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com o pé (tomando nota mentalmente, como depois se verificou, de mandar
meu médico de volta para o que então ainda era a Rodésia). Depois da passa»
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gem dos dois, eu, contrariando as ordens de meu médico e para consternação
das enfermeiras, fui até a janela e olhei para fora, a tempo de ter uma visão Identidades africanas
extraordinária: o duque de Edinburgo e o presidente de Gana, sem grande en-
tusiasmo, tentavam arrancar uma antiga espada achanti do chão onde ela estava É verdade, é claro, que a identidade africana ainda
está em
seja
fincada. A espada, rezava a tradição, fora colocada ali por Okomfo Anokye, o processo de formação. Não há uma identidade final que
grande sacerdote de Achanti que, com o primeiro grande rei, Osei Tutu, havia tempo, existe uma identid ade nascent e.
africana. Mas, ao mesmo
fundado o reino, dois séculos e meio antes. Não muito depois da independên-» E ela tem um certo context o e um certo sentido. Porque, quando
cia, o “Hospital Central” da colônia, onde eu estava internado, fora redeno- alguém me encontra, digamos, numa loja de Cambridge, ele
nta
minado Hospital Okomfo Anokye. A tradição também dizia que o grande sa- indaga: “Você é da África?” O que significa que a África represe
tem
cerdote havia declarado que, com todas as palavras mágicas que proferira, se alguma coisa para algumas pessoas. Cada um desses rótulos
um sentido, um preço e uma respons abilida de."
algum dia a espada fosse arrancada do chão, a nação achanti se franca
Chinua Achebe
nas múltiplas unidades a partir das quais ele e Osei Tutu a haviam formado.
Lá do alto da multidão de dignitários, pareceu-me que o puxão de Nkrumah
na espada foi ainda mais desanimado que o do duque. Nenhum governante
ganês poderia, nem mesmo a título de brincadeira, simular um ataque à unida-
e não afetada pe-
de achanti, ali, no coração da terra. Hoje, muito depois de Nkrumah haver-se vida cultural da África negra permaneceu basicament
e a maioria das
reunido a seus ancestrais, Achanti permanece, é claro; remodelada, talvez, mas las idéias européias até os últimos anos do século XIX,
vida muito pouco molda-
estranhamente obstinada. A espada, disseram-me, desapareceu.'º culturas iniciou nosso século com estilos de
direto com os europeus —
dos pelo contato direto com a Europa. O comércio
urado as economias de
e especialmente o tráfico de escravos — havia estrut
seu interior desde meados
muitos dos Estados da costa africana ocidental e de
que existia, no mínimo,
do século XVII, substituindo o vasto comércio de ouro
do século XIX, à medida
desde o Império Cartaginês, no século TI a.C. No início
óleos de babaçu e de amen-
que o comércio escravagista entrou em declínio, os
para à Europa, sendo posterior-
doim tornaram-se as principais exportações
zação direta da região só
mente seguidos pelo cacau e pelo café. Mas a coloni
ção européia de toda a
começou para valer no fim do século XIX; e a administra
ência — quando o cali-
África Ocidental só foi conseguida — após muita resist
fado de Sokoto foi conquistado, em 1903.
o Oriente, que enviava ouro e
No oceano Índico, o comércio voltado para
o, marfim, óleo de coco, ma-
escravos para a Arábia e trocava especiarias, incens
indianos, bem como por ce-
deira, cereais e ferro-gusa por seda e tecidos finos
ado as economias do lito-
râmica e porcelana da Pérsia e da China, havia domin
s desbaratou esse comércio
ral leste da África, até que a chegada dos portuguese
europeu tornou-se cada vez
no fim do século XV. A partir de então, o comércio
econômica da região em
mais predominante; mesmo assim, à principal força
haviam capturado Mom-
meados do século XIX eram os omanianos árabes, que
Usand o o trabalho escravo do
baça dos portugueses, mais de cem anos antes.
o lucrativo comércio de cra-
continente africano, os omanianos desenvolveram

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242 Na casa de meu pai Identidades africanas 243

vo de Zanzibar, transformando o local, por volta de 1860, no maior produtor de conduta, hábitos de pensamento e padrões de avaliação mutuamente corres-
mundial. Entretanto, na maior parte da África Oriental, assim como na Ociden- pondentes (ainda que às vezes conflitantes), em suma, um tipo coerente de psi-
tal, o extenso contato direto com os europeus foi um fenômeno do fim do sécu-» cologia social humana — equivaleria a “dar a um nada etéreo um local de habi-
lo XIX, e a colonização só ocorreu, essencialmente, depois de 1885. tação e um nome”,
No sul do continente, nas áreas em que predominam os povos de língua
banta, poucas culturas tiveram qualquer contato com os europeus antes de Todavia, não há dúvida de que agora, um século depois, começa a existir uma
1900: no final do século anterior, a região havia adotado o cultivo de muitos identidade africana. Afirmei, em todos estes ensaios, que tal identidade é uma
novos produtos agrícolas para a economia mundial, as importações de armas coisa nova; que é produto de uma história da qual esquematizei alguns momen-
de fogo fabricadas no Ocidente recém-industrializado haviam criado uma nova tos; e que as bases em que tem sido predominantemente teorizada até hoje —
ordem política, amiúde baseada na força, e missionários e exploradores euro» a raça, uma experiência histórica comum, uma metafísica compartilhada —
peus — dos quais David Livingstone foi, para os ocidentais, a epítome — ti» pressupõem falsidades sérias demais para que as ignoremos.
o mundo tem seu
nham viajado por quase todos os pontos da região. Só em 1902, no final da Toda identidade humana é construída e histórica; todo
Guerra dos Bôeres, o domínio europeu da África Austral foi estabelecido em
lei, quinhão de pressupostos falsos, erros e imprecisões que a cortesia chama de
Não surpreende, portanto, que a influência cultural européia na África antes “mito” a religião, de “heresia”, e a ciência, de “magia”. Histórias inventadas,
do século XX tenha sido extremamente limitada. As tentativas deliberadas de biologias inventadas e afinidades culturais inventadas vêm junto com toda
mudança, através das atividades missionárias ou da criação de escolas ociden- identidade; cada qual é uma espécie de papel que tem que ser roteirizado, es-
tais, e a influência inintencional, mediante o contato com os exploradores
e co- truturado por convenções de narrativa a que o mundo jamais consegue con-
lonizadores no interior e com os entrepostos comerciais no litoral, produziram formar-se realmente.
pequenos enclaves de africanos europeizados; porém, o grande impacto cultu- Muitas vezes, quem diz isto — quem nega a realidade biológica das raças ou
ral da Europa foi basicamente um produto do período posterior à Primeira a verdade literal de nossas ficções nacionais — é tratado pelos nacionalistas e
Guerra Mundial. pelos “adeptos da raça” como se estivesse propondo o genocídio ou a destruição
Para compreender a variedade das culturas contemporâneas da África, por- das nações, como se, ao dizer que literalmente não existe uma raça negra, esti-
tanto, precisamos, em primeiro lugar, recordar a variedade das culturas prés vesse obliterando todos aqueles que afirmam ser negros, e, ao duvidar da histó-
coloniais. As diferenças na experiência colonial também tiveram seu papel na ria de Okomfo Anokye, estivesse repudiando a nação achanti. Essa é uma hipér-
configuração das diversidades do continente, mas até mesmo políticas coloniais bole que não ajuda; mesmo assim, deve haver contextos em que uma afirmação
idênticas, identicamente implementadas, influindo sobre materiais culturais dessas verdades é politicamente inoportuna. Sou aplicado o bastante para me
muito diferentes, decerto teriam produzido resultados amplamente variáveis. sentir atraído pela enunciação da verdade, mesmo que o mundo venha abaixo; e
É claro que podemos encontrar generalizações, num certo nível de abstra» sou animal político o bastante para reconhecer que há lugares em que a verdade
ção, que se aplicam à maior parte da África negra antes da conquista européia, prejudica mais do que ajuda.
Uma idéia conhecida na historiografia africana é que a África foi o último con» Mas, pelo que posso ver, não temos que optar entre esses impulsos: não há
tinente do mundo antigo com um campesinato “não cativo”, capaz de utilizar a razão para crer que o racismo seja sempre — ou mesmo usualmente — pro-
terra sem a supervisão de senhores feudais e apto, se quisesse, a comercializar movido pela negação da existência das raças; e, embora haja uma certa razão
seus produtos através de um complexo sistema de redes comerciais. Enquanto para desconfiar que os que resistem aos remédios legais para a história do ra-
as classes dominantes européias viviam do excedente dos camponeses e da re» cismo poderiam utilizar a inexistência das raças para se posicionar — nos Es-
cém-formada classe trabalhadora industrial, os governantes africanos viviam tados Unidos, por exemplo — contra uma ação afirmativa, essa estratégia, em
essencialmente dos impostos sobre o comércio. Mas, se nos fosse possível viajar matéria de lógica, encontra uma oposição fácil. Pois, como nos lembra Tzvetan
pelas muitas culturas da África naqueles anos — desde os pequenos grupos de Todorov, a existência do racismo não requer a existência de raças; podemos
caçadores-coletores bosquímanos, com seus instrumentos da Idade da Pedra, acrescentar que as nações são bem reais, por mais inventadas que sejam suas
até os reinos haussás, ricos em metais trabalhados —, teríamos sentido, em cada tradições.”
lugar, impulsos, idéias e formas de vida profundamente diferentes. Falar de uma Levantar a questão de saber se essas verdades são verdades a serem enuncia-
identidade africana no século XIX — se identidade é uma coalescência de estilos das é ser forçado a encarar de frente a verdadeira questão política: a questão, tão
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velha quanto a filosofia política, de quando devemos endossar a mentira eno- zões para duvidar de que elas consigam fazê-lo. Dentro da África — na OUA, no
brecedora. No mundo real da prática política, das alianças cotidianas e das mo- Sudão, na Mauritânia” —, a racialização produziu fronteiras arbitrárias e ten-
bilizações populares, uma rejeição das raças e nações, na teoria, só pode fazer sões exacerbadas; na Diáspora, por outro lado, as alianças com pessoas de outra
parte do projeto de uma prática política coerente se pudermos mostrar mais do cor, como vítimas do racismo — pessoas de ascendência sul-asiática na Inglater-
que o fato de que a raça negra — ou a tribo chona, ou qualquer dos outros ra, hispânicos nos Estados Unidos, “árabes” na França, turcos na Alemanha —
modos de auto-invenção que a África tenha herdado — enquadra-se no padrão têm-se revelado essenciais.
comum de se basear em algo menor do que a verdade literal. Precisaríamos Em suma, penso ser bastante claro que uma concepção da raça enraizada na
mostrar, não que a raça e a história nacional são falsidades, mas que elas são, na biologia é perigosa na prática e enganosa na teoria: a unidade africana e a iden-
melhor das hipóteses, falsidades inúteis, ou — na pior — perigosas: que um tidade africana precisam de bases mais seguras do que a raça.
outro conjunto de histórias nos construirá identidades através das quais possa- O trecho de Achebe pelo qual iniciei este ensaio continua com estas palavras:
mos fazer alianças mais produtivas. “Todos esses rótulos, infelizmente para o negro, são rótulos de incapacidade”
O problema, é claro, é que a identidade grupal só parece funcionar — ou, Mas, a meu ver, eles são menos rótulos de incapacidade do que rótulos inca-
pelo menos, funcionar melhor — quando é vista por seus membros como natu- pacitantes; isso constitui, em essência, minha queixa contra a África como uma
ral, como “real”. O pan-africanismo, a solidariedade negra, pode ser uma força mitologia racial — a África de Crummell e Du Bois (do Novo Mundo) e dos
importante, com benefícios políticos reais; mas não funciona sem suas mistifi- críticos bolekaja (do Velho) —:; contra a África como uma metafísica comum —
cações concomitantes. (Para nos voltarmos para o outro exemplo óbvio, o femi- a África de Soyinka —; contra a África como um passado fantasioso de glórias
nismo tampouco está livre de seus riscos e mistificações ocasionais.) Aos olhos compartilhadas — a África de Diop e dos “egipcianistas”.
de muitos, reconhecer que a história das identidades é algo construído tem pare- Cada uma dessas queixas pode ser resumida num parágrafo.
cido incompatível com a assunção dessas novas identidades, com a seriedade A “raça” nos incapacita porque propõe como base para a ação comum a ilu-
que elas requerem daqueles que as inventam — ou, como eles sem dúvida prefe- são de que as pessoas negras (e brancas e amarelas) são fundamentalmente alia-
ririam dizer, que as descobrem — e as possuem.* No mundo real da política, em das por natureza e, portanto, sem esforço; ela nos deixa despreparados, por con-
suma, as demandas de intervenção sempre parecem implicar um desconhecimen- seguinte, para lidar com os conflitos “intra-raciais” que nascem das situações
to de sua gênese; é impossível construir alianças sem mistificações e mitologias. muito diferentes dos negros (e brancos e amarelos) nas diversas partes da eco-
E este capítulo é uma investigação dos modos como o que há de produtivo na nomia e do mundo.
solidariedade pan-africana pode ser fecundamente entendido por aqueles de A metafísica africana de Soyinka nos incapacita porque fundamenta nossa
nós cuja posição de intelectuais — de pesquisadores da verdade — nos impede unidade em deuses que não nos foram de muita serventia em nosso trato com o
de viver segundo as falsidades da raça, tribo e nação, e cuja compreensão da mundo — Soyinka nunca defende o Mundo Africano da acusação de Wiredu
história nos torna céticos quanto à idéia de que o nacionalismo e a solidariedade de que, uma vez que as pessoas morrem cotidianamente, em Gana, por preferi-
racial possam fazer o bem que são capazes de fazer, sem os males concomitantes rem os remédios tradicionais à base de ervas aos medicamentos ocidentais,
do racismo — e de outros particularismos; sem a guerra entre as nações. “qualquer propensão a glorificar a mentalidade não analítica [isto é, tradicio-
nal] é não apenas retrógrada; é trágica”. Soyinka provou que o panteão ioru-
Por onde devemos começar? Nestas páginas, muitas vezes coloquei-me contra bano é um poderoso recurso literário: mas não consegue explicar por que o
as formas de racismo implícitas em grande parte do discurso sobre o pan- cristianismo e o islamismo substituíram tão amplamente os velhos deuses, nem
africanismo. (E, em outros textos, especialmente em “Racisms” [Racismos] e por que a imagem do Ocidente tem uma influência tão poderosa na imaginação
“Racism and Moral Pollution” [Racismo e poluição moral], ofereci outros argu- iorubana contemporânea; sua criação de mitos tampouco é capaz de nos ofere-
mentos contra esses pressupostos racistas.) Mas, estas objeções a uma concep- cer os recursos para criarmos economias e políticas adequadas a nossos varia-
ção da raça baseada na biologia talvez ainda pareçam por demais teóricas: se os dos lugares no mundo.
africanos puderem unir-se em torno da idéia da Pessoa Negra, se puderem criar, E os egipcianistas — como todos os que optaram por radicar a identidade
através dessa idéia, alianças produtivas com os afro-americanos e com as pes- moderna da África numa história imaginária — pleiteiam que encaremos o
soas de ascendência africana da Europa e do Caribe, essas objeções teóricas de- passado como o momento de completude e unidade; ligam-nos aos valores e
certo empalidecerão à luz do valor prático dessas alianças. Mas, há todas as ra- crenças de outrora; desse modo, desviam-nos dos problemas do presente e das
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246 Na casa de meu pai

