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SÉRIE-ESTUDOS

Periódico do Programa de Pós-Graduação em


Educação da UCDB
Série-Estudos publica artigos de caráter teórico e/ou empírico na área da Educação.

Série-Estudos – Periódico do Programa de Pós-Graduação em Edu-


cação da UCDB, n. 33 (jan./jun. 2012). Campo Grande : UCDB, 1995.
Semestral
ISSN 1414-5138
V. 23,5 cm.
1. Educação 2. Professor - Formação 3. Ensino 4. Política Educa-
cional 5. Gestão Escolar.

Indexada em:
BBE - Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília, Inep)
EDUBASE - UNICAMP
CLASE - Universidad Nacional Autónoma de México

Solicita-se permuta / Exchange is requested

Tiragem: 1.000 exemplares


Missão Salesiana de Mato Grosso
UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO
Instituição Salesiana de Educação Superior

SÉRIE-ESTUDOS
Periódico do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UCDB

Campo Grande-MS, n. 33, p. 1-265, jan./jun. 2012.


UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO
Instituição Salesiana de Educação Superior

Chanceler: Pe. Lauro Takaki Shinohara


Reitor: Pe. José Marinoni
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Hemerson Pistori
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação: Jefferson Carriello do Carmo
Série-Estudos – Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB - Publicada desde 1995

Editor Responsável Conselho Editorial


Jefferson Carriello do Carmo (jefferson@ucdb.br) Adir Casaro Nascimento
José Licínio Backes
Maria Aparecida de Souza Perrelli
Mariluce Bittar
Marta Regina Brostolin
Maria Cristina Paniago Lopes
Ruth Pavan

Conselho Científico
Ahyas Siss – UFRRJ José Luis Sanfelice – UNICAMP
Amarílio Ferreira Junior – UFSCar Luís Carlos de Menezes – USP
Belmira Oliveira Bueno – USP Maria Izabel da Cunha – UNISINOS
Celso João Ferretti – UNICAMP Marilda Aparecida Behrens – PUCPR
Graça Aparecida Cicillini – UFU Romualdo Portela de Oliveira – USP
Emília Freitas de Lima – UFSCar Sonia Vasquez Garrido – PUC/Chile
Gaudêncio Frigotto – UERJ Susana E. Vior – Universidad Nacional de Luján
Hamid Chaachoua – Université Joseph Fourier (UNLu)/Argentina
(UJF)/França Valdemar Sguissardi – UFSCar/UNIMEP
Iara Tatiana Bonin – ULBRA Yoshie Ussami Ferrari Leite – UNESP

Nominata de Pareceristas Ad hoc


Adir Casaro Nascimento – UCDB Maria Lúcia de Amorim Soares – UNISO
Eliete Jussara Nogueira – UNISO Mariluce Bittar – UCDB
Elisangela Alves da Silva Scaff – UFGD Marta Regina Brostolin – UCDB
Flavinês Rebolo – UCDB Ruth Pavan – UCDB
Luiz Fernando Gomes – UNISO Vânia Regina Boschetti – UNISO
Maria Cristina Lima Paniago Lopes – UCDB Wilson Sandano – UNISO

Direitos reservados à Editora UCDB (Membro da Associação Brasileira das Editoras Universitárias - ABEU):
Coordenação de Editoração: Ereni dos Santos Benvenuti
Editoração Eletrônica: Glauciene da Silva Lima
Revisão de texto: Maria Helena Silva Cruz
Bibliotecária: Clélia Takie Nakahata Bezerra - CRB n. 1/757
Capa: Helder D. de Souza e Miguel P. B. Pimentel (Agência Experimental de Publicidade)

Av. Tamandaré, 6.000 - Jardim Seminário


CEP: 79117-900 - Campo Grande - MS - Fone/Fax: (67) 3312-3373
e-mail: editora@ucdb.br - http://www.ucdb.br/editora
Editorial
É com prazer que apresento mais um número de nossa Revista Série-Estudos,
primeiro pelo que ela representa de produção científica, e sobretudo porque dentro
dela retumba, para os que têm ouvidos para ouvir, que a educação não é só mercado,
como insinuam alguns, nem a docência mera repetição de conteúdos pasteurizados. Os
trabalhos aqui enfeixados divulgam e aprofundam os traços marcantes e essenciais de
uma Universidade que atua e é atuante no âmbito da pesquisa e da práxis educativa.
Este número abre com mais um dossiê, já uma marca consolidada de nossa revista,
o 3o Seminário sobre Impactos de Políticas Públicas nas Redes Escolares (SIPERE), cujo
objetivo foi debater os impactos das políticas de avaliação, tendo como foco o Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM).
Na sequência, traz os textos de demanda, que, de certa forma, vêm contribuir para
a reflexão do dossiê. No primeiro artigo, de Helena de Araújo Freres, Susana Jimenez,
Jackline Rabelo e Maria das Dores Mendes Segundo, Apontamentos sobre a relação
ontogenética entre trabalho e conhecimento, as autoras analisam a função ontológica
do conhecimento científico sistematizado historicamente pelos homens, reafirmando que
o conhecimento tem sua gênese articulada com o trabalho, modelo de toda a práxis
social. No segundo texto, de Renato Kraide Soffner, Concepções tecnológicas e educa-
ção: modelagem, complexidade, auto-organização e descentralização, o autor discute
o papel da tecnologia nos processos educativos (...), tanto do ponto de vista de uma
crítica à sua utilização de baixo desempenho pedagógico, bem como pela proposta de
novas visões paradigmáticas em educação que sua eficaz aplicação pode proporcionar.
No texto, de Olinda Teruko Kajihara e Cintia Megumi Nishimura, Respiração oral: um
fator que pode prejudicar a aprendizagem da matemática, o objetivo é especificar as
razões de chances (odds ratio) de os alunos respiradores orais apresentarem maiores
dificuldades na matemática que os respiradores nasais. No artigo de Antonio de Pádua
Almeida e Vania Regina Boschetti, Docentes paulistas e atuação política no período de
democratização pós ditadura militar, os autores analisam a ação docente no período de
transição da ditadura militar para a redemocratização. O texto de Marta Regina Brostolin,
Professor iniciante: o ser e estar na profissão docente, investiga os desafios enfrentados
pelos professores mediante as condições de formação e trabalho, apresenta um recorte
de uma pesquisa-formação, de abordagem autobiográfica, cujo objetivo foi analisar as
narrativas de professores iniciantes que atuam na educação infantil com a finalidade de
discutir o ser e estar na profissão docente. Já no artigo de Flavinês Rebolo, Do mal-estar
docente ao abandono da profissão professor: a história de Estela, a autora acredita que
os baixos salários e a desvalorização profissional não são os únicos fatores que influen-
ciam o mal-estar docente e a evasão de professores, o que impulsiona a identificar os
fatores intervenientes no abandono da profissão. O artigo de Graziela Giusti Pachane e
Rodrigo Peres Lopes Domiciano, Formação de professores das disciplinas específicas da
educação básica: panorama das pesquisas sobre licenciaturas no Brasil pós-LDB, busca
conhecer as tendências das pesquisas sobre formação de professores para lecionar as
disciplinas específicas da educação básica. Suas análises demonstram a necessidade
de maior visibilidade e legitimidade às pesquisas sobre a temática, bem como de maior
estreitamento de relações entre a área da educação e as áreas específicas de formação
dos licenciandos. O texto de Waldemar Marques, Administração escolar: uma perspectiva
crítica para a atualidade, tem como foco a administração educacional vista através de
um olhar crítico. Apresenta e discute diferentes abordagens teóricas destacando suas
implicações para a prática da administração educacional. Por fim o texto Currículos da
formação docente e práticas de subjetivação, de Maria Isabel Edelweiss Bujes, articula
os discursos da formação docente e as práticas pedagógicas da Educação Infantil. Situa
a educação das crianças como um alvo biopolítico, segundo a perspectiva foucaultiana.
Problematiza as propostas para a educação da infância de três especialistas europeus e
de uma brasileira, discutindo o caráter técnico do Currículo, para identificá-lo como lugar
de circulação de discursos que lutam para impor seus significados, forjar identidades e
posicionar os sujeitos ao descrever suas expectativas em relações a eles.
O número encerra com duas resenhas. Na primeira, Condutas de risco: dos jogos
de morte ao jogo de viver, de David Le Breton, as autoras Sonia Cristina de Oliveira e
Cleomar Ferreira Gomes, comentam essa obra que trata das condutas de risco como
ritos ordálicos deste século e, como rito pessoal de passagem, no cerne da existência
humana. No segundo, Vozes infantis indígenas: as culturas escolas como elementos de
(des) encontros com as culturas das crianças Sateré-Mawé, de Roberto Sanches Mubarac
Sobrinho, o autor Carlos Magno Naglis Vieira comenta mostrando que a obra se trata
de uma pesquisa sobre a criança indígena Sateré-Mawé em contexto urbano, tendo
em vista aproximar o leitor no cotidiano e na infância dessas crianças, em escolas da
cidade de Manaus, AM.
Para finalizar agradecemos a todos que contribuíram para a publicação deste
número. Desejamos uma profícua leitura e que esta ribombe reflexões dos nossos pro-
blemas pedagógicos e políticos educacionais com vistas à transformação social.

Jefferson Carriello do Carmo


Editor da Revista Série-Estudos
Sumário
Ponto de vista
Apontamentos sobre a relação ontogenética entre trabalho e conhecimento ...........................11
Notes on the onto-genetic relationship between labor and knowledge ................................................................11
Helena de Araújo Freres
Susana Jimenez
Jackline Rabelo
Maria das Dores Mendes Segundo

Dossiê: “3º SIPERE – Impactos de políticas de avaliação nas redes


escolares: o Enem em foco”
Políticas de avaliação em larga escala e a questão da inovação educacional ...........................29
Policies of evaluation in large scale and the question of educacional innovation .................................29
Bernardete A. Gatti
Possibilidades e limites da avaliação em larga escala na construção da qualidade da
escola pública .............................................................................................................................................................................39
Possibilities and limits of large scale tests in the construction of public school .........................................39
Mara Regina Lemes De Sordi
A avaliação na educação básica brasileira: tensões e desafios .............................................................55
Evaluation in brazilian basic education: tensions and challenges ..............................................................................55
Dirce Nei Teixeira de Freitas
A metodologia do ENEM: uma reflexão....................................................................................................................67
The methodology of ENEM: a reflection ..........................................................................................................................................................67
Gisele Gama Andrade
ENEM: matriz e itens para a educação escolar...................................................................................................77
ENEM: framework and itens for school education ............................................................................................................................77
Maria Cecilia Guedes Condeixa

Artigos
Concepções tecnológicas e educação: modelagem, complexidade, auto-organização
e descentralização ...................................................................................................................................................................91
Technological concepts and education: modeling, complexity, self-organization and
decentralization .............................................................................................................................................................................................................................91
Renato Kraide Soffner
Respiração oral: um fator que pode prejudicar a aprendizagem da matemática ...................101
Mouth breathing: a factor that may disturb the learning of mathematics......................................................101
Olinda Teruko Kajihara
Cintia Megumi Nishimura
Docentes paulistas e atuação política no período de democratização pós-ditadura militar .....119
São Paulo teachers and political performance during the democracy period after the
military dictatorship...............................................................................................................................................................................................................119
Antonio de Pádua Almeida
Vania Regina Boschetti
Professor iniciante: o ser e estar na profissão docente ..............................................................................133
Beginner teacher: permanently or temporarily in the teaching profession.....................................................133
Marta Regina Brostolin
Do mal-estar docente ao abandono da profissão professor: a história de Estela....................143
Of the malaise to abandonment of the teaching profession: the story of Estela ....................................143
Flavinês Rebolo
Formação de professores das disciplinas específicas da educação básica: panorama
das pesquisas sobre licenciaturas no Brasil pós-LDB .................................................................................165
Education of teachers for the specific subjects of basic education: overview of research
about undergraduate courses in Brazil after LDB .........................................................................................................................165
Graziela Giusti Pachane
Rodrigo Peres Lopes Domiciano
Administração escolar: uma perspectiva crítica para a atualidade....................................................177
A critical view on school administration ....................................................................................................................................................177
Waldemar Marques
Currículos da formação docente e práticas de subjetivação ..................................................................185
Teacher’s education curricula and subjectifying practices...................................................................................................185
Maria Isabel Edelweiss Bujes
O ENEM e seus reflexos na prática pedagógica dos professores de Biologia ...........................201
The ENEM test and their effects on pedagogical practices of teachers of Biology ...............................201
Everaldo Dos Santos
Christiane Gioppo
Implicações do novo ENEM na perspectiva dos Professores de matemática do ensino
médio .............................................................................................................................................................................................213
Implications of the new ENEM from the perspective of the high school math teachers ..............213
Walderez Soares Melão
Maria Tereza Carneiro Soares
Implicações do Novo ENEM em escolas estaduais de Curitiba ............................................................225
Implications of the New ENEM in state schools in Curitiba..............................................................................................225
Nicole Glock Maceno
Orliney Maciel Guimarães

Resenhas
Conduta de risco ....................................................................................................................................................................243
Conduct of risk ...........................................................................................................................................................................................................................243
Sonia Cristina de Oliveira
Cleomar Ferreira Gomes
Crianças indígenas em escolas da cidade ..........................................................................................................249
Children indigenous in city schools .................................................................................................................................................................249
Carlos Magno Naglis Vieira
Ponto de vista
Apontamentos sobre a relação ontogenética entre
trabalho e conhecimento
Notes on the onto-genetic relationship between
labor and knowledge
Helena de Araújo Freres*
Susana Jimenez**
Jackline Rabelo***
Maria das Dores Mendes Segundo****
* Doutoranda em Educação pela Universidade Federal
do Ceará (UFC). Pesquisadora do Instituto de Estudos e
Pesquisas do Movimento Operário (IMO/UECE. Professora
substituta da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
E-mail: helenafreres@hotmail.com
** Ph.D em Educação. Professora da UECE. Diretora do IMO/
UECE. E-mail: susana_jimenez@uol.com.br
*** Doutora em Educação. Professora da UFC. Pesquisadora
do IMO/UECE. E-mail: jacklinerabelo@uol.com.br
**** Doutora em Educação. Professora da Faculdade de Filo-
sofia Dom Aureliano Matos da UECE (FAFIDAM/UECE). Pes-
quisadora do IMO/UECE. E-mail: mendesegundo@uol.com.br

Resumo
Este artigo busca analisar a função ontológica do conhecimento científico sistematizado historicamente
pelos homens, reafirmando que esse conhecimento tem sua gênese articulada com o trabalho, modelo
de toda a práxis social. Tentamos, nesse sentido, demonstrar que o conhecimento científico é funda-
mental no processo de transformação da natureza para o atendimento das necessidades humanas,
transformando, por conseguinte, o próprio homem. Em contraposição aos paradigmas dominantes na
contemporaneidade, que apelam à fragmentação, ao empobrecimento e ao imediatismo no plano do
conhecimento, defendemos, à luz da ontologia marxiano/lukacsiana, que a apropriação do patrimônio
cultural produzido historicamente torna os indivíduos enriquecidos e, assim, capazes de contribuir para
a elevação do próprio gênero humano.
Palavras-chave
Trabalho. Ser social. Conhecimento.

Abstract
The article aims to briefly analyze the ontological function of the scientific knowledge historically produced
by mankind, reassuring that the knowledge thus conceived is genetically linked to the complex of labor,
model of all social praxis. In this direction, we attempt to demonstrate that scientific knowledge is basic to

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 11-21, jan./jul. 2012
the process of transformation of nature in order to meet the needs of mankind, all the while, transforming
the human beings themselves. Taking a stand against the current paradigms which appeal to knowledge
fragmentation, impoverishment and immediatism, we defend, from the standpoint of Marxian-Lukacsian
ontology, that the appropriation of the cultural achievements produced in the course of history enriches
the individuals, in turn, contributing to the enhancement of human gender itself.
Key words
Labor. Social being. Knowledge.

Introdução fugaz e mercantil atribuído ao conheci-


mento no atual contexto histórico1.
Este artigo consiste numa breve O objetivo do referido artigo é, por-
análise acerca da gênese e da função tanto, expor, a partir da crítica marxista, com
ontológica do conhecimento científico o aporte fundamental da “Ontologia do Ser
produzido historicamente pelo conjunto Social”2, de Lukács, como o conhecimento
dos homens, que nasce articulado com o
trabalho, modelo de toda a práxis social.
1
A retomada da gênese ontológica do co- Segundo Mészáros (2002), o capital vem atra-
nhecimento é de importância fundamental, vessando, no último meio século, uma crise de
caráter estrutural, devendo, nesse sentido, recorrer
principalmente por dois motivos: o primeiro
a medidas extremas na tentativa de recompor suas
diz respeito à defesa contumaz do conheci- taxas de lucro. Nesse contexto, torna-se impres-
mento cientificamente sistematizado como cindível para o sistema, dentre outras estratégias,
patrimônio cultural da humanidade, a qual o refinamento dos instrumentos de justificação
deve ser professada por todos aqueles que ideológica de seu projeto reprodutivo, na forma de
assumem um projeto social e educacional paradigmas que ocultem, com redobrado vigor, o
complexo de determinações que respondem pela
voltado para a emancipação humana; o crescente barbárie social.
segundo vincula-se ao obstáculo criado 2
Obra de maturidade de Lukács (1978), na qual o filó-
pela luta de classes, sobretudo nos tempos sofo húngaro empreendeu o esforço investigativo de
hodiernos, acerca da articulação entre recuperar do legado marxiano os delineamentos de
trabalho material e conhecimento, que uma “ontologia de um novo tipo”, conforme afirmou
apregoa a substituição do trabalho ma- na página primeira do texto “As bases ontológicas
terial pelo conhecimento como propulsor do pensamento e da atividade do homem”, ou seja,
recuperou o caráter revolucionário da obra de Marx.
central da sociedade contemporânea, cujos A Ontologia do Ser Social está dividida em quatro ca-
preceitos são defendidos pelo denominado pítulos: O Trabalho; A Reprodução; O Estranhamento;
paradigma da sociedade ou economia A Ideologia. Na ausência de uma edição dessa obra
do conhecimento. É nesse sentido que o em Língua Portuguesa, lançamos mão, aqui, de tra-
esforço de ir às raízes ontológicas do co- duções preliminares dos diferentes capítulos, a partir
da edição em italiano, Per una Ontologia dell’Essere
nhecimento é primordial, pois, ao mesmo
Sociale, empreendidas por pesquisadores estudiosos
tempo em que buscamos colocá-las em de Marx e de Lukács, a exemplo de Ivo Tonet, Sérgio
evidência, pretendemos criticar o caráter Lessa e Marteana Ferreira de Lima.

12 Helena de Araújo FRERES et al. Apontamentos sobre a relação onto genética entre trabalho...
científico é basilar no processo de trans- constitui-se o trabalho como categoria ine-
formação da natureza para o atendimento liminável do ser social, pois, como mencio-
das necessidades humanas, transforman- nado acima, os homens, para que possam
do, por conseguinte, o próprio homem. existir, devem transformar constantemente
Antes de iniciar o desenvolvimento a natureza. Em outras palavras, a produ-
propriamente dito do nosso tema, é ne- ção da existência humana por meio do
cessário antecipar aqui o fato de que o trabalho é a base insuprimível do mundo
mundo dos homens não está submetido às dos homens,
mesmas leis e aos mesmos processos ocor- [...] condição fundamental de toda a
ridos no mundo natural. Ambos, mundo história, que, ainda hoje, assim como
natural e mundo dos homens, são regidos há milênios, tem de ser cumprida dia-
por suas próprias e distintivas leis. O pri- riamente, a cada hora, simplesmente
meiro regula-se por princípios próprios de para manter os homens vivos. (MARX;
movimento, independentes da consciência ENGELS, 2007, p. 32-33).
humana. O segundo é constituído histori- No entendimento de Marx, a história
camente sobre o imperativo da produção da humanidade passa pela relação entre
da existência material e espiritual através sociedade e natureza. No entanto a história
do trabalho, categoria que possibilitou ao do homem não se esgota no desenvolvi-
homem o salto ontológico para além do mento biológico, mas, longe disso, evolve
determinismo biológico. do desenvolvimento das relações sociais,
Partindo dessas considerações, é
sendo que a tese central para a compre-
necessário reiterar que o ponto de partida
ensão dessas relações sociais assume o
da ontologia marxiana é que o “[...] homem
trabalho como a atividade que articula
efetivo, corpóreo, com os pés bem firmes
subjetividade e objetividade na constitui-
sobre a terra, aspirando e expirando suas
ção dialética do ser social.
forças naturais” (MARX, 2006, p. 126, itá-
Sob esse prisma, Lukács (1981, p.
licos do autor), para existir, deve produzir
11) afirma que
sua própria existência visando à satisfação
de suas necessidades socialmente postas. [...] para entender em termos ontoló-
Conforme apontam Marx e Engels (1999, gicos corretos a reprodução do ser
p. 39), o “[...] primeiro ato histórico é [...] a social, é necessário, de um lado,
ter em conta que seu fundamento
produção dos meios para a satisfação
ineliminável é o homem com a sua
destas necessidades, [é] a produção da constituição física, com a sua reprodu-
própria vida material”. ção biológica; e, de outro, não perder
Na condição de atividade exclusi- jamais de vista que a reprodução se
vamente humana (MARX, 2004, p. 211), desenvolve num ambiente cuja base
realizada dialeticamente na relação entre é certamente a natureza, mas que,
o homem e a natureza para a produção não obstante, é sempre e cada vez
de coisas úteis à existência dos homens, mais modificado pelo trabalho, pela

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 11-21, jan./jun. 2012. 13


atividade dos homens, da mesma da natureza, quer dizer: a natureza é
forma a sociedade, na qual se verifica o seu corpo, com o qual ele tem de
realmente o processo reprodutivo do manter-se em permanente intercâm-
homem, encontra cada vez menos já bio para não morrer. Afirmar que a
“prontas” na natureza as condições vida física e espiritual do homem são
da própria reprodução as quais, ao interdependentes significa dizer ape-
contrário, ela cria mediante a práxis nas que a natureza se interrelaciona
social dos homens. consigo mesma, já que o homem é
uma parte da natureza. (grifos no
Por articular mundo dos homens e original).
natureza, o trabalho é, desse modo, o ato-
gênese da humanidade do próprio homem, Lukács, por seu turno, reafirma que
é o fundamento da evolução humana. É o trabalho é a protoforma originária do ser
no trabalho, como assinala Lukács (s/d, p. social, que o distingue das outras esferas
4), que estão “gravadas in nuce todas as do ser, porque representa o salto qualitati-
determinações que [...] constituem a essên- vamente mais complexo que livrou os
cia de tudo que é novo no ser social”. Isso homens do determinismo biológico e lan-
significa dizer que o complexo do ser social çou as bases para que estes se construam
funda-se no trabalho, e todos os outros como indivíduos capazes de atividade livre
complexos próprios desse ser já constituído e consciente, complexificando a própria
mantêm com o trabalho uma relação de sociedade.
dependência ontológica e de autonomia Por meio do trabalho, o homem
relativa. É somente dessa forma que esses opera uma relação com a natureza para
complexos poderiam cumprir sua função a constante criação do novo, tendo em
própria no processo de reprodução social. vista o atendimento a seus carecimentos
É importante destacar que o enten- materiais e espirituais. Nesse processo, o
dimento da legalidade do homem como homem produz objetivações transforman-
ser social não poderia jamais desprezar do continuamente a realidade existente.
o vínculo perene que entrelaça homem Nas palavras de Marx (2004, p. 211),
e natureza. Assim, Marx (1964, p. 164) é Antes de tudo, o trabalho é um pro-
enfático ao apontar que cesso [...] em que o ser humano, com
A universalidade do homem aparece sua própria ação, impulsiona, regula
praticamente na universalidade e controla seu intercâmbio material
que faz de toda a natureza o seu com a natureza. Defronta-se com a
corpo inorgânico: 1) como imediato natureza como uma de suas forças.
meio de vida; e igualmente 2) como Põe em movimento as forças naturais
objecto material e instrumento da de seu corpo – braços e pernas, ca-
sua actividade vital. A natureza é o beça e mãos – a fim de apropriar-se
corpo inorgânico do homem, isto é, a dos recursos da natureza, imprimin-
natureza na medida em que não é o do-lhes forma útil à vida humana.
próprio corpo humano. O homem vive Atuando assim sobre a natureza

14 Helena de Araújo FRERES et al. Apontamentos sobre a relação onto genética entre trabalho...
externa e modificando-a, ao mesmo Sobre o lugar do conhecimento no
tempo modifica sua própria nature- processo de trabalho e na relação
za. Desenvolve as potencialidades entre indivíduo e gênero
nela adormecidas e submete ao seu
domínio o jogo das forças naturais. Figurar na mente um objeto antes
Como é de conhecimento generali- de sua construção é o ponto de partida
zado, segue-se a essa esmerada explicita- de toda objetivação, pois o trabalho nasce
ção acerca do processo de trabalho como com o processo teleológico. Nos termos
uma peculiar relação entre homem e na- postos por Lukács, a modificação do exis-
tureza, a clássica passagem em que Marx tente, possível através do trabalho, não
lança sua exemplar comparação entre a pode prescindir de uma articulação entre a
aranha e a abelha vis à vis o tecelão e o teleologia, que é a prévia-ideação, e a cau-
arquiteto: salidade dada, transformando-a em posta,
numa incessante produção do novo. Em
Uma aranha executa operações seme-
outras palavras, todo processo teleológico
lhantes às do tecelão, e a abelha supe-
ra mais de um arquiteto ao construir
implica uma finalidade. Isso significa dizer
sua colméia. Mas o que distingue o que a teleologia é a antecipação da ação
pior arquiteto da melhor abelha é que antes que o novo seja produzido na práti-
ele figura na mente sua construção ca, como claramente expressa a citação
antes de transformá-la em realida- de Marx supracitada. É a etapa do plane-
de. No fim do processo do trabalho jamento, da antecipação na mente como
aparece um resultado que já existia um determinado objeto será produzido e
antes idealmente na imaginação do quais os materiais adequados a serem
trabalhador. (MARX, 2004, p. 211-212). utilizados nessa produção – o que implica
Conquanto a teia e a colmeia re- escolhas entre alternativas, potência da
sultem das operações realizadas respecti- liberdade humana. Através da articulação
vamente pela aranha e pela abelha, em entre teleologia e causalidade, o homem
previsível perfeição, o trabalho, como produz objetivações ao mesmo tempo em
atividade propriamente humana, eleva os que produz a si mesmo, enriquecendo-se
menos que perfeitos tecelão e arquiteto com a criação dos objetos.
para além do mutismo dos seres regidos O processo teleológico, como bem
pelo determinismo natural, construindo explicita Lukács, efetiva-se a partir de dois
o ser social e, por decorrência, a práxis momentos distintos e entre si articulados:
e a história humana. Nesse processo, o o primeiro é a posição do fim; o segundo,
conhecimento desempenha um papel a busca dos meios. Este último tem ainda
fundamental. uma dupla função: a primeira é evidenciar
É o que tentaremos explorar, de as propriedades objetivas da causalidade,
forma necessariamente aproximativa, a ou seja, pressupõe o conhecimento das
seguir. leis que regem os processos naturais; a

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 11-21, jan./jun. 2012. 15


segunda diz respeito às descobertas de o qual, porém, nunca será absoluto, sendo
quais são as novas funções possíveis de oportuno aqui ressaltar que o conheci-
serem postas em movimento, o que exige mento científico da essência da realidade
escolha entre alternativas existentes para, é sempre aproximativo.
assim, gerar novas conexões que resultem Como toda objetivação traduz,
na posição de novos fins. Acerca desse inevitavelmente, uma transformação da
segundo momento da posição teleológica, realidade a partir de necessidades social-
a busca dos meios, o filósofo húngaro mente postas, nesse processo, surgem
aponta que essa busca dos meios novas necessidades e, por conseguinte,
novas habilidades para atendê-las, impul-
[...] para realizar o fim não pode deixar
de implicar um conhecimento objetivo
sionando a novas prévias-ideações e a
do sistema causal dos objetos e dos novas objetivações. Em suma, todo ato de
processos cujo movimento pode levar trabalho dá origem a uma nova situação
a alcançar o fim posto. (LUKÁCS, s/d, tanto objetiva quanto subjetiva. Portanto,
p. 13). à luz dessa perspectiva, podemos afirmar
que a história jamais se repete, fazendo
Com efeito, por ser uma atividade
surgir, pela via da posição dos fins e da
humana consciente, o trabalho torna o
busca dos meios, uma práxis do dever-ser.
conhecimento importantíssimo para que a Avançando um pouco mais adiante
teleologia seja posta. Conforme as palavras na análise ontológica, um “[...] dos resul-
do próprio Lukács (1978, p. 8), o tados mais importantes a que chegamos
[...] trabalho é um ato de pôr conscien- é que os atos de trabalho, necessária e
te e, portanto, pressupõe um conhe- continuamente, remetem para além de si
cimento concreto, ainda que jamais mesmos”, como afirma Lukács (1981, p.
perfeito, de determinadas finalidades 1) no parágrafo segundo do capítulo “A
e determinados meios. Reprodução”. Acerca dessa característica
A prévia-ideação será realizada so- fundamental do trabalho, de remeter para
mente quando os homens identificam seus além de si mesmo, Lukács (1978, p. 9)
carecimentos, elaboram-nos em perguntas assevera que
e, depois, objetivam-nos. Assim sendo, para [...] o aperfeiçoamento do trabalho é
a produção de novos objetos, o homem, uma de suas características ontológi-
no processo de trabalho para a produção cas; disso resulta que, ao se constituir,
de sua existência, precisa conhecer as o trabalho chama à vida produtos
leis da natureza – a parcela do real sobre sociais de ordem mais elevada.
a qual a prévia-ideação será objetivada, Nesse sentido, vale resgatar aqui
pois esse conhecimento é indispensável alguns apontamentos de Lukács (1978, p.
para o alcance do objetivo a ser atingido. 8/9), que expressam com o máximo rigor a
A resposta aos carecimentos deve estar relação trabalho-conhecimento, apontando
apoiada num reflexo correto da realidade, a relevância imprescindível para o avanço

16 Helena de Araújo FRERES et al. Apontamentos sobre a relação onto genética entre trabalho...
da práxis social, do conhecimento sempre o círculo de valores e de valorações que
mais descolado do domínio imediato rumo são sociais e possuem um grau de pureza
a uma esfera ontologicamente mais uni- cada vez mais elevado, o que culmina com
versal e autônoma. Assim, referindo-se à um recuo crescente das barreiras naturais,
complexidade implícita a esse processo de não significando, por isso, independência
aperfeiçoamento, na forma da emergência absoluta em relação à base biológica.
de produtos sociais diversos, Lukács (1978, Por esse caráter social do gênero hu-
p. 9) destaca mano, o conhecimento acumulado histori-
camente é, pois, generalizado, tornando-se
[...] a crescente autonomização das
atividades preparatórias, ou seja, a útil tanto para a construção de novos
separação – sempre relativa – que, no objetos como para outras produções. Esse
próprio trabalho concreto, tem lugar acúmulo de conhecimento é a mediação
entre o conhecimento, por um lado, e, específica para que o homem aperfeiçoe
por outro, as finalidades e os meios. num processo contínuo as próprias ferra-
mentas, por isso a busca dos meios é o
Esclarece, ademais:
que promove a acumulação do conteúdo
A matemática, a geometria, a física, social da riqueza. Além disso, essa busca
a química etc., eram originalmente dos meios impulsiona a consciência hu-
partes, momentos desse processo mana para conhecer a realidade exterior,
preparatório do trabalho. Pouco a e a transmissão desse conhecimento às
pouco, elas cresceram até se tornarem
novas gerações é imprescindível para o
campos autônomos de conhecimento,
desenvolvimento histórico cada vez mais
sem, porém, perderem inteiramente
essa respectiva função originária.
universal dos próprios homens.
(LUKÁCS, 1978). Sobre os instrumentos de trabalho,
Marx (2004, p. 212) denominou-os “meios
Por fim, postula: de trabalho”. Estes constituem a coisa da
Quanto mais universais e autônomas qual o trabalhador se apossa imediata-
tornam-se essas ciências, tanto mais mente para a produção dos objetos. De
universal e perfeito torna-se por sua acordo com o pensador alemão, referidos
vez o trabalho. Quanto mais elas cres- meios de trabalho “[...] servem para medir
cem, se intensificam etc., tanto maior o desenvolvimento da força humana de
se torna a influência dos conheci- trabalho e, além disso, indicam as condi-
mentos assim obtidos sobre as fina- ções sociais em que se realiza o trabalho”
lidades e os meios de efetivação do (MARX, 2004, p. 214). A fabricação de
trabalho (LUKÁCS, 1978).
instrumentos de trabalho é tão importante
Lukács (1981) aponta, outrossim, para a história humana que Marx afirmou
que esses conhecimentos, sejam eles na mesma página que o “[...] que distingue
elaborados acerca dos homens ou dos as diferentes épocas não é o que se faz,
objetos, têm um caráter social e alargam mas como, com que meios de trabalho se

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 11-21, jan./jun. 2012. 17


faz”. Conforme demonstramos acima, an- a existência subjetiva da sociedade
coradas na ontologia marxiano/lukacsiana, enquanto pensada e sentida. Ele exis-
a busca dos meios é o segundo momento te ainda na realidade como a intuição
do pôr teleológico na análise de Lukács, e o espírito real da existência social,
como uma totalidade da manifesta-
ou seja, é a consciência humana que
ção humana da vida.
estabelece os fins e busca os meios para
que os fins sejam postos pelo trabalho – o Assim sendo, o remeter-se para
que exige o conhecimento sempre aproxi- além de si mesmo do trabalho é a raiz da
mativo do mundo exterior. processualidade histórica dos homens, em
O processo de reproduzir na cons- que estes constituem a síntese da individu-
ciência o mundo exterior do ser-preci- alidade e da generalidade humana, ambas
samente-assim existente exige que o articuladas pelo conhecimento acumulado
conhecimento a ser acumulado a partir da historicamente pela própria humanidade.
transformação do real deva ser, conforme No processo de trabalho, pois, o ho-
assinalado acima, reflexo do próprio real, mem parte de um conhecimento singular
e não da subjetividade humana descolada e imediato para um abrangente e mais
do mundo objetivo. Enraizado no trabalho, genérico – abrindo possibilidades novas
o conhecimento do mundo exterior não para o desenvolvimento social. Este é o
poderia ser o fundamento da ciência se primeiro nível de generalização.
ele resultasse idealisticamente da subjeti- Acerca da tendência à generalização
vidade dos homens, visto que, se assim o dos atos singulares, Marx (1964, p. 163)
fosse, perderia o caráter de universalidade, aponta que
de patrimônio histórico da humanidade. O homem é um ser genérico, não só
De acordo com Marx (1964, p. 196, no sentido de que faz objecto seu,
grifos no original), prática e teoricamente, a espécie
(tanto a sua própria como a das ou-
[...] enquanto consciência genérica, o tras coisas), mas também – e agora
homem confirma a sua vida social trata-se apenas de outra expressão
real e reproduz no pensamento ape- para a mesma coisa – no sentido de
nas a sua existência real; da mesma que ele se comporta perante si próprio
maneira que, inversamente, o ser como a espécie presente, viva, como
genérico se confirma na consciência um ser universal, e portanto livre
genérica e existe para si, na sua (grifos no original).
universalidade, como ser pensante.
O homem – muito embora se revele Conforme Lukács (1981, p. 81),
assim como indivíduo particular, e é [...] essa generalização – inseparável
precisamente essa particularidade da criação de algo radicalmente novo,
que dele faz um indivíduo e um que não tem nenhuma analogia no
ser comunal individual – é de igual processo reprodutivo da natureza, pois
modo a totalidade, a totalidade ideal, não é produzido espontaneamente

18 Helena de Araújo FRERES et al. Apontamentos sobre a relação onto genética entre trabalho...
por forças “cegas” mas, ao contrário, seu interior como produto da sua
é literalmente criado mediante uma própria generalidade.
posição teleológica consciente –
O segundo nível de generalização
transforma o processo e o produto do
trabalho em um fato genérico, ainda diz respeito ao fato de que o conheci-
que no imediato se trate de um ato mento acumulado torna-se patrimônio da
singular. Exatamente porque esta humanidade. Acerca desse segundo nível,
generalidade está, de modo implícito, Lukács (1981, p. 117) adverte que é
presente em germe já no processo e [...] somente no contexto social obje-
no produto do trabalho mais primitivo, tivo [que] o processo e o produto do
pode surgir aquela dinâmica mais ou trabalho sofrem uma generalização
menos espontânea que, pelo trabalho, que ultrapassa o indivíduo singular
impele “inarrestavelmente” em direção e que, todavia, é ligada à práxis e,
à divisão do trabalho e à cooperação. mediante esta, ao ser do homem:
Acrescenta o filósofo húngaro exatamente a generalidade. Já que
(1981) que a generalidade retroage de apenas na comunidade humana,
forma contínua sobre o próprio trabalho mantida ao mesmo tempo pelo tra-
balho em comum, pela divisão do
– impondo-se cada vez mais em todo ato
trabalho e pelas suas consequências,
laborativo, modificando-o crescentemente
o mudismo natural do gênero começa
em direção à mesma generalidade, ou, a diminuir: o singular, também me-
então, favorecendo a ampliação num diante a consciência de sua práxis,
grau progressivo de sociabilidade de cada se torna membro (não mais mero
trabalhador. A sociabilidade num grau exemplar) do gênero, o qual, porém,
crescentemente desenvolvido, por sua vez, no início, é imediatamente posto
influencia cada vez mais o pôr teleológico com a comunidade dada e em tudo
nos atos singulares dos indivíduos, elevan- idêntico a ela.
do a humanidade a patamares sempre Arremata Lukács (1981, p. 119) que
mais complexos. todo ato teórico-prático humano contém
Lukács (1981) afirma ainda que esse em si elementos de singularidade e de
mundo humano generalidade. O trabalho, mesmo sendo
[...] aparece ao homem como uma uma atividade através da qual o traba-
espécie de segunda natureza, como lhador satisfaz necessidades imediatas,
um ser que existe completamente possui uma tendência à generalidade.
independente do seu pensamento e Singularidade e generalidade são dois
da sua vontade. [...] em termos ontoló-
polos imbricados entre si, cuja tendência
gicos, [...] esta segunda natureza não é
outra coisa senão uma transformação
é o impulso à generalização num plano
da primeira natureza realizada pelo histórico-universal, ou seja, ao próprio ser-
próprio gênero humano, que ela se para-si. O autor acrescenta (LUKÁCS, 1981,
coloca frente ao homem que vive no p. 121) que o desenvolvimento da socie-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 11-21, jan./jun. 2012. 19


dade em nível cada vez mais histórico- humana. Sob a lógica da acumulação
universal impulsiona tanto o nascimento privada da riqueza, o ser é deformado
da individualidade existente-para-si no e desumanizado física e espiritualmente
indivíduo singular quanto a constituição de (MARX, 1964), posto que não se coaduna
uma humanidade consciente de si como aos interesses do capital a humanidade
gênero humano através de sua práxis, isto dos homens.
é, impulsiona o crescimento, no homem, de Assim é que, na esteira de Marx e
sua generalidade consciente. Lukács, podemos asseverar, por conseguin-
O trabalho, porque se remete para te, que a deformação do corpo e da mente
além de si mesmo, suscita no homem dos indivíduos, a dilaceração entre matéria
capacidades e necessidades, as quais, por e espírito, preside e marca o projeto de for-
sua vez, proporcionam o surgimento de mação humana sob o capital. Nessa dire-
novas capacidades e necessidades. Assim, ção, a negação do conhecimento científico
de um processo dialético entre perguntas historicamente sistematizado e de interesse
e respostas, resulta que o homem que genuinamente social configura-se como
trabalha acumule tanto um quantum uma necessidade para o capital, mormente
de riqueza material, como habilidades em seu momento atual, de profunda crise
e conhecimentos que se universalizam, histórica (MÉSZÁROS, 2002), como aponta-
representando estes últimos a necessária do no início deste estudo, colocando-se, em
articulação entre o indivíduo singular e a primeiro plano, conhecimentos fragmenta-
humanidade. dos, superficiais, estreitamente atrelados à
Em suma, são essas raízes ontoló- lógica do mercado e, ainda, cooptando-se
gicas do conhecimento, articuladas neces- as subjetividades que devem ser convenci-
sariamente ao trabalho, que proporcionam das de que vivemos numa quadra histórica
o aperfeiçoamento do próprio trabalho e, para além da centralidade do trabalho e
por conseguinte, do próprio homem, cuja dos conflitos de classe.
tendência é tornar-se cada vez mais uni- É contra essa desumanização, pois,
versal. que Marx (2004) dedicou grande parte
da sua vida à elaboração de uma teoria
Nota crítica conclusiva que desvelasse a célula da sociabilidade
burguesa e colocasse nas mãos dos homens
Em consonância com os propósitos a responsabilidade pelo desenvolvimento
de nosso estudo, faz-se mister apontar de sua própria história, uma história que
que é, precisamente, a realização desse tem a possibilidade de ser autenticamente
desenvolvimento da individualidade e da humana. E é essa teoria que aponta, verda-
generalidade humana consciente, portanto, deiramente, a possibilidade de superação
livre e universal, que é impedida pelo capi- do atual estado de coisas e a instauração
tal, cuja lógica repousa sobre a produção de um patamar superior de sociabilidade.
de mercadorias e, dentre elas, a mercadoria Nesse processo, a defesa do conhecimento

20 Helena de Araújo FRERES et al. Apontamentos sobre a relação onto genética entre trabalho...
que permite a mais rigorosa aproximação do possibilita ao homem o entendimento do
real, desde suas raízes onto-históricas, é de mundo objetivo natural e humano, das leis
fundamental importância, porque é ele que que o regem e das possibilidades do vir a ser.

Referências

LUKÁCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Temas de Ciências


Humanas. São Paulo: Ciências Humanas, 1978.
______. Per uma Ontologia dell’Essere Sociale. Roma: Riuniti, 1981. v. 2.
______. Por uma ontologia do ser social. O trabalho. Tradução de Ivo Tonet. Mimeo.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1964.
______. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2006.
______. O Capital – crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. Livro 1.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
______. A ideologia alemã. São Paulo: Editora Hucitec, 1999.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.

Recebido em abril de 2012


Aprovado para publicação em maio de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 11-21, jan./jun. 2012. 21


Dossiê “3o SIPERE –
Impactos de políticas
de avaliação nas redes
escolares: o ENEM em
foco”
Apresentação

Dossiê “3º SIPERE – Impactos de políticas de avaliação nas redes escolares: o


Enem em foco”

O 3o Seminário sobre Impactos de Estamos na terceira edição desses


Políticas Públicas nas Redes Escolares seminários. O 1o SIPERE foi realizado em
(SIPERE) é um evento relacionado ao Curitiba/PR no mês de junho de 2011,
Projeto INOVAÇÕES EDUCACIONAIS E AS tendo como temática o SAEB/Prova Brasil;
POLÍTICAS PÚBLICAS DE AVALIAÇÃO E o 2o SIPERE, ocorrido Santa Maria/RS em
MELHORIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL agosto do mesmo ano, teve como questão
(IEPAM), do Programa Observatório da central o PNLD.
Educação (Aprovado no Edital CAPES/ Em continuidade ao 1o e 2o SIPERE,
INEP/SECAD n. 001/2008). o 3o SIPERE teve como objetivo debater os
O Projeto IEPAM, ao qual o evento se impactos das políticas de avaliação, tendo
encontra filiado, está sendo desenvolvido como foco o Exame Nacional do Ensino
em rede, ou seja, ocorre simultaneamente Médio (ENEM). O objetivo do evento foi o
em três núcleos: Universidade Federal de de propiciar a divulgação das pesquisas
Santa Maria, Universidade Federal do Para- realizadas no âmbito do IEPAM, bem como
ná e Universidade Católica Dom Bosco. proporcionar um espaço para socialização de
Esses núcleos desenvolvem pesquisas so- outras pesquisas ou experiências de caráter
bre diferentes temáticas relacionadas com ou potencial inovador, relativas às práticas
as políticas de avaliação e melhoria da escolares desenvolvidas por professores e
escola pública: SAEB/Prova Brasil, ENEM, gestores de Escolas de Educação Básica,
Programa Nacional do Livro Didático como reflexo dos resultados das avaliações
(PNLD) e Programa Institucional de Bolsa do ensino no estado e no país. O 4o SIPERE
de Iniciação à Docência (PIBID). está programado para ser realizado no
Tendo em vista promover o debate segundo semestre de 2012 na cidade de
entre os integrantes do projeto e, sobretudo, Curitiba e terá como foco a temática do PIBID.
a socialização dos resultados de suas O 3o SIPERE foi sediado na Uni-
pesquisas para a comunidade acadêmica versidade Católica Dom Bosco, no mês
e redes escolares, optou-se por organizar de março de 2012, na cidade de Campo
um evento denominado SIPERE “Seminário Grande,MS, no qual compareceram pes-
sobre Impactos de Políticas Públicas nas quisadores de vários estados, bem como
Redes Escolares” para o qual são convi- professores universitários, alunos de cursos
dados interlocutores que se destacam na de graduação e professores do ensino
academia, a fim de qualificar o debate. básico das redes locais.

25
Tendo em vista os objetivos propos- riscos de uma regulação da qualidade da
tos pelo evento, os temas apresentados e educação, baseada em exames de larga
debatidos abrangeram questões relaciona- escala. Propõe uma avaliação institucional
das à política de avaliação, com destaque participativa como estratégia para envolver
para o Exame Nacional do Ensino Médio os atores da escola na defesa da qualidade
(ENEM), levando em conta os fundamentos escola pública.
desse modelo de avaliação e a natureza As tensões e desafios que acom-
dos impactos que tais avaliações têm pro- panham a avaliação na educação básica
vocado nas redes escolares. Por sua vez os brasileira foram questões abordadas por
trabalhos apresentados se filiaram a temas Dirce Nei Teixeira de Freitas. O texto anali-
mais específicos como: Exame Nacional sa o problema da avaliação da educação
do Ensino Médio (ENEM); Impactos do básica no Brasil atual e sua importância
ENEM nas práticas de Gestão de escolas para a política educacional, apontando os
de Ensino Médio; e Impactos do ENEM nas desafios em face da realidade presente e
práticas docentes do Ensino Médio. das tendências da avaliação na política da
Neste número da Revista Série Estu- educação básica.
dos, divulgamos os textos apresentados por Gisele Gama Andrade descreve e
autores que têm se dedicado ao trabalho analisa no texto “A metodologia do ENEM:
com avaliação, mais especificamente, à uma reflexão”, a nova metodologia do
avaliação em larga escala, e por pesqui- Enem, embasada na Teoria da Resposta
sadores da temática. Tais textos são refe- ao Item, apontando sua inadequação à fi-
rentes à conferência, às mesas redondas nalidade da avaliação, fundamentalmente
e palestras. classificatória, para a obtenção de vagas
O primeiro texto do dossiê, referente junto ao SISU.
à conferência de abertura do evento, de Por fim, o texto de Maria Cecília
autoria de Bernardete A. Gatti trata das Guedes Condeixa reproduz a palestra
“Políticas de avaliação em larga escala e realizada no evento em que analisa o uso
a questão da inovação educacional”. No da matriz e itens do ENEM como subsídio
texto, a autora aponta que as avaliações para a educação escolar. Discute a avalia-
em larga escala, baseadas em um modelo ção em larga escala, de modo geral, e o
gerencialista de educação, dificilmente po- ENEM, em particular, apontando o uso de
dem ser promotoras de inovação, dado que matrizes e itens do Enem como subsídios
não é possível obter melhoria na qualidade para a pedagogia que valoriza a resolução
de ensino, apenas por meio das pressões de problemas e o desenvolvimento de
das avaliações externas. capacidades cognitivas e conceituais do
Mara Regina Lemes De Sordi discute estudante da educação básica.
as possibilidades e limites da avaliação Alguns textos de participantes, que
em larga escala na construção da me- relataram pesquisas sobre o ENEM, par-
lhoria da escola pública, analisando os ticularmente de bolsistas pesquisadores

26
do Observatório da Educação, ao qual o Tendo em vista a importância do
projeto IEPAM se filia, foram também sele- debate sobre avaliação, sobretudo no
cionados e incluídos como artigos de de- contexto educacional brasileiro atual, forte-
manda, ilustrando algumas investigações mente regulado por políticas de avaliação,
realizadas no âmbito desse projeto, cuja baseadas em exames externos de larga
preocupação é discutir os impactos do escala, consideramos importante e oportu-
Enem na prática pedagógica de profes- no publicar os textos veiculados no evento,
sores. O artigo apresentado por Everaldo como forma de ampliar a divulgação do
dos Santos e Christiane Gioppo trata dos pensamento de pesquisadores sobre a
reflexos do Enem na prática pedagógica questão. Esperamos com isso contribuir
de professores de Biologia, e o de Walde- para o enriquecimento das discussões,
rez Soares Melão e Maria Tereza Carneiro bem como para a construção de forma
Soares enfoca professores de Matemática que possam aperfeiçoar o processo de
do Ensino Médio. Nicole Glock Maceno avaliação no nosso país.
e Orliney Maciel Guimarães, por sua vez,
discutem as implicações do Novo Enem Leny Rodrigues Martins Teixeira
em Escolas Estaduais de Curitiba. Coordenadora do 3o SIPERE

27
Políticas de avaliação em larga escala e a questão
da inovação educacional
Policies of evaluation in large scale and the
question of educacional innovation
Bernardete A. Gatti
Pesquisadora Colaboradora na Fundação Carlos Chagas.
E-mail: gatti@fcc.org.br

Resumo
Neste texto discutem-se as políticas de avaliação em larga escala no âmbito das políticas educacionais
brasileiras, retratando como as avaliações se tornaram o carro chefe das ações políticas em educação,
marcadas por uma perspectiva produtivista e vinculada às pressões dos organismos internacionais. Com
tal perspectiva, instalou-se um modelo gerencialista que se baseia nos resultados do rendimento escolar
dos alunos, medidos por testes em larga escala, utilizados como indicadores da qualidade de ensino
e como forma de controle da educação nacional. Nesse sentido, dificilmente pode-se falar em caráter
inovador dessas avaliações.
Palavras-chave
Política educacional. Avaliação em larga escala. Inovação educacional.

Abstract
The text discusses the evaluation policies in large scale in the scope of Brazilian educational policies,
showing how the evaluations became central in political actions in education, characterized by a pro-
ductivist perspective and linked to pressures from international organizations. With this perspective in
mind, a management model has been installed, which is based on the results from the students school
performance, measured by large scale tests, used as indication of teaching quality and as a way of con-
trolling national education. In this way, it is hardly to talk about innovative aspect of these evaluations.
Key words
Educational policies. Large scale evaluation. Educational innovation.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 29-37, jan./jul. 2012
Para discutir as políticas de ava- postas em nível do MEC, e de secretarias
liação em larga escala, faz-se necessário de educação, nas duas últimas décadas.
considerá-las no conjunto das políticas Os Parâmetros Curriculares Nacionais e o
educacionais no seio das quais elas se Plano Nacional de Educação (PNE) 2001
aninham. Só assim podemos desvelar o foram posteriores à implementação das
sentido e os significados que elas podem avaliações externas das redes de ensino,
assumir nas realidades socioeducacionais as quais datam do início dos anos 1990 e,
em seu caráter histórico. E, como explicitam mesmo sobrevindo tardiamente nas polí-
Gatti, Barretto e André (2011, p. 31), ticas de governo em relação às propostas
[...] o caráter histórico das políticas já implementadas de avaliações em larga
educacionais remete, por sua vez, à escala, não representaram papel condizen-
necessidade de analisá-las com base te com uma perspectiva política integrante
no contexto nacional e internacional para a educação escolar. A proposição des-
em que se inserem, das demandas de sas avaliações, assim como de parâmetros
diferentes âmbitos a que procuram curriculares, foi, sem dúvida, motivada pela
responder e da própria evolução das necessidade de aumentar o controle da
tradições educativas em que elas são educação nacional por parte do governo
desenhadas e postas em prática. central, através desse sistema avaliativo,
Não é de hoje que se coloca nas introduzindo uma nova lógica de operar o
discussões havidas em vários eventos sistema público, tal como ocorreu na maior
científicos e nos trabalhos aí apresentados1 parte dos países desenvolvidos e em toda
que, no Brasil, tivemos uma inversão na a América Latina (AFONSO, 2000; RAVELA,
ênfase de ações políticas, tanto do MEC 2000; GATTI; BARRETTO; ANDRÉ, 2011).
como de secretarias de educação, privile- Essas avaliações se tornaram o
giando sobretudo as políticas de avaliação carro-chefe das ações políticas em educa-
do desempenho escolar em detrimento ção, muito especialmente em nível federal.
de definição e orientações claras de uma De um lado, podemos dizer que, subja-
filosofia e política educacional abrangente centemente, isso indica uma perspectiva
e articuladora, especialmente de políticas produtivista em educação, que veio se
de currículo, onde as questões de avaliação acentuando, e de outro, sinaliza para a
em larga escala se inseririam. Observa-se sua vinculação às pressões de organis-
certo esgarçamento no tocante a esses as- mos internacionais, especialmente os que
pectos quando se analisam as ações pro- favorecem financiamentos de diferentes
ordens ao país. Conforme os autores aci-
ma citados, no modelo gerencialista que
1
Estamos nos referindo, em particular, aos últimos passa a informar as reformas educacionais
encontros da ANPED e ANPAE, dos ENDIPEs e dos
CEPFEs – Congresso Estadual Paulista de Formação
no mundo globalizado, o foco se situa
de Professores, e I Congresso Nacional de Formação nos resultados de rendimento escolar
de Professores, cujos Anais são disponíveis. dos alunos, medido por testes em larga

30 Bernadete A. GATTI. Políticas de avaliação em larga escala e a questão da inovação educacional


escala, com grande ênfase na eficácia na busca de equidade educacional. O que
e na eficiência das escolas no manejo colocamos é que, não se pode pensar que
do currículo. Isso, sem apoiar as escolas se cumpre esse compromisso e se obtém
no que diz respeito a esse manejo. No melhoria na educação escolar apenas
caso do Brasil, a busca pela qualidade do através da pressão de avaliações externas
ensino, equacionada nos termos de suas (e até de comparações cientificamente
avaliações externas, ocorre principalmente espúrias)2, sem o contraponto de políticas
no interior das próprias redes públicas de de melhor qualificação dos profissionais
ensino, responsáveis majoritárias pelas da educação, com inovações relevantes
matrículas da educação básica no país, em sua formação inicial e continuada, e
e a tendência das ações implementadas de financiamento suficiente, com grandes
é a de assumir um caráter meramente investimentos, coerentes e articulados, seja
supletivo e compensatório. No caso brasi- em infraestrutura, seja em apoios pedagó-
leiro, em duas áreas curriculares apenas: gicos nas redes.
língua portuguesa (leitura) e matemática. O investimento em mídia para que
Com esse caráter, falarmos em inovação este carro-chefe – as avaliações externas
educacional provocada por essas avalia- – assumisse socialmente proporções de
ções, entendida inovação como avanços solução para os problemas escolares foi
propositivos em didáticas, em renovação alto, explorando-se os aspectos pragmáti-
curricular, em materiais didáticos diferen- cos e competitivos de resultados sobre os
ciados dos existentes, projetos formativos quais não se pergunta de sua validade,
renovadores, para a escola básica como seja política, seja teórica, seja técnica, seja,
um todo, parece-nos inapropriado. O que acima de tudo, socioeducacional. Não se
se constata são ações que procuram cobrir põe a questão dessas avaliações, tal como
as lacunas de desempenho nessas duas são realizadas, em relação às finalidades
áreas do conhecimento, por parte dos da educação básica para o Brasil, em sua
estudantes, com propostas sobejamente conjuntura, essencial para a construção
conhecidas há tempos. Nos projetos for- de políticas educacionais articuladas,
mativos de professores que se propõem avaliações sustentadas por uma filoso-
como renovadores (UAB, PARFOR etc.), o fia educacional mais humanitária, e por
que se constata é a reprodução de formas inovações consistentes nos processos de
curriculares tradicionais (veja-se estudo de ensino-aprendizagem.
Gatti, Barretto e André, 2011). As avaliações e suas matrizes,
Ao lembrarmos as pressões interna- as comparações e indicadores e metas
cionais ligadas às propostas da UNESCO
de “Educação para Todos”, cujos compro-
missos o Brasil assinou, não queremos 2
Por ex. ver artigo de Ruben Klein sobre as com-
afirmar que essas propostas não sejam parações realizadas com os dados do PISA (KLEIN,
éticas e relevantes. Elas o são: caminham 2011)

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 29-37, jan./jun. 2012. 31


propostos, sem um questionamento mais produto está dentro da linha quantitativa
sério, ao longo do tempo, de seus funda- de produção proposta, em um discurso
mentos, origens e pertinência, são erigidas educacional ambíguo, mas que sinaliza
de modo funcional e fragmentário, em eixo a positivação de números estimados por
das ações políticas em educação. Se, em critérios probabilísticos, em detrimento de
seus inícios, essas avaliações eram apre- pessoas em situações heterogêneas, e com
sentadas como apenas diagnósticas, elas a redução do mundo da escola, da edu-
passaram a ser tomadas como a grande cação, a duas áreas de conteúdo – língua
política de currículo educacional e, mais portuguesa e matemática.
recentemente, como política definidora de Na perspectiva da didática e das
equidade social. Cabe perguntar que ele- teorias pedagógicas, focaliza-se a avalia-
mentos pedagógicos realmente oferecem ção do ponto de vista dos processos de
para a inovação educacional, mesmo que ensino-aprendizagem. Já o modelo de
seja apenas nas duas áreas consideradas? gestão de políticas educacionais centrado
Olhando o modelo utilizado universalmen- nos resultados não se mostra particular-
te nessas avaliações e a escala utilizada, mente preocupado com os processos. O
há pouca informação que possa alimentar IDEB tornou-se a expressão de qualidade
e orientar processos de ensino. O dado fica do ensino, a qual, nessa postura, é tradu-
como provocador, supondo-se, parece, que zida por um cálculo que tem por base o
cada escola, cada rede se “vire” para atingir desempenho do aluno obtido por meio
metas teóricas propostas. dos testes de larga escala e em taxas de
Não se constata lastro educacional e aprovação. Então, consoante a perspectivas
pedagógico mais denso nessas propostas da globalização, estabeleceram-se metas
avaliativas, mesmo com toda a sofisticação de desempenho, estipulando-se o prazo até
metodológica. Não estão postas questões 2021, para que os alunos das escolas bra-
de base para sustentá-las: educação es- sileiras atinjam os padrões apresentados
colar básica para quê, para quem, para pelos sistemas escolares dos países desen-
que futuro país? Qual educação escolar? volvidos, referenciando-se nos resultados
Apenas se discute se o IDEB3 – medida do Programa Internacional de Avaliação
educacional bem restrita – deste ou da- da Aprendizagem (PISA). Estados e mu-
quele estado ou município, e até escola, nicípios, que são os responsáveis diretos
atingiu ou não a meta teórica proposta. O pelas redes escolares da educação básica,
IDEB coloca um desafio às redes, que é a passam a ser cobrados incisivamente,
obrigação de se empenharem para que induzindo a uma progressão orientada
todos, indiscriminadamente, aprendam por metas quantitativas com vistas ao
aquilo que a prova mede. Ou seja, se o alcance deste “padrão de qualidade.” O
grande desafio da educação no país, a
melhoria da qualidade do ensino, tende,
3
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. portanto, a se traduzir fundamentalmente

32 Bernadete A. GATTI. Políticas de avaliação em larga escala e a questão da inovação educacional


no seu equacionamento em termos da pedagógicos. Perde-se, também, de vista,
capacidade de alcançar um bom resultado com essa sofisticação estatística que foi
na pontuação do IDEB. Se de um lado, generalizada em seu uso aqui no Brasil,
os dados desse indicador, mesmo com a questão curricular que subjaz a ela.
as restrições quanto à sua composição, Justifica-se esse uso indiscriminado com
poderiam servir de informação e estímulo a vantagem da comparabilidade; mas,
aos gestores, de outro, o que se observa para se ter comparabilidade de resultados,
é que vêm propiciando comparações pro- dispõe-se de vários outros mecanismos
blemáticas e um reducionismo na gestão estatísticos. Seria importante trabalhar
do currículo escolar. com certa variação nos modelos avaliati-
Como afirma Flávia Werle (2011, vos, definidos para situações e objetivos
p. 769), em estudo sobre esses sistemas específicos, considerando as finalidades
avaliativos, as avaliações externas em larga de cada nível, subnível ou área de ensi-
escala, do desempenho escolar, passaram no que compõem a educação básica de
de “um nível de diagnóstico, para os signi- modo integrado com os diferenciais de
ficados pautados pelo pragmatismo e ope- desenvolvimento cognitivo-sócio-afetivo
racionalização”. Completamos, apontando das crianças, adolescentes e jovens – seres
também a segmentação das matrizes por em desenvolvimento. O próprio ENEM, que
conteúdos (definidos genericamente por se originou com um sofisticado modelo de
especialistas, já que não temos currículo habilidades e competências, propondo-se
claro) ou, por competências/habilidades a trabalhar com questões de cunho inter-
(mal definidas, e, portanto mal compre- disciplinar e com metacognição, veio re-
endidas). Essas avaliações passaram, centemente a ser adaptado ao modelo da
também, por um nivelamento para uma Prova Brasil e à metodologia TRI. A própria
escala única, todas baseadas na Teoria da construção dessa escala é controversa, não
Resposta ao Item (TRI), aí incluídas avalia- se tendo informação de quais itens foram
ções de estados e alguns municípios que considerados ou não nos resultados, entre
ajustaram seus modelos à TRI. Não se faz outros aspectos. Faltam informação e trans-
um questionamento mais profundo se esse parência. Ainda, na própria área estatística
procedimento é adequado para todas as discute-se a consistência desse modelo
situações, apenas adere-se. Não se levanta probabilístico de estimativa de desempe-
a questão relevante sobre a contribuição nho de estudantes, e, no caso do modelo
pedagógica para as escolas dessa escala, estatístico, o que se propõe é a detecção
no formato divulgado, e também não se de um traço cognitivo latente, havendo na
faz considerações sobre a perda de infor- literatura especializada várias restrições às
mações educacionais importantes como, funções probabilísticas utilizadas.
por exemplo, a análise dos erros, que Por outro lado, o MEC está propondo
muito informam sobre caminhos cogni- a discussão das “expectativas de aprendi-
tivos e contribuem para planejamentos zagem” para a educação básica e as

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 29-37, jan./jun. 2012. 33


pergunta que se colocam são: com que Mesmo com a colocação em docu-
bases se faz essa discussão? Sobre qual mentos oficiais que essas matrizes tinham
perspectiva educacional e quais tipos de como referência os Parâmetros Curricula-
conhecimentos? Não há como lidar com res, depois que eles foram editados, sem-
expectativas de aprendizagem escolar sem pre foi difícil reconhecê-los nos tópicos
um currículo explicitado, caso contrário operacionais das matrizes do SAEB, ENEM
fica-se em generalidades ocas. ou Prova Brasil. Matrizes são funcionais e
Os parâmetros, referenciais ou orien- demandam especificação de conteúdos
tações curriculares nacionais, ainda que curriculares em uma forma “avaliável”,
oficiais, são de caráter amplo, aberto e portanto, não dão conta de processos de
flexível, não tendo na maioria dos casos aprendizagem, mas sim de um tipo de
caráter de obrigatoriedade. As redes esta- desempenho sob certas condições, num
duais e municipais de ensino têm boa dado momento. Elas não podem substituir
margem de autonomia para organizar seus propostas curriculares com seus desdobra-
currículos, podendo construir suas próprias mentos pedagógicos.
orientações curriculares de acordo com Essas considerações que fazemos
suas necessidades e possibilidades, o que têm a intenção de colocar um pouco mais
leva a diferenciais formativos escolares, con- de reflexão quanto aos fundamentos e
forme a orientação específica e distribuição processos desses modelos avaliativos, e
dos conteúdos. Considere-se também que a função real que podem ter, mas não
vários estados e muitos municípios não pretendem invalidar o papel de avaliações
estruturaram suas orientações curriculares, externas, que, quando bem conduzidas e
ficando essa questão a cargo das escolas. bem tratadas social, educacionalmente e
Embora haja, nas novas formas de regula- eticamente, podem trazer contribuições
ção assumidas pela União, uma ampliação relevantes à gestão educacional e aos
do caráter centralizador da ideia de um processos de ensino-aprendizagem.
currículo nacional, via a política dos livros Cabe a pesquisadores da educa-
didáticos e dos modelos nacionais de ava- ção aprofundar as análises sobre esses
liação, a variação curricular entre escolas, processos, conduzindo investigações de
municípios e estados é grande, cabendo meta-avaliação, procurando contribuir para
perguntar sobre a validade das matrizes aperfeiçoamentos e redirecionamentos,
adotadas nessas avaliações. Também, a tendo como referência as escolas em suas
incidência ou o papel das matrizes avalia- práticas pedagógicas. Mas, para tanto, é
tivas substituindo uma proposta curricular, preciso conhecer os meandros das meto-
apenas se poderia fazer sentir nas duas áre- dologias avaliativas e ter no horizonte
as que são avaliadas, isso, se especialistas uma visão de filosofia política educacional.
destrinchassem nas redes essas matrizes. As propostas avaliativas de desempenho
Ou seja, se elas fossem adequadamente escolar podem ser muito significativas e
apropriadas pelos gestores e professores. úteis, tanto como diagnóstico, ou como

34 Bernadete A. GATTI. Políticas de avaliação em larga escala e a questão da inovação educacional


avaliação posterior ou simultânea ao de- avaliação, sejam as de redes de ensino,
senvolvimento de políticas ou programas sejam as de sala de aula, com maior do-
educacionais. Porém as avaliações de mínio de conhecimentos, com seriedade e
desempenho escolar precisam estar apoia- transparência, com bom senso e pondera-
das em uma proposta educacional clara, ção, com uma visão pedagógica, utilizando
uma base curricular real e dependem de seus resultados como meio de apoio para
boas perguntas sobre situações concretas a melhoria das condições educacionais
dentro de uma perspectiva educacional escolares. Em nível de redes, pela criação
explicitada. A avaliação não prescinde de de políticas coerentes e mais consistentes
uma visão política, de uma projeção de para a melhoria do ensino escolar. Em
sentido, mesmo a diagnóstica: os porquês nível de escola, pela atuação direta de
e os para quê e para quem. Isto é exigência diretores, coordenadores, supervisores pe-
básica de uma postura democrática e de dagógicos, pedagogos, e, dos professores
uma perspectiva humanitária em que a em suas salas de aula. Mas, para tanto
avaliação educacional tem como perspec- são necessárias metodologias de avaliação
tiva essencial alavancar aprendizagens e adequadas a cada caso com sua validade
desenvolver pessoas e instituições. Então, minimamente garantida. Validade interna
é preciso considerar que os processos de e externa.
avaliação educacional devem ser concebi- Na situação que vivenciamos até o
dos e executados, não como instrumentos momento, há sinalizações de que estamos
de exposição punitiva, de depreciação, mas, longe de concretizar essa perspectiva com
sim, como meios auxiliares para melhorar nossos modelos de avaliação externa e a
processos de gestão, processos de ensino e forma de tratamento, divulgação e formas de
garantir aprendizagens significativas, para utilização dos resultados. Estamos assistindo
orientar ações didáticas, corrigir problemas a mobilizações de alguns estados e municí-
e solucionar impasses. Sua utilização ver- pios quanto aos desempenhos dos alunos,
dadeiramente democrática pressupõe uma mas, apenas em duas áreas de conheci-
nova ética social. mento (as avaliadas), o que representa um
Seria importante questionar-se, reducionismo curricular e uma fragmentação
com análises mais profundas e de cunho no trabalho das escolas. Com esse modelo
educacional, se o modelo adotado em fica difícil entrar em pauta o conceito de
nossas avaliações externas de larga es- educação integral. Nos últimos anos, o IDEB
cala propiciam informações pertinentes tornou-se a referência mais direta para ad-
ao trabalho pedagógico no cotidiano das ministradores escolares e para políticos. No
escolas, trabalho que, esse sim, é responsá- entanto não há como negar que a maioria
vel pela qualidade da formação oferecida dos gestores se restringe a criar pressões que
a crianças e jovens, e pela construção de se dirigem mais para o alcance de metas nu-
um processo de equidade social. Por isso, méricas a qualquer custo, em dois quesitos
há necessidade de tratar as questões de curriculares, do que a criar mobilizações em

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 29-37, jan./jun. 2012. 35


relação a aspectos de gestão educacional e Voltamos a Werle (2011), que, após
mobilizações em relação a aspectos ligados densa análise das políticas de avaliação
à gestão pedagógica, considerando cada do MEC e sua incidência em políticas
escola em seu todo. Há o efeito de segmen- correlatas4, refere-se ao emprego intensivo
tação da escola – português e matemática de tecnologias da informação na adminis-
de um lado, as demais disciplinas ao léu. tração da educação, o que proporciona
Temos poucos exemplos eficazes de políticas uma enorme centralização do controle, e
e planejamento educacional subsidiado por que, com a “padronização de áreas, indica-
análises detalhadas e aprofundadas, com dores e critérios presentes nos instrumen-
os dados regionais ou locais dos processos tos de coleta de dados, retira a escola de
avaliativos, o que seria interessante, mesmo um patamar de autoidentidade formulada
considerando seus limites e problemas. a partir de seu próprio olhar para lançá-la
Mas, mesmo poucos, os exemplos existem como organização caracterizada por uma
(embora nem sempre subsistam). Entre vá- linguagem padrão, universalizante e uni-
rias iniciativas recentes, podemos lembrar ficadora.” Conclui, então, que
as experiências de municípios como os A crença na capacidade reguladora
de Amargosa (BA), Campo Grande (MS), dos números e índices produzidos
Dourados (MS), Farroupilha (RS), Itaiçaba pelas avaliações é reforçada por todas
(CE), Petrolina (PE), Pompéia (SP), Santarém as estratégias adotadas nos vários
(PA), Santos (SP), São Sebastião do Paraíso programas em nível federal. (WERLE,
(MG), Sobral (CE) e Triunfo (RS), nos quais 2011, p. 790).
foram desenvolvidos processos de implan-
tação de currículo, formação continuada de Considerações finais
professores e sistema próprio de avaliação, Os pesquisadores em educação
integrados por uma política educacional precisam voltar-se mais ao estudo e à
local. Os dados evidenciam nesses locais discussão das avaliações externas em
melhorias substantivas no desempenho larga escala, quer quanto aos aspectos
escolar das crianças. (Ver Documentos do relativos às políticas e ações educacionais,
Prêmio de Inovação em Gestão Educacional, quer quanto aos aspectos teóricos e aos
INEP/MEC, 2008). Também podemos lembrar procedimentos implementados, à luz de
aqui experiências diferenciadas de estados uma perspectiva também pedagógica.
como Acre, Pernambuco, Ceará e Paraná Estudos meta-avaliativos podem con-
(GATTI; BARRETTO; ANDRÉ, 2011). Temos a tribuir para análises consistentes quanto
observar que há um aspecto a considerar
nessas iniciativas, na realidade brasileira,
4
que é o da descontinuidade de políticas Programa Universidade para Todos (PROUNI);
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE),
implementadas, o que quase sempre ocorre que contém vários programas; Sistema de Seleção
nas administrações públicas na passagem Unificada para ao Ensino Superior (SISU); Plano de
de um gestor para outro. Ações Articuladas (PAR) e seus desdobramentos.

36 Bernadete A. GATTI. Políticas de avaliação em larga escala e a questão da inovação educacional


às políticas avaliativas adotadas no país e de estereótipos, reconhecer as diversidades
seus percursos histórico-sociais. Quanto à e acreditar que é possível melhorar, mudar
perspectiva de meta-avaliação, ela permite; uma condição, respeitar situações.
(1) manter nossa capacidade “crítica” em Quando se trata de avaliação que
estado de atenção, evitando o subjugar-se atinge pessoas em sua vida escolar, por-
por opiniões “prontas” e justificativas pseu- tanto, em sua vida social, há cuidados
dorrevolucionárias; (2) buscar certo domínio imprescindíveis a tomar. Envolve questões
sobre os métodos empregados (o que de ética, além de envolver conhecimento
permite uma visão consciente quanto à científico e técnico. Não pode ser um pro-
avaliação e seus resultados; limites, proble- cesso construído com ligeireza e adesismo.
mas, contribuições); (3) trabalhar os fatos e É preciso refletir sobre os objetivos e os
dados da avaliação educacional com uma impactos desse processo, que tem conse-
visão prospectiva de aprimoramento, ala- quências pessoais, institucionais, sociais.
vanca para desenvolvimento de domínios Os processos avaliativos são processos que
de conhecimentos, saberes, formas de agir; implicam necessariamente julgamento de
(4) traçar novos caminhos de socialização valor, e é preciso que se tenha consciência
de saberes, lembrando o direito de todos ao ética em relação aos objetivos, finalidades,
conhecimento, à apropriação de saberes ne- procedimentos empregados, socialização
cessários a uma melhor existência e aos cui- das informações e ações decorrentes e
dados de si e do outro; (5) fugir ao domínio seus consequentes.

Referências

AFONSO, A. J. Avaliação educacional: regulação e emancipação. São Paulo: Cortez, 2000.


GATTI, B. A.; BARRETTO, E. S. S.; ANDRÉ, M. E. D. A. Políticas docentes no Brasil: um estado da
arte. Brasília: UNESCO, 2011.
KLEIN, R. Uma re-análise dos resultados do PISA: problemas de comparabilidade. Ensaio: Ava-
liação e Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro, v. 19, n. 73, p. 717-768, dez. 2011.
INEP/MEC. Prêmio de Inovação em Gestão Educacional, Documentos, 2008.
RAVELA, P. et al. Hacia donde y como avanzar en la evaluación de aprendizages en América
Latina. Umbral 2000, Digital n. 3, mayo, 2000. Disponível em: <www. reduc.cl>.
WERLE, F. O. C. Políticas de avaliação em larga escala na educação básica: do controle de
resultados à intervenção nos processos de operacionalização do ensino. Ensaio: Avaliação e
Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro, v. 19, n. 73, p. 769-792, out./dez. 2011.

Recebido em abril de 2012


Aprovado para publicação em junho de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 29-37, jan./jun. 2012. 37


Possibilidades e limites da avaliação em larga
escala na construção da qualidade da escola pública
Possibilities and limits of large scale tests in the
construction of public school
Mara Regina Lemes De Sordi
Doutora em Educação e professora da Faculdade de Edu-
cação, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
E-mail: maradesordi@uol.com.br

Resumo
Neste artigo, analisam-se os significados de uma regulação da qualidade educacional focada no desem-
penho dos estudantes nos exames de larga escala. Discute as possibilidades e limites deste modelo e
mostra os riscos decorrentes de política de avaliação que se vincula a formas de recompensa de quaisquer
ordens. O texto destaca o papel central da avaliação nas reformas educativas e aponta a necessária
retomada do debate sobre a concepção de qualidade que tais propostas veiculam. Finalmente indica o
lugar da avaliação institucional participativa como estratégia para envolver os atores da escola na defesa
da qualidade escola pública fortalecendo seu protagonismo.
Palavras-chave
Avaliação de sistemas. Avaliação institucional. Reformas educativas.

