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vroos

Ano IX • Maio 2015 • Distribuição Gratuita


Literatura - Bibliofilia - Autores e Livros - www.jornalivros.com.br
1

d Nesta
Nestaedição:
edi-
e
O Vampirismo na Literatura
Histórias de vampiros e entidades similares, moradoras das
regiões sombrias situadas entre a vida e a morte,
representam um tema recorrente nas mais diversas culturas.
Mas, o que pouca gente sabe é que esta vertente literária
originou-se de casos supostamente reais. Texto de Bira Câmara

eres vampirescos já os sugadores engordavam e

S
apareciam em ficavam mais corados.
Homero e no A crença popular
Asno de concebeu variantes,
Ouro, de como a “estrige”,
Apuleio proveniente etimolo-
(séc. II), bem como gicamente do grego
nas Mil e Uma Noites, “strix” e que se refere
embora a crença nos a uma criatura meio
vampiros, original- mulher, meio cadela, A família
mente, tenha surgido
entre os povos
que segundo as lendas
antigas andava pela
do Vurdalak
eslavos, enraizando-se
noite à procura de uma história de
nos Balcãs.
homens para sugar-
Voltaire, no lhes o sangue. Outra vampiros russos e
Dicionário Filosófico, espécie de vampiro ou
definiu os vampiros
vampira, o “ghoul” –
O fumante de
como sendo os mortos que, durante a haxixe e o Vampiro
termo proveniente do árabe –, seduz
noite, saem dos cemitérios para sugar
e devora os homens bebendo seu
o sangue dos vivos, seja através da um conto esquecido
sangue.
garganta ou do ventre. As vítimas das Mil e Uma Noites
empalideciam, definhavam, enquanto Continua na página seguinte
................................. Página 2

O romance gótico revisitado por um


mestre do folhetim
s obras de Paul Féval (1816- numa complexa trama que transcende os Nos anos 50 e 60 seus romances de capa e