esperanças do futuro (esta crítica é tão velha quanto a avaliação de Tempels tro” povo, lá dentro dos bosques. No entanto, depois da experiência da Guer-
por Césaire). ra de Biafra, durante um período de dois anos, essa se tornou uma consciên-
Para que uma identidade africana nos confira poder, o que se faz necessário, cia poderosíssima. Entretanto, isso fora real o tempo todo. Todos eles fa-
lavam a mesma língua, chamada “igbo”, ainda que não usassem de modo
eu creio, não é tanto jogarmos fora a falsidade, mas reconhecermos, antes de
algum essa identidade. Mas chegou o momento em que essa identidade tor-
mais nada, que a raça, a história e a metafísica não impõem uma identidade: que nou-se muito, muito poderosa (...) e em curtíssimo prazo.
podemos escolher, dentro de limites amplos instaurados pelas realidades ecoló-
gicas, políticas e econômicas, o que significará ser africano nos anos vindouros. Sim, foi um prazo curto; e também trágico. A Guerra Civil da Nigéria definiu
uma identidade igbo: e o fez de maneiras complexas, que brotaram do desen-
Não quero ser mal interpretado. Já somos africanos. E podemos dar nume» volvimento de uma identidade igbo comum na África colonial, uma identidade
rosos exemplos, extraídos de múltiplos campos, do que significa sermos afri- que criou os mercadores igbos das cidades do Norte da Nigéria como um objeto
canos. Temos instituições africanas, por exemplo, na Organização da Unidade identificável de agressão, no período que levou à invenção de Biafra.
Africana e no Banco de Desenvolvimento Africano, em organizações regio- Reconhecer a identidade igbo como uma coisa nova não é um modo de privi-
nais como a Conferência para a Coordenação do Desenvolvimento da África legiar outras identidades nigerianas: cada uma das três identidades étnicas cen-
Austral (SADCC) e a Comunidade Econômica dos Países da África Ocidental trais da vida política moderna — os haussá-fulanis, os iorubanos e os igbos —
(ECOWAS), e ainda nas bancadas africanas dos órgãos das Nações Unidas e do foi produto da transição turbulenta do status colonial para o pós-colonial. David
Banco Mundial. Nas Olimpíadas e nos jogos da Comunidade das Nações, Laitin assinalou que “[a] idéia de que havia uma única tribo haussá-fulani (...)
atletas de países africanos são vistos como africanos pelo mundo — e talvez, O foi, basicamente, uma alegação política do Northern Peoples” Congress [Con-
que é mais importante, por eles mesmos. Ser africano já tem “um certo con» gresso dos Povos do Norte, NPC] em sua batalha contra o Sul”, ao passo que
texto e um certo sentido”. “muitos dos meus parentes mais velhos, intimamente envolvidos na sociedade
Mas, como sugere Achebe, esse sentido nem sempre é tal que nos deixe satis- iorubana rural de hoje, lembram que, ainda na década de 1930, iorubano” não
feitos; e essa identidade é de um tipo que devemos continuar a reformular. Ao era uma forma comum de identificação política” Nnamdi Azikiwe — uma das
refletir sobre como havemos de reformulá-la, seria bom nos lembrarmos de que figuras-chave na construção do nacionalismo nigeriano — era extremamente
a identidade africana é, para seus portadores, apenas uma dentre muitas. Como popular (como também aponta Laitin) na Lagos iorubana, onde “editava seu
todas as identidades, institucionalizadas antes que qualquer um tenha estabele- jornal nacionalista, o West African Pilot. Somente os acontecimentos posteriores
cido em caráter permanente um sentido único para elas — como a identidade é que o levaram a ser definido na Nigéria como um líder igbo”” Todavia, a políti-
alemã do início deste século, ou a norte-americana do fim do século XVIII, ou à ca nigeriana — tal como a economia mais cotidiana das relações pessoais corri-
identidade indiana quando da independência, há tão poucos anos —, ser africa» queiras — orienta-se por esses eixos; e só muito ocasionalmente vem à tona o
no é, para seus portadores, um dentre muitos outros modelos destacados de ser, fato de que até essas três identidades problemáticas respondem, quando muito,
por todos os quais é preciso lutar e tornar a batalhar constantemente. E de fato, por sete em cada dez nigerianos.
na África, é outra dessas identidades que proporciona um dos modelos mais Essa história se repete mesmo em lugares onde não foi escrita com letras de
úteis para essa reelaboração; trata-se de um modelo que se pauta em outras sangue. Como observou Johannes Fabian, as poderosas identidades lingala e
identidades centrais para a vida contemporânea no subcontinente, a saber, a de língua swahili do Zaire moderno existem “porque se estabeleceram esferas de
redefinição constantemente cambiável das identidades “tribais”, para atender às interesse político e econômico antes de os belgas assumirem pleno controle,
exigências econômicas e políticas do mundo moderno. e elas continuaram a instrumentar as relações entre as regiões sob domínio co-
Mais uma vez, permitam-me citar Achebe: lonialӼ A Gana moderna assiste ao desenvolvimento de uma identidade akan,
à medida que os falantes dos três principais dialetos regionais do twi — achanti,
A duração do conhecimento, da consciência de uma identidade, tem real-
mente muito pouco a ver com a profundidade desta. Súbito, pode-se tomar fante e akuapem — vão-se organizando numa corporação contrária a uma uni-
ciência de uma identidade da qual se vem sofrendo por muito tempo sem dade ewe (igualmente nova).
saber. Por exemplo, tomemos o povo igbo. Em minha região, historicamente, Quando não é a “tribo” que é investida de novos usos e sentidos, é a religião.
eles não se viam como igbos. Viam-se como pessoas desta ou daquela aldeia. No entanto, a idéia de que a Nigéria se compõe de um Norte muçulmano, um
Na verdade, em alguns locais, “igbo” era um termo ofensivo; eles eram o “ou- Sul cristão e um mosaico de remanescentes “pagãos” é tão inexata quanto o
a, conflit
bia, étnicoico
conflitos os étn Bu-
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quadro das três identidades tribais históricas. Duas em cada cinco pessoas cana — a fome na Etiópia, uma guerra na Namíbi
de corrigir as spt q
iorubanas do Sul são muçulmanas; e, como nos diz Laitin: rundi —, fico me perguntando qual é o benefício
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esses males estão ligados; a solução são os alimen
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[MJuitos grupos nortistas, especialmente no que hoje são os estados de Be-


Ati a. E ) no entanto, como venho t entando
outra medida mais material, maisI prátic
nue, Plateau, Gongola e Kwara, são predominantemente cristãos. Quando os moderma (a pi
líderes de Biafra tentaram convencer o mundo de que estavam sendo oprimi- argumentar neste livro, a configuração da África
— muita s vezes um pro a
dos pelos muçulmanos do Norte, os estrangeiros ignorantes (inclusive o nosso mundo) é produto, em grande parte
vulgar um e pi nim band
papa) acreditaram neles. Mas o exército nigeriano (...) era liderado por um tencional e não previsto —, das teorias; até o mais
atraves das i E ep nt E
cristão do Norte.!º admitir que os interesses econômicos operam
evidência e pelo racioc ínio,
demos modificar o mundo simplesmente pela
Aqui, como no caso da raça, é igualmente inútil assinalar que a tribo ou a re- ão nn
decerto tampouco podemos mudá-lo sem
ligião, como todas as identidades sociais, baseia-se numa ficção idealizadora, cd pr a api
Aquilo para o que nós do mundo acadêmico
pois a vida na Nigéria ou no Zaire passou a ser vivida através dessa idealização: ticulação [o api ni
que apenas lenta e marginalmente — é a desar
a identidade igbo é real porque os nigerianos acreditam nela; a identidade chona ão o não eg ii
renças “raciais” e “tribais”. Pois, em minha opini
o é porque os zimbabuanos lhe deram um sentido. A retórica de um Norte mu- de hoje faz o agir E
realidade dessas muitas identidades rivais da África
çulmano e um Sul cristão estruturou as discussões políticas no período anterior os tentando io an rot
mente, dos exploradores de cujos grilhões estam
à independência nigeriana; mas foi igualmente importante nos debates sobre a o modo o á pi
na Europa, e a “tribo”, na África, são centrais para
instituição de um Tribunal de Apelação muçulmano no Projeto de Constituição em pior situaç ão, Um da o e E
interesses objetivos daqueles que estão
de 1976; e pôde ser encontrada em muitos artigos da imprensa nigeriana quan- to dos no sean mo dg
reconhecido há muito tempo por Du Bois a respei
do começou o registro eleitoral para uma nova era civil em julho de 1989. reconstrução negra), id E “n á
Bois afirmou, em Black Reconstruction [A
um eg trat Fm a E
racista bloqueou essencialmente a formação de
Penso que existem três lições cruciais a serem aprendidas através desses casos. exigido a o oração ja
nificativo nos EUA, pois tal movimento teria :
Primeiro, que as identidades são complexas e múltiplas, e brotam de uma his- do Sul.” Em pr ai
milhões de ex-escravos e de agricultores brancos
tória de respostas mutáveis às forças econômicas, políticas e culturais, quase perpassam pit pi
como as categorias diferenciais frequentemente
sempre em oposição a outras identidades. Segundo, que elas florescem a des- o de nos cegar para ço em a
econômicos, elas funcionam no sentid
peito do que antes chamei de nosso “desconhecimento” de suas origens, isto é, a a seus concida ãos gt giga
O que liga os afro-americanos de classe média
despeito de terem suas raízes em mitos e mentiras. E terceiro, que não há, por mas o racismo € ai É
dos bairros pobres não é o interesse econômico,
conseguinte, muito espaço para a razão na construção — em contraste com o ados pela (maior parte
culturais da resistência a ele, que são compartilh
estudo e a administração — das identidades. Assim, para aqueles que atribuem
-americana.
uma centralidade a essas ficções em nossa vida é tentador deixar a razão para lo o que John mt pod
prio que aprendemos com esse exemp
trás: celebrar e endossar as identidades que, no momento, parecem oferecer a apreciativa : Pierre io A
mou recentemente, numa crítica vigorosa mas
melhor esperança de promover nossos outros objetivos, e silenciar sobre as que a reprodução ppm
isto é, que talvez seja um erro considerarmos
mentiras e os mitos. Mas, como afirmei antes, os intelectuais não desprezam ao longo do a ado PA
processos pelos quais as sociedades se mantêm
facilmente a verdade e, tecidas todas as considerações, nossas sociedades se be- s ou normas ai pad
“algum tipo de consenso a respeito dos valore
neficiam, a meu ver, da institucionalização desse imperativo no mundo acadê- izada de ng t vez ni a
contrário, a estabilidade da sociedade industrial
mico. É importante que continuemos procurando dizer nossas verdades. Mas niição de pigs e pia
Os fatos que examinei devem imbuir-nos a todos de um intenso sentimento da vasta fragmentação da ordem social e uma proti
ão que impede e as pao
marginalidade desse trabalho para a questão central da resistência ao racismo e membros”. Pois é precisamente essa fragmentaç
te, capaz de fornec
à violência étnica — e para o sexismo e as outras estruturas da diferença que oposicionistas gerem “uma visão alternativa coeren
base para a ação política”.
= PEA >”

moldam o mundo do poder; e eles devem impor-nos o reconhecimento claro


de que a verdadeira batalha não é travada nos círculos acadêmicos. Todas as As divisões ramificam m se p elas hi nhas do Sexo, d a Ç 3 das
raça
| ]
q ualifica o 0e s
. ]
li f 1 | .
vezes que leio mais uma reportagem nos jornais sobre uma calamidade afri- fi . . .

