos relevantes
culturais
para se pensar a educação.
Identidade, Abordam questões sobre os termos empregados na diversidade cultural
cultura e bem como a relação das pessoas com a diversidade e o preconceito, seja
preconceito esta num viés psicológico, antropológico ou sociológico.
Possuem como assunto central a discussão sobre determinada política
Políticas,
pública, programa ou construção do currículo na área da pluralidade
programas e
cultural, ou seja, para grupos socioculturais específicos, levando em conta
currículo
aspectos da construção da identidade daquela etnia e/ou grupo social.
Quadro 2 - Categorias propostas
Fontes: Periódicos InterMeio e Série-Estudos.

No decorrer da investigação, perce- culos para a diversidade cultural. 49,32%


bemos que algumas das categorias pro- dos textos trataram dessas questões, seja
postas foram parcialmente apontadas nas elegendo grupos sociais específicos, seja
pesquisas, enquanto outras, tal como a de abordando-os de maneira geral.
políticas, programas e currículo, trouxeram Tais artigos/textos o fizeram me-
inúmeras contribuições para o campo, diante diferentes focos. Alguns discutiram
debatendo de maneira mais sistemática acerca de ações afirmativas para os negros
e em maior quantidade de vezes durante (VALENTE, 2002; VALENTE, 2006; MAIA;
o período selecionado, seja no periódico MARQUES, 2006; ALMEIDA; BITTAR; COR-
InterMeio ou no Série-Estudos. DEIRO, 2007), outros discutem medidas,
Ao trazer à tona os resultados da no campo da educação, de respeito à di-
pesquisa bibliográfica empreendida nos versidade para com os indígenas (BRAND,
periódicos, percebemos a relativa inten- 1997; BRAND, 2001; NASCIMENTO, 2003).
sidade na produção e discussões nos Há também aqueles que expõem
âmbitos dos programas, políticas e currí- suas posições, sendo a favor ou contra

324 Fernanda R. ORTIZ; Jacira H. V. PEREIRA. Educação e diversidade cultural nos periódicos...
determinados conceitos e até admitindo e uma linha de pesquisa no Programa
a pluralidade de propostas, no trato com de Pós-graduação em Educação desta
a diversidade e inclusão das minorias universidade.
como um todo no sistema educativo, e No primeiro dossiê sobre diversidade
outros trazendo críticas sobre o que se cultural realizado pelo periódico, dos 11
tem feito com as diferenças dentro da artigos que o compõem, oito deles tratam
escola (GARRIDO, 2005; VALENTE, 1996; de algum assunto relacionado aos indí-
LUNARDI, 2006). genas. Uma parcela deles discorreu sobre
É importante que aconteçam tais a cultura dos índios, seus modos de ser,
preocupações nas pesquisas acadêmicas, viver e pensar, buscando perceber as rela-
visto que as propostas direcionadas a ções dentro da atual sociedade capitalista
ampliar e potencializar as relações com e globalizada em que estão inseridos, e
as diferenças no contexto escolar fazem-se trazendo à tona características pertinentes
necessárias, e a escola é lócus privilegiado para se pensar em educação para esse
para se pensar na pluralidade. grupo (MANGOLIM, 1997; ROSSATO, 2002;
Afinal, a escola recebe diferentes MARCON, 2003).
tipos de estudantes, e a simples convivên- Tais textos procuraram demonstrar o
cia entre eles não é suficiente para lidar retrato de um povo que deve ser respeita-
com proposições dessa natureza. Mais do do em suas particularidades, repelindo a
que isso, é preciso fazê-los compreender a ideia de uma cultura estagnada ou mes-
contribuição de cada cultura no universo mo imóvel. Demonstraram que, estando
da pluralidade, usando a perspectiva da a identidade em constante movimento
troca e compartilhamento de experiências e modificação, não podemos cristalizar
e valores, baseado no entendimento de pensamentos sobre o que seja sua cultura.
enriquecimento mútuo entre os envolvidos Outra parcela dos textos que tratam
no processo. Por conseguinte, como Silva dos grupos étnico-culturais reflete especifi-
(2003, p. 73, grifo do autor) afirma, “Parece camente acerca de legislações, programas,
difícil que uma perspectiva que se limita políticas e currículos que vêm sendo pen-
a proclamar a existência da diversidade sados para as populações indígenas. Todos
possa servir de base para uma pedagogia eles apresentam evidências de crerem
que coloque no seu centro a crítica política numa relação entre a identidade e a cultu-
da identidade e da diferença.”. ra desses povos de maneira nada exótica,
Outro foco eloquente nos artigos levando sempre em conta seus conflitos
foram as questões indígenas, especial- e elementos aglutinadores durante sua
mente na Série-Estudos, na qual diversos história (VALENTE, 1996). Noutro artigo,
tipos de questionamentos foram debatidos. o autor chama atenção para o fato de a
Tal ocorrência provavelmente deva-se ao cultura de um povo, no caso os indígenas,
fato de haver um núcleo de estudos e dever ser considerada ao propor formas de
pesquisas dentro da UCDB (GPKG e GPEI) fazer educação (MARCON, 2003).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 319-331, jul./dez. 2013. 325