Abstract
The article analyzes the meanings of a regulation of education process focusing on the students perfor-
mance in large scale tests. It discusses the possibilities and the limits present in this model and shows
the risks that occurs in assessment policies which linking results with salary increases or another kind
of awards. The text emphasizes the central role of evaluation in the educational reform and appoints the
necessary rethinking about quatity conception presents in these proposals. Finally it highligts the specific
place of participative institutional evaluation to stimulate the protagonism of the actors in defense of
quality public school help them to become stronger and prepared to participate in evaluation process
Key words
System evaluation. Institucional evaluation. Educational reform.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 39-53, jan./jul. 2012
Introdução ficada na base dos níveis diferenciados de
educação e qualificação, supostamente de-
Quanto mais se discute a importân- pendentes da exclusiva vontade e capaci-
cia da educação na vida das pessoas, mais dade dos indivíduos, terá necessariamente
se justificam esforços de re-significação de amplas implicações não apenas em termos
alguns discursos que ecoam nas escolas de redefinição de vínculos e identidades
e reclamam por maior transparência polí- pessoais e familiares, mas também em
tica por parte daqueles que os empregam termos da ordem e coesão sociais.
dada a fluidez dos termos utilizados e a A universalização do acesso à edu-
multiplicidade de sentidos que possuem e cação, bandeira de lutas históricas, não
pretendem produzir. foi pensada em detrimento da qualidade
Deriva daí o uso e abuso de catego- do ensino. A lógica binária “quantidade
rias tais como Projeto Pedagógico (PP) e menor de alunos/qualidade maior do en-
Avaliação, como se a mera referência a estas sino” ou “quantidade ampliada/qualidade
tivesse o poder de promover a qualidade diminuída” não pode ser aceita nem pode
educacional. Observa-se que, quanto mais justificar descaso com a qualidade da es-
se fala em ambas, mais se ocultam as con- cola pública. Interessa-nos uma qualidade
tradições que as perpassam historicamente. de ensino que supere o viés utilitarista e
O discurso do direito universal de que seja socialmente pertinente.
acesso à educação de qualidade tem se A concepção de qualidade orienta-
transformado em quase um dever para dora dos processos avaliatórios em larga
aqueles que pleiteiam uma vida cidadã. escala precisa ser mais bem explicitada.
Compete-lhes individualmente lutar por Corre-se o risco de se tomar o êxito nas
um lugar no projeto da escola e avançar avaliações externas como expressão de
desde a educação básica até a educação qualidade do processo educacional. As
superior de forma meritocrática. A de- concepções de qualidade que perpassam
cantada aprendizagem ao longo da vida tais políticas via de regra subtraem do de-
requer que os estudantes e trabalhadores bate social o significado dessas escolhas
assumam compromisso pessoal com a e fazem crer que há consenso sobre a
produção de condições ampliadoras de qualidade que se busca induzir a partir
sua empregabilidade, sendo assim indu- de referenciais implícitos os quais vão
zidos a buscar qualificação e certificação sorrateiramente sendo interiorizados pelas
escolar a qualquer custo, sob pena de redes de ensino e sociedade. Paro defende
não se tornarem ou não se manterem como conceito de qualidade aquela que
competitivos. São, pois, responsabilizados [...] vê a educação como formação
unilateralmente pelas diferentes formas de da personalidade humano-histórica
exclusão que venham a ser submetidos. do educando, pela apropriação da
Segundo Afonso (2008, p. 24), essa cultura em seu sentido pleno, que
nova estratificação que se pretende justi- inclui conhecimentos, informações,

40 Mara Regina Lemes De Sordi. Possibilidades e limites da avaliação em larga escala na...
valores, arte, tecnologia, crenças, fi- à educação. Insuficientes para expressar
losofia, direito, costumes, tudo enfim a realidade da escola e do cotidiano do
que é produzido historicamente pelo trabalho pedagógico desenvolvido pelos
homem e que, numa democracia, o professores, essas medidas têm sido to-
cidadão deve ter o direito de acesso madas para orientar políticas públicas e
e apropriação. (PARO, 2011, p. 696).
retroagem sobre as escolas, ainda que
A discussão sobre a qualidade da de modo pontual, porém marcante, inter-
escola pública desgarrada da explicitação ferindo em seus projetos pedagógicos.
da concepção de qualidade que se tenta Podem desviar a atenção dos atores da
alcançar tem favorecido o uso indiscrimi- escola de aspectos essenciais à formação
nado dos índices obtidos pelos estudantes humana simplesmente pelo fato de não se
nos exames nacionais/internacionais enquadrarem nas matrizes de referência
como balizamentos quase exclusivos para utilizadas nos exames.
a definição de políticas públicas educacio- Fruto da responsabilização vertical
nais. Embasadas em uma visão de produto a que são submetidas, as redes de ensino
facilmente expresso pelas medidas que são são induzidas a trabalhar para a elevação
publicizadas na forma de ranqueamento, o dos índices tradutores de uma qualidade
fenômeno educacional é tomado de forma regida pelo viés mercadológico e tendem
reducionista. a implementar um conjunto de respostas
Dada a imediatez da lógica merito- de cunho utilitarista, para melhor se loca-
crática que perpassa tais políticas favoreci- lizarem no ranking nacional decorrente da
das pela distribuição acintosa de prêmios divulgação dos resultados obtidos. Entre
ou sanções de quaisquer naturezas socia- estas merecem destaque a adequação da
lizadas com apoio da mídia, tem-se obser- base curricular ao que os testes valorizam;
vado resposta de cunho adaptativo das a padronização das práticas pedagógicas;
redes de ensino. A força indutora dessas o apostilamento dos materiais didáticos.
políticas nos projetos pedagógicos da es- Disto decorre a desistência dos coletivos
cola ratifica uma concepção de qualidade escolares de seu protagonismo na for-
estreita e mercadológica. mulação plural dos destinos do projeto
Em tempos marcados pelo viés pedagógico da escola. Frente aos baixos
da regulação e do controle em nome de resultados dos alunos, os professores são
uma qualidade educacional esvaziada de culpabilizados, e a solução mágica dos
sentido social, não convém descuidar das problemas é creditada a bons processos
políticas de avaliação que incidem sobre de gestão da escola, criando brechas para
a escola. processos de privatização da educação.
O uso das medidas obtidas pelos O uso da avaliação externa e os
alunos nos exames de desempenho quan- desdobramentos resultantes da divulgação
do tomados como parâmetros absolutos de dos índices obtidos pelas escolas interfe-
qualidade, podem constituir um desserviço rem fortemente nos processos decisórios

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 39-53, jan./jun. 2012. 41


das redes de ensino mesmo quando estas passam a ter que assumir e que, sublimi-
contestam o modelo de regulação vigente. narmente, inclui o dever de “produzir” me-
A meta acaba sendo melhorar os índices o lhoras nas estatísticas educacionais usadas
que necessariamente não implica melho- como balizamentos para a agenda política.
rias nas aprendizagens dos estudantes. Enfrentar essa situação implica
Não negamos a importância que o muita lucidez profissional para que se
conjunto de medidas sistêmicas tomado encontre a justa medida para reorganizar
como série histórica, possa ter na vida o trabalho pedagógico concreto, de modo
da escola, ajudando-a a repensar-se no que este possa fazer alguma diferença no
processo de monitoramento de seu pro- espaço micro da escola sem desconsiderar
jeto pedagógico. Essa potência precisa a necessidade de lutar, de forma organiza-
ser explorada, e isso compete diretamente da e sustentada por argumentos sólidos e
aos atores da escola para, em uso de sua eticamente defensáveis, por outra escola,
competência coletiva, organizarem-se nos demais espaços sociais, em conjunto
para entender, explicar, ratificar, contestar com outros atores e forças progressistas.
os resultados de seus alunos à luz das Morin e Kern (1995, p. 134) advertem
circunstâncias e contextos locais. A apro- que
priação crítica dessas medidas pelos atores [...] se não há coerções suficientes para
da escola subsidia o planejamento de que a história possa ser determinada,
ações que orientam a vida institucional há coerções que impedem certas pos-
e alimenta a formulação de um pacto de sibilidades. A questão é saber quais
qualidade negociado entre atores diferen- as coerções que coagem. A impossi-
temente situados na cena política. Mas a bilidade de eliminar todas as coerções
inexistência de clima propício ao debate nos diz que não existe o melhor
plural sobre esse pacto de qualidade tende dos mundos. Mas ela não impede a
possibilidade de um mundo melhor.
a subtrair do projeto pedagógico da escola
vozes e olhares tidos como periféricos, mas A clareza da complexidade do pro-
que não podem ser descartados se o que blema nos convoca a reacender o debate
interessar for de fato uma implicação dos sobre alianças necessárias para fazer
atores com a causa comum. acontecer um projeto educativo emancipa-
Isso nos remete a interrogar o quanto tório, e isso requer estratégias que explo-
os professores (e a escola) conseguem lidar rem a centralidade da avaliação na vida da
com os informes dessas políticas externas escola/sociedade contemporânea. Alianças
de avaliação. Conhecedores dos limites entre profissionais da educação e comu-
que a educação, isoladamente, tem para nidade escolar, alianças entre professores
dar conta do sonho de inclusão e de su- que atuam nas universidades e professores
cesso em uma sociedade atravessada por que atuam nas escolas são inadiáveis de
assimetrias de todas as ordens, tendem a modo a superar o distanciamento entre
inquietar-se com a responsabilidade que segmentos reconhecidamente comprome-

42 Mara Regina Lemes De Sordi. Possibilidades e limites da avaliação em larga escala na...
tidos com causas comuns, que, paradoxal- auxiliar na avaliação final, ou seja,
mente, têm agido de forma desarticulada na avaliação de produto. Explico. En-
desperdiçando saberes e poderes. quanto um objeto qualquer se deixa
avaliar depois de pronto, o produto da
Essa recomposição de forças pode
educação, por ser sujeito, dotado de
jogar a favor do desenvolvimento de novas vontade, e em virtude das qualidades
relações dentro e fora da escola, reforçando que o caracterizam, e que precisam,
a aprendizagem estratégica da competên- portanto, ser avaliadas, não pode ser
cia coletiva dos atores sociais em prol da avaliado pelos sistemas usuais de
escola pública de qualidade. aferição de um objeto qualquer, nem
Cabe mais do que nunca usar pelas provas e pelos testes utilizados
essas alianças para oferecer alternativas para aferir conhecimentos.
de contrarregulação no campo avaliatório Processos de regulação propostos
(FREITAS, 2007). pelo sistema central não podem prescindir
A escassez de formatos de avaliação de outro nível de avaliação, denominado
alternativos e complementares aos proces- por LIMA (2008) como de mesoabordagem.
sos de avaliação em larga escala, produ- Na mesoabordagem rompe-se com antino-
zidos pelo sistema, reclama também por mias clássicas, do tipo macro/micro, pela
alianças entre pesquisadores e profissio- introdução de perspectivas de análise
nais das escolas. Gerada a condição de in- intermediárias, ou mediadoras. Trata-se de
terlocução respeitosa entre eles, desafiando uma espécie de “meio de campo”, a partir
as fronteiras reais ou imaginárias que os do qual é possível reconstruir a totalidade
separam, ganha-se condição para atualizar do social, integrando as perspectivas rele-
os debates sobre os significados dos estu- vantes e, no entanto, parcelares das visões
dos sobre a eficácia da escola e a quem macro e micro (LIMA, 2008, p. 315).
serve os números da avaliação externa A avaliação institucional, ao tomar a
transformados em índices e que parecem escola como referência, revela-se estratégia
irrefutáveis à primeira vista. potente de contrarregulação (FREITAS et al.,
Conforme Paro (2011, p. 707), 2009) exercida sobremaneira no âmbito
da mesoabordagem. Interioriza o debate
[...] não se pode, quando se trata do
sobre qualidade do ensino privilegiando
produto educacional, contar apenas
com a avaliação de produto propria-
o locus no qual o protagonismo pertence
mente dita. Esta precisa ser enrique- ao coletivo dos atores da escola devida-
cida com a avaliação de processo. mente referenciados ao PP que acordaram.
Observe-se que, em virtude da espe- Evidentemente essa decisão esbarra na
cificidade da educação, bem como do cultura escolar existente e na disposição
processo educativo e de seu produto, e capacitação das equipes escolares para
a avaliação em processo, além de ser participar das ações avaliatórias acionadas
necessária para o êxito na confecção em cada realidade. Nesse âmbito, cremos
do produto, é chamada também a que os informes gerados pela avaliação

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 39-53, jan./jun. 2012. 43


externa tendem a ser úteis, mas no exato não ensina. Não há ainda como ignorar
lugar que podem ocupar, qual seja subsí- que as famílias têm começado a se preocu-
dios do diagnóstico da qualidade escolar, par com os índices que localizam a escola
exercendo função meio, e não fim. de seus filhos no ranking educacional e
pleiteiam melhoras mesmo quando não
1 Possibilidades e limites da avaliação compreendem profundamente a arquite-
em larga escala na construção da tura dos modelos de regulação ora em
qualidade da escola pública condição de hegemonia.
Os professores se queixam das con-
Qualificar uma instituição complexa dições de trabalho e da falta de apoio das
como a escola pública em um contexto famílias e das equipes gestoras, e estas,
social marcado pelas contradições do por sua vez, sinalizam a falta de aderência
mundo globalizado, embora se inscreva dos professores ao PP da escola bem como
no campo das prioridades educacionais o excesso de demandas que recebem do
impostergáveis, não se apresenta como sistema central que os absorve no cumpri-
algo de fácil concretização. mento tarefeiro e repetitivo de encaminha-
Construir uma “nova” escola dentro mento de dados, que culmina com o desvio
de um modelo social que não se alterou da função finalística que deveriam cumprir
é tarefa desafiadora. Porém a historicidade junto à comunidade escolar.
dos processos sociais, por contradição, in- Por sua vez, o sistema central tam-
troduz o germe da transformação no cená- bém lastima as estatísticas sobre a eficácia
rio das escolas, possibilitando o surgimento das escolas que compõem sua rede de
de alternativas contra-hegemônicas que se ensino. Por mais que invistam, os resulta-
opõem ao instituído. É preciso desenvolver dos insistem em não mudar. Continuam
novas formas de atuar e reestruturar as aquém dos índices desejados pelos orga-
relações e os processos de trabalho neste nismos externos, mantendo o país em uma
espaço aparentemente secular e monolí- posição altamente fragilizada no campo
tico que é a escola. internacional. Observa-se que remanesce
Críticas à escola hoje são frequentes a visão de ineficácia da escola, apesar
e nascem de públicos diversos. Os estudan- dos sucessivos empreendimentos formais
tes reclamam de monotonia dos processos e informais a que esta instituição e seus
pedagógicos e têm revelado, de um modo profissionais são expostos. Isso acarreta
ou outro, que não conseguem gostar da algum mal-estar e desesperança.
forma como ela escolhe ensiná-los. As Parece claro que, se uma instituição
famílias, por sua vez, exigem, com alguma tem fracassado em algo que se constitui,
impaciência, que as escolas e seus pro- em tese, sua missão precípua – garantir
fessores se comprometam mais com a a aprendizagem das crianças –, o desafio
aprendizagem de seus filhos. Admitem que está em localizar e problematizar as razões
preferem a escola que reprova à escola que pelas quais essa insuficiência se cronifica.

44 Mara Regina Lemes De Sordi. Possibilidades e limites da avaliação em larga escala na...
Parece que, mais do que produzir te a não mais questionarem a legitimidade
mais avaliação sobre a escola, impõe-se dos indicadores de qualidade selecionados.
a necessidade de decifrar e re-significar o Dado o poder que a avaliação exerce
que os dados existentes informam e pro- nos seus vários níveis de abordagem (ma-
mover condições que permitam que esses cro, meso e micro), não podemos deixar
dados produzam sentidos na escola, locus de refletir sobre os efeitos que modelos
privilegiado de apropriação e tradução dos de regulação centrados nos resultados
significados para o projeto pedagógico. ocasionam, direta ou indiretamente, na
Avaliações em larga escala produ- vida da escola e de seus atores afetando
zidas pelo sistema central (macro aborda- as aprendizagens. A avaliação da quali-
gem da avaliação) privilegiam medidas e dade da escola se empobrece quando os
indicadores quantitativos que informam processos de regulação reduzem a com-
algo sobre a qualidade das escolas e de- plexidade do fenômeno da aprendizagem
vem, portanto, limitar-se a ser o que podem a um índice, por melhor que este possa
ser, nem mais, nem menos. parecer. Tende-se a naturalizar a ideia de
Muito pouco tem mudado na escola aquilo que não se pode medir com exa-
ao fim dos ciclos de avaliação, e muita tidão não deve ser tomado como objeto
energia tem sido despendida para explicar de avaliação, sobretudo na avaliação de
o fracasso da escola, quase sempre se sistemas. Essa decisão política acaba por
terceirizando responsabilidades. introduzir concepções de qualidade de
Sacristán (1997) nos lembra dos ensino que desconsideram valores de-
riscos que atravessam o discurso das tentores de pertinência social, interferindo
escolas eficazes. Questiona como foi se do desenvolvimento dos estudantes e na
legitimando a ideia de que o que é veros- qualidade das aprendizagens a que são
símil ou verificável tende a ser entendido expostos.
como verdadeiro. Contrapõe as ideias da O tom pessimista que permeia
moral da eficácia e da eficácia da moral encaminhamentos desse tipo na escola
desse discurso. É um discurso hegemônico, se beneficia da subtração do tempo da
embora não se interrogue como as escolas reflexão sobre o projeto pedagógico e da
obtêm suas marcas na louca corrida de falta de confiança nos próprios números
que são obrigadas a participar e a desejar da avaliação. Daí para uma postura de
vencer, ainda que por caminhos tortuosos. indiferença ou conformismo diante das
Tem força de dogma e acaba definindo as estatísticas é um passo. A desistência da
formas de trabalho e gasto de energia dos luta por uma escola que ensine de fato
atores da escola, ora para produzir descul- às crianças e aos jovens, justificada ora
pas, ora para descobrir artifícios capazes pela impotência de superar os limites dos
de melhorar as performances dos alunos. alunos, ora em nome da indignação frente
A indução do coletivo da escola a atingir às políticas educacionais neoliberais, vai
essas marcas pode levá-los paradoxalmen- se consagrando.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 39-53, jan./jun. 2012. 45


Observam-se uma vez mais as con- cem as probabilidades de um “consumo”
tradições que atravessam o discurso das consequente dos subsídios que os dados
escolas eficazes. A voracidade com que se sistêmicos potencialmente oferecem e que
propõe avaliar a escola e seus “produtos”, vêm sendo historicamente relegados a se-
eclipsando os processos que os originam, gundo plano. Esquecidos nos relatórios, os
acaba repercutindo negativamente sobre a dados da avaliação acabam inertes assim
escola e seus atores. A solução seria então, como também ficam as possibilidades de
não avaliar a escola e deixar que esta se transformação qualitativa da realidade das
desenvolva livremente, sem nenhum con- instituições escolares.
trole social sobre o trabalho que executa? Processos de avaliação que respon-
A regulação sistêmica é sempre nociva sabilizam apenas os profissionais da edu-
à vida das escolas? Como desconsiderar cação pela qualidade do ensino praticada
a relevância que a educação possui no pela escola instigam mais à formulação
desenvolvimento nacional e o quanto as de justificativas do que às reações propo-
políticas que a regem são de interesse sitivas diante dos resultados verificados. A
público? cultura de avaliação se mantém e alimenta
A educação enquanto política públi- o círculo vicioso de descrédito e desmobi-
ca deve ser avaliada, pois não se concebe lização que perpassa os atores da escola
que este bem, tratado hoje como “mercado- diante do fenômeno avaliatório. Por inú-
ria”, possa prescindir de qualidade. Trata-se meros desses motivos, os profissionais da
de um direito a ser garantido à população, educação reagem à avaliação. Até quando
em especial àquela que frequenta a escola esta se assenta em princípios democráticos,
pública. estes tendem a desqualificar a forma como
Cabe ao sistema central o dever esta invade a realidade escolar para evitar
de monitorar o desenvolvimento de suas ter que entrar na discussão do mérito do
escolas e de todas as instituições que que ela possa estar informando.
se responsabilizam por atividades de Um projeto educativo de qualidade
interesse público. Isso o autoriza a avaliar não nasce espontaneamente e não se
a qualidade das instituições de ensino. mantém rigorosamente coerente com
Contestar a forma como vêm sendo ava- princípios filosóficos que defende, se não
liadas as escolas e as consequências da for submetido a processos de avaliação
proposição de modelos avaliativos centra- continuados e plurais.
lizados e distantes do chão das escolas Determinadas formas de ensinar e
não implica desprezar a avaliação e sua de avaliar ajudam a produzir submissão
dimensão formativa. e silenciamentos. Reforçam convicções de
Sendo assim, parece claro que, que alguns sabem e outros, esvaziados de
quanto mais os dados de avaliação estive- saberes, devem aprender. Abusam do dis-
rem próximos dos atores da escola e estes curso da ideologia do dom para justificar
puderem se debruçar sobre eles, mais cres- por que as crianças não aprendem, exi-

46 Mara Regina Lemes De Sordi. Possibilidades e limites da avaliação em larga escala na...
mindo-se de examinar com igual rigor em cionam em favor de uma concepção de
que aspectos a organização do trabalho qualidade não valorizada pelos processos
pedagógico que desenvolvem pode estar de avaliação externa. Paradoxalmente, no
subtraindo as chances de aprendizagem, entanto, podemos nos deparar com igual
justamente para aquelas crianças que desqualificação de tentativas de avaliação
dela não podem prescindir. Determinadas engendradas pela escola, como se igual-
formas de trabalho na escola podem mente não tivessem legitimidade. Realçan-
estar ensinando que as aprendizagens do os vieses e as insuficiências do formato
requeridas dos estudantes podem ater-se avaliativo proposto, invocam mais e mais
à eficácia instrumental, posto que o que tempo para que os consensos possam ser
se espera dos estudantes parece estar “democraticamente” formulados, bem como
referenciado à performatividade para que demandam prévia garantia de condições
possam ter lugar e êxito no “mercado” objetivas para que, então, possa-se avaliar
competitivo em que se transformou a so- o trabalho executado.
ciedade edificada pelo projeto neoliberal. Observa-se que grande tempo se
A avaliação do projeto pedagógico ajuda a consome desqualificando as formas de
identificar precocemente a qual concepção avaliar a escola. Tempo que poderia ser
de qualidade a escola se vincula. revertido e usado em prol da discussão do
Fica evidente que, se não resolver- mérito da questão: a escola pública tem
mos a contento o que é concretamente conseguido executar seu trabalho com
a qualidade que queremos produzir, por qualidade? O que ela vem fazendo para
que e para quem a queremos, dando superar seus limites, alguns deles sobeja-
transparência às intenções educativas que mente denunciados e que persistem impe-
demarcam o projeto da escola, a avalia- dindo o direito de as crianças aprenderem?
ção como expressão dessa qualidade se Como a escola vem enfrentando seus
tornará trabalho esvaziado de sentidos e problemas seja em relação ao descaso de
exposto a um subjetivismo perigoso. Evi- alguns profissionais que se esqueceram de
dentemente essas questões explicam as que devem ser profissionais em seu campo
razões pelas quais o campo da avaliação de atuação, seja em relação aos gestores
é tão disputado. Espelham a luta pela dos sistemas de ensino que igualmente
primazia na definição de indicadores de podem estar se comportando de modo
qualidade de um projeto. incongruente com esse direito?
Explica-se, dessa forma, por que se Urge acrescentar ao direito de
resiste tanto aos mecanismos de regula- acesso das crianças à escola, o direito à
ção externa sobre a escola, advertindo-se aprendizagem. Esse destaque pode pare-
de que estes ferem a autonomia dessa cer redundante, mas não o é. A avaliação
instituição na definição de seus rumos. permitirá conhecer como uma instituição
Isso poderia levar a imaginar que os educativa cumpre a função social que lhe
profissionais da escola lutam e se posi- foi outorgada e subsidiará a formulação de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 39-53, jan./jun. 2012. 47


políticas públicas de educação que promo- avaliação externa da qualidade de suas es-
vam as condições necessárias para que colas, de cunho fortemente regulatório, as
este direito seja assegurado, permitindo regras de funcionamento dessas políticas,
aos professores e demais profissionais da no concreto da ação, sofrem reinterpreta-
escola o pleno exercício de seu trabalho. ções dos atores considerados periféricos
Não vemos como ato autoritário ins- em relação aos atores que propõem a
tituir uma política de avaliação institucional política (considerados centrais). Os conflitos
participativa que procure regular responsa- entre a primazia do mercado e da socie-
velmente o desenvolvimento do projeto dade, na consideração dos construtos de
pedagógico das escolas de uma rede de qualidade da educação que se quer firmar,
ensino. A esse processo se agregará a disputam, palmo a palmo, a hegemonia no
possibilidade de regulação de baixo para processo de regulação. Porém a forma e
cima também. Disso não temos dúvida. velocidade de implementação das políticas
Basta que a comunidade se organize e de regulação central sofrem mudanças
entenda os fluxos da avaliação que se dão toda vez que os atores sociais assumem
de forma circular. algum tipo de protagonismo na cena po-
Barroso sinaliza que não há uma lítica, dando concretude ao fenômeno da
maneira única de entender a regulação e micro-regulação local.
estas diferentes maneiras podem inclusive Barroso (2003, p. 71) explica esse
se dar na forma de uma multirregulação conceito como
descentralizada (co-regulação). [...] processo de coordenação da acção
[...] nos sistemas humanos que cha- dos atores no terreno que resulta do
mamos de sistemas concretos de confronto, interacção, negociação ou
acção, a regulação não se opera, de compromisso de diferentes interesses,
facto, nem por sujeição a um órgão lógicas, racionalidades e estratégias
regulador, nem pelo exercício dum em presença quer, numa perspectiva
constrangimento mesmo que incons- vertical entre administradores e ad-
ciente, e muito menos por mecanis- ministrados, quer numa perspectiva
mos automáticos de ajustamento horizontal entre os diferentes ocu-
mútuo, ela opera-se por mecanismo pantes dum mesmo espaço de inter-
de jogos através dos quais os cálculos dependência (intra e inter organiza-
racionais “estratégicos” dos actores se cional), escolas, territórios educativos,
encontram integrados em função de municípios.
um modelo estruturado. (CROZIER; Essa multiplicidade de regulações
FRIEDBERG, 1977, apud BARROSO, locais, distribuídas entre atores sociais com
2003, p. 244).
diferentes poderes de pronunciar sua ver-
Assim, depreendemos que, por mais são de qualidade, pode produzir um efeito
que uma política pública nacional ou local mosaico no interior do sistema educativo
proponha e tente implementar processo de que acaba despotencializando os efeitos

48 Mara Regina Lemes De Sordi. Possibilidades e limites da avaliação em larga escala na...
positivos que a regulação local poderia competências avaliativas nos profissionais
ter em relação às regulações externas. O da educação? Como se insere na formação
desafio está em construir um sentido cole- a aprendizagem da avaliação reconhecida
tivo para essas regulações locais de modo como recurso potente de mediação entre
que possam se converter em forças de aquilo que a escola é e aquilo que ela
transformação das realidades das escolas. pretende ser e precisa ser devidamente
Ao romper o estéril processo de re- relativizado pelos recursos que tem e pelos
sistência ao processo regulatório, aceitando que ainda não possui e que deve aprender
a importância da avaliação da qualidade a demandar responsavelmente?
das escolas, os segmentos locais, forta- Um dos desafios a ser enfrentado
lecidos pela vinculação a um pacto de é a falta de confiança em processos de
qualidade formulado de modo polifônico, avaliação institucional participativo e de-
podem recuperar e ampliar seus espaços mocrático engendrados pelo sistema local
de interlocução e trazer o debate sobre a de ensino, e não exclusivamente pelas
qualidade para dentro da escola, cenário escolas. Como entender as exigências e
no qual possuem titularidade e legitimi- compromissos de uma “adesão” obrigatória
dade política. das escolas a processo que exige aprendi-
Evidentemente, é possível que algu- zagem de autoconhecimento e autoorga-
mas reações aos processos de avaliação nização e que não se restringe à visão de
institucional originem-se também na recu- qualidade dos profissionais da educação?
sa sintomática de reflexão sobre o trabalho Ao pautar-se por uma visão polifacetada
e rejeição à prestação pública de contas. da realidade escolar construída de modo
Isso reclama por contestação, pois esbarra negociado entre diferentes atores com vi-
e fere o direito das crianças. Toda vez que sões de mundo, compromissos e interesses
os direitos das crianças forem atingidos singulares, o processo de avaliação tende
revelando a ineficácia social do projeto da a consumir mais tempo na celebração dos
escola, o poder público deve agir, e a isso acordos que orientam o coletivo escolar. E
não se deve rotular como autoritarismo. isso acrescenta complexidade ao processo
Em nome da preservação de relações de- de avaliar além de pôr em xeque o signifi-
mocráticas com um segmento, que quase cado da participação na vida escolar.
resvalam no corporativismo, o poder públi-
Silva Junior (2008, p. 92) sinaliza
co não pode ser impedido de agir.
contradições em projetos dessa natureza.
Será possível transcender às estruturas e
2 Os desafios a enfrentar
viabilizar um consenso quanto a objetivos
Será que no locus da formação de comuns, quando se lida com interesses
professores, os diversos âmbitos da avalia- conflitantes? Como seria possível à escola
ção, transcendendo o da aprendizagem, pública atender a todos, se uns querem
são discutidos ajudando a desenvolver poder e outros a libertação?

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 39-53, jan./jun. 2012. 49


Podemos dizer que os projetos de aos dados (inclusive os oferecidos pela
AI, à semelhança de qualquer processo de avaliação externa) de forma ativa e conse-
mudança em instituições complexas como quente. Reagem a estes seja para rever as
a escola, não podem subestimar as mar- estratégias utilizadas para atingir as metas
cas culturais preexistentes, a memória de traçadas, seja para atualizá-las em função
processos semelhantes que se perderam das necessidades que vão surgindo ou
no caminho e que, exatamente por terem quando os informes não se coadunarem
se tornado passado, mais presentes estão com a realidade da escola e merecerem
nas subjetividades das pessoas que fazem análises mais abrangentes. O que importa
a história das instituições. Deve-se ser na é que aprendam e ensinem a usar a ava-
mesma proporção, absolutamente intran- liação como processo formativo capaz de
sigente na defesa dos princípios que sus- assistir ao PP da escola nos compromissos
tentam os diálogos sobre a avaliação com que deve cumprir e para os quais não pode
as escolas e absolutamente permeável aos se furtar. Segundo Franco (2005, p. 85), o
designs avaliativos propostos nos tempos campo de conhecimento da pedagogia
e ritmos próprios de cada comunidade será construído na intersecção entre os
escolar, dentro de parâmetros sempre saberes interrogantes das práticas, os sa-
negociados desde que não se afastem do beres dialogantes das intencionalidades e
compromisso com o direito das crianças os saberes que respondem às indagações
aprenderem. A transparência valorativa e reflexivas formuladas por essas práxis.
coerência dos referenciais utilizados inter- Canário (2005) adverte que
ferem fortemente na adesão dos sujeitos
[...] o fechamento da escola e seu
ao processo (FREITAS et al., 2004) e refor- isolamento do mundo exterior, quer
çam a sensação de pertencimento com as através de fronteiras físicas, quer de
vantagens previsíveis. fronteiras simbólicas, é totalmente
Silva Junior (2008, p. 97) adverte que coerente com o fato de a escola ter
reduzidas à condição de organizações historicamente nascido em ruptura
cujas estruturas podem ser alteradas com o local. Enquanto instrumento
sucessiva e abusivamente por determi- fundamental da unidade do moderno
nações legais que não passam pelo crivo estado-nação, a escola participou
das pessoas e dos grupos que serão por de um processo de anulação dos
elas afetadas, nossas escolas públicas se particularismos locais, seja no nível
social, seja no cultural, seja, ainda, no
tornam “privadas”. Privadas da condição
político. (CANÁRIO, 2005, p. 96).
institucional de promover o alcance do
interesse coletivo. As consequências desse modelo de
Processos de AI requerem capaci- organização da relação da escola com
dade de autoconhecimento e questiona- seu entorno são conhecidas, contribuindo
mento por parte das instâncias envolvidas para a cisão dos atores internos e externos
que aprendem a movimentar-se frente das escolas que se dispersam na luta por

50 Mara Regina Lemes De Sordi. Possibilidades e limites da avaliação em larga escala na...
uma educação de qualidade, anseio que que demarcam estruturas de poder/saber.
teoricamente os identifica. Canário (2005, A partir do compromisso social com o
p. 97) sintetiza direito de as crianças aprenderem, esses
[...] é preciso recontextualizar a ação atores se dispõem a reaprender a trabalhar
educativa e, em especial, a ação sintonizados pela noção de Bem Comum.
escolar, o que implica que a escola Quanto mais cresce esse compromisso,
evolua de uma ‘ruptura’ com o local menos reativos a processos de avaliação
para um processo de ‘relocalização’”. da escola os atores ficam. Evidentemente
A valorização dos diferentes públi- os valores e princípios que subjazem a
cos envolvidos com a realidade da escola determinado projeto de avaliação ao serem
torna o processo de qualificação mais anunciados, tornam públicos também os
pertinente e resolutivo. Essa perspectiva compromissos com determinadas bases,
democratizando, igualmente, o controle
implica romper com uma o desvalorizada
sobre a qualidade da própria política de
das comunidades e de seus saberes (lógica
avaliação.
da exterioridade em relação ao contexto
local) incluindo-as de forma mais concre-
Conclusões que remetem à continui-
ta na formulação do pacto de qualidade,
dade das lutas
devidamente alimentado pelos dados de
avaliação interna e externa, atuando de Entendemos que processos de ava-
modo complementar. liação institucional participativos se ins-
Ao privilegiar a escuta dos pontos crevem como importantes reguladores das
de vista de todos os interessados nesse regulações sistêmicas. É campo novo no
processo (lógica da interpelação citada por qual cabe aprender e ensinar, participando
ALBERTO CORREA apud CANÁRIO, 2005), ativamente do processo de construção do
observamos que se inaugura uma nova que ainda não existe, mas precisa nascer
relação também entre os saberes científi- como possibilidade.
cos e os saberes da prática. Relação esta Processos de avaliação que respon-
que não pode ser de hierarquia nem de sabilizam apenas os profissionais da edu-
subserviência, apenas uma relação regida cação pela qualidade do ensino praticada
pelo interesse em fazer diferença nas con- pela escola instigam mais à formulação
dições de qualificação da escola em prol de justificativas do que às reações propo-
da aprendizagem das crianças. sitivas diante dos resultados verificados. A
A categoria da implicação citada por cultura de avaliação se mantém e alimenta
Barbier (2007) ajuda a entender a natureza o círculo vicioso de descrédito e desmobi-
dessa relação, pois exige disposição dos lização que perpassa os atores da escola
atores com o projeto, entregando-se ao diante do fenômeno avaliatório.
aprendizado comum, diminuindo as usuais Isso implicará enfrentar corajosa-
distâncias que os separam na medida em mente a cultura de avaliação que aprende-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 39-53, jan./jun. 2012. 51


mos ao longo dos processos de escolariza- Defendemos que os professores, por
ção formal a que fomos submetidos. Uma meio de processos de formação densos
cultura que sinaliza uma atividade restrita e de alianças respeitosas com demais
a apenas alguns, campo quase do sagrado. atores sociais, o que inclui o diálogo com
Isso pode levar a que se desista, por ante- os pares que atuam nas universidades,
cipação, do direito de estabelecer juízos possam ajudar a desanuviar esse território
de valor sobre a escola, configurando-se nebuloso que cerca a questão das políticas
a exclusão de atores sociais considerados públicas de avaliação voltando a interferir
menos qualificados para se pronunciar nos rumos da educação brasileira.
sobre a escola. Acreditamos possa a avaliação
A aceitação desse papel periférico no institucional participativa tornar-se um
jogo da avaliação acaba se impregnando campo propício para a aprendizagem de
nas subjetividades das pessoas, inclusive uma cultura de avaliação ambidestra e
nos profissionais da educação frente ao plural, capaz de cruzar e integrar saberes,
seu direito/dever de avaliar a escola e as fomentadora de ações colaborativas e de-
políticas públicas de avaliação, ultrapas- tentoras de pertinência social. Que consiga
sando os limites da sala de aula e da produzir ações de regulação que assistam
aprendizagem dos estudantes. Isso nos ao direito de as crianças aprenderem e que,
desafia a coletivamente rompermos esse simultaneamente, promovam a adesão e
circulo vicioso que servirá de balizamento a participação da comunidade escolar no
para os processos regulatórios, subtraídos processo de qualificação da escola que lhe
das vozes de importantes atores sociais. pertence e que deve, a cada dia, tornar-se
Parafraseando Lima (2007), lembra- mais detentora de qualidade social. Como
mos a necessidade de assumirmos uma Paro (2011, p. 715), acreditamos que a
posição nesse jogo de interesses que atenção exagerada que os responsáveis
atravessa a avaliação e fazer escolhas, re- pelas políticas públicas têm dado ao que
fletindo sobre as consequências de nossas dizem as avaliações externas “atestam sua
opções ou omissões. Preferiremos a ignorância sobre a natureza do produto a
[...] destreza da mão direita que, de ser avaliado”. E isso nos autoriza a defen-
tão destra e sábia se transformou der a importância de as redes de ensino
sinistramente num fator de puro há- conceberem, implementarem e avaliarem
bito, ajustamento e domesticação ou modelos alternativos de avaliação nos
vamos permitir o discrepar, aparente-
quais as medidas sistêmicas sejam parte
mente mais descentrado, desajeitado
e algo inábil, de uma mão esquerda
e não o todo da conversa sobre qualidade
que, menos sábia e competente, se educacional reconhecendo a titularidade
assume mais livre e curiosa para do coletivo da escola na construção da
aprender? (LIMA, 2007, p. 36). qualidade da escola pública.

52 Mara Regina Lemes De Sordi. Possibilidades e limites da avaliação em larga escala na...
Referências

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(Orgs.). Trajetórias e processos de ensinar e aprender: políticas e tecnologias. ENDIPE, 14. Porto
Alegre: EdiPUC-RS, 2008. v. 4.

Recebido em abril de 2012


Aprovado para publicação em junho de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 39-53, jan./jun. 2012. 53


A avaliação na educação básica brasileira: tensões e
desafios
Evaluation in brazilian basic education: tensions
and challenges
Dirce Nei Teixeira de Freitas
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção da Universidade Federal da Grande Dourados, MS.
E-mail:dircenei@terra.com.br

Resumo
Este texto trata da avaliação da educação básica no Brasil atual, analisando a sua imprescindibilidade
para a política educacional, assim como demandas relativas a essa questão presentes na Conferência
Nacional de Educação (CONAE) e tensões não enfrentadas pelo MEC na elaboração do Plano Nacional
de Educação para o período 2011-2020. Por fim, aponta desafios em face do existente e das tendências
da avaliação na política da educação básica.
Palavras-chave
Política educacional. Avaliação educacional. Educação básica.

Abstract
The text approaches the evaluation of basic education in Brazil currently, analyzing its essentiality for
educational politics, as well as demands related to this subject present in the National Conference of
Education (CONAE) and tensions not faced by MEC in the elaboration of the National Plan of Education
for the period 2011-2020. Finally, it points challenges in face of reality and of evaluation tendencies in
the basic education politics.
Key words
Educational politics. Educational evaluation. Basic education.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 55-65, jan./jul. 2012
Temos assistido no Brasil ao cres- dificilmente resultará em reais benefícios
cente uso da avaliação na condução da educacionais e sociais.
educação básica. Nos últimos vinte e cinco As desconfianças se devem princi-
anos, o governo federal construiu um apa- palmente ao fato de que ainda não foram
relho de avaliação com o qual ampliou respondidas perguntas fundamentais
o alcance da sua ação avaliativa. Esta, a sobre as consequências das provas e
princípio restrita a sistemas educacionais, exames nacionais, quer em relação a re-
foi estendida para as escolas e vem diver- sultados educacionais, quer em relação à
sificando as modalidades de avaliação, sua administração ou a relacionamentos
aprimorando e inovando os meios utiliza- entre envolvidos. Permanecem sem respos-
dos. Assim, o governo tornou as avaliações tas perguntas a respeito de se e quanto
externas em larga escala um dos principais a avaliação externa em larga escala teria
recursos da política e gestão desse nível concorrido para a melhoria da:
de educação escolar. Com a criação do • eficácia, efetividade e equalização da
Índice de Desenvolvimento da Educação educação escolar;
Básica (IDEB), o governo federal pode fixar, • intervenção estatal-governamental ma-
projetar e monitorar metas de melhoria de terializada em política/gestão social-
resultados do ensino, induzindo sistemas mente pertinentes;
educacionais e escolas a atingi-las, seja por • ação coordenadora da União e do exer-
estímulos competitivos, seja por condicio- cício de suas funções de suplência e de
namentos de recursos financeiros ou pela apoio aos entes federativos subnacionais;
difusão do modelo gerencial na gestão. • colaboração entre os entes federativos,
Defensores da avaliação externa em impulsionando-a e fortalecendo-a;
larga escala como recurso da política/ges- • democratização dos sistemas educa-
tão da educação básica consideram que cionais e escolas, levando-os a que se
os problemas da avaliação no País podem aperfeiçoassem em face às demandas
ser equacionados mediante diversificação sociais;
dos meios utilizados, aprimoramentos • mobilização social e da solidariedade
metodológico, técnico e operacional, dos envolvidos na prestação e usufruto
adoção de medidas promotoras do uso da educação básica.
dos resultados pelos atores escolares, Afinal, o que de bom trouxeram as
estabelecimento claro de consequências avaliações externas para a educação bá-
para as avaliações. sica e, em decorrência, para a educação
Embora não haja dúvidas de que a superior? Essas e outras tantas questões
avaliação possa ser um valioso recurso na indicam o imperativo do debate e da ava-
educação, entre educadores e pesquisa- liação sobre o que o País tem feito com a
dores da área há sérias desconfianças de avaliação educacional.
que a forma como ela tem sido acionada A nosso ver o cerne dos problemas
na política/gestão da educação básica das avaliações e exames nacionais é político

56 Dirce Nei Teixeira de FREITAS. A avaliação na educação básica brasileira: tensões e desafios
e está associado a diversas fontes de tensão Refiro-me a um entendimento da
em torno de questões de difícil equaciona- política educacional como fenômeno
mento, entre as quais se destaca a escassez complexo constituído através de dinâmicas
de recursos para a educação básica. sociais não lineares e variáveis no tempo/
Neste trabalho, analisamos pontos espaço. Fenômeno que emerge da arena
de tensão e desafios políticos e jurídicos pública como expressão da ação e inação,
ante as tendências da avaliação no con- assim como de comportamentos e atitudes
texto da política nacional para a educação de muitos atores. A política educacional
básica. Com vistas a isso, consideramos a materializa-se no processo de conden-
ação da União com especial atenção aos sação de soluções provisórias e conflitos
encaminhamentos do Ministério da Edu- latentes na área, interrelacionando compo-
cação (MEC) na esfera normativa, assim nentes diversos num todo cuja coerência e
como na de mobilização social e na de consistência são sempre relativas. Com o
formulação de políticas. seu caráter processual, dinâmico, emergen-
Inicialmente apontamos as razões te, a política educacional não é redutível
pelas quais há amplo reconhecimento a eventos, atos pontuais e evidências que
da imprescindibilidade da avaliação na possam ser apreendidos e compreendidos
política da educação básica, trazendo, a isoladamente. Assim, a política não se re-
seguir, ponderações acerca das tensões duz às propostas manifestas nos discursos
entre demandas expressas na Conferência declaratórios, programáticos, normativos
Nacional de Educação (CONAE) de 2010 do ator estatal ou governamental. Esta é
e as tendências sinalizadas pelo MEC apenas uma das fases da política cujas
no projeto de lei do Pano Nacional de fases subsequentes dizem respeito aos
Educação (PNE) 2011-2022. Finalizamos desdobramentos e consequências das
com considerações a respeito de desafios propostas formuladas.
políticos e jurídicos que condicionam a Fenômeno tão complexo exige o
legitimidade e congruência da avaliação concurso de múltiplos meios para ser mi-
na educação básica. nimamente conhecido, coordenado e de-
senvolvido. A avaliação é um desses meios,
1 Imprescindibilidade para a política prestando-se a orientar a ação individual e
educacional social sobre a realidade, podendo produzir
efeitos concretos no sentido de reprodução
Ainda que existam divergências em ou de transformação social.
torno dos pressupostos, das orientações Primeiro porque a avaliação é um
e dos usos da avaliação na política edu- meio pelo qual podemos conhecer melhor
cacional, há uma aceitação tácita de sua a realidade, o que é imprescindível à for-
imprescindibilidade nessa área, o que não mulação de políticas educacionais. A con-
surpreende se atentarmos para a natureza gruência das propostas governamentais
pública e histórica da política educacional. pode ser mais plausível com o concurso da

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 55-65, jan./jun. 2012. 57


avaliação, como também a implementação como a insuficiência de recursos públicos,
da política educacional, considerando-se entre outros fatores, tornam complexas as
que esta se constitui na interseção das políticas públicas.
ações governamentais, administrativas e Nesse contexto, a organização da
escolares. educação é tarefa a ser conduzida sob
A implementação de políticas educa- regime de colaboração, cabendo à União
cionais no Brasil requer enfrentamento de coordenar a política nacional, articulando
diversos problemas e dificuldades asso- os diferentes níveis e sistemas e exercendo
ciados à dimensão territorial do País, às função normativa, redistributiva e supletiva
extremas desigualdades, às diversidades em relação às demais instâncias educacio-
que implicam um aparelho educacional nais.
de grande dimensão, com diferenças e A política para a educação básica
desigualdades. Para ilustrar, no ano de tem seu curso nesse complexo, dinâmico
2010, segundo dados do Inep, havia no e permanente campo de tensão entre
país 194.939 estabelecimentos de edu- unidade nacional, diversidades e autono-
cação básica, sendo 148.982 de ensino mias subnacionais, entre colaboração e
fundamental. Portanto o campo de imple- competição federativa. Para coordená-la
mentação de política educacional é vasto nacionalmente, o governo federal utiliza
e muito heterogêneo, e a avaliação pode diversos meios estratégicos e instrumentais,
ser acionada para melhor conhecê-lo. A entre os quais a avaliação externa em lar-
avaliação também pode instrumentar a ga escala, que lhe propiciam informações
ação federativa na prestação da educação sobre sistemas educacionais e escolas.
básica. Baseia-se no fato de que a Lei estabele-
O modelo federativo brasileiro pac- ceu como incumbência da União “coletar,
tuado na Constituição Federal de 1988 analisar e disseminar informações sobre a
(BRASIL, 2011a) exige simultaneamente educação” e “assegurar processo nacional
união e autonomia dos entes federados de avaliação do rendimento escolar no
(municípios, estados, o Distrito Federal ensino fundamental, médio e superior, em
e União), configurando uma ordenação colaboração com os sistemas de ensino,
político-administrativa não-hierárquica. objetivando a definição de prioridades e a
Esse complexo federalismo constituiu-se, melhoria da qualidade do ensino”.
na prática, como campo de tensões entre As iniciativas nacionais de avaliação
unidade/diversidade, autonomia/inter- em larga escala e de exames (SAEB, Prova
dependência, colaboração/competição, Brasil, ENEM) permitem recolhimento de
coordenação/fragmentação, descentrali- dados relacionados a desempenho de es-
zação/desconcentração (ABRÚCIO, 2006). tudantes nas provas aplicadas e também
A organização federativa complexa e informações adicionais sobre a escola, os
atravessada por tensões, a desarticulação estudantes e suas famílias. O fato de que
e os conflitos intergovernamentais, assim a avaliação esteja centrada no rendimento

58 Dirce Nei Teixeira de FREITAS. A avaliação na educação básica brasileira: tensões e desafios
escolar tem concorrido para que a repre- federal precisa enfrentar. A nosso ver, isso
sentação social sobre qualidade da educa- requer conceber e conduzir a avaliação
ção seja reducionista (GATTI, 2011). na perspectiva da colaboração federativa.
Com essa limitação da avaliação, Outra razão para a imprescindibili-
saber o que se passa nas redes e escolas dade da avaliação na política educacional
brasileiras ainda é um imenso desafio, diz respeito à democratização da educação
mesmo com o crescente concurso de pos- e da sua gestão. A avaliação pode favorecer
sibilidades trazidas pelas tecnologias da a vivência democrática dos envolvidos no
informação e comunicação para governos processo educacional, pode instrumentar
e administrações públicas. Essas tecnolo- e instigar o controle social da oferta edu-
gias modificaram a gestão, favoreceram a cacional, da prestação de contas públicas
avaliação em larga escala, assim como o sobre o processo e resultados educacionais
monitoramento e o controle remoto. pelos diretamente envolvidos (governantes,
A capacidade de o governo federal dirigentes, gestores, professores, alunos,
“coordenar” a política educacional no país famílias). Pode contribuir tanto para a efeti-
(ABRÚCIO, 2006; 2010), respeitando o vação do direito de todos à educação como
pacto federativo, tem sido uma das razões para a gestão democrática da educação
pelas quais se afirma a imprescindibilidade escolar, desde os sistemas até as escolas.
da avaliação na política educacional. Mas Que ela se constitua sob regime
essa mesma questão também enseja o público democrático é condição básica
questionamento das iniciativas governa- para que os julgamentos que erige sejam
mentais em andamento. socialmente consistentes, aceitáveis, signifi-
Não há dúvidas de que a avaliação cativos. Em sendo democrática, a avaliação
pode subsidiar a reflexão crítica sobre poderá submeter a educação a controles
as intervenções (legais, regulamentares, públicos e ser bem mais fecunda para
programáticas e outras) priorizadas na avanços necessários na esfera do seu
política formalizada pela União, bem como governo/administração (FREITAS, 2011).
decisões e encaminhamentos profícuos
na perspectiva de plasmar o ensino como 2 Tensões na avaliação: demandas e
elemento da qualificação educacional e tendências
social. Mas, para isso, seria importante
desenvolver processos de avaliação inte- As reivindicações da área no tocante
grada dos níveis governamentais e esco- à avaliação foram expressas na CONAE
las. Assim, a avaliação poderia ser útil ao de 20101. Nessa Conferência a avaliação,
desafio político, cultural, administrativo de
assegurar a unidade na diversidade educa- 1
Conferência Nacional de Educação, realizada no
cional, e acionar a avaliação sem prejuízo período de 28 de março a 1o de abril de 2010, cujo
à autonomia dos entes federativos é uma tema central foi “Construindo o Sistema Nacional
das principais questões que o governo Articulado de Educação”.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 55-65, jan./jun. 2012. 59


como meio da política e da gestão da edu- abrangendo todo o território da nação,
cação básica, figurou entre as principais cujas unidades estivessem articuladas en-
tarefas atribuídas ao reivindicado Sistema tre si segundo objetivos e normas comuns.
Nacional de Educação (SNE). Compreendi- A constituição desse sistema enfrenta
do como instância articuladora do regime obstáculos políticos, pelas descontinuida-
de colaboração federativa na área, a cons- des consubstanciadas em reformas que
tituição desse Sistema foi tema central da historicamente oscilam entre centralização
Conferência. e descentralização da prestação educacio-
Um sistema nacional de educação nal. Ademais, divergências no campo das
consistiria (SAVIANI, 2010, p. 381) na ideias pedagógicas liberais e cientificistas
[...] unidade dos vários aspectos ou operaram e operam em desfavor à concep-
serviços educacionais mobilizados ção de um sistema nacional de educação
por determinado país, intencional- e se traduzem em obstáculos na esfera
mente reunidos de modo a formar da legislação.
um conjunto coerente que opera Na CONAE propugnou-se caber ao
eficazmente no processo de educação sistema nacional de educação prover
da população do referido país.
[...] a implementação de sistema nacio-
Para isso, caberia confiar à União, nal de avaliação da educação básica
enquanto a instância que representa e e superior voltado para subsidiar o
administra o que há de comum entre os processo de gestão educativa e para
vários entes federativos, a atribuição de, garantir a melhoria da aprendizagem
por meio do governo central, constituir e dos processos formativos. (BRASIL,
o sistema nacional de educação. Este é 2010a, p. 24).
propugnado no entendimento de que, pela Esse sistema nacional de avaliação
união dos vários serviços educacionais que visaria:
se desenvolvem no âmbito territorial dos • alterar objetivos, valores e processos,
diversos entes que compõem a federação, gerando novas atitudes e práticas;
as autonomias subnacionais se fortalecem
• subsidiar e promover mudanças signifi-
pelo não isolamento e superação de defi-
cativas na gestão educacional;
ciências em decorrência de regulação
• permitir o acompanhamento de resulta-
única e de financiamento compartilhado.
dos, ampliando o poder de regulação e
Saviani (2010) pondera que o atual
controle do Estado;
modelo de organização da educação na-
cional expressa a reiterada resistência da • garantir a melhoria da aprendizagem e
União em assumir as responsabilidades dos processos formativos;
financeiras na manutenção da educação • contribuir para a formação e valorização
básica no País. Isso obsta a instituição de profissional;
um sistema nacional de educação, enten- • contribuir para mudanças na produção
dido como uma ampla rede de escolas do trabalho escolar.

60 Dirce Nei Teixeira de FREITAS. A avaliação na educação básica brasileira: tensões e desafios
A implementação de um sistema de infraestrutura; aferir o processo de
nacional de avaliação, propugnada na democratização nas escolas; melhorar o
trilha da constituição do Sistema Nacional trabalho escolar, entre outros.
de Educação, realça a preocupação com Mas as tendências manifestas na
a articulação das ações dos sistemas opção governamental no contexto do pro-
educacionais em torno de uma política jeto de lei do Plano Nacional de Educação
nacional para a educação, abarcando o 2011-2022 (BRASIL, 2010b), enviado ao
setor público e o privado, possibilitando Congresso Nacional em dezembro de 2010,
acompanhamento, monitoramento e acenam com o fortalecimento da ótica
avaliação nacional da educação. Mas o racional-utilitarista prevalente na avaliação
texto da CONAE esclarecia que tal sistema da educação básica.
teria a tarefa de assegurar a conexão dos As disposições no projeto de lei e
processos avaliativos da educação básica seu anexo se limitam a três pontos: conso-
e educação superior e dos sistemas de lidação do Índice de Desenvolvimento da
ensino, com base em visão formativa que Educação Básica (IDEB), aprimoramento
considerasse diferentes espaços, atores, de instrumentos da avaliação externa em
bem como o desenvolvimento institucional larga escala e convergência das avaliações
e profissional. nacionais com a avaliação internacional.
Essa ênfase na articulação releva As disposições mostram que o MEC
o imperativo da unidade nacional, porém busca legitimar, fortalecer e consolidar o
com o desafio de se respeitar a singulari- IDEB, que foi fixado por meio do Decreto
dade e as especificidades de cada região. n. 6.094 (BRASIL, 2007), no ano de 2007.
Para isso, o sistema nacional de avaliação Assim, esse Índice se tornará um instru-
teria o desafio de operar na perspectiva mento de política do Estado.
de desenvolvimento humano, baseado no O texto do Plano indica duas medi-
princípio da emancipação e tendo em vista das de aprimoramento dos instrumentos
a construção da “qualidade social” inerente de avaliação externa: a ampliação dos
ao processo educativo. componentes curriculares avaliados nos
Portanto a demanda expressa na anos finais do ensino fundamental, com a
CONAE para a avaliação da educação inclusão do ensino de ciências, e a incor-
básica releva o imperativo da unidade na- poração do Exame Nacional de Ensino Mé-
cional, mas com respeito às singularidades. dio ao sistema de avaliação da educação
Nesse marco, o sistema nacional básica. Essas medidas somam-se ao intuito
de avaliação deverá: considerar tanto as de confrontar resultados obtidos no Ideb
variáveis escolares como as extraescolares; com as médias nas provas do Programa
estimular a autoavaliação para fins de Internacional de Avaliação de Alunos
diagnóstico; superar funções de premiação (PISA), possibilitando o controle externo da
e punição, classificação e estímulo à com- convergência entre as avaliações do Inep
paração competitiva; identificar desafios e as médias projetadas para o PISA.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 55-65, jan./jun. 2012. 61


Portanto a tendência da avaliação Na função indutora, a prioridade da
na política nacional para a educação bá- avaliação tem sido a de instigar e incutir
sica brasileira não é a de contemplar as lógicas de intervenção, de difundir mode-
demandas internas, priorizando, por exem- los, atitudes, comportamentos, valores. Na
plo, os desafios apontados pela Conae, função de controle remoto, a prioridade
mas, sim, lograr uma maior aproximação da avaliação incide sobre a relação entre
à avaliação externa, destacadamente de custo e benefício em razão do que siste-
iniciativa da OCDE. Assim, as perguntas mas educacionais e escolas devem ser for-
mencionadas na introdução deste trabalho temente controlados nos seus resultados.
estão longe de ser consideradas. Orientada precipuamente para essas fun-
Caso essas tendências prevaleçam ções, dificilmente o País fará avanços no
no processo de tramitação legislativa do sentido de que a avaliação seja apropriada
referido projeto de lei, a avaliação na po- por todos para a geração cooperativa de
lítica nacional para a educação básica melhor qualidade do ensino.
continuará a dar relevo às funções de Consideramos que um dos principais
controle externo remoto e de indução de desafios da avaliação na política e gestão
sistemas educacionais e escolas. Isso torna da educação básica, no Brasil, diz respeito
ainda mais premente que os processos à sua efetiva apropriação pelos sistemas
de apropriação da avaliação nos estados, educacionais e pelas escolas, o que não
nos municípios e nas escolas se orientem ocorrerá dissociado do processo de pro-
para fins precipuamente de diagnóstico, dução da emancipação dos envolvidos
de caráter formativo, de promoção de na tarefa da educação escolar básica. A
emancipação e transformação das pessoas construção da autonomia federativa res-
e instituições. ponsável para com a unidade nacional é
parte fundamental dessa apropriação. E
Considerações finais: desafios da
isso pode ser conseguido à medida que
avaliação
os sistemas educacionais e escolas usem
Parece-nos que o problema central a avaliação precipuamente e competente-
da avaliação na política e gestão da edu- mente nas funções diagnóstica, formativa,
cação básica está menos associado ao de emancipação e de transformação.
desafio de constituir um sistema avaliativo Na função diagnóstica, a avaliação
nacional congruente com um sistema tem como propósito propiciar conhecimen-
nacional de educação do que ao desafio to acerca do que existe, das condições
de rever as funções que tem priorizado: e problemas reais. Com essa função, a
a de controle externo a distância e a de avaliação possibilita a análise dos pontos
indução. Portanto o primeiro desafio é rever de partida, informando a reflexão, a deli-
as funções da avaliação predominantes beração, a decisão, o planejamento e a
atualmente. intervenção.

62 Dirce Nei Teixeira de FREITAS. A avaliação na educação básica brasileira: tensões e desafios
Quando orientada à função formati- Em resumo, o desafio é fazer com
va, a avaliação permite o recolhimento de que a avaliação seja usada principalmente
informações sobre como anda o processo, na função diagnóstica, formativa, de eman-
possibilitando julgamento e ação imedia- cipação e transformação.
tos. Ela instrumenta o controle no interior Outro importante desafio é o de rever
do processo, para que eventuais problemas o objeto da avaliação, contemplando con-
e dificuldades sejam conhecidos a tempo textos, processos e resultados, para melhor
de medidas pertinentes e consequentes conhecer e agir sobre a realidade.
serem tomadas. Ela se presta a informar
providências de recondução do processo
ou sua continuação.
contextos processos resultados
Na função de emancipação, a ava-
liação pode promover a ação autônoma,
Realidade
o aprimoramento pessoal, grupal, coletivo,
institucional, para propiciar a valoração
Figura 1 – Objetos da avaliação
pessoal, grupal, social.
Entendemos emancipação como Considerando a complexidade do
Processo de superação de submissões, País e o potencial da avaliação, parece-nos
dominações, tutelas e explorações que os esforços públicos devam ser direcio-
que: a) usurpam ou restringem a nados no sentido de que ela seja efetiva-
constituição individual e coletiva de mente meio pelo qual possam ser obtidos
sujeitos conscientes, ativos, críticos dados relevantes para a elaboração do
na construção de sua história e de conhecimento sobre contextos, processos
uma sociedade igualitária e justa; b)
e resultados da educação escolar básica.
restringem a vivência democrática e
da cidadania nos limites de interesses Entre outras coisas, a avaliação precisa
e propósitos de reequilibração da ser realizada de modo a fornecer dados
reprodução social; c) impedem a in- sobre: os contextos – conceitos, estruturas,
clusão social de pessoas e grupos; d) elementos, condições, alternativas, ações,
inviabilizam a ação solidária de trans- efeitos e perspectivas da mediação pública;
formação social pela ressignificação os processos – gestão nos diferentes níveis,
de instituições sociais (Freitas, 2003). ensino, aprendizagem, apoios, interações;
A avaliação pode se prestar à fun- os resultados – aquisições, desempenhos,
ção transformadora, quando disponibiliza equidade, eficácia, eficiência, efetividade,
informação para que sejam realizadas efeitos (sociais, políticos, econômicos).
reflexões críticas, tomadas de decisão e Finalmente, cabe dizer que os
ações transformadoras das condições, dos desafios que se colocam à avaliação na
processos, dos desempenhos, dos resulta- política e gestão educacionais são inúme-
dos, das repercussões, das alternativas de ros, considerando as múltiplas dimensões
ações de correção e aprimoramento. da ação avaliativa. Ao concluir este texto,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 55-65, jan./jun. 2012. 63


destacamos desafios políticos que se apre- cação e ensino como direito constitucional-
sentam à avaliação e que dizem respeito mente estabelecido. Para isso, não bastam
ao cultivo de três características essenciais. medidas técnicas e de melhoramento da
A primeira característica é a legitimi- divulgação dos dados das avaliações exter-
dade. Os fundamentos do Estado e da so- nas. É preciso, sobretudo, que a avaliação
ciedade brasileiros, estabelecidos na Carta seja democratizada, fomentando processos
Constitucional de 1988, autorizam e bali- horizontais, colaborativos e participativos
zam uma ação avaliativa estatal e gover- de avaliação e explorando a sua dimensão
namental com os parâmetros republicanos, pedagógica e educativa (FREITAS, 2007).
federativos e de Estado de direito demo- A terceira característica é a fecun-
crático. Isso coloca à avaliação na política didade. Desafio importante é o de que
educacional desafios políticos, jurídicos, a avaliação na política para a educação
institucionais, administrativos, entre outros. básica brasileira possa ser praticada como
Para enfrentá-los, parece ser imprescindível experiência de emancipação e não como
elaborar socialmente solução para proble- mecanismo de dominação, controle exter-
mas teórico-conceituais respeitantes a tais no, sujeição, dependência. Nesse sentido,
fundamentos, o que parece ser bastante a avaliação não prescinde da participação
complexo. Todavia, ou a avaliação é operada ativa, crítica, criativa e cooperativa dos
e opera nos marcos de tais fundamentos envolvidos. Em especial, o desafio da ava-
ou dificilmente será legítima. liação é contribuir para a transformação
A segunda característica é a relevân- da educação básica, tendo em vista a
cia. Está por ser enfrentado o desafio de efetivação do direito à educação.
que a avaliação forneça aos atores sociais As prioridades políticas da avaliação,
envolvidos na educação básica (indivíduos, no contexto da política e da gestão da edu-
grupos, coletivos, instituições) os dados cação básica brasileira, precisam enfrentar
mais relevantes, para que possam orientar as tensões e concretizar o desafio de se
suas ações à efetivação desse nível de edu- tornar socialmente congruente.

Referências

ABRUCIO, F. L. Para além da descentralização: os desafios da coordenação federativa no Brasil.


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Janeiro: FGV, 2006.
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mento. In: ______. OLIVEIRA, R.; SANTANA, W. (Orgs.). Educação e federalismo no Brasil: combater
as desigualdades, garantir a diversidade. Brasília: UNESCO, 2010.
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vel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso
em: 7 abr. 2011.

64 Dirce Nei Teixeira de FREITAS. A avaliação na educação básica brasileira: tensões e desafios
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Metas Compromisso Todos pela Educação. Brasília, 2007. Portal da Subchefia de Assuntos Ju-
rídicos da Casa Civil da Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2007- 2010/2007/Decreto/D6094.htm>. Acesso em: 20 abr. 2009.
______. Projeto de Lei n. 8.035, de 2010b. Aprova o Plano Nacional de Educação para o decênio
2011-2020, e dá outras providências. Disponível em: <www.mec.gov.br>. Acesso em: 17 dez. 2010.
______. CONAE: Documento Final. Brasília, 2010a. Disponível em: <www.mec.gov.br>. Acesso
em: 7 abr. 2011.
FREITAS, Dirce Nei Teixeira de. Sistemas e escolas de educação básica: entre democratizar e
compartilhar a gestão. In: SENNA, Ester (Org.). Trabalho, educação e política pública. Campo
Grande: UFMS, 2003. p. 189-219.
______. A avaliação da educação básica: dimensão normativa, pedagógica e educativa. Cam-
pinas: Autores Associados, 2007.
______. Avaliação e regulação da educação básica na primeira década do século. In: ROTHEN,
J. C.; BARREYRO, G. B. Avaliação da educação: diferentes abordagens críticas. São Paulo: Xamã,
2011. p. 107-124.
GATTI, B. A. Avaliação e qualidade da educação. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO, 23, CONGRESSO
LUSO-BRASILEIRO, 5, COLÓQUIO IBERO-AMERICANO DE POLÍTICA E ADMINISTRAÇÃO DA EDU-
CAÇÃO, 1., 2007, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: Anpae, 2007. Disponível em: <www.anpae.
org.br/congressos_antigos/simposio2007/51.pdf>. Acesso em: 2 jan. 2012.
SAVIANI, D. Sistema Nacional de Educação articulado ao Plano Nacional de Educação. Revista
Brasileira de Educação, ANPEd, v. 15, n. 44, p. 380-412, maio/ago. 2010. (Documento).

Recebido em abril de 2012


Aprovado para publicação em junho de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 55-65, jan./jun. 2012. 65


A metodologia do ENEM: uma reflexão
The methodology of ENEM: a reflection
Gisele Gama Andrade
Doutora em Língua Portuguesa, pós-doutorada em Ava-
liação Educacional, coordenadora das novas matrizes do
Enem, especialista em avaliação em larga escala.
E-mail: gisele@abaquarconsultores.com.br

Resumo
Este artigo pretende discutir a nova metodologia do ENEM, embasada na Teoria da Resposta ao Item, e
defender sua inadequação à finalidade da avaliação, fundamentalmente classificatória, para a obtenção
de vagas junto ao SISU.
Palavras-chave
ENEM. Avaliação. Teoria de Resposta ao Item.

Abstract
This article discusses the new methodology of ENEM, based on Item Response Theory, and defend its
inadequacy to the purpose of this assessment, essentially classifying, to obtain enrollment in higher
education from SISU.
Key words
ENEM. Evaluation. Item Response Theory.

Apresentação pelos resultados do Sistema de Avaliação


da Educação Básica Brasileira (SAEB), o
Desde sua criação, o Exame Nacio- Ministério da Educação passou a promover
nal do Ensino Médio – Enem enfrenta o de- debates, pesquisas e documentos voltados
safio de apresentar aos alunos concluintes para a definição de competências funda-
do ensino médio e aos atores envolvidos mentais a serem desenvolvidas no aluno
no processo de educação básica alternati- em sua educação. Surgiu, nessa época, o
vas para o perfil do estudante que devemos Enem.
formar. O contexto de seu surgimento é o
das mudanças. Provocado por tendências Um histórico
internacionais de busca pela qualidade,
pela nova Lei de Diretrizes e Bases da A proposta inicial do Enem foi a de,
Educação Nacional (1996) e por uma pre- rompendo os paradigmas de uma edu-
cária realidade educacional apresentada cação descontextualizada e fragmentada,

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 67-76, jan./jul. 2012
proporcionar ao aluno uma autoavaliação Esta é, então, a proposta do novo Enem: a
das ferramentas adquiridas para lidar com de possibilitar às IESs “enxergar” melhor o
o mundo em que vive e de possibilitar às perfil dos alunos concluintes da educação
instituições de ensino superior e ao mer- básica.
cado de trabalho essa mesma avaliação. O novo Enem, como o anterior, parte
Essa proposta, no entanto, ganhou força do conceito de competências, que se traduz
apenas quando os resultados obtidos pelo em habilidades, conhecimentos e atitudes
aluno foram atrelados ao Programa Univer- para resolver cada situação-problema e
sidade para Todos (PROUNI), que tem como estrutura-se em quatro macroáreas: Ciên-
finalidade a concessão de bolsas de estudo cias da Natureza, Ciências Humanas,
integrais e parciais a estudantes de cursos Matemática e Linguagens e Códigos.
de graduação e sequenciais de formação Cada macroárea propõe 30 habilidades
específica, em instituições privadas de a serem avaliadas, em total geral de 120
educação superior. habilidades. Cada macroárea é avaliada
A fim de recuperar um de seus maio- em 45 itens, ou seja, das 30 habilidades,
res objetivos, que era o de proporcionar 15 são avaliadas uma vez e 15 duas vezes,
às Instituições de Ensino Superior (IESs) na prova. São 180 itens de prova, em dois
(a todas elas, não somente às privadas) dias de avaliação, mais uma redação.
uma alternativa para os exames vestibu- O ponto de partida para o entendi-
lares com uma proposta contemporânea mento dessa nova proposta de avaliação é
do perfil do estudante, fazia-se necessário a clara compreensão do que será aferido,
repensar a proposta do Enem. A legítima a gama de conhecimentos relevantes – de
crítica ao exame era a de que ele propu- dimensões conceituais, procedimentais e
nha um perfil genérico demais do aluno, atitudinais – que os alunos concluintes
o que impossibilitava às universidades têm o direito de ver certificados para a
públicas, com acirradas disputas de vagas, obtenção do reconhecimento das aprendi-
selecionar aquele cujo perfil se voltava sa- zagens que efetivaram, seja em processos
tisfatoriamente para o curso pretendido, ou de educação formal, seja em experiências
seja, que possibilitava identificar o aluno extracurriculares.
que demonstrasse claramente ter desen- A matriz do Enem, evidentemente,
volvido, na educação básica, habilidades não esgota a aferição de todas as compe-
fundamentais para a área que pretendesse tências desenvolvidas na educação básica,
cursar no ensino superior. Atento a tal mas pretende fazer uma seleção voltada
necessidade, o Ministério da Educação para o reconhecimento de competências
passou a promover debates com as uni- essenciais na contemporaneidade do
versidades a fim de buscar alternativas conhecimento, da cultura, do mundo do
para o exame que possibilitassem o uso de trabalho, da política, entre outras esferas
seus recursos por essas instituições como da interação social.
alternativa aos vestibulares tradicionais.

68 Gisele Gama ANDRADE. A metodologia do ENEM: uma reflexão


O ENEM: questões para reflexão habilidades para solucionar problemas
funcionais a partir de conceitos que a
Quando de sua criação, o Documen- escola pretendeu ensinar e desenvolver.
to Básico do ENEM propunha, como Matriz Não há, em uma prova, a possibilidade de
de avaliação, um modelo que contemplava mensurar competências. Um aluno pode
competências e habilidades gerais que, não resolver uma questão de prova por
de acordo com o referido documento, cor- não ter sido instrumentalizado conceitu-
respondiam ao término da escolaridade almente, mas não há garantia de que ele
básica do indivíduo. De acordo com o não tenha capacidade, ou competência
Documento (INEP, 2000, p. 5), para fazê-lo.
[...] competências são modalidades Quanto ao assunto, coube o alerta
estruturais de inteligências, ou melhor, do professor José Mário Pires Azanha,
ações e operações que utilizamos professor da Faculdade de Educação da
para estabelecer relações com e USP (AZANHA, 2001):
entre objetos, situações, fenômenos Na revista do ENEM e em outros textos
e pessoas que desejamos conhecer. oficiais, a palavra ‘competência’ corre
As habilidades decorrem das com- sério risco de ser coisificada como novo
petências adquiridas e referem-se ao habitante do bestiário pedagógico que,
plano imediato do “saber fazer”. Por querem nos fazer crer, são coisas que
meio das ações e operações, as habi- a educação deve desenvolver. Esse
lidades aperfeiçoam-se e articulam-se, risco pode ter graves consequências
possibilitando nova reorganização educacionais porque, em alguns textos,
das competências. ‘competências ‘ são contrapostas a
A escola, como referido nos Parâme- conhecimentos, como se as escolas de
formação geral (ensino fundamental e
tros Curriculares e na Lei de Diretrizes e
médio) devessem se preocupar mais
Bases da Educação Nacional (LDB), deve com a constituição daqueles do que
estar focada no conteúdo funcional da com o ensino destes, como se fosse
aprendizagem, deixando de preocupar-se possível alguém tornar-se competente
com a acumulação, pelo aluno, de infor- em matemática pelo desenvolvimento
mações não relacionadas com aplicações de uma ‘coisa’ que se chama ‘compe-
práticas, que apenas privilegiam a memori- tência matemática’ distinta do estudo
zação. De acordo com o Documento Básico intensivo de tópicos fundamentais
do ENEM, naquela época, o exame tinha de matemática, ou, da mesma forma,
como propósito mensurar o conhecimento como se fosse possível alguém tornar-
se um competente intérprete de Cho-
adquirido pelo aluno na escola a partir de
pin, sem o treinamento continuado na
situações aplicáveis ao seu cotidiano. execução de suas obras. Esses exem-
Como propósito de avaliação, aquilo plos evidenciam que ‘competência’
que pode ser mensurável é o que o alu- refere-se antes ao grau de excelência
no demonstra saber fazer, ou seja, suas que se consegue no desempenho de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 67-76, jan./jun. 2012. 69


uma atividade (prática ou teórica) do aluno. No entanto, o boletim do aluno era
que à posse de algo nebuloso (como apresentado por competências. De acordo
‘modalidades estruturais de inteligên- com o Documento Básico (BRASIL, 1998),
cia’) que deve ser desenvolvido em o ENEM se estruturava em 21 habilidades
escolas de formação geral.
que deveriam ter sido desenvolvidas no
Partindo-se desse pressuposto, o fim do Ensino Médio. Essas habilidades,
exame só se poderia estruturar na avalia- ainda segundo o Documento, decorriam
ção de habilidades, ou do “saber fazer”, que de cinco competências globais, descritas
é o plano mensurável do conhecimento do e representadas a seguir:

12 13
11 14
10 15
Competências: 9 16
8 17
I. Dominar linguagens (DL) 7 II 18
II. Compreender fenômenos (CF) 6 20
2 CF 21
III. Enfrentar situações-problema (SP) 1
14 18 2 3
IV. Construir argumentação (CA) 13
1 4
12 7
V. Elaborar propostas (EP) 9
11
10
6 I III 12
5 DL SP 14
Habilidades: 1 a 21 4 15
3 16
2 17
1 21 19

20
3
19
18 4

17 V IV 5
16
14
EP CA 6

3 8
13 21
5 13
12 7
11 10 8 20 14
9 19 15

Uma habilidade, como se vê acima, As cinco competências que são ava-


podia relacionar-se, na prova, a mais de liadas no ENEM na parte objetiva da
uma competência. Cada habilidade era, prova expressam-se por meio de 21
então, avaliada em três questões, o que habilidades. Cada uma das 21 habi-
lidades será medida três vezes (três
totalizava 63 questões no exame. O que se
questões para cada habilidade). A
pode avaliar, conforme já afirmamos, é o interpretação dessa nota global será
“saber fazer”, ou as habilidades. No entanto, estruturada a partir de cada uma das
para a análise do desempenho do aluno, cinco competências, pelas relações
propunha-se (BRASIL, 1998, p. 8-9): estabelecidas com as respectivas

70 Gisele Gama ANDRADE. A metodologia do ENEM: uma reflexão


habilidades e as questões a elas rela- inferindo as escolhas dos temas, gê-
cionadas, gerando também para cada neros discursivos e recursos expres-
competência, uma nota de 0 a 100 [...]. sivos dos autores.
A fim de analisar o que se propunha, H.6 - Com base em um texto, analisar as
consideremos a Competência I (dominar funções da linguagem, identificar
linguagens). De acordo com a matriz, tal marcas de variantes linguísticas de
competência relacionava-se (no texto, natureza sociocultural, regional, de
utilizava-se o verbo decorrer) a onze habi- registro ou de estilo, e explorar as re-
lidades (embora seja necessário dominar lações entre as linguagens coloquial
linguagens para resolver toda e qualquer e formal.
questão da prova), a saber: H.11 - Diante da diversidade da vida, ana-
H.1- Dada a descrição discursiva ou por lisar, do ponto de vista biológico,
ilustração de um experimento ou físico ou químico, padrões comuns
fenômeno, de natureza científica, nas estruturas e nos processos
tecnológica ou social, identificar que garantem a continuidade e a
variáveis relevantes e selecionar os evolução dos seres vivos.
instrumentos necessários para reali- H.12 - Analisar fatores socioeconômicos
zação ou interpretação do mesmo. e ambientais associados ao desen-
H.2 - Em um gráfico cartesiano de variável volvimento, às condições de vida e
socioeconômica ou técnico-científica, saúde de populações humanas, por
identificar e analisar valores das va- meio da interpretação de diferentes
riáveis, intervalos de crescimento ou indicadores.
decréscimo e taxas de variação. H.13 - Compreender o caráter sistêmico do
H.3 - Dada uma distribuição estatística planeta e reconhecer a importância
de variável social, econômica, física, da biodiversidade para preservação
química ou biológica, traduzir e in- da vida, relacionando condições do
terpretar as informações disponíveis, meio e intervenção humana.
ou reorganizá-las, objetivando inter- H.14 - Diante da diversidade de formas
polações ou extrapolações. geométricas planas e espaciais, pre-
H.4 - Dada uma situação-problema, apre- sentes na natureza ou imaginadas,
sentada em uma linguagem de caracterizá-las por meio de proprie-
determinada área de conhecimento, dades, relacionar seus elementos,
relacioná-la com sua formulação em calcular comprimentos, áreas ou
outras linguagens ou vice-versa. volumes, e utilizar o conhecimento
H.5 - A partir da leitura de textos literários geométrico para leitura, compreen-
consagrados e de informações sobre são e ação sobre a realidade.
concepções artísticas, estabelecer H.18 - Valorizar a diversidade dos patrimô-
relações entre eles e seu contexto nios etnoculturais e artísticos, iden-
histórico, social, político ou cultural, tificando-a em suas manifestações

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 67-76, jan./jun. 2012. 71


e representações em diferentes do desempenho por competências não era
sociedades, épocas e lugares. simples como fazia parecer o Documento
Não é possível sustentar a defesa Básico. Se considerarmos, especialmen-
de que a competência para dominar te, que tais competências descritas no
linguagens decorra, por exemplo, da Documento são complementares (domi-
habilidade de valorizar a diversidade dos nar linguagens, compreender fenômenos,
patrimônios etnoculturais e artísticos, ou enfrentar situações-problema, construir
de reconhecer a importância da biodi- argumentação e elaborar propostas) e que
versidade para a valorização da vida. se referem a todas as habilidades descritas,
Mas, de acordo com o Documento, essa a relação Competências x Habilidades
relação assim se estabelecia, e o boletim proposta na Matriz e a forma como se
de desempenho do aluno era descrito por apresentava o boletim de desempenho do
suas competências. Seguindo tal raciocínio, aluno não se sustentavam.
consideremos então, para a Competência I Então, fazia-se mesmo necessário re-
e para as onze habilidades descritas acima, formular o Enem. Vejamos as justificativas
que elas estivessem representadas em do INEP para tais mudanças1:
uma prova hipotética, nas questões de 1 Até 2008, o Enem era uma prova
a 36, assim dispostas: H 1 (questões de 1 clássica com 63 questões interdisci-
a 3), H2 (questões de 4 a 6), H3 (questões plinares, sem articulação direta com
de 7 a 9), e assim sucessivamente. os conteúdos ministrados no ensino
Consideremos agora um aluno médio, e sem a possibilidade de
hipotético X: comparação das notas de um ano
• Se X respondesse corretamente todas para outro. A proposta é reformular
o Enem para que o exame possa
as questões pares e incorretamente
ser comparável no tempo e aborde
todas as ímpares, ele dominaria as ha- diretamente o currículo do ensino
bilidades acima referidas? Dominaria a médio. O objetivo é aplicar quatro
competência I? grupos de provas diferentes em cada
• Se X respondesse corretamente todas processo seletivo, além de redação.
as questões das habilidades , 2, 4 e 6 O novo exame será composto por
e duas das demais habilidades, que perguntas objetivas em quatro áreas
habilidades dominaria? Dominaria a do conhecimento: linguagens, có-
competência I? digos e suas tecnologias (incluindo
• Se X respondesse corretamente 24 redação); ciências humanas e suas
questões, duas para cada habilidade, tecnologias; ciências da natureza
e suas tecnologias e matemáticas
ele dominaria todas as habilidades?
e suas tecnologias. Cada grupo de
Dominaria a competência I? testes será composto por 45 itens de
A partir das hipóteses descritas aci-
ma e das inúmeras combinações de erros e
acertos possíveis, verifica-se que a análise 1
Fonte: http://historico.enem.inep.gov.br.