|
Identidades africanas 251
250 Na casa de meu pai

volvimento de movimentos que possam ameaçar o status quo. A reprodução Por fim, eu gostaria de sugerir que realmente não surpreende que uma iden-
da ordem social talvez dependa menos de um consenso a respeito dos valores tidade continental esteja se transformando numa realidade cultural e institucio-
ou normas dominantes do que de uma falta de consenso, justamente no pon- nal através de organizações regionais e sub-regionais. Compartimos um conti-
to em que as atitudes de oposição poderiam traduzir-se na ação política." nente e seus problemas ecológicos; compartimos uma relação de dependência
perante a economia mundial; compartimos o problema do racismo, na maneira
Thompson nos permite ver que, nas sociedades industriais contemporâneas,
como o mundo industrializado pensa em nós (e permitam-me incluir aqui, ex-
a auto-identificação como africano permite, acima de tudo, que o fato de o su»
plicitamente, a África “negra” e a “magrebina”); compartimos as possibilidades
jeito ser, digamos, não asiático seja usado contra ele; e, nesse contexto — como
de desenvolvimento dos mercados regionais e dos circuitos locais de produção;
vemos na África do Sul —, a concepção racializada da própria identidade é um
e nossos intelectuais participam, através das contingências comuns de nossas
retrocesso. Argumentar dessa maneira é pressupor que os sentidos das identida-
histórias diversas, de um discurso cujos contornos tentei delinear neste livro.
des sejam histórica e geograficamente relativos. Assim, é perfeitamente coerente
“Odenkyem nwu nsuo-ase mma yemmefre kwakuo se obeye no ayie”, diz um
com essa afirmação sustentar, como faço eu, que, na construção de alianças en-
provérbio akan: o crocodilo não morre embaixo d'água para que possamos cha-
tre os Estados — e especialmente no Terceiro Mundo —, uma identidade pan-
mar o macaco para celebrar seu funeral. Cada um de nós, pode-se usar o pro-
africana que permita que os afro-americanos, os afro-caribenhos e os afro-lati-
vérbio para dizer, pertence a um grupo com costumes próprios. Admitir que a
nos se aliem aos africanos continentais, baseando-se nos recursos comuns do
África, sob esses aspectos, possa ser uma identidade utilizável é não esquecer
mundo negro do Atlântico, pode atender a finalidades úteis. A resistência a um
que todos pertencemos a comunidades diversificadas, com seus costumes lo-
nacionalismo negro auto-isolador, dentro da Inglaterra, da França ou dos Esta-
cais; é não sonhar com um Estado africano único e esquecer as trajetórias com-
dos Unidos, é portanto compatível, teoricamente, com o pan-africanismo como
plexamente diferentes das inúmeras línguas e culturas do continente. “Africa-
projeto internacional.
no” certamente pode ser uma insígnia vital e capacitadora; mas, num mundo de
Dado que o valor das identidades é relativo, devemos argumentar a favor €
sexos, etnicidades, classes e línguas, de idades, famílias, profissões, religiões e
contra elas caso a caso. E, dada a situação atual da África, penso que continua
nações, mal chega a surpreender que haja ocasiões em que ela não é o rótulo de
claro que um outro pan-africanismo — o projeto de uma fratria continental, e
que precisamos.
não o projeto de um nacionalismo negro racializado —, por mais falsas ou con»
fusas que sejam suas raízes teóricas, pode ser uma força progressista. Foi como
concidadãos africanos que os diplomatas ganeses (entre eles, meu pai) interce-
deram entre os partidos nacionalistas em guerra na Rodésia, no regime da
UDI;* é como concidadãos africanos que as equipes da OUA podem fazer a me-
diação de conflitos regionais; é como concidadãos africanos que os fiscais dos
direitos humanos, organizados nos termos da Declaração de Banjul da OUA,
podem interceder pelos cidadãos dos países africanos contra os excessos de nos-
sos governos. Se há também esperança, como sugeri, para o pan-africanismo de
uma diáspora africana, depois que também ele se libertar da servidão das ideo-
logias raciais (junto com as muitas bases de aliança acessíveis aos povos da Áfri-
ca em suas lutas políticas e culturais), é crucial reconhecermos, uma vez supera-
do o nacionalismo “negro”, a independência do pan-africanismo da diáspora e
do pan-africanismo do continente. É, creio eu, no exame dessas questões, dessas
possibilidades, que reside o futuro de um pan-africanismo intelectualmente re»
vigorado.

* Referência ao regime de minoria branca, instalado quando Ian Smith declarou a independência
da Rodésia, de forma unilateral e ilegal. A Unilateral Declaration of Independence, então pro-
clamada, passou a ser conhecida como UDI, (N. da T.)
EPÍLOGO

Na casa de meu pai


Abusua d 9funu.
O clã materno adora um cadáver.
Provérbio akan

eu pai morreu, como afirmei, quando eu estava tentando concluir


este livro. Seu funeral foi uma oportunidade de fortalecer e reafir-
mar os laços que me unem a Gana e à “casa de meu pai”; e, ao mes-
mo tempo, de tensionar minha lealdade a meu rei e ao clã materno de meu pai...
talvez a ponto de esgarçá-la de maneira irreversível. Da última vez que o encon-
trei ainda vivo, meu pai pediu-me que o ajudasse a redigir um codicilo a seu
testamento, descrevendo seus desejos para seu funeral. Na ocasião, não me dei
conta de que, ao registrar esses pedidos em seu leito de morte e lhes conferir
força de lei, ele nos estava deixando, a nós, seus filhos, uma missão quase impos-
sível. É que, em nosso esforço de conduzir o funeral de acordo com os desejos
de meu pai — expressos no codicilo —, tivemos de contestar, primeiro, a au-
toridade do clã materno — a abusua — do qual meu pai antes fora o chefe, e, no
fim, a vontade do rei de Achanti, meu tio.
E, em meio a tudo isso — quando nossos partidários foram surrados na
igreja de meu pai, quando se sacrificaram cordeiros para lançar feitiços podero-
sos contra nós, e quando as pessoas de nossa casa se convenceram de que a co-
mida que minha tia me mandara estava envenenada —, era como se todas as
tentativas de compreender o que estava acontecendo me fizessem recuar cada
vez mais na história da família e na história de Achanti; afastar-me ainda mais
das abstrações (“tradição” e “modernidade”, “Estado” e “sociedade”, “clã mater-
no” e “clã paterno”) e me aprofundar mais no que, para um europeu ou um
norte-americano, provavelmente pareceria um mundo quase fantasioso de fei-
tiçaria e tias malvadas e velhas feiticeiras e magos.
Muitas vezes, nas lutas que se seguiram, descobri-me lembrando as palavras
de despedida de meu pai, anos atrás, quando eu era um estudante a caminho de
Cambridge — eu não voltaria a vê-lo por seis meses ou mais. Dei-lhe um beijo

253
254 Na casa de meu pai Epílogo 255

de despedida, e, quando estava de pé junto à cama à espera de sua bênção final, demarcou as fronteiras e instalou seu fetiche Tano Kofi no extremo ocidental
ele me espiou por sobre o jornal, com os óculos equilibrados na ponta do nariz, da fronteira. (...) Esse povoado recebeu o nome de “Nyaduom”, ou lugar dos
e declarou: “Não desonre o nome da família” Em seguida, voltou à leitura. ovos do pomar.
Confesso que fiquei surpreso com essa ordem, a tal ponto ela fazia eco a um
Mas, se ele sabia com clareza que essa era sua família, sabia com igual clareza
antigo paterfamilias vitoriano (ou, talvez, aos originais romanos que meu pai
que nós também o éramos. Num caderno de notas que encontramos após sua
conhecia de sua formação colonial nos clássicos). Mas, acima de tudo, fiquei-
morte, ele escrevera uma mensagem para nós, seus filhos, contando-nos a his-
me indagando o que ele pretendera dizer. Estar-se-ia referindo à família de mi-
tória de sua abusua, da família de nossa mãe, de seu pai e de suas esperanças
nha mãe (cuja tradição de erudição universitária ele sempre me incitara a imi-
para nós. E a ternura de seu tom cra ainda mais marcante. Referindo-se a seu
tar), uma família cujo nome eu não portava? Será que se referia à sua própria
próprio pai, escreveu:
abusua (que, por tradição, não era em absoluto minha família), a partir da qual
ele me dera o nome de Anthony Akroma-Ampim? Pretenderia referir-se a seu Não tive a sorte de conhecê-lo tão intimamente quanto vocês me conhece-
sobrenome legal, Appiah, o nome inventado para ele quando as autoridades co- ram, e por duas razões: ele era reservado e, além disso, não era o costume
loniais britânicas resolveram (segundo seus próprios costumes) que devería- aqui, na época, um pai familiarizar-se demais com os filhos, por medo de
mos ter sobrenomes “de família”, e que o nome “de família” deveria ser o nome gerar desprezo.
do pai? Quando a tradição familiar do pai nos insere no clã materno e a da mãe Em sua autobiografia, ele também nos contou como fora reconhecido como
nos reivindica para o pai, essas dúvidas, suponho, são bastante naturais. chefe de sua abusua após o funeral de seu predecessor (o homem em cuja ho-
Papai, em contraste, não se afligia com essas incertezas. Ele era o chefe de seu menagem também recebi meu nome — Yao Antory, depois corrompido para
clã materno, sua abusua, o clã materno de Akroma-Ampim, em homenagem a Yao Antony, e anglicizado em minha certidão de batismo para Anthony —, cujo
quem, como eu disse, recebi meu nome. Na autobiografia que foi seu último apelido era “Príncipe Mercador”: um negociante que, embora analfabeto, diri-
legado a nós, ele escreveu: gira um vasto império):
Meus ancestrais matrilineares estiveram entre os primeiríssimos akans do As cerimônias do dia seguinte começaram por volta das 6:00h da manhã.
grande clã de Ekuona (Vaca do Mato), que se estabeleceu originalmente em À nossa frente — dos anciãos, minha irmã e eu — ia um homem carregando
Asokore, a umas 26 milhas de Koumassi, muito antes de Achanti ter sido o cordeiro do sacrifício e uma garrafa de genebra. A poucas jardas do largo
criada como nação pelo grande Rei guerreiro, Osei Tutu, e seu grande Feiti- rio, vi um enorme crocodilo de boca escancarada, dançando em círculos no
ceiro, Okomfo Anokye. No correr do tempo, alguns de meus ancestrais mu- meio das águas. (...) Encerrada a libação çom o genebra, os mais velhos den-
daram-se para Fomena e Adanse, onde outros membros do clã haviam-se tre os anciãos e eu, cada um segurando duas pernas, atiramos o cordeiro no
instalado anteriormente. Da longa linhagem de ancestrais, Akroma-Ampim rio, para que fosse agarrado, para minha felicidade, pelo crocodilo dançante.
(“o gavião nunca se detém em seu vôo”) e sua irmã Nana Amofa juntaram- Após três mergulhos, seguidos por uma dança circular, o crocodilo desa-
se, mais tarde, a essa migração para Fomena e estabeleceram a reputação da pareceu, abocanhando o cordeiro entre suas poderosas mandíbulas. Come-
família e deles mesmos em Mfumenam, em Adanse, algum tempo bem antes çaram os tiros de mosquete, em meio à entoação de cânticos de guerra, en-
do início do século XIX. (...) quanto fazíamos o percurso de volta. Ficara comprovado que eu era o
Sendo um grande guerreiro, Akroma-Ampim recebera mil “escravos” pes- legítimo e verdadeiro sucessor de meu recém-falecido tio-avô, na longa li-
soais como recompensa por seu mérito em várias guerras. Todos estes eram nhagem até Akroma-Ampim. Agora, cada palavra minha seria lei — sem
homens capturados em batalhas e, portanto, eram um grande patrimônio jamais ser questionada enquanto eu respirasse o sopro da vida.”
para um guerreiro-aventureiro. Meu ancestral instalou esses homens em
Mfumenam, um cinturão florestal na margem do rio Offin do lado de Adan- Meu pai reencontrou sua família no funeral de seu tio-avô; no funeral dele,
se. Todos os dias, ele observava a vasta floresta despovoada do outro lado do aprendi mais sobre essa família e descobri sob que aspectos ela era e não era a
grande rio, até que seu espírito aventureiro o fez decidir-se a atravessá-lo com minha.
suas irmãs e os homens para ocupar toda a área. (...) Tomadas todas as pre-
cauções contra qualquer eventualidade, ele e seu valente bando de mil ho- No codicilo de seu testamento, meu pai instruiu sua igreja e “minha amada es-
mens partiram para as novas terras, levando à frente seus famosos fetiches de posa, Peggy” a executarem todos os ritos associados a seu funeral. Nada de espe-
guerra Anhwere e Tano Kofi. (...) Satisfeito com o que havia conquistado, ele cial a assinalar nisso, pensariam vocês; mas, dada a centralidade da abusua em
256 Na casa de meu pai Epílogo 257