A identidade negra enquanto ca- da diversidade cultural” (VALENTE, 1996,
tegoria sociocultural em si foi um item p. 25). E ainda quando discute a respeito
pouco abordado (6,85% dos textos) visto da proposta intercultural (VALENTE, 1996).
sua relevância histórica na formação so- As manifestações culturais em geral,
cial brasileira. Os afrodescendentes foram tais como festas religiosas e elementos
marginalizados desde os tempos da nossa pertencentes ao cotidiano social e cultural
colonização, quando eram escravizados, das pessoas, foram apontadas uma única
como sabemos. Os artigos que trataram vez num artigo do periódico InterMeio
desse assunto explicitaram posições im- sobre uma festa religiosa ocorrida no dis-
portantes para a compreensão da luta trito Pontinha do Cocho, o qual pertence à
social que, historicamente, tem sido travada cidade de Camapuã e localiza-se ao norte
por esses povos, como em Fogaça (2006). do Mato Grosso do Sul, e outra na Série-
Nesse sentido, corroboram Canen (2006), Estudos, a respeito dos Movimentos Sociais.
Figueiredo e Pereira (2006), e Damião Na primeira, os autores (SIGRIST;
(2006). TAURO, 1998) relacionaram a dimensão da
As pesquisas que trataram da cultu- festa com a vida como um todo daqueles
ra negra estiveram predominantemente de- moradores, discutindo sobre as implicações
tidas aos âmbitos das políticas, programas da confraternização, sua organização e en-
e currículos, o que já pode ser um avanço. volvimento, na educação daquele local, o
Foram discutidas: ações afirmativas, elabo- que consideramos ter sido bastante válido
ração e uso de livros didáticos contendo e interessante.
elementos preconceituosos contra os Na outra (STRECK, 2006), os Mo-
negros e dados sobre as propostas inter- vimentos Sociais Populares da América
culturais e multiculturais. O periódico que Latina foram relacionados com as práticas
mais tratou desses grupos foi o InterMeio, educativas, sendo importantes organiza-
por vezes com artigos de um autor recor- ções socioculturais. Nesse contexto, o autor
rente, como foi o caso da antropóloga Ana discorreu sobre a forma como a educação
Lúcia Valente, cujas produções publicadas formal e a informal caminham juntas para
no período estudado totalizaram três, nos formar cidadãos e defensores desses movi-
anos de 1996, 2002 e 2006. mentos, os quais lutam para garantir seus
Percebemos também que, em alguns projetos e aspirações comuns.
autores, a problematização da realidade, A migração é parca nas produções
no âmbito da diversidade, acontece con- dos periódicos. Somente foi citada em dois
tinuamente. Neste trecho, por exemplo, artigos, cujas publicações eram do perió-
da autora supramencionada: “[...] ao se- dico InterMeio. Por situar-se numa área
rem mascaradas as relações de poder e geográfica que fora povoada e constituída
dominação entre os grupos em contato, por sujeitos de oriundos de diversos países
é impedida a percepção do caráter con- do mundo (Japão, Itália, Espanha, Alema-
traditório do processo de reconhecimento nha, Portugal, Paraguai, entre outros), como