72 Gisele Gama ANDRADE. A metodologia do ENEM: uma reflexão


múltipla escolha, aplicados em dois A prova do Enem tem cinco notas:
dias. [...] uma para cada área de conhecimen-
to avaliada – Ciências da Natureza,
A grande vantagem que o MEC está Ciências Humanas, Linguagens e
buscando com o novo Enem é a Matemática –, mais a média da
reformulação do currículo do ensino redação. Para o cálculo das médias
médio. O vestibular nos moldes de em cada uma das quatro áreas foi
hoje produz efeitos insalubres sobre utilizada metodologia da Teoria de
o currículo do ensino médio, que está Resposta ao Item (TRI), que busca
cada vez mais voltado para o acúmulo medir o conhecimento a partir do
excessivo de conteúdos. A proposta é comportamento observado em testes.
sinalizar para o ensino médio outro No caso da redação, os critérios são
tipo de formação, mais voltada para os mesmos do Enem tradicional. [...]
a solução de problemas. Outra van-
tagem de um exame unificado é pro- Diferentemente de uma prova comum,
mover a mobilidade dos alunos pelo a nota do Enem em cada área não
País. Centralizar os exames seletivos representa simplesmente a proporção
é mais uma forma de democratizar o de questões que o estudante acertou
acesso a todas as universidades. na prova. Em cada uma das quatro
áreas avaliadas, a média obtida de-
A partir das mudanças propostas na pende, além do número de questões
Matriz, a metodologia do novo Enem tam- respondidas corretamente, também
bém mudou. Ele passou a ser proposto a da dificuldade das questões que se
partir da metodologia da Teoria da Respos- erra e se acerta, e da consistência
ta ao Item, à qual você já foi apresentado(a) das respostas. Por isso, pessoas que
quando estudou a metodologia do SAEB. acertam o mesmo número absoluto
Isso significa dizer que os itens precisaram de itens podem obter médias de de-
sempenho distintas. [...]
ser pré-testados2 antes da avaliação. De
acordo com o INEP3: Na escala construída para o Enem,
dentro de cada uma das áreas ava-
liadas, a nota 500 representa a média
2
Itens - âncora são itens que, em qualquer ponto obtida pelos concluintes do ensino
da escala, são acertados pela maioria dos alunos médio que realizaram a prova (excluí-
(aproximadamente 65%) que participaram da pré- dos os egressos e treineiros). Portanto,
testagem. Ao mesmo tempo, são itens respondidos quanto mais distante de 500 for a
corretamente por uma minoria de alunos (25%) nota do estudante, para cima, maior
situados no ponto imediatamente inferior e pela o desempenho obtido em relação
quase totalidade (95%) dos situados no ponto à média dos participantes. Mesmo
imediatamente superior. Esses itens são repetidos
raciocínio vale para desempenho
em diversas edições das provas e garantem a
comparabilidade das aplicações.
menor que 500, que aponta desem-
3
penho pior em relação ao obtido pela
Fonte: http://www.inep.gov.br/imprensa/noticias/
média. [...]
enem/news10_04.htm.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 67-76, jan./jun. 2012. 73


Os limites da escala, dentro de cada Clássica, pelos seguintes motivos:
área, variam conforme o nível de • No Enem, não há possibilidade de que
dificuldade das questões da prova e os itens sejam reaplicados em provas
o comportamento dos estudantes em futuras, tendo em vista que as provas
cada questão. Portanto, o mínimo e são divulgadas na íntegra. Isso impossi-
máximo para cada área avaliada não
bilita que um item seja âncora de outra
são pré-fixados.
prova, porque não pode ser reutilizado.
Na prova de Ciências da Natureza Ocorre que no mundo não há nenhuma
e suas Tecnologias, a análise TRI avaliação em larga escala, além do
apontou que a menor média de Enem, que utilize a Teoria da Resposta
proficiência observada foi 263,3. Esse ao Item sem a reaplicação dos itens-ân-
número representa o início da escala
cora. O SAEB, por exemplo, que utiliza
para essa área, ou seja, o nível mais
a mesma metodologia, não é divulgado
baixo de proficiência possível de men-
suração pelas questões da prova. A
na íntegra, porque há itens que são
maior proficiência foi 903,2. repetidos em outras versões da prova,
garantindo, assim, a organização da
Para Ciências Humanas e suas Tecno- nova prova nas escalas de proficiência.
logias, as notas variam entre 300,0
No Enem, isso não ocorre, e essa é uma
e 887,0.
prerrogativa para a Teoria da Resposta
Para a área de Linguagens, Códigos ao Item. A ausência desses itens-âncora
e suas Tecnologias, as médias ficam é um fato que prejudica, em muito, a
entre 224,3 e 835,6. possibilidade de se sustentar a análise
No caso de Matemática e suas Tecno- do exame pela TRI;
logias, as notas vão de 345,9 a 985,1. • A correta pré-testagem deve ser feita no
universo da prova, ou seja, se a prova for
O novo Enem é, sem dúvida, um aplicada a estudantes de terceiro ano do
exame classificatório. A Teoria da Resposta ensino médio no Brasil, a pré-testagem
ao Item é uma metodologia que propõe a deve ser feita em um grupo reduzido
análise não da prova, mas do item, para dentro desse universo. Tendo em vista a
que se crie uma escala que possa compa- proposição de uma prova classificatória
rar, em aplicações diferentes, um compor- como o novo Enem, considerar que um
tamento de um grupo de estudantes com grupo tenha acesso a um item que seja
relação às proficiências demonstradas. Se a antes da aplicação da prova fere o prin-
finalidade primordial do Enem, atualmente, cípio da isonomia, portanto, pré-testar
é a de organizar um ranking dos resultados itens é um proposta inadequada para
obtidos pelos estudantes para a oferta de a finalidade do exame. Na versão de
vagas no Sistema de Seleção Unificada 2011, houve problemas na aplicação
(SISU), a metodologia mais adequada não porque itens pré-testados “vazaram”.
é a Teoria da Resposta ao Item, mas a Teoria Não há como se permitir, em uma prova

74 Gisele Gama ANDRADE. A metodologia do ENEM: uma reflexão


com aproximadamente quatro milhões e da prova um caráter ainda obscuro de
meio de candidatos a aproximadamente sua análise, facilitando, em muito, a
cento e dez mil vagas, em uma proporção compreensão da lisura na divulgação
média de vinte e cinco mil candidatos dos resultados obtidos.
por vaga, contendo um total de cento
e oitenta itens, que qualquer candidato Considerações finais
tenha acesso anterior a uma ou mais O Exame Nacional do Ensino Médio,
questões de prova. Esse fato é inadmissí- desde seu surgimento, tem revolucionado,
vel. Inadmissível também é não pré-testar para melhor, a educação básica brasileira,
os itens que farão parte de uma avaliação em especial no ensino médio. Não há
que proponha utilizar a metodologia da como negar a importância da avaliação,
Teoria da Resposta ao Item; proposta para facilitar a isonomia no aces-
• A Teoria da Resposta ao Item propõe so ao ensino superior, ao mesmo tempo em
uma análise voltada para o resultado que propõe uma avaliação mais de acordo
obtido no item, enquanto a Teoria Clássi- com as metas internacionais de qualidade,
ca propõe uma análise voltada para o voltadas para o desenvolvimento de com-
resultado da prova. Como sabemos, o petências do sujeito que proporcionem sua
boletim do Enem propõe dar uma nota autonomia e interação com outros sujeitos.
geral ao estudante, e a justificativa da No entanto, é preciso discutir e rever o cer-
utilização da TRI tem sido o fato de que tame. Ao longo os últimos anos, grandes
é possível dar pesos diferentes às ques- foram os problemas enfrentados em sua
tões. Mas isso também é possível com a aplicação. Acreditamos que o maior equí-
Teoria Clássica. Se uma questão de prova voco da prova é a metodologia escolhida
avaliar habilidades mais complexas, é para sua análise. Não há teorias melhores
possível, e legítimo, que essas habilida- ou piores, mas mais ou menos adequadas
des tenham peso, na análise, maior que o para a sua finalidade. Em nossa opinião, a
daquelas questões com habilidades mais Matriz do Enem precisava ser revista, mas
elementares. No caso do Enem, esse peso a mudança da metodologia, junto com a
poderia, inclusive, ser disponibilizado ao apresentação das novas matrizes, trouxe
aluno avaliado ANTES da prova, quando grandes problemas para a avaliação, o
da divulgação das matrizes. Isso retiraria que precisa ser, urgentemente, corrigido.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio


Teixeira (INEP). ENEM: documento básico. Brasília, 1998.
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). ENEM: documento
básico. Brasília, 2000.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 67-76, jan./jun. 2012. 75


______. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). ENEM:
relatório. Brasília, 2001.
AZANHA, José Mário Pires. O ENEM: afinal, do que se trata? Jornal da USP, n. 563, de 20 a 26
de agosto de 2001 e n. 564, de 27 de agosto a 02 de setembro de 2001.

Recebido em abril de 2012


Aprovado para publicação em junho de 2012

76 Gisele Gama ANDRADE. A metodologia do ENEM: uma reflexão


ENEM: matriz e itens para a educação escolar
ENEM: framework and itens for school education
Maria Cecilia Guedes Condeixa
Bacharel e licenciada em Ciências Biológicas pela USP.
Consultora independente em avaliação e currículo, autora
de livros educativos. E-mail: ceciliacondeixa@gmail.com

Resumo
O conteúdo deste artigo tem origem em palestras e pequenos cursos para professores da educação básica,
privada ou pública, sobre avaliação em larga escala, de modo geral, e o ENEM, em particular. Apresentamos
os contextos em que foram realizadas as práticas de formação e discutimos o uso de matrizes e itens do
Enem como subsídios para a pedagogia que valoriza a resolução de problemas e o desenvolvimento de
capacidades cognitivas e conceituais do estudante da educação básica. Decodificamos a estratégia de
problematização do antigo ENEM, denominada “situação-problema”, com características bem definidas e
que foi confirmada no Novo ENEM. Além disso, compartilhamos nossas reflexões sobre impactos dessas
mudanças da política pública na educação escolar.
Palavras-chave
Formação continuada. Escola básica. ENEM.

Abstract
The content of this article derives from lectures and short courses delivered for teachers of private and
public basic education, on the topic of large-scale assessment in general, and ENEM in particular. Here
we present the contexts in which the continuing teacher education were carried out and discuss the use
of Enem’s competencies framework and items as an educational strategy to highlight problem solving
and the development of cognitive and conceptual abilities of the basic education students. We decode
the problem solving strategy from the former ENEM, which has well defined attributes and was confirmed
in the Novo ENEM. In addition, this article socializes our reflections on the impact the recent changes in
public policy made on school education.
Key words
Continuing education. Basic education. ENEM.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 77-87, jan./jul. 2012
Introdução melhor, uma vez que a liberação de
rankings de escolas tem ocasionado a
Constata-se que fundamentalmente comparação de desempenho entre escolas,
dois modelos vêm povoando o dis- pelos pais, estudantes, diretores e outros
curso sobre a avaliação no país: um gestores. A própria ideia de desempenho
que se reporta à sua potencialidade escolar e nos exames tem sido discutida
emancipadora e outro que deita em novas bases, pois os jovens de Ensino
raízes na função reguladora do Esta- Médio querem participar dos mercados
do. (BARRETO, 2001).
de trabalho sem perder raízes culturais,
Como parte de minha atividade o que traz diversos questionamentos aos
profissional, tenho realizado palestras educadores. Paralelamente, professores
para professores vinculados a diferentes também necessitam renovar seus progra-
instituições, convidando-os a refletir sobre mas de ensino para alunos com crescente
possíveis contribuições de avaliações em facilidade de busca e organização de in-
larga escala para a pedagogia da escola formações, pois têm familiaridade com o
básica. Embora tenha realizado palestras mundo digital, já disseminado nos vários
sobre o Exame Nacional do Ensino Médio extratos sociais. Podendo usar recursos de
(ENEM), para diferentes públicos, desde computador e internet, o aluno é capaz de
sua criação, sua frequência aumentou realizar muitas tarefas em pouco tempo e,
desde 2009, quando a prova de 63 ques- portanto, se beneficia com uma pedagogia
tões e uma redação foi substituída pelo mais dinâmica e participativa, por exemplo,
NOVO ENEM, com dois dias de provas de com a aplicação de situações-problema,
90 questões e uma maior importância para uma estratégia da pedagogia de resolução
a vida do estudante e das escolas. A maior de problemas.
demanda veio junto com a transformação Muitos professores e coordenadores
da prova para autoavaliação e apoio ao de escola, pública ou privada, declaram-se
vestibular em exame com várias finalida- carentes de conhecimentos sobre as ava-
des, desde a certificação em Educação liações de sistema e manifestam, não
de Jovens e Adultos (EJA), anteriormente raro, a necessidade de conhecer mais.
realizada pelo Exame Nacional de Certi- Segundo eles, as provas organizadas a
ficação Competências de EJA (ENCCEJA), partir de competências e habilidades são
até a distribuição nacional das vagas de um conhecimento ainda recente para o
ingresso às universidades e institutos fe- qual não receberam instrução adequada
derais de educação superior, além de ser em sua formação inicial, ou em formação
a porta de entrada para o programa de continuada. De fato, somos carentes de
bolsas PROUNI, desde 2006. informações detalhadas sobre as provas do
Na escola privada, a notoriedade Novo ENEM mais recentes, com conteúdos
recente do exame nacional tem motivado semelhantes, por exemplo, aos Relatórios
uma maior aplicação para conhecê-lo Pedagógicos do ENEM, divulgados entre

78 Maria Cecília Guedes CONDEIXA. ENEM: matriz e itens para a educação escolar
1999 e 2002, que apresentaram cada Na qualidade de formadora do
item e os analisaram do ponto de vista professor em serviço, procuro interpretar
estatístico e pedagógico. Essas informações essas demandas e organizar palestras e
interessam ao professor do ensino médio, cursos curtos para professores, a convite
possibilitam a aplicação da questão do de seus diretores, ou ainda, de editores,
Enem em sala de aula e permitem a com- fundações, sindicatos e ONGs apoiadores
paração do desempenho de seus alunos de formação de professores. Nessas opor-
com os alunos que fizeram a prova. A tunidades, debatemos e estudamos sobre
carência de relatórios acessíveis aos pro- currículo, avaliação e concepção de ensino
fessores sobre as provas do Novo Enem e aprendizagem, ao mesmo tempo em que
contribui para a prevalência de dúvidas, realizamos análise e preparação de ques-
além de não apresentar uma interpretação tões ou exercícios para provas e estudos,
oficial dos dados e resultados. tomando como referência uma ou mais
Também é importante observar que avaliação de larga escala, especialmente
muitos professores e coordenadores con- o ENEM e o Programa Internacional de
sideram descabido trabalhar em função Avaliação de Estudantes (PISA).
da avaliação, argumentando, por exemplo, Uma discussão interessante nas
que uma avaliação de sistema traduz aberturas dos encontros de formação de-
muito pouco da realidade da escola. Esse corre do debate da frase em dístico nesse
argumento é verdadeiro, pois o currículo texto, sobre a existência de duas vertentes
vivo da escola deve englobar vários aspec- na avaliação: a avaliação continuada, es-
tos de cidadania, sociedade que escapam a colar, com potencialidade emancipadora,
qualquer prova, assunto bastante debatido ao lado das avaliações de sistema, para a
na literatura acadêmica, a exemplo de aferição de resultados de aprendizagem
Barreto (2001) e Horta Netto (2010). Mas em um sistema público de ensino. O tre-
professores enfatizam que mesmo bons cho evoca a pedagogia emancipadora de
alunos podem obter resultados pobres no Paulo Freire, com ênfase na autonomia e
ENEM, ou outras provas de larga escala, na criatividade, com a qual se identificam
revelando alguma carência em seu apren- os educadores brasileiros. Ele situa, de for-
dizado. O baixo desempenho é explicado ma dicotômica, as avaliações vivenciadas
pela falta de domínio da “linguagem” ou pelos alunos, retratando bem o sentimento
o “estilo de questões” da prova, segundo de muitos educadores, que muitas vezes
a interpretação dos educadores. Assim, ainda não examinaram as relações pe-
tanto a escola privada como a escola dagógicas entre as duas propostas e as
pública sentem necessidade de preparar desconhecem. Passados mais de dez anos
seus alunos para as provas, mais ainda, da publicação do artigo que contém o tre-
necessitam compreender melhor as provas cho, esse desconhecimento é preocupante,
e seus instrumentos. carece superação.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 77-87, jan./jun. 2012. 79


Compreendemos que é necessário proveitosas, considerando-se as dificulda-
aos docentes estudar melhor suas práticas des de escrita e pesquisa para elaboração
de avaliação para avançarem no enten- de questões e estratégias para gestão da
dimento das provas de sistema, especial- classe nas devolutivas. Mas, como tudo
mente o ENEM, com vistas e incorporar a isso fica frequentemente fora do plane-
pedagogia de resolução de problemas em jamento e das ações escolares, os tipos e
que se inscreve. qualidades das provas escolares são muito
variados, conforme o professor, e, assim,
Avaliação de sistema e avaliação o aluno convive com vários modelos de
escolar prova e outras modalidades de avaliação.
Cuidar de todo processo é relevante para
Para melhor contribuir com a forma- melhorar na unidade escolar o significado
ção do professor, tomamos como ponto de das avaliações, familiarizar o aluno com
partida a compreensão das provas que os processos bem organizados e menos ale-
professores elaboram para suas classes. atórios, ajudando-o a diminuir a distância
Recordamos que a avaliação escolar¸ entre aprendizado e avaliação.
tradicionalmente, é centrada em conheci- É digno de nota o fato de que os
mento conceitual, o que se caracteriza pela livros didáticos aprovados no Programa
presença prioritária de perguntas do tipo: Nacional do Livro Didático (PNLD) trazem
“O que são/o que é...” denotando foco no leituras de imagens, de esquemas, produ-
nome, na explicação ou definição de um ção de redes conceituais, interpretação de
conceito. Esse tipo de questão é respondido situações problema contextualizadas, etc.
pela recordação de textos estudados para Novas coleções de livros fornecem exem-
a prova. Portanto, tem valor memorístico e plos de atividades escolares diferenciadas
ajuda pouco o aluno a enfrentar as situa- para ensino ou avaliação, mas seu enten-
ções-problema das questões do ENEM. dimento e interpretação pelos professores
Na prova escolar, o professor espera estão longe de ser automáticos, sendo
uma devolutiva de acordo com o que en- preciso investimento eficiente das equipes
sinou em sala de aula, o que nos remete escolares para transformar as estratégias
à ideia de um jogo de cartas marcadas. colocadas nos livros como ações incorpo-
Além disso, a produção de provas revistas radas na prática educativa. Comenta-se
ou compartilhadas entre os docentes ainda que são muitas novidades para a escola
é rara, de modo que o aluno é também o assimilar e desenvolver, o que acaba por
revisor da prova. Não raro o professor lê e frequentemente criar uma expectativa so-
explica questões no início da prova. bre práticas pedagógicas muito maior do
Há nas escolas concordância sobre que a escola é capaz de dar conta.
a necessidade de mapear demandas das Mais desafios para a formação
atividades envolvidas na avaliação, como continuada residem na compreensão das
a preparação, a aplicação e devolutivas avaliações de larga escala como parte das

80 Maria Cecília Guedes CONDEIXA. ENEM: matriz e itens para a educação escolar
políticas públicas, como o ENEM (criado uma série histórica que, afinal, é o objetivo
em 1998), o PISA (com a participação do maior das políticas públicas.
Brasil desde 2000), o Sistema de Avaliação
do Ensino Básico (SAEB) e a Prova Brasil. É Matriz de competências do ENEM
comum os professores manifestaram des-
conforto, ou mesmo revolta, por se encon- Os conteúdos programáticos de
trarem alheios aos processos de produção, avaliações externas, concursos e provas
implantação e divulgação das provas de tradicionais são organizados em listas de
sistema ou do ENEM. As políticas públicas tópicos conceituais do conteúdo escolar.
envolvem pouco ou não envolvem os do- Em avaliações atuais de larga escala esse
centes da escolaridade básica, isso está tipo de lista de conteúdos foi substituído
claro, mas quais as consequências disso? por matrizes de competências e habilida-
Pode-se aventar que, nesse cenário, em des. A matriz de referência é o primeiro
2012, acirra-se a dicotomia observada por fundamento para o programa de avaliação
Barreto (2001, p. 48). Na escola, com forte em larga escala ganhar o caráter compar-
apelo da pedagogia de Paulo Freire, a tilhado e confiável que é dele esperado. As
avaliação deveria servir para a autonomia competências e habilidades são descritas
intelectual do estudante, mas professores na Matriz em pequenos trechos que expli-
não recebem recursos para investir na cam o que se requer de um aluno para
preparação de avaliação continuada, mostrar conhecimento, raciocínio e proce-
dificultada também pelo grande número dimentos. Assim, uma Matriz de Avaliação
de alunos por classe. Por outro lado, as revela a concepção de educação, de ensino
avaliações de sistema, compulsórias, que e aprendizagem pretendida pela política
definem, inclusive bônus salarial dos pro- pública correspondente. É o instrumento
fessores (caso do Estado de São Paulo), que serve para construção das questões de
são políticas públicas poderosas que, no uma prova de sistema e, após a aplicação,
entanto, fornecem pouca informação para permite uma interpretação consistente de
professores. resultados. Por exemplo, é evidentemente
Educadores da escola básica preci- mais pobre uma matriz que contenha a
sam compreender que as provas de larga maior parte das proposições de competên-
escala, como o ENEM, devem ser susten- cias e habilidades baseadas em “conhecer”
tadas por protocolos rigorosos para cada (certo objeto de conhecimento), esquecen-
etapa de produção e exigem instrumentos do que poderia examinar modalidades de
próprios: a matriz de referência, as provas raciocínio como “relacionar”, “sequenciar”,
e a interpretação de seus resultados em “descrever” e tantas outras ações mentais
escalas de proficiência e indicadores es- envolvidas no ato de conhecer.
tatísticos. Todos esses instrumentos com- Observamos que, das avaliações
põem metodologia que permite comparar em larga escala, o termo técnico que se
resultados ao longo do tempo, por meio de tornou mais difundido não foi o termo

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 77-87, jan./jun. 2012. 81


“matriz” ou “referencial de avaliação”; mas conhecimento digno da humanida-
sim o termo “competência”. Contudo, para de na era planetária, pois um dos
muitos, escapa o fato de as matrizes serem princípios que orientam as socieda-
conjuntos de intenções e expectativas, e des contemporâneas é a imprevisi-
a competência, apenas uma das partes bilidade. As sociedades abertas não
têm os caminhos traçados para um
desse conjunto.
percurso inflexível e estável. Trata-se
É necessário que essas noções sejam
de enfrentar o acaso, a volatilidade e
debatidas com o professor e que ele tenha a imprevisibilidade, e não programas
oportunidade de acompanhar e realizar sustentados em certezas. (BRASIL,
análises de questões de provas, como parte 2010, p. 9).
de um programa de integração do professor
às políticas públicas de avaliação educa- A compreensão de que o conhe-
cional. É fundamental dissipar uma dúvida cimento é dinâmico e depende de cons-
persistente: com as competências, as provas tante estabelecimento de novas relações
abrem mão de conteúdos tradicionais, ou é evidente nas competências propostas
não? De fato, uma crítica ao ENEM em inicialmente pelo ENEM e confirmadas
suas primeiras edições argumentava que no referencial para o Novo ENEM (2009),
as avaliações por competências seriam na qualidade de eixos cognitivos, como
avessas aos conteúdos, como comentado podemos brevemente analisar, a partir do
por Vianna (2003, p. 17). A crítica ganhava texto citado de cada uma delas:
subsídios no fato de muitas questões do Competência I – Dominar lingua-
exame apresentar um texto base informa- gens – dominar a norma culta da Língua
tivo, com explicações e conceitos que o Portuguesa e fazer uso das linguagens
estudante deveria usar para encontrar a matemática, artística e científica e das
resposta. Essa crítica esteve disseminada línguas espanhola e inglesa.
entre os educadores durante muito tempo. A competência I sugere que o
Provavelmente, a confirmação das cinco egresso do ensino médio deve conhecer
competências básicas e a ampliação da as várias linguagens, o que implica saber
matriz do Novo Enem impulsionou um novo ler, reconhecer, interpretar e aplicar em al-
olhar para sua matriz e itens. guma situação-problema em que as utiliza.
Mais do que saber se o aluno co- Portanto, deve ter conhecimentos básicos
nhece fatos, conceitos e teorias, é primor- de decodificação das várias linguagens e
dial saber como ele raciocina sobre eles aplicá-los, enquanto a Língua portuguesa
e como está preparado para aprendê-los, deve estar sob domínio, já que está na
porque afinal estamos educando para o base das várias linguagens científicas, com
mundo em constante transformação: elas se mesclando frequentemente.
Há de se reconhecer [...] que o de- Competência II – Compreender
safio maior está na necessidade fenômenos – construir e aplicar conceitos
de repensar as perspectivas de um das várias áreas do conhecimento para a

82 Maria Cecília Guedes CONDEIXA. ENEM: matriz e itens para a educação escolar
compreensão de fenômenos naturais, de os valores humanos e considerando a
processos histórico-geográficos, da pro- diversidade sociocultural.
dução tecnológica e das manifestações Do mesmo modo que a competência
artísticas. anterior, a elaboração de propostas em
A ideia de que os alunos constroem questões de múltipla escolha significa
conhecimentos nas provas Enem suscita selecionar a que atende as premissas, justi-
surpresa e desconfiança, mas isso é possí- ficativas ou dados de referência oferecidos
vel pelo estilo das questões: um texto base no texto-base. A presença das “propostas
apresenta informações entre as quais o de intervenção solidária na realidade” na
aluno deve fazer correlação e com o que prova coloca parte dos seus conteúdos
já sabe para responder a uma questão. em tempo futuro, constitui mais um argu-
Enfrentar situações-problema (SP): mento sobre o papel da escola como pre-
selecionar, organizar, relacionar, interpretar paradora para um mundo em constante
dados e informações representados de transformação.
diferentes formas, para tomar decisões e Assim, as competências estipuladas
enfrentar situações-problema. na Matriz do Enem ajudam a mostrar para
A competência evidencia a posição a escola como superar os modelos tradicio-
central das situações-problema na pro- nais de ensino transmissivo de conceitos
posta do Enem: uma questão requer uma ou teorias, além da avaliação que valoriza
ou mais modalidades de raciocínio para conhecimento do estudante aplicado em
resolver um problema que é um recorte situações específicas.
da realidade, apresentado em linguagem
corrente ou outra linguagem. Análise de questões e situações-
Construir argumentação (CA): re- problema
lacionar informações, representadas em
diferentes formas, e conhecimentos disponí- Desde suas primeiras versões, o
veis em situações concretas, para construir Enem tornou visíveis os princípios organi-
argumentação consistente. zadores para o Ensino Médio, colocados
Uma competência que é requerida pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do
em questões onde os argumentos estão, Ensino Médio (BRASIL, 1998): a contextua-
ora no enunciado, ora nas alternativas em lização e a interdisciplinaridade. São prin-
exame. Construir argumentos em questões cípios fartamente discutidos nos ambiente
de múltipla escolha significa estabelecer educacionais e estão presentes em outras
vínculos entre premissas e conclusões, provas de sistema. Por exemplo, a prova
ordená-las ou explicá-las. internacional para alunos de 15 anos, o
Elaborar propostas (EP): recorrer Pisa, define contextos em nível individual,
aos conhecimentos desenvolvidos na es- local e global para cada uma das três áreas
cola para elaboração de propostas de inter- avaliadas: leitura, matemática e ciências.
venção solidária na realidade, respeitando Contextos, competências e conhecimentos

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 77-87, jan./jun. 2012. 83


são os componentes centrais das matrizes que dá ao item uma autonomia, no
(framework) do PISA. sentido de ser um bom recorte ou
Mas afinal, o que é uma situação- situação-problema? [...]. As situações-
-problema? Uma questão baseada em um -problema propõem uma tarefa para
texto ou mais de um? Um item que remete a qual o sujeito deve mobilizar seus
recursos ou esquemas e tomar deci-
a um contexto real? Como a situação-pro-
sões. (MACEDO, 2005, p. 30-31).
blema pode avaliar a capacidade do aluno
de aplicar conhecimento? Por que essa mo- Os professores, ao estudar diversas
dalidade de questão avalia conhecimentos provas e realizar seus próprios exercícios
não memoriáveis? para aplicação em sala de aula, observam
Primeiro, é preciso reconhecer que que as situações-problema podem estar
nem toda questão baseada em texto é uma apresentadas, conforme o tema, por meio
situação-problema, pois é preciso que o de foto, de trecho de artigo de jornal, de
texto forneça pistas para a resposta, e não descrição de situação do cotidiano ou de
ela mesma. Interpretar texto ou localizar uma observação do entorno que deve ser
informação no texto são habilidades impor- interpretada, de modo independente pelo
tantes, mas pode-se solicitar muitas outras aluno, ou com o apoio do professor, que
habilidades a partir de um texto base. apresenta questões pertinentes, a sua pro-
Lino de Macedo argumenta sobre blematização. Trata-se das perguntas que
a importância do raciocínio indutivo nas completam a situação-problema, reme-
boas questões contextualizadas e fornece tendo para conhecimentos que devem
atributos das situações-problema: ser objeto da aprendizagem dos alunos.
Inferência é o que possibilita a con-
Assim, tendo como ponto de partida
clusão ou tomada de decisão, em fotos, textos, gráficos ou outro estímulo,
um contexto de julgamentos, racio- a situação-problema se completa com a
cínios, interpretação de informações, pergunta formulada e suas alternativas, no
em favor de uma das alternativas caso de um item de múltipla escolha. Na
propostas. Uma boa questão, nesse prática educativa, as situações-problema
sentido, implica simultaneamente três são versáteis, podendo comparecer em
tipos de interação. Primeiro, construir diferentes momentos do desenvolvimento
ou considerar as diferentes partes de um tema, como parte da sensibiliza-
que correspondem aos elementos ção inicial, do desenvolvimento ou da
constituintes da situação-problema finalização. Pode ser útil, inclusive, para a
como um todo. Segundo, articular ou
determinação de conhecimentos prévios
coordenar cada uma das partes ou
elementos disponíveis com o próprio
do aluno, se apresentada no início do
todo. Terceiro, tomar o todo como o ensino de um tema.
que estrutura, dá sentido e, por isso, Com essas considerações, pode-se
regula toda a situação. O enunciado realizar a análise de questões de prova,
cria um contexto ou circunstância levando em conta e procurando identificar:

84 Maria Cecília Guedes CONDEIXA. ENEM: matriz e itens para a educação escolar
- A identidade das partes: o texto-base, o - Características das alternativas incor-
enunciado da questão e as alternativas. retas: os distratores possuem plausibi-
- O texto base do problema: é uni ou lidade, uniformidade quanto ao tema,
multidisciplinar? É ligado ao cotidiano? clareza de redação?
Quais linguagens estão presentes? - Nível de dificuldade (fácil, média, difícil),
- O enunciado da questão propriamente considerando: tamanho do item, expec-
dita: utiliza corretamente o texto base? tativa de maior ou menor facilidade de
Dirige o raciocínio ou pede que se conceitos, familiaridade do estudante
responda “sobre o assunto”, trazendo com textos e contextos apresentados,
então todas as alternativas para a leitura quantidade de articulações que o aluno
obrigatória, caracterizando, não uma precisa realizar para achar a resposta.
situação-problema, mas uma questão Para ilustrar essa discussão, é in-
com alternativas verdadeiras ou falsas? teressante apresentar um item de prova:
Além disso, também é preciso obser- Item do ENEM 2010, da prova CN –
var na questão: 1o dia - Caderno 2 - AMARELO - Página 18:

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 77-87, jan./jun. 2012. 85


Nessa questão, o texto base descreve H17 – Relacionar informações apre-
um experimento que permite ao partici- sentadas em diferentes formas de lingua-
pante inferir funções de microvilosidades, gem e representação usadas nas ciências
conceito trabalhado habitualmente em físicas, químicas ou biológicas, como texto
Ciências, desde o Ensino Fundamental. A discursivo, gráficos, tabelas, relações mate-
descrição engloba linguagem matemática, máticas ou linguagem simbólica.
com medidas e conceitos geométricos, ca-
racterizando a interdisciplinaridade desse Considerações finais
conhecimento. A solução da situação-pro- Diante de oportunidades de forma-
blema é fácil para o aluno que estudou ção com foco em avaliações de larga
o assunto e viável para o aluno que está escala, especialmente, o Enem, professores
pela primeira vez se deparando com ele, demonstram falta de familiaridade com
mas sabe ler e interpretar os dados. seus instrumentos. Contudo há avanços de
A questão é anunciada no segundo conhecimento e renovação pedagógica ao
parágrafo, na forma de frase incompleta, estudar e aplicar elementos pedagógicos
que se torna verdadeira com a opção B. contidos nas matrizes referenciais e pro-
As alternativas pertencem a uma mesma vas. Situações-problema são instrumentos
família temática e são todos plausíveis. A versáteis para a contextualização e a
Habilidade do Novo ENEM em foco deve interdisciplinaridade, e podem ser aplicados
ser: em vários momentos da educação escolar.

Referências

BARRETO, Elba de Sá. A avaliação na educação básica entre dois modelos. Educação e Socie-
dade, Campinas, v. 22, n. 75, p. 48-66, ago. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_issuetoc&pid=0101-733020010002&lng=pt&nrm=isso>.
BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Câmara de Educação Básica. Parecer n. 15, de
junho de 1998. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília, 1998.
______. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Câmara de Educação Básica. Parecer n. 7, de
julho de 2010. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para o Ensino Básico. Brasília, 2010.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PERQUISAS EDUCACIONAIS. INEP. ENEM – Exame nacional
do Ensino Médio: documento básico. Brasília, 2000.
HORTA NETO, João Luiz. Avaliação externa de escolas e sistemas: questões presentes no debate
sobre o tema. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 91, n. 227, p. 84-104, jan./
abr. 2010.

86 Maria Cecília Guedes CONDEIXA. ENEM: matriz e itens para a educação escolar
MACEDO, Lino de. A Situação-problema como avaliação e como aprendizagem. In: BRASIL.
Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM): fundamentação teórico-metodológica. Brasília, 2005. p.
29-36. Disponível em: <http://www.rbep.inep.gov.br/index.php/RBEP/article/viewFile/1512/1313>.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PERQUISAS EDUCACIONAIS.
INEP. ENEM - Exame nacional do Ensino Médio: Matriz de referência para o Enem 2009. Brasília,
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ORGANIZATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Assessing Scientific,
Reading and Mathematical Literacy: A Framework for PISA 2006. OECD Publishing. Paris, 2006.
______. PISA 2006 Science Competencies for Tomorrow´s World. OECD, 2007. (v. 1: Analysis).
VIANNA, Heraldo M. Avaliações Nacionais em larga escala: análises e propostas. Estudos em
Avaliação Educacional, n. 27, jan./jun. 2003. Disponível em: <http://www.fcc.org.br/pesquisa/
publicacoes/eae/arquivos/1057/1057.pdf>.

Recebido em junho de 2011


Aprovado para publicação em agosto de 2011

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 77-87, jan./jun. 2012. 87


Artigos
Concepções tecnológicas e educação: modelagem,
complexidade, auto-organização e descentralização
Technological concepts and education: modeling,
complexity, self-organization and decentralization
Renato Kraide Soffner
Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da
UNICAMP. Docente e pesquisador do Programa de Pós-
Graduação – Mestrado em Educação, Centro Universitário
Salesiano de São Paulo (UNISAL), Americana, SP, Brasil.
E-mail: renato.soffner@am.unisal.br

Resumo
O papel da tecnologia nos processos educativos é aqui discutido, tanto do ponto de vista de uma crítica à
sua utilização de baixo desempenho pedagógico, bem como pela proposta de novas visões paradigmáticas
em educação que sua eficaz aplicação pode proporcionar. Isto é fruto das tendências e descobertas que
as fronteiras científicas da complexidade, da auto-organização e da descentralização nos apresentam,
e que já se encontram disponíveis em nosso arsenal de planejamento pedagógico e educacional, no
formato de processos, técnicas e ferramentas. Considera-se a necessidade de seu envolvimento nas prá-
ticas educativas, do ponto de vista de uma análise crítica da eficácia em sua utilização. Apresentam-se
subsídios que permitam uma real e eficiente utilização da tecnologia na educação, norteada por visões
e recursos modernos e inovadores, como forma de crítica às práticas conservadoras que ainda assolam
a área. Busca-se, ainda, contextualizar o problema por meio de uma revisão de literatura, a partir da qual
se procederá à apresentação de ideias provocadoras dentro do tema.
Palavras-chave
Tecnologia. Educação. Complexidade.

Abstract
The role of technology in educational processes is discussed here, both from the point of view of a criti-
cism of its use with a low educational performance, as well as by the proposed new paradigmatic visions
in education that its effective implementation can provide. This is the result of trends and discoveries
that complexity, self-organization and decentralisation provide nowadays, and that we already have in
our arsenal of educational and pedagogical planning. It is considered the need for their involvement in
educational practices, from the point of view of a critical analysis of effectiveness in its use. Subsidies are
presented that allow a real and efficient use of technology in education, guided by modern and innovative
visions and features, as a form of criticism on conservative practices that still plague the education. The
context of the problem is contextualized through a review of literature, from which the presentation of
innovative ideas within the theme is presented.
Key words
Technology. Education. Complexity.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 91-100, jan./jul. 2012
Introdução A tecnologia e sua aplicação à edu-
cação tem sido motivo de muita polêmica
Sêneca já considerava, séculos atrás, nas últimas décadas, dados os fechamen-
que deveríamos estudar para a vida, e não tos inconclusivos que a pesquisa no tema
para a escola1. Trata-se de crítica antiga, gerou. Desde cedo se percebeu a dificul-
mas que pode ser facilmente reproduzida dade grande que é medir indicadores de
na atualidade, dado o modelo assumido desempenho advindos do emprego de tec-
pela educação formal tradicional, em que nologia nos processos educativos, já que
se valoriza essencialmente os meios, e não a falta de homogeneidade nos níveis de
os fins. Do ponto de vista trabalhado neste avaliação e o grande número de propostas
artigo, tecnologia não é um fim em si, como de metodologia tornaram a sonhada pos-
equivocadamente parecem crer os tecno- sibilidade de uma padronização irreal. A
cratas, mas um meio para se ampliar as discussão chega a ser tão estéril e inócua,
capacidades humanas. Precisamos, também, que chamamos de “bom senso pragmático”
e antes de qualquer análise, definir o que inferir qualquer conclusão sobre o retorno
seja tecnologia. De acordo com Litwin (1997), pedagógico real do emprego de recursos
técnica e tecnologia têm etimologia idêntica tecnológicos na educação. Para Papert
– do verbo grego tictein (criar, produzir, con- (1980), no que tange o tema da aplicação
ceber, dar à luz). A técnica, para os gregos, de tecnologia à educação, vestimos “roupa
tinha significado não apenas de meio ou nova em coisa velha”. As possibilidades
ferramenta, mas incluía a ideia e o sujeito de uso da tecnologia com preocupações
que usava o instrumento. Visão certamente pedagógicas e epistemológicas seriam
diferente da atual. Sancho (1998) apresenta devidas, basicamente, aos problemas do
a definição de techné grega como sendo oferecimento de aulas tradicionais; com-
arte ou destreza, enquanto que o logos diz putadores e tecnologia, que deveriam ser
respeito à palavra; tecnologia é, portanto, instrumentos de mudança e inovação
o sentido e a finalidade das artes. Para os na estrutura tradicional de educação,
gregos, a técnica tinha relação direta com a tornam-se um fim em si mesmos2.
arte, e um conceito bem prático e aplicado Isso nos preocupa em demasia, quan-
de saber fazer, de realização concreta. Final- do percebemos que muito investimento
mente, outra definição clássica nos diz que a já foi feito no assunto, em termos de
tecnologia é tudo o que amplia os sentidos
humanos, inclusive no seu papel dentro dos
processos de aprendizagem, já que amplia 2
Esta discussão do papel da tecnologia na mu-
nossos sentidos e nossa visão de mundo dança do papel da escola pode ser encontrada nas
(SOFFNER, 2005). obras de Seymour Papert: Mindstorms – children,
computers and powerful ideas (1980); The children's
machine – rethinking school in the age of the
1
Non scholae sed vitae discimus – cf. Epistulae computer (1993); The connected family – bridging
Morales, 106, 11-12. the digital generation gap (1996).

92 Renato Kraide SOFFNER. Concepções tecnológicas e educação: modelagem, complexidade,...


computadores, redes e infraestrutura de e outros autores de visão complexa e trans-
uso de recursos computacionais, além disciplinar da educação. A possibilidade de
das enormes verbas já empregadas em uma matriz epistêmica inovadora, com o
software. Autores de trabalhos extensivos reconhecimento interdisciplinar da comple-
no tema, como Haertel e Means (2003), já xidade do real, ou seja, um recursivo novo
haviam demonstrado a dificuldade ine- conhecimento do conhecimento. Ainda,
rente à padronização de procedimentos “[...] novas concepções sobre a natureza do
de avaliação do emprego de tecnologia conhecer, sobre o universo, sobre a vida,
na educação. Para esses autores, ampla trazem a consciência da necessidade de
disponibilidade e acesso à tecnologia, novas ideias e práticas pedagógicas, novos
característica do mundo atual, não trazem modos de ensinar, novas metodologias,
necessariamente melhoria nos processos novos diálogos educativos” (ANTONIO,
de uso e manipulação de tanta informação, 2009, p. 38).
como também afirma Almeida (2006). Este O positivismo-determinista científico
autor questiona, inclusive, o novo papel do que marcou o século XIX verá aparecer,
“estudar”, já que até conceitos seculares de já no início do século XX, as teorias da
nossa tradição pedagógica estão sendo complexidade, da auto-organização, do
reavaliados, entre eles o papel do professor caos e da emergência, com visões essen-
e do aluno dentro dos processos de ensi- cialmente transdisciplinares das questões
no e aprendizagem. Se antes estudar era não só educacionais, mas científicas
memorizar informação e estar pronto para no geral. Momento de ruptura, surgirão
recuperá-la quando necessário, hoje a dis- questionamentos paradigmáticos a partir
ponibilidade excessiva de informação torna da incerteza de Heisenberg, da crítica ao
este modelo, no mínimo, questionável. Ao absolutismo matemático e lógico proposta
que parece, e esta é a nossa proposição, por Gödel (HOFSTADTER, 1989). Temos,
estudar hoje é ser capaz de estabelecer portanto, a oportunidade única de propor
relações entre assuntos e problemas, re- novas visões para a educação, baseadas
correndo a ferramentas que a moderna nos paradigmas da complexidade, da
tecnologia nos fornece, e em busca de auto-organização e da complexidade. Para
real aplicação para os resultados, qual Lévy (2005), buscaremos a construção de
seja, uma visão pragmática do assunto. novos espaços do conhecimento, pela
Estabelecer estratégias para a vida, a partir substituição de representações pedagógi-
da religação de saberes já dominados, e cas de escalas lineares e paralelas, para
dentro de uma visão complexa (MORIN, saberes superiores, baseados em espaços
1995). de conhecimentos virtuais, abertos, e não
Nesta linha de novas visões, Antonio lineares, que habilitam processos educa-
(2009) apresenta uma nova escuta para a tivos inovadores, nossa proposta neste
educação e para o conhecimento do ponto trabalho. Modelos hierárquicos e lineares
de vista dos trabalhos de Prigogine, Morin – mecanicistas – baseados em causa e

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 91-100, jan./jun. 2012. 93


efeito, sempre reducionistas (pois analisam entre as ações efetivadas e os resultados
as partes), podem ser substituídos por um esperados no futuro (quebrando a relação
modelo orgânico e biológico, baseado no de causalidade que caracteriza o mundo
ponto de vista da auto-organização, emer- newtoniano).
gência e complexidade, da ligação entre A visão da Ciência da Complexidade
as partes, no qual a realidade é um todo. seria uma das propostas de tratamento
de tais problemas modernos: seriam
Complexidade propriedades fundamentais de redes de
retroalimentação não-linear, em particular
A complexidade tenta explicar o das redes adaptativas complexas, pela
complexo de uma forma simples. O nosso definição de Stacey (1996). Espera-se
momento histórico gera perplexidade: nun- que auto-organização espontânea possa
ca o meio em que vivemos nos apresentou ocorrer, a fim de produzir resultados emer-
tanta mudança, e num ritmo tão acelerado. gentes. Estes são, como visto, imprevisíveis,
Muitos já disseram que a única certeza é a mas passíveis de ordem e padrões muitas
incerteza que a mudança traz, como alerta vezes surpreendentes. É este o interesse
Stacey (1996). Assim, são inevitáveis os pedagógico do tema, que traz associados
questionamentos sobre o papel da ciência à curiosidade e à descoberta.
e da tecnologia na concepção de fronteiras Sistemas complexos caracterizam-se
temporais e espaciais. O que pode a nossa por mostrar comportamento global a partir
secular experiência científica apresentar de unidades dotadas de regras simples. Ou
neste momento de incertezas? E como tudo seja, agentes simples e instruídos de forma
isso pode afetar os processos educativos do simples podem gerar sistemas maiores de
ponto de vista da práxis educativa? comportamento caótico. O caos pode ser
Modelos clássicos não mais nos am- definido, do ponto de vista científico e de
param, nem mesmo a ciência tradicional, acordo com Stewart (1991), como o com-
antes sólida e garantia de bases estáveis. portamento estocástico que ocorre num
Mesmo as nossas discussões sobre o sistema determinístico. É uma visão oposta
conhecimento e a informação confirmam ao universo newtoniano (do relógio preciso
características intangíveis. e previsível), e das bases matemáticas e fí-
Os problemas mais significantes sicas supostamente previsíveis, de Laplace.
com os quais nos deparamos não podem Estocástico quer dizer aleatório, irregular,
ser resolvidos pelo mesmo nível de pensa- governado pelo acaso.
mento que os criou. Ou seja, precisamos de Estejamos atentos, de qualquer for-
ferramentas cognitivas superiores a fim de ma, ao alerta crítico de Behe (1997), que
identificarmos soluções para os problemas discute o relacionamento da complexidade
avançados ou complexos. Sistemas que e da auto-organização com a realidade
resolvem tais situações são, em geral, im- biológica, uma das bases científicas da
previsíveis, com uma profunda separação educação. O autor critica a falta de relação

94 Renato Kraide SOFFNER. Concepções tecnológicas e educação: modelagem, complexidade,...


que as simulações da vida artificial têm autônomas e sob estreita interação, cha-
com a bioquímica, já que, segundo o madas de agentes. O comportamento des-
autor, estas ficam apenas na dimensão do tes agentes é decorrente de regras internas
computador. Questiona também a relação estabelecidas para cada um. Estas regras
que, por exemplo, uma concha criada podem variar desde estruturas de decisão
por um computador tem com a fisiologia padrão de programação, tipo if-then, até
celular real. algoritmos de aprendizagem como redes
Existe, portanto, a necessidade de se neurais ou mesmo redes bayesianas. A
desenvolverem critérios e regras de decisão simulação baseada na modelagem desses
para se trabalhar com a complexidade, e agentes é executada, então, num determi-
de se buscarem meios pouco óbvios e nado número de iterações. Ao final da
indiretos de se atingir objetivos educativos. execução, sua dinâmica interna e output
externo dão aos usuários uma boa ideia
O conceito de agentes e sua aplicação de como o sistema do mundo real se
às práticas educativas comportaria sob tais condições.
Essas simulações são poderosas
Simulação baseada em agentes ferramentas estratégicas para análises
múltiplos, de acordo com Colella, Klopfer de cenário do tipo what-if. Enquanto os
e Resnick (2001), não busca uma modela- usuários das simulações alteram as re-
gem perfeita do mundo real, ou do sistema gras dos agentes, o impacto da mudança
em estudo, mas de seu comportamento pode ser facilmente observado. E mais, o
global gerado por iniciativas determinís- computador pode gerar estratégias que o
ticas de seus agentes. Trata-se de pensar usuário poderia nunca levar em conside-
a descentralização, e não reproduzir a ração nas suas análises. Ou seja, modelar
realidade de forma perfeita. O objetivo é o o mundo real de forma muito interessante
de forçar o usuário da simulação a pensar e só possível pela tecnologia e poder de
como o sistema real, e não entender como processamento hoje disponíveis.
pensa o sistema real. O emprego de modelagem de sis-
Busca-se explorar micromundos, e temas, e posterior simulação através de
não simular a realidade. Isto está de acordo software adequado, gera um melhor en-
com as críticas de Behe, vistas acima. Os tendimento e acessibilidade pelos apren-
micromundos são criados para se trabalhar dentes. A simbologia abstrata do cálculo é
conceitos e formas de pensar. Algo funda- substituída pelo emprego de computado-
mentalmente epistemológico. res, que hoje são de aceitação ampla por
Stagg (s/d) faz uma esclarecedora qualquer faixa de idade de interessados
discussão sobre simulações por agentes. em seus recursos.
De acordo com a autora, num modelo Como diz Hofstadter (1989), compu-
baseado em agentes um sistema é repre- tadores fazem apenas o que as pessoas
sentado como uma coleção de entidades pedem que eles façam, mas ninguém sabe,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 91-100, jan./jun. 2012. 95


com antecedência, as consequências do tralizado, já que tem tudo a ver com a
processamento, que pode muitas vezes ter proposta de emprego de tecnologia nos
resultados imprevisíveis e surpreendentes processos educativos aqui estudados. A
(como no caso das simulações maciça- própria educação prevê a existência de um
mente paralelas por agentes múltiplos). ente centralizador, na figura do professor,
que teoricamente “ensina”, enquanto os de-
Aprendendo sobre o mundo com a mais componentes do sistema (os alunos),
modelagem e a simulação dominados pelo agente detentor do contro-
le, “aprendem”. Soffner (2005) apresentou
Existe um ditado em língua inglesa,
uma alternativa a essa visão distorcida
citado por Resnick (1997), que pode ser
do processo de ensino e aprendizagem,
traduzido como: “– Dê a uma pessoa um
com base num modelo de tecnologias de
martelo, e o mundo todo parecerá um
desenvolvimento de potencial humano.
prego”. Parece dizer que a forma pela
A tecnologia pode modelar, e simu-
qual enxergamos o mundo é diretamente
lar, e nos auxiliar na passagem de modelos
influenciada pelas ferramentas – e meios
– de que dispomos, em determinado mentais centralizados para visões descen-
momento histórico. Se dermos apenas tralizadas do mundo, úteis na educação,
lápis e papel a um cientista, como suas com base em apreciações inovadoras
ferramentas de trabalho, isto o levará a providas pelo emprego de tais ferramentas
ver o mundo no formato de equações e métodos. Para Soffner (2007), tal tarefa
diferenciais. Conclusão direta desse fato é deverá “adotar alguns princípios centrais,
que se tivermos novas ferramentas e meios característicos da modelagem descentrali-
de trabalho, poderemos apreciar o mundo zada: encorajar a construção de modelos
sob uma nova ótica (SOFFNER, 2007). (e não apenas a manipulação dos modelos
Noções arraigadas de poder central já existentes); repensar o que foi aprendido
e de mindset (visões de mundo, modelos (e não apenas como é aprendido); estudar
mentais) centralizado, características de as possibilidades de conexão pessoal entre
todos nós, foram mostradas por Resnick assuntos (e não apenas as abstrações
(1997), e podemos inferir sua relação matemáticas); e, finalmente, focar na es-
com a educação e o desenvolvimento do timulação, e não apenas na simulação”.
nosso senso comum. Somos criados para Tal iniciativa, a de permitir aos apren-
achar necessário um controle centralizador dentes uma nova forma de aquisição
para tudo: governos, formações de pás- de conhecimento, através da construção
saros, congestionamentos de veículos, e de artefatos, foi citada por Papert (1980)
formigueiros. Interessa-nos, sobremaneira, como sendo de intensa influência em sua
discutir os efeitos epistemológicos de tal própria formação, quando componentes
pensamento centralizado, bem como a mecânicos e engrenagens moldaram seu
visão alternativa de um mindset descen- interesse no entendimento de fenômenos

96 Renato Kraide SOFFNER. Concepções tecnológicas e educação: modelagem, complexidade,...


físicos e matemáticos. Em suas palavras, derá ser útil nessa etapa do processo, pois
I believe that working with differen- não busca uma modelagem perfeita do
tials did more for my mathematical mundo real, ou do sistema em estudo, mas
development than anything I was de seu comportamento global gerado por
taught in elementary school. Gears, iniciativas determinísticas de seus agentes.
serving as models, carried many oth- Trata-se de pensar a descentralização, e
erwise abstract ideas into my head. não reproduzir a realidade de forma per-
(PAPERT, 1980). feita. O objetivo é o de forçar o usuário da
Para Papert, a tecnologia pode gerar simulação a pensar como o sistema real, e
inúmeras formas de representação, dada não entender como pensa o sistema real.
sua essência universal e poder de simula- O emprego de modelagem de sistemas e
ção. Tal modelo epistemológico acrescenta posterior simulação através de software
a ideia de que o aprendente está inserido adequado gera um melhor entendimento
num contexto de engajamento consciente e acessibilidade pelos aprendentes.
na construção de uma entidade pública
(HAREL; PAPERT, 1991), desenvolvendo Novas visões da Ciência
ferramentas que modelem sua natureza e
a possa simular, obtendo-se entendimento Stephen Wolfram (2002) gerou am-
sobre a tecnologia e prevendo comporta- pla polêmica no dia em que declarou, ao
mentos do sistema. Para Soffner (2007), tais lançar seu livro A New Kind of Science, ter
ferramentas supõem que o aprendente este- descoberto uma nova forma de se fazer e
ja no controle da máquina. Ele programa o entender a ciência que, segundo ele, iria
computador e, dessa forma, embarca numa revolucionar a nossa visão de mundo.
exploração sobre como ele próprio pensa, já A partir de seu trabalho prévio com
que as rotinas, algoritmos e recursões são simulações e modelagens de agentes
fruto de sua própria forma de enxergar e computacionais, Wolfram afirmou que a
atacar os problemas a serem modelados. De natureza utiliza regras muito simples e
acordo com Papert, esta experiência pode de formato matemático e computacional
ser fantástica: pensar sobre o pensar faz do para criar suas entidades vivas, e mesmo
aprendente um epistemólogo. fenômenos difíceis de se modelar pela
Essa atividade de modelar e pen- visão determinística do mundo.
sar as visões de mundo, que podemos O interesse para este trabalho da
chamar de micromundos, exigirá que nova proposta de Wolfram é a possibilidade
os modelos mentais centralizados dos de se utilizar computação e computadores
aprendentes passem a descentralizados, na modelagem e explicação do surgimento
gerando formas alternativas de conheci- de componentes naturais, como fractais,
mento, do ponto de vista epistemológico. colônias de seres vivos, árvores e galáxias,
Simulação baseada em agentes múltiplos em emprego puramente educacional. É
(cf. COLELLA; KLOPFER; RESNICK, 2001) po- possível para as crianças, por exemplo,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 91-100, jan./jun. 2012. 97


entender como estas unidades naturais se basear nos processos de exploração e
são criadas, e que leis regem o seu apare- descoberta, motivados pela curiosidade
cimento; desnecessário enfatizar a impor- (ASSMANN, 1998), já que a competência
tância epistemológica dessa possibilidade de análise crítica do que se lê ou ouve, e
de descoberta, nos moldes apregoados mais, de inferência a partir do que se re-
anteriormente por Papert e colaboradores. cebe, é fundamental para o indivíduo que
Ao invés de aplicarmos nosso ins- se aventura a viver nestes dias difíceis e
trucionismo secular de passagem de infor- exigentes do século XXI.
mação para o aprendente sobre o assunto Este trabalho tentou mostrar que as
em estudo, deixamos a seu cargo descobrir tecnologias da informática e da computa-
como a própria natureza cria seus elemen- ção hoje disponíveis podem fornecer o con-
tos. Isto tem relevância pedagógica, já que texto e as ferramentas para que conceitos
provoca um entendimento sem precedentes complexos possam ser trabalhados pelos
inserido num contexto de descoberta. Ao alunos, de forma a desenvolver as compe-
invés de mostrar uma árvore e suas carac- tências exigidas pela sociedade moderna,
terísticas aos aprendentes, podemos deixar apresentando uma nova visão para educa-
que eles próprios criem suas árvores. A re- ção formal. A modelagem e simulação de
lação do criador com a criatura é bem mais sistemas, dentro dos conceitos de complexi-
motivadora do que a simples assimilação dade, auto-organização e descentralização,
de informação, tradição de nossa educação oferecem aos aprendentes os instrumentos
tradicional e secular. necessários para um novo entendimento
dos fenômenos naturais, e mesmo sociais,
Considerações finais levando a novas concepções de mundo
de extremo valor para a prática educativa.
Como tentativa de conclusão, o Podemos desenvolver modelos
que devemos buscar hoje, em educação, pedagógicos bastante avançados e inova-
é ensinar a pensar e a desenvolver a dores através do emprego de padrões, rela-
capacidade criativa. A mera transferência cionamentos, agentes, simulações, ideias,
de informação, a partir do professor, está insights, conhecimento e inteligência. Ou
ultrapassada, embora ainda domine nos seja, se considerarmos um grupo especí-
meios escolares formais. Como reconheceu fico de competências de ampla aplicação
Perrenoud (1999), o formar para as novas em educação, estaremos criando reais
tecnologias é formar o julgamento, o senso condições de estabelecimento do modelo
crítico, o pensamento hipotético-dedutivo, avançado de educação baseada nos con-
as faculdades de observação e pesquisa, ceitos da complexidade.
portanto as competências que a educação Em face do discutido neste trabalho,
moderna deveria prover, fincadas naquelas há que se repensar paradigmas pedagógi-
lógicas, epistemológicas e didáticas. As ati- cos, através da revisão da base histórica da
vidades pedagógicas modernas deveriam tecnologia, e apresentar, como decorrência

98 Renato Kraide SOFFNER. Concepções tecnológicas e educação: modelagem, complexidade,...


de todos esses indicadores passados, uma aulas cada vez mais bem ilustradas, como
nova visão da utilização da tecnologia na erroneamente alguns interpretam. É uma
educação. pobre comparação entre o potencial de de-
A tecnologia aplicada à educação senvolvimento de competências, oferecido
deve ser a criação, gestão e regulação de pela tecnologia, e os recursos didáticos ba-
situações de aprendizagem, e não apenas seados em novas tecnologias eletrônicas.

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Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 91-100, jan./jun. 2012. 99


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WOLFRAM, S. A new kind of science. Champaign: Wolfram Media, 2002.

Recebido em março de 2012


Aprovado para publicação em abril de 2012

100 Renato Kraide SOFFNER. Concepções tecnológicas e educação: modelagem, complexidade,...


Respiração oral: um fator que pode prejudicar a
aprendizagem da matemática
Mouth breathing: a factor that may disturb the
learning of mathematics
Olinda Teruko Kajihara*
Cintia Megumi Nishimura**
* Dra. em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano
pela Universidade de São Paulo. Profa. do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual
de Maringá. E-mail: olindakajihara@hotmail.com
** Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Ma-
ringá. Fonoaudióloga clínica. E-mail:cnishimura@bol.com.br

Resumo
Este estudo teve como objetivo especificar as razões de chances (odds ratio) de os alunos respiradores
orais apresentarem maiores dificuldades na matemática que os respiradores nasais. Foram avaliados 30
respiradores orais e 33 respiradores nasais de 3ª e 4ª séries do Ensino Fundamental. Tarefas de resolução
de operações e de problemas dos campos aditivo e multiplicativo foram aplicadas. As chances de um aluno
apresentar baixo desempenho na resolução de problemas e de operações são oito e quatro vezes maiores
se ele for respirador oral do que respirador nasal. Na resolução de operações, verificou-se que as chances
de um aluno cometer erros de atenção, no algoritmo e, ainda, de atenção e no algoritmo são 4, 4 e 18 vezes
maiores se ele for respirador oral do que respirador nasal. Na resolução de problemas, as chances de o
respirador oral apresentar erros de atenção e de interpretação são 10 e 9 vezes maiores que as do respirador
nasal. Portanto, a respiração oral é um fator que favorece a ocorrência de dificuldades de matemática.
Palavras-chave
Respiração oral. Dificuldades de matemática. Dificuldades de atenção.

Abstract
Odds ratio with regard to greater difficulties in mathematics for mouth-breathing students than for nasal-
breathing ones is investigated. Thirty mouth-breathing students and 33 nasal-breathing from the 3rd and 4th
stages of the Primary School were evaluated. Solution tasks in operations and problems of Additive and Mul-
tiplicative Fields were applied. Chances that students will have a low performance in the solution of problems
and operations are eight and four times higher in the case of mouth-breathing students than in nasal-breathing
ones. It has also been confirmed that the chances students make attention mistakes, algorithm mistakes and
attention and algorithm mistakes are four, four and eighteen times higher in the case of mouth-breathing stu-
dents than nasal-breathing ones. Chances in problem solutions that mouth-breathing students have attention
mistakes and interpretation mistakes are ten and nine times higher with regard to nasal-breathing students.
Thus, the mouth respiration is a factor that favors the occurrence of mathematical difficulties.
Key words
Mouth breathing. Mathematical difficulties. Attention difficulties.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 101-118, jan./jul. 2012
Introdução série de alterações no organismo infantil
(CARVALHO, 2003; DIFRANCESCO, 2003).
A aprendizagem escolar é influen- Na infância, a hipertrofia das ton-
ciada por fatores intraescolares, entre eles silas faríngeas (“adenoides”), a hipertrofia
os currículos e programas, as práticas pe- das tonsilas palatinas (“amídalas”), a rinite
dagógicas, a organização da escola e os alérgica e o desvio de septo são causas
recursos humanos, materiais e financeiros. frequentes de obstrução das vias aéreas
Os contextos socioeconômico e cultural, superiores (MOCELLIN; CIUFFI, 1997).
assim como problemas cognitivos, emocio- Entretanto, poucas crianças reclamam de
nais e orgânicos também podem prejudicar obstrução nasal ou admitem ter dificuldade
o desempenho da criança. em respirar pelo nariz. Muitos pais tam-
Entre os fatores que interferem na bém não valorizam esse sintoma em seus
aprendizagem escolar, os orgânicos têm filhos, assim como consideram normais os
sido pouco estudados pelos pesquisadores problemas decorrentes de obstrução nasal:
da área da Educação no Brasil. Cerca de respiração oral, voz nasalada e ronco no-
140 anos após George Catlin (1870) ter turno (PARADISE et al., 1998).
feito o primeiro registro das consequên- A hipertrofia das tonsilas palatinas,
cias da respiração oral no livro Shut your ou seja, o aumento do tecido linfoide das
mouth and save your life (Feche sua boca amídalas leva a criança a apresentar respi-
e salve sua vida), a maioria dos educadores ração difícil e ruidosa, voz “abafada”, tosse,
ainda desconhece o assunto. Esse pintor dificuldade de deglutir alimentos sólidos,
americano, que viveu durante muitos anos inapetência, palidez, desânimo e perda de
com tribos americanas, constatou que os peso (CARVALHO, 2003; SÁ FILHO, 1994).
indígenas conheciam a importância da O desvio de septo geralmente é provocado
respiração nasal e que as mães cuidavam por luxação perinatal ou por acidente na
para que seus bebês dormissem com os lá- infância, e acarreta ronco, cefaleia, hipos-
bios bem selados. Catlin (1870) alertou que mia (diminuição do olfato), rinolalia (voz
a respiração oral fazia a pessoa acordar “abafada” ou “fanhosa”) e diminuição da
fadigada e sonolenta e, por isso, dormir de acuidade auditiva (TSUJI; CHUNG, 2003).
boca fechada era condição indispensável O aumento fisiológico do tecido
para se ter um sono tranquilo e reparador. linfoide ocorre entre o nascimento e os 12
Essas observações continuam atuais, anos de idade, em resposta à estimulação
pois estudos feitos por médicos e ortodon- imunológica (MARCUS, 2001). Em crian-
tistas têm demonstrado que a respiração ças com cerca de seis meses de idade,
oral é prejudicial ao organismo. O fator que a hipertrofia das tonsilas faríngeas é a
obriga a criança a mudar o padrão respira- causa mais comum de obstrução das vias
tório normal é uma obstrução nasal. Essa aéreas superiores (PRESCOTT, 1995). Além
mudança não pode ser considerada uma de congestão nasal, essa doença provoca
adaptação fisiológica, pois promove uma respiração oral e voz nasalada (PARADISE

102 Olinda T. KAJIHARA; Cintia M. NISHIMURA. Respiração oral: um fator que pode prejudicar...
et al., 1998). As crianças e os adolescentes pós-nasal e de irritação da laringe (LACK,
com hipertrofia das adenoides costumam 2001).
apresentar, também, fadiga diurna, ronco, O diagnóstico diferencial da rinite
sono intranquilo, transpiração noturna, alérgica não é simples, visto que várias
despertares frequentes, postura anormal doenças podem provocar esses sintomas.
da cabeça e baixo crescimento físico A rinite alérgica e a sinusite, por exemplo,
(RAHBAR, 2004). causam gotejamento pós-nasal que re-
A rinite alérgica é uma inflamação sulta em tosse, principalmente à noite. Os
da mucosa nasal provocada pela exposi- sintomas da sinusite crônica nas crianças
ção aos agentes alérgenos (VINUELA, diferem dos observados em adultos, pois
2003). Ela é uma das doenças crônicas as primeiras raramente têm sinais agudos
mais frequentes em pessoas com menos de febre, cefaleia e rinorreia purulenta. Por
de 18 anos (CRAIG et al., 1998; SKONER, outro lado, crianças apresentam frequente-
2001) e afeta cerca de 15 milhões de mente tosse crônica, infecção recorrente do
americanos, sendo a maioria crianças trato respiratório superior, falta de apetite
(LAMPASSO; LAMPASSO, 2004). A rinite (com diminuição do ganho de peso), letar-
alérgica é uma condição relativamente gia, halitose, vômito e infecção recorrente
fácil de ser reconhecida nos adultos, pois de ouvido (LACK, 2001).
tem como sintomas clássicos a obstrução A criança com rinite alérgica não
nasal, o prurido nasal, a rinorreia (coriza) costuma assoar com frequência o nariz
e os espirros em salva (CRAIG et al., 1998; e, por isso, funga, respira com dificuldade
LACK, 2001; SKONER, 2001). A obstrução e limpa repetidamente a garganta. Ela
nasal provocada pela rinite alérgica pode apresenta prurido nos olhos, na garganta
ser bilateral, unilateral ou alternada, e e nos ouvidos, vermelhidão nos olhos
provoca ronco, por ser mais pronunciada e prejuízo na gustação. O prurido nasal
à noite (SKONER, 2001). leva o alérgico a fazer caretas e a tocar
Na infância, o quadro clínico da repetidamente o nariz, o que provoca
rinite alérgica é variado, pois depende da epistaxe (sangramento). A “saudação do
duração da doença, da idade e da extensão alérgico” é um sintoma muito comum: com
das comorbidades. Os sintomas da rinite a palma da mão, a pessoa esfrega o nariz
pediátrica são: obstrução nasal, tosse, espir- para cima, o que produz uma prega nasal
ros, prurido nasal, infecções recorrentes da horizontal no terço inferior dessa estrutura.
garganta, halitose, angústia respiratória e As congestões nasal e venosa provocam
voz nasalada. Nos casos de rinite alérgica edema nos olhos e “olheiras alérgicas”,
crônica, a criança também apresenta fadi- que tornam a região infraorbital azulada
ga diurna, diminuição do apetite e baixo (SKONER, 2001).
crescimento físico. Um dos sintomas mais A rinite alérgica tem um forte im-
importantes da rinite alérgica na infância é pacto na qualidade de vida, pois a con-
a tosse crônica, decorrente de gotejamento gestão nasal impede a criança de dormir

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 101-118, jan./jun. 2012. 103


bem e, por isso, causa sonolência, fadiga superior e inferior, da língua e do músculo
e dificuldade de atenção durante o dia bucinador tornam difícil a ingestão de
(CRAIG et al., 1998; LACK, 2001). A queixa alimentos sólidos e provocam problemas
de problemas de concentração entre os de alimentação. O respirador oral prefere
adolescentes com rinite alérgica é frequen- comidas pastosas e necessita de líquido
te, principalmente em relação às tarefas durante as refeições; realiza movimentos
escolares (LACK, 2001). com a cabeça durante a deglutição e
A respiração nasal possibilita o sente-se sufocado por ter de respirar e
aquecimento, a purificação e a umidifi- comer pela via oral (VALERA et al., 2003). A
cação do ar inspirado. A obstrução nasal obstrução nasal pode comprometer o olfato
obriga a criança a inspirar pela boca o ar e o paladar. A dificuldade em discriminar
atmosférico, que passa a chegar “frio” e odores e em sentir o sabor dos alimentos
“sujo” aos pulmões. Isso reduz a troca de torna a alimentação desprazerosa (ROCHA;
gases e torna a criança mais susceptível PINTO; SILVA, 2003).
às infecções repetitivas do aparelho respi- Outra consequência da mudança do
ratório (ARAGÃO, 1988). modo respiratório é o problema de postura.
A respiração oral leva ao rebaixa- A retroposição da mandíbula obriga a crian-
mento da mandíbula e ao afastamento ça a anteriorizar a cabeça para aumentar o
dos lábios, por isso a língua posiciona-se espaço oronasofaríngeo. A modificação de
no assoalho da cavidade oral e deixa postura provoca outras alterações corporais,
de oferecer suporte ao palato; os mús- pois a inclinação da cabeça desequilibra
culos elevadores da mandíbula podem o corpo e obriga os músculos ligados ao
atrofiar-se por causa de pouco uso. Essas pescoço e ao dorso a se ajustarem à nova
alterações levam o respirador oral a apre- posição (CARVALHO, 2003). A mudança de
sentar: face alongada, mordida aberta postura prejudica a expansão pulmonar,
anterior, palato ogival, expressão facial o que leva a criança a respirar de forma
boquiaberta, gengiva anterior inflamada, rápida e curta (MACIEL, 2005).
plano mandibular exagerado, má oclusão Uma criança passa quase metade
dentária e sensação de aflição quando os de sua vida adormecida. Um recém-nas-
lábios são selados (RUBIN, 1979). cido dorme cerca de 16 horas por dia. Por-
A boca constantemente entreaberta tanto os transtornos do sono relacionados
faz com que a criança apresente sialor- à respiração merecem atenção especial
reia (salivação excessiva) e expõe os seus durante a infância (MARCUS, 2001). A
dentes e gengivas à ação de bactérias, o hipertrofia das tonsilas faríngeas pode
que favorece a ocorrência de cáries, de causar apneia obstrutiva do sono, pois,
gengivites e de halitose (MENDES; BARBO- para manter o fluxo aéreo adequado no
SA; NICOLOSI, 2005). A falta de selamento lúmen diminuído pelo crescimento das
labial, o posicionamento da língua no adenoides, a criança precisa aumentar o
assoalho da boca, a hipotonia dos lábios esforço respiratório. Entretanto a pressão

104 Olinda T. KAJIHARA; Cintia M. NISHIMURA. Respiração oral: um fator que pode prejudicar...
negativa existente no lúmen durante a paradas respiratórias e pelos despertares
inspiração é aumentada pela obstrução da frequentes (OWENS et al., 1998).
passagem do ar (RAHBAR, 2004). Isso faz De forma geral, os transtornos do
com que o tecido mole ao redor do espaço sono relacionados à respiração tornam a
orofaríngeo feche a via aérea e impeça o criança menos reflexiva, mais impulsiva e
fluxo do ar (PRESCOTT, 1995). com déficits de atenção sustentada e de
Portanto a obstrução parcial e atenção seletiva. Blunden, Lushington e
prolongada e/ou obstrução completa e Kennedy (2001) avaliaram a atenção, a
intermitente das vias aéreas superiores per- memória e a inteligência de crianças de
turbam a ventilação normal e os padrões 5 a 10 anos que roncavam, e verificaram
normais do sono, ou seja, provocam a que o déficit primário nos distúrbios respi-
apneia obstrutiva do sono (AMERICAN ratórios do sono é o prejuízo da atenção, o
THORACIC SOCIETY, 1996). Estima-se que o qual compromete a aprendizagem escolar.
ronco habitual ocorra em mais de 10% das Nos casos mais leves de transtornos
crianças com até 6 anos de idade (NIEMI- do sono, em que não ocorre hipoxia inter-
NEN; TOLONEN; LÖPPÖNEN, 2000), e que mitente, também são observados problemas
cerca de 3% apresentem apneia obstrutiva de atenção e de aprendizagem. Urschitz et
do sono (GISLASON; BENEDIKTSDÓTTIR, al. (2003) avaliaram 851 crianças, a maio-
1995). ria com 9 anos, e verificaram que os que
Ronco ruidoso interrompido por pau- roncavam frequentemente (mais de quatro
sas associado à sonolência diurna, baixo vezes por semana), mas não apresentavam
desempenho escolar, problemas de compor- hipoxia intermitente, tinham três vezes mais
tamento, enurese, cefaleia matinal e baixo chances de terem baixo desempenho na
peso foram considerados, pela primeira vez, matemática do que aquelas que não ron-
indicativos de apneia obstrutiva do sono, por cavam (p = 0,016; odds ratio = 2,8; intervalo
Guilleminault et al. (1976). As crianças com de confiança do odds ratio = 1,2 - 6,6).
esse tipo de transtorno do sono relacionado Dificuldades de atenção e de mate-
à respiração apresentam atividade motora mática em crianças com doenças obstruti-
excessiva e desatenção e, por isso, muitas vas das vias aéreas superiores também têm
vezes são diagnosticadas incorretamente sido registradas pelo Grupo de Pesquisa
como tendo transtorno de déficit de atenção/ “Ensino, Aprendizagem e Avaliação Esco-
hiperatividade (CHERVIN et al., 2002). lar”, do Programa de Pós-Graduação em
Os mecanismos fisiopatológicos Educação da Universidade Estadual de
subjacentes a esses problemas neurocog- Maringá (UEM - PR). O primeiro estudo foi
nitivos observados nas crianças com apneia realizado por Godoy (2003), que avaliou
não estão totalmente esclarecidos, mas 33 alunos (25 meninos e oito meninas),
acredita-se que eles sejam consequências com média de idade de 11 anos, e que
da hipoxia intermitente e da fragmentação cursavam a terceira ou a quarta série em
do sono provocados, respectivamente, pelas escolas públicas.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 101-118, jan./jun. 2012. 105


As crianças que participaram do estudo e, ainda, dos tipos de operações e
estudo de Godoy (2003) apresentavam, de de problemas resolvidos pelos alunos nos
acordo com diagnóstico feito pela equipe cadernos escolares. Entre os problemas
de Educação Especial do Núcleo Regional aditivos, dois foram de composição de
de Educação, dificuldades de atenção e de transformações e um de combinação. Nos
aprendizagem e recebiam, de duas a três problemas do campo multiplicativo, dois
vezes por semana, atendimento pedagógi- envolviam as ideias de proporção, um de
co em Salas de Recursos. De acordo com medida de divisão e um de distribuição
dados coletados em entrevista realizada equitativa. Um item envolveu as ideias de
com os pais, tinham histórico de doenças proporção e de transformação. A aplicação
obstrutivas das vias aéreas (rinite alérgica, dessa tarefa de oito problemas em um
hipertrofia das tonsilas faríngeas, hipertro- grupo piloto revelou um bom nível de con-
fia das tonsilas palatinas, otite média e/ sistência interna (alfa de Cronbach = 0,74).
ou sinusite), mas não tinham sintomas de A atividade de resolução de
transtorno de déficit de atenção/hiperati- operações, elaborada por Godoy (2003), foi
vidade (TDAH). composta por 17 itens: adição com reserva,
Participaram, também, do estudo de milhares; adição com reserva, de milha-
de Godoy (2003), outros três grupos, de res, centenas e dezenas; subtração com
mesmo nível de escolaridade e idade cro- reagrupamento, de dezenas, de centenas;
nológica dos alunos com obstrução nasal: subtração com reagrupamento, de milhares;
33 colegas de classe do Ensino Regular subtração com reagrupamento, de milhares;
dos alunos do grupo experimental que multiplicação com reserva, de centenas por
não apresentavam histórico de doenças unidades; multiplicação com reserva, de
obstrutivas das vias aéreas superiores, nem centenas por dezenas; multiplicação com
problemas de aprendizagem e de atenção reserva, de centenas por dezenas; multipli-
(GC1); 35 colegas de classe das Salas de cação com reserva, de milhares por deze-
Recursos com sintomas de transtorno por nas; multiplicação com reserva, de milhares
déficit de atenção/hiperatividade e proble- por dezenas; multiplicação com reserva,
mas de aprendizagem, mas sem sintomas de milhares por dezenas; divisão exata de
de doenças obstrutivas (DA); 34 colegas de dezenas; divisão exata, de centenas por
classe do Ensino Regular dos alunos do dezenas; divisão não exata, de centenas
grupo DA, que não tinham sintomas de por dezenas; divisão exata, de milhares por
transtorno por déficit de atenção/hiperati- unidades; divisão não exata, de milhares
vidade, obstrução nasal e dificuldades de por unidades; e divisão exata, de milhares
aprendizagem. por dezenas. Essa tarefa apresentou um
Para elaborar as tarefas de matemá- bom índice de precisão (alfa de Cronbach
tica, Godoy (2003) realizou um levantamento = 0,829). As duas atividades de matemática
dos conteúdos considerados fundamentais foram utilizadas em outros estudos realiza-
pelos professores dos participantes de seu dos pelo Grupo de Pesquisa da UEM.