Achanti (uma centralidade muito claramente descrita no relato de meu pai so- marrom escuro tradicionais, que retratam a inevitável transição do homem
bre suas origens), não é de surpreender que, segundo o costume achanti, o fu- como um espectro lúgubre.
neral fosse problema deles. Na prática, isso costuma significar um assunto dos
irmãos e irmãs do sujeito (ou dos filhos das irmãs de sua mãe), juntamente com Apesar do codicilo de meu pai, nem minha mãe nem a igreja procuraram, a
a mãe do morto e as irmãs e irmãos dela, se estiverem vivos. Uma vez que O princípio, excluir a abusua das providências fúnebres. Antes, tínhamos a es-
sujeito pertence à abusua da mãe, a viúva e os filhos pertencem a uma família perança de incluí-los numa demonstração pública de solidariedade em torno
diferente da do marido e pai. É claro que a viúva e os filhos de um morto fazem do caixão. Olhando para trás, parece-me perfeitamente natural que as ofertas
parte da organização de um funeral achanti. Mas não o controlam. que lhes fizemos fossem rechaçadas. Não importa que datas sugeríssemos, por
Naturalmente, nessas circunstâncias, o codicilo não agradou à abusua e, em exemplo; a abusua propunha outras. Não era uma questão de conveniência,
particular, desagradou à irmã de meu pai, minha tia Victoria; e ela e seu irmão mas de controle.
Jojo estavam decididos a retirar da igreja, da viúva e dos filhos o controle do
funeral. Seu desagrado agravou-se pela inescapável publicidade do repúdio ma- Passada uma semana da morte de papai, parecia que o mundo à nossa volta
nifestado a eles por meu pai em seu leito de morte. É que o funeral, como des- tomara partidos. De um lado estavam a igreja e seus líderes, o Rev. Dr. Asante-
pedida de um estadista ganês, cunhado do rei, advogado eminente e membro de Antwi, Administrador da Comarca, e o Rev. Dr. Asante, pastor da Igreja Me-
uma importante abusua, era, inevitavelmente, um acontecimento público. todista Wesley, além de minhas irmãs e eu. (Tanto quanto possível, mantivemos
Através de uma longa carreira na vida pública, Papa (ou Paa) Joe, como ele era minha mãe fora da disputa.) Uma vez que a igreja tinha a preocupação profis-
conhecido, era uma personalidade famosa em Gana. Seus arroubos de eloqiiên- sional de conciliar divergências e que eu era o primogênito de minha mãe e seu
cia no parlamento, nos comícios populares ou quando ele pregava na igreja, sua único filho varão, a liderança do “nosso” lado — na medida em que implicava
resistência implacável às políticas governamentais que desaprovava, suas ane- um confronto — recaiu sobre mim. (Jamais confunda uma sociedade matri-
dotas maliciosas: uma centena de histórias em milhares de bocas cercaria seu linear com uma sociedade em que as mulheres detêm o controle.)
caixão. As cerimônias fúnebres eram uma oportunidade para as câmeras da te- Na liderança do “lado” oposto estava a irmã de meu pai, Victoria, cujo mari-
levisão nacional; para artigos nos jornais ganeses que contaram histórias co- do era o Asantehene, nosso rei. Ela talvez seja a pessoa mais poderosa do reino.
nhecidas, demonstrando a reputação de incorruptibilidade de meu pai; para (Jamais presuma que mulheres isoladas não possam conquistar o poder no pa-
histórias da corrupção que ele havia extirpado, dos subornos lendários de que triarcado.) Na época em que começamos a tomar as providências, Tia Vic co-
fizera chacota. Houve longos obituários na imprensa nacional e internacional; meçara a mobilizar o poder considerável do trono (ou do “banco”, como dize-
mais tarde, haveria editoriais sobre o funeral. Retirar a abusua do controle nor- mos em Achanti), numa tentativa de retirar de nós o controle do funeral.
mal implicava, inevitavelmente, um fator de desonra pública. O pivô imediato da discussão parece banal. Decidimo-nos pela quinta-feira,
Era fatal que a especulação sobre os motivos de meu pai para excluir sua 26 de julho de 1990, como data do sepultamento de meu pai, o que já seriam
abusua de suas exéquias corresse à solta. Também eu especulei, já que ele nunca dezoito dias após sua morte. Isso significava que a noite de quarta-feira seria a
me explicou sua decisão diretamente. No entanto, eu sabia, como quase todo do velório; sexta-feira seria um dia de descanso; no sábado viria o ayie, o funeral
mundo em Koumassi, que ele tivera uma briga com minha tia por propriedades achanti tradicional; e no domingo, a cerimônia de Ação de Graças. Estávamos
legadas a eles e à irmã de ambos, Mabel, no testamento de meu tio-bisavô, Yao ansiosos por dar o funeral por encerrado, em parte porque parecia que, quanto
Antony. Todos sabíamos, igualmente, que minha tia se recusara a visitar e fazer mais esperássemos, maior seria a probabilidade de que a igreja fosse obrigada a
as pazes com o irmão, mesmo em seu leito de morte. ceder e deixar que a abusua assumisse o controle; em parte por considerações
Meu pai tinha opiniões formadas sobre seus ritos fúnebres. Em sua autobio- práticas de ordem diversa; e em parte, pela razão normal de que a expectativa
grafia, escreveu: do funeral, até que ele estivesse encerrado, continuaria a ser uma fonte de ten-
A exibição dos cadáveres a todo e qualquer um, antes do enterro, e as desne- são e angústia. Havíamos explicado nossas razões à abusua em várias ocasiões,
cessárias e elaboradas celebrações fúnebres posteriores sempre me angustia- em diversos encontros, e eles pareciam ter aquiescido. E então, na semana ante-
ram; assim, peço solenemente que esses ornatos abomináveis sejam evitados rior à data marcada para o funeral, chegou uma mensagem convocando minhas
em meu falecimento. Quero que meus familiares e amigos lembrem-se de irmãs e eu para uma reunião às 11:00h, no palácio do rei de Achanti — o
mim como fui antes de morrer, e que se vistam de branco, em vez do preto e Asantehene — em sua capital, nossa cidade natal de Koumassi.
258 Na casa de meu pai Epílogo 259

A convocação não era de todo surpreendente. Havíamos começado a ouvir Fôramos até lá decididos a não deixar que a igreja fosse pressionada a alterar o
rumores de que o Asantehene estava fazendo objeção às datas sugeridas por que havíamos combinado. Naturalmente, nós mesmos não tínhamos nenhu-
nós, porque planejava celebrar o aniversário de sua ascensão ao trono na sexta- ma intenção de ser pressionados. Mas aquela congregação de notáveis era im-
feira, 27 de julho, o que colocaria a comemoração exatamente no dia seguinte pressionante, e fora concebida para intimidar. Segundo o costume, a cada vez
ao do enterro. que meu tio, o rei, fazia uso da palavra, seu Lingiista-Mor dirigia-se a nós na
Ainda que, como suspeitávamos, esse evento tivesse sido criado como um versão formal de seus ditos, em seu belo twi palaciano. E, à medida que ele
pretexto, tínhamos que levar o assunto a sério, pois sabíamos que a igreja o fa- falava, os outros emitiam várias palavras e sons para frisar os pontos funda-
ria. Obedecemos à convocação de Nana.* mentais: “Ampa, é verdade”, diziam três ou quatro deles; ou “Hwiem”, uma es-
pécie de pontuação do ouvinte, um ponto de exclamação ao final de algum
Fomos acompanhados ao palácio pelo melhor amigo de meu pai, o Tio T. D., enunciado significativo. (Se você quiser saber de onde vem a tradição da igreja
um jornalista que estivera ao lado dele em sua morte. Depois de sermos manti- afro-americana, com seus gritos de “testify” [testemunhai!], talvez possa co-
dos aguardando por algum tempo (sem dúvida, para deixar claro quem dava as meçar investigando por aí.)
ordens), fomos convocados, junto com o comitê da igreja, ao imenso salão do Baffuor Akoto fora claramente instruído pelo Asantehene sobre o que ele
palácio; era um aposento enorme, com suas duas áreas de assentos, cada qual tinha a dizer. Explicou-nos, como esperávamos, o problema referente ao confli-
centrada num gigantesco tapete oriental e cercada por móveis caros, imitando to com o aniversário. Obviamente, Nana queria comparecer a tantas das ceri-
antiguidades, que pareciam ter vindo da [loja] Harrods, de Londres (provavel- mônias associadas à morte de seu cunhado quantas lhe fosse possível. Mas, não
mente porque vieram). Meu tio, Otumfuo Nana Opoku Ware II, o Asantehene, poderia comparecer nos trajes celebratórios brancos a um ofício fúnebre; e difi-
já estava sentado no meio do salão. cilmente poderia comparecer em trajes de luto à comemoração de suas duas
Estava cercado pela maior coleção de membros da corte que eu jamais vira décadas no banco. A determinação da data estava nas mãos da igreja. Nana não
no palácio. Sentados em duas fileiras à sua direita estavam cinco ou seis lin- nos pediu para alterar nada. Chamara-nos apenas para nos dar conhecimento
gúistas, chefiados por Baffuor Akoto, que fora o Lingiiista-Mor do último rei. de seu problema.
O Sanahene, chefe do tesouro, e seu colega, o Banahene, também se achavam Foi-me impressionante observar como, mesmo nessa demonstração de po-
presentes, e havia outros que reconheci, mas cujos nomes não sabia. Atrás do der, a realeza achanti funciona hoje (como talvez sempre tenha funcionado)
Asantehene e sentado à sua direita estava o Juabenhene, cujo banco é “tio” do através de uma espécie de eufemismo. Não havia ordens ali; não havia o reco-
Banco de Ouro. Nana Juabenhene fora meu colega na escola primária e depois nhecimento de nenhum conflito. Nana compareceria a tudo o que pudesse do
estudara engenharia na Universidade de Ciência e Tecnologia de Koumassi. funeral, disseram-nos. Obviamente, se o adiássemos, ele poderia comparecer a
Embora, como eu, estivesse em meados da casa dos 30 anos, a senioridade de tudo. Mas a decisão era nossa.
seu banco e seu parentesco com o Asantehene significavam que ele era um chefe Os homens da igreja tentaram explicar o raciocínio por trás da escolha das
muito importante. Havia outros chefes em volta, inclusive Nana Tafohene, che- datas, e foram interrompidos de tempos em tempos por minha tia; ela foi bem
fe de um vilarejo nos arredores de Koumassi, um advogado num terno formal menos eufemística em suas solicitações. Por que eles não se dispunham a fazer
que, presumivelmente, havia usado no tribunal naquela manhã. À esquerda do essa coisinha de nada por Nana?
rei (que, por sua vez, estudara direito na Inglaterra) e a alguns pés de distância Os membros do comitê eclesiástico respondiam polidamente, mas com fir-
sentava-se minha tia, também numa cadeira semelhante a um trono. Quando meza decrescente, a todas as perguntas que lhes eram formuladas; e, a certa al-
estávamos prestes a começar, Tio George, chefe da abusua de meu avô, filho do tura, pareceu-me que talvez estivessem começando a vacilar. Vimo-nos ante a
rei anterior e homem de confiança de minha tia, entrou pelas portas envi- perspectiva de um funeral adiado por semanas por minha tia, enquanto ela se
draçadas à nossa direita e sentou-se numa cadeira ao lado dela. esforçava por desfazer os efeitos do codicilo de meu pai.
Nos sofás e poltronas dispostos em ângulos retos em relação a eles e ao rei, À medida que esse espetáculo prosseguiu, minhas irmãs e eu fomos ficando
de frente para as fileiras cerradas dos lingúistas e outros membros da corte, irritados. Os cochichos delas em meus ouvidos foram-se tornando cada vez mais
estavam os membros do comité fúnebre da igreja e os reverendos Asante-Antwi prementes. Por fim, quando a indignação havia-se transformado na emoção
e Asante. pouco familiar da ira, quando o sangue martelava em minha cabeça, não pude
agúentar mais. Essa disputa pelo cadáver de meu pai (como me pareceu), por
Epílogo 261
260 Na casa de meu pai