326 Fernanda R. ORTIZ; Jacira H. V. PEREIRA. Educação e diversidade cultural nos periódicos...
também de outros estados nacionais (Rio descritiva da produção da erva-mate, à luz
Grande do Sul, São Paulo, Paraná, Minas da teoria marxista. O segundo (PEREIRA,
Gerais, etc.), eram esperados mais textos. 2009) trata da especificidade da formação
Os dois artigos que o fizeram tiveram de professores no contexto de fronteira
como foco: o primeiro, a migração alemã internacional.
para o Sul de Mato Grosso (1999/2001), As categorias “identidade”, “cultura”
e o segundo apresentou dados de um e “preconceito” foram apresentadas em
trabalho de pesquisa com descendentes 15,07% de artigos, em estudos bastante
de imigrantes japoneses em Dourados, válidos para a reflexão sobre a relação
MS (2006). Num dos artigos, a autora (MI- entre concepções culturais/identitárias e
RANDA, 2001) discorre brevemente sobre preconceitos/discriminação, provocando-
as relações entre migração e cultura, bem nos para pensar nessas dimensões que
como os efeitos provocados por esse movi- dizem respeito às diferenças e suas conse-
mento. O outro artigo tratou das questões quências na escola e sociedade, como em
que interessam ao se estudar populações Pedrossian et al. (2008) e Backes (2003).
migrantes no campo da educação: “[...] a Ainda, foram encontrados textos que
interação social entre os valores da cultura elucidaram o fato de toda proposta educati-
de origem familiar com os valores culturais va para a pluralidade, seja ela curricular ou
da sociedade de acolhimento [...]” (IMAGA- no trato em geral das diferenças dentro do
VA; PEREIRA, 2006, p. 47). contexto escolar, passar por determinados
A fronteira foi outra categoria pouco conceitos que definem e determinam as
abordada entre os periódicos, se conside- trajetórias dessas políticas ou programas,
rarmos a definição adotada pelo presente como em Alves (2007).
estudo. Somente dois artigos, do periódico Portanto há que se pensar em cada
InterMeio, abordam a relação entre sujeitos detalhe antes de se propor isso ou aquilo,
de países fronteiriços, integrando os efeitos sendo essencial um estudo apurado das
dela sobre a educação, o que surpreende, teorias implícitas em cada conceito. Sobre
visto a efervescência real das questões a etnicidade, por exemplo, Kreutz (2003, p.
relacionadas à fronteira com o Mato Gros- 87) explica: “[...] o mais importante é buscar
so do Sul, principalmente com os países entender em que contexto e sob quais
Bolívia e Paraguai. condições foi se dando o estabelecimen-
Um deles retratou uma pesquisa to, a manutenção e a transformação das
realizada nos ervais de Mato Grosso, por fronteiras entre os grupos étnicos.”.
meio de revisões de literatura, fotografias Quanto à natureza das pesquisas,
e entrevistas com pessoas envolvidas no apesar de não terem sido citadas dire-
processo ocorrido no período de 1870 a tamente na maioria dos textos/artigos,
1930. Na ocasião, Centeno (2003) aponta percebe-se a predominância da pesquisa
para a relação entre o trabalho e a edu- bibliográfica por meio de revisões de li-
cação nesses ervais, fazendo uma análise teratura, nos assuntos abordados, porém

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 319-331, jul./dez. 2013. 327


outros combinaram diferentes tipos de fronteiriças e migratórias. Tanto a InterMeio
fonte: Barreiros e Fragella (2007); Centeno quanto a Série-Estudos contemplam pou-
(2003); Pedrossian et al. (2008). cas pesquisas nesses assuntos.
No entanto algumas produções
mencionaram, direta ou indiretamente, ter À guisa de considerações finais
realizado pesquisas de campo para com-
por os trabalhos, principalmente no caso A diversidade cultural tem sido fo-
da Série-Estudos em relação aos indígenas: calizada nas produções acadêmicas dos
“[...] o levantamento aprofundado em todas periódicos InterMeio e Série-Estudos, e
as aldeias dos mais diversos aspectos estas são frutos de pesquisas de naturezas
de relações vividas pelas comunidades” diferentes (empíricas, bibliográficas, etc.).
(MANGOLIM, 1997, p. 123). É notório o aumento da quantidade de
Foi possível notar que a maior parte pesquisas em relação ao início das pu-
das teorias apresentadas nos textos/artigos blicações dos periódicos, contudo o incre-
está imbuída das categorias de identidade, mento da produção na temática em estudo
etnicidade, pluralidade/diversidade cultural, nem sempre significa cumprimento com a
preconceito, como acontece neste trecho: função de elucidar reflexões no campo da
“A nossa concepção rejeita, em absoluto, diversidade cultural e sua relação com a
as perspectivas de homogeneização, que educação.
impõem aos grupos minoritários uma cul- A realidade cultural da região sul-
tura dominante, ignorando a sua cultura mato-grossense, no período estudado, se
de origem” (LEITE; PACHECO, 2008, p. 108). mostra timidamente. As questões indíge-
Afinal, “[...] a identidade étnica não nas, por exemplo, estiveram presentes em
deve ser entendida como algo constituído, várias produções e, em geral, mantinham
naturalizado. Trata-se de percebê-la como relação com a realidade regional, seja por
processo identitário [...]” (KREUTZ, 2003, p. conta de estudos de campo ou mesmo
84, grifo nosso). Tais conceitos refletem um pesquisas bibliográficas empreendidas.
modo de pensar a diversidade de culturas Contudo a fronteira e a migração foram
numa perspectiva mais voltada para as assuntos escassos, o pantanal e os qui-
relações entre o social e o cultural, sendo lombolas nem foram citados e a relação
historicamente construídas, e, portanto, em entre a economia local e a cultura do sul-
constante movimento, como é a própria mato-grossense foi extinta das pautas de
sociedade. discussão acadêmica no âmbito da edu-
Sobre o contexto sociocultural sul- cação. Mesmo assim, foram válidos para
mato-grossense, visualizamos mais pro- nossa realidade os subtemas abordados
duções voltadas aos indígenas. Os negros nas produções.
foram abordados de forma generalista. Faz-se necessário sempre lembrar
Uma questão que chamou a atenção foi que as realidades locais e globais clamam
à ínfima atenção destinada às questões pelo direito às diferenças num contexto em