106 Olinda T. KAJIHARA; Cintia M. NISHIMURA. Respiração oral: um fator que pode prejudicar...
Godoy (2003) realizou avaliação des: trocou os sinais das operações (+, - e
neuropsicológica da atenção dos alunos x) e, por isso, efetuou, por exemplo, uma
com obstrução nasal (OVAS) e com sinto- operação de multiplicação como se fosse
mas de transtorno de déficit de atenção/ de adição; subtraiu a parcela superior
hiperatividade (DA) por meio do Teste de (minuendo) da inferior (subtraendo); trans-
Atenção Visual (TAVIS 2-R), construído e portou a reserva, mas não a adicionou aos
padronizado para a população brasileira outros números das parcelas ou fatores.
por Duchesne et al. (s.d.). A habilidade de Por exemplo, ao iniciar a resolução da
atenção dos dois grupos, com obstrução operação “18579 + 6775”, o aluno fixou
nasal e com sintomas de déficit de atenção, o foco de sua atenção nas unidades “9”
foi inferior ao do grupo de 11-12 anos que e “5”, somou-as e registrou a dezena de
participou da padronização do TAVIS 2-R reserva (“1”); depois, deslocou o foco para
(Teste de Comparação de Duas Médias, o novo alvo, ou seja, as dezenas “70” e “70”.
OVAS e TAVIS, p < 0,00; DA e TAVIS, p < 0,00). Ao fixar-se nesses estímulos, deixou de
Em relação às tarefas pedagógicas, reagrupar a dezena “10” e, por isso, obteve,
Godoy (2003) verificou que os grupos OVAS como total parcial, “140”.
e DA, apresentaram, em relação aos seus Os alunos com obstrução nasal e
colegas de classe do Ensino Regular, maior com sintomas de TDAH realizaram mais
dificuldade na resolução de problemas erros de atenção nas operações que os
(Teste de Spjotvoll e Stoline – HSD, OVAS seus colegas do Ensino Regular (Teste de
e GC1, p< 0,00; DA e GC2, p< 0,00) e de Spjotvoll e Stoline – HSD, OVAS e GC1, p<
operações (OVAS e GC1, p< 0,00; DA e 0,00; DA e GC2, p< 0,00). As médias de er-
GC2, p< 0,00). Nas duas tarefas, os grupos ros de atenção dos grupos OVAS e DA (p <
OVAS e DA (problemas, p< 0,99; operações, 0,71), assim como dos grupos GC1 e GC2
p< 0,59) e os grupos de colegas de classe (p< 0,99) foram semelhantes (GODOY, 2003).
(GC1 e GC2 – problemas, p< 0,17; opera- Dificuldades de atenção e de mate-
ções, p< 0,99) apresentaram desempenhos mática também foram observadas em
semelhantes. estudos posteriores do Grupo de Pesquisa
Godoy (2003) analisou os erros co- da UEM. Leal (2004) avaliou 30 crianças
metidos pelos alunos na resolução das (18 meninos e 12 meninas) com diagnós-
operações, e verificou que o principal fator tico médico de hipertrofia das tonsilas
que prejudicou o desempenho dos escola- faríngeas e de respiração oral que estavam
res com obstrução nasal foi a dificuldade realizando tratamento em uma clínica-
de atenção. Um erro foi considerado como escola de Odontologia de uma instituição
sendo de atenção quando a criança de- de ensino superior de Maringá. Os alunos
monstrou domínio do algoritmo, ou seja, estudavam em escolas públicas, sendo
usou corretamente as técnicas operatórias que 29 alunos cursavam a terceira ou a
em várias operações, mas, em um ou dois quarta série, e um escolar, a quinta série
itens, apresentou as seguintes dificulda- do Ensino Fundamental.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 101-118, jan./jun. 2012. 107


Silva (2005) avaliou 30 escolares (12 tados desses 36 respiradores orais foram
meninas e 18 meninos) com diagnóstico comparados com os de 18 colegas de
de respiração oral realizado por odontólogo turma que, de acordo com informações
ou otorrinolaringologista, e que estavam fornecidas pelos pais, não apresentavam
recebendo atendimento em clínicas-escola histórico de doenças obstrutivas nem
de Odontologia ou de Fonoaudiologia de sintomas de respiração oral. Todos os
instituições de ensino superior de Maringá. escolares cursavam a 5a série do Ensino
Apenas uma criança estudava em escola Fundamental.
particular. Vinte e cinco alunos cursavam Filus (2006) analisou a existência
a terceira ou a quarta série; os demais cur- de correlação entre problemas de postura
savam a segunda (n = 2) ou a quinta (n = e dificuldades de matemática em crianças
3) série do Ensino Fundamental. Todas as com obstrução nasal. A postura corporal dos
crianças, de acordo com informações cons- alunos foi avaliada por meio de um simetó-
tantes das fichas médicas e/ou fornecidas grafo, ou seja, de um tabuleiro de 1,95m de
pelos pais, apresentavam rinite alérgica. altura por 0,90m de largura e dividido em
Leal (2004) e Silva (2005) compara- quadrados de 0,075m de lado. O instrumento
ram os seus resultados com os dos grupos foi disposto junto a uma parede, de acordo
avaliados por Godoy (2003). Somente os com as recomendações de Adams et al.
alunos com hipertrofia das tonsilas farín- (1985). A avaliação foi registrada por meio
geas apresentaram, nas duas tarefas de de fotografias.
matemática (Teste de Spjotvoll e Stoline Para avaliar os alinhamentos dos
– HSD, operações p < 0,01; problemas p segmentos pescoço, ombros, coluna to-
< 0,00), desempenhos inferiores aos dos rácica, tronco, coluna lombar e abdome,
colegas do Ensino Regular sem obstrução Filus (2006) utilizou os critérios propostos
nasal (GC1). Os desempenhos dos grupos por Kendall et al. (1995). A postura lateral
com hipertrofia das adenoides e com rinite foi considerada normal quando foi pos-
alérgica foram semelhantes (operações sível traçar uma linha vertical do meato
p< 0,68; problemas p< 0,14), mas este auditivo externo até a parte anterior do
apresentou menor nível de dificuldade de maléolo lateral, passando pela articulação
atenção na resolução de operações do que do ombro, pela parte posterior dos eixos de
aquele (p < 0,04). articulação do quadril e pela parte anterior
Filus (2006) avaliou 24 respiradores do joelho.
orais que haviam participado dos estudos Filus (2006) constatou que os respi-
de Leal (2004) e de Silva (2005), e outras radores orais apresentavam maior número
12 crianças que, segundo entrevista reali- de segmentos corporais alterados que os
zada com os pais, apresentavam histórico respiradores nasais (Teste U de Mann-Whi-
de doenças obstrutivas das vias aéreas tney - soma dos postos dos respiradores
superiores e, pelo menos, seis problemas orais = 1118; soma dos postos dos colegas
decorrentes de respiração oral. Os resul- de classe = 367; U = 196; Z = 2,35; p = 0,02).

108 Olinda T. KAJIHARA; Cintia M. NISHIMURA. Respiração oral: um fator que pode prejudicar...
O desvio no pescoço foi mais frequente (2003), Gomes (2007) verificou que os seus
nos respiradores orais que nos colegas alunos calcularam corretamente o número
de classe (Prova Qui-Quadrado para Duas de vezes que o dividendo continha o divi-
Amostras Independentes, correção de Yates sor, mas registraram o número errado (na
= 4,90; p = 0,03). operação 2823 ÷ 5, ao dividirem 23 por 5
Não houve correlação linear signi- registraram 5 no quociente, ao invés de 4);
ficativa entre as variáveis “problemas de trocaram um algarismo do multiplicando
postura” e “dificuldade na resolução de ou do multiplicador por outro (na operação
operações” (Teste t - GRO t = 0,00; p = 0,99; 245 x 25, ao invés de multiplicarem as
GCC t = - 0,44; p = 0,67) e entre “problemas unidades “5 x 5 = 25”, fizeram “5 x 2 = 10”).
de postura” e “dificuldade na resolução de Um erro foi considerado como
problemas” (GRO t = - 0,84; p = 0,40; GCC t sendo no algoritmo quando os escolares
= - 0,58; p = 0,57). Portanto não é possível apresentaram, em várias operações, as
estimar o desempenho do respirador oral seguintes dificuldades: não calcularam
nas operações e nos problemas de mate- corretamente o produto da divisão do di-
mática com base em seus problemas de visor pelo quociente ou da multiplicação
postura (FILUS, 2006). do multiplicando pelo multiplicador; não
Gomes (2007) reavaliou 11 respira- calcularam corretamente quantas vezes o
dores orais que haviam participado, dois dividendo continha o divisor; não conse-
anos antes, do estudo de Leal (2004), e 13 guiram realizar operações contendo zero
da pesquisa de Silva (2005). Os desempe- (na operação “7000 x 10”, fez “7 x 0 = 7”);
nhos dos respiradores orais, na tarefa de não conseguiram multiplicar o multipli-
resolução das 17 operações, foram seme- cando pela dezena do multiplicador (na
lhantes na 3a e na 5a séries (Teste t para operação 12876 x 54, somente multiplica-
Amostras Dependentes - t = 1,18; g.l. = 23; ram 12876 pelas 4 unidades); não concluí-
p = 0,25): em 2003, eles erraram, em média, ram as operações de divisão envolvendo
8,3 operações (d.p. = 2,98); e em 2005, 7,5 decimais, pois não conseguiram utilizar
operações (d.p. = 2,23). Portanto, na 5a a vírgula para separar a parte inteira da
série, os respiradores orais continuaram parte decimal, e transformar as unidades
errando cerca de 50% da tarefa. em décimos.
A pesquisadora analisou os erros Gomes (2007) verificou que os res-
cometidos pelos alunos na resolução das piradores orais continuaram apresentando,
operações e dos problemas. Nas operações, nas operações realizadas na 5a série, os
os principais tipos de erros observados mesmos níveis de dificuldade de atenção e
foram os de atenção e no algoritmo. Nos no algoritmo observados na 3a série (Teste
problemas, além de erros de atenção e no de Wilcoxon para Dados Emparelhados
algoritmo, também ocorreram erros de in- - erros de atenção T = 50; Z = 1,81; p =
terpretação dos enunciados. Além dos tipos 0,07; erros no algoritmo T = 92; Z = 0,82;
de erros de atenção registrados por Godoy p = 0,41). Resultados semelhantes foram

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 101-118, jan./jun. 2012. 109


observados na resolução de problemas: na Método
5a série, os respiradores orais continuaram
apresentando o mesmo desempenho re- Participantes
gistrado na 3a série (Teste t para Amostras O grupo experimental foi composto
Dependentes - t = 1,96; g.l. = 23; p = 0,06), por 30 meninos e meninas, de 8 a 10 anos,
ou seja, continuaram errando cerca de que cursavam a terceira ou a quarta série
50% dos oito problemas. Na 5a série, os do Ensino Fundamental em escolas públi-
níveis de dificuldade de atenção (Teste de cas de Maringá. As crianças apresentavam
Wilcoxon para Dados Emparelhados - T = diagnóstico, realizado por otorrinolaringo-
68; Z = 0,40; p = 0,69) e no algoritmo (T logista, de respiração oral decorrente de
= 20,50; Z = 0,24; p = 0,81) continuaram rinite alérgica e/ou de hipertrofia das ton-
semelhantes aos verificados na 3a série. silas faríngeas (adenoides). A seleção das
Apenas a dificuldade de interpretação dos crianças foi realizada a partir de análise
enunciados dos problemas diminuiu (T = das fichas médicas dos pacientes atendi-
18; Z = 2,39; p = 0,02). dos pelo setor de otorrinolaringologista de
O estudo de Gomes (2007) eviden- um posto de saúde municipal. Todos os
ciou que as dificuldades de matemática pais e/ou responsáveis assinaram o Ter-
dos respiradores orais persistem no decor- mo de Consentimento Livre e Esclarecido
rer da escolarização. No intervalo entre a (TCLE), autorizando os filhos a participarem
3a e a 5a série, eles não desenvolveram do estudo. A pesquisa foi aprovada pelo
satisfatoriamente as habilidades de mate- Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo
mática. Nas duas avaliações, erraram 50% Seres Humanos da Universidade Estadual
das operações e 50% dos problemas. A de Maringá, sob número 407.
pesquisa demonstrou que, se a escola não Os resultados dos 30 respiradores
for capaz de atender às necessidades edu- orais nas tarefas de matemática foram
cacionais dos respiradores orais, eles não comparados com os das 33 crianças ava-
poderão superar suas dificuldades de aten- liadas por Godoy (2003), de mesmo nível
ção e de aprendizagem da matemática. de escolaridade, sem sintomas de doenças
Dando continuidade aos estudos do obstrutivas das vias aéreas superiores e de
Grupo de Pesquisa “Ensino, Aprendizagem respiração oral (GC1).
e Avaliação Escolar” da UEM, foi realizada
esta pesquisa, que teve como objetivo Materiais e procedimentos
avaliar a magnitude da associação entre
Para caracterizar o grupo experi-
respiração oral e dificuldades na matemá-
mental, os pais das 30 crianças foram
tica, ou seja, analisar as razões de chances
entrevistados. O instrumento aplicado foi
(odds ratio) de os respiradores orais terem
a “Triagem de crianças com características
maior dificuldade nas operações e proble-
de respirador oral”, elaborado por Kajihara
mas que os respiradores nasais.
(2007). As questões da primeira parte do

110 Olinda T. KAJIHARA; Cintia M. NISHIMURA. Respiração oral: um fator que pode prejudicar...
questionário permitiram coletar informações fungação (66,7%), coriza (50%), espirros
sobre o histórico de saúde da criança e de (50%), olhos avermelhados (46,7%) e olhos
presença de sintomas atuais de rinite alér- lacrimejantes (43,3%).
gica e de hipertrofia das tonsilas faríngeas, As características de respiradores
os tratamentos realizados e os resultados orais mais apresentadas pelos escolares
obtidos. As questões da segunda parte do foram: boca entreaberta (76,7%), desaten-
instrumento visaram identificar presença de ção (70%), irritabilidade (63,3%), cefaleia
problemas dentários, fonoarticulatórios, ali- recorrente (56,7%), baixa resistência para
mentares, comportamentais, noturnos (sono) atividades físicas (43,3%) e fadiga (40%).
e de aprendizagem, típicos do respirador oral. Os problemas de sono mais frequentes
Os alunos realizaram as tarefas de foram: boca sono agitado (80%), entrea-
resolução de operações e de problemas berta (70%), ronco (60%), sialorreia (56,7%),
elaboradas por Godoy (2003). Os resulta- transpiração excessiva (46,7%), bruxismo
dos do estudo foram analisados por meio (40%) e engasgos (40%). Em relação à
do Modelo de Regressão Logística Simples, alimentação, as dificuldades mais citadas
que permite determinar o grau de depen- foram: mastiga pouco os alimentos (56,7%),
dência de uma variável em relação à variá- come rápido (53,3%), come com a boca
vel independente, quando os valores da aberta (50%) e ingere grande quantidade
variável dependente são binários (AYRES et de líquido durante as refeições (50%).
al., 2003). A magnitude da associação entre Na atividade de matemática, como
respiração oral e dificuldades na matemáti- cada aluno resolveu 17 operações, o grupo
ca foi avaliada por meio do cálculo do odds de respiradores orais (n = 30) realizou, no
ratio (razões de chances). O software SAS total, 510 questões, e os colegas sem obstru-
9.0 (SAS/STAT, 2002-2003) foi utilizado na ção nasal (n = 33), 561 itens. Os respiradores
análise estatística dos dados, e o intervalo orais apresentaram 334 (65,49%) erros, e
de confiança (IC) considerado foi de 95%. os respiradores nasais, 173 (30,84%) erros.
A regressão logística simples de-
Resultados monstrou que a chance de apresentar di-
ficuldades na tarefa de operações é cerca
As entrevistas com os pais revela- de quatro vezes maior em aluno respirador
ram que, entre as 30 crianças do grupo oral do que em aluno respirador nasal (p
experimental, 26,7% apresentavam histó- < 0,01; odds ratio = 4,26; intervalo de con-
rico de hipertrofia das tonsilas faríngeas fiança do odds ratio = 3,29 - 5,50).
(adenoides), 20% tinham rinite alérgica, Os tipos de erros cometidos pelos
e 53,3% possuíam as duas enfermidades. alunos na tarefa de resolução de opera-
Os sintomas de doenças obstrutivas mais ções de matemática foram analisados, e
frequentes no grupo foram: halitose (80%), os mais frequentes foram: de atenção e
obstrução nasal (76,7%), saudação do no algoritmo. Os tipos de erros de atenção
alérgico (73,3%), prurido nasal (66,7%), e no algoritmo realizados pelos escolares

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 101-118, jan./jun. 2012. 111


foram os mesmos observados por Gomes de um aluno apresentar erros de atenção,
(2007). Ocorreram casos em que, em uma erros no algoritmo e erros de atenção e
única operação, foram registrados erros de algoritmo são, respectivamente, 4 (odds
de atenção e no algoritmo. A regressão ratio = 4,13), 4 (odds ratio = 3,59) e 18 (odds
logística simples dos tipos de erros nas ratio = 17,64) vezes maiores em respirador
operações demonstrou que as chances oral do que em respirador nasal.

Tabela 1 - Comparações dos tipos de erros cometidos pelos grupos RO e GC1 nas operações
Tipos de erros Valor de p Odds ratio Intervalo de confiança do odds ratio
Erros de atenção 0,01* 4,13 2,84; 6,00
Erros no algoritmo 0,01* 3,59 2,65; 5,06
Erros de atenção e de algoritmo 0,03* 17,64 2,19; 142,07
* Valores significativos: p  0,05.

Em relação à tarefa de resolução classificados em: de atenção, no algoritmo


de problemas, como cada aluno resolveu e de interpretação do enunciado. Os critérios
oito itens, o grupo RO (n = 30) realizou, no utilizados para classificar os erros de aten-
total, 240 problemas: 35 (14,58%) foram ção e os erros no algoritmo nos problemas
resolvidos corretamente. O grupo GC1 (n = foram os mesmos utilizados nas operações.
33) realizou 264 problemas: 154 (58,33%) A regressão logística simples dos tipos
foram resolvidos corretamente. de erros observados nos problemas demons-
De acordo com os resultados da trou que as chances de um aluno apresentar
regressão logística simples, a chance de erros de atenção e erros de interpretação são,
um aluno ter dificuldade na resolução dos respectivamente, dez (odds ratio = 10,12) e
problemas é oito vezes (p = 0,01; odds ratio nove (odds ratio = 9,17) vezes maiores no
= 8,20; intervalo de confiança do odds ratio respirador oral do que no respirador nasal.
= 5,51 - 12,66) maior em respirador oral Apesar de um respirador oral ter uma
(RO) do que em respirador nasal (GC1). chance 1,68 maior de apresentar erros no
Os erros cometidos pelos alunos na algoritmo do que um respirador nasal, esse
tarefa de resolução de problemas foram resultado não foi significativo ao nível de 5%.

Tabela 2 - Comparações dos tipos de erros cometidos pelos grupos RO e GC1 nos
problemas
Tipos de erros Valor de p Odds ratio Intervalo de confiança do odds ratio
Erros de atenção 0,01* 10,12 4,42; 23,17
Erros no algoritmo 0,74 1,68 0,69; 4,10
Erros de interpretação 0,01* 9,17 5,77; 14,58
* Valores significativos: p  0,05.

112 Olinda T. KAJIHARA; Cintia M. NISHIMURA. Respiração oral: um fator que pode prejudicar...
Discussão um respirador nasal. Essa alta dependência
da variável “desempenho nos problemas” em
Os pais dos respiradores orais en- relação ao modo respiratório parece decorrer
trevistados neste estudo souberam indicar da dificuldade de atenção e de interpretação.
as doenças obstrutivas que os seus filhos Nos primeiros estudos do Grupo de
apresentavam, ou seja, hipertrofia das Pesquisa da UEM, a principal dificuldade
tonsilas faríngeas (adenoides) e/ou rinite dos respiradores orais na resolução de
alérgica, mas desconheciam a relação exis- problemas era de atenção. Entretanto, nas
tente entre obstrução nasal e respiração pesquisas realizadas a partir do ano de
oral. A maioria dos pais sabia que o filho 2005, além da desatenção, outro fator pas-
permanecia com a boca entreaberta duran- sou a contribuir para o baixo desempenho
te o dia e o sono. Assim como assinalado desses alunos, ou seja, a dificuldade de
por Paradise et al. (1998), os familiares dos interpretação dos enunciados. Isso sugere
participantes deste estudo também não que a qualidade do ensino oferecido aos
consideravam que respirar pela boca fosse alunos, nos últimos anos, está decaindo,
um comportamento anormal. pois os problemas de interpretação parecem
Os respiradores orais apresentaram estar associados à dificuldade de leitura.
problemas relatados na literatura médica Apesar de uma nova variável ter
(MARCHESAN, 1994; SÁ FILHO, 1994) como influenciado os resultados do grupo experi-
decorrentes da modificação do padrão res- mental avaliado neste estudo, a desatenção
piratório: mastigavam pouco os alimentos, ainda foi o principal fator que prejudicou o
comiam rápido, comiam com a boca aberta seu desempenho: um respirador oral teve 4
e ingeriam grande quantidade de líquido du- vezes mais chance de cometer esse tipo de
rante as refeições. Durante a noite, apresen- erro nas operações, e 18 vezes mais chance
tavam sono agitado, sialorreia, transpiravam de cometer erros de atenção e de algoritmo
muito e roncavam. Problemas descritos por que um escolar sem obstrução nasal.
Assencio-Ferreira (2003), Lusvarghi (1999) e
Marchesan (1994) como decorrentes da má Considerações finais
qualidade do sono também foram observa-
dos nos respiradores orais desta pesquisa: Estudos realizados na última década
cefaleia matinal, irritabilidade e desatenção. pelo Grupo de Pesquisa “Ensino, Aprendi-
Os resultados dos alunos nas tarefas zagem e Avaliação Escolar” (UEM-PR) têm
demonstraram que a respiração oral é um confirmado relatos de profissionais da área
“fator de risco” para a criança apresentar di- médica, como, por exemplo, de Sá Filho
ficuldades de matemática. A modificação do (1994) e de Rodrigues (1996), que, a partir
padrão respiratório prejudica principalmente de experiência no atendimento clínico de
a capacidade de o aluno resolver problemas: crianças respiradoras orais, observaram
a chance de um respirador oral ter dificulda- que a modificação do padrão respiratório
de nessa tarefa é oito vezes maior que a de nasal prejudica o desempenho escolar.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 101-118, jan./jun. 2012. 113


Nos vários grupos de respiradores (“1”); depois, desloque o foco para o novo
orais de 3a a 5a séries do Ensino Funda- alvo, ou seja, as dezenas “70” e “60” e a
mental, avaliados nesses dez anos de quantidade (“1”) transportada, e some-as
pesquisa, foram observadas dificuldades para que possa obter o resultado 144.
na resolução de problemas e de operações Urschitz et al. (2003) observaram
de matemática decorrentes, principal- que, quando o sintoma “ronco” está presen-
mente, de desatenção. Essas dificuldades, te, a chance de a criança com transtorno
constatou Gomes (2007), persistem no leve do sono ter baixo desempenho na
decorrer da escolarização, e a magnitude matemática é três vezes maior do que
da associação (odds ratio) entre respiração quando esse sintoma não ocorre (URS-
oral e problemas na matemática, conforme CHITZ et al., 2003). Entre os respiradores
demonstrou este estudo, é grande. que participaram do presente estudo, 80%
A aprendizagem escolar do respirador tinham sono agitado e 60% roncavam;
oral, assim como de seus colegas sem obs- seria interessante investigar, em outra pes-
trução nasal, depende de inúmeros fatores quisa, se a magnitude da associação (odds
intra e extraescolares. No entanto, no caso do ratio) entre respiração oral e dificuldades
aluno que apresenta rinite alérgica ou hiper- na matemática é maior entre os respira-
trofia das tonsilas faríngeas, a desatenção é dores orais que roncam do que entre os
um fator que pode prejudicar o seu desem- que não roncam.
penho na matemática. A obstrução nasal faz O significativo impacto (odds ratio)
com que o respirador oral desperte várias da respiração oral na aprendizagem da
vezes durante a noite, e a fragmentação do matemática, verificado nesta pesquisa,
sono, segundo Owens et al. (1998), parece fortalece a posição de que o atendimento
ser responsável pela desatenção diurna. precoce é fundamental. Estudo realizado
A respiração oral é um “fator de por Kazakevich, Neves e Kajihara (2008),
risco” (odds ratio) para dificuldades de com 129 alunos da Educação Infantil,
matemática, por isso a criança que respira demonstrou que o impacto da respiração
pela boca necessita de um atendimento oral é tão forte que crianças de 3 a 5 anos
educacional que lhe permita desenvolver já apresentam má oclusão dentária, altera-
a capacidade de atenção e, assim, superar ções faciais e problemas alimentares e de
os erros que comete nas tarefas. Por causa sono. Considerando que normalmente as
da desatenção, por exemplo, o respirador famílias têm poucos conhecimentos sobre a
oral registra a quantidade transportada, respiração oral e que o tratamento precoce
mas não a acrescenta às dezenas ou às é fundamental para que esse modo respira-
centenas. É preciso que ele desenvolva a tório não se torne crônico, o professor, além
capacidade de atenção seletiva, para que, de atuar no atendimento das necessidades
na resolução da operação “79 + 65”, fixe educacionais, pode ajudar a identificar e
o foco de sua atenção nas unidades “9” e encaminhar o respirador oral para o otorri-
“5”, some-as e registre a dezena de reserva nolaringologista e/ou para o alergologista.

114 Olinda T. KAJIHARA; Cintia M. NISHIMURA. Respiração oral: um fator que pode prejudicar...
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Recebido em março de 2012


Aprovado para publicação em abril de 2012

118 Olinda T. KAJIHARA; Cintia M. NISHIMURA. Respiração oral: um fator que pode prejudicar...
Docentes paulistas e atuação política no período de
democratização pós-ditadura militar
São Paulo teachers and political performance during
the democracy period after the military dictatorship
Antonio de Pádua Almeida*
Vania Regina Boschetti**
* Mestre em Educação pela Universidade de Sorocaba.
Professor efetivo de História na Rede Pública Estadual.
E-mail: prof_antoniodepadua@hotmail.com
** Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São
Paulo. Professora titular do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade de Sorocaba. Professora Titular
do Curso de Pedagogia da Universidade de Sorocaba.
E-mail: vania.boschetti@prof.uniso.br

Resumo
O artigo analisa a ação docente no período de transição da ditadura militar para a redemocratização;
faz considerações sobre a política educacional implantada e como os professores lutaram por melhores
salários e condições de trabalho, tendo atuação importante no processo de reabertura política, com a
realização de fóruns de discussão para participação dos professores e da comunidade escolar.
Palavras-chave
Educação. Professores. Política Educativa.

Abstract
The article analyses the teaching actions during the transition period between the military dictatorship
and the new democracy; it focuses on the introduced educational policy and, on how the teachers have
fought for better wages and better work conditions, and, therefore, they have performance an important
role on the political opening process through the organization of meeting worth the purpose to discuss
the participation of the teachers and the school community.
Key words
Education. Teachers. Educational Politicy.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 119-132, jan./jul. 2012
Passadas duas décadas de ditadura de um modelo educacional de aceitação
militar, os professores representavam uma dos determinantes governamentais para
categoria profissional que tinha crescido manter a sociedade submissa e facilmente
numericamente, mas não contava com controlada.
boas condições de trabalho e salários dig- Os militares no poder procuram
nos. As deficiências formativas decorrentes colocar o aparelho escolar a serviço
das variadas estruturas dos cursos de de suas propostas e para isso se em-
formação, em parte podem ser entendidas penham. As reformas educacionais
como consequência do projeto educativo na Universidade em 1968, como no
dos governos militares que, por meio de re- segundo grau em 1971, através da lei
formas educacionais, reduziram os cursos 5692/71, confirmam essa afirmação e
de formação de professores para apenas revelam com bastante clareza o teor
dois anos, introduzindo as chamadas do que se pretendia fixar como obje-
tivo de educação formal e com que
licenciaturas curtas1. No mesmo viés de
teorias se iria trabalhar. A perspectiva
valorização da quantidade em detrimento governamental se desenvolveu pelo
da qualidade, outras medidas restritivas prisma do capitalismo internacional
foram adotadas, sempre na perspectiva de em que o país estava inserido. Sob o
evitar ou mesmo impedir manifestações e ponto de vista de uma economia que
reflexões públicas em prol da educação e se transnacionalizava, era oportuno
das suas necessidades, tais como as pas- que as instituições fossem funcionais
seatas estudantis e suas reivindicações, e colaborando com a concretização dos
monitoramento das atividades dentro das interesses modernizadores do momen-
escolas e universidades. Era a consolidação to e que não se situavam na grande
produção científica, ou, na valorização
ética das atividades educacionais, mas
1
As licenciaturas curtas surgiram no país a partir da na expansão de um capitalismo de
Lei n. 5.692/71, em 1971, num contexto em que se mercado. (BOSCHETTI, 1993, p. 31).
passou a exigir uma formação rápida e generalista
para atender a uma nova demanda de professores. Mesmo assim, as dificuldades eco-
A implantação deveria se dar prioritariamente nas nômicas impostas aos trabalhadores pelos
regiões de maior carência de professores. Porém, governos autoritários, e a própria ditadura
se proliferaram por todo o país. Foi amplamente em si, fizeram surgir movimentos de con-
rejeitada desde o início de sua instituição, pois
muitos afirmavam que lançava no mercado um
testação e reivindicação de direitos que
profissional com formação deficitária em vários eclodiram a partir do final da década de
sentidos. Definitivamente extintas pela Lei de Dire- 1970 e início da década de 1980. Paralela-
trizes e Bases da Educação (LDB), de 1996 foram mente aos movimentos sociais e operários
transformadas, paulatinamente, em Licenciaturas que estavam emergindo, o professorado
Plenas. (MENEZES, Ebenezer Takuno de; SANTOS,
Thais Helena dos. “Licenciatura curta” (verbete).
paulista enquanto representativa categoria
Dicionário Interativo da Educação Brasileira – profissional, mal remunerada e, muitas
EducaBrasil. São Paulo: Midiamix, 2002. vezes, mal formada profissionalmente e

120 Antonio de P. ALMEIDA; Vania Regina BOSCHETTI. Docentes paulistas e atuação política no...
politicamente, foi adquirindo consciência – nos marcos da expressão sindical
dos limites latentes ao universo educativo. – e transfigurou-se numa categoria
Começou a ter atuação de destaque nas profissional capaz de converter as
manifestações públicas, marcando presen- suas necessidades materiais de vida e
de trabalho em propostas econômicas
ça e procurando se fazer ouvir. Conforme
concretas. (FERREIRA JR; BITTAR, 2006,
Ferreira e Bittar (2006) os profissionais do
p. 1169).
magistério aderiram à tradição das reivin-
dicações operárias e passaram a lutar pela O poder de organização dos docen-
superação de suas dificuldades materiais, tes em nenhum momento foi fácil como
realizando greves e manifestações. poderá ser observado. Apesar das mobiliza-
A atuação do professorado foi igual ções, greves e do enfrentamento à ditadura,
à adotada pela maioria dos trabalhadores: o movimento sindical representativo da
manifestar-se publicamente por melhores categoria começou a apresentar dificulda-
condições de trabalho. O aspecto principal des para arregimentar número significativo
das lutas e greves ocorridas nesse período de professores para participar das assem-
estava voltado para o enfrentamento das bleias e dirigir suas ações. Isso começou
questões econômicas, visando corrigir a a ser sentido no início da década de 1980,
perda salarial e a consequente queda em quando os líderes sindicais também não
seu padrão de vida. Observa-se, pois, que eram prontamente atendidos às convoca-
apesar da formação superior intelectuali- ções para as atividades coletivas do sindi-
zada e possível consciência política, os cato. Esse comportamento de omissão, ou
docentes não articulavam prioritariamente mesmo de resistência, pode ser associado
nenhuma proposta de estrutura social a vários fatores: dificuldades quanto ao
contrária ao modelo capitalista da relação atendimento das reivindicações, desgaste
custo-benefício. Aos poucos é que alguns ocasionado pelas greves, autoritarismo
profissionais de liderança e interesse se en- governamental, repúdio da coletividade às
gajaram em movimentos políticos partidá- mobilizações e problemas sociais que as
rios, movimentos sindicais, da mesma forma greves traziam às comunidades.
que havia ocorrido com os operários fabris. Apesar dos embargos à organização
dos professores enquanto categoria, os
Premida pelo achatamento salarial e profissionais do Estado de São Paulo, jun-
pela rápida queda no seu padrão de
tamente com a Associação dos Professores
vida e de trabalho, a categoria profis-
sional dos professores públicos de 1º
do Ensino Oficial do Estado de São Paulo
e 2º graus foi desenvolvendo uma (APEOESP), realizaram várias manifesta-
consciência política que a situava ções e greves nesse período. Demonstra-
no âmago do mundo do trabalho, tal vam pela paralisação o descontentamento
como já estava posta para a classe com a política governamental para a
operária fabril. Em outros termos: educação, com a defasagem a salarial,
incorporou a tradição da luta operária com a falta de perspectivas profissionais.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 119-132, jan./jun. 2012. 121


Também cobravam melhores condições de Para uma categoria profissional am-
trabalho, alteração do plano de carreira, pla e presente em todo o estado, entrar e
atitudes pedagógicas mais expressivas. Foi manter greve por longo período era muito
um período de conquistas, mas também difícil por vários motivos. Não se podia
de derrotas. pensar em assembleias permanentes ou
Essas greves causavam grande re- grandes assembleias, até porque muitos
percussão, pois criavam problemas para dos professores, também trabalhadores em
os estudantes e seus familiares e traziam instituições particulares, não conseguiam
à tona os problemas da educação, levan- coordenar horários; por ser uma grande
do inclusive a imprensa a se manifestar rede e com níveis diferentes de atuação
através de reportagens e posicionamentos, e vinculação (professor I, professor II, pro-
como fez o Jornal Cruzeiro do Sul, de Soro- fessor III, professor temporário)2 a adesão
caba, SP, que, no editorial do dia 25/4/1989 dos vários segmentos era muito difícil
(período em que aconteceu uma das mais e entendida de maneiras diversas; uma
longas greves do magistério paulista), ana- constante era a de considerar greve como
lisou a situação dos professores, a postura agitação, baderna, ação antipatriótica,
do governo em relação às reivindicações, contrária a tudo o que deveria ser o
os problemas sociais ocasionados pela professor enquanto educador exemplar.
greve, chamando a atenção para a deli- Apesar disso, o sindicato dos professores,
cada situação em que se encontrava a a APEOESP, procurava organizar e dirigir
educação pública. o movimento para formar o maior número
Há, porém, que se dar atenção a um possível de caravanas que, do interior,
prejuízo mais sério, que as crianças ia à capital paulista, onde normalmente
e as famílias vêm sofrendo, ao longo realizavam-se as assembleias. Enquanto
dos últimos anos, quer as atividades
das escolas estejam se desenvolven-
2
do em aparente normalidade, quer O governo estado de São Paulo mantinha ca-
estejam suspensas por força de uma tegorias diferenciadas de professores, a partir da
formação, efetivação por concurso, etc., distinguindo
greve: é um prejuízo ocasionado pela
assim os dispositivos de contratação/enquadramen-
perda de qualidade do ensino e pela to funcional: Professor I – respondia pela docência
formação, na escola, de um ambiente da 1a a 4a série do 1o Grau, era predominantemente,
nada favorável ao desenvolvimento formado pelos antigos Cursos Normais; Professor
da criança e do adolescente. II – docente de 5a a 8a séries do 1o Grau, formado
A permanente insatisfação em que em curtas licenciaturas; Professor III – docente de
5a a 8a série do 1o Grau e das três séries do 2o
estão vivendo os professores, em de-
Grau, licenciado pleno. ACT – Professor Admitido
corrência dos maus salários que perce-
em Caráter Temporário, atuando, de acordo com a
bem do governo do Estado, tem muito formação, no 1o e/ou 2o Graus. Havia ainda pro-
a ver com esse clima pouco favorável fessores estáveis por dispositivos legais e os que
ao processo de ensino/aprendizagem. haviam obtido, judicialmente, a contratação pela
(MAGISTÉRIO..., 1989, p. 02). CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).

122 Antonio de P. ALMEIDA; Vania Regina BOSCHETTI. Docentes paulistas e atuação política no...
isso, as sub-sedes da APEOESP faziam as em entrevista concedida ontem ao
assembleias regionais. Cruzeiro. Garantiu que efetuará os
Outra dificuldade para manter a descontos embora julgue “legítima e
greve estava relacionada com a questão justa” a greve por melhores salários.
financeira, pois os professores dependiam Chopin disse ainda acreditar que os
de seus salários e, durante a greve, ficavam índices da greve de todo o Estado
sem recebê-lo. Enfrentavam ainda a pres- deverão diminuir a partir da próxima
são por parte da mídia e principalmente semana. “A greve já atingiu seu ponto
máximo e está perdendo força”.
do governo, que tentava descaracterizar o
movimento levando para o grande público Mas, segundo a conselheira da
a ideia do professor como o grande respon- Associação dos Professores do En-
sável pela deficiências da educação (sem sino Oficial do Estado de São Paulo
(APEOESP), Tânia Baccelli, a greve de-
considerar suas condições de formação e
verá “aumentar na próxima semana”.
de realização do trabalho escolar) . Durante (CHOPIN..., 1989, p. 26).
as greves, travava-se uma batalha entre o
governo e os professores, com promessas À medida que os períodos da greve
governamentais de corte do salário dos se estendiam, aumentavam também as
dias parados, falseamento dos dados de dificuldades para o movimento continuar
adesão à greve com vistas à desmobiliza- com força. Isso ficou evidente na greve de
ção, suposições sobre o enfraquecimento 1989, quando o governo ameaçou demitir
da greve o que era sempre contestado pelo professores, caso não encerrassem a para-
sindicato. Em alguns casos, o governo não lisação, forçando muitos a voltarem ao
tinha como negar a legalidade e a legitimi- trabalho. Outra questão que atrapalhava
dade das solicitações, mas, mesmo assim, (e ainda atrapalha) o movimento grevista
tomava medidas contrárias ao movimento, era a postura de muitos diretores (gestores)
tentando levá-lo ao fim sem atender às de escola, que, embora enfrentando as
reivindicações, como transcrito do Jornal mesmas dificuldades no trabalho cotidiano
Cruzeiro do Sul. da educação pública, colocavam-se contra
Tomando a greve de 1989 como o movimento esforçando-se para garantir,
referência, pode-se destacar: a qualquer custo, a normalidade das
aulas nas suas unidades escolares. Esse
Todos os dias de aulas não ministra- confronto direto e imediato em todas os
das em virtude da greve do magis-
movimentos grevistas se apresentou como
tério serão repostos, os professores
terão seus dias descontados e as
obstáculo difícil de ser transposto para
férias de julho serão canceladas nas muitos professores: fazer o enfrentamento
escolas onde ocorreu adesão. Essas com a direção da escola, na melhor das
medidas serão adotadas pelo secre- hipóteses significava ficar sob a possibi-
tário de Estado da Educação, Chopin lidade de problemas futuros. Isso porque
Tavares Lima, conforme anunciou muitos trabalhavam como ACTs (Admitidos

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 119-132, jan./jun. 2012. 123


em Caráter Temporário) e temiam uma per- constatava-se que, mesmo entendendo a
seguição ou atitude retaliadora do diretor, legitimidade, não eram as considerações
que poderia lhes dificultar a manutenção educacionais as que mais pesavam no
das aulas no momento de atribuição. Tais momento de apoiar ou não a mobilização
motivos levavam muitos professores a dos professores. Todas essas questões
não aderir ou grevistas a abandonar o afloravam à mente do professor, dando-lhe
movimento, conforme publicado no Jornal sentimento de culpa. Embora existissem
Cruzeiro do Sul: outras partes envolvidas no conflito, era o
Com medo de serem demitidos pelo professor que deveria se explicar aos seus
governo e, em vários casos, devido alunos e comunidade escolar. O recorte do
à pressão de seus diretores, muitos Jornal Cruzeiro do Sul, exemplifica:
docentes estão resolvendo voltar “Se a gente voltar, vamos ter que en-
às aulas, quebrando a unidade do carar com vergonha os nossos alunos.
movimento grevista do magistério. Os mais conscientes vão querer saber
Se a greve que já dura setenta dias o que ganhamos com esta greve.
acaba ou continua de uma vez, só Estragamos as férias deles. Atrapa-
será decidido em assembléia que irá lhamos a vida deles e a nossa vida
acontecer hoje à tarde na praça da por mais de setenta dias. E vamos ser
República, em São Paulo. (DIVIDIDOS..., humilhados porque não ganhamos
1989, p. 12). nada”. Foi o tom do desabafo de um
Se tomar a decisão de iniciar e professor da EEPSG “Profo Joaquim
manter uma greve é difícil para qualquer Izidoro Marins”, feito na assembléia
categoria profissional, terminá-la sem con- de professores, realizada ontem na
Concha Acústica, ao prever a derrota
seguir minimamente terem atendidas as
do movimento paredista. (ABATIDOS...,
reivindicações é mais difícil ainda. E para os
1989, p. 18).
docentes, essa dificuldade representava um
peso maior, pois envolvia outros segmentos A greve é uma das maneiras que os
sociais, como alunos e seus familiares, com trabalhadores dispõem para enfrentar o
reflexos que se fizeram presentes em suas patronato: é uma oposição de forças, que
vidas, além do posicionamento crítico da evidencia a luta de classe, formada de um
sociedade, atingida direta e indiretamente lado por patrões e de outro por proletários
pela situação. Muitos alunos se sentiram ou operários. No setor fabril, uma greve
prejudicados em seus projetos de estudo, significa a perda de ganhos por parte do
como no preparo para o vestibular, por empresário, que durante a paralisação fica
exemplo. Os familiares não concordavam sem explorar a mais-valia, fonte de seus
com as reposições de aulas durante as lucros. Nessas condições, o empresário tem
férias, período em que poderiam estar pressa em solucionar o conflito, e acaba
viajando ou porque provocava alteração cedendo um pouco e atendendo pelo
em outros projetos da família. Na verdade, menos parte das reivindicações de seus

124 Antonio de P. ALMEIDA; Vania Regina BOSCHETTI. Docentes paulistas e atuação política no...
operários, pondo fim ao movimento. Já na temas tiraram das pessoas tantas
greve de professores do sistema público de e tão variadas manifestações de
ensino, a disputa ocorre entre professores opinião. Grupos de pais decidiram
e Estado enquanto poder político, e no reforçar os protestos dos professores,
caso empregador, e as consequências fazendo coro com suas reivindicações,
enquanto outros preferiram condenar
desse conflito refletem sobre a sociedade.
a greve e pedir a volta às aulas.
Por esse motivo e em função das muitas
greves realizadas pelo magistério nesse Já que a greve, em si, provocou tama-
período, o debate sobre a escola pública nha mobilização na sociedade como
se fazia necessário numa sociedade, em um todo, seria interessante, também,
que o debate não se esgotasse com
que a população contribui com seu tra-
o eventual retorno às atividades esco-
balho produtivo, pagamento de impostos lares. Constatada a realidade, que é
e, por princípios legais e sociais, tinha o das mais deprimentes, seria absurdo
direito e o dever de exigir uma educação que os pais de alunos, bem como
de qualidade. De acordo com o editorial do os alunos, retornassem à aparente
jornal Cruzeiro do Sul de 1/7/1989, abaixo normalidade dos dias de aula sem
apresentado, o debate sobre a educação tentar, pelo menos, avançar o debate
antes restrito a alguns grupos culturais em favor deles próprios, procurando
específicos, em função da greve atingia a detectar os muitos defeitos do ensino
sociedade de maneira mais extensiva, que que se oferece na rede estadual e
deveria considerar a melhora da educação pressionando pela sua melhoria. (A
pública, como algo de interesse coletivo. HORA DO ENSINO, 1989, p. 02).

A greve dos professores, que completa Essas greves protagonizadas pelos


hoje 73 dias, serviu para demonstrar professores paulistas trouxeram à tona os
que, também no que diz respeito ao problemas enfrentados pela educação e
ensino, a comunidade é altamente mostraram a capacidade de organização
mobilizável. Até por ter imposto aos desses profissionais, que não aceitaram a
pais de alunos uma preocupação real, desvalorização de suas atividades profis-
essa greve – atinja ou não seus obje- sionais de forma passiva. O arrocho salarial
tivos – já obteve um sucesso, que foi provocado pela inflação e pela tímida evo-
justamente tornar acessível e popular
lução funcional da carreira faziam da greve
o debate sobre o ensino público.
o recurso a ser usado na tentativa conse-
Quase sempre restrito às chamadas guir amenizar essa situação, visto que as
elites culturais (professores, universi- autoridades governamentais se mostravam
tários, sociólogos, etc.), esse debate
insensíveis à formas mais atenuadas de
ganhou vida e força nas últimas
semanas, levando cada pessoa a
reivindicação. Mesmo considerando não
refletir mais profundamente sobre terem muitos professores boa formação
a escola pública, posicionando-se política devido ao processo formativo do
sobre o assunto. Na imprensa, poucos período militar, não se pode generalizar,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 119-132, jan./jun. 2012. 125


pois também muitos se apresentavam com cia na escola e na sociedade.
concepções políticas críticas, e o sindicato Apenas a mais ampla das concepções
da categoria, a APEOESP, contava com de educação nos pode ajudar a per-
dirigentes bem preparados politicamente e seguir o objetivo de uma mudança
com grande capacidade de convencimento, verdadeiramente radical, propor-
características importantes para atuação cionando instrumentos de pressão
sindical. Outros ainda compartilhavam que rompam a lógica mistificadora
com seus pares e refletiam, direta e objeti- do capital. A maneira de abordar o
vamente, sobre as questões educativas assunto é, de fato, tanto a esperança
mais amplas, como qualidade de ensino, como a garantia de um possível êxito.
organização das estruturas escolares, (MÉSZÁROS, 2008, p. 48).
recursos materiais e pedagógicos para o As greves como resultado de ação
exercício de uma prática educativa que conjunta serviram para muitos, como
realmente fosse capaz de atingir aos ideais aprendizado e superação de medos, pois
de formação pessoal e social. ao se perceberem como sujeitos de um
A adesão às greves não era unâni- acontecimento democrático, os docentes
me, como já observado. Existiam divergên- ganhavam um quesito a mais em sua
cias, e era comum nas escolas alguns para- formação.
rem e outros não. Muitos tinham medo do A greve apresenta um conteúdo de
que poderia acontecer, temendo inclusive aprendizagem, um processo em que
perder o emprego. Outros não pensavam a informação e o conhecimento apa-
em arriscar, com faltas sucessivas, o venci- recem como elementos de construção
mento de adicionais, licença-prêmio e de uma relação de confiança entre
contagem de tempo para a aposentadoria. os professores da escola e também
Eram questões singulares, pessoais que entre estes e a direção do movimento
se sobrepunham aos anseios coletivos e grevista. O medo e a insegurança que
ao próprio entendimento da identidade acompanham qualquer trabalhador
profissional. no momento de tomar a decisão
Para além das questões financeiras, sobre a adesão ou não à greve, tam-
bém são sentidos pelos professores.
as grandes mobilizadoras dos movimentos
(SOUZA, 1996, p. 148).
de paralisação, convém destacar que, como
resultado agregado ao posicionamento Muitos professores tinham a consciên-
docente, as greves levaram a público a cia de que a greve de professores por si só
problemática educativa com todos os seus já era uma vitória, no sentido de mostrar
limites, deram maior visão de mundo para para a sociedade os problemas da educa-
os professores possibilitando-lhes discutir ção pública e também suas condições de
em salas de aulas questões mais amplas, trabalho. Abria para a sociedade aspectos
relacionadas a políticas salariais do país, frágeis do contexto escolar e mostrava sim
organização dos trabalhadores, democra- que se por um lado, o objetivo de educação

126 Antonio de P. ALMEIDA; Vania Regina BOSCHETTI. Docentes paulistas e atuação política no...
de qualidade deveria ser conquistado por turas analíticas. Na perspectiva teórica deste
todos os segmentos sociais, por outro, os artigo, pode-se destacar aquela representada
professores deveriam ser entendidos e res- pelos pensadores de esquerda, críticos do
peitados como profissionais no exercício de capitalismo e comprometidos com ideais
sua prática e não como missionários dispos- voltados ao socialismo. Para eles essa
tos a todos os sacrifícios. No momento em crise na educação era inerente ao sistema
que a sociedade caminhava para retornar capitalista, que queria perpetuar a domi-
ao estado de direito buscando a moderni- nação sobre as classes trabalhadoras, não
zação das esferas políticas, administrativas possibilitando sua emancipação através de
e sociais, inclusive pelo avanço tecnológico, uma educação de qualidade. O acúmulo
a educação não poderia retroceder ainda de problemas era tanto, que só podia ser
mais, nos seus valores e na operacionaliza- explicado dessa forma.
ção das suas finalidades. Entretanto, O quadro a que está reduzida a
O governo militar não teve na edu- escola pública é melancólico: desin-
cação, seu principal objetivo ou prio- teresse dos governos, professores
ridade e quando deliberou sobre ela mal remunerados, despreparados,
o fez em função de determinantes desanimados; crianças famintas,
políticos e econômicos destinados a precocemente envolvidas no trabalho
adaptação do país mais ao desenvol- ou na marginalidade, empobrecidas
vimento capitalista internacional do culturalmente face às suas condições
que ao seu próprio desenvolvimento. de vida, prejudicadas escolarmente
(BOSCHETTI, 1993, p.141). por uma escola inadequada; esco-
O discurso oficial não condizia com las sujas, vidros quebrados, falta de
recursos didáticos etc. Ou seja, os
a realidade. Políticos faziam discursos co-
governos estão deixando que a escola
locando a educação como prioridade, e a permaneça numa agonia sem fim,
própria Constituição delegava à educação não para matá-la, mas para mantê-
o dever de preparar os indivíduos para a ci- la dentro dos limites mínimos de
dadania, através da emancipação humana. sobrevivência, tal como vem fazendo
Mas como conseguir esse objetivo com o povo. Não está nos planos dos
constitucional com a real situação da escola governos a elevação da qualidade da
pública? Os problemas eram tantos que colo- escola, porque não interessa à classe
car a culpa só nos professores acusando-os dominante a formação cultural verda-
de despreparados e corporativistas, tentando deira que libertaria os indivíduos e
desqualificar suas greves, não tinha sentido. possibilitaria a tomada de consciência
O problema atingiu tamanha proporção que dos mecanismos de dominação capi-
talista. (LIBÂNEO, 2002, p. 80).
levou a ampla abordagem social por parte
daqueles que se propunham a analisá-lo, A organização dos professores nesse
o que foi feito por segmentos acadêmicos, período foi marcada pela luta de reivindi-
sociais e econômicos. Dividiram-se as pos- cações de melhoria salarial e também pela

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 119-132, jan./jun. 2012. 127


cobrança de uma escola pública com con- Pedagógicas) continuou a executar o
dições de atender a todos com qualidade. projeto de elaboração dos “Subsídios
Paradoxalmente, quando as autoridades po- para a implantação dos guias curricu-
líticas falavam em uma escola para atender lares”. Os subsídios foram elaborados
com uma linguagem bem coloquial,
a todos, o que se via era uma escola públi
pois apresentaram-se sob a forma de
ca carente de recursos, com limites pedagó- manuais para o professor, como um
gicos e até físicos. Diante desse quadro, os “receituário”, indicando a distribuição
professores reagiram e se organizaram nes- do conteúdo, do tempo, a avaliação e
se sentido. Nas reivindicações da categoria, até palavras que o professor deveria
sempre constava a cobrança pela melhoria usar. Era enorme, portanto, o grau de
da escola pública. detalhamento e especificação, bus-
cando direcionar e controlar a prática
A organização dos educadores na docente. (GARROSSINO, 2007, p. 16).
referida década pode, então, ser ca-
racterizada por meio de dois vetores Essa política educacional implanta-
distintos: aquele caracterizado pela da pelo Estado reduzia a autonomia do
preocupação com o significado social professor em sala de aula, pois esse pro-
e político da educação, do qual de- fissional tinha seu trabalho orientado por
corre a busca de uma escola pública teorias alheias à prática docente cotidiana
de qualidade, aberta a toda a popu- e, muitas vezes, até mesmo sem perceber,
lação e voltada precipuamente para transmitia a ideologia dominante, represen-
as necessidades da maioria, isto é, a
tada pelas diretrizes impostas pelo Estado.
classe trabalhadora; e outro marcado
pela preocupação com o aspecto Um dos aspectos decisivos do processo
econômico-corporativo, portanto, de de redução da autonomia do trabalho
caráter reivindicativo, cuja expressão docente na rede pública do estado de
mais saliente é dada pelo fenômeno São Paulo é o fato de que a produção
das greves [...]. (SAVIANI, 2010, p. 404). teórica que orienta este trabalho ocorre
quase que invariavelmente fora da
Apesar dessas manifestações e da prática docente cotidiana, pelo menos
organização dos professores em torno em nível do trabalho docente na escola
da APEOESP, os professores continuaram básica. Na condição de trabalhador o
alheios a políticas educacionais e pedagó- professor acaba aceitando esta pseu-
gicas elaboradas pelos representantes do doteoria sem se aperceber muitas
Estado e dirigidas aos professores, para vezes que se transformou em um
que estes simplesmente a cumprissem. “hospedeiro da ideologia dominante”.
Este fenômeno leva a uma falsa expec-
Já no início da década de 1980, surgiram
tativa de que a teoria que é produzida
iniciativas governamentais no sentido de no exterior da prática docente possa
revisão e reformas curriculares. dar conta dos problemas concretos da
No início dessa década, a CENP (Co- prática educativa cotidiana. (NOTÁRIO,
ordenadoria de Estudos e Normas 2007, p. 88-9).

128 Antonio de P. ALMEIDA; Vania Regina BOSCHETTI. Docentes paulistas e atuação política no...
Durante a década de 1980, e apesar as esferas, porém, com o afastamento
de o estado estar sendo governado desde do sindicato da base da categoria,
1983 pelo mesmo partido, a Secretaria sobretudo com o aprofundamento
de Educação do Estado de São Paulo do sindicalismo de massa que privi-
enfrentou dificuldades na condução do legiou, sobretudo após 1986, a luta
salarial e a estratégia de mobilização
sistema de ensino. Isso em parte se deveu
da categoria como grupo de pressão,
aos graves problemas em que se encon- fez com que os Congressos se tor-
trava a educação paulista, e também à nassem arena de conflitos viscerais
organização combativa dos professores entre as correntes sindicais atuantes
que realizaram várias greves, cobrando na APEOESP.
melhorias de salários, de trabalho e da
Assim, os Congressos Estaduais,
educação pública.
tornaram-se momentos de debate e
Passaram pelo governo do Estado disputa de projetos de sociedade, de
de São Paulo, no período de 1983 a sindicato, de luta, entre militantes. Este
1990, dois governadores do mesmo fator é importante, pois condiciona a
partido político, Partido do Movimento formulação dos textos-tese apresen-
Democrático Brasileiro (PMDB). Esse tados aos congressistas. (GOULART,
poderia ser um fator positivo para a 2004, p. 165).
continuidade das políticas educacio-
nais implantadas no Estado de São Apesar das divergências entre as
Paulo, entretanto, a administração da correntes internas, as resoluções dos
Secretaria Estadual da Educação, nes- Congressos apresentavam propostas
se período, passou por sete secretários, tidas como de esquerda ou no mínimo
comprometendo, dessa forma, a con- de centro-esquerda, marcando oposição
tinuidade administrativa e as políticas ao governo em vários aspectos e, dessa
educacionais. (CASADO, 2006, p. 54). forma, colocando a APEOESP na luta por
Os professores, ao mesmo tempo mudanças sociais amplas, não se limitan-
em que se organizavam para combater a do apenas a questões corporativas. Como
política educacional do Estado e pressionar exemplo dessa postura, a resolução do
o governo a atender suas reivindicações, 6o Congresso Estadual da APEOESP, que
caminhavam para uma grande divergência aconteceu em outubro de 1985, na Cidade
interna, com formação de várias correntes de Bauru, interior do Estado de São Paulo,
políticas, cuja ideologia teórica e métodos e que tratava da questão da dívida externa
de organização eram conflitantes. do país e da relação com o Fundo Monetá-
rio Internacional (FMI), da seguinte forma:
Durante a década de 80, os Con-
gressos Estaduais foram momentos A APEOESP deve se posicionar pelo
privilegiados para a avaliação e for- não pagamento da dívida externa,
mulação de propostas do sindicato mas deve assumir a posição da Con-
às políticas governamentais em todas ferência Sindical Latino-Americana

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 119-132, jan./jun. 2012. 129


e Caribenha contra a dívida externa para ser trabalhado com os alunos (CON-
e rompimento com o FMI, em uma GRESSO). Tal prática tinha como base a
grande articulação intersindical e ideia de que a escola é um espaço onde
popular supra-partidária; organizar também acontece a luta de classes, mes-
um grande movimento que cobre e mo que a comunidade escolar não tenha
dê sustentação a uma nova política
consciência disso.
econômica contra a dívida externa,
que rompa com o FMI. O espaço escolar é um espaço de
interesses distintos de classe: é um es-
Encaminhamentos: elaborar um do-
paço de lutas de classes, pois, mesmo
cumento com linguagem popular
que os professores não tenham cons-
sobre o tema da Dívida Externa para
ciência de sua condição de classe,
os professores utilizarem em sala de
ele está submetido objetivamente às
aula. (CONGRESSO..., 1985, p. 07).
necessidades de reprodução amplia-
Nesse mesmo Congresso, foi aprova- da do capital. Mesmo não produzindo
da uma posição sobre a Reforma Agrária, diretamente mais-valia o professor
em oposição ao projeto do Governo Sarney. contribui para a formação da força
de trabalho desenvolvida no interior
A APEOESP, ao lado da CUT e do das escolas que vai ser explorada
Movimento Popular, deve manifestar nos diversos setores da economia.
a sua oposição ao projeto demagó- (NOTÁRIO, 2007, p. 103).
gico de Reforma Agrária do Governo
Sarney e insistir na luta por uma Outra questão importante a ser des-
nova política agrícola e por uma tacada é que, enquanto sindicato oficial
Reforma Agrária radical, sob controle que representa os professores, a APEOESP
dos trabalhadores, não incluindo na nem sempre tinha suas posições aceitas
distribuição as terras que representam por toda a categoria, pois muitos profissio-
os interesses de vida, sobrevivência e nais permaneciam avessos a às discussões
cultura dos povos indígenas (alertan- que aconteciam no âmbito da entidade, e
do para a necessidade imediata de muitos sequer concordavam com sua prá-
ampliação das terras demarcadas).
tica. Mesmo nos momentos de luta como
Encaminhamento: a APEOESP deve as greves, muitos professores não aderiam
fornecer subsídios e promover de- aos movimentos por convicção contrária
bates sobre a Reforma Agrária, e à prática e também por divergirem do
participar da Campanha Nacional movimento sindical, como anteriormente
pela Reforma Agrária. (CONGRESSO...,
argumentado.
1985, p. 07).
No interior da APEOESP, e como fator
O posicionamento da APEOESP era de luta interna, alguns grupos consideravam
divulgado nas escolas, através de debates que a entidade precisava passar por um
organizados por seus militantes e em processo de democratização, superando a
formas de material impresso diversificado divisão entre os que dirigiam a entidade e

130 Antonio de P. ALMEIDA; Vania Regina BOSCHETTI. Docentes paulistas e atuação política no...
os grupos de oposição, para se promover Pode-se concluir que as dificuldades
uma prática sindical unitária, e dessa forma materiais enfrentadas pelos docentes fez
atingir os interesses do conjunto dos pro- com que esses profissionais se organizas-
fessores. A tese “Por uma APEOESP unitária, sem coletivamente para lutar por melhores
democrática e de lutas” apresentada no XIII condições de vida. E por meio dessas lutas,
Congresso da entidade, em agosto de 1994, iniciadas por pela busca de melhorias sa-
chamava a atenção para esse ponto. lariais, os professores foram se conscienti-
Consideramos extremamente impor- zando politicamente e passaram a almejar
tante construir uma prática sindical conquistas mais amplas como: a melhoria
que busque a ampla unidade e do ensino, melhor distribuição de renda no
democracia da categoria. Essa é a país, reforma agrária etc. O envolvimento
única forma de forjarmos a força ne- do sindicato dos professores com questões
cessária para lutarmos pelas nossas sociais amplas, opinando sobre assuntos
reivindicações. Infelizmente a prática políticos que envolvem a sociedade, contri-
hoje instalada na APEOESP divide
buiu para algumas modificações sociais. E
artificialmente a categoria impondo
um muro entre aqueles alinhados a participação dos professores nessas dis-
à “diretoria” e aqueles alinhados ao cussões do sindicato, na escola junto com o
“movimento de oposição”, criando um corpo docente, alunos e comunidade escolar,
ambiente de patrulhamento político, demonstrava empenho no fortalecimento
sectarismo e divisão que prejudica a dos movimentos sociais e da participação
ampliação e fortalecimento do sin- da escola para a vida além dos seus muros.
dicato, impedindo na prática o livre Portanto pode-se dizer que a atuação políti-
debate de idéias e o diálogo entre as ca docente nesse período foi rica, superando
diferenças. Por isso, um dos nossos
em parte as deficiências de formação profis-
principais objetivos é construir uma
prática sindical unitária, democrática
sional e política, e deu grande contribuição
e ligada aos interesses do conjunto para o processo de redemocratização pelo
dos professores. (TESES..., 1994, p. 15). qual o país estava passando.

Referências

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ABATIDOS, professores pensam em voltar. Cruzeiro do Sul, Sorocaba, SP, ano 86, n. 24.614, p.
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BOSCHETTI, Vania Regina. A universidade brasileira do pós-64. 1993. Dissertação (Mestrado) –
Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), Piracicaba, SP, 1993.
CASADO, Maria Inês Miquelato. O sistema de ciclos e a jornada de trabalho do professor do
estado de São Paulo. 2006. 110 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Ciências
Humanas, Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), Piracicaba, SP, 2006.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 119-132, jan./jun. 2012. 131


CHOPIN promete reposição das aulas. Cruzeiro do Sul, Sorocaba, SP, ano 85, n. 24.555, p. 26,
29 abr. 1989.
CONGRESSO ESTADUAL ANUAL DA APEOESP, 6. Caderno de Resoluções. APEOESP em Notícias,
São Paulo, p. 07, out. 1985.
DIVIDIDOS, os professores vão decidir hoje os rumos da greve. Cruzeiro do Sul, Sorocaba, SP,
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FERREIRA JR, Amarilio; BITTAR, Marisa. A proletarização dos professores. Educação e Sociedade,
v. 27, n. 97, set./dez. 2006. Campina, SP. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br >. Acesso
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GARROSSINO, Silvia Regina Barbosa. A contribuição de Dermeval Saviani no Conselho Estadual
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culdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, SP, 2007.
GOULART, Débora Cristina. Entre a denúncia e a renúncia: “A APEOESP (Sindicato dos Professores
do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) frente às reformas na educação pública na gestão
Mário Covas (1995-1998)”. 2004. 226 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) –Departamento de
Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas,
UNICAMP, Campinas, SP, 2004.
LIBÂNEO, José Carlos. Democratização da escola pública: a pedagogia crítico-social dos conte-
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MAGISTÉRIO EM GREVE. Cruzeiro do Sul, Sorocaba, SP, ano 85, n. 24.555, p. 02, 25 abr. 1989.
MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. 2. ed. Tradução de Isa Tavares. São Paulo:
Boitempo, 2008.
NOTÁRIO, Antonio Carlos Soler. Autonomia do trabalho docente na rede pública paulista: política
educacional e resistência sindical. 2007. 137 f. Dissertação (Mestrado em Educação) –Faculdade
de Educação e Letras, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, SP, 2007.
SAVIANI, Dermeval. História das idéias pedagógicas no Brasil. 3. ed. Campinas, SP: Autores
Associados, 2010.
SOUZA, Aparecida Neri de. Sou Professor, Sim Senhor!: representações do trabalho docente.
Campinas, SP: Papirus, 1996.
TESES para o XIII Congresso da APEOESP. Caderno de Teses. Educação no Centro das Atenções:
uma urgência nacional. São Paulo, agosto 1994.

Recebido em abril de 2012


Aprovado para publicação em maio de 2012

132 Antonio de P. ALMEIDA; Vania Regina BOSCHETTI. Docentes paulistas e atuação política no...
Professor iniciante: o ser e estar na profissão docente
Beginner teacher: permanently or temporarily in the
teaching profession
Marta Regina Brostolin
Pedagoga, Mestre em Educação (UCDB), Doutora em
Desenvolvimento Local pela Universidade Complutense
de Madri/Espanha, atua na graduação e pós-graduação
Programa de Educação – Mestrado e Doutorado da Uni-
versidade Católica Dom Bosco. E-mail: brosto@ucdb.br

Resumo
Atualmente, muitos são os desafios enfrentados pelos professores mediante as condições de formação e
trabalho, condições essas que são objeto de um vasto campo de investigação que gera conhecimentos
e que auxilia os profissionais a refletirem sobre suas práticas e a construção de sua identidade e saberes
profissionais. Nessa perspectiva, apresentamos um recorte de uma pesquisa-formação, de abordagem
autobiográfica, desenvolvida por um grupo colaborativo interinstitucional formado por acadêmicos con-
cluintes em estágio/pré-serviço do curso de Pedagogia de universidades públicas e privadas, professores
iniciantes da Rede Municipal de Ensino, professores formadores e pesquisadores. A operacionalização
do projeto ocorre por meio de encontros mensais cujas pautas são planejadas e elaboradas previamente
pelo coletivo de professores formadores que destacam os referenciais teóricos promotores de reflexão
e discussão a serem desenvolvidos. O recorte aqui apresentado tem por objetivo analisar as narrativas
de professores iniciantes que atuam na educação infantil com a finalidade de discutir o ser e estar na
profissão docente. Os achados da pesquisa evidenciam que a identidade não é algo adquirido ou uma
propriedade ou produto, é um lugar de lutas e conflitos, um espaço de construção de maneiras de ser e
estar na profissão. É uma construção que permeia a vida do professor com destaque para o momento
de escolha da profissão, da formação inicial e pelos diferentes espaços institucionais onde se desenvolve
a profissão.
Palavras-chave
Pesquisa-formação. Professor iniciante. Ser e estar na profissão docente.

Abstract
At the moment there are many challenges facing teachers due to the conditions and training for work,
which conditions are the object of a vast field of investigation which generates knowledge and that helps
professionals to reflect on their teaching practice and the construction of their identity and professional
knowledge. From this perspective this article presents a part of the research done into training with an
autobiografical approach, developed by an institutional group of collaborators made up of final year
students in the phase of teacher training from the Pedagogy course from public and private universities,
teachers initiating their career in the Municipal Teaching Network, university teachers and and researchers.
The project is brought about by way of monthly meetings the agenda of which is planned and previously
elaborated collectively by university teachers who bring out theoretical references which promote reflection
and discussion to be developed in the meeting. The part here presented aims at analyzing the narratives

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 133-141, jan./jul. 2012
from teachers initiating their career who work in infant education with the aim of discussing being in
the teaching profession and continuing in the teaching profession. Results of the research give evidence
of the fact that identity is not something acquired or a property or a product, it is a place of struggles
and conflicts, a space in construction of ways to be in and to continue in the teaching profession. It is
a construction that permeates the life of the teacher with emphasis on the moment of the choice of the
profession, the initial training and the different institutional spaces where the profession is developed.
Key words
Research on training. Beginner teacher. Permanently or temporarily in the teaching profession.

Considerações Iniciais vasto campo de investigação que gera


conhecimentos e que auxilia os profissio-
As aceleradas transformações pelas nais a refletirem sobre suas práticas e a
quais o mundo vem passando a partir das construção de seus saberes profissionais.
últimas décadas do século XX afetaram Nessa perspectiva, os conheci-
substancialmente a Educação, tornando-a mentos produzidos em investigações de
mais complexa. Consequentemente, se a professores, a partir da reflexão sobre
educação está mais complexa, o mesmo a própria prática, possuem um caráter
deverá ocorrer com a profissão docente, distinto daquele dos acadêmicos, por
pois a sociedade, de uma forma geral, mostrarem com mais propriedades, sob
deposita inúmeras expectativas em relação o olhar específico dos professores, os
à docência como profissão. dilemas, o cotidiano, as dificuldades, os
Nesse cenário, o professor não pode pensamentos, os valores, hipóteses e
mais ser entendido como aquele que teorias que embasam esses profissionais
domina os conteúdos das disciplinas e a em suas práticas pedagógicas (ZEICHNER
técnica para transmiti-la. Espera-se que apud SUDAN, 2005).
o profissional da educação, em qualquer A reflexão sobre a prática constitui-se
nível de ensino, forme cidadãos criativos, num movimento de apropriação do sentido
atualizados e preparados para viver, da docência, possibilitando “terreno fértil”
conviver e atuar criticamente no mundo para a construção de autonomia profissio-
globalizado e tecnológico. Agora, exige-se nal. Os professores tornam-se mais cons-
que o professor saiba lidar com um conhe- cientes “do que e por que fazem e o que
cimento em construção, que seja capaz fazem” e dos conhecimentos que produ-
de trabalhar em grupo, conviver com as zem no ambiente escolar. Mais autônomos,
mudanças emergentes e com as incertezas desenvolvem maior poder de escolha e de
de um novo papel social de sua profissão. decisão em suas práticas, escolhem onde
Atualmente, muitos são os desafios e como aplicar os resultados da pesquisa
enfrentados pelos professores mediante que estão realizando e tornam-se capazes
as condições de formação e trabalho, de transcender o imediato e o individual
condições essas que são objeto de um (ZEICHNER apud SUDAN, 2005, p. 12).