direito com a mão sobre ele, e dizendo a fórmula tradicional de desculpas: —


pessoas que haviam ignorado seu sofrimento quando ele estava vivo, aparente»
Dibim. — Juntei-me a eles, meio desajeitado, por insistência do Tio T. D. Teria
mente sem se preocuparem com aqueles de nós que o havíamos amado e cuida- eu desonrado o nome da família, afinal?
do dele, foi mais do que eu podia suportar. Se eu acreditasse em possessões, diria Nana falou.
que estava possuído. Apesar de anos de treinamento na deferência à realeza
— Trancamos o que houve aqui numa caixa e jogamos fora a chave — disse.
achanti e suas instituições, não pude me conter. Pus-me de pé, havendo a violên- E pretendeu dizer: o assunto está encerrado.
cia de meu gesto interrompido, penso eu, o pobre e velho Baffuor Akoto (amigo Não poderia ter estado mais equivocado.
e aliado político de meu pai durante longos anos); e andei até a extremidade do
Ao nos retirarmos em fila rumo à tarde ensolarada e entrarmos em nosso
tapete mais próxima da porta, com minhas irmãs a meu redor, antes de falar.
carro, tentando ficar calmos e nos preparando para partir, um dos criados do
— Todos aqui sabem o que está acontecendo, e minhas irmãs e eu não var
palácio esgueirou-se até o carro em que estávamos sentados. “Waye adeg”, disse
mos ficar sentados e deixar que aconteça. Aquela mulher — disse eu, apontan-
ele, sorrindo e segurando minha mão. “Você fez alguma coisa”, que é a maneira
do para minha tia — e aquele homem — desta vez apontando para seu aliado,
akan de dizer “muito bem”, Não estava expressando nenhuma hostilidade ao rei:
o Tio George — estão tentando usar Nana para lograr seu intento; para obrigar
estava nos dizendo que ele, como muitos outros no palácio, achava que já era
a igreja a fazer o que eles querem. (Não estávamos dispostos a apoiar tamanho tempo de alguém dizer à mulher do rei que parasse de abusar do poder de Nana.
abuso do banco; iríamos embora. A essa altura, minhas irmãs, em prantos, tam»
Ele estava falando por preocupação com o rei e por respeito ao banco; e, quem
bém gritavam com eles: — Por que vocês estão fazendo isso conosco?) sabe, por amor a meu pai.
Sobreveio um pandemônio. Na história da corte, disseram-nos depois, nun-
Poucas horas depois, vieram a nossa casa pessoas de toda a cidade, para in-
ca ninguém jamais abandonara a presença do rei. Ao nos precipitarmos para
dagar sobre nossa versão do ocorrido e para me dizer “Waye adeg”. Alguns da
nosso carro, uma multidão de agitados membros da corte correu atrás de nós,
família sugeriram que agora eu seria a escolha óbvia para um banco — uma
precedida pelo Tio T. D.
chefia — na aldeia ancestral de Nyaduom. (O fato de eu não pertencer à sua
— Você não pode ir embora — disse ele. — Não pode sair assim.
abusua foi posto de lado. Era como se, para eles, eu me houvesse tornado real-
Meu amigo de infância, o Juabenhene, juntou-se a ele:
mente um achanti, no ato de me opor à tradição achanti.) Estavam-me cha-
— Você tem que voltar. Você deve isso a Nana.
mando de volta, reivindicando o menino a quem haviam conhecido como um
Eu lhe disse que realmente fora criado para respeitar o banco e seu ocupante;
dos seus. Curiosamente para muitos, a ousadia na corte transformou-me uma
que ainda estava tentando fazê-lo, mas que o banco estava sendo “espoliado” espécie de herói.
por minha tia; e que, depois do que tinha visto naquele dia, era-me difícil res-
Estava claro que muita gente queria que soubéssemos que eles reprovavam a
peitar o próprio Nana. Nana Juabenhene mostrou-se solidário.
campanha de minha tia; contaram histórias de como ela influenciara Nana a
— Mas — insistiu —, você não pode sair assim. Tem que voltar.
tomar decisões ruins em disputas pelas chefias; deixaram implícito que as deci-
Depois de alguns minutos que transcorreram como horas, estávamos sufi-
sões dele podiam ser compradas, mediante o suborno de sua mulher. Essas eram
cientemente recompostos para tornar a entrar no palácio.
acusações que eu nunca tinha ouvido; antes, eu fora um de seus sobrinhos favo-
— Não se preocupe — disse Tio T. D. — O que você fez há de ter ajudado.
ritos, o único filho varão de seu irmão predileto. Agora que estávamos em lados
Agora, todos sabem quão firme é sua opinião. Mas você tem que voltar e termi-
opostos, eu podia ouvir essas histórias. Verdadeiras ou não, elas revelavam um
nar isso.
grau de hostilidade para com minha tia e de desprezo pelo rei que eu desconhe-
Quando entramos e todos se instalaram, Nana Tafohene ergueu-se a nossa
cia por completo. Alguém chegou a dizer: “É melhor ela sair depressa da cidade
direita. Dirigiu-se a Baffuor Akoto, como Lingúista-Mor, pedindo perdão a
quando Nana se for”, com isso rompendo o tabu contra a menção da morte do
Nana pela exibição desonrosa que acabara de acontecer. No auge da peroração
Asantehene e, ao mesmo tempo, proferindo ameaças contra sua mulher.
de Nana Tafohene, ele comentou sobre minha transgressão:
— É claro que deveríamos surrá-lo com barras de ferro até ele sangrar. Mas
Mas, até eu sabia como era difícil trancar as coisas numa caixa em Achanti.
— acrescentou, após uma pausa magistral —, ele é nosso filho, e isso só nos
Acostumara-me a isso fazia muito tempo. Lembro-me de quando, uns quinze
faria ter que cuidar de suas feridas.
anos atrás, estive hospedado em Koumassi com um amigo inglês da faculdade.
Depois, todos os membros do comité da igreja e da abusua (até mesmo mi-
Na época, eu estava lecionando na Universidade de Gana e meu pai era ministro
nha tia) levantaram-se e imploraram perdão em meu nome, dobrando o joelho
262 Na casa de meu pai Epílogo 263

do governo, trabalhando “no Castelo”, a sede do governo no antigo castelo O fato de eu mesmo não acreditar em magia estava curiosamente fora de
escravagista holandês de Christiansborg, em Acra. Meu amigo James e eu está- questão. Era minha responsabilidade responder à ameaça espiritual, como
vamos sozinhos em Koumassi para o fim de semana — sozinhos, bem entendi- chefe local de nossa abusua e único varão (e portanto, suponho, o de maior
do, exceto pelo motorista, o cozinheiro e nosso camareiro —, já que meus pais senioridade). E daí, se os membros do “nosso” lado fossem surrados na rua
estavam ambos fora. James pediu para ser levado às discotecas de Koumassi. por legalistas do “lado” oposto? O juju, pelo menos, seria combatido pelo
— Ótimo — eu disse. — Peça a Boakye, nosso motorista, para levá-lo. Ele contra-juju.
vai gostar.
No alvorecer do dia seguinte, meu pai, então ministro de governo, telefonou Entrementes, histórias ainda mais inquietantes começaram a circular: que Tio
de seu escritório na capital. Recebera a notícia de que nosso carro fora visto Jojo estava providenciando um bando dos homens notoriamente violentos de
numa parte “estranha” da cidade na noite anterior. Que estivera fazendo? Meu Adum para “segiestrar” o corpo, quando ele chegasse, e levá-lo embora.
pai lembrou-me que nosso carro seria reconhecido onde quer que fosse; pediu Falava-se também em ameaças aos interesses comerciais dos membros da
que eu guardasse isso em mente ao decidir onde mandar o motorista; e voltou a comissão funerária, aos padres e ao administrador da Comarca; no domingo
suas investigações sobre as transações financeiras de mais uma multinacional anterior à data para a qual fora marcado o funeral, fomos informados de que
desonesta. alguém entrara na sacristia da Igreja Metodista Wesley e tentara bater num dos
No café da manhã, falei com James sobre o telefonema do raiar do dia. Onde pastores. Estes vacilaram; sua tarefa era conciliar divergências, e não participar
ele tinha ido? James não sabia dizer ao certo, mas as mulheres tinham sido mui- de hostilidades. Eles me exortaram a ter abotare, uma virtude twi que se costu-
to amáveis. E, desse dia em diante, ele passou a se locomover de táxi. O nome da ma traduzir por “paciência”. Foi uma palavra que veio à baila com frequência
família não seria desonrado. nos dias que se seguiram. Minhas irmãs e eu concordamos em que, se havia
uma palavra que gostaríamos de ver expurgada da língua, era essa. Em nome da
A abusua não se limitou a apelar para os poderes terrenos. No auge das tensões, abotare, as pessoas se dispunham a esperar e ouvir, enquanto a abusua em geral,
meu parente Kwaku veio da casa familiar para nos dizer que um carneiro fora e Tio Jojo em particular, tiravam vantagem repetidamente de nosso desejo de
abatido e enterrado lá, no pátio principal, e que se haviam feito feitiços contra chegar a um acordo com eles. Em parte, era em nome da abotare que os abusos
nós depois do sacrifício. Reunimo-nos a Kwaku e outros membros preocupados de minha tia para com o banco eram tolerados: com o tempo, pensavam todos,
de nossa família no patamar da escada, sussurrando para não perturbar minha isso também passaria. Exortar a abotare, ao que me parece, é fazer o que preten-
mãe, lá em cima, e para não ser ouvidos pelas pessoas enlutadas que se reuniam dem os camponeses muçulmanos quando dizem “se Alá quiser”: é deixar nas
no saguão e na sala de jantar, lá embaixo. Kwaku sairia prontamente para pro- mãos dos deuses o que pode estar na esfera da ação humana. Mas, às vezes, acho
curar um malam, um curandeiro muçulmano, que pudesse trazer algum an- eu, o que eles realmente queriam dizer não é “tenha paciência”, mas “continue a
tídoto. Uma galinha branca e algumas pombas seriam sacrificadas. O consenso buscar um acordo”.
ficou com Kwaku; obviamente, algum tipo de sacrifício contrário fazia-se ne- Queríamos sepultar nosso pai nos termos dele (ou, pelo menos, nos nossos):
cessário. Eu o providenciei. os sacerdotes queriam manter a paz. Queríamos o que julgávamos legítimo e
Tratava-se de uma forma de remédio com que meu pai tivera grande expe- justo; eles queriam uma solução que lhes permitisse um convívio pacífico. Esse
riência em sua meninice em Adum, “o centro e o coração de Koumassi, e até de é um velho confronto entre os “direitos abstratos” e a “comunidade social”, uma
Achanti”. oposição muito cara aos antropólogos jurídicos* que nos exortam a ver “valores
comunitários africanos” expressos em nossos métodos de arbitragem e em nos-
Nós, a verdadeira juventude de Adum, passávamos a maior parte do tempo sa hostilidade para com o sistema jurídico colonial. Entretanto, quando me per-
aprendendo a lutar, antecipando-nos aos frequentes ataques que fazíamos a gunto de onde veio meu próprio interesse pelos direitos abstratos, minha pró-
cidadãos de outras áreas de Koumassi que julgávamos serem colaboradores
pria paixão pela justiça, creio que devo responder que não o recebi de minha
dos usurpadores britânicos em nosso meio. Para garantir a vitória em todas
escolarização britânica, mas do exemplo de meu pai. E muitas vezes, ao que me
as ocasiões, nossos líderes nos forneciam juju, que esfregávamos em nossas
cabeças raspadas e no corpo, e que se destinava a quebrar ou desviar as garra-
fas ou outros projéteis atirados em nós pelo inimigo. Para esse e outros fins,
nenhuma galinha estaria realmente segura à noite. * Especialistas em sistemas jurídicos nativos. (N. da T.)
164 Na casa de meu pai Epílogo 265

parece, como nesse caso, aqueles que exortam a conciliação como uma virtude vam e diminuíam de volume, Tio George, chefe da abusua de meu avô, deu um
africana estão apenas apoiando uma conciliação com o status quo, uma conces- passo à frente para verter as libações. (Tio Jojo ficou pairando ali por perto,
são aos que têm dinheiro e poder; e um pouquinho de interesse pelos direitos obviamente ansioso por exercer suas prerrogativas de herdeiro presuntivo e
abstratos pode refletir, não uma mente colonizada, mas o anseio de tomar par- autodesignado da chefia da abusua, mas também cônscio de que sua participa-
tido contra os poderosos, e de “dizer umas verdades ao poder”. ção naquele momento não seria bem-vinda. Não que ele houvesse perdido
tempo: descobrimos, mais tarde, que tinha passado o tempo em que estivéra-
Eu havia rompido com meu rei, com a abusua de meu pai. Havia irritado a irmã mos em Acra tentando encontrar um advogado que impetrasse um mandado
de meu pai, em si uma mulher poderosa. Não se faz isso impunemente. Quando para impedir o sepultamento. Como a Ordem dos Advogados estivesse envol-
entregaram comida do palácio em nossa casa, houve quem nos dissesse que, vida nos arranjos do funeral — o presidente da Ordem Nacional, o diretor da
muito provavelmente, ela estaria envenenada (por meio de feitiçaria, é claro). Ordem dos Advogados de Achanti e outros advogados sêniores deveriam car-
Tia Vic fez sentir seu peso por toda a cidade, sendo transportada num dos auto- regar o caixão à saída da igreja —, todos os advogados de Koumassi estavam
móveis de sua frota de Mercedes Benz, cultivando uma aura levemente pluto- cientes do que vinha acontecendo; e, surpreendentemente, Jojo não conseguiu
crática. O desagrado da abusua também não era coisa em que se incorresse com encontrar um único dentre eles que se dispusesse a entrar com o recurso.)
leviandade. Minha prima Nana Ama, que eu sempre considerara generosa e
acomodada, revelou a intensidade dos sentimentos da abusua ao nos advertir Nossa casa é uma construção erguida por meus pais pouco antes da indepen-
friamente a considerarmos o bem-estar futuro de mamãe. “Tomem cuidado”, dência. No térreo, duas portas se abrem da varanda fronteiriça, uma para a casa,
disse ela a minhas irmãs e a mim. “Vocês não moram aqui. Estamos aqui com outra para o escritório advocatício de meu pai. Quando crianças, costumáva-
sua mãe” Quando minhas irmãs a desafiaram a dizer diretamente se estava mos ir para a escola, de manhã, passando pelas muitas pessoas reunidas naquela
ameaçando mamãe — quando lhe perguntaram se estava lembrada de como varanda, desde as primeiras horas do amanhecer, para consultá-lo. Muitas delas
minha mãe havia zelado por sua educação —, ela gritou defensivamente que eram extremamente pobres e, em vez de dinheiro, levavam galinhas, inhame ou
“tinha dito o que dissera”. tomates, pois sabiam que meu pai nunca insistia em ser pago. Às vezes, as pesso-
as que chegavam não eram clientes, mas eleitores que haviam caminhado mi-
No dia em que retiramos os restos mortais de meu pai em Acra e os levamos de lhas, desde o lago Bosomtwi, para tomar um “mammy-wagon” até a cidade e
volta num avião militar, o principal editorial do Ghanaian Times intitulou-se pedir a ajuda de meu pai em tratativas com o governo; outras vezes, não eram
“A lição de Paa Joe”; ele tomou explicitamente nosso partido contra a abusua. eleitores, mas pessoas de Nyaduom que iam buscar uma decisão sobre direitos
Os desejos do homem deviam ser respeitados, insistiu. Inimigos poderosos, da terra, ou ajuda para conseguir a abertura de uma estrada, para que pudessem
nós os tínhamos; mas também estava claro que contávamos com o sentimento transportar suas safras em caminhões, em vez de fardos sobre a cabeça.
popular a nosso favor. Sobrevoando o Sul de Gana rumo a Koumassi, numa O caixão de meu pai foi levado para dentro por sob a árvore que minha avó
viagem que eu não fizera de avião por quase duas décadas, pudemos ver as inglesa plantara em sua primeira visita aquela casa (uma árvore em que, quan-
estradas de laterita vermelha serpenteando pelas florestas até os vilarejos e ci- do menino, eu fingia ser Tarzan, balançando-me nos galhos, alheio à política
dades de Akwapim e Achanti. Quando nossa cidade surgiu no horizonte, pude cultural de minha brincadeira), subiu os degraus da varanda e passou pelo es-
ver o quanto havia crescido nos últimos anos, reunindo a seu redor uma faixa critório em que papai fora o Sr. Joe Appiah, Advogado e Procurador da Supre-
de novas habitações que se estendiam até o que antes tinham sido fazendas na ma Corte de Gana em seus Salões de Audiência de Ekuona; Digníssimo Mem-
floresta. Ao aterrissarmos na pista, vimos as centenas de pessoas reunidas no bro do Parlamento por Atwima-Amansie, conhecido como o Leopardo, 9sebo,
aeroporto, em vestes vermelhas e pretas; os sacerdotes com suas túnicas; e O por sua oposição destemida ao governo; Opanin Kwabena Gyamfi, herdeiro de
carro fúnebre esperando pelo caixão na parte asfaltada da pista. A maior parte Akroma-Ampim, ancião e dono hereditário de Nyaduom. Ao entrarmos em
de nosso grupo desceu pela porta traseira do avião, mas alguns de nós nos reu- casa, ele voltou a ser mais uma vez o Joe de minha mãe e nosso papai.
nimos na frente, perto da porta de carga: desci num salto os poucos degraus Houve sonoros toques de tambor e um choro ainda mais alto quando o cor-
que me separavam da pista asfaltada, com a túnica negra que vestia esvoaçando po foi introduzido na casa, nos ombros de meia dúzia de rapazes com panos
atrás de mim, e esperei para levantar o caixão. Nós havíamos conseguido. amarrados na cintura, alguns da casa de minha avó por afinidade, outros, sim-
Trouxéramos papai para casa. Enquanto os lamentos das carpideiras aumenta- ples vizinhos de rua. Amarrei meu próprio pano na cintura e me juntei a eles.
266 Na casa de meu pai Epílogo 267