328 Fernanda R. ORTIZ; Jacira H. V. PEREIRA. Educação e diversidade cultural nos periódicos...
que a globalização quer suprimi-las. Por nais, nas políticas públicas e na mídia em
conseguinte, tais conhecimentos, sendo geral, há que se refletir sobre a realidade
problematizados numa área como é a existente. A escola não pode sozinha tornar
educação, repleta de diversidades, quanto resolutos os problemas relacionados à di-
mais públicos forem mais ricas serão as versidade, mas pode contribuir para formar
reflexões em que as particularidades cul- cidadãos mais tolerantes e compreensivos
turais não são folclorizadas. com o outro, ao mesmo tempo em que
Enfim, mais do que declarar a exis- convive e interage. Portanto as pesquisas
tência da pluralidade cultural, como ocorre contribuem para provocar reflexões e di-
nos documentos nacionais e internacio- namizar este processo.

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Recebido em junho de 2012


Aprovado para publicação em setembro de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 319-331, jul./dez. 2013. 331


Resenha
Interações em Rede
Network Interactions
Eduardo Luís Figueiredo de Lima*
* Mestre em Letras pela UFMS e Doutorando em Educação
pelo PPGE-UCDB. Técnico em Assuntos Educacionais da
UFMS. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em
EaD e Tecnologias Educacionais (GETED).
E-mail: evduardofigueiredo@outlook.com

PRIMO, Alex (Org.). A internet em rede. Porto Alegre: Sulina, 2013. 279p. (Coleção
Cibercultura).

Já se vão mais de quinze anos desde mídia contemporânea, debatendo assuntos


que Pierre Lévy proclamou a realidade do como conversações e conflitos em rede,
virtual. Naquele distante, 1996, a internet jornalismo digital, convergência, memória
brasileira ainda engatinhava sendo aces- coletiva, educação entre outros. Para come-
sível a poucos privilegiados. De lá para cá, morar os seus 15 anos de história, lançou
uma revolução silenciosa tem-se operado o livro “Interações em Rede”, organizado
na nossa sociedade, no Estado, nos lares por Primo.
brasileiros, na mídia e até na escola, insti- É sempre um desafio manter alguma
tuição geralmente menos sensível a mu- unidade epistemológica em um livro do
danças dessa magnitude. Em toda parte, tipo “org”, onde cada capítulo é um artigo
temos visto o surgimento de uma cultura em si de um autor diferente. Primo venceu
virtualizada e novas formas de relações hu- esse desafio dividindo seu livro em três
manas, sociais, comerciais e outras tantas partes, denominadas clusters (no universo
decorrentes dessa virtualização. da computação, clusters são agregações de
Foi nesse contexto que, há cerca de computadores que desempenham uma ati-
15 anos, um grupo de pesquisadores gaú- vidade em comum, geralmente utilizando-
chos liderados pelo professor Alex Primo da se de sistemas operacionais especialmente
Universidade Federal do Rio Grande do Sul adaptados para essa operação, de modo
(UFRGS) criou o Laboratório de Interação a torná-los um sistema único) e quinze
Mediada por Computador (LIMC). O grupo, capítulos, denominados “nós” (nesse caso,
ligado ao Programa de Pós-Graduação “nó” seria um ponto de ligação passível de
em Comunicação e Informação daquela conexão a outros pontos ou “nós”).
universidade, tem buscado colocar sob No o Cluster inicial “Entrando na
análise os relacionamentos em rede e a Rede” está primeiramente o “nó” do próprio