A 1887) deveriam ser lidas e


estudadas com atenção por qual-
quer aspirante a roteirista, pois
teriam muito a aprender com
limites do romance gótico. O que não é
de surpreender, pois Féval foi um dos
grandes autores de folhetim na França,
chegando a rivalizar com Alexandre
espada foram muito populares no Brasil,
como O Corcunda, O Cavaleiro La-
gardére, Mistérios de Londres e outros.
Também incursionou pelo teatro e pela
elas. Poucos escritores sabiam arquitetar Dumas. Sua obra, composta por mais de história política. Cultor da literatura
uma trama e contar tão bem uma história 200 volumes, cujos numerosos romances fantástica, além de Ville-Vampire, escreveu
como ele. Em suas mãos, até mesmo uma populares editados em folhetins alcan- obras como La Vampire, Le Chevalier
despretensiosa novela vampiresca acaba se çaram enorme sucesso, igualou-o a nomes Ténèbre, Une Histoire de Revenants, etc.
desdobrando em inesperadas situações e como Balzac e Dumas no cenário literário. Continua na página 5
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No Oriente, mais especificamente na Ìndia, uma série de incidentes ocorridos no leste eu-
Rousseau a lenda de um gigantesco morcego, vampiro ou ropeu. O famoso caso de um soldado húngaro,
afirmou espírito maligno que habita e anima cadáveres, Arnold-Paul, acusado de vampirismo, deu início
audaciosa- é muito antiga. Foi o germe que, segundo Isabel a uma verdadeira histeria coletiva por lá. Além
mente: «Se Burton, culminou nas Mil e Uma Noites, inspi- dos teólogos, estudiosos como Voltaire, Rousseau
houve algu- rou O Asno de Ouro de Apuleio, o Decameron e Diderot argumentaram a favor da existência
ma vez no de Boccaccio, e “tudo o mais que se escreveu dos vampiros e trataram do tema na esfera aca-
mundo um em matéria de literatura fantástica”. Essa len- dêmica. Em 1746, o padre francês Dom Augustin
fato garan- da, o Baital-Pachisi – ou Vinte e cinco contos Calmet, primeiro “vampirólogo” de que se tem
tido e de um baital, foi traduzida para o inglês por Sir notícia, publicou a obra Dissertations sur les
provado, é Richard Burton, e publicada no Ocidente pela Apparitions des Anges, des Démons & des Esprits,
o dos vam- primeira vez em 1870 sob o título de Vikram e & sur les revenants, & Vampires de Hungrie, de
piros» o Vampiro. Repleta de humor e muita in- Bohême, de Moravie, & de Silésie, onde registrou
formação sobre os usos e costumes indianos, varios casos que serviram de base para os
esta compilação de fábulas é conhecida desde o ficcionistas construírem histórias de vampiros.
século XI, mas baseia-se em textos muito mais A documentação a respeito é tão detalhada, e
antigos. Algumas dessas histórias aludem àquela entre os testemunhos figuram pessoas tão dignas
prática dos devotos hindus, que se deixam de crédito (como padres, militares e médicos),
enterrar vivos e parecer mor- que parece impossível que todas elas estivessem
tos durante semanas ou meses, equivocadas...
para então retornarem de novo Jean Jacques Rousseau tinha uma convicção
à vida. Um curioso estado de tão grande neste assunto que chegou a afirmar
catalepsia, auto-induzido atra- audaciosamente: «Se houve alguma vez no mun-
vés da concentração mental e do um fato garantido e provado, é o dos vampi-
da abstenção de alimentos. ros. Não falta nada: informes oficiais, testemu-
Apesar da universalidade e nhos de pessoas de alta categoria, de médicos, de
da antiguidade do tema, no religiosos e de juízes; as provas judiciais são
curioso Diccionaire des Scien- avassaladoras.» A Áustria, a Hungría, a Iugoslávia
ces Occultes (1846), seu autor, e a Romênia (que estava então dividida nos três
o abade Migne, faz um comen- estados separados da Valáquia, Moldávia e
tário irônico no verbete Vam- Transilvânia) foram particularmente infestadas
piros: “...os vampiros não pelo vampirismo nos séculos XVI, XVII e XVIII.
apareceram com todo o seu Um médico, chamado para investigar uma série
esplendor nos séculos bárbaros de casos, escreveu: «O vampirismo... se propa-
e entre os povos selvagens: eles gou como uma peste através da Eslávia e da
só fizeram sua aparição no Valáquia, causando numerosas mortes e trans-
século dos Diderots e dos Vol- tornando todo o país com o temor aos miste-
taires, na Europa, que se dizia riosos visitantes contra os quais ninguém pode
Ilustração de civilizada”. Na França, receberam o nome de sentir-se seguro.»
Vikram e o upiers ou upires, e mais geralmente vampiros;
Vampiro Com toda essa repercussão, o vampirismo lo-
de brucolacas (vrucolacas) nos Bálcãs; go atraiu a atenção dos escritores, que só tiveram
katakhanès no Ceilão; esses nomes eram dados de reelaborar essas histórias, explorando um filão
aos homens que, segundo as lendas, voltaram que até hoje parece inesgotável. O romantismo,
após a morte depois de muitos anos ou dias ao romper com os cânones do racionalismo
enterrados. Eles reapareciam em corpo e alma, clássico, assumiu também o tema, que se tornou
caminhando, infestando as aldeias, molestan- uma das vertentes prediletas do gênero gótico.
do as pessoas e os animais; e, sobretudo, sugando- Victor Hugo, Prosper Merimée e até Goethe escre-
lhes o sangue e causando suas mortes. O único veram poemas “vampirescos”. Apesar disso, o
meio de se livrar dessas perigosas visitas e suas protótipo do vampiro teve a sua forma literária
invasões era exumá-los, empalá-los, cortar-lhes fixada de modo definitivo no mundo de fala
as cabeças, ou queimá-los. Os que morriam inglesa. E o que pouca gente sabe é que, muito
vitimados pelos vampiros, tornavam-se um antes de Bram Stocker e seu Drácula, coube a
deles. William Polidori (1795-1821), o conceituado
Certo mesmo é que as lendas sobre vampiros jovem médico de Byron, a honra de estabelecer o
e criaturas com hábitos semelhantes aos dos modelo mais consagrado e conhecido de história
vampiros, existem há milhares de anos, mas só de vampiros. O conto do cruel lorde Ruthven, um
ganharam destaque no século XVIII, depois de requintado vilão do tipo gótico (em parte inspi-