Na sala de jantar, erguera-se uma plataforma cercada de flores. Ali depositamos Todas as identidades com que meu pai se importara achavam-se encarnadas a
o corpo, com o caixão coberto pelo kente mais fino de meu pai, e abrimos a nosso redor: advogado, homem de Achanti, ganês, africano, internacionalista;
janelinha acima de sua cabeça, para podermos ver seu rosto. estadista e homem da igreja; homem de família, pai e chefe de sua abusua; ami-
Um ano e meio depois de haver adoecido na Noruega, quase um ano depois go; marido. Somente algo tão particular quanto uma vida única — como a vida
de haver retornado a Acra, nosso pai, herdeiro de Akroma-Ampim e Yao Antony, de meu pai, encapsulada no complexo padrão de relacionamentos sociais e pes-
Opanin Kwabena Gyamfi — vulgo Oseba, o Leopardo, Papa Joe e Pops — estava soais que cercavam seu ataúde — seria capaz de captar a multiplicidade de nos-
em casa pela última vez. sas vidas num mundo pós-colonial.
“Tive que bancar o homem e conter as lágrimas da melhor maneira possí-
Às 10:00h do dia do funeral, a igreja estava repleta e o Asantehene e sua rainha- vel”, escrevera meu pai sobre o funeral de Yao Antony. “Não era costume o chefe
mãe estavam sentados em seus assentos reais, com minha tia Victoria entre eles. de uma família ou um líder de homens derramar lágrimas em público.”* Não
(Alguém nos disse depois que, num dado momento do ofício, quando minha me saí tão bem nessa continência achanti.
tia começou a chorar, a rainha-mãe voltou-se para ela e perguntou: “Por que
você está chorando? Morreu alguém que você conheça?” Foi uma reprimenda Do lado de fora, o povo, milhares e milhares de pessoas que haviam gritado à
régia a minha tia por suas tentativas de impedir o funeral.) Os bancos que ha- nossa chegada “Pops, O, Pops”, o lema dos amigos de meu pai, passaram a gritar
víamos reservado para os VIPs estavam vazios, exceto pelo presidente da Acade- “7.7.5.1” (as iniciais de Rawlings), enquanto seu cortejo se retirava. De algum
mia Ganesa de Artes e Ciências, Dr. Evans-Amfom, um amigo da família desde modo, fomos conduzidos às pressas por entre a multidão (muita gente vestindo
os tempos em que fora vice-reitor da Universidade de Koumassi. Quando ces- as túnicas branco-e-preto que havíamos pedido — celebrando a vida dele,
saram os acordes do primeiro hino, houve bastante barulho do lado de fora, pranteando sua morte —, e muitos com os trajes comuns do luto, marrons e
inclusive sirenes e sons de uma multidão que aplaudia. Uma pessoa com apa- vermelhos) até a delegacia central de polícia, onde nosso carro se encontrava
rência de diplomata encaminhou-se da porta lateral até o Reverendo Asante e estacionado; depois, acompanhamos o carro fúnebre, liderados por batedores
os dois cochicharam por um momento. Ao final do versículo, este disse: “Por de motocicleta que iam abrindo caminho. Passamos pelo tribunal onde meu
favor, queiram todos levantar-se para receber o chefe de Estado e presidente do pai defendera tantos casos, descemos pela rua principal de Koumassi, a Kings-
PNDC, o capitão-aviador Jerry Rawlings e seu grupo” way, e passamos por Adum, onde ele havia nascido, ladeados por uma multidão
Foi um momento eletrizante, pois as considerações de segurança significa- de curiosos; percorremos os arredores de Kejetia, com sua imensa escultura
vam que quase ninguém fora informado de que ele compareceria. O chefe de central — um operário, um soldado e um agricultor, simbolizando nossa nação
Estado entrou, vestindo um traje civil aberto no pescoço, acompanhado por um — ,, e seguimos pela estação rodoviária de onde milhares de pessoas partem dia-
membro civil do governo — um velho amigo com quem eu havia lecionado na riamente de Koumassi, rumando em todas as direções da bússola; passamos
Universidade de Gana, mais de uma década antes — e alguns companheiros por nossa casa e pelas de uma dúzia de colegas e amigos de meu pai. Mar-
uniformizados. Nesse momento, eu soube que as pessoas entenderiam que geamos o Colégio Metodista Wesley, onde ele havia trabalhado com os missio-
prestáramos a meu pai a homenagem que ele merecia de nós; que, pelo menos, nários quando menino; e entramos em Tafo, o domínio do Tafohene, e no ce-
havíamos honrado o nome dele. mitério municipal onde meu pai, como seu pai antes dele, seria sepultado. Ao
Durante todo o culto, advogados trajando suas togas montaram guarda à nos instalarmos junto à sepultura e ao ser o ataúde depositado no chão, Jerry
testa e aos pés do caixão, revezando-se a cada cinco minutos para homenagear Rawlings juntou-se a nós. Suas palavras à beira do túmulo foram breves, mas
seu colega. Se eu me voltasse para a esquerda e percorresse com os olhos a cena oportunas. Se queremos verdadeiramente homenagear a memória de um gran-
até a direita, poderia ver, primeiro, a abusua; depois, os sacerdotes das diversas de homem, disse ele, não havemos de transtornar sua viúva e seus filhos por
igrejas; mais adiante, atrás da cabeça do presidente do PNDC, na parede, a placa questões de propriedade.
em memória ao pai de meu pai, que também fora membro dessa igreja. Mais à Com efeito, sua mera presença no funeral, que em condições normais não
direita estavam as fileiras compactas dos advogados em suas togas. Imediata- teríamos esperado, foi uma reprimenda ao Asantehene e sua mulher: o fato de
mente à minha esquerda, Tio T. D.; atrás de mim, minhas irmãs, meus parentes as palavras proferidas por Rawlings junto à sepultura serem dirigidas ao cerne
c amigos nigerianos e meus amigos dos Estados Unidos. E, à minha direita, gra- da disputa entre meu pai e sua irmã só fez explicitar isso. Nos assuntos corri-
ve e sóbria em sua túnica negra e sua mantilha negra, sentava-se minha mãe. queiros de Gana, o chefe de Estado e o rei circulam cautelosamente ao redor um
268 Na casa de meu pai

do outro, cada qual ciente dos recursos simbólicos e materiais de que o outro
dispõe. Para ir à capital do Asantehene e fazer essa reprimenda, Jerry Rawlings
tinha que ter algo a frisar. No contexto do conhecimento público, os principais
efeitos políticos de sua presença foram três: primeiro, afirmar a afinidade com Notas
um político da geração da independência; segundo, sublinhar os recentes decre-
tos governamentais que ampliavam os direitos de propriedade das viúvas; e ter-
ceiro, deixar implícito seu conhecimento das manipulações do banco para fins
pessoais. Saber que ele poderia ter comparecido por motivos particulares —
por um respeito pessoal por meu pai, como alguém me disse depois — em nada
prejudicou essas mensagens públicas.
“Wowu na wayie beba a, wohwe wo yareda ho mu”, diz nosso provérbio.
“Quando alguém morre e seu funeral se aproxima, ele o antevê de seu leito de
enfermo? Não sei até que ponto meu pai teria antevisto, se sabia que seu funeral
daria ensejo a um conflito entre o monarca e o chefe de Estado, entre Achanti e
Gana. Para a maioria de meus parentes, com certeza, suas idéias sobre o assunto
dificilmente teriam sido hipotéticas; para eles, meu pai assistiu às cerimônias. Capítulo 1
Alguns me dizem que teria ficado satisfeito. 1. Kwame Nkrumah, Autobiography of Kwame Nkrumah, p. 153, narrando um discurso feito
na Libéria em 1952.
O sucessor de meu pai como chefe da abusua será nomeado no devido tem-
2. Alexander Crummell, “The English Language in Liberia”.
po (a sucessão ainda está em disputa enquanto escrevo), O último da longa li- 3. Ver David Laitin, Politics, Language, and Thought, e também “Linguistic Dissociation:
nhagem de Akroma-Ampim. Talvez, se as coisas forem corretamente arran- A Strategy for Africa”.
jadas, outro crocodilo abocanhe outro cordeiro, assinalando a aceitação da 4. Embora isso não exclua necessariamente os norte-africanos: pois há uma ampla literatura
escolha pelas forças e potestades do mundo espiritual. A linhagem continuará. — à qual farei referência no capítulo 5 — que afirma que os egípcios têm ancestrais negros;
Outro provérbio diz: Abusua te se kwaee, wow> akyiri a eye kusuu, wopini ver, por exemplo, Chiekh Anta Diop, African Origins of Egyptian Civilization.
5. Wole Soyinka, Death and the King's Horseman, Nota do Autor.
ho a, na wohunu se dua koro biara wo ne sibere. “O clã materno é como a floresta;
6. A era colonial formal havia terminado na época em que frequentei a escola primária. Mas a
quando se está fora, ela é densa, quando se está dentro, vê-se que cada árvore transição para as atitudes pós-coloniais não ocorreu no instante em que a bandeira britâni-
tem sua posição própria” Assim me parece agora. Talvez eu ainda não tenha ca foi retirada do palácio do governo. Creio, entretanto, que existem diferenças entre a gera-
desonrado minhas famílias e seus nomes. Mas, enquanto viver, sei que não esta- ção que herdou o Estado colonial e a atual geração de africanos educados no Ocidente. Ao
rei fora dessas florestas. menos em Gana e na Nigéria, essas diferenças resultam de mudanças iniciadas nos anos 60.
Hoje, o racismo contra os brancos me parece mais comum entre as pessoas com instrução
universitária nesses países — embora ainda seja, enfaticamente, uma visão minoritária —
do que quando eu era criança. Centrais nessas mudanças são pelo menos dois fatos: primei-
ro, a divulgação mundial do racismo norte-americano, como resultado da cobertura dada
ao Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos, que levou a uma identificação de
bases cada vez mais amplas entre os africanos e as aspirações políticas afro-americanas; se-
gundo, a crença progressiva em que a recusa do Ocidente a tomar providências em relação à
África do Sul, bem como sua extraordinária relutância em agir contra o governo mino-
ritário rodesiano, nasceram de um arraigado racismo contra os negros. É provável que a
maioria das pessoas fora da África desconheça o intenso interesse pelo Sul da África que
existe numa classe muito vasta de africanos comuns de outras partes do continente.
7. A posição de Césaire — nascido na Martinica em 1913 — quanto a essa questão modifi-
cou-se substancialmente nos últimos anos. Mas, no período em torno da Segunda Guerra
Mundial — o período que formou a cultura intelectual da fase de descolonização —, não
há dúvida quanto à base racial de suas teorias: A. James Arnold, em sua interessante discus-
são desse tema em Modernism and Négritude, cita uma passagem da revista Tropiques nº 5,

269
Notas 281
280 Na casa de meu pai

mento, em virtude de a justificação não se relacionar apropriadamente, de re, com os fatos;