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 335-339, jul./dez. 2013
autor, que apresenta o cenário e convida Recuero, em “Atos de Ameaça à Face e à
a uma reflexão sobre o universo da ciber- Conversação em Redes Sociais na Internet”,
cultura e os riscos a que estão sujeitos os nó 3, trata dos dispositivos de regulação
pesquisadores desse novo campo teórico. identitária (que chama de “face”) e da
O segundo “nó”, “Intersubjetividade nas conversação nas redes sociais. Nesse nó,
redes digitais: repercussões na educação” procura mostrar os conceitos e categorias
de Lúcia Santaella, indo a uma imersão no que analisam a conversação nas redes
universo digital ao afirmar que “a história, a sociais e os problemas a ela inerentes.
economia, a política, a cultura, a percepção, O quarto nó, “A energização do riso e do
a memória, a identidade e a experiência humor em conteúdo apropriados e com-
estão todas elas hoje mediadas pelas tec- partilhados na web: o restauro do ‘Cristo
nologias digitais.” Essa mediação leva ao de Borja’”, trabalha com os significados
universo virtual e com ele ao poder das empíricos e epistemológicos do humor e
redes digitais, como diz a autora, cada vez como este é apropriado e compartilhado
mais presentes em nossa vida. nas redes sociais e na internet. Escrito por
As transformações do universo di- três pesquisadoras do LIMC, Camila Cor-
gital, alerta Primo na Introdução do livro, nutti Barbosa, Irina Coelho Monte e Susan
geralmente são mais rápidas que a capa- Liesenberg, esse nó utiliza-se do exemplo
cidade de observação do pesquisador, para do restauro do Cristo de Borja, um pequeno
a qual um objeto pesquisado poderá não mural localizado no Santuário de Mise-
existir mais no momento em que sua pes- ricórdia de Borja, Província de Zaragoza,
quisa for publicada, e é comum que uma Espanha. A obra, antes pouco conhecida,
novidade na rede surja com estardalhaço tornou-se mundialmente famosa por conta
sendo festejada em muitos artigos para de uma restauração incompleta e desas-
simplesmente desaparecer algum tempo trada, gerando uma caricatura deformada
depois, deixando um vazio de pesquisa em lugar da imagem de Cristo. Assim,
e análise. as autoras analisam as relações entre o
Assim, o primeiro Cluster, seja pelo humor, cultura midiática e os mecanismos
universo levantado por Primo no primeiro de rede que repercutiram a notícia da mal
nó, quanto pelo aprofundamento teórico de sucedida restauração.
Santaella no nó seguinte, oferece ao leitor No mesmo cluster, quinto nó, Erica
interessado uma razoável porta de entrada Oikawa em “Dinâmicas relacionais con-
ao mundo das redes digitais, capacitando-o temporâneas: visibilidade, performances e
para o segundo e terceiros clusters: respec- interações nas redes sociais da internet”
tivamente “Dinâmicas relacionais em rede” discute a formação do self e as constru-
e “Jornalismo em rede”. ções identitárias nas relações das redes
No segundo cluster, “Dinâmicas sociais. Busca “ampliar as reflexões acerca
relacionais em rede”, os nós 3 a 9 tra- das performances em ambientes on-line,
balham com o relacionamentos. Raquel partindo-se da premissa que tal processo