134 Marta Regina BROSTOLIN. Professor iniciante: o ser e estar na profissão docente
É a partir deste panorama que o relação entre as pessoas, considerando as
presente texto, recorte de uma pesquisa em expressões das culturas locais, os saberes
andamento, se propõe a analisar as narra- que cotidianamente são produzidos nas
tivas de professores iniciantes que atuam práticas educativas por aqueles que as
na educação infantil com a finalidade de fazem.
discutir o ser e estar na profissão docente. Nesse sentido, os espaços educati-
vos devem favorecer a vivência e o apren-
A pesquisa: contexto e método dizado da diversidade, o convívio com as
diferenças, as práticas coletivas, solidárias
Para Leitão (2004), a pesquisa-for- e fraternas, possibilitando o exercício da
mação se constitui em espaços de media- reflexão, da discussão. Se o que dá sentido
ção entre as práticas e a necessidade de à busca é a possibilidade de encontro, e
refletir e teorizar sobre a ação, sendo este entendendo a educação como um espaço
seu maior sentido e significado. A palavra que permite o encontro, a convivência
formação muitas vezes tem um sentido entre diferentes pessoas, essa questões
simplista e limitado quando se refere a precisam permear esse espaço para que,
algo externo ao sujeito e localizado somen- discutidas coletivamente, possam de fato
te no conhecimento ou naquele que o contribuir para o alargamento do que
transmite, que se fundamenta nas mais somos e do que sabemos, diminuindo
altas teorias, em conteúdos atualizados e nossa ignorância a respeito daquilo que
que, só a partir desses percursos, chega desconhecemos e nos enriquecendo nesse
à ação. encontro com os outros, outros que tam-
Entretanto o que se observa é que bém somos nós (LEITÃO, 2004).
nem sempre essas referências trazem Para Nóvoa (1999), nos últimos anos,
modificações substanciais às práticas, tem-se insistido no que se refere aos pro-
nem garantem uma relação afetiva, um gramas de formação de professores, seja
melhor desempenho no aprendizado ou na formação inicial ou continuada, em
uma prática mais democrática, se os pro- cursos que apresentam tendências claras
fessores não estiverem sensibilizados e para a escolarização e para a academiza-
sentirem necessidade de participar dessa ção. Nesse caminho, os resultados condu-
mudança. Portanto são os professores que ziram novamente a uma memorização dos
podem contribuir revelando o que sabem, professores ante os grupos científicos e as
o que desejam, o que querem, o que não instituições universitárias.
querem, o que necessitam, contribuindo O desafio então é encontrar outra
com o que tem a dizer, com o que fazem e concepção que situe o desenvolvimento
como pensam e representam o que fazem. pessoal e profissional ao longo dos dife-
Para a autora, os processos de for- rentes ciclos da sua vida e que contemple
mação estão relacionados ao que saber, a construção de lógicas de formação
por que saber e aos modos de saber na que valorizem a experiência como aluno,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 133-141, jan./jun. 2012. 135


como estagiário, como professor iniciante pautas dividem-se em três eixos, a saber:
e professor experiente e encontrar proces- identidade profissional, trabalho docente e
sos que valorizem a sistematização dos prática pedagógica.
saberes próprios, a capacidade para trans- O recurso utilizado para dar sus-
formar a experiência em conhecimento e tentação às reflexões é o da produção
a formalização de um saber profissional de narrativas autobiográficas que são
de referência. Para o autor, as abordagens estimuladas através de recursos mnemô-
autobiográficas, as práticas de escrita pes- nicos, tais como fotos, filmes, objetos etc,
soal e coletiva e o estímulo a uma atitude e sistematizados na forma de diários des-
de investigação deveriam fazer parte de critivos reflexivos. Isso não quer dizer que
uma concepção abrangente de formação se referem apenas ao nível de descrição
de professores. de experiências docentes, mas sim, que
Nessa perspectiva, tratando-se de as narrativas devem ser produzidas com
uma pesquisa-formação, em que os sujei- o objetivo de o professor pensar em si
tos, segundo Josso (2004), são ao mesmo mesmo, desenvolvendo uma atitude inves-
tempo sujeitos da pesquisa e se formam tigativa e escutando o que seus pares têm
nela, o objeto de estudo volta-se então a dizer através de situações de troca de
para os profissionais da educação infantil experiências no grupo.
considerados iniciantes (HUBERMAN, O acompanhamento e a avaliação
2007), em torno de vinte, que compõem do percurso do grupo são realizados
um grupo colaborativo interinstitucional mediante registros escritos e gravados
constituído por acadêmicos concluintes em de todos os encontros dos participantes,
estágio/pré-serviço do curso de Pedagogia para análise e discussão no coletivo. A
de universidades públicas e privadas, pro- metodologia escolhida visa ser formativa
fessores iniciantes da Rede Municipal de e investigativa para todos os participantes,
Ensino, professores formadores e pesqui- portanto as necessidades e dificuldades
sadores. O objetivo da pesquisa é construir que surgem no desenvolvimento do tra-
diálogos que articulem teoria e prática na balho são ajustadas ao longo dele e não
formação inicial e no exercício profissional só em seu final.
da docência, através de acompanhamento O desafio, portanto, consiste em se
pedagógico, investigação e construção/ fazer fazendo, nos modificarmos no próprio
aplicação de tecnologias sociais para a percurso, refletindo sobre essa trajetória
formação docente. A operacionalização coletivamente, considerando que é a partir
do projeto ocorre por meio de encontros do desejo e dessa luta que podemos, com-
mensais cujas pautas são planejadas e prometidamente, refazer caminhos, desco-
elaboradas previamente pelo coletivo de brir as alternativas que já se anunciam e
professores formadores que destacam os criar outras possibilidades que precisam
referenciais teóricos promotores de reflexão de tempo para amadurecer.
e discussão a serem desenvolvidos. As

136 Marta Regina BROSTOLIN. Professor iniciante: o ser e estar na profissão docente
Achados da pesquisa: processos de formação continuada que lhes per-
de desenvolvimento profissional de mita, por meio da transformação do seu
professores iniciantes de educação sistema de crenças, da melhoria do seu
infantil – o ser e estar na profissão autoconhecimento, da sua autoestima e
autoconceito, tornarem-se mais abertos à
Entendendo o termo profissão como mudança e desenvolverem-se pessoal e
uma palavra de construção social que profissionalmente.
requer formação profissional para o seu Nesse processo, Imbernón (2010)
exercício, Veiga (2008) compreende que a afirma que é imprescindível uma alternati-
formação de professores constitui o ato de va de formação que aceite a reivindicação
educar o futuro profissional para desem- da subjetividade dos professores, da
penhar a tarefa de educar, de ensinar, identidade docente como dinamismo da
de aprender, de pesquisar e de avaliar. forma de ver e de transformar a realidade
Portanto essa formação articula-se com social e educacional e seus valores, e da
as escolas, com seus projetos, com a con- capacidade de produção de conhecimento
solidação de um profissional autônomo e educativo e de troca de experiências.
construtor de saberes e valores próprios. Para o autor:
Estudos indicam que os primeiros
[...] o (re)conhecimento da identidade
anos da profissão representam um período
permite melhor interpretar o trabalho
intenso de aprendizagens e influenciam docente e melhor interagir com os
não apenas a permanência do professor outros e com a situação que se vive
na carreira, mas também o tipo de profes- diariamente nas instituições esco-
sor que virá a ser. Durante esse percurso, o lares. As experiências de vida dos
professor enfrenta diferentes necessidades, professores relacionam-se às tarefas
problemas, expectativas, desafios, dilemas profissionais já que o ensino requer
e vai construindo seu conhecimento e uma implicação pessoal, portanto, a
identidade profissional. formação baseada na reflexão será
Nesse contexto, os professores que um elemento importante para se
iniciam na profissão precisam aprender a analisar o que são ou acreditam ser
os professores e o que fazem e como
gerir seus dilemas, próprios de sua ativi-
fazem. (IMBERNÓN, 2010, p. 79).
dade profissional, sem que se tornem uma
fonte de frustrações, ansiedades ou, em Essas indagações propostas por
última análise, desmotivação profissional. Imbernón também se encontram subja-
Nessa perspectiva, torna-se necessário cente à problemática da investigação cujas
que os professores iniciantes sintam a narrativas escritas durante o segundo
necessidade de elaborar e desenvolver, encontro do primeiro eixo, ou seja, identi-
em consonância com as características dade profissional, provocaram reflexões
da comunidade escolar em que exercem e discussões pautadas na significação
a sua profissão, o seu próprio projeto social da profissão e professor, ou seja, a

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 133-141, jan./jun. 2012. 137


docência como atividade profissional. Os principalmente merecer o carinho e
relatos abaixo, fragmentos de um universo respeito de meus alunos. (P2)
maior da pesquisa, evidenciam o (re)co- O depoimento acima demonstra o
nhecimento do ser e estar professor dos compromisso da professora com a edu-
docentes iniciantes que atuam na educa- cação, a crença no ser humano e sua
ção infantil da Rede Pública Municipal de disposição para conhecer e compreender o
Campo Grande/MS. aluno, pautada em um componente ético e
Fazendo uma projeção da realidade emocional. Percebe-se seu envolvimento e
vivida atualmente [...] desejo ser iden- preocupação com o coletivo, seu grupo de
tificada como uma pessoa esforçada, pertença profissional buscando integrar-se
que gosta de inovar, de fazer o dife- ao contexto sociopolítico.
rente, de ser diferente. Tenho orgulho
Essa referência, segundo Veiga
da profissão que tenho [...] luto para
que minhas ações em sala com as
(2008), permite vislumbrar que a identida-
crianças sejam capazes de proporcio- de profissional se constrói com base no
nar aprendizagens com significado, significado dos movimentos reivindicató-
contribuindo para o crescimento rios dos docentes e no sentido que o pro-
deles [..]. (P1) fissional confere a seu trabalho, definindo
o que quer, o que não quer e o que pode
Nesse fragmento, a professora de-
como professor.
monstra ter uma relação positiva com a
O relato abaixo sustenta a análise
profissão, mas deixa transparecer certo
anterior:
idealismo ainda remanescente da forma-
ção universitária. Porém, os primeiros anos A formação da criança tem começo
de prática profissional são decisivos na e continuidade na escola, daí a ideia
aquisição do sentimento de competência de que possa ser reconhecida e iden-
tificada como uma profissional que
e no estabelecimento de rotinas e na
oferece oportunidades para que as
estruturação do trabalho docente que se
crianças sejam respeitadas para que
desenvolvem no âmbito de uma carreira sejam indivíduos críticos e participa-
da qual fazem parte dimensões identitárias tivos na sociedade. (P3)
e de socialização profissional.
Essa análise é confirmada pelo Revela também o compromisso
relato abaixo: do professor de educação infantil com a
formação da criança pequena nos seus
[...] talvez por um ideal romântico de diversos aspectos, a saber, físico, social,
acadêmica, quero ser reconhecida
cultural, emocional. Segundo Barbosa
pelo bom envolvimento com as crian-
ças, pela boa prática como professora.
(2009), considerar a ética da responsabili-
Quero também ser merecedora do dade como dimensão articuladora dos
respeito dos meus colegas de traba- princípios educativos e das práticas curri-
lho, meus professores formadores e culares que orientam as bases para as

138 Marta Regina BROSTOLIN. Professor iniciante: o ser e estar na profissão docente
práticas cotidianas na educação infantil Durante meu processo acadêmico,
afirma o compromisso dos docentes com e agora como professora iniciante,
os processos de aprendizagem das crian- sempre desejei ser uma professora
ças, através da convivência comum e das competente, coerente com minhas
ações educativas nela sustentadas. concepções, respeitada e querida
Nessa ótica, a responsabilidade da pelos meus alunos [...] e para alcançar
educação infantil e de seus profissionais este objetivo procuro sempre fazer e
dar o meu melhor [...] buscando cons-
é imensa, porque inclui garantir a saúde
tante estudo, pesquisar e planejar
e a proteção física, bem como os direitos
atividades significativas e prazerosas
básicos de participação e liberdade de para que as crianças se sintam esti-
expressão. Promover uma integração que muladas e provocadas a participarem
articule nas práticas cotidianas a atenção ativamente [...] busco sempre inovar,
compartilhada pela cultura, pela saúde, trazendo recursos e materiais diversos
pela justiça e pela assistência social na [...] só assim poderei fazer a diferença
educação e no cuidado das crianças frente aos meus alunos (P5).
pequenas, modifica a forma como conce- A professora demonstra, em seu
bemos e fazemos acontecer as práticas na relato, a vontade em romper com a inércia
educação infantil. e práticas do passado assumidas passi-
Essa crença no ser e estar docente
vamente como elementos intrínsecos à
também transparece no fragmento abaixo:
profissão. Esta é uma prática muito positiva
[...] quero ser reconhecida como a que pode levá-la a tornar-se uma profissio-
professora que respeita o ser huma- nal que participa ativa e criticamente no
no e que soube só não transmitir verdadeiro processo de mudança a partir
conhecimento científico, mas também
de seu próprio contexto em um processo
valores humanos, ideais e alegria por
ser professora [...] ser referência para dinâmico e flexível.
meus alunos [...] (P4). Outra professora assim se expressa:
Nessa perspectiva, a professora tor- Fui marcada positivamente por al-
na-se um agente dinâmico cultural, social guns professores, então acredito que
posso fazer o mesmo, não quero
e curricular que deve, segundo Imbernón
perder o olhar romântico, desejo conti-
(2010), ter a permissão de tomar decisões nuar me dedicando, apostando que a
educativas, éticas e morais, desenvolver base para um trabalho de qualidade
o currículo em contextos determinados é o amor e o empenho (P6).
e elaborar projetos e materiais didáticos
em colaboração com os colegas sendo a Sabemos que a identidade docente
instituição educativa o centro da profissio- é uma construção que permeia a história
nalização docente. de vida do professor desde os primeiros
O relato abaixo confirma a análise ensinantes e seu processo de escolariza-
acima: ção marcado por trajetórias e experiências

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 133-141, jan./jun. 2012. 139


como aluno. As imagens positivas e ou pelo significado que cada professor dá à
negativas deixadas podem boicotar ou atividade docente no cotidiano, sua visão
não o desejo de ser professor e investir na de mundo, como se situa frente à vida
profissão. É evidente que os percursos e e à profissão, a suas angústias, anseios,
valores pessoais são importantes na confi- saberes e sentidos.
guração do profissional docente, é a partir Nesse processo de construção de
de referenciais diversos que o professor identidade e desenvolvimento profissional,
se apoia para construir sua identidade e a contribuição da pesquisa-formação por
desenvolvimento profissional. meio de grupos colaborativos é fundamen-
tal, pois assume um papel que transcende
Considerações finais o ensino que pretende uma mera atuali-
zação científica, pedagógica e didática e
Parafraseando Nóvoa (1995), a identi- se transforma na possibilidade de criar
dade não é algo adquirido ou uma proprie- espaços de participação, de reflexão e de
dade ou produto. A identidade é um lugar estímulo crítico ao constatar a complexida-
de lutas e conflitos, um espaço de constru- de e contradições da profissão e sociedade.
ção de maneiras de ser e estar na profissão. Finalizando, espera-se que os pontos
É uma construção que permeia a vida do de discussão aqui apresentados possam
professor com destaque para o momento de contribuir e fomentar o debate a respeito
escolha da profissão, da formação inicial e do ser e estar na profissão docente, desta-
pelos diferentes espaços institucionais onde cando a importância do estabelecimento
se desenvolve a profissão. Sua configuração de um diálogo entre pesquisadores, pro-
é marcada pelas opções tomadas e as expe- fessores formadores, alunos-professores,
riências realizadas pautadas por uma ética professores iniciantes e experientes em
e que sofre constante processo de revisão prol de uma formação que busque a
dos significados sociais. emancipação e a consolidação de um
De acordo com Veiga (2008), a coletivo profissional autônomo e construtor
identidade profissional constrói-se também de saberes e valores próprios.

Referências

BARBOSA, Maria Carmem Silveira. Práticas cotidianas na educação infantil – bases para a
reflexão sobre as orientações curriculares. Brasília: MEC/UFRGS, 2009.
JOSSO, Maria Cristine. Experiências de vida e formação. Tradução de José Claudino e Julia Fer-
reira. São Paulo: Cortez, 2004.
HUBERMAN, Michael. O ciclo de vida profissional dos professores. In: NÓVOA, A. (Org.). Vida de
professores. Porto: Porto Editora, 2007.

140 Marta Regina BROSTOLIN. Professor iniciante: o ser e estar na profissão docente
IMBERNÓN, Francisco. Formação continuada de professores. Porto Alegre: Artmed, 2010.
LEITÃO, Cleide Figueiredo. Buscando caminhos nos processos de formação/autoformação. Revista
Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 27, set./out./nov./dez. 2004.
NÓVOA, Antonio. A vida de professores. Porto: Porto Editora, 1995.
______. Os professores na virada do milênio: do excesso dos discursos à pobreza das práticas.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 11-20, jan./jun. 1999.
SUDAN, Daniela Cássia. Saberes em construção de uma professora que pesquisa a própria
prática. 2005. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, 2005.
VEIGA, Ilma. Passos. Profissão docente: novos sentidos, novas perspectivas. Campinas: Papirus,
2008.

Recebido em abril de 2012


Aprovado para publicação em maio de 2012

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Do mal-estar docente ao abandono da profissão
professor: a história de Estela
Of the malaise to abandonment of the teaching
profession: the story of Estela
Flavinês Rebolo
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB).
E-mail: flavines.rebolo@uol.com.br

Resumo
Acreditando que os baixos salários e a desvalorização profissional não são os únicos fatores que
influenciam o mal-estar docente e a evasão de professores, a pesquisa que deu origem ao texto aqui
apresentado teve como objetivo identificar os fatores intervenientes no abandono da profissão. Conside-
rando o abandono da docência como um processo que se desenvolve durante o percurso profissional
do professor, a abordagem metodológica que se mostrou mais adequada foi a das histórias de vida. A
história de Estela, uma entre as dezesseis histórias constantes da pesquisa maior, foi coletada por meio
de entrevista semiestruturada. Com as análises foram identificados os diversos fatores de satisfação e
insatisfação com o magistério e de que forma esses fatores se enredam e se combinam a ponto de
levarem à ruptura definitiva dos vínculos estabelecidos com a escola e com o trabalho docente.
Palavras-chave
Abandono do magistério. Mal-estar docente. Histórias de vida

Abstract
Believing that low wages and professional devaluation is not the only factors that influence teacher
malaise and evasion of teachers, the research that led to the text presented here aimed to identify factors
involved in the abandonment of the profession. Considering the abandonment of teaching as a process
that develops during the course of the teacher, the methodological approach that was more appropria-
te was the life stories. The story of Estela, one of the sixteen stories contained in the larger study was
collected through semi-structured interview. With the analysis identified the various factors of satisfaction
and dissatisfaction with the teaching and how these factors combine and become entangled as to lead
to the final rupture of the bonds established with the school and the teachers’ work.
Key words
Abandonment of the teaching. Teacher malaise. Life stories.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 143-163, jan./jul. 2012
Introdução dependente da situação profissional vivida
no momento da exoneração, mas como
O artigo retrata a trajetória profissio- um processo que se origina a partir do
nal de uma ex-professora a partir da qual mal-estar docente e se desenvolve durante
se discute o mal-estar docente e a constitui- o percurso profissional do professor, a abor-
ção do processo de abandono da profissão dagem metodológica que se mostrou mais
professor. Os dissabores e o desencanto adequada foi a de histórias de vida ou
com o trabalho docente presentes na método autobiográfico (BOURDIEU, 1996;
história de Estela deixam entrever diversos FERRAROTTI, 1988; NÓVOA; FINGER, 1988).
aspectos que geram grande desânimo e a As histórias de vida se constituem em
vontade de ‘largar tudo’. Os baixos salários relatos complexos, em que se entrelaçam a
do magistério público e a desvalorização origem social, os valores, os interesses e as
profissional aparecem com frequência opiniões, os relacionamentos interpessoais,
na mídia e na fala de muitos professores, enfim, tudo o que, de uma forma ou de
fazendo-nos acreditar, num primeiro mo- outra, contribui para a constituição do indi-
mento, que estas seriam as únicas causas víduo e o seu modo singular de agir, incluin-
para a evasão dos docentes. Acredita-se, no do, aí, a sua opção pela profissão docente
entanto, que esses fatores não são os úni- e, também, a decisão de deixá-la. Moita
cos que influenciam o mal-estar docente (1992, p. 116) afirma que “só uma história de
e a decisão de abandonar a profissão, e vida põe em evidência o modo como cada
que o abandono da docência é resultado pessoa mobiliza os seus conhecimentos, os
de um processo muito mais complexo, seus valores, as suas energias, para ir dando
no qual à influência de fatores externos forma à sua identidade, num diálogo com
somam-se as características individuais os seus contextos”. Os relatos de histórias
de cada professor, as suas representações de vida também permitem o afloramento de
sobre o trabalho que realiza e o seu projeto fatos e experiências únicas da vida profis-
de vida. Nesse sentido, a pesquisa que sional de cada professor possibilitando que
deu origem ao texto aqui apresentado se desvele, através das “relações sutis que
teve como objetivo delimitar e caracterizar [os] articulam, e que há que desvendar, [...]
a evasão de professores, fenômeno que traços profundos de unidade que estrutu-
vem se acentuando nos últimos anos e, ram todos os destinos pessoais” (CAVACO,
também, identificar, para além dos baixos 1993, p. 15) Isso possibilita situar o processo
salários e da desvalorização do professor, de abandono no âmbito de processos mais
outros fatores presentes nessa rede de amplos da história da profissão docente no
conexões que chamamos de processo de Brasil e de processos pertinentes às rápidas
abandono e que é formada durante a vida e profundas transformações da sociedade
profissional do professor. contemporânea.
Buscando examinar o abandono da A história de Estela, uma entre as de-
docência não como um ato isolado, apenas zesseis histórias de vida de ex-professores

144 Flavinês REBOLO. Do mal-estar docente ao abandono da profissão professor: a história...


da Rede Estadual de Ensino de São Paulo para a ruptura definitiva dos vínculos es-
que participaram da pesquisa maior, foi tabelecidos com a escola e com o trabalho
coletada por meio de entrevista semiestru- docente.
turada que permite ao entrevistado narrar
mais livremente a sua história, fornecendo Sonho e realidade na escolha de ser
elementos importantes para se compre- professora...
ender de que modo determinados fatos,
situações, experiências e sentimentos se A minha opção de ser professora....
enredam e se combinam a ponto de pro- Bem... eu resolvi fazer Biologia. Fui
duzirem o mal-estar docente e o abandono para a área de Biologia e falei: ‘Vou
da profissão. ser professora!’
Após a transcrição da entrevista, as Essa decisão de Estela está sendo
análises foram realizadas a partir de duas tomada aos vinte e quatro anos, depois
formas de organização dos dados: uma de já ter ela cursado dois anos do curso
ordenação cronológica e outra temática. de Direito.
Na ordenação cronológica, o relato foi reor-
ganizado a partir de referências temporais O fato de eu ter ido para o Direito é
influência do meu pai, que queria
que se encontravam dispersas ao longo da
que eu fosse advogada. Meu pai era
narrativa. Na ordenação temática, fatos e advogado...
acontecimentos narrados foram reorgani-
zados em função da natureza – pessoal ou O pai advogado, certamente, se
profissional – e da relevância atribuída a constitui em exemplo, em um modo
eles, sendo que o critério para determinar possível de vir-a-ser que agrada Estela.
a relevância dos fatos foi principalmente o Para Bohoslavsky (1977, p. 53) “a escolha
tempo que o professor se demorava nele sempre se relaciona com os outros (reais
e a quantidade de detalhes e pormenores ou imaginados). O futuro nunca é pensa-
que utiliza para descrevê-lo, bem como do abstratamente, nunca se pensa numa
as emoções e os sentimentos que dizia carreira despersonificada”. Além disso,
terem sido desencadeados a partir dessas na história de Estela, aparecem outros
situações. A articulação dessas duas reor- aspectos que dizem respeito aos imagi-
ganizações, realizada através de sucessivas nários sobre as profissões e os modos de
justaposições, permitiram observar os dife- exercê-las que podem ter influenciado a
rentes aspectos que atuaram na escolha não escolha do magistério como primeira
da profissão, as dificuldades enfrentadas opção profissional:
nos primeiros tempos da profissão e os Sabe... existem determinadas famílias
fatores de satisfação e insatisfação com o onde os pais moldam muito, eles
magistério durante o percurso profissional, sonham muito. A minha irmã mais
bem como de que forma esses fatores se velha foi educada para ser médica e
constituíram em elementos importantes eu, que era falante e gostava muito de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 143-163, jan./jun. 2012. 145


ler, fui orientada para ser advogada. hoje, como imposições que a desviaram
Meus pais orientavam a gente para da área de conhecimento e da profissão
ganhar a vida, para sermos profissio- que a atraía: a Biologia e o ser professora.
nais que ganhassem a vida, que não Mas de onde vem o gosto pela Biologia?
dependessem do marido. E a vontade de tornar-se professora?
O sonho dos pais para o futuro Eu gostava de dar aula... Quando eu
das filhas aparece na orientação dada terminei o ginásio eu montava, na
pela família à Estela e, com relação à es- vizinhança, curso de alfabetização
colha profissional, contém dois aspectos para empregada doméstica... não ti-
valorativos: as representações acerca das nha método nenhum mas eu gostava,
qualidades pessoais necessárias para o eu sentia que eu gostava.
exercício de uma determinada profissão Ah! eu lembro... era sempre um profes-
e a possibilidade de se autossustentar sor... eu lembro bem do curso de Ciên-
financeiramente com essa profissão. Mas cias. Sempre o pessoal de Ciências
a influência do grupo familiar não se faz me chamava muito a atenção, me
apenas pela valoração positiva de deter- encantava... principalmente a parte de
minada ocupação. E, nesse sentido, a par laboratório. Sempre fui monitora nos
laboratórios, ajudava os professores...
da influência que se poderia dizer positiva
Eu gostava muito.
em relação ao Direito, o relato de Estela
mostra uma influência negativa em relação Segundo Bühler (apud BOHOSLAVSKY,
ao magistério: 1977, p. 44), “a vinculação dos indivíduos
Minha mãe queria que a gente se às ocupações passa, evolutivamente, por
sustentasse, que fosse profissional... cinco etapas” e, na primeira delas, que
e professora, nessa época, acho que se estende até por volta dos 14 ou 15
já não era assim... não era uma pro- anos, “predominam, sucessivamente, as
fissão. Era uma profissão feminina. fantasias, os interesses, as capacidades”.
Quer dizer, a mulher podia cuidar dos Ao terminar o ginásio, Estela encontra-se
filhos, cuidar da casa e também ter nesta fase e sente-se capaz de ocupar-se
uma profissão. Mas não servia, para com o ser professora. Há, ainda, o labo-
a gente não servia. ratório, que possibilita uma relação com
Nesse caso, percebe-se que a ques- determinados instrumentos de trabalho
tão da escolha profissional está calcada que a encantam. Esse encantamento
em expectativas que os pais acreditam pode ser resultado das características
que não serão satisfeitas com o magistério. mágicas atribuídas por ela a esses ins-
Assim, antes de decidir-se pela profissão trumentos bem como de sua “posição
docente, há uma recusa dessa mesma de ajudante” do professor, que de certa
profissão. As influências do grupo familiar forma lhe confere uma distinção den-
de Estela, explicitadas até este ponto de seu tro do grupo-classe. Em toda profissão,
relato, passam a ser vistas, pela Estela de como afirma Bohoslavsky (1977, p. 32),

146 Flavinês REBOLO. Do mal-estar docente ao abandono da profissão professor: a história...


“há uma relação com objetos que estão Comecei a dar aula quando estava
‘fora’ do espaço próprio” (outras pessoas, no segundo ano da Biologia. Num
ferramentas, movimentos sociais), e essas colégio particular. Dava aula de Ci-
relações incluem “componentes ou qua- ências para o supletivo de primeiro
lidades mágicas”, que levam as pessoas grau. Depois peguei o colegial e o
curso profissionalizante de Patologia
a sentirem-se onipotentes, a acreditarem
Clínica. Quando terminei Biologia
que, “aprendendo determinadas ações ou estava realmente muito envolvida
movimentos, podem chegar a conseguir com a Educação.
efeitos na realidade”.
O tempo todo que eu dei aula no
Frequentei muito movimento estudan- particular eu fui muito feliz. No co-
til e eu achava que para se mudar meço, meu filho era bem pequeno e
alguma coisa neste país tinha que eu o deixava com a empregada, às
ser através da educação. Então foi vezes com febrinha. Podia até ir dar
um dos grandes objetivos... mudar as aula preocupada, mas a hora que
coisas através da educação... Isso teve eu pisava na sala de aula... Eu fui
muita influência, eu fui bem militante muito feliz nessa escola. Eu adorava!
do movimento estudantil... Fazia passeios, levava os alunos no
Butantã, no museu de Zoologia, pla-
O encantamento com a Biologia e
nejava atividades extracurriculares...
com o ser professora, o sentido de coope-
Me sentia muito bem.
ração social e de utilidade que enxerga
na profissão docente acabam por gerar Estela tem um grau de autonomia
um conflito, pois estão em desacordo com dentro da escola que lhe permite organizar
os valores familiares relacionados ao ma- o seu trabalho da maneira que entende
gistério. Esse conflito, que de certa forma ser a melhor. Ainda que, obviamente, deva
foi negado, fica em estádio letárgico, não cumprir horários e exigências burocráticas
resolvido, e ela vai fazer o curso de Direito, da escola, o espaço de liberdade que possui
que lhe oferecerá uma “profissão de verda- para gerir o trabalho pedagógico permite
de”, um meio satisfatório de subsistência que coloque em prática alguns de seus
e, principalmente, um não confronto com ideais ou de suas representações sobre os
a família. No segundo ano do curso de objetivos da educação. Sente-se integrada
Direito, após casar-se, decide: “...Vou ser ao ambiente da escola e também aceita
professora!” Faz o vestibular novamente e pelos colegas e diretor, aspectos que deter-
ingressa no curso de Biologia. minam, em grande medida, a satisfação e
o envolvimento com o trabalho. Huberman
O início da docência... (1992, p. 39), ao analisar o ciclo de vida
profissional dos professores descreve sete
O início na profissão se deu, para fases, sendo que a primeira (a entrada na
Estela, em uma escola particular, antes de carreira) é percebida em sua globalidade
ter concluído o curso de formação. como uma fase positiva, embora tenha um

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 143-163, jan./jun. 2012. 147


estádio que ele denomina de “sobrevivência” levam-na a reafirmar sua decisão de ser
e que “traduz o que se chama vulgarmente professora e, como consequência, se en-
o ‘choque com o real’, a confrontação inicial volve cada vez mais, vai fazer o mestrado
com a complexidade da situação profissio- em genética e parece estar realizada com a
nal” que é superado ou minimizado por escolha que fez. Durante o curso de mestra-
outro estádio, o da “descoberta”. Entretanto do, sem deixar a docência no ensino médio,
Estela parece não ter sofrido esse “choque começa a lecionar no ensino superior.
com o real”; o início na profissão docente, Eu comecei dando aula na licenciatu-
para ela, se traduz nos aspectos que, se- ra curta, que eu achava ridícula, e de-
gundo Huberman fazem parte do estádio pois peguei a plena. Veja bem, estava
da “descoberta”, que são os seguintes: formando professores. E eu peguei o
quarto ano. Eu reprovei sete alunos...
[...] o entusiasmo inicial, a exaltação Mas não tinha jeito, eu não podia dar
por estar em situação de responsabi- diploma para esses caras, eram muito
lidade (ter sua sala de aula, os seus ruins. Eu não queria compactuar com
alunos, o seu programa), por se sentir isso, formar péssimos professores.
colega num determinado corpo pro- Entreguei a nota e fui chamada na
fissional. (HUBERMAN, 1992, p. 39). direção. ‘Eu ia ter que alterar as notas...’
Outra fonte de satisfação para Es- Não fiz isso, mas houve uma reunião
tela, nesse período, é fazer parte de um de professores e aprovaram seis. Isso
fez muito mal para mim, muito mal
grupo profissional dinâmico e envolvido
mesmo. Aliás, eu acho que talvez te-
com o trabalho, em que o ser professor é nha sido aí que eu comecei a decair,
vivenciado, segundo ela, com seriedade. foi muito ruim mesmo. Não que eu
Estar envolvida com o trabalho docente e me senti injustiçada, mas acho que
perceber que o grupo no qual está inserida eu cresci. Virei adulta, deixei de ser
também se envolve é sentir-se reconheci- adolescente, deixei de sonhar...
da e ver reconhecidos seus ideais e suas Deixar de sonhar um sonho cons-
aspirações. truído desde a adolescência. Sonho de
Tinha um diretor muito bom, um cara ser professora, de ‘mudar a sociedade’,
super presente, que se dedicava de de trabalhar com Biologia (laboratórios),
corpo e alma. Ele não era o dono da aspectos importantes do projeto de vida
escola, mas gostava do que fazia. [...] de Estela. A escolha de uma profissão é
Na rede particular era tudo muito apresentada por Bohoslavsky (1977, p.
dinâmico, porque o professor que 83) como um processo de definição do
não entrasse e não desse aula ele
futuro, no qual não se escolhe somente
não ficava, ele era mandado embora...
uma carreira, escolhe-se “com quê” e “para
Esses aspectos que a tornam “muito quê” trabalhar, com o objetivo não apenas
feliz”, satisfeita com a profissão, com a es- de inserir-se no mundo do trabalho, mas
cola particular e com o trabalho docente, procurando, ao mesmo tempo, um sentido

148 Flavinês REBOLO. Do mal-estar docente ao abandono da profissão professor: a história...


para a vida. Nesse sentido, o sonho de estabilidade no emprego” objetos internos
Estela não é apenas um sonho, é parte de que, por não estarem totalmente satisfeitos
um projeto de vida que ela vê ser frustrado, na escola particular, reclamam reparação.
ainda que parcialmente, por condições A instabilidade política e econômica que
externas. A frustração, segundo Sawrey e atravessa o país nesse período é outro fator
Telford (1974), pode levar a uma variedade que reforça a necessidade dessa repara-
de reações, entre as quais estão a fuga, ção. Estela faz o concurso público e torna-
a reação extrapunitiva e a mudança de se professora efetiva. É a possibilidade que
motivos, que foram utilizadas por Estela vê para continuar sendo professora.
nesse momento de sua vida. Ela deixa a
Quando eu entrei no concurso eu fui
faculdade em que está lecionando, foge chamada a assumir logo em seguida.
do ambiente que coíbe sua livre ação e Nessa época eu estava dando aula na
a realização de seus ideais e vai fazer o faculdade, na licenciatura curta. Era
concurso público para tornar-se professora uma noite só, mas compensava finan-
efetiva da rede pública de ensino. ceiramente. E estava também no colé-
gio particular e também terminando o
O concurso público: estabilidade e mestrado. Então é meio complicado; e
decepções... aí eu tive que optar. [...] Eu tinha que
escolher, não podia ficar no estado,
A realização do concurso público no particular, na faculdade e ainda
não foi apenas uma reação à sua frustra- terminar o mestrado. E eu fui atrás do
ção provocada pelo incidente na faculdade. meu sonho, que era ser professora da
rede oficial, ter cargo, entendeu? Não
Os pais, que até então haviam se calado e
ter mais que me preocupar em ser
aceitado a sua decisão de ser professora, mandada embora e tudo.
voltam, segundo ela, a influenciar seu
percurso profissional. Mas com o passar do tempo e o
desenrolar dos acontecimentos, o que era
O concurso público foi bastante influ-
ência do meu pai. Meu pai era advo-
possibilidade de solução se torna fonte de
gado aposentado, ele foi funcionário insatisfações.
público. Ele tem aquela mentalidade Foi a pior coisa que eu fiz na minha
assim: ‘Você precisa ter cargo público vida, porque se eu tivesse continuado
para você se garantir, por causa da no particular, eu jamais teria deixa-
instabilidade econômica desse país’. do de ser professora e jamais seria
[...] Então ele vivia na minha cabeça: veterinária.
‘Presta o concurso, presta o concurso,
Eu passei [no concurso], escolhi e fui
presta o concurso...’ e eu prestei.
trabalhar lá na periferia de São Paulo,
A interiorização dos valores e normas porque eu não tinha ponto nenhum,
familiares tornaram o “autossustentar-se”, nunca tinha dado aula no estado.
o “não depender do marido” e o “ter Quer dizer, na verdade eu tinha umas

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 143-163, jan./jun. 2012. 149


substituições, mas o meu forte era o escola etc. Mas ela vai, mesmo chateada,
colégio particular, então não conta- para a escola da periferia.
va ponto nenhum. Nem o curso de
Entrei com tudo e encontrei uma
mestrado contava pontos. Eu já achei
estrutura falida, não tinha a menor
uma injustiça. Na verdade eu achei
ideia de como estavam as coisas no
uma sacanagem mesmo. Tudo bem,
estado. Eu fui dar aula na periferia
eu fui dar aula lá na periferia.
de São Paulo, parei no Campo Limpo.
A pós-graduação que Estela havia Fiquei tão desesperada que logo no
feito com o propósito de se aprimorar, ano seguinte tirei licença, não dei
acreditando que era importante para aula o ano inteiro. Entrei com aquela
uma atuação profissional melhor e mais licença 202... No ano seguinte eu pedi
outra licença... depois afastamento
competente, ao não ser valorizada pelo
sem vencimentos...
estado empregador a desagrada, não só
pela divergência com os seus valores,
mas principalmente pela consequência Outras insatisfações com o magistério
que essa divergência gera: ir trabalhar em e os abandonos temporários...
uma escola da periferia. Benavente (1991,
p. 172) diz que o “empenhamento dos As licenças que Estela tira podem
professores, ou seu conhecimento da reali- ser consideradas pequenos abandonos, ou
dade sócio cultural, a sua integração numa abandonos temporários, pois ela se afasta
comunidade e num projeto pedagógico”, apenas da unidade escolar mas mantém
são aspectos fundamentais para o sucesso o vínculo de emprego com a instituição.
do ensino e “dependem da possibilidade São ardis utilizados para se esquivar das
de fazerem a sua própria escolha de colo- dificuldades originadas pelas diferenças
cação e do tempo de permanência numa entre a escola real e a escola idealizada.
escola”. Assim, ainda que a estabilidade Se pensarmos que o choque com o real se
adquirida com o concurso público prometa dá logo no início da carreira profissional,
maior segurança no emprego, maiores no caso de Estela poderíamos afirmar que
possibilidades de ajustar e organizar a vida a mudança de escola se constituiu não
profissional e pessoal, no caso de Estela a apenas em uma mudança de local de
efetivação trouxe problemas com os quais trabalho, mas em um novo começo em
ela não contava, e que acabaram por de- que, mesmo exercendo a atividade que já
sagradar mais do que satisfazer. Pesaram, exercia, enfrenta todas as dificuldades de
principalmente, o modo como funciona o uma iniciante. Mas agora já sem muita
sistema educacional, que destina ao pro- convicção, o que faz com que a distância
fessor iniciante as escolas mais distantes, entre o real e o idealizado não seja mini-
através do sistema de atribuição de aulas mizada pelo “entusiasmo inicial”, referido
e de remoções, bem como lhes atribui por Huberman (1992), e vivenciado por
as turmas da noite, as “piores” turmas da ela quando começou na escola particular.

150 Flavinês REBOLO. Do mal-estar docente ao abandono da profissão professor: a história...


Desde quando decide pela primei- dava aula assim, com muito tesão...
ra vez ser professora até este momento, não tem outra palavra. Depois eu co-
passaram-se catorze anos e a decisão de mecei a fazer o doutorado na saúde
ser professora, apesar dos percalços vivi- pública e comecei a me voltar para
dos, é reafirmada. É como se ela estivesse o meio ambiente. Então nós fizemos
fazendo uma nova escolha, eliminando, um trabalho na comunidade de um
novamente, outras possibilidades e aban- esgoto que estava escorrendo numa
das ruas. Expus o trabalho na saúde
donando outros projetos. Mas o fato de
pública, tem entrevistas com o pessoal
decidir fazer o doutorado já indica que a da comunidade...
renúncia a outros projetos não é total. E,
nesse sentido, mesmo ponderando que Es- O sentido social e de solidariedade
tela possa estar considerando o doutorado que os professores encontram no trabalho
como um caminho de aprimoramento para é o que, segundo Cavaco (1993, p. 177),
sua prática docente, como já havia feito atenua o choque que ocorre no início
com o mestrado, pode-se supor que, após da profissão, início este que geralmente
as frustrações sofridas até agora no magis- acontece em “condições de profunda insa-
tério e ainda, após a maturidade adquirida tisfação em relação a necessidades como
nesses catorze anos, esse ato de escolher e segurança e a integração no trabalho, o
renunciar adquiriu configurações diferen- respeito e o prestígio social e a realização
tes daquelas que esse mesmo ato teve de si”. No caso de Estela, esse sentimento,
anos atrás. No entanto, essa suposição só relativo a um de seus reinícios na profissão,
poderá ser esclarecida com o passar do é o que a faz sentir-se bem por algum
tempo. Nesse momento, Estela volta para tempo. Também o fato de poder realizar um
a mesma escola da periferia: trabalho no qual acredita e acha importan-
te, a possibilidade de tomar decisões sobre
E lá eu fui muito feliz, apesar de tudo...
Eu dava aula à tarde. Eu peguei duas o seu fazer docente, a postura profissional
turmas de magistério e foi muito da diretora e a amizade dos alunos são
gostoso... peguei também primeiro e fatores de satisfação para Estela.
segundo colegial. Eu dava aula de No entanto esses aspectos que
citologia, dava genética, foi muito le- contribuem para um equilíbrio maior
gal. A diretora não era diretora, ela era das disparidades existentes entre as suas
substituta, mas ela tinha boa vontade, expectativas e a realidade da escola da
ela cobrava... Era substituta de muitos periferia logo se mostram ineficientes para
anos, ela conhecia muito a escola...
manter sua satisfação com o trabalho.
porque ela foi professora daquela
escola... e ela era da comunidade... Só que, veja bem, eu era do Brooklin,
Então ela gostava muito da escola.... eu estava longe, lá na periferia, com
Meu relacionamento foi muito bom, aquele carrão. E aí, por mais que eu
os alunos, em geral, gostavam de quisesse me integrar com eles... Eu
mim, eu não tinha problemas. Eu não era de lá, então sempre tinha

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 143-163, jan./jun. 2012. 151


aquele ar professoral, um ar de supe- vida privada (trabalhar próximo ao local em
rioridade... Talvez eu não tenha feito que reside) e na vida profissional (deixar
grandes coisas mas... valeu... um local de trabalho onde não está satis-
A diferença de nível socioeconômico feito). Mas nem sempre essa possibilidade
em relação aos alunos e aos colegas da es- resulta em um ajustamento satisfatório, e
cola da periferia aparece para Estela como este é o caso de Estela que, ao remover-se
um empecilho para a sua satisfação no tra- acaba encontrando mais problemas.
balho. É a explicação que encontra para o Só que a escola estava igualzinho a
seu não envolvimento com a comunidade da periferia... igualzinho, igualzinho...
escolar e para, talvez, o trabalho realizado Uma estrutura péssima, sem direção,
alunos marginais, biblioteca fecha-
de modo incoerente com a sua concepção
da por falta de pessoas, laboratório
do que deveria estar realizando. Participa, destruído... Foi uma tentativa de ficar,
então, de um concurso de remoção. mas eu vou ser franca, eu nunca me
E eu tive uma sorte, porque teve adaptei, eu nunca aceitei as coisas
concurso de remoção e eu me removi que eu via, nunca...
aqui para o bairro onde eu moro. Ao mudar de escola, Estela tem a
Uma escola linda, maravilhosa, uma expectativa de encontrar elementos que
construção maravilhosa. Eu estudei
lhe possibilitem trabalhar em um ambiente
lá, os meus irmãos estudaram lá, era
agradável, com alunos de uma determina-
um colégio maravilhoso... Mas a hora
que eu voltei... da classe social, com certos materiais e
equipamentos, ou seja, de encontrar uma
A mudança para uma escola próxi- escola como aquela vivenciada por ela na
ma à sua residência, em um bairro mais infância e a partir da qual construiu o seu
central e com uma clientela que, segundo modo de vir a ser professora. É certo que
supunha Estela, seria a mesma de quando a infraestrutura das escolas, que abrange,
ela era estudante, parecia ser a solução segundo Batista e Odelius (1999, p. 324),
para os seus conflitos. A remoção, um dis- “os meios ou ‘ferramentas’ de trabalho do
positivo através do qual o estado oferece professor [e] os recursos que promovem
aos professores efetivos a possibilidade de melhores condições de trabalho”, quando
mudança de escola, de acordo com algu- parcialmente ausente ou deficitária “afeta
mas regras, como por exemplo, a disponi- as condições de trabalho e com elas a saú-
bilidade de vagas na escola pretendida, o de mental do trabalhador” e, quando faltam
número de pontos e o tempo de serviço do os recursos que promovem melhores con-
professor, se torna, na maioria das vezes, dições de trabalho, pode ser detectado “um
um mecanismo de fuga oficializado. É baixo envolvimento pessoal no trabalho e
evidente o benefício desse mecanismo ofe- exaustão emocional”. A ausência ou déficit
recido pelo Estado, pois, para os professores de instrumentos e condições satisfatórias
que dele usufruem, possibilita ajustes na de trabalho exigem um dispêndio de

152 Flavinês REBOLO. Do mal-estar docente ao abandono da profissão professor: a história...


energia física e psicológica que, muitas ve- [...] de tendências ou sentimentos an-
zes, está além da capacidade do indivíduo, tagônicos que foram desencadeados
requerendo a criação de força e vontade e é necessário fazer uma opção sem
para a execução da tarefa. E é essa criação a qual o conflito não se resolverá e
de força e vontade que leva à exaustão redundará em frustração. (CABRAL;
NICK, 1974, p. 70).
(física e emocional) e que, somada ao fato
de impossibilitar, ainda que parcialmente, Essa opção, no caso de Estela, seria
a autorrealização com o trabalho, acaba deixar definitivamente a escola. No en-
por gerar um desequilíbrio e desencadeia tanto, fazer essa opção não parece fácil,
reações de defesa que visam à restauração e ela ainda permanece como professora
do equilíbrio. É o que Estela fará. por mais um ano. Talvez tentando realizar
E como eu estava com as portas o sonho de um ensino idealizado. Talvez
abertas para outras coisas, que era com a esperança de que alguma coisa
o meu estudo, o doutorado, talvez eu mudasse. Talvez, ainda, como uma tentativa
não tenha me empenhado muito em de reafirmar a autonomia e a liberdade
lutar... Mas eu acho que eu me em- conquistadas quando fez a opção pelo
penhei sim, porque eu fiquei quatro magistério. Mas o choque entre o real e
anos dando aula nessa escola... Tinha o idealizado vai se avolumando com a
hora que eu entrava em completo sucessão de problemas, tanto na esfera
desespero. Eu acabei pedindo exone-
profissional como na vida pessoal.
ração nessa escola.
A dificuldade em fazer essa opção
A ambiguidade de sentimentos está no fato de ela implicar, segundo Bo-
em relação à origem da frustração e do hoslavsky (1977), o abandono de objetos
desencantamento (no “eu” ou no “outro”) e formas de ser que fazem (ou fizeram)
é uma reação denominada por Sawrey e parte do projeto de futuro da pessoa, isto
Telford (1974, p. 272) de “intropunitiva”, que, é, a pessoa escolhe “quem” quer ser, “com
apesar de oferecer uma justificativa para o que” e “para que” quer trabalhar e, ao se
a situação, leva a pessoa a “considerar-se deparar com uma realidade incoerente e
inferior, sem merecimentos, e sentir-se im- contraditória, que implica a impossibilidade
potente ou deprimida”. Logo a seguir Estela de concretizar seu projeto, deve abandonar
busca, então, reconsiderar essa situação “quem” se tornou. Estela nos dá, em seu
para amenizar a culpa e prolonga a justi- depoimento, um conjunto de exemplos
ficativa em termos de completo desespero, dessa realidade social, profissional, familiar
desespero que justifica o empreendimento e pessoal incoerente e contraditória em
de ações contraditórias aos seus valores que se encontra.
e ideais. Esses momentos de completo
Uma outra coisa que eu tinha muita
desespero, pode-se dizer, são gerados pelo
vergonha, meu filho não estudava
[...] funcionamento simultâneo de na escola que eu dava aula. Isso
impulsos opostos ou contraditórios, para mim era uma contradição muito

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 143-163, jan./jun. 2012. 153


grande. Quando ele estava no cole- dos pais nas lições de casa dos filhos, por
gial eu passei a pagar mais do que exemplo. Ela espera uma movimentação
eu ganhava. Eu me sentia assim... dos pais no sentido de cobrança, de exigir
Falava: ‘Meu Deus, por que que ele do governo melhores condições organiza-
tem direito e os coitados aqui não cionais e materiais para a realização do
têm direito?’ Isso era uma contradição trabalho docente que possibilitem uma
interna muito grande, muito grande
educação mais competente e de melhor
mesmo.
qualidade.
Estela se sente conivente com a A partir do momento que a classe
desigualdade de oportunidades dadas média começou a não ter dinheiro
às pessoas em nossa sociedade. Esse para colocar seus filhos na escola
sentimento é gerador de conflito na me- particular, eu achei que ia ter um
dida em que, uma de suas premissas ao movimento de pais na comunidade
escolher a profissão docente era a de que para tentar salvar a escola pública.
“para se mudar alguma coisa neste país Não houve, pelo menos que eu saiba,
tinha que ser através da educação”. Uma nada significativo...
escolha que apontava para grandes rea- Esse apoio não vem, ou pelo menos
lizações que não foram concretizadas, no não vem da forma que ela espera. Não há
seu entender, por várias razões advindas um movimento dos pais que leve a uma
do contexto social mais amplo, do modo efetiva melhoria do ensino público e, com
como está organizado o sistema de ensino isso, vem o sentimento de que seus ideais
e a escola e, ainda, por causa do desinte- não são compartilhados, o que gera certo
resse e apatia das pessoas envolvidas no descompromisso, de sua parte, com a
processo educacional. Um dos primeiros escola pública. O comprometimento com
aspectos apontados por ela é a falta de uma causa social e o envolvimento com
determinação política: o trabalho que resulta desse comprometi-
O ensino público vem sofrendo já há mento, só tem sentido para a pessoa se
muitos anos, não é coisa de agora. há a percepção de que o esforço realizado
Uma falta de valorização porque não será reconhecido e recompensado e, para
interessa. Não existe determinação tanto, é necessário que haja um consenso
política de se resolver a questão do quanto aos objetivos a serem atingidos e,
ensino. Talvez porque não dê votos ou também, quanto aos meios para a efetiva-
talvez porque realmente não interessa ção desses objetivos.
que o povo seja instruído.
No estado foi muito... não fui alienada,
Estela se refere também à falta de mas o meu compromisso era na sala
apoio dos pais dos alunos. No entanto essa de aula, com os alunos... eu dava
falta de apoio não se refere às questões realmente aula, nunca fui de ficar
pedagógicas, ou seja, ela não se queixa, sentada, enrolando... Mas saiu dali
em nenhum momento, da falta de auxílio eu ia embora. Eu achava que tinha...

154 Flavinês REBOLO. Do mal-estar docente ao abandono da profissão professor: a história...


que a comunidade realmente tinha alunos falavam para mim: ‘Mas para quê
que ajudar mais... era uma coisa que que eu vou saber Biologia? Para ser igual
eu acreditava... a senhora?
O afastamento de Estela das ativida- Segundo Lévy-Leboyer (1994, p. 77)
des da escola que não fossem a aula, pode É certo que, atualmente e de maneira
ser visto como um mecanismo defensivo, geral, os diplomados tenham mais
utilizado geralmente quando a pessoa chance do que os não diplomados de
“percebe os outros como fonte de descon- encontrar um emprego. Mas esse em-
forto e sofrimento e acha o isolamento so- prego situa-se freqüentemente abaixo
cial menos penoso ou menos ameaçador” de sua qualificação e daquilo que
certamente esperavam ao escolher
(SAWREY; TELFORD, 1974, p. 58). Assim,
a sua formação. Assim, no caso dos
Estela deixa de frequentar “as reuniões, possuidores de um diploma do curso
as festas juninas da escola....” e passa a de Letras ou de Ciências Humanas [...]
se dedicar exclusivamente aos alunos. deve-se notar que [a grande maioria]
Mas esse compromisso com os alunos, teve acesso apenas a cargos adminis-
dentro da sala de aula, passa também a trativos, o que representa uma real
ser reavaliado, pela percepção de que os desqualificação.
próprios alunos mudaram. Essa desvalorização dos certificados
Os alunos mudaram, estão cada vez escolares, analisada por Bourdieu (1998)
mais agressivos. A vida dos jovens no texto Classificação, Desclassificação,
vem piorando muito, as famílias são Reclassificação e que aparece na fala dos
muito desestruturadas... e depois eles alunos, vai reforçar um conflito que Estela
não vêm para estudar. É uma falta já vinha enfrentando: a escolha de uma
muito grande de perspectiva da parte
ocupação que não lhe proporciona a au-
deles também.
torrealização. Esteve (1992, p. 33), ao ana-
É verdade que a escola de hoje, em lisar os indicadores do mal-estar docente,
seu modo de funcionamento e em sua refere-se às condições ambientais, ao con-
concepção, é fruto da necessidade de se texto em que se exerce a docência como
adaptar as pessoas às novas exigências fatores que “incidem fundamentalmente
que surgiram juntamente com a era in- sobre a imagem que o professor tem de
dustrial. Entretanto, com as mudanças si mesmo e de seu trabalho”, o que acaba
ocorridas na sociedade, parece que esse por afetar a “eficácia docente ao promover
modelo de escola não está mais respon- um decréscimo da motivação do professor
dendo às expectativas sociais. E essa falta e de sua autorrealização”.
de coerência entre o que a escola oferece Mas esse conflito vivido por Estela
e o que é esperado dela é um fator de não tem na desvalorização do certificado
conflito para Estela, que se pergunta: Eu escolar a única causa. A expectativa da so-
vou ensinar ‘o quê’ e ‘para quem’? Os ciedade e da instituição escolar em relação

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 143-163, jan./jun. 2012. 155


ao trabalho docente também colabora para porque eu não tenho preparo para
intensificar esse conflito. Estela pergunta: isso... O quê que o governo quer? Que
“O que querem? Que o professor seja um o professor seja um ventre materno?
ventre materno?”. E prossegue dizendo: Que resolva tudo?
‘Ah! Mas a história de vida dele é Ainda que encontre uma justificativa
essa: perdeu a mãe, o pai é bêbado, para esse dilema, continua se sentindo
ele é maconheiro...’ Isso daí é outro pressionada pelas cobranças indiretas
problema, não é mesmo? A escola feitas pela escola e pela sociedade, o que
pública não pode fazer um trabalho acaba por gerar um sentimento de inutili-
assistencial nesse nível. dade em relação ao trabalho que realiza.
Esse trabalho assistencial que é indi- Eu dou aula de Biologia, eu tenho
retamente cobrado dos professores, não só que cobrar o que é célula, o que é
pela sociedade, mas principalmente, pelos cromossomo... Não posso cobrar se
diretores e outros superiores hierárquicos ele é uma pessoa boa na vida aí fora,
do sistema educacional. Quando o diretor eu não tenho nem meios de saber
pede para que sejam considerados os isso. E compreender os problemas é
problemas extraescolares que acarretam complicado.
o baixo rendimento da aprendizagem Estela se sente cobrada por algo
dos alunos há, implícito nesse pedido, no que, no seu entender, está fora de suas
entender de Estela, uma desvalorização do atribuições, e que, no entanto, entende
trabalho pedagógico. Esse desvirtuamento como necessário. Ao mesmo tempo, ocor-
é contrário às suas concepções sobre o rem reestruturações no sistema de ensino
papel e as funções da escola, e ela não que, embora não digam respeito às séries
aceita exercer esse papel. com as quais trabalha, acabam atingindo
Eles querem que você passe a mão diretamente o seu trabalho.
na cabeça do aluno... A preocupação é promover, chama
Mas, mais do que isso, sente-se co- promover, não chama passar, chama
brada a empreender determinadas tarefas promover. Isso aí é um negócio absur-
do, eu não concordo com isso. Você
para as quais afirma não estar preparada.
vai promover o quê? Ignorantes? Está
Porque o professor não tem nem chegando no colegial gente semialfa-
preparo.... Eu sou uma pessoa que fez betizada, sabe. O que significa isso?
Biologia, não tenho nem Psicologia, Deixar a vaga para os outros? Essa
como é que eu vou ajudar um cara filosofia não vai resolver muito, a
desse? Você tem que ter outro local consequência é um povo totalmente
para mandar esse indivíduo. Não é ignorante, que não sabe se defender,
que eu não quero ajudá-lo, não é que que não sabe absolutamente nada
o problema não é meu... é que se eu e que fica à mercê do que a gente
for tentar ajudá-lo eu vou prejudicá-lo vê por aí.

156 Flavinês REBOLO. Do mal-estar docente ao abandono da profissão professor: a história...


A implantação do ciclo básico, com gente era aconselhada pela direção:
a promoção automática dos alunos nas ‘Oh! Cuidado! O recurso...’. Era uma
séries iniciais do primeiro grau, tinha como ameaça. A gente era aconselhada a
objetivo proporcionar à criança uma con- guardar as provas porque você tinha
tinuidade no processo de aprendizagem que provar... Provar o quê? Eu não
que era rompida quando ocorria a repro- entendia isso.
vação. Essa continuidade, no entanto, não O “recurso” é a possibilidade que o
acontece na prática, e o que ocorre é que aluno tem de, ao ser reprovado, recorrer
os alunos são promovidos, passam de à delegacia de ensino, pedindo a revisão
uma série para outra, sem terem adquirido e a reconsideração da decisão do profes-
os requisitos mínimos, que por sua vez sor. Não cabe, no âmbito deste trabalho,
não serão, também, fornecidos na série discutir a validade ou a pertinência desse
seguinte. Ao chegarem ao colegial, esses mecanismo, mas, no momento em que
alunos “semialfabetizados” exigirão do ele passa a ser utilizado como uma forma
professor um esforço redobrado para que o de coagir os professores a aprovarem os
programa e os conteúdos do ensino sejam alunos e se torna, como diz Estela, um “me-
cumpridos. Mas Estela não se queixa, pelo canismo de terrorismo”, ele tira do professor
menos não explicitamente, da dificuldade a autonomia de avaliar o aluno e também
em trabalhar com alunos “semialfabetiza- serve de desestímulo para os alunos se
dos”; o que mais a incomoda é a perspec- dedicarem com mais afinco aos estudos.
tiva posta por essa situação de que não
O aluno, a hora que ele sabe do recur-
será possível concretizar um dos objetivos
so... O aluno não é bobo, ele vê que o
que tinha ao optar pela docência, qual fulano não veio, não veio, não veio e
seja o de transformar o país por meio da passa, e tudo isso é um desestímulo
educação. Por outro lado, ela também se pr’aqueles que querem estudar. ‘Vou
vê obrigada a promover os alunos, pois, me esforçar para quê, se o outro não
mesmo não existindo a lei que a obrigue, faz nada e passa?’
segundo ela há um mecanismo que pode
A percepção de inutilidade do traba-
ser utilizado pelos alunos e que é usado
lho que está realizando, elaborada a partir
pelo diretor, segundo ela, como um meca-
das situações descritas acima, juntamente
nismo de coação.
com a percepção de impotência em realizar
Tem uma coisa que eu nunca entendi, as mudanças necessárias e em resistir às
o tal do recurso. Ele (aluno) tem o mudanças impostas pelo sistema e com
direito de recorrer com você, pedir as quais não concorda, desencadeia uma
segunda vista de prova, mas o meca-
série de conflitos e contrariedades que le-
nismo, esse mecanismo do recurso é
um mecanismo de terrorismo contra
vam à frustração. Segundo Sawrey e Telford
o professor. Desde o início do ano, (1974) a frustração pode dar origem a uma
dos primeiros conselhos de classe, a grande variedade de comportamentos

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 143-163, jan./jun. 2012. 157


(agressão, regressão, fixação, retraimento, Mas não são apenas essas dificul-
fuga) através dos quais a pessoa procura dades descritas até agora que a levam a
minimizar os conflitos e as contrariedades. repensar a escolha profissional. Outros
Segundo os autores, a origem desses com- aspectos, como a baixa remuneração, a
portamentos nem sempre é apenas a frus- apatia dos outros professores, são também
tração, mas é certo que, quando a frustra- apontados por ela como provocadores de
ção é excessiva, as reações podem conter conflitos.
um, ou alguns, desses comportamentos. No O salário que Estela recebe como
caso de Estela, a frustração com o trabalho professora é baixo, mesmo que ela não
e com a educação levam-na a ter atritos precise dele para sobreviver, pois o ma-
com os alunos, como ela mesma afirma: rido “ganha bem e dá para manter um
Eu fui passando a ter atritos com os
bom nível de vida”. Mas é justamente aí
alunos de forma proporcional ao meu que está outro conflito de Estela. Segun-
desencanto com o meu trabalho e ao do Dejours (1991, p. 51), o salário possui
meu nível de insatisfação. Quanto mais inúmeras significações, entre as quais, a
aumentava o meu nível de insatisfação concretização de “projetos de realização”
pior eu ia me dando com o pessoal. e, no caso de Estela, uma das realizações
Eu estava dando aula à noite, com pretendidas e para a qual foi direcionada
um pessoal meio da pesada. Eu fui desde criança pelos pais é “ser profissional,
ameaçada, ameaçada de morrer mes- não depender do marido...”. Assim, mesmo
mo. Um aluno falou assim: ‘Qualquer tendo um estilo de vida que a satisfaça,
dia vou ver a senhora mortinha...’ Ele que permite o consumo de determinados
morreu, graças à Deus, dois meses bens e serviços, o fato de ter acesso a es-
depois. Ele era traficante. Mas eu tive sas coisas através do trabalho do marido,
medo. Mas é evidente que eu não tive
e não do seu, gera um conflito com seus
psicologia, que eu não tive maturida-
de para levar... Em outra ocasião, se
próprios valores:
eu tivesse fazendo a coisa com amor, Eu tinha vergonha do carro em que
não teria chegado a isso... eu ia dar aula, eu tinha um monza
prateado na época. Eu tinha vergo-
Em 94, que foi o último ano que eu
nha porque eles sabiam que eu não
dei aula, eu fiz coisas absurdas. Pelo
tinha aquele carro com o salário de
menos uma vez por mês eu abando-
professora”. Alguns alunos e alguns
nava a classe. O aluno não quer... ele
professores expressaram mesmo: ‘Ah!
não queria sair, então saía eu.
Para você é fácil fazer greve, você não
Então, ou eu ia ficar nessa ou eu ia precisa desse salário’...
procurar uma outra saída para minha
vida. Aí eu falei: ‘Já que não estou cola- O salário de professora não é o que
borando com coisa nenhuma, eu vou mantém o seu padrão de vida e, de acor-
acabar entrando em depressão. Eu vou do com os valores transmitidos pelo seu
procurar outra forma de ser profissional.’ grupo familiar, isso se torna um problema.

158 Flavinês REBOLO. Do mal-estar docente ao abandono da profissão professor: a história...


Sente-se envergonhada diante dos colegas família, a disparidade entre a sua qualifi-
professores e dos alunos pela dissonância cação e a desqualificação do trabalho que
entre o seu salário e o seu estilo de vida. realiza não se alterará. A percepção dessa
Mais do que isso, essa situação faz com disparidade e a insatisfação que traz faz
que se sinta sozinha quando procura lutar Estela se sentir cada vez mais pressionada
por algo em que acredita, ou seja, acredita a abandonar a docência:
que as greves sejam uma forma de obter Meu marido... Ele não queria que eu
melhorias nas condições salariais e de desse mais aulas de jeito nenhum.
trabalho, mas, para a maioria dos colegas, Ele inventava compromissos, jantares,
essa mesma greve implica deixar de rece- que era coisa do trabalho dele e que
ber o salário que mantém a sobrevivência. eu tinha que ir. Ele falava: ‘Já que
você não sustenta a casa então pelo
Então eu estava muito fora. Não é que
menos deixa eu sustentar...’ Então eu
eu era rica e dava aula. Tinha outras
tinha que fazer a figura de mulher
pessoas também que estavam bem
para acompanhá-lo. Hoje em dia eu
de vida, mas essas não se metiam. Eu
sei, uma pressão desgraçada, ele não
sou muito falante, eu não sei enfiar
queria que eu desse mais aulas...
só o dedinho nas coisas, eu vou até
o fundo do braço... Ninguém vive de sonho. Se eu pu-
desse apresentar para ele um holerite
O salário que recebe é ainda dis-
significante e falar: ‘Olha, eu não vou
sonante com a sua formação, aspecto te acompanhar, não vou ter como
constantemente lembrado por sua família: profissão básica na minha vida, ser
O meu salário era ridículo e a minha sua mulher, mas o básico vai ser
família falava muito: ‘Você tem mes- professora. Mas eu não tinha isso,
trado, fazendo doutorado, vai ficar aí?’ então fiquei muito dividida.
Talvez eu tenha me hiper-valorizado, Não tinha argumento. Porque era
achava que a escola não me mere- assim: ‘Eu quero lutar...’. E ele falava:
cia. Aí eu pirei. Larguei o doutorado ‘Mas você já lutou. Chega!’ Ele queria
e bati pé firme que eu ia só dar aula que eu pedisse exoneração mesmo.
mesmo... Ele fez uma pressão muito grande,
Seria este, então, o problema? Estela eu estava vivendo um inferno astral
estaria realizando um trabalho aquém na família por causa de insistir em
dar aula.
de suas qualificações? Se para continuar
sendo professora era necessário parar Com os conflitos gerados pela desva-
de estudar, de se aperfeiçoar, então ela lorização profissional, somados a todos os
faria isso, pois queria continuar. Porém a outros que Estela já vinha enfrentando, o
semente de um novo conflito já está plan- trabalho se torna um fardo difícil de ser
tada. Ela já possui o título de mestre, está carregado. Um trabalho que, é preciso
quase terminando o doutorado e, para a lembrar, já não está oferecendo tudo, ou

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 143-163, jan./jun. 2012. 159


pelo menos uma parte que seja, daquilo seja a aula, a relação direta com os alunos.
que Estela espera alcançar. Sente-se infeliz Mas até mesmo essa relação com os alu-
e acredita que não conseguirá, por causa nos vai se deteriorando, como já relatado
dessa sua infelicidade, deixar os alunos anteriormente, quando diz que o atrito com
felizes. Trata-se de um conflito interno, no os alunos aumenta à medida que o seu
qual não é possível transferir para outros desencanto e o nível de satisfação com o
(sujeitos ou objetos) o sentimento de culpa trabalho diminui.
pelo desconforto que provoca com suas Eu entrei na faculdade [de Veteriná-
atitudes. ria] e fui levando as aulas[na escola
Quando você levanta para trabalhar estadual]... e em 94, eu fui a profes-
sentindo um peso no ombro é melhor sora mais relapsa que você possa
largar esse trabalho. Porque você vai imaginar... Eu faltava muito. Quando
fazer os outros infelizes, você não eu estava dentro da sala de aula, eu
vai fazer a coisa direito. O dinheiro dava aula legal, mas não preparava
é importante, mas é importante você absolutamente nada, não dava exer-
se sentir bem no que está fazendo... cício, não dava trabalho, porque eu
não tinha tempo para corrigir. Então
Estela resolve, então, procurar outra era tudo feito ali, eu estava dando
forma de “ser profissional” e recebe o apoio aula à noite, 45 minutos, foi assim
do marido para tal empreitada. um horror. Eu me senti muito mal,
Meu marido me ajudou bastante, me muito mal...
ajudou a procurar outra saída para Em 94 eu queria que tivesse uma
minha vida. Em 92 abriu a faculdade greve por mês, porque eu estava no
de Veterinária na UNIB e eu fui fazer.. 3o ano de Veterinária e estava até
Entrei no 2º ano, dispensei uma série aqui de coisas para fazer.
de matérias... E ele pagou a faculdade
para mim, porque com o que eu ga- Estela já desistiu da docência, mas
nhava não ia pagar, não dava. Então ainda está lá. Realiza o mínimo necessário
eu tive essa sorte, então é fácil você para manter-se no cargo. Essa dificuldade
dizer: ‘Ah! Eu fiz e aconteci.’ Mas eu em romper definitivamente todos os vín-
tinha um respaldo atrás, eu tinha o culos com o trabalho e com a instituição
respaldo dele. parece estar relacionada a vários fatores.
Mesmo tendo a possibilidade de Não é, como já ficou claro, o baixo salário,
deixar o trabalho docente, ainda por algum pelo menos não pela importância ou sig-
tempo, insiste em continuar. Porém está nificância material. Ela não depende desse
cansada, desmotivada e com a atenção dinheiro para sobreviver. E isso fica ainda
voltada para outra atividade, o que difi- mais claro quando afirma:
culta ainda mais o seu envolvimento com Eu tentei arrumar uma substituta de
o trabalho. Afasta-se de toda e qualquer forma que eu não perdesse o vínculo.
atividade que aconteça na escola que não Não tenho vergonha de falar isso.

160 Flavinês REBOLO. Do mal-estar docente ao abandono da profissão professor: a história...


Pessoas que estavam começando de sair também. Falavam: ‘Vai mes-
a carreira, estavam no 3º ano de mo, você pode...’. Talvez se a diretora
Biologia e loucas para dar aula, até tivesse falado para eu ficar, prá gente
pessoas animadas como eu fui no tentar uma solução juntas. Mas não...
início. Eu iria uma vez por semana na Aí eu saí mesmo...
escola e assinaria. Isso é corrupção
A dor e os sentimentos após o aban-
declarada, mas eu propus isso para
a assistente de direção. Foi uma ten- dono definitivo:
tativa... Ela não pôde aceitar, lógico. Eu senti muito, muito, muito. É um
negócio que ainda dói. Não sei nem
Parece se tratar, então, de não querer
se pelo fato de gostar de dar aula ou
romper o vínculo de emprego. Os vínculos pela sensação de ter sido derrotada,
com o trabalho já estão rompidos, ela não a sensação de ter lutado e não ter
se importa em não trabalhar, em deixar de conseguido
dar aulas, mas se importa em deixar de
Quando você não dá certo em algu-
ser professora efetiva, funcionária pública.
ma coisa nunca só o outro lado é o
Para não perder esse vínculo, tenta de tudo, errado. Acho que eu também devo
inclusive atos ilegais, que ela chama de ter tido muitos erros. Só que eu ainda
“corrupção”. Essa resistência para romper não consigo enxergar. Eu só sei que
o vínculo de emprego com o Estado pro- eu tentei, eu me esforcei...
vavelmente se deva à estabilidade obtida
Eu tenho alunos que até hoje me
com o concurso público, algo muito valo- ligam. Eu tenho alunos que foram
rizado pela sua família. fazer Veterinária porque eu fui fazer.
Mesmo não tendo convicção de Eu tenho aluno que foi fazer Biologia
sua decisão, decide pedir a exoneração. e falou: ‘Eu fui fazer por sua causa’.
No entanto tem esperança de que peçam Então é uma coisa que me dói, não
para ela ficar, que alguma solução seja en- sei se um dia eu vou superar isso,
contrada; mas, ao contrário do que espera, porque eu me preparei para ser
recebe apoio e incentivo para sair, tanto professora.
por parte do diretor, quanto dos colegas.
Decepcionada, sai mesmo, rompe o último Considerações finais
vínculo que a liga à docência.
Ao narrar seu percurso de formação
Quando eu comuniquei à direção da
e de vida profissional, a ex-professora, aqui
escola que eu ia pedir exoneração, a
chamada de Estela, forneceu elementos
diretora deu a maior força, falou que
eu devia pedir mesmo, já que eu importantes e fundamentais para se com-
podia... E os colegas também, todos preender de que modo determinados fatos,
apoiaram. Dava a impressão que situações, experiências e sentimentos se
eles estavam se realizando através enredaram na trama de sua vida e se com-
de mim. Acho que todos gostariam binaram a ponto de produzir o mal-estar

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 143-163, jan./jun. 2012. 161


docente e o abandono da profissão. Esses dinâmica evolutiva do vir-a-ser professor
aspectos dizem respeito ao modo como e do deixar de sê-lo. Mesmo entendendo
a profissão é escolhida, às insatisfações o abandono como uma decisão individual
relacionadas ao salário, ao plano de car- de Estela, é certo que a sua amplitude vai
reira, às relações com os alunos e com para além das questões de foro pessoal,
outros atores da escola e do sistema edu- pois deixa entrever insatisfações com o
cacional, à precarização e desvalorização trabalho docente que refletem tanto um
do trabalho, ao sentimento de inutilidade processo de transformações e mudanças
em relação ao trabalho que realiza e à que está ocorrendo na sociedade e que
impossibilidade de autorrealização e da atingem as instituições e as pessoas, como
realização de projetos pessoais. as especificidades do sistema educacional
Recuperando, por meio de sua fala, o e do modo como o trabalho docente está
modo como Estela sentiu e vivenciou o seu organizado na escola contemporânea.
trabalho durante seu percurso profissional, É importante considerar que, ao
é possível compreender os vários aspectos tomar a decisão de abandonar, muitos
e os dilemas que exercem influência e professores encontram-se no limite de suas
podem ser determinantes na evasão de possibilidades para enfrentar as situações
professores, pois os vários fatores que que vivem, o que não permite afirmar que
produziram insatisfações e frustrações essa decisão ou escolha esteja isenta dos
são, certamente, causadores de mal-estar, constrangimentos que eles vêm sofrendo
também, para muitos outros professores. no decorrer da carreira. Assim, compre-
O desvelamento desses fatores e ender o abandono da rede estadual de
da inter-relação entre o mundo interno ensino por parte dos professores implica
(de cada professor) e externo (escola, uma análise que contemple diferentes
sistema educacional e sociedade), bem perspectivas, já que se apresenta como o
como a identificação das estratégias de resultado de um jogo de forças, internas e
enfrentamento utilizadas frente às situa- externas, no qual o embate entre os limites
ções adversas e conflituosas do trabalho, e as possibilidades do professor (pessoa
permitiu conhecer de que modo os vários e profissional) e da educação (instituição
espaços (físicos, sociais e psicológicos social e local de trabalho) resultará, ou não,
em que a pessoa circula) interferem na no abandono do magistério.

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162 Flavinês REBOLO. Do mal-estar docente ao abandono da profissão professor: a história...


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Recebido em março de 2012


Aprovado para publicação em abril de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 143-163, jan./jun. 2012. 163


Formação de professores das disciplinas específicas
da educação básica: panorama das pesquisas sobre
licenciaturas no Brasil pós-LDB
Education of teachers for the specific subjects of
basic education: overview of research about under-
graduate courses in Brazil after LDB
Graziela Giusti Pachane*
Rodrigo Peres Lopes Domiciano**
* Doutora em Educação, professora da Universidade Federal do
Triângulo Mineiro (UFTM). E-mail: graziela@ielachs.uftm.edu.br
** Graduando em História pela Universidade Federal do
Triângulo Mineiro (UFTM). E-mail: rodrigo.pld@hotmail.com

Resumo
Busca-se conhecer as tendências das pesquisas sobre formação de professores para lecionar as dis-
ciplinas específicas da educação básica. Trata-se de uma pesquisa de estado-da-arte, cujos resultados
apontam que o Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE) é um dos principais fóruns
de divulgação de trabalhos sobre a formação nas licenciaturas. Demonstram, também, ampliação da
quantidade de teses e sobre a temática no período em análise. Entre as temáticas, destacam-se estudos
sobre estágios e currículo, focando, sobremaneira, as licenciaturas de modo geral, sem se concentrar em
um curso específico. Matemática, Educação Física e Ciências Biológicas sobressaem-se como as licen-
ciaturas mais estudadas. As análises demonstram a necessidade de maior visibilidade e legitimidade às
pesquisas sobre a temática, bem como de maior estreitamento de relações entre a área da educação e
as áreas específicas de formação dos licenciandos.
Palavras-chave
Licenciaturas. Estado da arte. Produção do conhecimento em educação.