48. Hountondji — por exemplo, numa conversa no encontro da Associação Africana de Litera-
ver Edmund L. Gettier II, “Is Justified True Belief Knowledge?” p. 281-282. Do mesmo
tura em Dakar, no Senegal, em abril de 1989 — aceitou essa colocação, insistindo agora em
modo, quero dizer que uma crença pode ser sensata (subjetivamente) mas irracional (obje-
que sua formulação original de sua posição foi polêmica. Numa situação em que a filosofia
tivamente). Uma vez que as questões da racionalidade, portanto, levantam questões sobre
africana seria supostamente esgotada por uma etnofilosofia descritiva, é compreensível que
como as outras pessoas se situam em relação à realidade, e já que essas questões não podem
sua colocação — de que isso de modo algum era tudo o que havia na filosofia — fosse
ser respondidas e ao mesmo tempo deixar em aberto, como desejo fazer, questões sobre
exagerada, tal como a afirmação de que a etnofilosofia nada teria a ver com a filosofia.
quem tem razão, falarei mais, de agora em diante, em sensatez do que em racionalidade.
49. Wiredu, Philosophy and an African Culture, p. x. Uma pessoa é sensata, a meu ver, quando tenta ser racional: quando tenta agir de modo a
50. Alguns dos trabalhos mais interessantes que poderiam ser classificados como filosofia afri- maximizar a probabilidade de que suas crenças sejam verdadeiras.
cana não provêm, em absoluto, da problemática que venho discutindo. The Invention of 16. Evans-Pritchard, Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande, p. 202.
Africa, de V. Y. Mudimbe, uma poderosa investigação dos contornos da África na moder-
17. Richard Miller, Fact and Method, passim.
nidade ocidental, é um exemplo daquele tipo de explorações ricamente urdidas da vida
cultural que são a tarefa inevitável de uma filosofia africana contemporânea. 18. Evans-Pritchard, Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande, p. 201.
191 Id., ibid., p. 201.
20. Id.. ibid., p. 199. O que Evans-Pritchard pretende dizer com “místicos”, como afirma, são os
Capítulo 6
“padrões de pensamento que atribuem aos fenômenos supra-sensíveis qualidades as quais,
da J. E. Thiel, La Situation religieuse des Mbiem (Provérbio 5), p. 171. Verti a tradução e a glosa ou parte das quais, não decorrem da observação, ou não podem ser logicamente inferidas
francesas. desta, e as quais eles não possuem” (p. 229, grifos meus). É a oração grifada que executa todo
. Eu poderia ter escolhido aqui a palavra “pós-tradicional”, mas, como argumento no ensaio o trabalho aqui: o resto dessa definição significa, simplesmente, que os predicados místi-
seguinte, talvez convenha reservar o “pós” como prefixo para um fim mais específico que o cos são carregados de teoria, o que quer dizer, se a recente filosofia da ciência tiver razão,
de significar simplesmente “depois”. que eles são, nesse aspecto, como qualquer outro predicado empírico; ver N. R. Hanson,
. R.S. Rattray, Ashanti, p. 147-149. Modifiquei a tradução dele em alguns pontos. Patterns of Discovery, e (para algumas ressalvas) Ian Hacking, Representing and Intervening,
. Experimente pedir a um padre católico, na Irlanda rural ou na Guatemala, uma explicação p. 171-176. (O termo de Hanson é “theory-loaded”, mas eu — e outros — usamos a expres-
de cada passo da Eucaristia. são “theory-laden” [ambos traduzidos em português por “carregados de teoria”].)
. Esse ponto é claramente exposto no excelente Symbol and Theory, de John Skorupski. 21. Evans-Pritchard, Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande, p. 201-203.
Bias Algumas pessoas acreditam que Uri Geller tenha poderes ditos “paranormais”: a capaci-
Naa

. Clifford Geertz, The Interpretation of Cultures, p. 90.


dade, por exemplo, de vergar colheres “pelo poder da mente”,
. Kwasi Wiredu, Philosophy and an African Culture, p. 42.
23. Ver Karl Popper, Conjectures and Refutations, e T. S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolu-
. Chinua Achebe, entrevista.
CO

tions.
. Oscar Wilde, Phrases and Philosophies for the Use of the Young, p. 418.
24, O artigo mais famoso de Horton é seu “African Traditional Religion and Western Science”
OD

. Robin Horton, “Spiritual Beings and Elementary Particles: A Reply to Mr. Pratt”, p. 21-33; [Religião tradicional africana e ciência ocidental]. Toda a minha reflexão sobre essas ques-
p. 30. tões foi estimulada e avivada pela leitura e pelas conversas com ele; e tantas das idéias que
. “Une premitre approche des phénomênes de la magie et de la sorcellerie serait de supposer que estarei apresentando são dele, que faço agora um agradecimento geral.
nous nous trouvons là en face d'un langage symbolique (...) Un homme qui vole dans les airs, 2Ss “Sans méconnaitre ses limites ni freiner la marche vers le progrês, la science et la libération, il
qui se transforme en animal, ou qui se rend invisible à volonté (...) pourraient m'être alors faut admettre que Vexplication africaine des phénomênes de la mag ie et de la sorcellerie est
quun langage codé dont nous devrions simplement découvrir la clef. Nous serions alors ras- rationelle. Nos croyances populaires sont déconcertantes certes, parfois fausses, mais ne serait-
surés” M. P. Hegba, Sorcellerie; chimêre dangereuse...?, p. 219. ce pas une faute métho dologique grave que de postuler Pir rationnel au point de dépar t de
12. Horton, “Spiritual Beings and Elementary Particles — A Reply to Mr. Pratt”, p. 31. Pétude d'une société?” M. P. Hegba, Sorcellerie: chimêre dangereuse...?, p. 267.
13. “[LJe langage sy mbolique et ésotérique est fort en honneur en notre société (...)”, Hegba, 26. Wiredu, Philosophy and an African Culture, cap. 3.
Sorcellerie: chimêre dangereuse...?, p. 219. PAR Horton, “African Traditional Religion and Western Science”, p. 64.
14. John Skorupski convenceu-me de que Durkheim realmente oferece essa argumentação 28. Id. ibid., p. 51.
aparentemente grosseira; ver Skorupski, Symbol and Theory, capítulo 2, para uma excelente 2: Ver Daniel Dennett, The Intentional Stance.
discussão. 30. Ver Evans-Pritchard, Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande, cap. 2.
15. Essa explicação me foi sugerida numa conversa com Ruth Marcus. Essa concepção da ra- 31. Wilson, Rationality, p. 153.
cionalidade pertence a uma família de propostas recentes que tratam o conceito como sen- BZ: Catherine Coquery-Vidrovitch, “The Political Economy of the African Peasantry and
do definido por aquilo que os filósofos chamam relações de re dos agentes com o mundo;
Modes of Production”, p. 91.
ver, por exemplo, a explicação do conhecimento dada por Grandy em Hugh Mellor (org.),
Sou Barry Hallen, “Robin Horton on Critical Philosophy and Traditional Thought”. Wiredu, é
Prospects for Pragmatism. Assim, segundo essa visão, é verdade que as crenças de uma pes-
claro, não nega a existência de céticos nas culturas tradicionais. Ver p. 20-21, 37 e 143 de
soa podem ser objetivamente irracionais, muito embora sejam subjetivamente justificadas.
Philosophy and an African Culture.
Como mostrou Gettier, uma crença pode ser justificada e verdadeira, mas não um conheci-
282 Na casa de meu pai Notas 283

34. Hallen, “Robin Horton on Critical Philosophy and Traditional Thought”, p. 82. Vogel, Perspectives: Angles on African Art, p. 11.
35. Id. ibid., p. 82. Id., ibid., p. 11.

ERRAR
36. Karl Popper, “Towards a Rational Theory of Tradition”. Id., ibid., p. 29.
37. Hallen, “Robin Horton on Critical Philosophy and Traditional Thought”, p. 83. Id., ibid., p. 143.
38. M. Griaule, Dieu dºeau. Entretiens avec Ogotemmeli (Paris, 1948). (E poderíamos acrescen- Id., ibid., p. 131.
tar, apesar dos comentários de Horton no manuscrito “African Thought-patterns: the Case
- Devo insistir, na primeira vez em que emprego essa palavra, em que não partilho da difun-
for a Comparative Approach” [Padrões de pensamento africanos: em defesa de uma abor-
dida avaliação negativa da mercadologização: seus méritos, creio, devem ser avaliados caso
dagem comparativa], que, desde Kuhn, a “abertura” da ciência também está em questão;
a caso. Certamente, críticos como Kobena Mercer (por exemplo, em seu artigo “Black Hair/
ver D. Gjertsen, “Closed and Open Belief Systems”.) Style Politics”) criticaram persuasivamente qualquer rejeição reflexiva da forma merca-
39. Barry Hallen e J. O. Sodipo, Knowledge, Belief and Witchcraft. doria, que tantas vezes reinstaura a veneranda oposição humanista entre o “autêntico” e o
40. Esse trabalho encontra-se no artigo “Traditional Thought and the Emerging African “comercial”. Mercer examina os caminhos pelos quais os grupos marginalizados têm mani-
Philosophy Department: A Reply to Dr. Hallen” [O pensamento tradicional e o emergente pulado os artefatos mercadologizados de maneiras culturalmente inéditas e expressivas.
Departamento de Filosofia Africana: resposta ao dr. Hallen]. . Considerando-se que Vogel assim recusou a voz a Kouakou, é menos surpreendente que os
41. O que não quer dizer que eles não tenham os conceitos necessários para compreender a comentários deste também se revelem uma composição. Num exame mais detido, consta-
idéia de um experimento, mas apenas que não se interessam pela experimentação desinte- ta-se que não existe nenhum Lela Kouakou isolado que tenha sido entrevistado como os
ressada, simplesmente para descobrir como as coisas funcionam. Pois os azande estão mui- outros co-curadores. Kouakou acaba sendo, no fim, exatamente uma invenção, o que
to cônscios, por exemplo, de que um oráculo precisa ser executado cuidadosamente, para literaliza o sentido em que “nós” — e, mais particularmente, “nossos” artistas — somos
que possa ser confiável. Assim, eles testam sua confiabilidade a cada ocasião em que ele é indivíduos, ao passo que “eles” — e os “deles” — são tipos étnicos.
usado. Em geral, existem dois testes: bambata sima e gingo, o primeiro e o segundo testes. 10. É absolutamente crucial notar que Vogel não traça sua distinção de acordo com categorias
Geralmente, no primeiro teste, a pergunta é formulada para que a morte de uma galinha raciais ou nacionais: os co-curadores nigeriano, senegalês e afro-americano têm permissão,
signifique “sim”, e, no segundo, para que a morte signifique “não”; mas pode dar-se o inver- todos eles, de ficar do “nosso” lado da grande linha divisória. A questão aqui é algo menos
so. Os resultados incoerentes invalidam o processo. Os azande também têm um meio de óbvio do que o racismo.
confirmar se um oráculo não está funcionando: fazer-lhe uma pergunta cuja resposta eles
1. Vogel, Perspectives: Angles on African Art, p. 23.
já conheçam. Essas falhas podem ser explicadas por um dos muitos obstáculos ao funcio-
12. Margaret Masterman, “The Nature of a Paradigm”, nota de rodapé 1, p. 59; p. 61 e 65.
namento adequado de um oráculo: desrespeito ao tabu; feitiçaria; o fato de o veneno benge
usado no oráculo ter sido “estragado” (como crêem os azande) por ter estado perto de uma 13. Jean-François Lyotard, The Postmodern Condition: A Report on Knowledge.
mulher menstruada. 14, O “pós”, portanto, representa na modernidade a imagem da trajetória do “meta” na me-
42. Evans-Pritchard, Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande, p. 202-204. tafísica clássica. Originário das glosas editoriais dos aristotélicos desejosos de se referir aos
43. Gellner propõe uma “baixa divisão cognitiva do trabalho, acompanhada, ao mesmo tempo, livros surgidos “depois” dos do Filósofo sobre a natureza (a física), esse “depois” também
por uma proliferação de papéis”, como “diferenças cruciais entre a mente selvagem e a foi traduzido por “acima e além de”.
mente científica” em Legitimation of Belief; p. 158. 15. Brian McHale, Postmodernist Fiction, p. 5.
44. A discussão da importância desse fato é uma das áreas mais estimulantes da filosofia da 16. Scott Lash, “Modernity or Modernism? Weber and Contemporary Social Theory” p. 355.
linguagem; ver, por exemplo, Hilary Putnam, “The Meaning of Meaning”, em seu livro 17. Lionel Trilling, The Opposing Self: Nine Essays in Criticism, p. xiv.
Mind, Language and Reality. 18. Fredric Jameson, The Ideologies of Theory: Essays 1971-1986, v. II: Syntax of History, p. 178-
45. William Lecky, History of the Rise and Influence of the Spirit of Rationalism in Europe, p. 8-9. 208 e p. 195.
46. “Tout Africain qui voulait faire quelque chose de positif devait commencer par détruire toutes 19. Id. ibid. p. 195.
ces vieilles croyances, qui consistent à créer le merveilleux là oi il ny a que phénomêne naturel: 20. Id.; ibid., p. 195 e 196.
volcan, forêt vierge, foudre, soleil, etc” Aké Loba, Kocoumbo, Pétudiant noir, p. 141.
22, Id.; ibid., p. 105.
22, Habermas, é claro, é um teórico contrário ao pós-modernismo.
Capítulo 7 23. The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, p. 13.
1. “Tu tappelais Bimbircokak. / Et tout était bien ainsi / Tu es devenu Victor-Emile-Louis-
24. Tudo em que Weber insistia era que esses novos líderes carismáticos também teriam seu
Henri-Joseph / Ce qui / Autant qu'il men souvienne / Ne rappele point ta p arenté avec /
carisma rotinizado.
Roqueffelêre..” (Yambo Ouologuem, “A Mon Mari”)
25. Reinhard Bendix, Max Weber: An Intellectual Portrait, p. 360.
2. Perspectives: Angles on African Art (Nova York, The Center for African Art, 1987), por James
Baldwin, Romare Bearden, Ekpo Eyo, Nancy Graves, Ivan Karp, Lela Kouakou, Iba N'Diaye, 26. The Theory of Social and Economic Organization, p. 358-359.
David Rockefeller, William Rubin e Robert Farris Thompson, entrevistados por Michael 2a The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, p. 194.
John Weber, com uma introdução de Susan Vogel. 28. Ver “Science as a Vocation”, in From Max Weber, p. 155.
Notas 287
286 Na casa de meu pai