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tem se tornado mais complexo com a to da comunicação mediada por computa-
proliferação das redes sociais específicas e dor. Silva utiliza-se do evento “atentado de
seus aplicativos”, conforme afirma Oikawa, 11 de setembro” como assunto mobilizador
para quem as redes sociais têm exigido da sua pesquisa. Observa que, embora
mais esforço no gerenciamento das varia- muitos recursos da WEB ainda não esti-
das formas de apresentações do sujeito. vessem disponíveis na época desse evento
A utilização de dispositivos portáteis de (2001), sua memória é presente em diver-
comunicação, como os smartphones que sos recursos computacionais atualmente
possuem acesso direto às redes sociais, disponíveis.
contribui para o fortalecimento de nichos No oitavo nó, “Os conflitos em pro-
com interesses específicos. Um elemento cessos colaborativos de escrita coletiva na
importante nesse contexto é o monitora- Web 2.0”, Aline de Campos utiliza-se das
mento que faz parte da estrutura relacional teorias e pesquisadores que estudam os
da rede provocando uma espécie de vigi- conflitos, como Fisher e Adams e Simmel,
lância e exibicionismo consentido dentro e a teoria da equilibração de Jean Piaget
das redes sociais. de forma a oferecer uma abordagem
O sexto nó, ainda do segundo cluster construtiva dos conflitos e relacioná-los à
“Conversação on-line nos comentários de escrita colaborativa existente em diversos
Blogs: organização e controle das con- websites e mecanismos da WEB, como os
versas nas interações dialógicas no Blog wikis ou mesmo a Wikipedia.
Melhores do Mundo”, de Gilberto Balbela O nono nó inicia o terceiro e último
Consoni, propõe um estudo sobre a con- cluster do livro: Jornalismo em Rede que,
versação on-line não síncrona a partir com os outros três últimos nós, tratará
da observação dos threads (mensagens especificamente de trabalhos acadêmicos
agrupadas) do blog “Melhores do mundo”. relacionados a comunicação midiática
Consoni compara os diferentes tipos de jornalística. Nesse último cluster, o nó
conversações existentes e, para sua dis- “Toda a resistência é fútil: o jornalismo da
cussão, utiliza-se das teorias da Análise inteligência coletiva à inteligência artificial”,
da Conversação a partir de Goffman entre de Marcelo Träsel, inicia discussão do ci-
outros. Assim, procura categorizar as ocor- berjornalismo a partir da expressão borg
rências dos comentários do referido blog journalism, proposta por Hiler, em 2002,
e, a partir daí, em que nível ocorrem seus numa alegoria aos personagens borgs
processos comunicativos. das séries Star Trek, híbridos entre seres
O sétimo nó “Memórias coletivas biológicos e mecânicos, que ameaçam
na comunicação mediada por computa- as tripulações das naves espaciais com o
dor: abordagens possíveis” de Ana Lúcia risco da “assimilação”, isto é, da conversão
Migowski da Silva, procura lançar um olhar forçada de humanos e outros seres em
sobre as memórias coletivas enfocando-as membros daquela comunidade. No con-
a partir de sua heterogeneidade no contex- texto, o borg journalism seria não apenas

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um jornalismo de assimilação, mas um tem tido no Twitter uma ferramenta cons-
híbrido entre o jornalismo físico, analó- tante e poderosa, segundo Zago.
gico e impresso com o jornalismo digital, As diferentes mídias em que o diário
próprio dos blogs e de outras ferramen- gaúcho Zero Hora publica suas edições
tas existentes na internet. A partir dessa são discutidas no décimo primeiro nó:
relação, põe em pauta questões como a “Convergência com meios digitais em
possibilidade de os jornalistas virem a se Zero Hora multiplataforma: a ampliação
tornar obsoletos diante da competição dos contratos de comunicação a partir da
com a inteligência coletiva gerada pela variação dos dispositivos jornalísticos” de
interação de milhares de mentes humanas Vivian Belochio. O artigo aborda parte da
e eletrônicas por meio da internet. Observa pesquisa de doutorado da autora e, a partir
também o período de crise existente na da teoria da convergência, descrita por Hen-
mídia tradicional, cada vez mais forçada ri Jenkins, entre outros, analisa a relação
a sobreviver dentro do universo digital, e das edições impressas do diário gaúcho
as decorrentes implicações desse fenô- com seus pares digitais. Embora todas as
meno. Em contraponto, ressalta o caráter versões digitais trafeguem pelo ciberespaço,
humanista da profissão do jornalista, faz há diferenças significativas de formatos, e a
um retrospecto da trajetória da profissão pesquisadora analisou versões específicas
e os desafios para o futuro. para smartphones, tablets e computadores
O décimo nó, “Da circulação à re- tradicionais. Segundo Belochio, mais que
circulação jornalística: filtro e comentário adaptações técnicas a cada meio específico,
de notícias por interagentes no Twitter”, de as práticas comunicacionais são alteradas
Gabriela da Silva Zago, analisa a recircula- em cada uma das versões específicas.
ção de notícias a partir do microblog Twitter. Analisando versões impressas para tablets,
Zago acredita que esse aplicativo possa ser web e smartphones, buscou similaridades
visto como um híbrido entre ferramenta e diferenças entre cada uma destas.
de informação e interação social e, por No décimo segundo e último nó do
esse motivo, é apropriado por veículos de livro, Ana Brambilla aborda o jornalismo
comunicação, tanto para distribuir, quanto colaborativo, isto é, uma espécie de jorna-
para reforçar notícias veiculadas de outras lismo feito pelos cidadãos não profissionais
formas. A autora explica o conceito de de forma espontânea e geralmente aprovei-
circulação jornalística a partir de quatro tado pelos meios tradicionais da impressa.
etapas: apuração, produção, circulação e Assim em o “Jornalismo colaborativo nas
consumo. Esses quatro momentos não se redes sociais: peculiaridades e transforma-
sucederiam de forma linear e mesmo após ções de um modelo desafiador”, Brambilla
consumida, isto é, tendo chegado a seu pú- discute algumas iniciativas relevantes sur-
blico, a notícia ainda pode ser rediscutida, gidas na web que, ao longo dos últimos
filtrada e recolocada em evidência. Esse dez anos, têm se utilizado dessa forma de
processo, denominado por recirculação, comunicação. Nesse modelo, destacam-se