Abstract
The aim is to know the trends of research on teacher training to teach the specific disciplines of basic
education. It is a state of the art survey, which results indicate that the Encontro Nacional de Didática e
Prática de Ensino (ENDIPE) is a key forum for the dissemination of productions about teacher education.
It also demonstrates the expansion of theses on the subject in the period. Among the standing themes
are: trainee programs and curriculum studies, of courses in general, without focusing on a specific one.
Mathematics, Physical Education and Biology stand out as the most studied courses. The analysis shows
the need for greater visibility and legitimacy for researches on the topic, as well as closer links between
higher education and the specific areas of study of undergraduates.
Key words
Undergraduate. State of the art. The production of knowledge in education.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 165-175, jan./jul. 2012
Introdução dissertações da Coordenação e Aperfei-
çoamento de Pesssoal de Nível superior
Objetivando conhecer mais a fundo (CAPES) e de dois eventos nacionais da
o panorama das pesquisas sobre a forma- área de educação: as reuniões anuais da
ção de professores para lecionar as disci- Associação Nacional de Pós-Graduação
plinas específicas da educação básica, e Pesquisa em Educação (ANPED) e o
vimos realizando, desde 2007, um projeto ENDIPE, enfocando produções realizadas
intitulado Tendências da pesquisa sobre a partir de 1997.
formação de professores de disciplinas A partir dos resultados preliminares
específicas da educação básica (licencia- obtidos, ficou clara a necessidade de apro-
turas), um estudo que buscava mapear fundarmos os estudos sobre o ENDIPE,
a situação das licenciaturas no país a que vem se constituindo como o principal
partir de dois pontos de vista: da situação fórum de discussão de temáticas relativas
expressa pelas estatísticas educacionais às licenciaturas no país.
(com base em dados disponibilizados pelo É válido ressaltar que, estando nossa
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas preocupação voltada aos estudos sobre a
Educacionais Anísio Teixeira [INEP]) e da formação inicial (graduação) de professo-
perspectiva da literatura na área de forma- res para lecionar disciplinas específicas da
ção de professores. educação básica, não nos ativemos a estu-
Os resultados obtidos a partir dos da- dos a respeito da formação de pedagogos
dos do INEP contrariaram nossas hipóteses e, tampouco, a trabalhos voltados a discutir
iniciais quanto à diminuição do interesse a formação de professores em serviço.
dos estudantes por cursarem licenciaturas, Dada sua relevância e a qualidade
uma vez que, de maneira geral, apontam dos trabalhos ali divulgados, selecionamos
para o crescimento do número de cursos, o Portal SciELO (www.scielo.br) como ponto
ingressantes e concluintes das licenciatu- de partida de nosso estudo. Com apoio de
ras presenciais, apesar, inclusive, da am- bolsistas de iniciação científica, realizamos
pliação da oferta de cursos de formação de um levantamento de periódicos relativos às
professores à distância (PACHANE, 2010a). áreas básicas com formação em licenciatu-
Os dados relativos à análise da lite- ras (química, física, biologia, letras, história,
ratura da área de formação de professores, geografia, etc.).
sobre os quais pretendemos nos ater no Entre 2007 e 2008, foram consultados
presente artigo, foram obtidos a partir da aleatoriamente 15 periódicos da área de
elaboração de um “estado-da-arte”, con- Ciências Biológicas, perfazendo um total
forme definido por Ferreira (1999 e 2002), de 344 artigos analisados, não sendo
Haddad (2000) e Puentes et al. (2005). encontrado nenhum artigo a respeito da
Para tanto, realizamos um estudo formação de professores para atuação
a partir de periódicos disponibilizados nessa área. O mesmo se pode dizer da área
no portal SciELO, do banco de teses e de Ciências Exatas e da Terra (com exceção

166 Graziela G. PACHANE; Rodrigo P. L. DOMICIANO. Formação de professores das disciplinas...


de matemática, que conta com toda uma Ao longo dos 10 anos pesquisados (ini-
linha voltada a estudos de educação). ciando-se em 1997), foram encontrados 35
A consulta aos periódicos do SciELO artigos relativos a formação de professores
deixou claro que o interesse das áreas é de maneira geral e apenas dois relativos
em dialogar exclusivamente com a comu- a licenciaturas.
nidade científica específica, inclusive in- É válido ressaltar que cada uma das
ternacional. Observa-se que grande parte revistas verificadas apresentava em torno
dos artigos estão em inglês. Quanto a suas de 10 a 12 textos por edição, divididos entre
temáticas, enfatizam a produção específica artigos, entrevistas, resenhas etc, o que nos
da área, pouca atenção dedicando à for- levou a um total de 1629 artigos, todos
mação de seus profissionais. Nem a for- consultados para elaboração da presente
mação dos professores para a educação pesquisa. Assim, os 35 artigos que dizem
básica, nem as práticas pedagógicas nesse respeito à temática de formação de profes-
nível constituem-se em objeto legítimo de sores em geral correspondem a algo em
investigação. torno de 2% do total de textos publicados.
Tampouco a área de Ciências Hu- Vale a pena lembrar que todas essas
manas dedica-se com afinco à discussão revistas são do campo da Educação, repre-
sobre formação de seus professores. Os ar- sentando, pelo que significa ser incluído no
tigos sobre esta temática encontrados por portal SciELO, o mais alto nível de produção
ocasião de nossa pesquisa representam acadêmica da área no país.
apenas 1% de todo o material analisado Tendo em vista a pouca disponibili-
(mais de 2000 artigos dispostos em 16 dade de textos a respeito das licenciaturas
diferentes periódicos). nos periódicos, optamos por analisar dois
Embora contempladas dentro da eventos da área de Educação, buscando
área de humanidades, as revistas de verificar se estes apresentam com mais
Educação foram tabuladas em separado. frequência trabalhos voltados a esse tópico.
Foram analisados os seguintes títulos, Os eventos foram escolhidos por se-
disponíveis no SciELO por ocasião da rem classificados como nacionais, já con-
coleta de dados: Educação & Sociedade, solidados na área educacional e por terem
Educação e Pesquisa, Educar em Revista, como foco – em geral ou em sub-temas
Cadernos de Pesquisa, Ensaio: Avaliação específicos – a formação de professores.
e Políticas Públicas em Educação, Revista Assim, optamos por trabalhar com os textos
Brasileira de Educação Especial, Revista publicados pelo GT 8 – Formação de pro-
Brasileira de Educação, Revista da Facul- fessores, nas reuniões anuais da ANPED,
dade de Educação, Revista Brasileira de e com os painéis e pôsteres apresentados
Ensino de Física. no ENDIPE.
Mesmo nesses periódicos, específicos No caso desses eventos, privilegia-
da área de educação, a temática das licen- mos o material produzido a partir do ano
ciaturas não é profundamente abordada. 2000.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 165-175, jan./jun. 2012. 167


Na primeira fase de análise dos terceiro foi sobre concepções e experiên-
anais da ANPED (www.anped.org.br), foram cias em pesquisa de licenciandos. Houve
consultados 163 textos, apresentados em um voltado ao currículo de educação
oito reuniões anuais (2000 a 2007). Em física e outro, aos saberes na formação
todo o material analisado, foram encon- de arte-educadores e, por fim, um artigo
trados apenas cinco artigos que tratavam tratando de licenciaturas presenciais e
da formação de licenciandos. Dois eram aprendizagem no uso de TICs (tecnologias
comunicações orais, ambos da 28a RA de informação e comunicação).
(2005), e os demais (três) foram apresenta- Nas demais reuniões analisadas,
dos na forma de pôster. não foram encontrados textos que tratas-
Nas três últimas reuniões analisadas sem especificamente das licenciaturas,
(31a a 33a, ou seja, de 2008 a 2010), nas demonstrando que mesmo num GT des-
quais houve inclusive ampliação no núme- tinado à formação de professores, o estudo
ro de textos aprovados, foram encontrados das licenciaturas ainda não tem um espa-
51 textos que abordam a formação de pro- ço amplo de discussão.
fessores de modo geral, sem especificar o Aqui cabe lembrar que cada área
nível a que se destina (por exemplo, com tem seus fóruns específicos nos quais são
tema sobre inclusão, políticas educacio- discutidas temáticas sobre formação de
nais, uso de Educação a Distância (EaD), professores. Nesse sentido, podemos citar
saberes docentes etc); seis que se dedicam como exemplo o Encontro Nacional de
exclusivamente à formação do pedagogo e Educação Matemática (ENEM), o Simpósio
6, à formação nas diferentes licenciaturas, Internacional de Pesquisa em Educação
sendo que dois foram apresentados na 31a Matemática (SIPEMAT), o Encontro Nacio-
reunião, e os demais, na 33ª. nal de Práticas de Ensino de Geografia
Sem dúvida, houve expressivo au- (ENPEG), o Simpósio Nacional de Ensino de
mento na produção (ou na aprovação) Física (SNEF) e Encontro de Pesquisadores
de textos relativos a essas temáticas nos em Ensino de Física (EPEF), as revistas Re-
últimos anos, mas, ainda assim, correspon- vista Brasileira de Ensino de Física (RBEF) e
dente a apenas 10% de toda a produção Física na Escola (FnE), o Encontro Nacional
do GT 8 (63 artigos nos últimos três anos). dos Pesquisadores em Ensino de História
Da mesma forma que os textos que (ENPEH), e vários eventos e periódicos
trabalham com a formação de professores voltados ao ensino de língua materna e
de modo generalizado, os artigos voltados à estrangeiras, muitos vinculados à linha de
formação de professores para as disciplinas linguística aplicada (Congresso de leitura
específicas apresentam temáticas bem va- do Brasil [COLE], a Revista do Grupo de Es-
riadas. Um artigo tratou das representações tudos Linguísticos do Estado de São Paulo
sociais acerca do trabalho docente, outro [GEL], o Congresso Brasileiro de Linguística
das representações acerca da formação Aplicada [CBLA], a Revista Brasileira de
pedagógica oferecida na universidade, o Linguística Aplicada [RBLA]) etc.

168 Graziela G. PACHANE; Rodrigo P. L. DOMICIANO. Formação de professores das disciplinas...


Todos esses são eventos e periódi- Na análise dos painéis e pôsteres
cos aos quais não pudemos nos dedicar apresentados em 2004 (num total de 616
devido a limitações de tempo, pessoal, e trabalhos), foram registrados 100 textos de-
mesmo de conhecimento específico nas dicados a tratar da formação de professores
áreas. No entanto, ao analisarmos os pe- de maneira geral, 24 apenas da formação de
riódicos e eventos da área de educação, pedagogos e 37 dedicados às demais licen-
pudemos observar que não tem ocorrido ciaturas. A análise dos anos de 2002 e 2006
uma profícua articulação dos estudos so- foi mais restrita, sendo que de um total de
bre o ensino de disciplinas específicas e 200 trabalhos analisados, foram considera-
a área de educação como um todo, a não dos como pertencentes à temática específica
ser em raras exceções. de nossa pesquisa apenas 12 textos.
O ENDIPE, talvez por sua especifici- Dessa abordagem inicial, foi possível
dade, foi o evento que apresentou mais tex- observar que os painéis e pôsteres se con-
tos relativos às licenciaturas, sendo o que centravam predominantemente no estudo
nos exigiu mais atenção para a realização da formação continuada (o que pode
da análise qualitativa das publicações. explicar a existência de poucos trabalhos
Devido ao grande número de tra- voltados à formação inicial, nosso objeto
balhos por edição do evento, a tabulação de análise), do uso de novas tecnologias
foi realizada por diferentes bolsistas (num na educação e da introdução de cursos de
total de 8 participantes envolvidos no pro- formação de professores na modalidade à
jeto), em várias etapas, e a partir de uma distância (na verdade, cursos semipresen-
amostragem dos trabalhos. Portanto os ciais). Outras temáticas extremamente
resultados aqui sintetizados referem-se valorizadas no período dizem respeito a
a tendências encontradas nas diversas questões relativas a inclusão e educação
edições do evento que foram analisadas infantil. De maneira geral, podemos sinte-
(2002, 2004, 2006 e 2008), e não à aná- tizar que as pesquisas apresentadas no
lise exaustiva da totalidade de trabalhos período, em sua maioria, demonstram
apresentados. uma preocupação com a adequação do
Deve-se destacar, também, uma limi- currículo de formação dos professores às
tação decorrente do fato de os dados não novas políticas nacionais de educação.
terem sido analisados integralmente pela Importa destacar que a predominân-
mesma pessoa: embora tenhamos tentado cia desses objetos de estudo pode ser tanto
estabelecer procedimentos padronizados, a decorrência da temática específica de cada
análise final, a seleção dos dados que seria edição do ENDIPE, como da proximidade
importante ressaltar e, principalmente, a temporal com acontecimentos relevantes, a
escolha quanto à inclusão ou não de um exemplo da divulgação das novas diretrizes
artigo em determinada categoria, dependia, curriculares para os cursos de graduação
muitas vezes, da interpretação que cada ou do fato de estar-se completando uma
um dava ao texto e/ou resumo lido. década da LDB (Lei 9394/96).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 165-175, jan./jun. 2012. 169


Quanto aos cursos que mais apre- Em relação aos cursos que mais
sentam artigos nessas edições do evento, frequentemente são objeto de análise nos
temos: Biologia, Educação Física, Matemá- trabalhos, observamos predominância de
tica e Ensino de Ciências. Destacam-se, estudos relativos a Biologia, Matemática e
também, estudos que tratam de vários Educação Física. Química, Física e Ciências
cursos de licenciatura ao mesmo tempo, têm um número relevante de textos, porém
sem privilegiar nenhuma área do conheci- chama-nos a atenção o fato de terem sido
mento. Um dos tópicos que se sobressaem encontrados tão poucos estudos sobre
nos estudos específicos das licenciaturas é História e Geografia, além de Letras, tanto
a respeito da realização de estágios curri- na modalidade língua portuguesa quanto
culares nos cursos de graduação. língua estrangeira.
Do ano de 2008, foram analisados Foram encontrados trabalhos relati-
892 artigos, entre aqueles na modalidade vos ao ensino de dança, educação musical,
pôster ou painel, tendo sido encontrados filosofia e arte-educação, porém, com ape-
17 que correspondiam mais precisamente nas um ou dois artigos cada um, ao longo
ao tema de nossa pesquisa. de todas as edições do ENDIPE que foram
Novamente, temáticas como forma-
objeto de análise.
ção continuada, (novas) tecnologias e polí-
Observa-se, também, um conjunto
ticas públicas de formação foram bastante
amplo de estudos que tratam das licencia-
recorrentes. Destacam-se, também, em
turas de maneira geral, englobando mais
2008, estudos sobre a violência na escola
de 4 cursos ao mesmo tempo, sem privile-
e educação infantil.
Buscando focar apenas nos trabalhos giar nenhuma área do conhecimento. A
relativos à formação de professores para a título de exemplo, basta-nos mencionar
docência das disciplinas específicas da edu- que obtivemos 19 artigos de Biologia, 16
cação básica, observamos que as temáticas de Matemática e 13 de Educação Física, ao
predominantes no conjunto das edições do passo que 34 tratavam de licenciaturas de
ENDIPE analisadas diziam respeito a: reali- maneira geral. Esses textos dedicavam-se à
zação de estágio e relação teoria-prática nos análise de questões genéricas relativas à
cursos de graduação; currículo dos cursos formação do licenciado, como à percepção
de formação de professores; uso de tecno- dos alunos sobre a disciplina didática, aná-
logias da comunicação; políticas educacio- lise da produção escrita de licenciandos de
nais voltadas à formação de licenciados; determinada universidade, representações
práticas interdisciplinares; inclusão; ética; acerca do trabalho e da formação docente,
preconceito; didática e formação pedagógi- etc.
ca; elaboração escrita dos licenciandos; me- A fim de complementar nosso es-
mória e escrita de memoriais; processos de tudo, foi feita uma consulta ao banco de
avaliação; educação no campo e psicologia teses da CAPES (http://www.capes.gov.br/
da educação na formação de licenciados. servicos/banco-de-teses).

170 Graziela G. PACHANE; Rodrigo P. L. DOMICIANO. Formação de professores das disciplinas...


A busca por dissertações e teses no a licenciaturas em Geografia, História e
portal foi feita por meio do uso de palavras- Letras.
-chave. Essa estratégia oferece um risco, Quanto às temáticas desses estudos,
pois dependemos de como o autor fez destacam-se as que dizem respeito à
a classificação para podermos encontrar importância da prática no processo de
um trabalho. Por essa razão, o estudo fica formação de professores e as que enfocam
um pouco prejudicado, pois, por um lado, experiências na disciplina estágio super-
podemos deixar de computar trabalhos visionado nas diferentes licenciaturas,
que efetivamente nos interessariam e, por aproximando-se dos resultados encontra-
outro, podemos computar dados referentes dos nos outros momentos da análise, em
a trabalhos que apenas tiveram estudantes especial do ENDIPE.
de licenciaturas como sujeitos, mas que Algo em torno de 15% das teses e
em nada dizem respeito à formação de dissertações tratavam de estudos sobre
professores. Por essa razão, resolvemos as licenciaturas de maneira geral, sem
incluir também uma busca com o termo especificar um curso. Nesses casos, era
formação de professores a fim de comple- analisada, por exemplo, a política interna
mentar o registro. para as licenciaturas de determinada
Se, num primeiro momento, trabalha- instituição ou algumas experiências com
mos com as palavras-chave que nos aju- as disciplinas didática, metodologia do
dam na seleção do material, é necessária ensino ou psicologia educacional para as
a leitura dos resumos de cada um dos licenciaturas de determinada universidade.
textos a fim de confirmarmos sua inserção Em termos quantitativos, na consul-
ou não em nossa amostragem (por exem- ta à base de dados da CAPES, pudemos
plo, no caso de tratar-se de estudo sobre observar que entre 1997 e 2008, houve
a formação de professores para as séries expressivo aumento na produção de tra-
iniciais do ensino fundamental, que não balhos de pós-graduação relacionados à
faz parte do escopo de nossa análise no área da educação, passando de 980, em
momento). 1997, para 5098, em 2008 (ampliação de
Devido à quantidade de material mais de cinco vezes). No caso de trabalhos
existente, não nos foi possível realizar essa sobre formação de professores, o aumento
análise detalhada até o presente momento. também foi expressivo, passando de 225
No entanto um olhar ainda superficial para 1637 no mesmo período (crescimento
sobre esse material nos mostrou a predo- de aproximadamente sete vezes). Por fim,
minância de teses voltadas à formação de no caso de teses com palavra-chave licen-
professores de Matemática (1/3 do material ciatura, o aumento foi de 23 para 254, ou
analisado), Educação Física (pouco mais seja, mais de dez vezes o número inicial.
de 10%), seguidos por Biologia, Química Tal conclusão nos faz questionar,
e Física (ou ensino de ciências). Uma vez então, por que razão o número de tex-
mais, foram poucos os trabalhos relativos tos sobre licenciaturas nos periódicos, e

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 165-175, jan./jun. 2012. 171


mesmo no GT 8 – Formação de Professores foco de estudo as especificidades de
da Anped, é ainda tão pequeno, se o nú- ensino das disciplinas pertencentes
mero de teses sobre essa temática parece ao currículo da escola básica: Artes,
ter crescido exponencialmente no mesmo Biologia, Ciências, Educação Física,
Filosofia, Física, Geografia, História,
período. Onde estariam sendo produzidos
Português, Inglês, Matemática, Psico-
esses trabalhos? Em programas da área de logia e Química. Ocorreu também um
educação ou em suas áreas específicas? número significativo de pesquisas
Onde estariam sendo divulgados? Estariam que discutiram propostas alternativas
sendo classificados por seus autores de de formação. Entre os 17 trabalhos
modo diferente do que nós classificamos? que focalizaram esta questão desta-
E, mais importante ainda, de que maneira cam-se estudos sobre o papel central
a área de educação vem se relacionando das atividades de Estágio Supervisio-
com as áreas básicas no sentido de discutir nado e da Metodologia de Ensino na
a formação de seus professores? formação docente. Neste grupo de
estudos sobre propostas alternativas
Antes de finalizar nossa análise dos
de formação também foram relatadas
trabalhos encontrados no portal da CAPES, experiências que tiveram como ideá-
gostaríamos de apresentar um trecho do rio a formação do professor reflexivo,
trabalho coordenado por Iria Brzezinski em que os licenciandos aprendem a
(2004) com a colaboração de Elsa Garrido, pesquisar a prática pedagógica e a
intitulado Formação de profissionais da cultura escolar, além de desenvolver
educação (1997-2002). As autoras de- projetos de intervenção que lhes
monstram que, de um total de 165 teses permitem refletir sobre sua atuação
e dissertações sobre formação inicial de no local de trabalho. (BRZEZINSKI,
professores defendidas no período, 17 2004, p. 31).
tratam de licenciaturas em geral, 13 de São dados que, de nosso ponto de
Educação Física, 13 de Matemática, nove vista, corroboram os caminhos da análise
de Letras, seis de Física, seis de Ciência e por nós realizada que, embora ainda in-
quatro de Artes. As demais licenciaturas conclusa, demonstra a predominância de
(biologia, filosofia, geografia, história, psi- estudos sobre experiências de estágio su-
cologia e química) contam com menos de pervisionado e de disciplinas como didática,
três trabalhos cada, num total de 63 traba- metodologia do ensino, a predominância de
lhos sobre formação inicial/licenciaturas. estudos sobre licenciaturas em geral, bem
Segundo as autoras: como de matemática e educação física.
A subcategoria Licenciatura foi estu- De diferencial, encontramos a existência
dada em 80 (49,5%) do total dos tra- de mais estudos em letras e menos em
balhos da categoria Formação Inicial. ciências biológicas no material analisado
Essa subcategoria apresentou confi- por Brzezinski (2004), bem como a ênfase
guração plural, uma vez que as pro- na temática do professor reflexivo que, em
duções sobre a licenciatura têm como nosso caso, já se encontra mais restrita.

172 Graziela G. PACHANE; Rodrigo P. L. DOMICIANO. Formação de professores das disciplinas...


Considerações finais geografia, ciências sociais e filosofia, são
os que contam com o número menos
Ao longo da análise, pudemos cons- expressivo de trabalhos ao longo de todo
tatar que a produção acerca da formação o material analisado.
nos cursos de Licenciatura vem sendo de- Estudos sobre “licenciaturas” de
senvolvida em programas de pós-gradua- maneira geral, sem privilegiar determinada
ção de todo o país, sendo bastante restrita área de estudos, ainda é predominante em
nos demais fóruns analisados, sejam da relação ao estudo de qualquer licenciatura
área educacional ou da área específica a isoladamente (podendo ser aí incluído até
que cada licenciatura está vinculada, com o caso de pedagogia).
exceção de um evento específico, o ENDIPE. Não nos foi possível averiguar
Nos periódicos disponíveis na base com precisão quais são as abordagens
de dados dos SciELO, mesmo na área de metodológicas mais utilizadas no período
educação, são poucos os trabalhos que estudado. Nesse ponto, compartilhamos
se dedicam a analisar a formação de pro- com André (2010, p. 281-283) e Brzezinski
fessores para a docência das disciplinas (2006, p. 46) a dificuldade ao tentar delimi-
específicas da educação básica. O mesmo tar a metodologia adotada nos trabalhos
acontece nas Reuniões Anuais da ANPED, analisados, uma vez que muitas não estão
que contam com um Grupo de Trabalho especificadas ou estão confusas, apresen-
(GT) específico sobre formação de profes- tando inconsistências em sua definição
sores. e/ou demonstração ao misturar tipos de
Quanto às áreas de formação básica pesquisa ou fundamentações teórico-me-
que mais realizam estudos sobre a forma- todológicas que, a princípio, seriam incom-
ção de seus professores, destacam-se a patíveis, até mesmo antagônicas.
matemática (que conta hoje com amplo Uma observação que é possível fa-
desenvolvimento da área específica de zer nesse sentido, no entanto, é a grande
educação matemática), a educação física e ênfase em estudos de caso, com a con-
as ciências biológicas. Vêm se avolumando, centração de análises em uma instituição,
também, estudos na área de “ensino de uma disciplina, um curso de determinada
ciências”, que, de maneira geral, englobam universidade etc.
física, química e biologia e, muitas vezes, a No que diz respeito aos temas mais
própria matemática. Já no caso de Letras, recorrentes, de modo geral, há muitos es-
há poucos estudos apresentados em espa- tudos relativos a políticas educacionais e
ços específicos da educação, o que pode a temáticas de repercussão no momento
ocorrer pelo fato de a área de linguística (como inclusão, multiculturalismo ou EaD),
aplicada possuir fóruns próprios voltados havendo, ainda, poucos estudos com foco
à formação docente em língua materna ou em práticas cotidianas. No caso dos tra-
estrangeira. Os demais cursos, em especial balhos especificamente objeto de análise
das áreas de humanidades, como história, deste estudo, destacam-se as análises de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 165-175, jan./jun. 2012. 173


práticas de estágios em diferentes cursos curriculares”. Em nosso ponto de vista,
de graduação e da implementação de fica explícita a diferença de status entre
propostas curriculares ou de EaD. as temáticas relativas ao fazer docente
Muito do fato de tais temáticas se cotidiano (PACHANE, 2007, 2010b e 2010c)
sobressaírem pode estar relacionado ao e aquelas mais afeitas aos assuntos “da
fato de a maior parte dos trabalhos ser moda” ou destinadas ao olhar para as
apresentada no ENDIPE, no entanto a aná- circunstâncias macropolíticas da educação
lise das teses e dissertações, embora ainda brasileira.
inconclusa, aponta a mesma tendência. A pouca expressividade (em ter-
Porém não discordamos das observações mos quantitativos) dos trabalhos sobre
propostas por André (2010, p. 281): segue- licenciatura, bem como essa escassez de
se a um modismo, a temas que em deter- trabalhos voltados à relação teoria-prática,
minado momento direcionam a atenção em especial nos fóruns mais fortalecidos
do público acadêmico ou as agências academicamente, como os periódicos
de financiamento, a exemplo do caso de elencados no SciELO, pode ser sintomática
uso das tecnologias de comunicação na de como a própria área da Educação tem
educação, inclusão, multiculturalismo etc. concebido a formação dos professores das
Temas que estão na “ordem do dia” dos disciplinas específicas da educação básica,
debates, mas que nem sempre atendem demonstrando o longo caminho ainda a
a dimensões efetivas que auxiliam na ser percorrido para que se torne objeto
promoção de uma educação de melhor legítimo de pesquisas educacionais, e, mais
qualidade. difícil ainda, nas áreas de seus conteúdos
Nesse sentido, torna-se preocupante específicos. Demonstra, também, a necessi-
a escassez de trabalhos voltados à análise dade de firmarem-se intercâmbios entre as
da relação teoria-prática nos cursos de áreas das especificidades e pedagógicas,
formação de professores (apenas dois), no intuito de ampliar as discussões sobre
embora haja muitos estudos de caso como se dá a formação de formadores
a respeito de experiências de “estágios no país.

Referências

ANDRÉ, Marli. A pesquisa sobre formação de professores: contribuições à delimitação de um


campo. In: DALBEN, Angela. Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho
docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 273-287.
BRZEZINSKI, Iria (Coord.) Formação de profissionais da educação (1997-2002). Brasília: MEC/INEP,
2004. Disponível em: <http://www.publicacoes.inep. gov.br/resultados.asp?cat=12&subcat=30>.
Acesso em: 28 maio 2011.

174 Graziela G. PACHANE; Rodrigo P. L. DOMICIANO. Formação de professores das disciplinas...


FERREIRA, N. S. A. Pesquisas denominadas estado da arte: possibilidades e limites. Educação &
Sociedade, 79 (1), p. 257-274, 2002.
______. Pesquisa em leitura: um estudo dos resumos de dissertações de mestrado e teses de
doutorado defendidas no Brasil, de 1980 a 1995. 1999. 312p. Tese (Doutorado) – Faculdade de
Educação, Universidade de Campinas, UNICAMP, Campinas, SP, 1999.
HADDAD, S. et al. O estado da arte das pesquisas em Educação de jovens e adultos no Brasil.
A produção discente da pós-graduação em educação no período 1986-1998. São Paulo, 2000,
123p. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org/ejaea>. Acesso em: 10 jun. 2006.
PACHANE, Graziela Giusti. Pesquisa sobre a prática docente: objeto legítimo do fazer universitário?
In: MONTEIRO, Filomena Maria de Arruda; MÜLLER, Maria Lúcia Rodrigues (Orgs.). Profissionais
da educação: políticas, formação e pesquisa. Cuiabá: EdUFMT, 2007. v. 3, p. 141-152.
______. Formação de professores das disciplinas específicas da educação básica: estado-da-arte
e evolução das licenciaturas no Brasil pós-LDB In: ENCONTRO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO
DA ANPED CENTRO-OESTE, 10. Anais... Uberlândia: UFU-FACED, 2010a. v. 1, p. 1-10.
______. Pesquisas sobre licenciaturas e prática docente na educação básica: objetos legítimos
do fazer universitário? In: ENDIPE: CONVERGÊNCIAS E TENSÕES NO CAMPO DA FORMAÇÃO E
DO TRABALHO DOCENTE. Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2010b. v. 1, p. 1-15.
______. Prática docente: objeto legítimo da pesquisa acadêmica? Contrapontos, Itajaí, SC, v. 10,
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PUENTES, R. V. et al. Estado del Arte sobre formación de profesores en América Latina: significa-
do, orígenes y consideraciones teórico-metodológicas. Revista Digital Umbral 2000, Chile, 2005.
Disponível em: <www.reduc.cl>. Acesso em: 10 jun. 2006.

Recebido em dezembro de 2012


Aprovado para publicação em março de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 165-175, jan./jun. 2012. 175


Administração escolar: uma perspectiva crítica para
a atualidade
A critical view on school administration
Waldemar Marques
Doutor em Educação (UNICAMP). Professor do Programa
de Pós-Graduação em Educação, UNISO.
E-mail: Waldemar.marques@prof.uniso.br

Resumo
Este artigo tem como foco a administração educacional vista através de um olhar crítico. Apresenta e
discute diferentes abordagens teóricas destacando suas implicações para a prática da administração
educacional. Apresenta as abordagens derivadas das ciências sociais e da teoria geral da administração,
destacando suas limitações enquanto abordagens elaboradas de fora da área da educação e da realidade
escolar. Neste artigo são questionados resultados práticos dessas abordagens. Em contraposição, busca-se
apresentar e discutir uma abordagem de base fenomenológica, que parte das experiências vividas dos
atores da vida escolar; a escola é ponto de partida. Essa abordagem é apresentada como possível de
resultados inovadores para a administração escolar pelo fato de partir do conhecimento detalhado da
escola e seus componentes fundamentais.
Palavras-chave
Administração escolar. Abordagens. Visão crítica.

Abstract
This article focuses on educational administration viewed through a critical view. It presents and discusses
different theoretical approaches, highlighting their implications for the practice of educational adminis-
tration. It presents the approaches derived from social science and the general theory of administration,
emphasizing their limitations as approaches drawn from outside the area of education and school reality.
This article questioned the practical results of such approaches. In contrast, it seeks to present and discuss
a phenomenological approach, which involves actors’ experiences of school life, as a starting point. This
approach is presented as a possibility for breakthrough results for school administration since it brings
knowledge of the school life as its key component.
Key words
School administration. Approaches. Critical view.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 177-184, jan./jul. 2012
Este artigo reflete a trajetória de vida visto através de outro ponto de vista, no
acadêmica do autor, como professor por caso, afirmativo. Neste sentido, ser crítico
muitos anos da disciplina Administração está associado à habilidade para perceber
Escolar no Curso de Pedagogia na Uni- e colocar problemas, dúvidas pertinentes.
versidade Federal de São Carlos e como Caracteriza-se pela capacidade em fazer
coordenador acadêmico desta mesma indagações relevantes, fundamentais que
Universidade no Campus de Sorocaba. põem em questão fatos e percepções tidas
Não é um acerto de contas com o passado; como já assentadas, definitivas, corretas,
apenas um esforço de sistematização fora de qualquer suspeita. Nessa pers-
de ideias que possam servir à reflexão pectiva, ser crítico é penetrar no âmago
crítica sobre os rumos dessa área de dos fatos, é ir fundo nas questões. Daí
conhecimento, de pesquisa e, sobretudo, decorre que ser crítico, exercer a crítica
de prática de inegável importância para a exige competência e conhecimento de
formação do educador. Assim, este artigo causa. Portanto, mais forte do que a ideia
visa apresentar e discutir diferentes olhares de controvérsia, de discordância frente a
sobre a administração escolar firmando um posições alheias, a ideia de crítica está
posicionamento que se pretende crítico a associada a questionamento, problemati-
esse respeito, potencializador de práticas zação, de dúvida permanente, construção
inovadoras em direção a uma escola de de argumentação consistente, motor da
qualidade. ciência, do conhecimento que se renova.
O termo “crítico” aparece recorrente- É sob esse ponto de vista que o presente
mente na linguagem pedagógica muitas artigo é apresentado.
vezes sem apresentar um significado claro. Neste artigo, são colocadas em dú-
É um termo que empresta prestígio a quem vida perspectivas de administração escolar
o emprega, que passa a ser visto como vigentes abrindo hipóteses de alternativas
alguém identificado com posições inova- outras que se acredita mais condizentes
doras. Seu uso, contudo, está envolto numa com a especificidade da educação escolar;
bruma de indefinições que mais suscitam alternativas que apontem para uma prática
dúvidas do que contribuições efetivas para de administração mais eficiente e mais
tornar precisa a linguagem pedagógica e eficaz, considerando-se os meios e os fins
iluminar práticas consistentes. Daí o risco da educação.
de se tornar moda, não mais que isto. Daí A administração escolar no Brasil
também a intenção deste artigo em buscar pode ser vista e é efetivamente vista através
seu significado. de diferentes olhares. É suficientemente
O posicionamento crítico é comu- sabido que o modo como olhamos e como
mente associado à ideia de controvérsia, percebemos os fatos e acontecimentos
discordância, não aceitação de posições afeta o modo como lidamos com eles. Daí
firmadas. Traz, assim, uma conotação de a pertinência da questão proposta neste
negação. Mas pode e mesmo deve ser artigo; ou seja, trazer para análise olhares

178 Waldemar MARQUES. Administração escolar: uma perspectiva crítica para a atualidade
que, por assim dizer, partem de fora da da sociedade. Os parâmetros de
educação para dentro dela; partem de fora operação estabelecidos pela admi-
da escola para nela adentrar depois. nistração da educação tem sua
Dentre esses diferentes olhares da- origem e legitimação nas instituições
econômicas, políticas e culturais da
remos destaque aos seguintes: o olhar da
sociedade. A administração da edu-
sociologia, o da política e o da teoria da
cação desempenha, dessa forma, um
administração. São olhares que partem papel de integração interna entre os
de fora da educação e da escola, e vão elementos componentes do sistema
constituir discursos para sua compreensão. e uma função de mediação externa
Em seguida, apresentaremos outro olhar visando à consecução dos objetivos
alternativo, que seria o olhar do educador; educacionais da sociedade.
um olhar que surge do interior da escola,
Do lado oposto à abordagem funcio-
de quem está imerso nas questões do
nalista, a abordagem dialética enxerga
cotidiano escolar.
na escola o movimento dos contrastes, a
Do ponto de vista sociológico, a
persistência dos conflitos, sendo ela própria
escola pode ser analisada a partir de
espelho da sociedade maior assentada
duas vertentes antagônicas: a abordagem
sobre contradições, a maior delas a de
funcionalista e a abordagem dialética.
classes sociais. Nessa perspectiva, o conflito
No primeiro caso, a escola é encarada
atua como elemento criador, impulsionador
como um sistema que requer para seu
de mudanças, de inovação. Nesse caso, o
bom funcionamento a manutenção de
papel da educação é o de impulsionador
um equilíbrio, sustentado no consenso
do movimento que busca a superação
do pensar e agir dos seus atores. Nessa
das contradições sociais, mediante uma
perspectiva, o conflito, embora aceito por
formação e ação críticas em direção a uma
vezes como inevitável, deve ser sanado,
nova ordem. Numa avaliação contundente,
pois, no limite, leva à desorganização, ao
Sander (1984, p. 79) conclui que
caos, comprometendo o funcionamento
da escola. A educação, por meio da esco- À semelhança da experiência euro-
la, desempenha um papel integrativo na péia, a pedagogia do conflito exposta
no Novo Mundo se concentra na
sociedade, atuando como fator de coesão
crítica à teoria educacional das so-
social. Na visão de Sander (1984, p. 67), ciedades capitalistas, sem, no entanto,
A administração da educação fixa e apresentar uma alternativa consolida-
regula os parâmetros de operação do da para orientar a teoria e a prática
sistema educacional, visando a inte- educacional.
grar os seus elementos individuais,
Outra abordagem da escola, a po-
grupais e institucionais em interação,
e a dimensionar o processo de trans- lítica apresenta afinidades com a aborda-
formação das entradas em saídas em gem dialética. A questão do poder e a
função dos objetivos educacionais disputa pelo seu controle é o seu foco.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 177-184, jan./jun. 2012. 179


Essa perspectiva adquire projeção no Brasil Os colegiados foram, também, outra
no movimento de democratização e supe- esperança de democratização da adminis-
ração do autoritarismo militar. A ideia de tração escolar. Mesmo aqui, os colegiados
participação passa a ter uma significação são constituídos muitas vezes de forma
muito forte; participação enquanto repre- cartorial, e seu funcionamento tem indi-
sentação efetiva dos diferentes segmentos cado a prevalência dos professores sobre
que compõem a “comunidade escolar” nos os demais representantes da comunidade
órgãos colegiados da escola; participação escolar.
que significa compartilhar as decisões que Como as demais abordagens apre-
afetam os rumos da escola. Por conta disto, sentadas, também nesse caso o ponto de
o processo de escolha do dirigente escolar partida é exterior à escola: concepções de
é um dos aspectos mais sensíveis neste democracia, de formas de organização e
processo de democratização do poder no exercício de poder, uma vez levadas para
interior da escola. Na eleição dos diretores a escola teriam o condão de transformá-la,
foram depositadas muitas esperanças no abrindo-lhe um caminho inovador. A esse
esforço de superação do clientelismo, do respeito, as constatações de Mendonça
patrimonialismo e do exercício do poder de parecem não alimentar muitas esperanças.
forma centralizada e discricionária no inte- Diz ele:
rior da escola. Segundo Mendonça (s/d), a Ao abordar aspectos da gestão demo-
crática do ensino público ligado à
[...] eleição de diretores... é o processo
participação, foi possível constatar
que melhor materializou a luta contra
que, ao contrário do que se idealiza
o clientelismo e o autoritarismo na ad- sobre a convivência entre os mem-
ministração da educação, tendo sido, bros da comunidade escolar, os meca-
durante seguidos anos, a principal nismos adotados pelos sistemas não
bandeira de luta a favor da gestão lograram pôr termo à guerra entre
democrática no ensino público. os segmentos. Diretores, professores
Contudo, assinala Mendonça (s/d), e funcionários, com prevalência
vários estudos realizados apontaram “o dos primeiros, ainda monopolizam
os foros de participação. A escola
excesso de personalismo na figura do
pública ainda é vista pelos usuários
candidato, falta de preparo de alguns como propriedade do governo ou do
deles, populismo e atitudes clientelísticas pessoal que nela trabalha. O profes-
típicos da velha política partidária, aprofun- sor comporta-se como dono do seu
damento de conflitos entre os segmentos cargo e dos alunos de suas classes...
da comunidade escolar, comportamento (MENDONÇA, s/d).
de apropriação do cargo pelo candidato Enfim, a teoria sugere um caminho,
eleito” como fatores que contribuíram para mas a prática nutrida pela tradição da
arrefecer as esperanças de melhoria da sociedade brasileira recria a teoria a seu
escola que embalam essa ideia. modo; ou mesmo, nega-a sem muito

180 Waldemar MARQUES. Administração escolar: uma perspectiva crítica para a atualidade
alarde, até aceitando-a aparentemente, só documento esvaziado do seu significado,
aparentemente. porque elaborado em resposta a pressões
Outro olhar sobre a administração externas; não é um documento síntese
escolar, que também se origina fora da do movimento e do horizonte de ação da
escola, refere-se à abordagem da adminis- escola. Assim, não parece seguro concluir
tração em geral. Aqui a escola é vista como que todo o esforço de racionalização
uma organização que, como qualquer consubstanciado no projeto pedagógico
outra organização, precisa ser administra- tenha apresentado resultados observáveis
da. A orquestra é uma metáfora do que é para a melhoria de escola e das práticas
uma organização, de como ela funciona, administrativas no seu interior.
ou deve funcionar, incluindo aí a escola. Contudo não se podem negar as
O gerente, o administrador é o maestro, contribuições que as áreas de conhecimen-
o regente. Conforme afirma Maximiano to e as abordagens aqui apontadas e breve-
(1990, p. 60), mente discutidas trazem para a educação
e para a administração escolar. Seria uma
o gerente como maestro é capaz de
fazer um conjunto de pessoas produ- estupidez negar a enorme contribuição das
zir um resultado coletivo, utilizando ciências sociais nesse campo. O que está
instrumentos que ele, maestro, conhe- posto em questão é que o ponto de partida
ce e saber operar, mas não tão bem e o foco estão equivocados nesse processo.
quanto qualquer um dos operadores. Não se parte do “objeto” em si: educação,
A competência técnica do maestro escola. E importante destacar aqui que
está em dirigir a orquestra, não em ex- educação e escola possuem campo pró-
trair música dos instrumentos, o que prio, identidade epistêmica. O agir nesse
é especialidade dos seus dirigidos. campo pressupõe antes conhecê-lo em
A definição dos objetivos organi- profundidade; identificar seus componentes
zacionais, a definição dos papéis e res- específicos e suas características de forma
ponsabilidades, o plano de trabalho, precisa. É, talvez possamos dizer, “dever
acompanhamento e controle do seu de- de ofício” do educador, como de qualquer
senvolvimento são elementos cruciais na outro profissional: o domínio de sua área
administração. O projeto da organização é de conhecimento e das ferramentas de
a estrela guia do seu operar, que corporifi- atuação. Há 30 anos, Vanderberg (1982, p.
ca a racionalidade administrativa. Operar 24) chamava a atenção dos estudiosos e
racionalmente, de modo planejado assegu- praticantes da administração educacional
ra a eficiência e a eficácia da organização. para o fato de que é
Também aqui o lapso entre a intenção e [...] um erro de categoria considerar o
o gesto se faz presente. A exigência das estudo da administração educacional
autoridades educacionais de que a escola como um membro da família do es-
tenha seu projeto pedagógico desemboca, tudo da administração. Administração
na maioria das vezes, na feitura de um educacional não é similar a outros

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 177-184, jan./jun. 2012. 181


tipos de administração devido à es- especial atenção às suas caracterís-
pecificidade da instituição escolar. O ticas essenciais.
estudo da administração educacional O ponto é fazer uma pura descrição
não é um domínio da teoria da admi- de um fenômeno particular, descrição
nistração ou sociologia aplicada. É que não explica o fenômeno, não
um membro da família do estudo da especula sobre ele. (VANDERBERG,
educação. 1982, p. 27-28).
Reafirma o autor que é “um erro A partir desse ponto e considerando
de categoria” porque “toma uma teoria essa abordagem, duas perguntas seminais
destinada a explicar um conjunto de fenô- se colocam para a administração escolar:
menos fora do seu contexto e impô-la a a) quais são os fatos fundamentais consti-
outro conjunto de fenômenos”. tutivos da escola e suas implicações para
No que se refere à abordagem or- a administração escolar? Como lidar com
ganizacional – afirmação extensiva às eles, do ponto de vista da prática adminis-
demais abordagens aqui mencionadas –, trativa escolar? A escola, conforme afirma
a teoria que as sustenta “desenvolveu-se Vanderberg (1982, p. 25), é primariamente
em outra cultura e foi formulada para servir “uma coletividade educativa” formada por
ao estudo e gerenciamento de corporações “um conjunto de pessoas especificamente
abrangendo trabalhadores de linha de agrupadas para a promoção e maximização
montagem, chefes de seção, executivos da aprendizagem”. Daí resulta a necessida-
juniores e seniores que coletivamente fa- de de utilizar a “linguagem e os conceitos
bricam algum tipo de produto ou produtos”. associados à instituição” escolar, tais como:
Ao contrário, as escolas não têm chefes ou classe, professor, aluno, aula, livro, aprendi-
operários e nada fabricam. zagem, programa, matérias, sala de aula,
Assim sendo, o estudo da adminis- saberes escolares e outros. São conceitos-
tração educacional e a teoria dele derivada chave que captam o que é específico e
deverão partir de bases empíricas refe- essencial da escola. Tais conceitos precisam
ridas aos conhecimentos e experiências ser estudados, compreendidos e suas “carac-
do “experimentado praticante”; deverão terísticas essenciais” evidenciadas de modo
partir da compreensão dos fenômenos a alimentar uma prática administrativa que
que envolvem a vida escolar e o modo promova a aprendizagem de qualidade. É
como o profissional experiente, profundo preciso assegurar que cada “fenômeno par-
conhecedor da escola e suas especificida- ticular” seja “particularmente compreendido”.
des, lida com os fatos e as situações da Em suma, conclui Vandenberg (1982, p. 31),
vida escolar. Trata-se, pois da abordagem o “mais importante para” a “administração
fenomenológica. Tal abordagem, educacional é uma teoria da essência da
[...] é basicamente um método para educação escolar”.
descrever os fenômenos como eles Assim, a definição das característi-
aparecem à consciência, atribuindo cas essenciais dos fatos escolares deverá

182 Waldemar MARQUES. Administração escolar: uma perspectiva crítica para a atualidade
fornecer os parâmetros de referência para sivamente um quadro consistente dos
estabelecer os fins e os meios da adminis- fatos escolares; consistente porque pode
tração escolar. Por exemplo, considerando levar a resultados práticos na direção da
que uma classe de aula se define e se maximização de aprendizagens significati-
caracteriza pelo esforço dos seus integran- vas. Contudo este é um caminho difícil de
tes em maximizar a aprendizagem, a ad- percorrer. A história, a tradição e a cultura
ministração escolar deverá estar atenta ao escolar, segundo afirma Hutmacher (1995,
que prejudica essa aprendizagem, ou ao p. 70 e 74), demonstram que as escolas
que está faltando para que esta ocorra, e “possuem poucas estruturas de trabalho”
prover as condições necessárias para que “sobre o trabalho que realizam”.
ela se dê dentro do desejado e esperado. Devido à ausência de uma verdadeira
No esforço de maximizar a aprendizagem, cultura de concertação e de coopera-
enquanto característica essencial definido- ção (auto) organizada os estabele-
ra de uma classe escolar, o conhecimento cimentos de ensino não reúnem, à
fornecido pela psicologia e pela sociologia partida, as melhores condições para a
a respeito de como as pessoas aprendem criatividade coletiva, para a difusão e o
é uma ferramenta indispensável; com a debate sereno de idéias pedagógicas.
fundamental diferença de que, neste caso, Em nosso país, Florestan Fernandes
o ponto de partida não é a sociologia ou (1960, p. 192-198) afirmava, há mais de
a psicologia, mas a educação escolar. Isso meio século, que as escolas criadas pelo
posto, é possível então pensar em inverter o Estado a partir de modelo rígido encontra-
processo pelo qual se ensina e se aprende vam-se desvinculadas do meio social onde
a arte da administração escolar; ou seja, estavam, e que tal modelo não apresentava
partindo do seu objeto próprio, a instituição possibilidades de inovação dada a inexis-
escolar e seus componentes fundamentais. tência de pressão ou controle social pelos
A segunda questão: que caminhos seus resultados; quadro que não parece
percorrer? É preciso estar consciente de ter mudado em sua essência. Ainda assim,
que a construção de uma teoria e prática deve-se estar atento à armadilha das visões
administrativa escolar não vem de fora; é amplas superestruturais, como determi-
uma construção que nasce e floresce no nantes exclusivos das possibilidades de
interior da própria escola. Nasce da inicia- mudança e que se arvoram muitas vezes
tiva de criar, no âmbito da escola, espaços como as únicas verdadeiramente críticas,
e tempos sistematica e rigorosamente visão que não é de Florestan Fernandes.
definidos de estudo e reflexão dos fenô- De qualquer forma, é uma armadilha
menos identificados como constitutivos porque pode levar ao imobilismo da ação.
da escola; estudo que deve trazer para A perspectiva aqui apresentada como
conhecimento e discussão experiências de balizadora da administração educacional
êxito, experiências que constituam fontes propõe outro caminho, o qual valoriza as
de dados que permitam compor progres- iniciativas partidas das unidades escolares.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 177-184, jan./jun. 2012. 183


Referências

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HUTMACHER, Wallo. A escola em todos os seus estados: das políticas de sistemas às estratégias
de estabelecimento. In: NÓVOA, António (Org.). As organizações escolares e análise. 2. ed. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1995.
MAXIMIANO, Antônio Cesar. Introdução à administração. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1990.
MENDONÇA, Erasto. A gestão democrática nos sistemas de ensino brasileiros: a intenção e o
gesto. [s.d.]. Disponível em: <http://302284.vilabol.uol.com.br/edubrasileira.htm>. Acesso em: 10
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SANDER, Benno. Consenso e conflito: perspectivas analíticas na pedagogia e na administração
da educação. São Paulo: Pioneira, 1984.
VANDENBERG, Donald. Hermeneutical phenomenology in the study of educational administra-
tion. The Journal of Education Administration, v. XX, n. 1, winter 1982.

Recebido em maio de 2012


Aprovado para publicação em maio de 2012

184 Waldemar MARQUES. Administração escolar: uma perspectiva crítica para a atualidade
Currículos da formação docente e práticas de
subjetivação
Teacher’s education curricula and subjectifying
practices
Maria Isabel Edelweiss Bujes
Doutora em Educação pela UFRGS. Professora no Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana
do Brasil (PPGEdu/ULBRA). E-mail: mibujes@terra.com.br

Resumo
A articulação entre os discursos da formação docente e as práticas pedagógicas da Educação Infantil
constituem o fulcro deste artigo. Situando a educação das crianças como um alvo biopolítico, segundo a
perspectiva foucaultiana, examina-se como o movimento pela curricularização da educação da infância
e da formação de professoras vem se associando a uma crescente preocupação com os processos de
produção das subjetividades docentes e infantis. Problematizando as propostas para a educação da
infância de três especialistas europeus e de uma brasileira, discute-se o caráter técnico do Currículo,
para identificá-lo como lugar de circulação de discursos que lutam para impor seus significados, forjar
identidades e posicionar os sujeitos ao descrever suas expectativas em relações a eles.
Palavras-chave
Formação docente. Educação infantil. Práticas de subjetivação.

Abstract
The articulation between teacher’s education discourses and pedagogical practices associated to early
childhood education constitute the focus of this paper. Situating chidren’s education as a biopolitical tar-
get, considering a foucauldian perspective, I examine how the curricularization of children’s and teacher’s
education are being associated to a deepening worry with the production of teachers and children sub-
jectivities. Problematizing two proposals of childhood education, one associated do a Brazilian context and
another to an European one, I discuss the curriculum technical character, identified as an environment
to discourses circulation where they fight to impose their meanings, constitute identities and position
subjects while they describe their expectations related to them.
Key words
Teacher’s education. Early childhood education. Subjectifying practices.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 185-199, jan./jul. 2012
[...] da criança nada se pode dizer. A Em grande parte, a expansão das
criança não se pode antecipar, nem iniciativas de institucionalização das
se projetar, nem se idealizar, nem se crianças (menores de 7 anos) se fez como
determinar. A criança não cumpre um movimento de ampliação da própria
nada, não realiza nada, não culmina escolarização em massa que se deu nos
nada. É um limite, uma fronteira, um
países do hemisfério norte, a partir das
salto, um intervalo, um mistério. (LAR-
últimas décadas do século XIX. No Brasil,
ROSA, 2002, p. 116)
tal expansão é tributária dos processos
de urbanização e industrialização do país
A modo de apresentação característicos da segunda metade do séc.
XX e pode ser compreendida, à imagem
Nas investigações que tenho empre-
do que ocorreu nas regiões setentrionais,
endido acerca dos processos educativos
como a ampliação do controle político
institucionalizados que se ocupam das
sobre setores da população, mantidos até
crianças pequenas e da formação de pro-
aí à sua margem. É a população que está
fessoras para a etapa da Educação Infantil,
em jogo quando se explica a necessidade
de um modo especial, tenho buscado
de educação institucionalizada, voltada
compreender como se articulam os discur-
para as crianças, a partir de fenômenos
sos da formação docente com aqueles como a urbanização, o trabalho feminino
que tratam da ação pedagógica voltada ou as novas configurações familiares. A
para as crianças. Com esse propósito em Educação Infantil se justifica, pois, porque
mente, o alvo de tais pesquisas1 têm sido ela se insere num espectro mais amplo:
os currículos, as propostas curriculares, ou naquele que se ocupa com a vida das
as diretrizes/referenciais que orientam a populações. Ela constitui-se como alvo de
elaboração de tais documentos. biopoderes que se exercem através de me-
canismos regulamentadores da população:
1
As pesquisas a que aludo acima, desenvolvidas Sistemas de seguro-saúde ou de se-
no Programa de Pós-Graduação em Educação da guro velhice; regras de higiene que
Universidade Luterana do Brasil (Campus Canoas), garantem a longevidade [...]; pressões
são as seguintes: De que infância nos falam e o que que a própria organização da cidade
querem os currículos de formação de professoras exerce sobre a sexualidade, portanto
para a Educação Infantil? (2002-2004), Infância e sobre a procriação; as pressões que se
discursos: uma análise pós-estruturalista de “ma- exercem sobre a higiene das famílias;
nuais”, projetos e propostas de formação docente
os cuidados dispensados às crianças,
(2005-2007), Novos dispositivos e novas ênfases
no governamento da infância (2007). Além destas, a escolaridade etc. (FOUCAULT, 1999,
talvez fosse interessante citar a pesquisa realizada p. 300).
sobre o Referencial Curricular Nacional para a A Educação Infantil pode ser situada,
Educação Infantil, cujo relatório está publicado no
livro: Infância e maquinarias, editado pela DP&A
portanto, no interior da tecnologia de poder
em 2002. que Foucault denominou biopolítica. Crianças

186 Maria Izabel Edelweiss BUJES. Currículos da formação docente e práticas de subjetivação
e adultos são seus alvos – tanto os proces- Interrogar as propostas
sos para garantir cuidados e educação a
contingentes massivos de crianças, quanto Para colocar em perspectiva esta
para permitir o trabalho de suas mães, sua análise que se ocupará em discutir algu-
disponibilidade para ocupar-se de tarefas mas ênfases dos currículos da formação
que excedem o cuidado com o lar e a prole, docente – aquela direcionada especifica-
para exemplificar toscamente – são cruciais mente aos programas que envolvem a
para garantir o controle de populações que infância (as crianças na faixa da Educação
vivem no espaço da cidade. É sobre a vida Infantil) –, sugiro que se volte a atenção,
das crianças presente e futura que tais preliminarmente, para interrogar como
mecanismos regulamentadores entretecem são significadas, por especialistas da área
sua teia. É em relação a um fenômeno educativa, as finalidades institucionais e
coletivo – a educação da criança pequena as propostas curriculares para a infância
– como um fenômeno a ser normatizado, menor. Lanço mão aqui, como representa-
que a Educação Infantil e suas propostas tivos de posições largamente assumidas
curriculares são organizadas (BUJES, 2002). no campo das propostas educativas
Pois bem, pesquisar os currículos para a infância, dois fragmentos de
ou as iniciativas tendentes a colocá-los ao obras bastante conhecidas, amplamente
alcance de propósitos reguladores se dá citadas e utilizadas nas discussões que
a partir de um ângulo particular de inte- pretendem indicar possíveis caminhos
resse desta pesquisadora: o de examinar para a formalização das experiências de
como o movimento pela curricularização educação infantil. Utilizo-as na forma de
da educação da infância e da formação detonadores para encaminhar a análise
de professoras para essa etapa vem se que segue e que focalizará, de forma
articulando a uma crescente preocupação mais direta, discursos que orientam as
com os processos de produção das subje- propostas curriculares para a formação
tividades docentes e infantis. docente. Trata-se de excertos dos livros:
Porém talvez devêssemos nos per- Educação Infantil: fundamentos e méto-
guntar, preliminarmente: como as crianças dos de Zilma Ramos de Oliveira e Beyond
passaram crescentemente a serem con- Quality in Early Childhood Education and
sideradas como uma responsabilidade Care de Gunilla Dahlberg, Peter Moss e
compartilhada entre família, sociedade e Alan Pence2, escolhidos propositalmente
Estado? Creio que as presumíveis pistas
que possamos trilhar para buscar respostas
2
para essa questão nos permitam, quiçá, en- Esta obra está traduzida para o português sob o
saiar hipóteses para compreender o relevo título Qualidade na Educação da Primeira Infância. No
entanto, faço a opção por utilizar o original em inglês
que ganha nos processos curriculares isso (com tradução dos excertos feita por mim) em razão
que tem sido entendido como “governar a das notórias deficiências do texto traduzido, a começar
relação do ser consigo”. pela equivocada redação dada já ao título da obra.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 185-199, jan./jun. 2012. 187


porque representam posições bastante essas instituições historicamente se orga-
atuais e respeitadas, em nível nacional e nizaram reflete o posicionamento que
internacional. assumiram acerca de sua função social
Em ambas as obras, destaca-se o em face de uma dada representação de
caráter social e histórico das instituições criança e de um entendimento do seu
e de suas propostas. Nos dois textos, são processo de desenvolvimento, entre outros
feitas ressalvas para garantir que não se fatores. (OLIVEIRA, 2002, p. 167).
pense que estiveram sempre aí, mas que Fazer frente à necessidade de edu-
são fruto de disputas, de polêmicas que car as crianças é tornar o campo institucio-
podem mostrar porque se organizam de nal em que isto se dá aberto à ação. É
tal ou qual modo, com tais ou quais pro- organizar pontes entre o que a criança vive
pósitos. Dahlberg, Moss e Pence são mais no seu meio e propósitos sociais mais am-
enfáticos nesta sua forma de indicar os plos; é delinear, por meio do currículo (da
laços inalienáveis das instituições com o proposta curricular), um roteiro de ações
poder, uma vez que as veem como produto possíveis, assentado numa racionalidade
de uma dinâmica que é fruto de interesses que justifique as formas de intervenção:
particularmente datados:
Construir uma proposta pedagógica
Instituições de educação infantil são implica a opção por uma organização
socialmente construídas. Elas não curricular que seja um elemento me-
possuem características que lhes são diador fundamental da relação entre
inerentes, nem qualidades essenciais, a realidade cotidiana da criança – as
nem propósitos necessários. Para que concepções, os valores e os desejos,
servem, a questão do seu papel ou as necessidades e os conflitos vividos
propósito não é auto-evidente. Elas em seu meio próximo – e a realidade
são aquilo que nós, “como uma co- social mais ampla, com outros con-
munidade de agentes”, fazemos delas. ceitos, valores e visões de mundo.
(DAHLBERG; MOSS; PENCE, 1999, p. Envolve elaborar um discurso que
62 [tradução minha]). potencialize mudanças, que oriente
Já na formulação de Oliveira (2002), rotas. Em outras palavras, envolve
concretizar um currículo para as
em que pese a acentuação no caráter
crianças. (OLIVEIRA, 2002, p. 169).
histórico das instituições e nas possibilida-
des de que elas reflitam também modos Como aprendemos com Nikolas
específicos de significar suas finalidades, Rose, é preciso tornar um domínio da reali-
há que destacar que se faz tudo isso em dade pensável para que se possa sobre ele
nome do “desenvolvimento infantil”. justificar e empreender uma intervenção.
Delinear uma proposta pedagógica Trata-se aqui de mostrar que descrever os
para a educação infantil significa pôr propósitos de existência das instituições
creches e pré-escolas diante de atraentes educativas voltadas para a infância não
tarefas e sérios desafios. O modo como tem apenas reflexos nas ações diretamente

188 Maria Izabel Edelweiss BUJES. Currículos da formação docente e práticas de subjetivação
associadas com as crianças, mas implica (para futura utilização) pelas professoras
a elaboração concomitante de uma série está associada a um caráter de regulação
de outros discursos – acerca das atribui- moral, o que pode ser depreendido por
ções da família, das responsabilidades da uma seleção dos “vocabulários” presentes
sociedade, das exigências da docência – nas propostas curriculares.
entre os quais nos interessa destacar aqui, Talvez fosse prudente informar que,
mais especialmente, discursos que tratam nos estudos empreendidos, não estive
especificamente da formação docente. interessada em analisar currículos para
Ao apontar o caráter discursivo das a formação de professoras, identificando
propostas curriculares voltadas para a suas orientações ou bases teóricas, en-
formação docente, os estudos que tenho volvendo-me com questões de cunho
empreendido sustentam que é crucial epistemológico – sobre o quê ou como
mostrar como tais discursos se valem de ensinar – avaliando a adequação de tais
contribuições de vários campos discursivos propostas ou propondo alternativas para o
– que entram em sintonia, se superpõem, seu aperfeiçoamento (entre tantas possibi-
muitas vezes entram em choque, outras lidades que me abririam essas perspectivas
tantas, se contrapõem – fazendo funcionar de investigação). Não pretendi seguir tais
certas práticas que têm sempre em seu ho- sendas. O que neles interessaram foram
rizonte uma preocupação com a educação os discursos circulantes – nos currículos
das crianças e que produzem, nesse jogo, de formação de professoras – que com-
determinados modos de ser professora põem representações sobre o que significa
para esse grupo etário. O ponto comum ser criança e como ali se concebem os
entre os diversos estudos que tenho levado fenômenos associados a esse momento
a efeito é como, no exame das produções da vida. Interessava-me mostrar como se
textuais, se revela uma preocupação com organizam e se tramam certas discursivi-
“modos de ser”, secundarizando-se, nos dades que delineiam modos de conceber a
materiais examinados, de alguma forma, ação pedagógica e de cuidados em relação
a tônica no saber (Ó, 2006). Isso aponta às crianças, associados a esses modos
a preocupação crescente com os proces- de representá-las. Nessa mesma direção,
sos de subjetivação o que tem, de certa lembro também que a formulação de tais
forma, estado associado com algo que se discursos implicaria exercer regulação e
expressa como “o governo da alma” (Rose, controle sobre as professoras em formação,
Popkewitz, Ó), ou, como disse acima, com o que supõe apontar o modo pelo qual tais
o governamento de si mesmo. discursos acabariam por estar ativamen-
Assim, a ênfase no currículo como te conectados com os processos de sua
um campo discursivo em que se tramam as subjetivação.
estratégias e se concebem as técnicas para Feita essa advertência, seria interes-
conduzir as práticas educativas com as sante lembrar que, em que pese a uma
crianças e para justificar seu aprendizado vasta ementa de temas analisados por mim

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 185-199, jan./jun. 2012. 189


e que constituem resultados das pesquisas tecnologias do eu têm possibilitado a gera-
que tratam de currículos de Educação ção de uma aparelhagem conceitual que
Infantil e de formação de professoras, sis- permite tornar explícitas as articulações
tematicamente produzidos ao longo dos entre uma visão micro (o indivíduo no
últimos anos (e que relaciono abaixo)3, seu próprio universo) e uma perspectiva
o destaque especial, neste trabalho, será macro (preocupação com o governo da
dado ao que poderia ser chamado como população no seu conjunto) (Ó, 2003).
“a proposição de um modelo apropriado Assim, são dinâmicas voltadas para a indi-
da criança”. vidualização e a totalização – que, agindo
em conjunto, num só processo, possibilitam
O arsenal teórico-metodológico que se administre a vida de cada um e de
todos num jogo estratégico que tem por
No âmbito das investigações que finalidade conduzir seus modos de ser e
aqui discuto, meu interesse tem-se voltado existir no mundo.
para compreender como uma cultura pe- Alguns temas são, portanto, centrais
dagógica se organiza e se afirma para in- neste trabalho: o da governamentalização
dicar as competências morais, intelectuais da infância, o de tecnologias do eu e o de
e de outras ordens, daquele que deve ser subjetivação, aqui vistos a partir de uma
educado, e vincular tais propósitos a deter- inspiração foucaultiana. Adicionalmente
minadas iniciativas práticas. Ou, dito de se poderia dizer que as pesquisas que ser-
um modo um pouco mais ampliado: como vem de ponto de apoio para este trabalho,
uma abordagem para a educação infantil por estarem associadas a uma vertente
propõe-se a pensar e encontrar modos de pós-estruturalista, utilizam-se, como referên-
agir e de intervir sobre atitudes, disposições cia teórica, das produções de uma série de
e comportamentos das crianças e assim autores identificados com essa orientação
se enlaça/se articula com propostas de de pensamento, entre os quais destaco
formação docente para esse segmento além de Foucault: Deleuze, Popkewitz, Rose,
populacional? Varela, Veiga-Neto, Ó, entre outros.
Tais questões se vinculam a um in- A noção de governamento que aqui
teresse em trazer para o centro da arena desenvolvo está relacionada a formas de
os modos como as crianças e jovens (e, exercício do poder sobre os indivíduos.
consequentemente, suas futuras professo- Na perspectiva em que se inscreve esta
ras) têm sido colocados como problemas análise, governar é agir sobre o campo da
de governo das populações. Os conceitos conduta alheia (ou da própria conduta) e
foucaultianos de governamentalidade e de as ações de governamento não se cons-
tituem como um modo próprio de ação
3
das estruturas políticas ou de gestão do
Novamente as referências foram retiradas para
não permitir a identificação do autor, podendo Estado, unicamente; referem-se, igualmen-
serem acrescentadas posteriormente, se for o caso. te, àquelas formas de agir que afetam a

190 Maria Izabel Edelweiss BUJES. Currículos da formação docente e práticas de subjetivação
maneira como os indivíduos conduzem a si práticas ou táticas para exercer o poder (o
mesmos. Assim, quando falamos das ações governamento)4.
de governar, não estamos nos referindo Nas teorizações que desenvolveu
apenas às práticas que advêm do moderno sobre o poder, Foucault nos aponta que,
estado de direito, mas de algo muito mais com a passagem de uma “arte de governo”
complexo, difuso e não tão facilmente para a instituição de uma Ciência Política,
identificável, pois proveniente de muitos no século XVIII, as ações de governamento
lugares e estabelecendo curiosas alianças. se disseminam; elas tomam conta do tecido
Utilizamos o termo governamento para social, deixam de ser privilégio do Estado,
nomear uma ação sobre o campo eventual ainda que, ao serem distribuídas por toda
a sociedade e ao ocuparem-se da vida das
da conduta alheia, uma ação sobre ações
populações, elas articulem interesses de di-
presumidas, possíveis.
versas ordens que envolvem as mais varia-
Ao utilizar o termo gouvernement,
das instâncias do corpo social, não estando
Michel Foucault toma-o em, no mínimo,
centradas em apenas uma, O Governo,
duas acepções diferentes: para referir-se ao
mas distribuídas “microscopicamente pelo
governo, como uma instituição do Estado,
tecido social” (VEIGA-NETO, 2002, p. 21),
em seus diferentes âmbitos – o governo do buscando atingir o máximo de resultados,
município, do estado, do país – uma ins- com uma mínima aplicação do poder.
tância central “que toma para si a caução Portanto as estratégias para governar os
da ação de governar” (VEIGA-NETO, 2002, seres humanos, apesar de interessarem
p. 19); e como práticas múltiplas, como fundamentalmente ao Estado, entram em
ação ou ato de governar. Neste segundo ação a partir de múltiplos interesses, em
sentido, tais ações extrapolam a instância muitos lugares distribuídos pela sociedade.
administrativa, o âmbito de atuação dos Assim, com o segmento infantil
aparelhos e dos agentes estatais. Para o como um dos tantos componentes da so-
filósofo francês, muitas pessoas podem ciedade, passando a ser visto como parte
governar: “o pai de família, o superior do da população, e com a prosperidade e a
convento, o pedagogo e o professor em re- segurança do Estado vindo a ser articula-
lação à criança e ao discípulo” (FOUCAULT, das ao bem-estar dos cidadãos, pode-se
1993, p.280). Para ambas as acepções, entender que os domínios e os objetivos
vinha sendo empregada a palavra gover- pelos quais se passa a pensar o governa-
no, nas traduções de suas obras para o mento da infância se ampliem (HUNTER,
Português. Mais recentemente, Veiga-Neto 1996). Isso nos permite entender como
(2002) sugeriu que se utilizasse o termo entram em ação preocupações no campo
governamento quando estivéssemos nos educacional voltado para a infância que
referindo às ações ou ato de governar,
para, quem sabe, diminuir a ambiguidade 4
Para uma detalhada discussão sobre o tema ver
e distinguir a instituição (o governo) das “Coisas de governo...” (VEIGA-NETO, 2002, p. 13-34).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 185-199, jan./jun. 2012. 191


vão da arquitetura dos prédios aos sistemas O governamento, portanto, pode
pedagógicos, passando pelo treinamento resultar tanto de uma ação tendente a con-
de professores, pelas determinações admi- duzir a conduta alheia, quanto daquelas
nistrativas, pelos sistemas de financiamento empreendidas por todos nós no sentido
e contratação de pessoal etc. Mas isso é de conduzirmos nossas próprias condutas.
apenas uma ponta da questão: as famílias Tais ações, de um sujeito sobre os outros ou
são instadas a uma atuação responsável e sobre si mesmo, remetem à ideia de que o
amorosa, o aparato judicial encarrega-se da exercício do poder se dá através da utiliza-
definição dos direitos infantis e da sua pre- ção de determinadas tecnologias. Por essa
servação, a área médica se preocupará com razão, as tecnologias de governamento são
vacinas, higiene, nutrição e puericultura, as aqui significadas, a partir de uma inspira-
administrações da cidade com saneamen- ção foucaultiana: como ações calculadas
to, distribuição territorial. Ainda que tais para agir sobre o conjunto da população
exemplos não esgotem as possibilidades com a finalidade de potencializar a capa-
de demonstrar como as crianças tornam-se cidade de alguns para agirem sobre as
alvo do poder, elas nos permitem entender condutas próprias e alheias – suas forças,
como a infância torna-se paulatinamente suas atividades, as relações que os sujeitos
governamentalizada, como o poder que se constituem entre si.
exerce sobre ela opera através de múlti- Essa ideia de tecnologia se apresen-
plas ramificações, de forma capilar, não se ta bem explícita na formulação de Nikolas
localizando como creem alguns ao nível Rose (1998, p. 40):
do aparato estatal, mas vindo de muitos
lugares, disseminado pelo tecido social. [...] as tecnologias humanas envolvem
Isso nos leva, numa perspectiva a organização calculada de forças e
mais geral, a formular questões tais como capacidades humanas, juntamente
com outras forças (naturais, biológi-
as que seguem: Como esse movimento
cas, mecânicas) e artefatos (máqui-
de governamentalização atinge o sujeito
nas, armas) em redes operacionais
moderno? Por meio de quais mecanismos de poder.
ele se reconhece como determinado tipo
de sujeito? De que modo funcionam as Para o autor, as tecnologias huma-
racionalidades, as técnicas, as práticas para nas constituem-se em montagens híbri-
formatar em determinadas direções esses das em que se mesclam conhecimentos,
sujeitos? Se estas são operações mais ou instrumentos, pessoas, sistemas de julga-
menos racionais, de que tipos de cálculos mento, construções e espaços, que estão
se valem? Estamos, portanto, no terreno dos sustentados no nível programático por
processos de subjetivação: dos modos de determinados pressupostos sobre os seres
conduzir o eu para que ele se ajuste às humanos (ROSE, 1996).
dinâmicas políticas de governamento e às Michel Foucault chamou de “tecno-
formas de conhecimento científico. logias do eu” as ações de alguém sobre

192 Maria Izabel Edelweiss BUJES. Currículos da formação docente e práticas de subjetivação
si mesmo, quando se interroga sobre sua às tecnologias de poder, torna-se possível
própria conduta e procura se transformar, examiná-lo na sua condição de discurso
modificar sua vida para que ela incorpore pedagógico: um discurso que organiza,
certos valores éticos e estéticos. As tecnolo- articula, permite pôr em ação não apenas
gias do eu, portanto, podem ser vistas como determinados modos de falar e de pensar,
[...] todo este conjunto de técnicas mas que se torna, no interior do aparato
performativas de poder que incitam o escolar, um operador de distribuições – de
sujeito a agir e a operar modificações indivíduos, de acontecimentos, de ativida-
sobre a sua alma e corpo, pensamen- des, de enunciados, no espaço e no tempo
to e conduta, vinculando-o a uma (PALAMIDESSI, 2001). O currículo organiza
atividade de constante vigilância e formas de perguntar, de organizar, de
adequação aos princípios morais em
compreender. É atravessado por definições
circulação na sua época. (Ó, 2003, p. 5).
históricas sobre o que deve ser conhecido
Ao entendermos a dimensão ética do mesmo modo que classifica e ordena
como este exercício constante do sujeito o corpo de conhecimento e as ocupações
que age para conhecer-se e transformar-se, escolares. Do mesmo modo, regula os
esta relação do ser consigo, pode-se enten- tempos em um horário, em uma rotina,
der melhor como as operações de poder ou numa sequência de graus ou etapas
permitem que a ética se torne inteligível escolares, padroniza os objetos, desagrega
como um domínio da prática. Portanto as atividades escolares, especifica sequên-
analisar as tecnologias inventadas para cias de ensino.
conduzir a conduta tem por propósito tor- O raciocínio precedente permite
nar mais explícita a forma como elas são afirmar, pois, que o currículo se inscreve
postas em funcionamento: identificando tanto na ordem do saber quanto do poder:
como incluem uma reflexão sobre modos
o currículo tem para os indivíduos um ca-
de potencializar a ação dos indivíduos,
ráter ordenador e disciplinador, pois certas
para propor a intervenção, isto é, para es-
disposições, modos de pensar, modos de
truturar o campo de ação próprio ou alheio.
classificar e hierarquizar se impõem de
Isso torna possível dispor de meios para
uma maneira não forçada e concretizada
moldar, instrumentalizar, normalizar as
maneiras como os sujeitos se conduzem. pela participação dos indivíduos em siste-
Ao se tratar de formas de governamento, mas simbólicos através dos quais devem
é sempre uma questão de linguagem que interpretar e organizar o mundo para nele
está em causa, pois é a linguagem que atuar. Por tudo isso, poder-se-ia dizer que
põe à nossa disposição os mecanismos os textos curriculares funcionam porque
que tornam o tecido social passível de eles distribuem, normalizam, dão forma e
intervenção. fazem circular relações de poder.
Quando assumimos uma forma de
compreensão do currículo que o associa

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 185-199, jan./jun. 2012. 193


Um modelo apropriado de criança instituições de educação infantil á aquela
de provedora de cuidados (atenção) e de
Vistas sob a perspectiva do projeto produtora de resultados predeterminados
da modernidade, as instituições de e padronizados nas crianças”. Na busca
educação infantil têm sido conside- de atingir tais propósitos, os arranjos edu-
radas crescentemente como uma
cacionais que envolvem as crianças têm
tecnologia necessária ao progresso.
Muitos modos de conceber as ins-
se baseado historicamente na autoridade
tituições de educação infantil [...] das narrativas da biologia e da psicologia
corporificam uma ideia de redenção com as suas afirmações sobre a natureza e
social através da aplicação da ciência as necessidades de todas as crianças. Tais
aos fenômenos que afetam a infância, campos do conhecimento, com as suas
um ideal que influenciou fortemente “descobertas” e os saberes delas decor-
a vida moderna. (POPKEWITZ apud rentes, apresentam-se como autorizados
DAHLBERG; MOSS; PENCE, 1999, p. a descrever os mecanismos pelos quais
62 [tradução minha]). se produzem as mudanças vividas pelas
Ao compartilharmos a ideia de que crianças. Do mesmo modo, descrevem as
a modernidade inventou o “humano” na condições necessárias ao “desenvolvimen-
sua versão de um sujeito autônomo, livre, to infantil” para que ele seja monitorado
transparentemente autoconsciente, fonte e conduzido a bom termo. A psicologia
de todo conhecimento e da ação moral e infantil prediz e prescreve: invoca a criança
política (PETERS, 2000), podemos também para explicar o adulto. Se algo cresce no
concordar que, ao não corresponder a uma interior do sujeito, como destacou Palami-
realidade objetiva, essa invenção precisa dessi (2001, p. 83), “educar será conduzir,
ser constantemente reafirmada. Essa ação regular, estimular o crescimento”.
constitui uma tarefa sempre ameaçada, Assim, as crianças vistas como seres
sempre inconclusa, que os ideais moder- incompletos constituem uma premissa
nos necessitam permanentemente afirmar necessária para a elaboração da ideia de
e reforçar. É por tal razão que se constroem intervenção pedagógica e de currículo.
narrativas que reafirmam tais característi- Essa noção de falta – de um conjunto
cas, tais comportamentos e sensibilidades de capacidades – não é aquela que se
e, pela mesma razão, se constitui também caracteriza como deficiência; antes se
“uma experiência tal que os indivíduos explica pela incompletude, algo atribuído
[são] levados a reconhecer-se como sujei- a características naturais das crianças. A
tos” (FOUCAULT, 1998, p. 10). efetivação do desenvolvimento decorreria
Dahlberg, Moss e Pence (1999, p. 63; do atendimento a “necessidades específi-
tradução e grifos meus), ao fazerem seu cas” das crianças. Se isso ocorre de forma
balanço a respeito das propostas institucio- adequada, como prescreve a pedagogia
nais para a educação da infância, enfa- moderna: de um modo suave, seguindo o
tizam que: “A concepção dominante das script previamente traçado pela natureza,

194 Maria Izabel Edelweiss BUJES. Currículos da formação docente e práticas de subjetivação
acompanhado com atenção, evita-se que E aqui caberia perguntar: Como as
ocorram percalços ou “paradas” indeseja- problematizações que se expressam nos
das ao longo do percurso. Essas narrativas currículos de formação de professoras,
fazem parte do repertório que dá susten- quando abordam o tema das crianças,
tação às práticas de terapeutas, familiares, traçam o modelo de uma infância apro-
trabalhadores da área social e da saúde, priada? Como se estabelece uma lógica
professores, especialistas da área da edu- dos mecanismos discursivos neste afã de
cação, e marcam profundamente a forma- significar os sujeitos infantis?
ção de professoras para a etapa infantil. A análise dos currículos voltados para
Tomando-se como referência o con- as professoras, mas que têm como alvo as
ceito de governamento, podemos deduzir crianças, como neste caso, permite-nos iden-
a importância, na formação de professoras, tificar como estas são localizados dentro de
de uma ampla, “clara” e reiterada enuncia- uma ordem particular para justificar a con-
ção das capacidades pessoais e subjetivas tínua regulação das suas vidas através da
dos sujeitos infantis, pois estas fazem parte educação institucionalizada. Para isso, tem
dos cálculos das forças políticas. Assim, a sido central que a experiência educativa e o
criança moderna precisa ser minuciosa- sujeito da educação sejam exaustivamente
mente escrutinada, definida, descrita, como posicionados pelo discurso científico. O
condição para a proposição de estratégias discurso das ciências, o discurso verdadeiro,
para governar sua conduta. Desse modo, neste caso, é aquele que descreve de for-
ela se torna ma minuciosa “as descobertas”5 a respeito
dos sujeitos para orientar as práticas de
o alvo de inumeráveis projetos que se educação e de cuidados que devem ser
propõem a salvaguardá-la de perigos dispensados às crianças pequenas. Assim,
físicos, morais, sexuais, para assegurar
os currículos da formação são regidos por
seu desenvolvimento normal, para
conhecimentos especializados que acabam
promover ativamente certas capaci-
dades ou atributos como inteligência,
por regular e disciplinar a forma de pensar
educabilidade e estabilidade emocio- os sujeitos infantis, bem como as maneiras
nal. (ROSE, 1990, p. 121). de agir com relação a/sobre eles.