Capítulo 9
Suleiman e Alice Jardine, em Harvard, em julho de 1989; na Associação de Estudos Afri-
canos (sob os auspícios da Sociedade de Filosofia Africana da América do Norte), em no- 1 . Chinua Achebe, entrevista.
vembro de 1989, onde a resposta de Jonathan Ngaté foi particularmente útil; e, como con- Es . Ver, por exemplo, Robert Harms, Times Literary Supplement de 29 de novembro de 1985,
vidado de Ali Mazrui, no Centro Braudel da SUNY, Binghamton em maio de 1990. Como p. 1.343.
de praxe, eu gostaria de saber como incorporar uma quantidade maior das idéias dos deba- 3. Tzvetan Todorov,
«e
Race; Writing and Culture”. Não é preciso acreditar em feitiçaria, afinal,
tedores nessas ocasiões. para acreditar que as mulheres foram perseguidas como feiticeiras no estado de Massachu-
setts do período colonial.
Capítulo 8 . Gayatri Spivak reconhece esses problemas ao falar dos essencialismos “estratégicos”, Ver

EN
k Provérbio akan. (Os provérbios são notoriamente difíceis de interpretar, e portanto, tam- p. 205 do livro dessa autora, In Other Worlds: Essays in Cultural Politics.
bém de traduzir. Mas a idéia é a de que os Estados desmoronam por dentro, e o provérbio é . Aviolência entre senegaleses e mauritanos, na primavera de 1989, só pode ser entendida ao
usado para expressar o sentimento de que as pessoas sofrem em decorrência de suas pró- lembrarmos que a abolição legal da escravidão racial dos “negros” pertencentes a senhores
prias fraquezas. Meu pai jamais perdoaria o solecismo de tentar explicar um provérbio!) “mouros” ocorreu no início da década de 1960.
Em Politics and Society in Contemporary Africa, p. 81, Naomi Chazan, Robert Mortimer, . David Laitin, Hegemony and Culture: Politics and Religious Change Among the Yoruba,
John Ravenhill e Donald Rotchild citam, com base na revista Afriscope 7, n. 4 (1977), p. 24- po 758,
25, uma cifra de 150 mil “pessoas profissionalmente qualificadas” na África sub-saariana.
. Id. ibid., p. 8.
Ver D. G. Austin, Politics in Ghana 1946-1960, p. 48.
. Essa passagem prossegue: “Cada vez mais, também o lingala e o swahili passaram a dividir

o
- À Etiópia, que nunca foi colônia, é um dos mais antigos Estados unificados do mundo; mas
funções entre si. O lingala serviu aos militares e a boa parte do governo da capital do baixo
as fronteiras modernas da Etiópia incluem a Eritréia e Ogaden, ambos essencialmente con-
Congo; o swahili tornou-se a língua dos trabalhadores das minas de Katanga. Isso criou
cedidos ao império etíope por potências ocidentais.
conotações culturais que logo começaram a emergir e que continuam a prevalecer no Zaire
- Kwame Nkrumah, Autobiography of Kwame Nkrumah, p. 153-161. de Mobutu. Do ponto de vista de Katanga/Shaba, o lingala era o jargão desonroso dos sol-
- Politics and Government in African States 1960-1985, de Peter Duignan e Robert H. Jackson dados improdutivos, dos burocratas do governo, dos artistas profissionais e, recentemente,
(orgs.), p. 120-121. de uma igrejinha do poder, todos designados como batoka chini, gente que mora a jusante,
- Samir Amin, “Underdevelopment and Dependence in Black Africa: Origins and Contem- isto é, em Kinshasa. O swahili, tal como falado em Katanga, era um símbolo do regionalis-
porary Forms”. mo, inclusive para os súditos colonos que o falavam sem fluência” Johannes Fabian, Lan-
- Chazan et al., Politics and Society in Contemporary Africa, p. 41. guage and Colonial Power, p. 42-43. O predomínio do swahili em certas áreas já é, por si só,
- Twi é o nome genérico da língua falada (com algumas variações de acento e vocabulário) um produto colonial (Language and Colonial Power, p. 6).
na maior parte do setor akan de Gana; a língua de Achanti é o twi-achanti. . Similarmente, as identidades chona e ndebele do Zimbábue moderno associaram-se a par-
10. Isso não equivale a ignorar o papel do SAP (Programa de Ajuste Estrutural) no estrangula- tidos políticos por ocasião da independência, muito embora os povos de língua chona hou-
mento dos movimentos trabalhistas, que, em alguns locais, constituíram um dos principais vessem passado grande parte do fim do período pré-colonial em confrontos militares uns
opositores societários ao Estado. O SAP tem desempenhado, como se pretendia, o papel de com os outros. ;
facilitar a vida do capital também de outras maneiras. 10. Laitin, Hegemony and Culture: Politics and Religious Change Among the Yoruba, p. 8. Nem
11. Na Grã-Bretanha, a oposição da sra. Thatcher à plena união monetária européia e a uma preciso acrescentar que as identidades religiosas são igualmente destacadas e igualmente
moeda única, por exemplo — uma oposição que cumpriu um papel em sua saída do cargo mitológicas no Líbano ou na Irlanda.
de primeira-ministra —, esteve claramente ligada a um sentimento (extremamente amea- 11. O fato de a “raça” funcionar dessa maneira tem sido claro para muitos outros afro-america-
çador para quem quer que tivesse as simpatias da sra. Thatcher pelo monetarismo) de que nos: assim, por exemplo, ela aparece, num contexto ficcional, como tema central de Black
isso reduziria as opções da política monetária nacional britânica. No More [Negro, nunca mais], de George Schuyler; ver, por exemplo, p. 59. Du Bois (como
UA A referência à “confiança essencial dos cidadãos de Gana e de outros locais no sistema judi- de praxe) fornece — em Black Reconstruction [Reconstrução negra] — um corpo de provas
ciário estabelecido” — em Chazan et al., Politics and Society in Contemporary Africa, p. 59 que ainda é relevante. Como escreve Cedric Robinson, “uma vez que a classe industrial
— é um dos raros pontos em que sou obrigado a dizer que considero pouco convincente emergiu como dominante na nação, ela teve não apenas sua própria base de poder e as
a análise desses autores. relações sociais historicamente relacionadas com esse poder, como também teve a seu dis-
13. Considerei muito útil a elaboração teórica desses padrões em Chazan et al., Politics and por os instrumentos de repressão criados pela então subordinada classe dominante sulista.
Society in Contemporary Africa, cap. 3, “Social Groupings”. Em sua luta com o operariado, ela pôde acionar o racismo para dividir o movimento traba-
14. Não devemos, entretanto, desconhecer o papel das assimetrias do poder na periferia de Ihista em forças antagônicas. Além disso, as permutações do instrumento pareciam inter-
mináveis: negros contra brancos; anglo-saxões contra europeus orientais e do sul; nativos
Koumassi e em outros lugares da periferia do Estado, na estruturação de quem se beneficia
com esses arranjos. contra imigrantes; o proletariado contra os meeiros; norte-americanos brancos contra asiá-
ticos, negros, latino-americanos etc” Cedric Robinson, Black Marxism: The Making of the
15. Uma association des originaires é uma associação de pessoas de origem comum.
Black Radical Tradition [Marxismo negro: a formação da tradição radical negra], p. 286.
16. Sou especialmente grato a Jeff Paine por sua ajuda na construção de uma visão anterior
12. Id. ibid., p. 313.
dessas colocações, publicada no Wilson Quarterly.
288 Na casa de meu pai

13. John B. Thompson, Studies in the Theory of Ideology, p. 62-63. Vez após outra, na história
trabalhista norte-americana, podemos comprovar as maneiras como os conflitos organiza-
dos em torno da identidade de um grupo racial ou étnico podem ser captados pela lógica
da ordem existente. O apoio financeiro que as igrejas negras de Detroit receberam da Ford
Motor Company, na década de 1930, foi apenas um exemplo particularmente dramático de
um fenômeno muito difundido: a manipulação empresarial da diferença racial, num esfor- Bibliografia
ço de derrotar a solidariedade trabalhista. Ver, por exemplo, James S. Olson, “Race, Class
and Progress: Black Leadership and Industrial Unionism, 1936-1945” [Raça, classe e pro-
gresso: liderança negra e sindicalismo industrial, 1936-1945]; David M. Gordon et al.,
Segmented Work, Divided Workers [Trabalho fragmentado, trabalhadores divididos],
p. 141-143; Fredric Jameson, The Political Unconscious [O inconsciente político], p. 54.

Epílogo
1. Joe Appiah, Joe Appiah: The Autobiography of an African Patriot, p. 103.
2. Id., ibid., p. 202-203.
3. Id., ibid., p. 368.
4. No caminho para o palácio, uma ou duas notas sobre a terminologia que cerca o sistema de
chefia talvez sejam oportunas. O símbolo da chefia nas culturas akan, inclusive a achanti, é
ACHEBE, Chinua. The Novelist as Teacher. In : African Writers on African Writing. Org. G. D.
o banco. O banco do Ashantehene é chamado Banco de Ouro; o de sua rainha-mãe é o
Killam. Londres : Heinemann, 1973.
Banco de Prata. Essas são representações simbólicas da chefia e, diversamente de um trono
na Europa, não é costume sentar neles no curso normal das coisas, considerando-se-os, . Entrevista com Anthony Appiah, D. A. N. Jones e John Ryle no Times Literary Supple-
antes, como repositórios do sunsum — da alma — do vilarejo, cidade, área ou nação de um ment, 26 de fevereiro de 1982. (Algumas passagens citadas no texto são de minha própria
transcrição não publicada da íntegra da entrevista, que foi editada em sua versão publi-
chefe. Na verdade, o Banco de Ouro tem seu próprio palácio e criados. Em twi (e no inglês
ganês), falamos no banco, tal como o faria um inglês ao falar do trono, ao nos referirmos ao
cada, mais curta.)
objeto, à instituição e, às vezes, ao chefe titular ou à rainha-mãe. ADKINS, A. W. H. Merit and Responsibility in Greek Ethics. Oxford : Oxford University Press,
Qualquer pessoa de condição elevada, homem ou mulher — inclusive os avós de 1960.
alguém, outros anciãos, os chefes e o rei e a rainha —, pode ser chamada de “Nana”. AMADIUME, Ifi. Male Daughters, Female Husbands. Londres : Zed Books, 1987.
Um chefe-2hene é denominado por seu lugar: o rei de Achanti é o Asantehene; o chefe da AMIN, Samir. Underdevelopment and Dependence in Black Africa: Origins and Contemporary
cidade de Tafo, o Tafohene; e a rainha-mãe — a Ahemma — é chamada Asantehemma ou Forms. Journal of Modern African Studies 10, n. 4 (1972), p. 503-524.
Tafohemma. Nem todas as chefias restringem-se hereditariamente a um determinado clã ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: Reflections on the Or igin and Spread of Na-
materno; algumas se dão por nomeação. Assim, o Kyidomhene, chefe da retaguarda, asso- tionalism. Londres : Verso, 1983.
ciado aos principais bancos, é nomeado (vitaliciamente) por seu chefe.
APPIAH, Joe. Joe Appiah: The Autobiography of an African Patriot. Westport, Conn. : Praeger,
5. Appiah, Joe Appiah: The Autobiography of an African Patriot, p. 2-3. 1990.
6. Id., ibid., p. 200-201. APPIAH, K. A. How not to do African Philosophy. Universitas, 6.2 (1979), p. 183-191.
. Modernisation and the Mind. Resenha de Wiredu, Philosophy and an African Culture.
Times Literary Supplement, 20 de junho de 1980, p. 697.
. Strictures on Structures: On Structuralism and African Fiction. In : Black Literature
and Literary Theory. Org. Henry Louis Gates Jr. Nova York : Methuen, 1984, p. 127-150.
. An Aesthetics for Adornment in some African Cultures. No catálogo Beauty by
Design: The Aesthetics of African Adornment. Nova York : African-American Institute, 1984,
p. 15-19.
. Soyinka and the Philosophy of Culture. In : Philosophy in Africa: Trends and Perspec-
tives. Org. P. O. Bodunrin. Ile-Ife : University of Ife Press, 1985, p. 250-263.
. Resenha de Hountondji, African Philosophy: Myth and Reality. Queens Quarterly
(inverno de 1985), p. 873-874.
. The Uncompleted Argument: Du Bois and the Illusion of Race. In : “Race”, Writing and
Difference. Org. Henry Louis Gates Jr. Chicago : University of Chicago Press, 1986,
p. 21-37.

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