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as redes sociais como meio paralelo (e mui- sobre o já citado LIMC, algumas de suas
tas vezes auxiliar em relação à impressa produções acadêmicas e notas sobre os
tradicional) da divulgação de notícias. Tal autores.
modelo evidencia, segundo a autora, que A obra organizada por Primo, portan-
a participação do público no noticiário já to, ainda que produzida a diversas mãos,
não é mais uma simples escolha por parte possui uma coerência e organicidade,
da grande mídia e se faz cada vez mais sendo útil à estudantes e pesquisadores de
presente na imprensa tradicional. comunicação, das Tecnologias de Informa-
Fechando o ciclo da publicação, a ção e Comunicação, Educação e demais
obra ainda traz um apêndice explicativo interessados.

Recebido em outubro de 2013


Aprovado para publicação em outubro de 2013

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 335-339, jul./dez. 2013. 339


Normas para publicação na Revista Série-Estudos –
Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação
da UCDB

1. A Revista Série-Estudos aceita para publicação artigos inéditos de autores que


tratem de educação, resultantes de estudos teóricos, pesquisas, reflexões sobre
práticas e discussões polêmicas.
2. Os trabalhos podem ser encaminhados em português ou em espanhol.
3. A publicação de artigos está condicionada a pareceres de membros do Conselho
Editorial, ou de colaboradores ad hoc. A seleção de artigos para publicação toma
como critérios básicos sua contribuição à educação e à linha editorial da Revista,
a originalidade do tema ou do tratamento dado a ele, assim como a consistência
e o rigor da abordagem teórico metodológica.
4. Eventuais modificações de estrutura ou de conteúdo, sugeridas pelos pareceristas
ou pela Comissão Editorial, só serão incorporadas mediante concordância dos
autores.
5. Os artigos devem ter, no mínimo, 40 mil e, no máximo, 70 mil caracteres com
espaços, incluindo as referências bibliográficas e as notas (contar com Ferramentas
do processador de textos Word).
6. A Revista Série-Estudos também publica documentos, resenhas, entrevistas e notas
de leitura.
 Na seção Documentos, serão divulgados leis, pareceres, normas, emanados
de órgãos governamentais e que abordem questões de interesse para a área
educacional.
 As Resenhas não devem ultrapassar a 10 mil caracteres com espaços, e as Notas
de leitura, 5 mil caracteres. É indispensável a indicação da referência bibliográfica
completa da obra resenhada ou comentada. A digitação e a formatação devem
obedecer à mesma orientação dada para os artigos.
 Textos que tratem de temas polêmicos ou que debatam algum assunto, com
defesa de posicionamentos, poderão ser publicados na seção Ponto de Vista.
Neste caso, os textos devem obedecer ao limite de 50 mil caracteres e atender
aos demais requisitos dos artigos. Os artigos representam o ponto de vista
de seus autores, e não a posição oficial da Série-Estudos ou da Universidade
Católica Dom Bosco.