Nessa perspectiva, quando se quer


5
tornar mais visíveis os mecanismos que A noção de descoberta, utilizada largamente
nas formulações modernas, supõe que existiria
concorrem para a constituição das subje- um objeto a ser descoberto, explicado, descrito, já
tividades, é imprescindível o exame das presente na “realidade”, precedendo nossos esfor-
formulações discursivas uma vez que elas ços para conhecê-lo. Assim, a teoria descobriria
não estão implicadas apenas em descrever o real e o descreveria, correspondendo a uma
sujeitos, processos, instituições, mas em imagem de determinada realidade. As análises
pós-estruturalistas tornam problemático não ape-
ativamente constituir os objetos aos quais nas o conceito de teoria mas também a ideia de
se referem. descoberta, substituindo-a pela de invenção.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 185-199, jan./jun. 2012. 195


A construção teórica – sobre as descrever o que constitui a maturidade – e
crianças, as instituições escolares, os fenô- à sua sombra a imaturidade, a fragilidade
menos educativos – é apresentada também e a incompletude daqueles que terão “para
como derivada do complexo observacional/ o seu bem” a tutela dos mais experientes,
experimental, especialmente nos campos sábios, equilibrados, maduros.
da biologia e da psicologia, e a professora Tem sido essa noção biologizada e
é instada a tornar-se, ela também, uma psicologizada das crianças, como seres
pesquisadora. O vocabulário curricular em desenvolvimento que tem concorrido
se vale recorrentemente de expressões para abrir possibilidades de um amplo
intimamente associadas ao campo cien- governamento dos infantis. Essa visão
tífico: “paradigmas, princípios científicos, predeterminada, universal da infância vai
conceitos, concepções, bases teóricas...”. exigir formas particulares de experiência
Como diz Gaile Cannella (1999), sagaz- educacional que apenas a “descoberta
mente, a noção científica da criança é tão científica” pode oferecer. A noção de
amplamente aceita que domina a prática “etapização” e de progressão é central a
cotidiana de tal modo que não se pode uma visão teleológica do desenvolvimento.
pensar no conhecimento educacional fora E essa visão científica é uma das condi-
das bases correntes: derivado da teoria, da ções de possibilidade de um movimento
pesquisa e da própria prática educacional. que posiciona as crianças como objetos
A narrativa das ciências tem sido a serem testados, examinados, descritos,
central à captura da infância pelo sistema categorizados. Nas palavras de Walkerdine
de educação: (1998, p. 166):
Foi a literatura sobre o desenvolvi- O desenvolvimento da idéia de “crian-
mento que promoveu as virtudes ça” [permitiu que ela se tornasse] um
da Educação Infantil ao direcionar objeto legítimo tanto da ciência como
cada criança por uma trilha univer- do aparato de normalização. Estes
sal para alcançar a racionalidade, a elementos forneceram a possibilidade
autonomia e a auto-regulação, uma de uma ciência e de uma pedagogia
trilha socialmente desejável e vista
baseadas no modelo de um desen-
como parte da natureza de todas as
volvimento que ocorria naturalmente
crianças. (TYLER, 1993, p. 7).
e que podia ser observado, normali-
Ao ser considerada a que melhor e zado, regulado. [Possibilitando] assim
mais verdadeiramente descreve o objeto que a degeneração [pudesse] ser
das práticas educativas – a criança – ela atacada no nascedouro, através da
legitima um conjunto de iniciativas políti- regulação do desenvolvimento das
cas de institucionalização infantil. Justifica, crianças, a fim de assegurar seu
ajuste como adultos.
desse modo, o poder adulto sobre os infan-
tis, ao definir as diferenças e as distâncias Tem sido a ideia de desenvolvimento
que separam tais grupos de indivíduos, ao infantil hoje recorrentemente apresentada

196 Maria Izabel Edelweiss BUJES. Currículos da formação docente e práticas de subjetivação
nos currículos de formação que possibi- Silvonen (1998, p. 80), elementos consti-
litou colocar em marcha, através de pro- tutivos da “educação como fundamento
cessos de descrição e classificação, os religioso da sociedade moderna”.
conceitos de normalidade e anormalidade Popkewitz (2001, p. 33), por sua
e produzir a criança como um objeto do vez, destaca que as ciências pedagógicas
olhar científico e pedagógico (WALKER- põem em relevo uma cultura da redenção,
DINE, 1998). Foi a chancela de cientifici- que faz com que o professor assuma um
dade que assegurou a legitimidade dos modo de pensar que o responsabiliza por
processos de observação constante, de “salvar e resgatar a criança”. Ou dito de
uma continuada vigilância, da produção outro modo: “que os discursos da salvação
de um amplo campo documental – da tornam a criança um indivíduo que – com
produção de dossiês sobre as crianças. a atenção e o cuidado adequados – pode
Assim, o desenvolvimento de uma suposta ser salvo” (POPKEWITZ, 2001).
“infância universal” possibilitou, como que As palavras de ordem, o jargão
por ironia, que esta criança fosse muito vazio parecem estar ali para prestar um
mais vigiada do que nas velhas pedago- tributo à ordem moderna, ainda que na
gias, porque agora não se requeriam dela forma de uma esperança vaga, numa
apenas as respostas corretas, mas que o expectativa universal de uma escola re-
próprio mecanismo do desenvolvimento dentora, tanto para formar professoras
fosse controlado. como para fazer das crianças os cidadãos
À ideia de desenvolvimento pleno completos do futuro. Eles constituem um
ou integral, recorrentemente se acrescen- horizonte longínquo a servir de referên-
ta um propósito de emancipação e de cia, mas o que supostamente vai torná-lo
educação para a cidadania, com ênfase “alcançável” é uma versão adequada da
numa referência à autonomia. Pensar o prática pedagógica: aquela centrada numa
sujeito da educação, tanto a professora em criança natural, com base num caráter
formação quanto a criança, supõe definir compulsório e universal, numa versão em
os princípios éticos do empreendimento que a aprendizagem escolar é sinônimo
educativo e escolher uma direção mais de aprendizagem em geral. Isso chama
específica para a intervenção pedagógica. atenção para a crítica de Popkewitz para
Como dizem Simola, Heikkinen e quem o sonho milenar do desenvolvimento
Silvonen (1998), ao mostrar o caráter ideo- da personalidade integral deve se tornar
lógico da pedagogia no seu propósito de verdadeiro através da maquinaria burocrá-
“desenvolver uma devoção para com – e tica da escola.
uma consciência da – missão do professor”, É por tal razão que, na formulação
o otimismo e a fé na escola em sua asso- dos programas, está presente um “enqua-
ciação com um caráter pressupostamente dramento” que orienta a escolha do
racional da pedagogia seriam, segundo repertório de métodos didáticos a serem
Meyer citado por Simola, Heikkinen e utilizados pelas professoras. O interessante

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 185-199, jan./jun. 2012. 197


é notar que as experiências educativas perspectivas pós-modernas e as ideias
propostas apoiam-se numa perspectiva pós-estruturalistas e, a partir delas, as pro-
particular do saber psicológico e psicope- blematizações que identifiquei ao longo da
dagógico, fazendo desse campo disciplinar análise, possibilitam examinar o currículo
o esteio da pedagogia. como um aparato técnico, como uma obra
A educação institucional volta-se
de engenharia educacional encarregada
cada vez mais à busca de si mes- dos arranjos estruturais para produzir o
mo, a viver livremente sem coações, modelo apropriado de criança: cidadã ra-
sem esforço, no presente. Trata-se cional, consciente, capaz de discernimento,
de formar seres comunicativos, cria- que atinge a maturidade através da razão.
tivos, expressivos, empáticos, que O que espero ter mostrado, ainda que
interajam e comuniquem bem. Essas sucintamente, ao longo desta análise, é o
personalidades flexíveis, polivalentes quanto o discurso pedagógico – e o currí-
e automonitorizadas – capazes de culo escolar como um lugar de circulação
autocorrigir-se e auto-avaliar-se – de discursos que lutam para impor seus
estão em estreita interdependência significados – forja identidades e posiciona
com um neoliberalismo consumista os sujeitos quando descreve suas expecta-
que tão bem se harmoniza com iden- tivas em relações a eles. E eu não poderia
tidades moldáveis e diversificadas em
terminar sem registrar que existem vozes
um mercado de trabalho cambiante
discordantes, tímidos sussurros na contra-
e flexível [...]. (VARELA, 2000, p. 102).
corrente, nestes modos de significar este
E aqui, à guisa de um provisório modelo apropriado de criança, mas isso já
fechamento, quero ressaltar o quanto as é tema para outros escritos.

Referências

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Recebido em março de 2012


Aprovado para publicação em abril de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 185-199, jan./jun. 2012. 199


O ENEM e seus reflexos na prática pedagógica dos
professores de Biologia
The ENEM test and their effects on pedagogical
practices of teachers of Biology
Everaldo Dos Santos*
Christiane Gioppo**
*Instituto Federal do Paraná, Campus Paranaguá (IFPR).
Doutor na Universidade Federal do Paraná Bolsista IEPAM-
CAPES/INEP/SECAD. E-mail: everaldo.santos@ifpr.edu.br
** Professor adjunto da Universidade Federal do Paraná
(UFPR). E-mail: cgioppo@yahoo.com

Resumo
Esta pesquisa buscou informações sobre os reflexos dos resultados do ENEM 2009 na prática pedagó-
gica dos professores de Biologia bem como na prática cotidiana pedagógica da escola. Analisamos os
resultados do exame de 2009 e confrontamos com o estudo de seis escolas públicas de Curitiba, no
estado do Paraná, que foram amostradas. As análises documentais e as entrevistas revelaram que, de
alguma forma, há influência do ENEM sobre a Educação em Ciências com prováveis consequências nas
práticas pedagógicas. Os resultados desta pesquisa apontam para alguns fatores que influenciam as
práticas pedagógicas dos professores, como a relação entre os conteúdos selecionados no planejamento
dos professores de Biologia, os encaminhamentos adotados a partir de documentos que orientam a sua
prática e o que realmente é ensinado em sala de aula.
Palavras-chave
Avaliação. ENEM. Educação científica.

Abstract
This research sought information on the consequences of the results of ENEM 2009 in pedagogical
practice of teachers of biology as well as in every day practice teaching school. We analyzed the survey
results of 2009 and faced with the study of six public schools in Curitiba in Paraná that were sampled. The
documentary analyzes and interviews revealed that somehow there is influence of ENEM on Education
in Science with probable consequences in teaching practices. These survey results point to some factors
that influence the pedagogical practices of teachers, as the relationship between selected content in the
planning of biology teachers, referrals adopted from documents that guide their practice and what is
actually taught in room classroom.
Key words
Evaluation. ENEM. Science education

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 201-211, jan./jul. 2012
Introdução uma lógica e dinâmica organizacional nos
sistemas de ensino, que se expressam no
A década de 1990 foi marcada por estímulo à competição entre as instituições
implantação de sistemas de avaliação da educacionais e no interior delas, refletin-
educação nos quais alguns instrumentos do-se na forma de gestão e no currículo.
como o SAEB e o ENEM têm sido utilizados Nesse caso, o currículo tende a destacar-se
como parâmetros para avaliar o ensino e pela possível conformação aos testes de
as relações com as políticas públicas de rendimento aplicados aos alunos. Esse fato
educação, e o Exame Nacional do Ensino é contrário à concepção de avaliação para
Médio (ENEM), que é aplicado desde 1998, a qual Black e Wiliam (1998) defendem
surgiu por uma necessidade de atender uma avaliação formativa e autoavaliati-
as determinações da Lei de Diretrizes e va, que é parte fundamental na relação
Bases da Educação LDB 9294/ (FRANCO ensino e aprendizagem. Dessa forma, os
e BONAMINO, 1999; MINHOTO, 2009). resultados podem gerar ranqueamento e
Estes pesquisadores já apontavam para consequente exclusão de algumas insti-
a dificuldade de se estabelecer o ENEM tuições escolares bem como a seleção de
como um instrumento para analisar o En- alunos nessas instituições em função do
sino Médio. Esse exame assumiu objetivos rendimento no ENEM.
diferenciados à medida que foi se estabe- Peixoto et. al (2009), ao estudarem
lecendo como instrumento de avaliação a relação entre o baixo desempenho no
da educação básica ao longo dos anos ENEM das escolas de um município do
(MACENO et al., 2010). Sousa (2003), ao Rio de Janeiro, a realidade escolar e o
fazer um estudo sobre sistemas de ava- ensino de Física, apontam para a prática
liação da educação básica, ressalta que é seletiva que a escola adota desde a entra-
possível afirmar que o ENEM apresenta-se da dos estudantes nas instituições e para
com um maior potencial, quando compa- a priorização dos conteúdos conceituais,
rado ao SAEB, de condicionar os currículos fazendo com que os documentos curri-
escolares, ou seja, ensina-se para obter culares orientadores se voltem para uma
bons resultados no exame, haja vista, aliás, prática que supervaloriza os conteúdos
já existirem até cursinhos preparatórios conceituais. Nesse sentido, a escola pode
para tal. Ainda de acordo com a autora, impor um ritmo seletivo não somente para
algumas características, como ênfase a entrada, mas também no processo for-
nos produtos ou resultados, atribuição do mativo do Ensino Médio, inclusive influen-
mérito tomando-se individualmente insti- ciando nas taxas de evasão e repetência.
tuições ou alunos, dados de desempenho Considerando os estudos mencionados e
escalonados, resultando em classificação, as ponderações de Malavasi (2010), que
uso de dados predominantemente quan- enfatiza a necessidade de avaliar a Edu-
titativos e destaque à avaliação externa e cação Básica criteriosamente entendendo
não à autoavaliação, tendem a imprimir como se dá o trabalho dos professores e

202 Everaldo dos SANTOS; Christiane GIOPPO. O ENEM e seus reflexos na prática pedagógica...
a organização das próprias instituições, Biologia (PTD) para entender a relação
entendemos que seria fundamental olhar entre as ações propostas pelo colégio e
para dentro das escolas e investigar se as propostas pelos professores. Finalmente,
o “novo ENEM” potencializou alterações para triangular as informações, realizamos
tanto nas escolas, quanto na prática do- entrevistas semiestruturadas com os pro-
cente dos professores de biologia, mesmo fessores de biologia dessas instituições e
sabendo que a realidade de cada escola é também com as pedagogas, para melhor
distinta. Para tanto, conversamos com um entender a influência (ou não) do ENEM no
grupo de professores de Biologia buscando encaminhamento e práticas pedagógicas
investigar reflexos e refrações do ENEM em desses profissionais.
suas atividades docentes, com o objetivo
de levantar pontos para discussão sobre o Resultados
impacto do “Novo ENEM” na prática peda-
gógica desses professores, considerando a Os resultados serão apresentados
realidade de cada escola estudada. em três partes: a visita aos espaços físicos
Para selecionar as escolas e os sujei- das escolas estudadas; a análise dos do-
tos partícipes desta pesquisa, observamos cumentos oficiais como o Projeto Político
as médias do ENEM 2009 dos Colégios Pedagógico (PPP) e Plano de Trabalho
públicos da rede estadual de ensino no Docente (PTD) dos professores de Biologia;
município de Curitiba, PR. Em função do e finalmente as entrevistas dos professores
caráter qualitativo da pesquisa, selecio- e equipe pedagógica.
namos apenas seis escolas, sendo duas Durante as visitas, observamos a es-
com as melhores médias do município trutura física, a organização pedagógica e
(MM) no resultado final do exame; duas a gestão dos espaços pedagógicos escola-
com médias intermediárias (MI), próximas res como bibliotecas, laboratórios de infor-
à média de todo o exame no município; mática e de Ciências, também documentos
e duas com as médias mais baixas (MB) escolares e entrevistas estruturadas. Para
do município. Nessas escolas, foram feitas fins de codificação das escolas, adotamos
observações de infraestrutura, organização uma legenda com código MM1 primeira
pedagógica, por meio dos documentos escola de melhor rendimento, MM2 se-
escolares, e entrevista com professores gunda escola de melhor rendimento, MI1
de Biologia e equipe pedagógica. Com primeira escola de rendimento intermedi-
os colégios selecionados, primeiramente ário, MI2 segunda escola de rendimento
visitamos os espaços pedagógicos dispo- intermediário, MB1 primeira escola de
níveis, para entender as reais condições rendimento baixo e MB2 segunda escola
de trabalho dos professores. Em seguida, de rendimento baixo.
analisamos dois documentos escolares: o As seis escolas estudadas e com
Projeto Político Pedagógico (PPP) e o Plano rendimentos diferenciados no resultado
de Trabalho Docente dos professores de do ENEM 2009 diversificam-se em suas

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 201-211, jan./jun. 2012. 203


características, com realidades distintas conforme o quadro a seguir:
e inserção em diferentes comunidades,

Colégio/Característica MM1 MM2 MI1 MI2 MB1 MB2


Grande Pequeno Médio Médio Médio Médio
Porte porte porte porte porte porte porte
Perto área Afastado Afastado Afastado
Localização geográfica Central Central
central área central área central área central
Lab. De Informática Tem Tem Tem Tem Tem Tem
Laboratório de Ciências Tem Tem Tem Tem Tem Tem
Biblioteca/Técnico Tem Tem Tem Tem Tem Tem

Quadro 1 - Caracterização do espaço físico dos seis colégios pesquisados no município


de Curitiba, PR.

Quanto ao porte das escolas, adota- recebe estudantes de bairros vizinhos. Não
mos os critérios da Secretaria de Estado da há teste seletivo para entrada. A escola é de
Educação do Paraná (SEED) para definir pequeno porte com aproximadamente mil
como pequeno porte, escolas abaixo de mil alunos e uma única turma concluinte do
e quinhentos alunos; porte médio, entre mil ensino médio em 2010. Possui laboratório
e quinhentos e três mil alunos; e grande de informática e de Ciências.
porte, acima de três mil alunos. A escola com rendimento intermedi-
A escola com o melhor rendimento ário (MI1) localiza-se na região central de
(MM1) está inserida na área central da ci- Curitiba e recebe estudantes de diversas
dade de Curitiba e recebe alunos por meio regiões de Curitiba e região metropolitana.
de teste seletivo de todas as regiões da Não há teste seletivo para ingresso. A es-
cidade e região metropolitana, anualmente. cola é de médio porte e, de uma maneira
Apresenta uma estrutura física que com- geral, possui boa estrutura física tendo
porta um grande número de estudantes, laboratório de informática e de Ciências.
aproximadamente cinco mil, distribuídos A escola com o segundo rendimento
nos três períodos, sendo considerada uma intermediário (MI2) também é de médio
escola de grande porte. E os espaços peda- porte e está localizada num bairro afas-
gógicos como laboratório de informática e tado da área central, recebe estudantes
Ciências estão presentes e são utilizados do mesmo bairro, de bairros vizinhos e
conforme os relatos de professores. até mesmo de um município da região
A escola com o segundo melhor metropolitana de Curitiba devido à proximi-
rendimento (MM2) está inserida em um dade. Possui uma razoável estrutura física
bairro perto da região central de Curitiba e com dois laboratórios de informática, uma

204 Everaldo dos SANTOS; Christiane GIOPPO. O ENEM e seus reflexos na prática pedagógica...
biblioteca com acervo razoável e também tendo sido contemplada pelo Ministério da
um laboratório de Ciências em condições Educação (MEC) em um outro programa
precárias, mas conta com um técnico para de nível federal.
dar suporte aos professores, em ambos os Quanto às bibliotecas, as escolas
espaços. se mostraram muito similares quanto
A escola com rendimento baixo à estrutura, com técnico bibliotecário e
(MB1) possui porte médio e está inserida acervo limitado. O fato de que o colégio
em uma região afastada do centro da MI1 tinha um acervo com mais obras,
cidade de Curitiba, recebe estudantes da especificamente sobre biologia, do que as
região e não realiza exame de seleção para demais cinco escolas não foi esclarecido
ingresso. A escola possui laboratório de pelos profissionais entrevistados.
informática e laboratório de Ciências com O laboratório de Ciências estava
deficiência de equipamento e pouco uso. presente em todas as escolas estudadas,
A escola com o segundo rendimento porém o colégio MM1 (melhor rendimen-
mais baixo (MB2) possui porte médio e to) tem o laboratório mais bem equipado
localiza-se em um bairro afastado da área e com professor responsável pelo uso e
central de Curitiba, também recebe alunos planejamento do espaço, e esse uso faz
da região e não realiza seleção para in- parte do planejamento coletivo dos profes-
gresso de estudantes. Possui laboratório sores de Biologia da escola. Nos demais foi
de informática e laboratório de Ciências possível observar que o uso era esporádico,
que é utilizado por alguns professores, sem planejamento coletivo de professores
principalmente do ensino fundamental. da área de Ciências Naturais e com uso
Quanto aos espaços escolares, foi restrito a algumas atividades que o pro-
possível observar que as seis escolas estu- fessor de Biologia isoladamente decidisse
dadas têm laboratório de informática com implementar. Nas entrevistas, constatamos
acesso à internet e, com exceção da escola que a professora de Biologia da escola
MI2, que estava com problemas no espaço MM2 utiliza o laboratório da escola com o
físico do laboratório de Ciências, os demais ensino médio porque tem, em seu acervo
confirmaram a utilização pedagógica pelos pessoal, materiais para trabalhar:
professores. No entanto, nos colégios MB1 “No ensino médio eu utilizo porque
e MB2, o uso desses espaços, conforme tenho alguns materiais, eu tenho
descrito pelos professores, foi pequeno e insetos, nem me lembro mais o que
intermitente. É importante notar que todas tenho, dependendo do que eu tenho
trago pra eles observarem”.
as escolas têm laboratórios de informática
com conexões à internet. Isso é imputado Mas, quando perguntado sobre a
a um programa do governo do estado do periodicidade com que leva os estudantes
Paraná que equipou escolas da sua rede. A ao laboratório, a professora declarou que
escola MI2, no entanto, tem um laboratório não levava muito os alunos ao laboratório.
de informática a mais do que as demais Quando retornamos na escola no ano

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 201-211, jan./jun. 2012. 205


seguinte para uma segunda entrevista per- pedagoga da escola MM1 relata o modelo
cebemos que a periodicidade com que a dessa construção:
professora levava os alunos ao laboratório “O processo é feito pelo coletivo e
de Ciências aumentou. não há participações específicas e
Quanto à estrutura física e gestão sabemos que não é o ideal.”
escolar das seis escolas estudadas e com
Todas as escolas pesquisadas de-
rendimentos diferenciados no resultado
clararam estar em fase de atualização e/
do ENEM 2009, observamos que são
diversas em suas características, com rea- ou reelaboração do documento, por ordem
lidades distintas e inserção em diferentes da SEED. Esse fato foi relatado na forma
comunidades. Mas, de uma maneira geral, de queixa, por uma pedagoga que disse
observou-se estrutura física e posturas haver uma orientação da SEED para dis-
de gestão escolar muito similar nas seis cutir o Projeto Político Pedagógico e enviar
escolas estudadas. o documento:
Em relação aos documentos, os “A secretaria pede as coisas pra on-
PPPs das seis escolas pesquisadas esta- tem e o processo de construção foi
vam desatualizados e não contemplavam inicialmente individual, e começou há
nenhum aspecto sobre educação cientí- alguns anos, e é constantemente ree-
fica, como o uso de laboratório, feiras e/ laborado, e atualmente de um tempo
pra cá o processo é de construção
ou mostras de Ciências e outra forma de
coletiva.” (Pedagoga escola MB1).
incentivo à pesquisa científica escolar ou
projetos de divulgação científica, como Ressaltamos que, para Longhi e
visitas a espaços específicos de divulgação Bento (2006), o PPP deve ser uma cons-
científica como museus e exposições e/ trução coletiva que reflita a identidade
ou outras atividades referentes ao tema. pedagógica da instituição. Com isso per-
Isso pode ser um indicativo de que as cebemos uma não intencionalidade em
escolas estudadas não consideram como considerar a educação científica como
fundamental para a identidade pedagógica ocupante de um importante papel na
da instituição as atividades de divulgação formação dos estudantes, assim como
científica e/ou incentivo à pesquisa cientí- falta de apontamentos consistentes a
fica escolar em sua proposta pedagógica. respeito da avaliação como um todo, no
Dessa forma, pudemos perceber que, pelo sentido de considerar a avaliação como
menos em projeto, a formação científica parte associada ao processo pedagógico,
estaria restrita às aulas e aos espaços da considerando-a apenas como somativa.
escola. Talvez essa ausência se deva ao Também percebemos a ausência de pon-
fato de os professores de Biologia não tos que considerem a autoavaliação e as
participaram efetivamente do processo de avaliações para o Ensino Médio. Não foi
construção do documento. Isso fica evi- identificada nenhuma forma de relacionar
denciado quando, na primeira entrevista, a a avaliação da instituição e rendimento

206 Everaldo dos SANTOS; Christiane GIOPPO. O ENEM e seus reflexos na prática pedagógica...
dos alunos com resultados de avaliação conteúdos a serem trabalhados na disci-
como o ENEM. plina de Biologia, e têm como referência
Quanto ao PTD ou planejamento do basicamente os livros didáticos de Biologia
professor, as leituras desses materiais re- adotados pelas escolas, algumas raras
velaram uma abordagem essencialmente exceções foram evidenciadas em depoi-
conteudista, que poderia traduzir a orienta- mentos. Percebe-se esse fato ao questionar
ção curricular vigente no estado do Paraná sobre os conteúdos e sua organização
em sua Diretriz Curricular para a Educação pedagógica, a professora da escola MM2,
Básica. As entrevistas corroboraram essa que responde:
abordagem, no entanto as respostas dos “Os conteúdos vêm do livro e do pla-
professores vincularam-se mais com a se- nejamento. A base é o livro e eles vêm
quência didática de conteúdos dos livros também da minha apostila. A mesma
didáticos adotados pelas escolas do que sequência do livro e das apostilas. No
propriamente com os seus planejamentos terceiro ano, a apostila 1 Genética, 2
e orientações curriculares. É importante Genética, 3 Evolução e 4 de Ecologia.
destacar que o governo do estado do E do primeiro ano, esse ano eu não
Paraná disponibiliza uma segunda opção usei e não lembro, mas tem mais
de livro didático chamado “Livro Didático porque o conteúdo é maior. E eles se
avisam, porque vêm assim pouquinho
Público” ou LDP, que tem um formato
e não faz volume na mochila, e por
diferente do livro comercial enviado pelo isso é difícil deixar em casa.”
MEC. No entanto notamos que os PTDs da
metade dos professores de Biologia des- Esse fato fica bastante evidente quan-
sas escolas não utilizaram os chamados do avaliados os planejamentos individuais
LDPs, e a justificativa foi que a proposta é dos professores de Biologia, chamados de
diferente daquilo a que eles estão acos- PTD e também trechos de entrevistas trans-
tumados, também apontaram a falta de critas. Dessa forma, a análise dos documen-
compreensão da proposta dos autores tos escolares e entrevistas apontam para
que, nesse caso, são também professores um currículo influenciado pelos materiais
da rede pública estadual. Por isso acabam didáticos e exames como o ENEM.
utilizando o livro comercial enviado pelo A respeito do rendimento das escolas
MEC. As entrevistas revelaram que os livros no ENEM, é perceptível o crescimento da
didáticos comerciais foram tomados como preocupação dos professores e pedagogos
referência para o trabalho docente e para em relação ao rendimento dos alunos no
a construção de seus planos, orientando a ENEM, conforme comentário da professora
seleção de conteúdos a serem trabalhados. da escola MB1 ao ser questionada sobre a
Os trechos das entrevistas mos- participação dos alunos no exame:
tram que os professores das escolas de “Eu elaborei sete questões, teve nota
rendimento baixo, médio e intermediário só relacionada ao ENEM. Cada pro-
adotam critérios similares para seleção de fessor de cada disciplina elaborou

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 201-211, jan./jun. 2012. 207


sete questões para um provão si- “Sim, mandaram por e-mail. Mandam
mulado do ENEM. Tiramos celulares, tudo por e-mail. Mas eu não acessei
relógios, todos os equipamentos. Eles nada. Não sei dos outros professores”.
se sentiram na prova, foram 3 horas Foi em cima da hora.”
de prova e eles fizeram como se esti- Professor MI1:
vessem no ENEM. Fizemos questões
do 1o, 2o e 3o , mas fizemos só com “Sim, soube. Não utilizei.”
2o e 3o anos, primeiro não. Eles foram E dois dos professores não soube-
preparados. Foi uma atividade da ram conforme relatos:
escola com sugestão dos professores, Professor MB1:
não foi da SEED.”
“Não, não fiquei sabendo. Não estava
O trecho de um comentário da pe- acessível no portal.”
dagoga da mesma escola reforça a ideia
Professor MM2:
de que os professores começam a se
preocupar com o rendimento: “Não. Eles (SEED) não avisam porque
aqui não chegou nada.”
“Fizemos isso porque fomos muito
mal nos outros anos, e os professores Os depoimentos reforçam a preo-
se mobilizaram para isso.” cupação dos professores e/ou desconhe-
cimento das informações, em que pon-
Essa preocupação possivelmente é
tualmente a preocupação quanto ao
por causa da possibilidade de entrada dos
rendimento no ENEM é mais da escola e
alunos ao ensino superior e a provável
seu corpo docente, do que propriamente do
concessão de bolsas pelo sistema PROUNI. órgão gestor da rede pública de educação
Mas essa preocupação é pontual da es- do estado do Paraná. Esses fatos merecem
cola e não dos gestores ou mantenedores uma discussão mais aprofundada.
dos sistemas e redes públicas de ensino, No que tange às entrevistas, investi-
embora haja algumas ações isoladas. A gamos quais eram os documentos nortea-
respeito dessas ações isoladas, fizemos dores do trabalho do professor. Quatro
um questionamento aos professores so- professores mencionaram utilizar as
bre uma revisão vinculada a um canal Diretrizes Curriculares Estaduais. Dois pro-
de comunicação online chamada Web fessores disseram que consideram ainda
Rádio, que abordou alguns comentários os Parâmetros Curriculares Nacionais para
e revisões para o ENEM 2011. Fizemos a orientação e seleção de conteúdos a serem
pergunta na entrevista e, dos quatro pro- trabalhados durante o ano, lembrando que
fessores entrevistados, dois souberam, mas as diretrizes estaduais e os parâmetros na-
não utilizaram alegando falta de tempo ou cionais são bastante diferentes, e o estado
por divulgarem em cima da hora conforme do Paraná não recomenda o uso dos PCNs.
relatos: Mas, independentemente de diretrizes ou
Professor escola MM1: parâmetros, o livro didático foi mencionado

208 Everaldo dos SANTOS; Christiane GIOPPO. O ENEM e seus reflexos na prática pedagógica...
como fonte para orientar o que deve ser Médio, e fundamentadas em competências
ensinado. Esse fato foi apontado por todos e habilidades, embora haja um descom-
os professores entrevistados, exceto o pro- passo nesse sentido, conforme aponta Mi-
fessor do colégio (MB2) que disse: nhoto (2009) ao relatar em seu estudo que
“Utilizo a ementa da disciplina para a publicação do PCNEM aconteceu um
planejar o que ensinar aos alunos.” ano depois da primeira edição do ENEM.
Mas, no estado do Paraná, existe uma Di-
As entrevistas com as pedagogas retriz Curricular Estadual para a educação
revelaram que a orientação “oficial” básica que orienta o trabalho dos profes-
(APPLE, 1997) para o planejamento dos sores de Biologia, e essas diretrizes foram
professores é a Diretriz Curricular para a pautadas em conteúdos estruturantes,
educação básica do estado do Paraná. As básicos e específicos, não em habilidades e
entrevistas apontaram que os livros didá- competências. Pode-se então perceber que
ticos exercem forte influência na seleção essas diretrizes não foram influenciadas
de conteúdos a serem trabalhados, o que diretamente pelos exames do ENEM. Por
corrobora os estudos de Lopes (2007) ao outro lado, os professores, ao considerarem
discutir as políticas estatais sobre o livro os livros didáticos comerciais, de cunho
didático e sua influência como currículo conteudista, aprovados pelo PNLD, que tem
velado. As professoras, de uma maneira como critério os PCN, estão, de uma forma
geral, relataram em suas entrevistas que indireta, determinando o que professores
não consideram os resultados do ENEM, de Biologia ensinam. Dessa forma, enten-
mas admitem que, em algum momento, demos que, mesmo que os documentos
trabalharam com questões aplicadas em escolares subsidiem o planejamento dos
exames de anos anteriores como forma professores, é o livro didático que faz o
de exercícios. recorte do conteúdo e da sequência a
De uma maneira geral, os professo- ser trabalhada no Ensino Médio. Sendo
res não relacionam os resultados dos siste- assim, a Matriz de Referência do ENEM,
mas de avaliação, como o ENEM, em suas pautada em competências e habilidades,
avaliações na disciplina de biologia, mas é um dos pontos de dissonância com as
admitem trabalhar com questões de provas atuais propostas Curriculares do Estado
já aplicadas no ENEM de anos anteriores. do Paraná. Porém PCN e ENEM acabam
E é perceptível a adoção de instrumentos sendo traduzidas em conteúdos que são
de avaliação que consideram aspectos trabalhados nas diferentes disciplinas
apenas somativos, sendo contrários aos escolares, tal recontextualização reforça o
apontamos de Black e Wiliam (1998). caráter hibridista dos currículos escolares
As Matrizes de Referência do ENEM (LOPES, 2007).
foram elaboradas com base nas Diretrizes
Curriculares Nacionais e nos Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 201-211, jan./jun. 2012. 209


Considerações finais trabalho cotidiano, e buscar uma ruptura
com a lógica disciplinar da universidade
Neste trabalho, pretendíamos ana- onde fragmenta os saberes. Nesse sentido,
lisar o impacto do ENEM na prática concordamos com LOPES (1999) e LOPES
pedagógica de professores de biologia. (2007), o qual defende que o currículo é
Percebemos que, mesmo analisando seis mais um produto cultural do que propria-
escolas públicas estaduais com diferentes mente científico, pois, os resultados apon-
resultados no ENEM (MI, MM, MB), de tam para isso quando indicam que o livro
maneira geral, não havia muitas diferen- didático é o orientador do trabalho docente
ças entre as escolas estudadas no que diz promovendo a seleção de conteúdos e
respeito a estrutura física e planejamento recorte cultural e contextual. Nesse sentido,
pedagógico. Pudemos observar que as o ENEM pode ser influenciado pelos mate-
escolas de maior rendimento no ENEM riais didáticos e também pode influenciar
2010 são mais seletivas, seja no processo a sua produção, assim, os professores de
de entrada de seus alunos, seja ao longo Biologia acabam adotando uma postura
do ensino médio. Assim, os resultados pouco crítica, quando utilizam os recortes
dos exames refletem o caráter excludente e fazem seu planejamento e adequação do
dessas escolas. Quanto ao aspecto con- currículo vigente aos materiais disponíveis
teudista do ensino, as seis escolas são sem uma postura reflexiva a respeito do
similarmente conteudistas, porém, com que devem ensinar. As entrevistas mostram
maior evidências nas escolas de melhor que os livros didáticos são referências para
rendimento e rendimento intermediário o planejamento e seleção de conteúdos,
(MM e MI). Quanto ao aspecto dos recortes e seria importante ampliar o estudo no
dos conteúdos, percebemos as imposições sentido de avaliar se os livros didáticos já
dos livros didáticos que, de uma maneira estão sofrendo influência direta do ENEM.
geral, são a referência dos professores na Quanto ao aspecto das ações e
hora de planejar o seu trabalho, deixando práticas por parte da escola, é possível
as orientações curriculares e documentos observar que os professores e pedagogos
escolares em segundo plano, ou até mes- começam a considerar o ENEM como ins-
mo ignorados. trumento avaliativo, mas principalmente
Nunes (2001), ao estudar o panora- pelo aspecto de seleção para entrada ao
ma das pesquisas sobre formação de ensino superior e menos como possível
professores, destaca que a formação de instrumento de avaliação do Ensino Médio.
profissionais da educação deve ir além da Dessa forma, o ENEM pode ditar o currículo
capacitação que objetiva a transmissão de a ser adotado nas escolas, configurando
conhecimentos. E deve mobilizar os profes- um currículo velado conforme aponta
sores para os diferentes contextos do seu Macedo e Lopes (2002).

210 Everaldo dos SANTOS; Christiane GIOPPO. O ENEM e seus reflexos na prática pedagógica...
Referências

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FRANCO, C.; BONAMINO, A. O ENEM no contexto das políticas para o Ensino Médio. Química
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conhecimento. Rio de janeiro: UERJ, 1999.
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logia. Ijuí: Unijuí, 2007.
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PUC/RS, 2010.
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MINHOTO, M. A. Modelação curricular do Ensino Médio: Análise de prescrições legais e do
papel da avaliação dos sistemas de ensino. Jornal de Políticas Educacionais, Curitiba, n. 5,
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NUNES, C. M. F. Saberes docentes e formação de professores: um breve panorama da pesquisa
brasileira. Educação & Sociedade, Campinas, n. 74, 2001.
PEIXOTO, K. C. Q. C.; MARTINS, R. L. C.; LINHARES, M. P. Um olhar investigativo sobre as questões
do ENEM que abordam a Física. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE ENSINO DE FÍSICA, XVIII., Vitória,
ES, 2009.
SOUSA, S. M. Z. Possíveis impactos das políticas de avaliação no currículo escolar. Cadernos de
Pesquisa, São Paulo, n. 119, 2003.

Recebido em março de 2012


Aprovado para publicação em abril de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 201-211, jan./jun. 2012. 211


Implicações do novo ENEM na perspectiva dos
Professores de matemática do ensino médio
Implications of the new ENEM from the perspective
of the high school math teachers
Walderez Soares Melão*
Maria Tereza Carneiro Soares**
*Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista
IEPAM-CAPES/INEP/SECAD. E-mail: walmelao@hotmail.com
**Professora no Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção da Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail:
mariteufpr@gmail.com

Resumo
Esta pesquisa pretende compreender as implicações do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) no
trabalho do professor de matemática do ensino médio e identificar em que medida essas implicações
conduzem o trabalho em sala de aula para acontecer em consonância com a matriz de referência do
ENEM e em detrimento da matriz curricular do ensino médio. Para isso é necessário levantar questiona-
mentos a respeito da motivação para a realização desses exames, de investigar o rol de influências na
elaboração das matrizes que orientam a elaboração das provas e de discutir a quem servem os resultados
nos diversos âmbitos da sociedade. As análises vão acontecer nas fronteiras entre currículos, avaliação
em larga escala e formação de professores. No texto final desta pesquisa, pretendemos esboçar uma
noção de responsabilidade curricular com relação à matemática escolar.
Palavras-chave
Educação matemática. ENEM. Práticas pedagógicas.

Abstract
This research intends to understand the implications of the Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) in
the mathematics teachers’ work in high school and identify the extent to which these implications lead the
work in classrooms to happenin line with the reference programs of ENEM at the expense of the cur-
ricular programs of the high school. For this, it is necessary to raise questions about the motivation for
conducting such exams, to investigate the list of influences in the preparation of the programs that guide
the formulation of the tests and to discuss to whom the results serve in different areas of society. The
analyses will occur at the boundaries between curricula, large-scale evaluation and teacher training. In
the final version of this research, we intended to outline a notion of curricular responsibility in relation
to school mathematics.
Key words
Mathematics education. ENEM. Pedagogical practices.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 213-223, jan./jul. 2012
Introdução ensina matemática. Acreditamos que a
formação de professores, desde a inicial
Uma parte das inquietações que ala- até a que acontece em serviço, é fulcral
vancam esta pesquisa é relativa à veicula- na constituição de uma noção de respon-
ção na mídia dos resultados das avaliações sabilidade curricular1.
em larga escala e suas repercussões no Durante os anos lecionados na licen-
cotidiano das comunidades escolares; mais ciatura em matemática em uma faculdade
especificamente sobre as interferências do particular em Curitiba, com bastante fre-
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) quência ouvimos relatos de alunos que já
no cotidiano do professor de matemática, lecionavam dando conta de que, ao mesmo
em face da grande repercussão deles na tempo em que apreciavam o conforto e a
mídia. Outra parte diz respeito ao currí- garantia de ter um programa, previamente
culo de matemática da educação básica, estabelecido, a ser ministrado nas suas
especialmente do ensino médio. Ao nos classes, sentiam um incômodo com relação
determos na reflexão acerca desses temas, a ensinar coisas em que não viam sentido
passamos a presumir que estão bastante quando eram estudantes da escola básica.
imbricados um no outro e que, qualquer Nessas ocasiões, fizemos lembrar que al-
movimento feito nas compreensões sobre gumas dessas coisas, como a proficiência
um deles, confere, necessariamente, um em cálculos complicados com lápis e papel,
novo feitio nas concepções a respeito do são hoje irrelevantes, tendo em conta todos
outro. A pesquisa tem também como obje- os avanços tecnológicos das últimas déca-
tivo identificar em que medida essas inter- das, trazendo calculadoras cada vez mais
ferências conduzem o trabalho em sala baratas e de fácil manuseio, a ponto de
de aula para acontecer em consonância tornar desconfortável insistir com alguém
com a matriz de referência do ENEM e em para que alcance essa proficiência.
detrimento da matriz curricular do ensino Outra situação frequentemente
médio. Para isso consideramos necessário, relatada por eles era a de que, em boa
entre outros procedimentos, levantar ques- parte das escolas, diretores, supervisores e
tionamentos a respeito das motivações coordenadores orientam os professores a
para a realização desses exames e do rol respeito da necessidade de “encorajar seus
de influências na elaboração das matrizes alunos a se prepararem para o ENEM” e
de referência que orientam a elaboração de destinar uma parcela das aulas para
das provas, além de discutir o uso que é “trabalhar com as questões do ENEM”.
feito dos resultados nos diversos âmbitos Ouviu-se um aluno da licenciatura, que
da sociedade.
Não consideramos possível enge-
nhar esta pesquisa, que envolve pensa- 1
No texto final desta pesquisa em andamento
mento a respeito de currículo e de avalia- pretendemos que fique uma noção de responsabi-
ção, sem ter em conta o professor que lidade curricular com relação à matemática escolar.

214 Walderez Soares MELÃO; Maria Tereza C. SOARES. Implicações do novo ENEM na...
lecionava em escola pública na região aportam na sala de aula, com anseios e ne-
metropolitana de Curitiba, afirmar que ele cessidades de que não temos conseguido
e alguns de seus colegas gastavam boa dar conta seguindo os programas vigentes
parte das aulas discutindo questões se- de formação de professores. Apenas a título
melhantes às dos exames e “trabalhavam de ilustrar lembramos que a maioria das
pouco com o conteúdo do programa”. pessoas adultas de hoje fez (e faz) parte
Pensamos que decidir sobre ensinar da paisagem em que se desenvolveu (e
isto ou aquilo às suas classes é da alçada se desenvolve) toda a tecnologia digital
dos professores, mas suspeitamos que boa que compõe os diversos cenários da vida
parte deles não se sinta em condições cotidiana e, umas mais prontamente que
de fazer uma discussão a esse respeito outras, foram se adaptando a ela. Não
com a equipe pedagógica de sua escola. é sem motivo que somos chamados de
Suspeitamos que essa situação se instala “imigrantes”. As crianças e jovens que hoje
porque durante o período de formação ini- frequentam a escola nasceram já mergu-
cial não acontecem propostas de reflexão lhados neste mundo digital que exploram
efetiva sobre currículo, nem é apontada e apreendem de forma quase natural.
a possibilidade de, durante o exercício Eles são os “nativos” deste tempo. Claro
da docência, precisar justificar – para os está que esses seres familiarizados com a
colegas, para a equipe pedagógica, para tecnologia representam um desafio para
os pais ou para os próprios alunos – a o cotidiano das escolas e especialmente
relevância do trabalho com um conteúdo para os professores que pertencem, no
em vez de outro. A ausência de reflexão a mais das vezes, à maioria de “imigrantes”.
respeito das avaliações em larga escala e Recentemente tivemos a oportunidade de
de todo o movimento gerado no entorno acompanhar parte de uma pesquisa em
delas pode ser igualmente presumida. andamento a respeito do uso de Tecnolo-
As situações acima relatadas, em gias de Informação e Comunicação (TIC)
princípio banais, são algumas pontas apa- nas escolas da rede estadual do Paraná.
rentes de uma conjuntura dissolvida nas Pudemos observar que, entre os 25 profes-
nossas escolas. Ao lado delas há outras sores da escola em que estivemos, havia
que conduzem nosso olhar e nosso pen- apenas uma professora que usava o com-
samento para fora da escola, para o resto putador e a internet em suas aulas. Espe-
do mundo em que a roda da história atua cificamente, os professores de matemática
fazendo modificações profundas. da escola afirmaram que não fazem uso
dessas tecnologias por desconhecimento.
Primeiros delineamentos O uso das TIC não é o tema desta pesqui-
sa. O exemplo apresentado, entretanto, é
Temos hoje, em todos os níveis de ilustrativo da importância de se renovar as
escolaridade, a presença marcante de reflexões a respeito de o que é necessário
subjetividades inéditas e diversas que aprender para exercer a docência.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 213-223, jan./jun. 2012. 215


É importante pontuar que os nossos nacional podem intencionar a melhoria
alunos são habitantes de um mundo cul- dos sistemas de ensino e a equalização
tural e socialmente complexo e diverso, da qualidade da educação, mas podem
um mundo em que prosperam diferenças também constituir-se em fatores que con-
e conflitos. Levar para dentro das salas de tribuem para reforçar certos estereótipos,
aula o questionamento das diferenças de além de produzir um encurtamento das
todas as ordens direciona as intenções possibilidades de a escola ser um meio
no sentido de lidar produtivamente com privilegiado – muitas vezes, o único – de
a diversidade que se apresenta. A outra acesso ao conhecimento historicamente
possibilidade é estender um véu disfar- elaborado pela humanidade.
çando as diferenças, é estabelecer um É certo também que não podemos
modelo único pretendendo que funcione fechar os olhos para o sentimento dos
para todos. A sala de aula, por exemplo, jovens de que o futuro chega muito rápi-
pode ser encarada como um bloco único, do, de que há poucas permanências em
algo como a generalização de diversas que se apegar para delinear um modo de
classes. O resultado dessa generalização estar no mundo. Se houve tempo em que
é um modelo que não representa, a rigor, as renovações culturais e tecnológicas
nem uma delas sequer. Aqui interessa envolviam o tempo e o esforço de várias
pontuar que a escola lida com gente e gerações, atualmente mal somos confron-
que, portanto, seu objeto de trabalho é tados com umas e elas são substituídas por
múltiplo. Assim, pode-se considerar que outras. A descrição de Forquin é esclare-
o modelo acima referido é um estereótipo cedora e permanece expressiva quase 20
na seguinte acepção: anos depois:
No estereótipo a complexidade do Que o mundo muda sem cessar: eis
outro é reduzida a um conjunto mí- aí certamente uma velha banalidade.
nimo de signos: apenas o mínimo Mas para aqueles que analisam o
necessário para lidar com a presença mundo atual, alguma coisa de radi-
do outro sem ter que se envolver calmente nova surgiu, alguma coisa
com o custoso e doloroso processo mudou na própria mudança: é a ra-
de lidar com as nuances, sutilezas e pidez e a aceleração perpétua de seu
profundidades da alteridade. (SILVA, ritmo, e é também o fato de que ela
2003 p. 51). tenha se tornado um valor enquanto
tal, e talvez o valor supremo, o próprio
Essa redução se faz notar em
princípio da avaliação de todas as
todos os âmbitos da educação como
coisas. (FORQUIN, 1993, p. 18).
forma de camuflar as dificuldades nas
relações interpessoais ou de homogenei- Essas reflexões com aporte cultural
zar os processos de ensino. Propostas de constituem um substrato para que se pos-
padronização curricular e a instituição de sa inserir a discussão da educação pública
avaliações em larga escala em âmbito brasileira de modo não exclusivamente

216 Walderez Soares MELÃO; Maria Tereza C. SOARES. Implicações do novo ENEM na...
econômico, de modo a que se possam ver de pesquisa, tais fronteiras são lugares
amplamente outras questões importantes difíceis de descrever. Abraçamos aqui a
que se apresentam. advertência de Bourdieu (1997, p. 11) para,
Uma dessas questões se materializa em casos como este, abandonar os pon-
nas avaliações em larga escala2 que po- tos de vista que unificam e centralizam e
deriam ser vistas como ações de governo construir referenciais que abarquem uma
para atender à recomendação da Lei n. boa gama de perspectivas permitindo apro-
9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da fundar o conhecimento dessas interfaces
Educação – (LDB/96) que em seu artigo e dos inúmeros desafios que, certamente,
9o, inciso VI, define que a União deverá comportam.
incumbir-se de Estabelecer as fronteiras a partir do
[...] assegurar processo nacional de
campo dos currículos sinaliza o reconheci-
avaliação do rendimento escolar no mento do alargamento crescente do alcan-
ensino fundamental, médio e superior, ce das discussões em torno dele, tanto no
em colaboração com os sistemas de âmbito da organização do conhecimento
ensino, objetivando a definição de valorizado nos diferentes ambientes edu-
prioridades e a melhoria da qualidade cacionais como na esfera que trata dele
de ensino. (BRASIL, 1996). como possibilidade de deitar sementes
Entretanto essas avaliações vêm para o futuro da educação. A reflexão sobre
mostrando um viés ferino, que interfere esses dois aspectos do campo curricular
no trabalho do professor e na constituição é pedra fundamental para a constituição
de identidades das crianças e dos jovens do que denominamos responsabilidade
brasileiros que frequentam as escolas pú- curricular em educação matemática.
blicas, tanto pelo uso que é feito de seus Consideramos que só se pode cogi-
resultados como por forçar mudanças nos tar ter acesso ao material para análise que
currículos da escola básica. permita conhecer o tipo de repercussão
Este estudo acontece nas fronteiras que esses exames provocam no trabalho
entre avaliação em larga escala, currículos do professor de matemática do ensino
e formação de professores de matemática médio com ouvidos bem abertos no en-
e consideramos que, enquanto locais torno em que isso acontece. Desse modo,
estamos nos valendo de depoimentos
colhidos de professores que atuam no
2
Nomeamos avaliação em larga escala ao proce- ensino médio da rede estadual de ensino
dimento de avaliação extensivo, levado a efeito em de Curitiba e região metropolitana. Essa
sistemas de ensino por agências especializadas em coleta de dados está sendo feita com o
testes. O objetivo expresso é, em geral, verificar a uso de um questionário composto de
aprendizagem dos alunos com a intenção de poder
generalizar os resultados para todo o sistema. É
diversas questões de múltipla escolha e
sempre uma avaliação externa, ou seja, realizada uma questão aberta. Um estudo inicial
por agentes de fora do sistema educacional avaliado. foi feito com dez professores escolhidos

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 213-223, jan./jun. 2012. 217


ao acaso, e a análise dessas respostas as políticas curriculares e de formação
preliminares permitiu dar acabamento ao docente em nosso país.
questionário final. A autora postula ainda que o currí-
culo põe em questão, entre outros aspectos
Esboço das fronteiras do conhecimento, “o conhecimento social-
Currículo e formação de professores mente selecionado para produzir profes-
sores”, e essa ideia remete às políticas de
A etapa inicial da formação de formação de professores.
professores de matemática acontece nos Certamente que o tema central do
cursos de licenciatura. Especialmente, essa campo do currículo é o conhecimento es-
formação inicial pode ser um momento colar juntamente com os modos de orga-
privilegiado para apresentar aos futuros nizá-lo e de lidar com ele na sala de aula,
professores uma amostra suficiente do mas se ficamos restritos a esse aspecto,
que vão encontrar no cotidiano da sala de deixamos de lado a visão mais geral que
aula. Porém, de modo geral, os programas pode efetivamente contribuir com a escola,
cumprem a exigência formal de promover com a educação. Entrementes, algumas
formação específica e pedagógica sendo teorizações recentes sobre currículo têm
que, no mais das vezes, não há integração se afastado desse tema central, incluindo
entre elas. A formação resultante desse como currículo praticamente tudo que é
arranjo é frágil e desarticulada no que possível ver, ouvir, experimentar: um pas-
toca a dar conta da sala de aula da es- seio no campo, uma visita ao centro da
cola básica, que é essencialmente plural, cidade, um novo filme, as músicas de todos
contraditória, incerta. E é certo: as decisões os tempos. Podemos reconhecer que os va-
que o professor toma afetam a vida dos riados espaços de convívio entregam todos
seus alunos, para além da sala de aula e os dias contribuições ao trabalho feito na
da vida escolar. Parece importante, nesse escola, entretanto é necessário cuidado
caso, trazer para a formação docente para não ampliar demasiado o alcance da
discussões que envolvam intimamente as ideia de currículo, para não perder de vista
políticas educacionais com suas motiva- o essencial, ou seja, a escola, a educação
ções e desdobramentos. escolar. Aproveitar essas contribuições não
Concordamos com Silva (2003a) significa incluí-las no currículo e, sim, lidar
quando afirma que com elas “para que melhor se compreenda
e se atue no currículo” (GARCIA; MOREIRA,
[...] as mudanças desejáveis em ter-
mos dos propósitos e condições da 2008, p. 24). É importante reconhecer que
escolarização passam pelo conheci- essas teorizações, embora não contribuam
mento e pelos sujeitos que o praticam, para a melhoria das práticas em sala de
contrariando, portanto, as ideologias aula, cedem importantes parâmetros para o
tecnocráticas e instrumentais que entendimento de quais mecanismos fazem
teimam em direcionar, presentemente, a separação entre teoria e prática e podem

218 Walderez Soares MELÃO; Maria Tereza C. SOARES. Implicações do novo ENEM na...
favorecer a percepção de como os saberes curricular para o aprimoramento de suas
advindos da prática passaram a compor práticas” (MOREIRA, 1999b). Isto – apro-
um rol de conhecimentos de segunda li- veitar as contribuições do pensamento
nha. É crucial aqui apontar que isso serve curricular para o aprimoramento da práti-
ao exercício do poder porquanto silencia os ca pedagógica – constitui-se em alicerce
processos de produção do conhecimento. importante do que estamos nomeando de
Oferecemos ainda para reflexão a responsabilidade curricular. Igualmente im-
afirmação de Moreira a respeito da for- portante é refletir sobre a possibilidade de
mação de professores e os estudos sobre usar elementos da prática pedagógica para
currículo: aprimorar o pensamento sobre currículo.
Os estudos sobre currículo constituem
significativa ausência nos cursos de Currículo e avaliações em larga escala
licenciatura. Somente quem estuda
Iniciando a formulação de compre-
pedagogia ou freqüenta cursos de
pós-graduação costuma estar familia-
ensões sobre currículo, concordamos com
rizado com as mais recentes discus- Silva (1996, p. 179) quando afirma que
sões travadas no campo em pauta. Os currículo é “o conjunto de todas as expe-
demais restringem-se a refletir sobre riências de conhecimento proporcionadas
ensino e algumas questões curricula- aos/às estudantes” [no espaço de alcance
res nas aulas e em textos de didática da escola]” (acréscimos meus). Essa ideia
que, no entanto, tradicionalmente amplia em grande medida a noção de
não propiciam uma abordagem mais currículo, que deixa de ser pensado apenas
profunda dessa questão. (MOREIRA, em termos prescritivos, de listas de conteú-
1999b). dos, estratégias metodológicas e formas de
O autor enfatiza ainda que, embora avaliação, passando a abranger toda ação
o limite entre os campos da didática e do efetivada nos tempos e espaços escolares
currículo não seja firmemente marcado, de ensinar e aprender. O currículo de que
os temas abordados pelos pesquisadores aqui se trata é percurso, é caminho (a ser)
em didática e pelos professores, não são percorrido na educação escolar. Para que
os temas investigados pelos estudiosos de se possa ver o currículo como prática social,
currículo, e, em vista disso, a participação como arranjo resultante de um processo
dos professores em processos de elaborar histórico, é necessário olhar para ele com a
currículos, ocorre sem que sua formação intenção de flagrar “os momentos históricos
tenha lhes proporcionado a oportunidade em que esses arranjos foram concebidos
de conhecer o que vem sendo pensado e e tornaram-se ‘naturais’” (MOREIRA; SILVA,
construído pelos curriculistas. Decorre daí a 2001. p. 31). É necessário também reconhe-
necessidade de possibilitar aos professores cer que ele está profundamente implicado
outros espaços e estímulos para que apro- em relações de poder. Esse reconhecimento
veitem as “contribuições do pensamento implica desnaturalizar o currículo.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 213-223, jan./jun. 2012. 219


Tal posicionamento é importante elites, por exemplo. Mas é ainda mais
para tentar transgredir a ordem curricular interessante saber por que razões
existente, essa que toma como naturais essa matemática e não outra, essa for-
algumas características do currículo como ma de organizá-la no currículo e não
outra, essa forma de ensiná-la e não
a disciplinaridade e a indiferença com
outra, acabaram sendo vistas como
relação à diversidade cultural – que desá-
válidas e legítimas. (SILVA, 1995, p. 8).
gua na constituição de identidades. Essas
características não são naturais na medida Exatamente essa reflexão de Silva
em que revelam o caráter hegemônico pode ser estendida para falar das avalia-
da divisão adotada para o conhecimento ções de sistemas de ensino: por que razões
universal, compondo as disciplinas tradi- essa matemática e não outra, essa forma
cionalmente conhecidas e os modos de de organizá-la nas matrizes de referência
lidar com elas a partir de um ponto de e não outra, essa forma de apresentá-la
vista único. nas questões das provas e não outra, é
Pelo âmbito da avaliação, iniciamos que são vistas como válidas e legítimas?
afirmando que avaliar não é atividade Mais: quanto e de que modo essa forma
neutra independente de que caminhos de organizar, apresentar e oferecer essa
sejam percorridos para efetivá-la. O objetivo matemática influi no trabalho cotidiano do
é sempre marcar posições predefinidas e professor de matemática do ensino médio?
promover mudanças em determinada di- Fazendo um cotejo preliminar das
reção. O que as avaliações significam vai Orientações Curriculares para o Ensino
estar sempre impregnado do uso que se faz Médio – (OCEM) – (BRASIL, 2006) com o
dos seus resultados. As posições assumidas conteúdo expresso na prova de matemáti-
a partir disso podem tanto concorrer para ca da edição 2011 do ENEM, é fácil notar
ajustes no sentido de imprimir simetria nas que o exame ultrapassa apenas de leve
relações sociais e econômicas na sociedade o conteúdo previsto para o ensino funda-
como podem servir a intuitos de agravar mental deixando de contemplar grande
as desigualdades e acirrar a competição. parte do conteúdo apontado nas OCEM.
Abrimos aqui um espaço para mar- Não é difícil depreender do exposto
car contornos da fronteira entre currículo que as políticas públicas reservam lugar
e avaliações em larga escala. Silva escreve privilegiado às reformas curriculares, o que
a respeito da importância de compreender é um indicativo de que esse não é um
a constituição de um currículo como pro- trabalho inocente; é feito de escolhas e
cesso social, politicamente empreendido, expressa relações de poder que, se ligadas
usando a matemática como um exemplo: à noção de ideologia, nos impulsionam a
Pode ser interessante saber como incluir o currículo como campo contestado.
era o currículo de matemática no Essa inclusão se materializa na medida em
final do século passado nas escolas que o currículo se configura como parte
brasileiras dedicadas à educação das da realização das ideologias na sociedade.

220 Walderez Soares MELÃO; Maria Tereza C. SOARES. Implicações do novo ENEM na...
Qual é o plano para a juventude e privadas nos exames e provas das ava-
brasileira? Esta pergunta é uma menção ao liações em larga escala.
final da palestra proferida por Luiz Carlos As avaliações em larga escala pre-
de Freitas na abertura do I Seminário sobre tendem traçar um panorama da qualidade
o Impacto das Políticas Educacionais nas do ensino nas diversas etapas. No Brasil
Redes Escolares (SIPERE) e é inspiradora elas têm acontecido de acordo com um
enquanto possibilidade de projetar o futuro panorama mundial em que proliferam.
do país nos planos para a juventude. No plano das avaliações internacionais,
Planos para a juventude devem o Brasil participa do Programme Interna-
fazer amplos aportes tanto na educação tional Student Assessment (PISA) e tem
básica como na superior. E a educação também um sistema próprio de avaliação.
precisa ser de qualidade, gratuita, para No sítio do Instituto Nacional de Estudos
todos. Esse discurso é agradável aos ou- e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
vidos e bate um desejo enorme de que (INEP) encontra-se a informação de que
não seja só discurso, que se tenha de o Sistema de Avaliação da Educação
fato. Temos acompanhado esforços para Básica (SAEB) é composto pela Avaliação
que a educação básica gratuita esteja ao Nacional da Educação Básica (ANEB) e
alcance de todos os brasileiros. Não se pela Avaliação Nacional de Rendimento
pode deixar de notar, também, que está Escolar (ANRESC). Esta última é conhecida
em curso uma ampliação significativa do como Prova Brasil e é aplicada a todas
acesso ao ensino superior, em comparação as classes de 4a e 8a séries (5o e 9o anos)
com a possibilidade de acesso em décadas do ensino fundamental, com no mínimo
anteriores. E o acesso ao ensino superior 30 alunos, de escolas urbanas. A ANEB
está vinculado aos estudos anteriores. é conhecida como SAEB e trabalha com
No Brasil, nas últimas décadas, o amostras de alunos de escolas de todo o
acesso ao ensino superior público tem se Brasil, incluindo particulares – 4a e 8a séries
dado com base em concursos vestibulares (5o e 9o anos) do ensino fundamental e 3a
que pretendem, em última instância, ava- série do ensino médio.
liar o que foi aprendido nas etapas ante- Além dessas modalidades, temos
riores – prioritariamente no ensino médio também o Exame Nacional do Ensino
– e verificar aptidões para determinadas Médio (ENEM), caracterizado como um
profissões. Conquistar uma vaga nas insti- exame voluntário para concluintes do en-
tuições públicas de ensino superior é, atu- sino médio, que foi realizado pela primeira
almente, uma tarefa árdua e cada vez mais vez em 1998, a fim de cumprir os objetivos
os alunos oriundos do ensino público têm definidos pelo Ministério, a saber:
ficado de fora. É frequente ver noticiado na • oferecer uma referência, para que cada
imprensa que o ensino público carece de cidadão possa proceder à sua autoava-
qualidade, e isso vem acompanhado dos liação, com vistas às escolhas futuras,
resultados obtidos pelas escolas públicas tanto em relação ao mercado de trabalho,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 213-223, jan./jun. 2012. 221


quanto em relação à continuidade de SiSU será efetuada exclusivamente
estudos; com base nos resultados obtidos pe-
• estruturar uma avaliação da educação los estudantes no Exame Nacional do
básica que sirva como modalidade alter- Ensino Médio - ENEM. (BRASIL, 2010).
nativa ou complementar aos processos O novo ENEM, como ficou conhe-
de seleção, nos diferentes setores do cido esse exame a partir de 2009, prevê
mundo do trabalho; também que se deva reformar o currículo
• estruturar uma avaliação da educação do ensino médio a partir dos recortes no
básica que sirva como modalidade alter- conhecimento que são privilegiados nas
nativa ou complementar aos exames de provas.
acesso aos cursos profissionalizantes Delinear caminhos na busca por
pós médios e ao ensino superior (BRA- uma noção de responsabilidade curricular
SIL, 1998). relativa à matemática escolar, detendo o
Está em curso atualmente a implan- olhar nas políticas públicas de avaliação
tação do Sistema de Seleção Unificada em larga escala, pode significar ter de
(SiSU), que cumpre com o último dos obje- buscar relações dissonantes. Se o desejo é
tivos acima apresentados. De acordo com o que o desenvolvimento dessa noção possa
artigo 1o da portaria normativa n. 2/2010: influir na elaboração de currículos como
Art. 1o Fica instituído o Sistema de
experiências de pensamento que reflitam
Seleção Unificada - SiSU, sistema uma feição crítica, criativa e libertadora da
informatizado gerenciado pelo Minis- educação matemática, isso pode exigir que
tério da Educação - MEC, por meio do se façam rupturas profundas nos liames
qual são selecionados candidatos a entre o que se tem e o que se quer. Quere-
vagas em cursos de graduação dispo- mos dizer, é possível que o que se tem não
nibilizadas pelas instituições públicas seja bom substrato para sustentar o que se
de educação superior participantes. quer. Não temos a intenção de tomar isso
§ 1o A seleção dos candidatos às como hipótese; levantar a possibilidade é
vagas disponibilizadas por meio do o que basta.

Referências

BRASIL. Lei n. 9394, de 20.12.96. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário
da União, ano CXXXIV, n. 248, 23.12.96.
______. Ministério da Educação. Secretaria de educação superior. Portaria normativa n. 2, de 26
de janeiro de 2010. 10 p.
______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para
o ensino médio. Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias. Brasília: Ministério da
Educação, 2006. 135 p. v. 2.

222 Walderez Soares MELÃO; Maria Tereza C. SOARES. Implicações do novo ENEM na...
BOURDIEU, P. (Coord). A miséria do mundo. Vários tradutores. Petrópolis, RJ. Vozes, 1997.
FORQUIN, J. C. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar.
Porto Alegre, RS: Artes Médicas, 1993.
FREITAS, L. C. Políticas educacionais e as avaliações em larga escala no Brasil: o próximo estágio.
In: SEMINÁRIO SOBRE OS IMPACTOS DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NAS REDES ESCOLARES
(SIPERE), 1., 2011, Curitiba. Palestra de abertura.16-18 junho 2011.
GARCIA, R. L.; MOREIRA, A. F. B. Começando uma conversa sobre currículo. In: GARCIA, R. L.;
MOREIRA, A. F. B. (Orgs.). Currículo na contemporaneidade: incertezas e desafios. São Paulo:
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MOREIRA, A. F. B. Reflexões sobre o currículo a partir da leitura de um livro para crianças. Revista
Química Nova na Escola, n. 9, 1999b. p. 23-27.
MOREIRA, A. F. B.; SILVA, T. T. Sociologia e teoria crítica do currículo: uma
introdução. In: MOREIRA, A. F. B.; Silva, T. T. (Orgs.). Currículo, cultura e sociedade. São Paulo:
Cortez, 2001.
SILVA, J. M. M. Vestígios de Investigações sobre currículo e formação de Professores. In: GON-
ÇALVES, Luiz Alberto de Oliveira. Currículo e políticas públicas. Belo Horizonte: Autêntica, 2003a.
SILVA, T. T. Alienígenas na sala de aula. Uma introdução aos estudos culturais em educação.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
______. Identidades terminais: as transformações na política da pedagogia e pedagogia da
política. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
______. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte, MG:
Autêntica, 2003.

Recebido em março de 2012


Aprovado para publicação em abril de 2012

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 213-223, jan./jun. 2012. 223


Implicações do Novo ENEM em escolas estaduais de
Curitiba
Implications of the New ENEM in state schools in
Curitiba
Nicole Glock Maceno*
Orliney Maciel Guimarães**
* Mestre em Educação em Ciências e em Matemática pela
UFPR. Bolsista IEPAM – CAPES/INEP/SECAD. Especialista
em Psicopegagogia Escolar pela FACIMOD-PR. Licenciada
em Química pela UFPR. E-mail: nicolemaceno@gmail.com
** Mestre e Doutora em Ciências pela USP. Licenciada em
Química pela UFU. Professora da UFPR - Centro Politécnico,
Curitiba, PR. E-mail: orli.guimaraes@gmail.com

Resumo
Discutimos as implicações do Novo ENEM para cinco Escolas Estaduais de Curitiba escolhidas com base
nos resultados de suas participações neste exame entre 2005 e 2008. Entrevistamos sete professores de
Química e aplicamos um questionário a cento e cinquenta e três estudantes do terceiro ano do ensino
médio. Após tabularmos os dados e utilizarmos as contribuições de Moraes e Galiazzi (2007) sobre a
Análise Textual Discursiva para análise das entrevistas, constatamos que as implicações do novo ENEM
nas escolas são variadas, porém as ações permanecem isoladas e com ênfase na preparação.
Palavras-chave
ENEM. Ensino de Química. Políticas Educacionais.

Abstract
We discuss the implications of the New ENEM to five state schools of Curitiba chosen based on the results
of their participation in this exam between 2005 and 2008. We interviewed seven teachers of Chemistry
and applied a questionnaire in hundred and fifty and three students of the third year of high school. After
tabularmos data and utilize the contributions of Moraes and Galiazzi (2007) about the Textual Discourse
Analysis to analyze the interviews, we found that the implications of the New ENEM schools are varied,
but the shares remain isolated and with an emphasis on preparation.
Key words
ENEM. Chemistry Teaching. Educational Policy.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 33, p. 225-240, jan./jul. 2012
Introdução um conjunto de ações e de orientações
intencionais de um governo que almeja
Há certo consenso entre os profis- alcançar determinados objetivos. Assim, as
sionais da educação de que a avaliação políticas podem se tornar públicas quando
é fundamental para o alcance da melhoria seus interesses são atingidos e beneficiam
do ensino e, portanto, é indispensável para a toda a população em face de suas neces-
a reflexão e a investigação sobre as práti- sidades. Por isso as políticas educacionais
cas pedagógicas, além de contribuir com precisam ser avaliadas sistematicamente
os processos formativos dos professores. para a análise e a compreensão de for-
De certo modo, nas últimas décadas, os ma contextualizada da sua dimensão e
exames nacionais têm ganhado visibili- das suas implicações para a sociedade
dade, principalmente porque permitem (BELLONI, MAGALHÃES, SOUSA, 2000).
o controle e a gestão do Estado sobre os Dessa forma, problematizar as impli-
mais variados níveis de ensino. Entretanto cações de uma política pública significa
os exames podem ou não assumir um sen- não só comparar os objetivos pretendidos
tido pedagógico para a escola: dependerá e alcançados, mas também discutir os seus
dos significados atribuídos pelos sujeitos efeitos a partir do contexto em questão.
envolvidos nesses espaços. É preciso analisar ainda até que ponto
Diante dessas perspectivas, neste o Estado está ou não respondendo aos
texto tivemos como objetivo discutir um dos problemas sociais, já que é esperado
pontos que integra a dissertação de mes- que os resultados das políticas públicas
trado desenvolvida no âmbito do projeto sejam relevantes “não apenas para seus
Inovações Educacionais e Políticas Públicas formuladores, mas para todos os setores
de Avaliação e Melhoria da Educação no sociais envolvidos ou atingidos” de forma
Brasil (Observatório da Educação/CAPES): a contribuir com o seu aperfeiçoamento
as implicações do Novo Exame Nacional (BELLONI, MAGALHÃES, SOUSA, 2000, p.
do Ensino Médio (ENEM) – assim nome- 27-45), pressupondo, portanto, a participa-
ado a partir de 2009 – em cinco Escolas ção da sociedade para a sua consolidação
Estaduais de Curitiba, escolhidas com base
(GALERA, 2004).
nos resultados de suas participações neste
Além disso, tratar especificamente
exame entre 2005 e 2009. Nesta pesquisa,
das implicações do Novo ENEM em escolas
foram considerados como interlocutores
de Educação Básica permite-nos discutir
Escolas, sete professores de Química e
a temática avaliação, mas é preciso situar
cento e cinquenta e três estudantes do
neste momento que ela está para além dos
terceiro ano do Ensino Médio.
exames. Conforme enfatiza Dias Sobrinho
(2004, p. 707), é recorrente que as provas
As políticas educacionais e a avaliação
e os exames sejam confundidos com a
Partimos do pressuposto de que as avaliação, entretanto estes são muito mais
políticas educacionais correspondem a ligados aos resultados, à verificação, à ges-

226 Nicole Glock MACENO; Orliney Maciel GUIMARÃES. Implicações do novo ENEM em escolas...
tão, à reforma e à coleta de dados sobre levado à melhoria do ensino, à concretude
as escolas. Além disso, dependendo das do papel do Estado ou contribuído para os
características que os exames apresentam, debates sobre os princípios da reforma do
tais como a distribuição de financiamento ensino médio, acerca da avaliação e do
e de bolsas ou a elaboração de rankings, currículo assim como é mencionado nos
“perdem seu sentido formativo e acabam documentos públicos sobre esse exame
determinando os conteúdos e métodos (MACENO, 2012). Com isso, partimos do
de ensino, deslocando, ao menos em pressuposto de que os exames têm como
parte, a autonomia didático-pedagógica um dos principais objetivos a qualificação
das instituições e seus atores principais” das escolas e, conforme destaca Farias
(DIAS SOBRINHO, 2010, p. 15). Nessa visão, (2006), deveriam levar à melhoria desses
para que os exames tenham significado espaços. Tal situação exige sobretudo a sig-
pedagógico para a escola e responda aos nificação por parte do sujeito das propostas
seus interesses, é preciso que perpassem externamente induzidas a fim de que haja
pela produção de sentidos pelos sujeitos, a transformação das escolas e a melhoria
exigindo, portanto, a discussão e a reflexão do ensino. Diante de tudo isto, destacamos
sobre eles. a seguir a metodologia de pesquisa.
Diferentemente dos exames que são
mais restritos e pontuais, a avaliação é Metodologia de coleta e de análise
eminentemente interpretativa, com funções dos dados
variadas. Possibilita, por exemplo, subsídios
e fundamentos para a pesquisa, para a im- Para problematizarmos as implica-
plementação ou a reorientação de políticas ções do ENEM nas escolas, primeiramente
educacionais e a superação do enfoque fizemos a escolha dos espaços conside-
tradicional de ensino. Sendo assim, assume rados. Uma vez que a cidade de Curitiba,
múltiplos enfoques e, por ser um processo PR, possui 165 escolas públicas de Ensino
dinâmico voltado para os problemas e Médio (PARANÁ, 2011), consideramos três
para o alcance das finalidades da escola, critérios de escolha: (1) serem de âmbito
a avaliação é um empreendimento social estadual; (2) terem a oferta do Ensino
e por isso requer a responsabilidade e a Médio Regular; e (3) terem participado
ética (DIAS SOBRINHO, 2008, p. 201). Nessa de todas as edições do ENEM de 2005 a
perspectiva, a avaliação abrange a subje- 2009 e com geração de médias. Com isso,
tividade, a historicidade, os processos, os foram escolhidas cinco escolas: duas que
produtos e os significados. Sendo assim, é apresentaram médias elevadas no perío-
interdisciplinar e contextualizada. do considerado; duas que apresentaram
O ENEM como um instrumento de médias intermediárias; e uma que apre-
política educacional apresenta implicações sentou médias mais baixas.
nas escolas e consideramos relevante ana- Em seguida, entrevistamos sete
lisá-las a fim de compreendermos se tem professores de Química e aplicamos cento

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 225-240, jan./jun. 2012. 227


e cinquenta e três questionários aos estu- o exame; realização de simulados e as
dantes do terceiro ano do Ensino Médio. alterações metodológicas no ensino.
As perguntas abrangiam – dentre outras Os professores afirmam que a ade-
questões – as implicações do ENEM no são expressiva dos estudantes ao ENEM faz
trabalho docente e escolar. Mediante essas com que seja desnecessário incentivá-los
fontes de dados, tabulamos os dados pro- a participar, mas há a preocupação das
duzidos pelos estudantes e utilizamos as escolas em divulgar as informações deste
contribuições de Moraes e Galiazzi (2007) exame e auxiliá-los nas suas inscrições.
acerca da Análise Textual Discursiva para A divulgação dos resultados nas escolas
a análise das entrevistas dos professores, e ocorre nas reuniões pedagógicas ou por
as categorias foram definidas previamente. meio de editais, mas com pouca discussão
No caso deste texto, discutimos apenas nessas ocasiões. Há escolas que propõem
uma delas: Implicações do Novo ENEM no aulões e simulados até mesmo nos finais
trabalho docente, que levou à produção de de semana, e há os professores que
três proposições para os professores. Os utilizam as questões do ENEM em suas
dados dos estudantes também permitiram aulas ou passam a incorporá-las nos seus
a construção de três proposições, que foi instrumentos de avaliação.
discutido a seguir. Os efeitos do ENEM nas escolas tam-
bém incluem o recebimento de materiais
Implicações do Novo ENEM no traba- ou de revistas que são repassadas aos pro-
lho docente segundo os Professores fessores. A maioria deles verifica o tipo das
de Química questões e os conteúdos contemplados no
ENEM, e alguns acabam adequando seus
Proposição I: São várias as implicações Programas de Ensino e de Avaliação ao
do Novo ENEM para as escolas, mas que preconiza o referido exame. Ou ainda,
as ações permanecem isoladas e com acabam adequando até mesmo o Projeto
ênfase na preparação. Político Pedagógico da escola, conforme
revelou a Professora A em sua entrevista
A partir das falas dos professores, Desse modo, podemos perceber que
pudemos identificar que as escolas têm o Novo ENEM tem desencadeado implica-
sido afetadas de alguma forma pelo Novo ções nas escolas, mas tem alterado pouco
ENEM, por fatos que vão desde incentivo o trabalho escolar, uma vez que as ações
à inscrição; uso de questões de provas carecem de integração, de planejamento,
passadas; aulões preparatórios; comen- de continuidade e de entrelaçamento
tários de véspera entre os professores e ao projeto pedagógico da instituição. As
os estudantes; adaptações aos conteúdos ações pontuais e isoladas ocorrem mais
e questões ou do Programa de Ensino, por iniciativa de alguns professores ou
do Plano Curricular e do Projeto Político dependentes do interesse dos gestores em
Pedagógico da escola ao que preconiza serviço, conforme pontuou a Professora A.