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rado na figura de Byron), mesmo sendo muito da era Vitoriana.
curto exerceu enorme influência, especialmente
na França, onde foi imediatamente adaptado para
o palco, por Charles Nodier, e na Alemanha serviu
de base para uma ópera de Marschner, O Vampiro O elemento
(1828). sexual foi também
A história de Polidori emergiu durante a mesma explorado por Théophile
noite chuvosa que deu origem a Frankenstein, Gautier em A Morte Amorosa
(1836). Aqui, o abraço mortal “...os
quando Shelley, sua mulher Mary Godwin, Byron,
do vampiro é transformado pelo amor vampiros
Polidori e ocasionalmente Mathew Gregory
num beijo de vida, quando a cortesã Clarimonde não apa-
Lewis, liam histórias alemãs de fantasmas na
desperta seu amado, o introspectivo padre receram
Villa Diodatti, perto de Gênova, e resolveram
Romuald, para uma nova vida. O verdadeiro vilão com todo o
tentar eles mesmos escreverem histórias seme-
é o abade Serapião, um vampiro assassino, e a seu esplen-
lhantes. Diz a lenda que fizeram uma aposta para
moral da história é irônica: “nunca olhe para dor nos sé-
ver quem escreveria a melhor história, compe-
uma mulher, caminhe sempre com os olhos fixos culos
tição que a mulher de Shelley venceu com o seu bárbaros e
imortal Frankenstein. O episódio serviu de tema no chão porque, por mais casto e resoluto que
você seja, basta um minuto para perder a eterni- entre os
para o filme Gothic, de Ken Russel. povos selva-
A tentativa novelesca de Byron chegou ao dade”. Um ano depois, em 1837, Prósper
Merimée publicaria A Vênus de Îlle, que embora gens: eles
fim depois de umas poucas palavras, mas seu só fizeram
tema foi usado por Polidori para O Vampiro, não seja uma história de vampiros, mostra igual-
mente a mulher como uma figura terrível e fatal. sua apa-
publicado em abril de 1819 no New Monthly rição no
Magazine. Este conto foi muitas vezes atribuído Cave Amantem, cuidado com aquela que te ama,
é a advertência gravada no pedestal da Vênus de século dos
erroneamente a Byron e admirado como obra Diderots e
sua, fato que contribuiu bastante para a sua popula- bronze, que causa a destruição de todos que a
possuem. Essa visão da mulher como instrumento dos Vol-
ridade no continente. A influência de Polidori taires, na
pode ser vista na obra de James Malcolm Rymer, de perdição reaparece na obra de Wladislaw Rey-
mont, escritor polonês vencedor do prêmio No- Europa, que
Varney, or, The Feast of Blood (1847). se dizia
bel, na sua novela Wampir (1911) onde escreveu
Embora Byron não tenha chegado a escrever civilizada”
que “para o verdadeiro artista, a mulher é o seu
nenhuma história de vampiros, há referências
mal, o demônio destruidor, ela é o seu vampiro”.
ao tema no seu poema narrativo “The Giaour”
(O Renegado, fragmento de um conto turco, de Uma das mais originais e terroríficas histórias
de vampiros é Viy (1835), de Nicolai Gogol, su- Ilustração da
1813). Aliás, Byron foi chamado de “gentle- obra de James
man-vampyre” por Tristan Corbière... postamente transcrita de algum conto folcló-
Malcolm
rico, em que um estudante que matou uma bruxa
Até a publicação do conto pioneiro de Rymer, Varney,
é forçado pelo pai dela a ficar velando o seu or, The Feast of
Polidori, as lendas e histórias de vampiros com-
caixão durante três noites sucessivas. Enquanto Blood
piladas por Dom Calmet tinham como
Viy pode ser considerada a
protagonistas homens do povo: aldeões,
mais grotesca das histó-
soldados, camponeses. Ao basear-se na figura de
rias de vampiro, Fantas-
Byron para construir o seu personagem, Polidori
mas (1864), de Ivan
consagrou o modelo do vampiro de origem no-
Turgueniev, é talvez a
bre, sofisticado e remanescente de um mundo
mais espiritual de todas,
em extinção. Assim, o mais famoso dos
com sua lírica
vampiros, o Conde Drácula, criado por Bram
descrição das caval-
Stoker em 1897, era também um “gentleman”,
gadas noturnas de uma
um homem de alta nobreza.
bela mulher vampiro,
As implicações sexuais do vampiro, com fortes tendo como pano de
pinceladas de necrofilia, são componentes que fundo a gélida paisa-
ajudam a entender o fascínio que o tema tem gem européia.
despertado nos escritores ao longo do tempo. O
Também merecem
irlandês Sheridan Le Fanu foi mais longe e deu
um toque lésbico ao tema, na sua novela Carmila registro duas histórias
(1872). A personagem título é uma vampira que notáveis de Alexey
atrai a passiva Laura para o seu castelo, na Styria, Tolstoi: O Vampiro
onde a seduz gradualmente num clima român- (1841), uma comple-
tico. Muitas cenas têm forte erotismo explícito, xa história de amor, e
apesar das limitações impostas pelo moralismo A Família do Vurdalak,
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um conto de vampiros sérvios, que Cronologia das primeiras do Vurdulak”, Alexei Tolstoi
capta o sabor do mais autêntico 1847 – “Varney, or, The Feast of
histórias de vampiro, antes
folclore. Este último foi escrito em Blood”, James Malcom Rymer
francês e publicado na Rússia
de Drácula: 1864 – “Fantasmas”, Ivan
somente em 1884. 1819 – “O Vampiro”, William Turgueniev
Muitas histórias foram escritas Polidori 1870 – “Vikram e o Vampiro”,
sobre esse tema, mas a mais notá- 1821 – “Vampirismo”, Hoffmann lendas indianas traduzidas por
vel, é claro, foi Drácula (1897), 1828 – “O Vampiro”, ópera de Richard Francis Burton
Marschner 1872 – “Carmilla”, Sheridan Le
de Bram Stoker, inspirado numa
1835 – “Viy”, Nikolai Gogol Fannu
figura real: o nobre chefe militar
1836 – “La morte Amoreuse”, 1875 – “Cidade Vampiro”, Paul
Drakula, terror da Valáquia no
Théophile Gautier Féval
século XV. Foi influenciado por
1841 – “O Vampiro” e “A Família 1897 – “Drácula”, Bram Stocker
Carmila, mas seu livro tem uma
estrutura de narração inventiva,
entrelaçando diários, cartas, tele- HQ / SIAN
gramas e notícias de jornal. Outras
ainda continuam a ser escritas nos
dias de hoje (como Conversa com
o Vampiro, de Anne Rice), pois o
tema parece inesgotável. Entre-
tanto, poucas têm suficiente ori-
ginalidade para merecer algum
destaque.