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 Traduções de textos não disponíveis em língua portuguesa que constituam
fundamentos da área específica da Série-Estudos e que, por essa razão,
contribuam para oferecer sustentação e densidade à reflexão acadêmica.
 Entrevistas com autoridades que vêm apresentando trabalhos inéditos, de
relevância nacional e internacional, na área específica da Educação, com o
propósito de manter o caráter de atualidade da Revista.
7. Os originais, para serem submetidos à aprovação, devem ser enviados para o editor
da revista, através do sistema de submissão online: www.serie-estudos.ucdb.br
8. Os artigos e outros textos para publicação devem ser digitados em Word for
Windows. As orientações para formatação estão especificadas ao final destas
Normas.
9. As menções a autores, no correr do texto, devem subordinar-se à forma (Autor,
data) ou (Autor, data, p.), como nos exemplos: (BITTAR, 1989) ou (SILVA, 1989, p.
95). Diferentes títulos do mesmo autor, publicados no mesmo ano, deverão ser
diferenciados adicionando-se uma letra depois da data, por exemplo: (GARCIA,
1995a), (GARCIA, 1995b) etc.
10. As Referências devem conter, exclusivamente, os autores e textos citados no
trabalho e serem apresentadas ao final do texto, em ordem alfabética, obedecendo
às normas atualizadas da ABNT, NBR 6023. Matérias que não contenham as
referências, ou que as apresentem de forma incorreta, não serão consideradas para
exame e publicação. Exemplos da aplicação das normas da ABNT encontram-se
ao final destas Normas.
11. As notas de rodapé devem ser exclusivamente explicativas. Todas as notas deverão
ser numeradas e aparecer no pé de página (usar comando automático do
processador de textos: Referências/Inserir notas de rodapé).
12. Todos os artigos devem conter título, indicação de três palavras-chave e resumo
(em português e inglês), que não ultrapassem 1.000 caracteres cada um.
13. Ao final do texto, o autor deve também registrar dados relativos à sua maior titulação,
instituição, bem como indicar o endereço eletrônico e o endereço completo para
correspondência.
14. Eventuais ilustrações, com respectivas legendas, devem ser apresentadas
separadamente, em formato JPG, TIF, WMF ou EPS, com indicação, no texto, do
lugar onde serão inseridas. Todo material fotográfico e ilustrações deverão ser em
preto e branco.
15. Uma vez publicados os trabalhos, a Revista se reserva todos os direitos autorais,
inclusive os de tradução, permitindo, entretanto, a sua posterior reprodução como
transcrição e com a devida citação da fonte.

Orientação para a formatação dos textos


1. Digitar todo o texto na fonte Times New Roman, tamanho 12, entrelinha simples,
sem fontes ou atributos diferentes para títulos e seções.
2. Utilizar em negrito e primeira letra maiúscula, seguida de minúsculas para o título
principal e os subtítulos das seções.
3. Para ênfase ou destaque, no interior do texto, utilizar apenas itálico; assinalar os

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parágrafos com um único toque de tabulação e dar Enter apenas no final do
parágrafo.
4. Separar títulos de seções do texto com um duplo Enter.
5. Para as citações longas, usar a fonte Times New Roman, tamanho 11, separadas do
texto principal com duplo Enter e recuo de 4 cm da margem esquerda.
6. Os artigos que não obedecerem rigorosamente às normas de publicação serão
recusados pela forma e devolvidos com justificativa.

Orientações para a aplicação das Normas da ABNT nas referências

Exemplos:
Livros com um autor
BONETI, L. W. Políticas públicas por dentro. 3. ed. Rev. Ijuí: Inijuí, 2011.
Livros com dois autores
MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Metodologia do trabalho científico: procedimentos
básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos.
6. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
Livros com mais de três autores
VIGOTSKY, L. S. et al. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Tradução de
Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
Artigos
ZAGO, N. Do acesso à permanência no ensino superior: percursos de estudantes
universitários de camadas populares. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.
11, n. 32, p. 226-237, maio/ago. 2006.
Coletâneas
FONSECA, M. O Banco Mundial e a educação: reflexões sobre o caso brasileiro. In:
GENTILI, P. (Org.). Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação.
Petrópolis: Vozes, 1996.
Teses
BARREIRA, L. História e historiografia: as escritas recentes da história da educação
brasileira (1971-1988). 1995. 220f. Tese (Doutorado em História da Educação) -
UNICAMP, Campinas, 1995.
Trabalhos apresentados em congressos
MALDONADO FILHO, E. A transformação de valores em preço de produção e o
fenômeno da absorção e liberação de capital produtivo. In: ENCONTRO NACIONAL DE
ECONOMIA, 15., 1975, Salvador. Anais... Salvador: ANPEC, dez. 1975. p. 157-75.

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Trabalhos em meio eletrônico
SAVIANI, D. Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no
contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 14, n. 40, jan./abr.
2009. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413--
24782009000100012&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 01 mar. 2011.

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