228 Nicole Glock MACENO; Orliney Maciel GUIMARÃES. Implicações do novo ENEM em escolas...
Os professores também reconhecem “[...] aqui é complicado você analisar o
que há poucas ações por parte da Secre- ENEM porque tem muitos alunos aqui
taria do Estado de Educação do Paraná que fazem cursinho […] e acaba que é
(SEED-PR) ou dos Núcleos de Educação claro, o escore da escola no ENEM vai
a respeito do ENEM. Chegam a receber lá em cima […] a gente não tem essa
preocupação. Haveria se houvesse
materiais, cartilhas ou revistas sobre esse
uma situação diferente: por exemplo,
exame, mas poucos exemplares que, por se o governo estimulasse os alunos a
vezes, não são nem repassados, ou fica participarem do ENEM e dependendo
sob a responsabilidade dos professores desse resultado isso pode ser revertido
empreenderem seus estudos e compreen- em dividendos para a instituição e
sões sobre o ENEM. automaticamente para quem trabalha
As discussões sobre o referido exa- com os alunos.” (Professor D).
me e a utilização dos dados também são “Eu tive com os meus alunos porque
escassas. Os Professores D e B, por exem- eles todos chegaram desesperados,
plo, consideram desnecessária a discussão, conversando sobre as questões
entretanto os demais afirmam que, nas […] pós ENEM desse ano. Mas não
escolas, são raros os espaços para debates, percebi que teve alguma coisa na
mas reconhecem que seria importante escola justamente porque a gestão
haver uma reflexão coletiva sobre o ENEM atual pegou um colégio praticamente
para repensarem o trabalho desenvolvido, destruído […] pedagogicamente, em
identificar os pontos de dificuldade e os todos os sentidos, […] então acredito
avanços, além de compreenderem melhor que não deu tempo de preparar mais
nesse sentido […].” (Professora E).
esse exame. Tais afirmações foram eviden-
ciadas a seguir: “Depende da supervisão e da direção
da escola. A direção anterior era mais
“[…] parece que os alunos daqui têm atenta nesse ponto. Eles faziam gráfi-
ficado nas primeiras posições, em cos, traziam pra gente essa discussão
primeiros lugares sempre, mas eu no início do ano do resultado do
não sei. Eu não tenho me interessado ENEM, então qual a avaliação que a
muito não.” (Professora B). escola teve, onde estavam os pontos
“[...]só informam. Não há uma discus- fracos. E também individualmente,
são […] fica difícil ter um feedback, cada professor que se interessava
então você não tem nenhum retorno, tinha até o seu material. E aí, depois
você não sabe como seu trabalho está começaram a não mostrar. E aí a
se saindo. A única coisa que você tem gente que tinha que ir atrás e de ver
de vez em quando é o retorno dos o que aconteceu […]. Mas quando
alunos […] Então isso é satisfatório, o aluno volta do ENEM, já naquela
só que um retorno mais aprofundado, semana a gente já passa a discus-
que seria interessante, a gente não são, a gente já vê onde eles tiveram
tem.” (Professor C). dificuldade.” (Professora A).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 225-240, jan./jun. 2012. 229


“[...] eu acho interessante a avaliação sobre as práticas pedagógicas e a apren-
e voltarmos a termos os retornos. Mas dizagem; a carência de articulação entre
eu acho que ainda falta um pouco da a escola com os agentes externos a ela; a
Secretaria de Educação ou da própria descontinuidade das políticas; as decisões
escola. Porque no começo desse ano
que não são compartilhadas, entre outros
eu descobri material do ENEM que
eu nunca tive acesso.” (Professora A).
aspectos.
A falta de articulação nas ações da
“O único incentivo que eu vejo da escola e as práticas tradicionais arraigadas
escola é que se coloca a data da
contribuem para que o Novo ENEM seja
prova, o período das inscrições.“ (Pro-
fessora F).
visto como mais um exame que desperta
muito o interesse dos estudantes por estar
“[...] nós não tivemos nenhuma reu- associado ao Ensino Superior, mas pouco
nião com a direção em relação ao
dos professores. Com isso, a oportunidade
ENEM do ano passado.” (Professor G).
de questionamento, de debate público, tão
Podemos depreender pelas falas que necessário para engendrar a avaliação, se
os professores consideram muito mais rica perde, gerando comentários por parte dos
uma discussão que envolva toda a escola professores acerca do ENEM mais para sa-
do que ter os estudos isolados ou somen- nar as dúvidas dos estudantes do que con-
te por iniciativa própria, mas, ao mesmo tribuir para repensarem sobre os princípios
tempo, sugerem que os gestores, as equi- destacados nas reformas do Ensino Médio.
pes pedagógicas ou mesmo a SEED-PR Além disso, os efeitos do ENEM nas
assumam a frente para desencadear os escolas que pudemos identificar são con-
debates. trários ao que propõem as autoridades em
Os docentes indicaram que há relação a esse exame: pouco têm contri-
dificuldades no cotidiano escolar que di- buído para repensar a organização curricu-
ficultam ou mesmo impedem uma maior lar, a avaliação, o ensino, os princípios da
integração das ações de todo o colegiado Interdisciplinaridade e da Contextualização
não só em relação ao ENEM, mas também ou as finalidades educativas do Ensino
em relação a outras questões educacio- Médio. Na verdade, o Novo ENEM tem
nais. Dentre as dificuldades relatadas, sido considerado mais como um currículo
podemos mencionar o isolamento entre os a ser seguido ou um tipo de exame a ser
professores; o individualismo; as relações reproduzido em sala de aula, arraigando a
interpessoais; a alta rotatividade na equi- relação de exterioridade entre os professo-
pe; o descontinuísmo de projetos e ações res e o Estado ou as Universidades, ou seja,
quando há troca do gestor; as dificuldades situando-os como executores em relação
de relacionamento entre os professores, ao seu próprio trabalho (MACENO, 2012).
a gestão e a equipe pedagógica e as A falta de integração, de planeja-
famílias; a falta de tempo e espaço para mento, de articulação nas ações dos pro-
desencadear a investigação e a reflexão fessores, diretores e equipes pedagógicas

230 Nicole Glock MACENO; Orliney Maciel GUIMARÃES. Implicações do novo ENEM em escolas...
em relação ao ENEM faz com que esse ricidade, sua evolução ao longo dos anos,
exame contribua pouco com o trabalho ou seja, avaliar tais políticas.
docente, de modo que se mantém nas É preciso lembrar que é fundamental
escolas a mera informação dos resultados. a capacidade de articulação entre as ações
Com isso, há uma adesão ao exame nas do Estado e das escolas, de modo que a
escolas sem que as discussões e os ques- política seja incorporada e transforme a co-
tionamentos sejam desencadeados, assim munidade, convivendo com ela diariamen-
como se espera num processo avaliativo. te e sendo objeto de reflexão permanente a
Consequentemente, os materiais recebidos fim de ser possível analisar os avanços ou
por algumas escolas ou mesmo os dados os retrocessos. Com isso, o professor é um
produzidos pelo ENEM têm pouco valor agente social nas políticas educacionais e
para repensarem os processos e os pro- pode consolidá-las e, no caso das escolas,
gramas de ensino e de avaliação. na medida em que estas discutem e inte-
Conforme os professores manifesta- gram as ações do Estado, retroalimentam
ram, se há na escola algum tipo de comen- tais políticas (GALERA, 2004).
tário, ainda que breve, sobre o ENEM, este Além disso, mesmo que os exames
ocorre somente entre os estudantes. São tenham ganhado importância como ins-
raras as escolas que chegaram a desen- trumento de controle, gestão e reforma, e
cadear ações a partir da sua participação sejam úteis para os Governos, seus efeitos
nesse exame, como parece ter ocorrido dependerão de suas características, poden-
há alguns anos atrás na Escola Boa Vista do perder seu significado pedagógico caso
conforme manifestou a Professora A, mas haja como escopo somente a produção
a mudança de gestão comprometeu a de dados com fim em si mesmo (DIAS
continuidade daquela ação. SOBRINHO, 2010), como parece ocorrer
Destacamos que as políticas educa- nas escolas consideradas.
cionais afetam as escolas, de modo que
Proposição II: Diante das noções super-
é ingênuo desconsiderá-las (GOODSON,
ficiais que os professores têm sobre
1995), mas se faz necessário buscar a
o Novo ENEM e das ações pontuais e
integração entre as ações do Estado e
carentes de planejamento, esse exame
dos espaços escolares para uma relação
tem contribuído pouco para repensa-
dialética que consideramos fundamental
rem e beneficiarem o ensino.
e a valorização de todos para empreender
políticas que verdadeiramente beneficiem Ao perguntarmos para os professo-
boa parte da população. Como uma res se o ENEM estaria induzindo mudan-
das ações de políticas educacionais, o ças em suas práticas pedagógicas, as res-
ENEM deveria possibilitar a redução das postas diversificaram-se. Para o Professor
desigualdades educacionais, beneficiar o D, o referido exame estaria influenciando
trabalho docente, mas isso necessita de na construção de seus instrumentos de
ações planejadas para analisar sua histo- avaliação porque estariam utilizando as

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 225-240, jan./jun. 2012. 231


questões de provas passadas, de modo Professora B que, apesar de utilizar as
que “o aluno [...] quanto mais ele treina, questões do ENEM como um reforço e um
melhor ele fica. E treinar é resolver tes- preparatório dos estudantes tanto para o
tes de vestibular” (Professor D), ou seja, próprio exame como para a Olimpíada de
estaria levando à adequação de seu Química, manifestou que não alterou nada
Programa de Avaliação aos moldes das em função desse exame por acreditar que
questões do ENEM. Todavia o professor trabalha na mesma perspectiva, ou seja,
destaca que o referido exame não estaria não haveria necessidade de mudanças. Os
induzindo às mudanças curriculares por- Professores C, E e F também disseram que
que acredita que “o conteúdo estruturante não tiveram alterações em suas práticas
é o mesmo”. pedagógicas em função do ENEM:
No caso do Professor G, ocorre
“A gente não se prepara exatamente
justamente o contrário: reconhece que para ver o ENEM, a gente vai continu-
propôs alterações no seu Plano curricular ando os conteúdos, no ritmo normal
de Química para trabalhar “em cima dos da gente.” (Professora F).
conteúdos que iriam cair” no ENEM, mas
“Não percebi que teve alguma coisa
que não estaria contemplando as questões,
na escola justamente porque a gestão
somente os conteúdos, justificando que
atual pegou um colégio praticamente
“nunca vai cair a mesma coisa”. destruído [...]. Nós estamos com reforma
A Professora A também disse que na escola, então acredito que não deu
propôs alterações em função da participa- tempo de preparar mais nesse sentido,
ção da escola no ENEM, afirmando que: mas eu também sou contra esses
“quando a gente percebeu que não estava cursinhos para o ENEM. Então eu não
trabalhando adequadamente os gráficos, vejo necessidade.” (Professora E).
a gente começou a trabalhar mais. Orga- “Não há uma discussão, no âmbito de
nograma, gráficos, assuntos assim mais ‘oh pessoal, nossa! esse ano caiu! de
ligados ao cotidiano, ao meio ambiente”. repente será que nós não deveríamos
Porém complementa que: mudar um pouquinho, trabalhar tais
“Eu não acho que vai facilitar o nosso pontos, atualizar-se um pouco?’ [...] fica
trabalho, ou que vai dificultar. Porque difícil ter um feedback, então você não
independente do que vem do ENEM tem nenhum retorno, você não sabe
a gente tem que trabalhar um deter- como seu trabalho está se saindo. A
minado conteúdo, você pode até dar única coisa que você tem de vez em
uma pincelada ou outra diferente. quando é o retorno dos alunos [...]. En-
Mas você também não tem como sair tão isso é satisfatório, só que um retorno
muito.” (Professora A). mais aprofundado que seria interes-
sante, a gente não tem.” (Professor C).
Outros professores descartaram a
possibilidade de influência desse exa- A partir das falas dos professores,
me em suas práticas, como é o caso da podemos dizer que o ENEM estaria estimu-

232 Nicole Glock MACENO; Orliney Maciel GUIMARÃES. Implicações do novo ENEM em escolas...
lando para alguns as alterações na meto- de avaliação permanecem arraigadas. Um
dologia de ensino, de modo que buscam exemplo dessa situação foi constatado nos
contemplar questões e verificar o formato depoimentos dos professores D e G que
delas ou o tipo de abordagem, procuram reconheceram que estariam aderindo aos
fazer breves comentários em sala de aula e programas de concurso para organizar a
elucidar algumas dúvidas dos estudantes. construção de suas provas e currículos,
Para outros, o ENEM estaria sendo aderido mas mantendo o ensino centrado na
como um Programa de Ensino e também sequencialidade e na escuta-transmissão.
como um Programa de Avaliação. Há tam- Com outras palavras, o ENEM não
bém professores que consideram que não está necessariamente contribuindo para
são afetados pelo ENEM apesar de discutir uma necessária ruptura epistemológica,
questões ou dúvidas dos estudantes sobre reflexões sobre o ensino, avaliação e objeti-
ele e não veem necessidade de compreen- vos do curso médio, a fim de que os Progra-
der melhor a sua proposta. mas de ensino superem a sequencialidade,
Na pesquisa de Zanchet (2007), o a descontextualização e a questionável
ENEM estaria gerando mudanças nas prá- relevância para a formação dos estudantes.
ticas pedagógicas e alterando o trabalho Com isso, há uma adesão por parte dos
de professores, pois, mesmo que eles esti- professores ao Novo ENEM sem que haja
vessem centrados na racionalidade técnica, uma discussão e compreensão mais ampla
teriam demonstrado certa preocupação em sobre esse exame. Ou ainda, há professores
mudar suas práticas pedagógicas frente que dizem ser afetados pelo Novo ENEM,
às questões desse exame, levando-os a mas mantêm as práticas arraigadas.
pensar em formas alternativas para de- De acordo com Zanchet (2007), os
senvolver os conteúdos das disciplinas. No dados produzidos a partir do ENEM po-
caso desta pesquisa, podemos dizer que deriam contribuir para que os professores
são poucas as alterações no trabalho do- pudessem refletir sobre a prática desenvol-
cente em função da participação da escola vida, sobre a participação no desenvolvi-
no ENEM e que estas apresentam caráter mento dos sujeitos e uma prática avaliativa
isolado, referem-se mais a planejamento que levasse em conta tais aspectos. Como
ou mesmo integração das ações. esse exame se propõe a focar questões
No caso desta pesquisa, as poucas contextualizadas, poderia apontar para os
alterações que foram percebidas no traba- professores formas alternativas e contribuir
lho docente a partir do ENEM parecem ser para a superação da racionalidade técni-
de cunho metodológico, de modo que eles ca. Entretanto a autora constatou que há
utilizam questões com pelo menos três pro- uma ausência de reflexão mais ampla por
pósitos: a exemplificação, o treinamento ou parte dos professores, que consideram o
a motivação dos estudantes para abordar Ensino Médio como curso de passagem
um assunto novo e a título de curiosidade, para o Ensino Superior e focam apenas o
de modo que as concepções de ensino e ingresso à universidade, de modo que o

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 225-240, jan./jun. 2012. 233


ENEM pode levar ainda ao enquadramento discussões sobre a aprendizagem e visto
curricular na medida em que passou a que a avaliação é frequentemente compre-
assumir a função de vestibular unificado. endida como verificação, quantificação e
Lócco (2005) e Maggio (2006) também exercitação, há professores que dedicam
reconhecem que os professores estariam pouco tempo à reflexão sobre a avaliação
aderindo ao ENEM sem empreenderem e, diante de concepções simplistas sobre
reflexões mais consistentes sobre o referido ela, estão abrindo mão de sua autonomia
exame. e responsabilidade na reconstrução de
Sendo assim, percebemos que, des- seus Programas de Avaliação e passam
de a criação do ENEM e na medida em a incorporar questões do Novo ENEM
que este exame foi ganhando visibilidade, considerando pertinente e adequada a
os professores passaram a utilizar as ques- reprodução desse exame como forma de
tões de provas anteriores com o interesse avaliar os estudantes.
na exemplificação e na preparação, até Entendemos que qualquer exame
mesmo porque os estudantes, por estarem deveria estimular a reflexão sobre os obje-
cada vez mais interessados em participar tivos formativos, sobre o Ensino Médio,
desse exame, pressionam para que isso sobre a aprendizagem. Porém percebemos
aconteça: que o Ensino Médio assuma que há professores não só aderindo aos
um caráter de preparação para os exames. Programas de concurso para guiar a re-
Entretanto as ações dos professores perma- construção de seus Programas de Ensino,
necem pontuais e até mesmo carentes de mas também para nortear seus Programas
planejamento até pelas noções superficiais de Avaliação.
que eles têm sobre este exame, fazendo É preciso pontuar que a avaliação,
com que o ENEM contribua pouco para diferentemente do exame, leva em conta
repensar e beneficiar o ensino. a historicidade, o processo de desenvol-
vimento da aprendizagem, o respeito
Proposição III: Há professores que estão à autonomia discente e docente numa
buscando reproduzir as provas do Novo construção compartilhada dos critérios a
ENEM em seus instrumentos de avalia- serem avaliados, é necessariamente inter-
ção, ao invés de construírem e repensa- disciplinar e contextualizada e pressupõe
rem seus Programas de Avaliação. a melhoria. Por tais razões, a avaliação
extrapola o exame, o que não significa que
A situação é particularmente grave, um exame não possa vir a desencadear
uma vez que há professores que não só uma avaliação.
utilizam as questões do Novo ENEM na Nessa perspectiva, é preciso que
sala de aula a título de exemplificação os professores e também as pesquisas
ou de treinamento, mas também buscam empreendam reflexões sobre a avaliação,
reproduzir esse exame em suas provas. pois temos percebido que essa temática
Uma vez que nas escolas há carência de tem ficado em segundo plano diante do

234 Nicole Glock MACENO; Orliney Maciel GUIMARÃES. Implicações do novo ENEM em escolas...
volume de produções bibliográficas sobre SOBRINHO, 2010b, p. 20).
a organização curricular. Também é fun- Destacamos que não é um problema
damental que as escolas repensem seus o fato de os professores utilizarem as ques-
Programas de Avaliação, mais do que se tões em suas aulas, mas consideramos que
dedicam a isso. O reflexo da carência de considerá-las apenas para fins de exempli-
discussões epistemológicas e metodológi- ficação, de treinamento ou de motivação
cas sobre a avaliação é justamente o fato ainda é pouco. Era esperado que o uso
de alguns professores estarem aderindo de questões do Novo ENEM contribuísse
às questões do ENEM para a construção – dentre outros aspectos – com a reflexão
de suas provas. Conforme destaca Moraes sobre os princípios da Interdisciplinarida-
(2008, p. 33), é necessário que o professor de e da Contextualização a fim de haver
seja um epistemólogo de si mesmo, que rupturas epistemológicas, de modo que os
estude, pense e reflita criticamente suas professores repensem os significados de
concepções de ensinar e aprender para ensinar Ciências.
tomar consciência de seu próprio pensar Assim sendo, a tentativa de repro-
e para “ter mais clareza sobre o significado dução do ENEM nos instrumentos de
de ensinar e aprender ciências”. avaliação de modo inconsciente ou para
Caso contrário, a tentativa de repro- fins de exemplificação ou treinamento
duzir o ENEM em seus instrumentos de torna durável o entendimento de que se
avaliação pode não induzir às reflexões, trata apenas de uma tarefa mecânica e
nem levar a considerar as necessidades, os de cumprimento de exigências externas à
objetivos e apresentar relevância questio- escola, ao invés de estimular os espaços
nável para o contexto da escola. Também de debates e questionamentos na insti-
contribui para que esse exame perca o tuição. Além disso, tende a consolidação
sentido de proporcionar o repensar os pro- da avaliação externa em detrimento da
cessos de aprendizagem ao ser considera- interna, com o escopo apenas no controle,
do simplesmente alvo de conformação dos na quantificação, nos produtos e enfraque-
instrumentos de avaliação dos professores, cendo o debate público, a autonomia e a
numa adesão acrítica. relevância do processo avaliativo (DIAS
O enquadramento faz com que a SOBRINHO, 2010b).
autonomia da escola e dos envolvidos seja Essa situação pode contribuir para
transferida, reiterando uma relação de exte- o empobrecimento da possibilidade de
rioridade dos professores (TARDIF, 2002) na diversificação, de criação e de inovação
definição de seus Programas de Avaliação, de instrumentos, técnicas e modos para
contribuindo para o enfraquecimento da avaliar, na medida em que se privilegiam
profissionalização docente, de modo que somente os testes de múltipla escolha.
“o professor já não pode exercitar sua Também estimula a perda de identidade da
liberdade de ampliar as possibilidades de própria escola e pode gerar um retrocesso:
inovação pedagógica e curricular” (DIAS que o curso de nível médio tenha como

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 225-240, jan./jun. 2012. 235


principal objetivo educacional o preparo preciso lembrar que, para empreender um
dos estudantes para o exame, arraigando processo de autoavaliação, é fundamental
um caráter meramente propedêutico e a estimulá-la a fim de que os estudantes
valorização da avaliação na lógica empi- possam fazer uma reflexão pessoal sobre
rista. Sendo assim, é preciso não só que os o seu aprendizado, conferindo-lhe mais
Profissionais da Educação repensem seus destaque, autonomia, responsabilidade,
Programas de Ensino, mas também seus capacidades e um sentido formativo dos
Programas de Avaliação. dados produzidos pelos instrumentos de
avaliação, contribuindo para superar a pas-
Implicações do Novo ENEM no traba- sividade e estimulando sua participação
lho docente segundo os Estudantes no processo avaliativo. Assim, a autoava-
da Educação Básica liação transforma-se na base de regulação
permanente do ensino e “a atuação do
Proposição I: Os estudantes em sua maio- professor e do aluno conflui e interage,
ria participam do ENEM com o interesse mas de uma forma mais consciente e
em obter bolsas de estudo, facilitar ou colaboradora” (CASTILHO ARREDONDO;
auxiliar o ingresso nos cursos superiores DIAGO, 2009, p. 151-159).
e para “testar” seus conhecimentos. A maioria dos estudantes associa o
ENEM com uma prova, como verificação
Ficou claro que boa parte dos ou comprovação do que sabem, com a
estudantes (69,93% - cento e sete) parti- pontualidade, o resultado, o desempenho
ciparam do ENEM em 2010 interessados e a nota, além da vinculação da avalia-
primordialmente na obtenção de bolsas ção com os conteúdos primordialmente.
de estudos pelo Programa Educação para Fica evidente, portanto, a necessidade do
todos (ProUni), no ingresso ao Ensino Su- envolvimento dinâmico e reflexivo entre
perior e, em menor grau, a verificação dos estudantes e professores para repensar a
conhecimentos. O ENEM também foi as- avaliação, que necessita ser mediadora e
sociado pelos estudantes como facilitador não mera verificação sobre os conteúdos.
ou auxiliador para o ingresso no Ensino Assim, quanto mais o trabalho se aprofun-
Superior; como uma prova necessária; uma da nas problemáticas estudadas, mais as
possibilidade de conhecimento, aprendiza- atividades possibilitam maior autonomia
gem e de avaliação; para o treinamento e dos estudantes, que passam da depen-
para a aquisição de experiência. dência para a autonomia (MORAES, 2006,
De modo geral, foram poucos os que p. 35), o que certamente é um dos prin-
mencionaram a possibilidade dos dados cipais objetivos educacionais (CASTILHO
produzidos por meio do ENEM serem uti- ARREDONDO; DIAGO, 2009).
lizados para subsidiar a autoavaliação, o
principal objetivo para a criação desse exa-
me nos anos inicias de sua realização. É

236 Nicole Glock MACENO; Orliney Maciel GUIMARÃES. Implicações do novo ENEM em escolas...
Proposição II: Para os estudantes, não estaria, pois o grau de satisfação
boa parte dos professores não estaria estaria relacionado ao quanto o Ensino
desenvolvendo ações específicas para Médio assumiu um caráter propedêutico,
o ENEM e para alguns o grau de satis- ou seja, quanto mais semelhante aos
fação com a formação que tiveram na cursinhos preparatórios, mais a formação
escola está relacionado – entre outros corresponderia às suas expectativas e se
aspectos – com o quanto o Ensino Mé- sentiriam seguros para a participação no
dio assumiu um caráter propedêutico. ENEM. Desse modo, os estudantes que es-
peram que o Ensino Médio tenha o escopo
A maioria dos estudantes (56,20% – na preparação, acabam pressionando os
oitenta e seis) manifestou que boa parte professores para que estes desenvolvam
dos professores não desenvolve ações ações para esses fins.
específicas para o ENEM, mas sim em Mesmo com essas divergências,
algumas disciplinas. As ações incluem a ficou claro que as ações dos professores
resolução de questões de exames anterio- são isoladas em relação ao ENEM e que
res; os aulões, os simulados, as palestras, as estariam pouco interessados no referido
revisões, dicas e comentários, as redações, exame em comparação com os estudantes.
os textos explicativos sobre este exame, Alguns dos estudantes afirmaram que os
o incentivo à participação em Olimpía- professores desconhecem o ENEM, e que
das ou a recomendação para assistirem há comentários breves quando próximo da
ao Programa Eureka, que consiste num data de realização desse exame.
programa exibido desde 2003 no canal Diante do exposto, os dados indicam
TV Educativa que reúne professores para que possivelmente esse exame tem sido
discutir e resolver questões de vestibulares pouco significativo para oportunizar as
e do ENEM (PARANÁ, 2011). reflexões entre estudantes e professores,
A maioria deles (67,32% – cento e para assumir um caráter pedagógico nas
três) declarou estar satisfeita com a forma- escolas. O que as vozes empíricas sugerem
ção que teve nas escolas e que a considera é que os dados estão sendo produzidos e
suficiente para a realização do ENEM, de divulgados, há a participação expressiva
modo que boa parte deles não frequenta dos estudantes, mas os debates desen-
os cursinhos pré-vestibulares (79,73% - cadeados a partir deles são escassos e
cento e vinte e dois). A exceção ocorreu há falta de integração dentro e fora das
na Escola Central onde boa parte dos escolas para planejar e desencadear as
estudantes estaria insatisfeita com sua for- ações em função do ENEM. É preciso
mação justificando que, nos últimos anos, lembrar que uma proposta externamente
“a qualidade do ensino caiu” e que suas induzida para beneficiar a escola precisa
expectativas não foram correspondidas. ser significada por cada sujeito, ou seja,
Apesar de a maioria estar satisfeita, perpassar pela mudança pessoal. Com isso,
foi percebido que uma boa parcela deles dependerá do esforço do grupo para que

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 225-240, jan./jun. 2012. 237


seja incorporada como prática corriqueira, determinados professores desconhecem
respondendo aos seus interesses e neces- o ENEM, apenas tecem comentários bre-
sidades (FARIAS, 2006). ves na véspera de sua realização, ou se
baseiam até mesmo nas informações da
Considerações Finais mídia, sem empreenderem estudos sobre
o referido exame.
Diante das proposições alcançadas Também ficou evidente a carência
neste trabalho, como era esperado, os de discussão nesses espaços e a frag-
exames têm implicações nas escolas e mentação nas ações, além da falta de
por isso, precisamos conhecê-las, pois articulação entre as escolas e os agentes
podem induzir à inovação, dar subsídios externos, contribuindo para que se perca
para a avaliação, para a tomada de a discussão coletiva sobre os exames,
decisão, ser útil para repensar o que é para um entendimento mais enriquecido
importante ser ensinado ou, pelo con- sobre a avaliação e até mesmo a trans-
trário, condicionar o ensino. Com isso, formação da escola (CARBONELL, 2002,
os exames “merecem uma divulgação p. 31-32) na medida em que repensariam
e discussão mais coerentes com seus as concepções de ensino.
impactos no sistema educacional” (FER- As vozes empíricas evidenciaram
NANDES, 2009, p. 149). ainda a necessidade de, nas escolas e
Ficou claro que as ações dos pro- em outras esferas, repensar-se sobre os
fessores em função do ENEM são isola- Programas de Avaliação para superarmos
das e eles estariam menos interessados a visão estreita sobre esta e sobre o fato
nele em comparação com os estudantes. de que os debates relativos a esta temática
Com isso, esse exame tem sido pouco estariam sendo pouco vivenciados pelos
significativo para oportunizar as reflexões professores, gestores, estudantes e autori-
entre estudantes e professores, sem muito dades, dificultando a melhoria do ensino e
sentido pedagógico nas escolas, de forma a articulação entre as instâncias nas ações
que, conforme afirmaram os estudantes, que dizem respeito à Educação.

Referências

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Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 33, p. 225-240, jan./jun. 2012. 239


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Recebido em março de 2012


Aprovado para publicação em abril de 2012

240 Nicole Glock MACENO; Orliney Maciel GUIMARÃES. Implicações do novo ENEM em escolas...
Resenha
Conduta de risco
Conduct of risk
Sonia Cristina de Oliveira
Cleomar Ferreira Gomes
Doutoranda em Educação pela UFMT, Psicóloga no Estado
de Mato Grosso e Professora da Universidade de Cuiabá
(UNIC). E-mail: oliveira.sonia@terra.com.br.
Professor Doutor da Faculdade de Educação Física e do
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT.
E-mail: gomescleo@ufmt.br.

LE BRETON, David. Condutas de risco: dos jogos de morte ao jogo de viver. Campinas:
Autores Associados, 2009.

O francês David Le Breton, sociólogo, O livro, lançado pela “Autores Asso-


antropólogo, com experiência em pesquisa ciados Editorial”, em 2009, é dividido em
e docência na Universidade Marc Bloch de seis partes, nas quais o autor desenha
Estrasburgo, é um desbravador contem- sua preocupação com o significado das
porâneo na área de estudos sobre corpo, atividades de lazer em que se envolvem
tanto que suas investigações que jogam os indivíduos em sua vida, pessoal ou
luzes nas reflexões sobre a forma de como profissional, para irem ao encontro do risco
as relações sociais, as expressões e as ou para dele se protegerem. Logo de início,
percepções vão sendo construídas, muito explicita a diferença entre conduta de risco
além de questões biológicas e psicológicas, e atividades físicas ou esportivas de risco.
mas enraizadas nas vivências culturais e Para ele, conduta de risco é como um jogo
sociais. Nessa obra, ele trata com o ardil simbólico ou real com a morte, um arriscar-
costumeiro a respeito das condutas de se, não para morrer, muito pelo contrário,
risco, enxergando nelas os ritos ordálicos mas que contém em si a possibilidade
deste século, ou como o rito pessoal de de perder a vida ou vir a sofrer alterações
passagem, em que se joga com a morte das capacidades físicas ou simbólicas do
de modo inconsciente, buscando-se signi- indivíduo. Atesta um enfrentamento com
ficado e valor para a existência. O trabalho o mundo, cuja aposta não é morrer, mas
se consolida por meio de uma pesquisa viver intensamente.
realizada com mais de seiscentos jovens No entendimento de Le Breton,
de Estrasburgo, anexada à experiência as modalidades de atividades de risco
ímpar do autor. diferem de acordo com o público em que

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande-MS, n. 33, p. 243-247, jan./jun. 2012
ocorre, são exemplos para as gerações não são os mesmos de uma cultura, classe
mais jovens, as condutas se apoiam em social, faixa de idade e/ou de época
um sofrimento pessoal agudo ou difuso, A segunda parte aborda as condutas
e indicam falta de integração, ausência de risco dos jovens. Enfatiza que a pas-
de um suficiente gosto de viver, esforço sagem dos jovens para a idade adulta é
para colocar-se no mundo, para nascer de um momento único e singular para cada
si mesmo dentro do sofrimento, e assim adolescente, depende da educação, das
alcançar significado de si mesmo, que experiências de amor e limite, e de como
permita retomar o controle da própria vida. sente suas possibilidades no mundo. Des-
Para os esportistas radicais, é uma taca que a turbulência da adolescência
busca de intensidade de ser para reencon- levanta as grandes questões antropológi-
trar uma plenitude da existência ameaçada cas sobre a identidade, o sentido da vida,
por uma vida excessivamente regrada. enfim, a penosa busca de seus próprios
Nesse caso, o jogo simbólico com a morte desejos, que já não são necessariamente
é antes motivado por um excesso de in- os de seus pais, traz, por vezes, o aban-
tegração, e uma maneira radical de fugir dono de atividades antes apreciadas. Os
da rotina. Entretanto, em ambos os casos, jovens testam tudo de todas as formas. É
trata-se de interrogar simbolicamente a um período de multiplicação dos riscos
morte para saber se vale a pena viver. inerentes às escolhas, opções, relações
Assim, na primeira parte, entre outras amorosas, enfrentamento do mundo e de
questões, o autor apresenta a importância experimentação de seu corpo, prova de
do risco nas sociedades contemporâneas. seus limites. A busca de independência e
Explora a existência humana ora segura, segurança, o confronto consigo mesmo e
ora frágil, ora incerta, imprevisível, sujeita com os outros estimulam a prova de seus
a aborrecimento e instabilidade, e assim limites na busca de si mesmo.
o ser humano convive com o risco desde De acordo com o autor, os jogos de
seu nascimento, pois correr risco faz parte morte, jogos de vida, as condutas de risco
da vida. Essa existência, não plenamente têm sua origem no abandono, na indife-
revelada, é que faz o gosto de viver. Não rença familiar, mas também, ao contrário,
é possível anular de fato as adversidades, na superproteção. E, igualmente, levar em
e o risco continua sendo um horizonte in- conta a falta de orientação para existir, o
transponível da condição humana, mesmo sentimento de ausência de limite em vir-
sendo uma das funções antropológicas a tude de proibições parentais jamais feitas
proteção de seus membros, as relações ou insuficientemente. Assim, aquilo que
sociais tornam-se por vezes explosivas e a não encontra mais em si mesmo, que é a
existência do homem implica ambivalên- certeza interior de que sua vida é valiosa
cia. O risco é uma noção socialmente cons- e que ele tem seu lugar no mundo, o jo-
truída, variável de um lugar para outro e vem procura em outra parte, de maneira
de uma época para outra, mas os temores desordenada e em corpo a corpo com o

244 Sonia Cristina de OLIVEIRA; Cleomar Ferreira GOMES. Conduta de risco


real. A intenção não é de modo algum ou da impossibilidade de renunciar, sem
morrer, mas testar uma determinação pes- perder a estima do grupo.
soal, procurar uma intensidade de ser, um As paixões de vertigem, o sentimento
compartilhar com os outros, um momento de insignificância, de vazio e de não existir
de soberania, e também expressar um grito, aos olhos dos outros, é muito comum no
um mal-estar, tudo isso misturado em uma mundo atual. A existência humana não é
busca que, muitas vezes, não encontra seu mais balizada por significados e valores.
significado senão após um acontecimento. Por isso os jovens sentem que não pos-
As condutas de risco são o oposto a suem um solo firme. Disso decorre a verti-
um jogo com a ideia de morte. Para alguns gem, o salto no vazio, que é constante das
jovens o risco é preferível à apatia da vida. condutas de risco. Uma conduta de risco
Elas são diferentes da vontade de morrer, não é só a procura de mera intensidade
não são formas tolas de suicídio, mas sim de ser, ou de um desafio para impor-se em
desvios simbólicos para assegurar-se do um mundo problemático, às vezes ela se
valor da própria existência. Expulsar para origina da indiferença quando o retirar-se
o mais longe possível o medo de sua in- da existência se torna sensível demais e
significância pessoal se constitui em ações o gosto de viver já não tem peso algum.
que põem a existência em perigo físico ou Assim os ritos ordálicos se inserem
moral e, apesar dos esforços da sociedade quando o jovem não se sente confortável
para prevenir, elas tendem a multiplicar. em sua existência, as condutas de risco
Outro aspecto discutido pelo autor constituem os episódios de um debate no
que influencia os jovens nas condutas de decorrer do qual ele procura seus pontos
risco é a influência do grupo. Este promove de referência entre essas antigas balizas
a diluição das responsabilidades e a im- e as que se anunciam, e o faz de maneira
pressão de segurança, especialmente, por brutal, sem descobrir, entre si e o mundo,
ocasião de ações de massa que levam o alguma coisa de significado que torne me-
indivíduo a atos, que jamais ousaria reali- nos rude a passagem. O comportamento
zar sozinho. A presença do grupo de pares ordálico é uma resposta sofrida e íntima às
faz com que o jovem tenda a superar suas falhas culturais e sociais. E uma espécie de
apreensões para afirmar sua identidade último recurso, uma última chance que o
aos olhos dos outros. O ingresso a certo indivíduo se dá. Em nossas sociedades, o
número de condutas de risco, muitas vezes, rito de passagem é uma réplica dolorosa
está ligado ao poder de atração de um gru- à exclusão do sentido. É uma busca de
po de pares o qual as valoriza e dissipa as significado que, sem saber, o sujeito su-
derradeiras dúvidas, ao lhes conferir uma bordina ao risco de morrer.
legitimidade bem superior à da sociedade Na terceira parte do texto, as paixões
ou de sua própria família. Participa de um físicas e esportivas radicais são aborda-
momento intenso, da presença dos outros das como práticas que envolvem risco.

Série-Estudos... Campo Grande-MS, n. 33, p. 243-247, jan./jun. 2012. 245


Nessas atividades, o risco é um simulacro Quando o indivíduo sai ileso da prova, o
– brinca-se mais com sua ideia que com intercâmbio simbólico firmado com a morte
sua concretização. As atividades arriscadas aumenta a exaltação de ainda estar vivo.
constituem-se em uma técnica de intensifi- Na sequência, a obra discute o papel
cação da sensação da presença no mundo, das atividades de risco no trabalho edu-
fazendo do confronto consigo mesmo cativo e social, pois estas são importantes
uma prova de autenticidade admitida pelo mobilização de habilidades. Entretanto
corpo. No mundo atual, cada vez mais fre- essas atividades não operam mediante
quente, o sujeito é levado a contar consigo uma transferência tranquila das atitudes
próprio na existência de sentidos para a surgidas por ocasião das situações da vida
sua vida. O fascínio pelos limites age como cotidiana. Continua a existir uma distân-
uma estrutura antropológica para o “existir cia entre as duas situações; se alguns
humano”, no enfrentamento metafórico da a transpõem, outros, ao contrário, vivem
morte, atribuindo sentido à vida. dolorosamente o retorno ao cotidiano
Na quarta parte, o texto trata da e entram em uma supervalorização de
questão de que toda a exposição ao risco comportamentos que a atividade pretendia
contém uma parte lúcida de vontade e con- justamente prevenir; mas, se a atividade
fiança em si, o que leva a fazer avaliação for retomada com a intenção de elaborar
dos próprios recursos de quem se apressa e não punir, pode ocorrer a mudança com
a lançar-se na ação, mas igualmente existe base na aprendizagem anterior.
uma aposta na mistura entre a habilidade Na última parte, o texto discute os
do ator e o sentimento que ele possui de jogos simbólicos com a morte ao jogo de
sua sorte. Esta sempre propõe a hipótese viver. Uma exposição de si mesmo a um
de um destino favorável. Sem a intuição perigo deliberado ou não, o indivíduo en-
mais ou menos inconfessada de ter sorte frenta um significante maior que é a morte,
a seu lado, de que não está totalmente a única coisa que ainda lhe parece marca
desarmado, a exposição ao risco seria de legitimidade.
uma forma falsa de suicídio, um abando- Le Breton, neste livro, disserta sobre
no às circunstâncias e não uma iniciativa um tema extraordinário, a partir de uma
pessoal. E o mais radical é a vontade de leitura envolvente que proporciona a
jogar com a morte. Isto é uma forma de reflexão de como numa sociedade, em
jogo deliberado com a morte – ordálico. que, aos poucos, as regras tornaram a
O contato simbólico com a morte vida monótona que levam as pessoas em
constitui um caminho possível para situar-se, busca de sair dessa integração à procura
reconhecer-se entre os outros, reconstruir de êxtase, aventura e adrenalina com
um gosto de viver que custa a consolidar-se. atividades físicas ou desportivas de risco,
Em certas situações, a aproximação da mas que, de alguma forma, traz significado,
morte, quando escolhida ou aceita produz sentido e evasão da rotina. Por outro lado,
um sentimento renovado de identidade. os jovens que não conseguem enxergar

246 Sonia Cristina de OLIVEIRA; Cleomar Ferreira GOMES. Conduta de risco


sentido em sua existência, ou possuem O livro encerra uma valiosa contri-
dificuldades em fazer a travessia para a buição para as discussões que se mantêm
idade adulta de modo integrado, encon- em torno das questões deste século, que
tram nas condutas de risco a elaboração envolve significado e sentido para o existir
de sua desintegração. Contudo ambos humano, sendo recomendado a educa-
buscam, de modo simbólico, uma fuga dores e pesquisadores que se preocupam
com atitudes arriscadas para certificar-se com um mundo melhor.
de que vale a pena viver.

Recebido em maio de 2012.


Aprovado para publicação em junho de 2012.

Série-Estudos... Campo Grande-MS, n. 33, p. 243-247, jan./jun. 2012. 247


Crianças indígenas em escolas da cidade
Children indigenous in city schools
Carlos Magno Naglis Vieira
Mestre e Doutorando em Educação pela PPGE/UCDB.
Bolsista CAPES/Prosup. Pesquisador do Grupo de Pesquisa
Educação e Interculturalidade. E-mail: cmhist@hotmail.com

SOBRINHO, Roberto Sanches Mubarac. Vozes infantis indígenas: as culturas escolas


como elementos de (des) encontros com as culturas das crianças Sateré-Mawé. Manaus:
Editora Valer, Fapeam, 2011.

A resenha apresentada destaca a O docente do Programa de Mestrado


relevância e a contribuição da obra de em Educação em Ciências na Amazônia,
Roberto Sanches Mubarac Sobrinho, Vozes na Universidade do Estado do Amazonas
infantis indígenas: as culturas escolas (UEA), escreve de maneira agradável e
como elementos de (des) encontros com as conduz o leitor a adentrar, “refletir e co-
culturas das crianças Sateré-Mawê, para os nhecer, da maneira mais próxima do seu
estudos no campo da Educação Brasileira mundo cotidiano, a infância das crianças
Contemporânea com crianças indígenas Sateré-Mawé” (p. 13), em escolas da cidade
em escolas na cidade. de Manaus, AM. Nessa tessitura de uma
A obra publicada em 2011, pela grande rede de pesca que foi a construção
Editora Valer, é fruto da pesquisa de dou- desse livro, o autor não procura se prender
torado em Educação pela Universidade a uma área específica do conhecimento, na
Federal de Santa Catarina (UFSC). Com intenção de entender o objeto de pesquisa,
base em estudos no campo da Educação, mas estabelece um diálogo de forma inter-
trata-se de um estudo que resultou na disciplinar com outros campos do conheci-
primeira tese de doutorado nesse campo mento (História, Sociologia, Antropologia e
de conhecimento, com essa temática. Por Pedagogia) nos quais o tema da infância e
isso podemos ousar em afirmar que o livro da criança é visto como de agentes sociais.
torna-se uma leitura fundamental para os Na tentativa de investigação dos
futuros pesquisadores (alunos de Gradua- objetivos propostos, Sobrinho apoiado em
ção, Mestrado e Doutorado) que dedicam uma abordagem qualitativa, utiliza-se de
seus trabalhos ao campo de pesquisa com procedimentos metodológicos, como a
criança indígena em contexto urbano. etnografia, a observação participante, a

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande-MS, n. 33, p. 249-253, jan./jun. 2012
entrevista e análise documental. Segundo páginas eletrônicas de periódicos e eventos
o autor, isso se tornou necessário, no sen- acadêmicos como: Associação Nacional de
tido de “visualizar de forma mais clara o Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências
universo desse grupo social da infância, Sociais/Anpocs e Associação Nacional de
ou seja, as crianças Sateré-Mawé” (p. 37). Pós-Graduação e Pesquisa em Educação/
Esses procedimentos teóricos e metodoló- Anped.
gicos podem ser observados no decorrer Esse exaustivo trabalho realizado
dos capítulos que foram assim divididos pelo pesquisador nos faz caminhar por lei-
e intitulados: turas que traçam um contorno da criança
O capítulo Trilhas construídas e em ao longo dos tempos (o do francês Philippe
construção apresenta a trajetória do pes- Áries), desconstruindo a visão adultocêntri-
quisador, os diálogos, os movimentos, as ca a qual impede de perceber e “compreen-
articulações com os diversos campos do der os processos próprios de construção
conhecimento, as questões norteadoras e das culturas infantis” (p. 69). E estudos
os caminhos investigativos que resultaram de pesquisadores brasileiros, tais como
na construção da tese, na qual se originou Ângela Nunes, Clarice Cohn, Antonella
o livro. Nesse espaço do texto, o autor Tassinari, Adir Casaro Nascimento, Ana
ainda destaca que, apesar do crescimento Maria Rabelo Gomes e outros, apresentam
das produções acadêmicas relacionadas à a criança indígena como ser ativo, capaz
temática indígena, os estudos com crianças de reinventar e criar sentidos. Assim, todas
não têm merecido uma atenção por parte essas produções aparecem nos caminhos
dos pesquisadores. Devido a essa questão, investigativos em que se fundamentou a
Sobrinho descreve que sentiu necessidade construção da tese, do início ao fim, o que
de uma ampla revisão de literatura para representa para o autor uma
melhor conhecer o campo e amadurecer
[...] possibilidade de sedimentação de
seus argumentos de pesquisa. um campo de pesquisas com crianças
No capítulo a Infâncias/Crianças indígenas nas cidades, principalmen-
indígenas nas cidades: um campo de pes- te por apontar o crescimento da litera-
quisa em construção, o autor proporciona tura e por definir os contornos centrais
ao leitor uma “cartografia” da expressiva para que os estudos com este grupo
quantidade de trabalhos publicados nos social da infância tenham [...] maior
últimos anos com relação aos temas da visibilidade e vigilância no trato com
infância e da criança indígena, no sentido as questões teórico-metodológicas
de fornecer subsídios para a constituição do que envolvem as pesquisas e na pos-
campo de pesquisa. Com a leitura do texto sibilidade de novas práticas sociais e
fica evidente o esforço do autor no levan- educativas (p. 124).
tamento do material em bibliotecas, bancos Na terceira parte, intitulada As
de teses de Programas de Pós-Graduação crianças Sateré-Mawé: infâncias em espa-
em Educação, Antropologia e outras áreas, ços de disputa, o autor começa adentrar

250 Carlos Magno Naglis VIEIRA. Crianças indígenas em escolas da cidade


no cotidiano das crianças indígenas, o que escolas públicas como objetivo de investigar
possibilita perceber suas vozes, embora o “processo de inserção da criança indí-
tímidas, mas fundamentais e relevantes gena nessas instituições”. Assim, pautado
para a construção da relação de convívio nesse objetivo, o pesquisador apresenta os
entre o pesquisador e as crianças e para “discursos instituídos pelos elementos que
o desenvolvimento da tese. Segundo So- conferem legitimidade a cultura escolar”
brinho, foram oito meses de uma longa e (p. 187).
promissora possibilidade de “viver juntos”, Nessa seção do livro, percebemos a
ou seja de realizar a pesquisa etnográfica dificuldade do pesquisador em identificar
(p. 127). as crianças indígenas matriculadas nas
A pesquisa etnográfica proporcionou duas escolas onde foi realizada a pesquisa.
ao pesquisador uma visão mais ampla da Segundo Sobrinho, existe por parte dos
temática indígena na cidade e do universo funcionários das unidades escolares um
da criança indígena em contexto urbano [...] receio em passar informações so-
no município de Manaus, AM. Nesse bre a presença dessas crianças. Nos
capítulo, o texto apresenta a comunidade diversos discursos, os funcionários
indígena, o contexto geográfico do local, a afirmam que essa identificação não
relação entre índios e não-índios, o motivo é possível, porque uma vez que as
da migração da aldeia para a cidade e crianças ingressam a escola, elas se
direciona sua atenção para as atividades misturam às outras não havendo dife-
desenvolvidas pelas crianças na aldeia, renciação por parte do corpo docente
destacando especificamente as brincadei- e discente [...] (p. 193).
ras, os desenhos e as músicas. Ainda nesse Durante o período de pesquisa, o
espaço, o autor mostra que as crianças autor percebeu uma ação inversa nas ati-
indígenas que nasceram na cidade afir- tudes, nos discursos e nas manifestações
mam sua identidade Sateré-Mawé, até dos funcionários, professores e alunos da
mesmo quando a escola tenta silenciá-las escola. Além de as propostas pedagógicas
e invisibilizá-las ou mesmo quando elas das escolas não respeitarem os saberes
escondem suas identidades “para se pro- que as crianças indígenas trazem consigo,
teger dos preconceitos e da violência sim- o pesquisador identificou muitas visões
bólica que acontece fortemente no espaço preconceituosas, discriminatórias e falas
escolar” (p. 184). que demonstram ser um problema a
Os discursos instituídos nas escolas presença das crianças Sateré-Mawé nas
de Manaus, AM com relação à criança escolas, principalmente no que corres-
Sateré-Mawé é o debate do quarto capítulo ponde ao comportamento e ao ensino e
intitulado de A escola pública e sua repre- aprendizagem. Para alguns professores e
sentação acerca da criança indígena. Nessa funcionários entrevistados, o fato de as
parte do texto, o autor descreve alguns crianças indígenas serem portadoras de
elementos da pesquisa realizada em duas uma cultura com elementos tradicionais

Série-Estudos... Campo Grande-MS, n. 33, p. 249-253, jan./jun. 2012. 251


diferenciados é o que dificulta seu dia no período de pesquisa: a interatividade,
a dia no espaço escolar, ocasionando a a ludicidade, a fantasia real e a reiteração.
invisibilidade desses meninos e meninas Após uma tentativa de compreender
indígenas. a infância das crianças indígenas Sateré-
Em Os lugares entre as culturas -Mawé, surge como assunto no bojo da
infantis e os saberes da escola: os (des) discussão, o debate entre a cultura escolar
encontros, o autor estabelece “a partir das e a cultura Sateré-Mawé. Como a leitura
falas das crianças, o cruzamento entre os já vinha sinalizando algumas pistas com
saberes vividos por elas no cotidiano de relação a essa questão, o texto apenas res-
sua comunidade e os saberes instituídos salta ao leitor os constrangimentos que as
pela escola” (p. 229). Nesse capítulo, o crianças indígenas sofrem por não conse-
pesquisador chama atenção para a visão guirem expor as experiências do cotidiano
etnocêntrica de ciência, a qual regula, de sua comunidade e não ter um espaço
oprime e provoca a negação da vivência para mostrar às outras crianças da escola
comunitária e os elementos do grupo a cultura de seu povo.
étnico das crianças indígenas. Na intenção Direcionando seu discurso para uma
de explicar esse argumento, Sobrinho apre- conclusão, o autor descreve as dificuldades
senta as crianças Sateré-Mawé e dialoga, em estudar sociedades indígenas atuais,
com os autores Manuel Jacinto Sarmento, do ponto de vista etnográfico, ressalta
Clarice Cohn e outros. alguns detalhes importantes da cultura Sa-
Nesse universo da infância Sateré- teré-Mawé como o falar a língua e o papel
que as crianças possuem na organização
-Mawé, o autor mostra que
da comunidade e finaliza apontando que
[...] compreender como vivem e pen- a presença das crianças indígenas não
sam as crianças [...], entender suas se restrinja somente a um espaço como
culturas, seus modos de ver, de sentir aluno, mas que ela seja “parceira na con-
e de agir e escutar seus gostos ou
solidação desse projeto de escola indígena
preferências é uma forma de poder
na cidade” (p. 262).
compreendê- las como grupo huma-
no [...]. (p. 231).
Como se trata de um primeiro livro
com a temática criança indígena em escola
Ainda nesse contexto, Sobrinho da cidade, podemos ressaltar mais uma
descreve que é “preciso tirar as crianças vez a relevância da obra Vozes infantis
da condição de objetos, para deixá-las indígenas para o campo de pesquisa, prin-
advir como agentes de sua própria ação cipalmente pelo rigor do texto acadêmico
e discurso” (idem). Assim, para apresentar e pelas ricas informações que o material
todas essas questões levantadas, o autor, traz para as futuras pesquisas. Mas, ao
pautado em Sarmento (2006), aponta mesmo tempo, é preciso ficar atento para
quatro elementos que foram observados as inúmeras lacunas a serem preenchidas
no cotidiano das crianças Sateré-Mawé sobre o tema. Nesse sentido, a leitura do

252 Carlos Magno Naglis VIEIRA. Crianças indígenas em escolas da cidade


livro torna-se um convite para futuros verso da temática da criança indígena em
pesquisadores se aventurarem nesse uni- contexto urbano.

Recebido em maio de 2011.


Aprovado para publicação em junho de 2011.

Série-Estudos... Campo Grande-MS, n. 33, p. 249-253, jan./jun. 2012. 253


Normas para publicação na Revista Série-Estudos –
Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação
da UCDB

1) SÉRIE-ESTUDOS – Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado


e Doutorado – da Universidade Católica Dom Bosco – está aberta à comunidade
acadêmica e destina-se à publicação de trabalhos inéditos que, pelo seu conteúdo,
possam contribuir para a formação, para o desenvolvimento científico e para a
atualização do conhecimento na área específica da educação.
2) As publicações deverão conter trabalhos da seguinte natureza:
• Artigos originais de revisão ou de atualização que envolvam abordagens teóricas
e/ou práticas referentes à pesquisa, ensino e extensão e que atinjam resultados
conclusivos e significativos.
• Traduções de textos não disponíveis em língua portuguesa que constituam
fundamentos da área específica da Série-Estudos e que, por essa razão, contribuam
para oferecer sustentação e densidade à reflexão acadêmica.
• Entrevistas com autoridades que vêm apresentando trabalhos inéditos, de relevância
nacional e internacional, na área específica da Educação, com o propósito de
manter o caráter de atualidade da Revista.
• Resenhas de produções relevantes que possam manter a comunidade acadêmica
informada sobre o avanço das reflexões na área educacional.
3) A publicação de trabalhos deverá passar pela aprovação de pareceristas ad hoc
convidados pelo Conselho Editorial da Série-Estudos.
4) Caberá ao Conselho Editorial selecionar trabalhos com base nestas normas e
encaminhá-los para os pareceristas da área.
5) O envio de originais deverá conter, obrigatoriamente:
• Título em português e inglês; nome(s) do(s) autor(es), identificando em nota de
rodapé o endereço completo e o eletrônico, a titulação e a instituição a que
pertence(m).
• Resumo em português (máximo dez linhas) e abstract fiel ao resumo, acompanhados,
respectivamente, de palavras-chave e key words, ambas em número de três.
• Nas citações, as chamadas pelo sobrenome do autor, pela instituição responsável
ou título incluído na sentença devem observar as normas técnicas da ABNT – NBR
10520, agosto 2002. Exemplos: Saviani (1987, p. 70); (SAVIANI, 1987, p. 70).

255
• As referências, no final do texto, em ordem alfabética, devem seguir rigorosamente
as Normas Técnicas da ABNT, NBR 6023, agosto 2002. Os elementos essenciais e
complementares da referência devem ser apresentados em sequência padronizada,
de acordo com o documento. O nome do autor, retirado do documento, deve ser
por extenso.
6) Os trabalhos deverão ser encaminhados por e-mail, com texto elaborado em português,
corrigido e revisado; limite aproximado de dez a vinte laudas para artigos, cinco
laudas para resenhas, dez laudas para entrevistas e quinze laudas para traduções;
editor Word for Windows, a fonte utilizada deve ser Times New Roman, tamanho 12,
espaço entrelinhas 1,5.
7) Eventuais ilustrações, com respectivas legendas, devem ser apresentadas
separadamente, em formato JPG, TIF, WMF ou EPS, com indicação, no texto, do lugar
onde serão inseridas. Todo material fotográfico e ilustrações deverão ser em preto e
branco.
8) Os artigos que não obedecerem rigorosamente às normas de publicação serão
recusados pela forma e devolvidos com justificativa.
9) Ao autor de artigo aprovado e publicado serão fornecidos, gratuitamente, dois
exemplares do número correspondente da Série-Estudos.
10) Uma vez publicados os trabalhos, a Revista se reserva todos os direitos autorais,
inclusive os de tradução, permitindo, entretanto, a sua posterior reprodução como
transcrição e com a devida citação da fonte.
11) Os artigos representam o ponto de vista de seus autores e não a posição oficial da
Série-Estudos ou da Universidade Católica Dom Bosco.
12) Os artigos devem ser encaminhados para o seguinte e-mail: jefferson@ucdb.br, com
cópia para serieestudos@ucdb.br.

256
Lista de periódicos que fazem permuta com a
Série-Estudos

PERMUTAS NACIONAIS

1) Akrópolis – Revista de Ciências Humanas da UNIPAR / Universidade Paranaense (UNIPAR) /


Umuarama, PR
2) Argumento – Revista das Faculdades de Educação, Ciências e Letras e Psicologia Padre
Anchieta / Sociedade Padre Anchieta de Ensino / Jundiaí, SP
3) Asas da Palavra / Universidade da Amazônia (UNAMA) / Belém, PA
4) Avesso do Avesso / Fundação Educacional Araçatuba / Araçatuba, SP
5) Biomassa e Energia / Universidade Federal de Viçosa / Viçosa, MG
6) Bolema – Boletim de Educação Matemática / UNESP – Rio Claro / Rio Claro, SP
7) Boletim de Educação Matemática e Ciência e Educação / Universidade Estadual Paulista/
Rio Claro, SP
8) Caderno Brasileiro de Ensino de Física / Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)/
Florianópolis, SC
9) Caderno Catarinense de Física / Universidade Federal de Santa Catarina / Florianópolis,
SC
10) Caderno de Estudos e Pesquisas / Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) / São
Gonçalo, RJ
11) Caderno de Pesquisa / Fundação Carlos Chagas / São Paulo, SP
12) Caderno Interciências de Pesquisa e Extensão / Universidade Ibirapuera / Moema, SP
13) Cadernos / Centro Universitário São Camilo / São Paulo, SP
14) Cadernos Camiliani / União Social Camiliana / São Camilo, ES
15) Cadernos da Escola de Comunicação / Faculdades Integradas do Brasil (Unibrasil) /
Curitiba, PR
16) Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais / Faculdades Integradas do Brasil
(UniBRasil) / Curitiba, PR
17) Cadernos da Graduação / Universidade Federal do Ceará (UFC) / Fortaleza, CE
18) Cadernos de Educação / Universidade de Cuiabá (UNIC) / MT
19) Cadernos de Educação / Universidade Federal de Pelotas (UFPel) / RS
20) Cadernos de Educação Especial / Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) / RS
21) Cadernos de Pesquisa - Turismo / Faculdades de Curitiba / Curitiba, PR
22) Cadernos de Pesquisa / Universidade Federal do Maranhão / São Luís, MA
23) Cadernos de Pesquisa em Educação PPGE / Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)/
Vitória, ES

257
24) Cadernos de Psicologia Social do Trabalho / Universidade de São Paulo (USP) / SP
25) Cadernos do Centro Universitário São Camilo / Centro Universitário São Camilo / São
Paulo, SP
26) Cadernos do UNICEN / Universidade de Cuiabá (UNIC) / MT
27) Caesura / Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) / Canoas, RS
28) Cesumar Saúde / Centro Universitário de Maringá / Maringá, PR
29) Cesur em Revista / Faculdade do Sul de Mato Grosso / Rondonópolis, MT
30) Ciências & Educação / Faculdade de Ciências da Unesp (UNESP) / Lorena, SP
31) Ciências da Educação de Santa Catarina / Tubarão, SC
32) COGNITIO – Revista de Filosofia / Centro de Estudos do Pragmatismo / PUC-SP
33) Coletânea – Revista Semestral de Filosofia e Teologia da Faculdade de São Bento / Rio de
Janeiro, RJ
34) Comunicarte / Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC) / SP
35) Conhecendo a Enfermagem / Universidade do Sul Canoas, RS
36) Diálogo / Centro Universitário La Salle (UNILASALLE) / Centro Universitário Salesiano
(UNISAL) / Lorena, SP
37) Diálogo Educacional / Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) / PR
38) Educação – Revista de Estudos da Educação / Universidade Federal de Alagoas (UFAL) /
Maceió-AL
39) Educação – Revista do Centro de Educação / Universidade Federal de Santa Maria, RS
40) Educação & Linguagem / Universidade Metodista de São Paulo / SP
41) Educação & Realidade / Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) / RS
42) Educação e Filosofia / Universidade Federal de Uberlândia (UFU) / MG
43) Educação e Pesquisa / Universidade de São Paulo (USP) / SP
44) Educação em Debate / Universidade Federal do Ceará / Fortaleza, CE
45) Educação em Foco / Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) / MG
46) Educação em Questão / Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) / RN
47) Educação em Revista / Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) / MG
48) Educação UNISINOS / Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) / São Leopoldo, RS
49) Educação: Teoria e Prática / Instituto de Biociências / UNESP / Rio Claro, SP
50) Educar em Revista / Universidade Federal do Paraná (UFPR) / Curitiba, PR
51) Educativa / Universidade Católica de Goiás (UCG) / GO
52) Em Aberto / Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais / Brasília, DF
53) Emancipação / Universidade Estadual de Ponta Grossa / PR
54) Ensaio – Pesquisa em Educação em Ciências / Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) / MG
55) Ensaio / Fundação Cesgranrio / Rio de Janeiro, RJ
56) Ensino em Re-vista / Universidade Federal de Uberlândia (UFU) / MG
57) Espaço Pedagógico / Universidade de Passo Fundo / RS
58) Estudos – Revista da Faculdade de Ciências Humanas / Universidade de Marília (UNIMAR)/
Marília, SP
59) Estudos / Universidade Católica de Goiás (UCG) / GO

258
60) Estudos de Jornalismo e Relações Públicas / Universidade Metodista de São Paulo / SP
61) Extra-Classe – Revista de Trabalho e Educação / Sindicato de Professores do Estado de
Minas Gerais / Belo Horizonte, MG
62) Foco – Revista do Curso de Letras / Centro Universitário Moura Lacerda / Ribeirão Preto,
SP
63) Fragmentos de Cultura / Universidade Católica de Goiás (UCG) / GO
64) Gestão e Ação / Universidade Federal da Bahia / Salvador, BA
65) História da Educação / Associação Sul-Rio-Grandense de pesquisadores em História da
Educação / Pelotas, RS
66) Ícone / Centro Universitário do Triângulo / Uberlândia, MG
67) Instrumento – Revista de Estudo e Pesquisa em Educação / Universidade Federal de Juiz
de Fora / MG
68) Inter-ação / Universidade Federal de Goiás (UFG) / GO
69) Intermeio – Revista do Mestrado em Educação / Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS) / Campo Grande, MS
70) Justiça e Sociedade / Universidade do Oeste Paulista / Presidente Prudente, SP
71) Letras Contábeis / Faculdades Integradas de Jequié (FIJ) / Jequié, BA
72) Letras de Hoje / Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) / RS
73) Linguagem em Discurso – Revista Científico-literária dos Cursos de Mestrado em Ciências
da Linguagem e de Graduação de Letras da Unisul / Universidade do Sul de Santa Catarina
(UNISUL) / Tubarão, SC
74) Linhas Críticas / Universidade de Brasília (UnB) / DF
75) Métis / Universidade de Caxias do Sul (UCS) / RS
76) Movimento / Universidade Federal Fluminense (UFF) / Niterói, RJ
77) Natureza e Artifício / Sociedade Civil de Educação Braz Cubas / Mogi das Cruzes, SP
78) Nuances / Universidade Estadual Paulista (UNESP) / SP
79) Os Domínios da Ética / Universidade de Minas Gerais / Belo Horizonte, MG
80) Palavra – Revista Científica do Curso de Comunicação Social da Unisul / Universidade do
Sul de Santa Catarina (UNISUL) / Tubarão, SC
81) Paradoxa / Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) / Rio de Janeiro, RJ
82) PerCurso: Curitiba em Turismo / Faculdades de Curitiba / PR
83) Perspectiva – Revista do Centro de Ciências da Educação / Universidade Federal de Santa
Catarina / Florianópolis, SC
84) Philósophos – Revista de Filosofia / Universidade Federal de Goiás (UFG) / GO
85) Phrónesis – Revista de Ética / Pontifícia Universidade Católica (PUC) / Campinas, SP
86) Poiésis – Revista Científica em Educação / Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)
/ Tubarão, SC
87) Presença – Revista de Educação, Cultura e Meio Ambiente / Universidade Federal de
Rondônia (UNIR) / Porto Velho, RO
88) Pró-Discente / Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) / ES
89) Pro-Posições / Faculdade de Educação (UNICAMP) / SP
90) PSICHÊ – Revista de Psicanálise / Universidade São Marcos / São Paulo, SP

259
91) Psicologia Clínica / Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ) / RJ
92) Psicologia da Educação / Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) / SP
93) PSICO-USF / Universidade São Francisco / Bragança Paulista, SP
94) Publicações ADUFPB / Universidade Federal da Paraíba / João Pessoa, PB
95) Raído / Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) / Dourados, MS
96) Revista 7 Faces / Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira (FUNCESI) / MG
97) Revista Alcance / Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) / Itajaí, SC
98) Revista Ambiente e Educação / Fundação Universidade Federal do Rio Grande / Rio Grande,
RS
99) Revista Anamatra / Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho / Brasília,
DF
100) Revista Baiana de Educação Física / Salvador, BA
101) Revista Brasileira de Economia de Empresas / Universidade Católica de Brasília /
Taguatinga, DF
102) Revista Brasileira de Educação Especial / Universidade Estadual Paulista / Marília, SP
103) Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos / Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais / MEC / DF
104) Revista Brasileira de Gestão de Negócios / Fundação Escola do Comércio Álvares Penteado/
São Paulo, SP
105) Revista Brasileira de Orientação Profissional / Universidade de São Paulo / Ribeirão
Preto, SP
106) Revista Brasileira de Tecnologia Educacional / Associação Brasileira de Tecnologia
Educacional / Brasília, DF
107) Revista Caatinga / Escola Superior de Agricultura de Mossoró / RN
108) Revista Cadernos / Centro Universitário São Camilo / São Paulo, SP
109) Revista Cadernos de Campo / Universidade de São Paulo (USP) / SP
110) Revista Cesumar / Centro Universitário de Maringá / Maringá, PR
111) Revista Ciência e Educação / UNESP-Bauru / Bauru, SP
112) Revista Ciências Humanas / Universidade de Taubaté (UNITAU) / SP
113) Revista Ciências Humanas da URI / Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai
e das Missões (URI) / Frederico Westphalen, RS
114) Revista Científica / Centro Universitário de Barra Mansa / Barra Mansa, RJ
115) Revista Científica da Unicastelo / Universidade Camilo Castelo Branco (Unicastelo) / São
Paulo, SP
116) Revista Científica FAESA / Faculdade de Tecnologia FAESA / Vitória, ES
117) Revista Cocar / Universidade do Estado do Pará / Belém, PA
118) Revista Colloquim e Justiça e Sociedade / Universidade do Oeste Paulista / Presidente
Prudente, SP
119) Revista Contemporânea de Ciências Sociais Aplicadas da FAPLAN / Passo Fundo, RS
120) Revista Contrapontos – Revista do Mestrado em Educação / Universidade do Vale do
Itajaí, SC
121) Revista da Educação Física / Universidade Estadual de Maringá / Maringá, PR
122) Revista da Faculdade Christus / Faculdade Christus / Fortaleza, CE

260
123) Revista da Faculdade de Educação / Universidade do Estado de Mato Grosso / Cáceres, MT
124) Revista da Faculdade de Santa Cruz / União Paranaense de Ensino e Cultura / Curitiba, PR
125) Revista da FAEEBA Educação e Contemporaneidade / Universidade do Estado da Bahia/
Salvador, BA
126) Revista da FAPA / Faculdade Paulistana (FAPA) / São Paulo, SP
127) Revista de Administração / Centro de Ensino Superior de Jataí (CESUT) / GO
128) Revista de Ciências da Educação / Centro Universitário Salesiano de São Paulo
(UNISAL) / Campinas, SP
129) Revista de Ciências Sociais e Humanas / Centro de Ciências Sociais e Humanas /
Universidade Federal de Santa Catarina / Florianópolis, SC
130) Revista de Contabilidade do IESP / Sociedade de Ensino Superior da Paraíba / João
Pessoa, PB
131) Revista de Direito / Universidade de Ibirapuera / São Paulo, SP
132) Revista de Divulgação Cultural / Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB) / SC
133) Revista de Educação / Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) / SP
134) Revista de Educação ANEC / Associação Nacional de Educação Católica do Brasil
(ANEC) / Brasília, DF
135) Revista de Educação CEAP / Centro de Estudos e Assessoria Pedagógica (CEAP) / Salvador,
BA
136) Revista de Educação Pública / Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) / MT
137) Revista de Estudos Universitários / Universidade de Sorocaba (UNISO) / SP
138) Revista de Letras / Universidade Federal do Ceará / Fortaleza, CE
139) Revista de Negócios / Fundação Universidade Federal de Blumenau (FURB) / SC
140) Revista de Psicologia / Universidade Federal do Ceará (UFC) / Fortaleza, CE
141) Revista do CCEI / Universidade da Região da Campanha / Bagé, RS
142) Revista do Centro de Educação / Universidade Federal de Santa Maria / Santa Maria, RS
143) Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos / Instituição Toledo de Ensino (ITE) / Bauru, SP
144) Revista do Mestrado em Educação / Universidade Federal de Sergipe (UFS) / São Cristóvão,
SE
145) Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação / Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM) / RS
146) Revista dos Expoentes / Universidade de Ensino Superior Expoente (UniExp) / Curitiba, PR
147) Revista Educação / Porto Alegre, RS
148) Revista Educação e Ensino / Universidade São Francisco (USF) / Porto Alegre, RS
149) Revista Educação e Movimento / Associação de Educação Católica do Paraná / Curitiba,
PR
150) Revista Educação e Realidade / Universidade Federal do Rio Grande do Sul / Porto Alegre,
RS
151) Revista Ensaios e Ciências / Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região
do Pantanal (Uniderp) / Campo Grande, MS
152) Revista Espaço / Instituto São Paulo de Estudos Superiores / São Paulo
153) Revista Estudos Lingüísticos e Literários / Universidade Federal da Bahia / Salvador, BA

261
154) Revista Faces da Academia / Faculdade de Dourados (UNIDERP.FAD) / Dourados, MS
155) Revista FAMECOS / Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) /
Porto Alegre, RS
156) Revista Fórum Crítico da Educação / Instituto Superior de Estudos Pedagógicos (ISEP) /
Rio de Janeiro, RJ
157) Revista Fronteiras – Estudos Midiáticos / Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)/
São Leopoldo, RS
158) Revista Horizontes / Universidade São Francisco (USF) / Bragança Paulista, SP
159) Revista Ideação / Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) / Foz do Iguaçu, PR
160) Revista Idéias & Argumentos / Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL) / SP
161) Revista Informática na Educação – Teoria e Prática / Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) / RS
162) Revista Integração / Universidade São Judas Tadeu / São Paulo, SP
163) Revista Intertemas / Associação Educacional Toledo / Presidente Prudente, SP
164) Revista Jurídica – FOA / Associação Educativa Evangélica / Anápolis, GO
165) Revista Jurídica Cesumar / Centro Universitário de Maringá / Maringá, PR
166) Revista Jurídica da FURB / Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB) / SC
167) Revista Jurídica da Universidade de Franca / Universidade de Franca / Franca, SP
168) Revista Leonardo / Centro Universitário Leonardo da Vinci / Indaial, SC
169) Revista Mal Estar e Subjetividade / Universidade de Fortaleza / CE
170) Revista Mimesis / Universidade do Sagrado Coração / Bauru, SP
171) Revista Montagem / Centro Universitário “Moura Lacerda” / Ribeirão Preto, SP
172) Revista O Domínio da Ética / Fundação Centro de Análises, Pesquisas e Inovações
Tecnológicas / Manaus, AM
173) Revista O Eixo e a Roda / Universidade Federal de Minas Gerais / Belo Horizonte, MG
174) Revista Paidéia / Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto / Ribeirão
Preto, SP
175) Revista Pedagogia / Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC) / SC
176) Revista Plures / Centro Universitário Moura Lacerda / Ribeirão Preto, SP
177) Revista Prosa / Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal
(Uniderp) / Campo Grande, MS
178) Revista Psicologia Argumento / Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) / PR
179) Revista Psicologia em Foco / Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões (URI) / Frederico Westphalen, RS
180) Revista Quaestio / Universidade de Sorocaba (UNISO) / Sorocaba, SP
181) Revista Recriação (Revista de Referência de Estudos da Infância e Adolescência) /
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul / Campo Grande, MS
182) Revista Reflexão e Ação / Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) / RS
183) Revista Semina / Universidade de Passo Fundo / Passo Fundo, RS
184) Revista Sociedade e Cultura / Departamento de Ciências Sociais / Goiânia, GO
185) Revista Tecnologia da Informação / Universidade Católica de Brasília (UCB) / Brasília, DF
186) Revista Teoria e Prática / Universidade Estadual de Maringá / Maringá, PR

262
187) Revista Trilhas / Universidade da Amazônia (UNAMA) / Belém, PA
188) Revista UNIABEU / Associação Brasileira de Ensino Universitário (UNIABEU) / Belford
Roxo, RJ
189) Revista Unicsul / Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul) / SP
190) Revista UNIFIEO / Centro Universitário (FIEO) / Osasco, SP
191) Santa Lúcia em Revista / Faculdade de Ciências Administrativas e Contábeis Santa
Lúcia / Mogi-Mirim, SP
192) Scientia / Centro Universitário Vila Velha (UVV) / Vitória, ES
193) Seqüência - Estudos Jurídicos e Políticos – Revista do Programa de Pós-Graduação em
Direito da UFSC / Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) / SC
194) Sociais e Humanas – Revista do Centro de Ciências Sociais e Humanas / Universidade
Federal de Santa Maria / RS
195) T e C Amazônia / Universidade de Minas Gerais / Belo Horizonte, MG
196) Tecnologia & Cultura – Revista do CEFET/RJ / Centro Federal de Educação / Rio de
Janeiro, RJ
197) TEIAS – Revista da Faculdade de Educação da UERJ / Universidade do Estado do Rio de
Janeiro / Rio de Janeiro, RJ
198) Textura – Revista de Educação, Ciências e Letras / Universidade Luterana do Brasil (ULBRA)/
Canoas, RS
199) Tópicos Educacionais / Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) / Recife, PE
200) UNESC em Revista – Revista do Centro Universitário do Espírito Santo / UNESC / Colina, ES
201) UniCEUB em Revista / Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) / Brasília, DF
202) UniCiência - Revista Científica da UEG / Fundação Universidade Estadual de Goiás (UEG) /
Anápolis, GO
203) UNICiências / Universidade de Cuiabá (UNIC) / MT
204) Unimar Ciências / Universidade de Marília (UNIMAR) / Marília, SP
205) UNIP Press – Boletim Informativo da Universidade Paulista / Universidade Paulista (UNIP) /
São Paulo, SP
206) Universa / Universidade Católica de Brasília (UCB) / DF
207) Universitária – Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito / Centro Universitário
Toledo (UNITOLEDO) / Araçatuba, SP
208) UNOPAR Científica – Ciências Humanas e Educação / Universidade Norte do Paraná
(UNOPAR) / Londrina, PR
209) Ver a Educação / Universidade Federal Pará (UFPA) / Belém, PA
210) Veritas – Revista de Filosofia / Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS) / RS
211) Vertentes / Universidade Federal de São João Del-Rei / MG
212) Virtus – Revista Científica em Psicopedagogia / Universidade do Sul de Santa Catarina
(UNISUL) / Tubarão, SC
213) Zetetiké / UNICAMP / Campinas, SP

263
PERMUTAS INTERNACIONAIS

01) AILA – International Association of Applied Linguistic / Open university / United kingdom,
Ukrainian
02) Anagramas – Rumbos y Sentidos de la Comunicación / Universidad de Medellín / Medellín,
Colômbia
03) Anthropos – Venezuela / Instituto Universitario Salesiano “Padre Ojeda” (IUSPO) / Venezuela
04) Confluencia: ser y quehacer de la educación superior mexicana / Asociación Nacional de
Universidades e Instituciones de Educación Superior (ANUIES) / México
05) Cuadernos de Administración / Pontifícia Universid Javeriana / Bogota, Colômbia
06) Cuadernos de Relaciones Laborales / Universidad Complutense / Madrid, España
07) Educación de adultos y desarrolo / DVV Internacional / Bonn, Alemanha
08) Horizontes Educacionales / Universidad Del BIO-BIO / Chile
09) Infancia en eu-ro-pa / Associación de Maestros Rosa Sensat. / Barcelona, España
10) Learner Autonomy: New Insights / Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB) /
Belo Horizonte, MG
11) Lexis / Asociación de Institutores de Antioquia (Adida) / Medellín, Colômbia
12) Ludus Vitalis 1 / Universidad autônoma Metropolitana Iztalapa / México
13) Nexos / Universidad EAFIT / Medellín, Colombia
14) Padres/Madres de alumnos/alumnas / CEAPA / Madrid, España
15) Política y Sociedad / Universidad Complutense de Madrid / Madrid, España
16) Proyección investigativa / Universidad de Córdoba / Montería, Colombia
17) Revista Boliviana de Física / Universidad Mayor de San Andrés / Bolívia
18) Revista Contextos Educativos / Universidad de La Rioja / La Rioja, España
19) Revista de ciencias humanas / Universidad Tecnológica de Pereira / Risaralda, Colombia
20) Revista de Filosofia y Teologia ALPHA OMEGA / Ateneo Pontifício Regina Apostolorum /
Roma
21) Revista de Investigaciones de la Unad / Universidad Nacional Abierta y a Distancia (Unad)/
Bogotá, Colombia
22) Revista de La CEPA / Comisión Economica para América Latina y El Caribe / Santiago,
Chile
23) Revista de pedagogía / Universidad Central de Venezuela / Caracas, Venezuela
24) Revista Universidad EAFIT / Universidad EAFIT / Medellín, Colombia
25) Revolución Educativa al Tablero / Centro Administrativo Nacional (CAN) / Bogota, Colombia
26) Salud Pública de México / Instituto Nacional de Salud Pública / Cuernavaca, Morelos,
México
27) Santiago: revista de la Universidad de Oriente / Universidad de Oriente / Santiago de Cuba,
Cuba
28) Signos Universitarios / Universidad del Salvador / Buenos Aires, Argentina
29) Thélème - Revista Complutense de Estudios Franceses / Universidad Complutense Madrid /
Madrid, España
30) Utopia / Dirigine a Departamento Pastoral de La UPS

264
Este periódico usa a fonte tipográfica
Clearly Gothic Light para o texto
e a fonte Clearly Gothic para os títulos.
Foi impresso pela Gráfica Mundial,
para a Universidade Católica Dom Bosco,
em junho de 2012,
com tiragem de 1.000 exemplares.

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