Antologia das primeiras


histórias de vampiros antes de
Drácula, com alguns contos
inéditos no Brasil. Prefácio e
notas de Bira Câmara.
O VAMPIRO NO CONVENTO,
Louis-Antoine Caraccioli — O
VAMPIRO, John William
Polidori — A MULHER
VAMPIRO, Hoffmann — A
NOIVA DE CORINTO, Goethe
— VAMPIROS, Charles Nodier
— CARA-ALI, O VAMPIRO,
Prosper Merimée — HIS-
TÓRIAS DE VAMPIROS, Paul
Féval — A FAMÍLIA DO
VURDALAK, Aleksey Tolstoi
— FANTASMAS, Ivan
Turgueniev — O SOLDADO E
O VAMPIRO, William Ralston
Shedden. —
188 páginas.
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Uma obra prima do romance gótico:
Cidade Vampiro, de Paul Féval
as não se iludam, Ville-Vampire vai um é o invasor turco. Somente a partir do conto de Polidori

M pouco além de um simples folhetim de


terror. Poderia ser considerado uma
resposta francesa tardia à onda dos
(1819) é que o personagem sofisticou-se e, influenciado
pelas idéias iluministas do século dezoito, passou a ser
representado como um aristocrata, um membro da classe
romances góticos ingleses, que teve em ociosa que vive da exploração da classe trabalhadora
Ann Radcliffe sua grande expoente. Ousado, irreverente, sugando-lhe o sangue. A metáfora é óbvia.
Féval brinca com os clichês do gênero lançando mão da Já o vampiro Goëtzi, de Cidade Vampiro, é um
sutileza característica do espírito francês. É como se ele pequeno burguês, doutor que nunca exerceu a medicina,
quisesse demonstrar que ainda era possível, em sua época, ambicioso e sedento não só do sangue de suas vítimas,
escrever uma novela gótica com todos os seus ingredien- mas também de suas posses. Tem o poder de desdobrar-se
tes, mas fazê-lo de uma forma inventiva como nem e de transformar suas vítimas em animais, aves, insetos e
mesmo os ingleses imaginariam. E surpreende logo de até trocar o sexo. A sua entourage mais parece uma troupe
cara, pois a heroína da história é ninguém mais que a circense: cães com cara humana, uma mulher careca, um
própria… Ann Radcliffe! E o mais irônico é que a rocam- homem sem rosto, um papagaio….
bolesca aventura supostamente vivida pela escritora é
muito mais fantástica do que todas as histórias escritas Desconstrução do gótico
por ela. É uma pena que Os Mistérios de Udolfo ainda não
A narrativa é rica de sutilezas; o autor nunca tenha sido traduzido no Brasil; só quem o leu compreenderá
desperdiça a oportunidade de “tirar um sarro” dos ingleses, melhor esta paródia genial, que brinca com os ingre-
de suas peculiaridades, de sua mania de se acharem supe- dientes mais caros à sua autora: heroínas atormentadas
riores aos mortais de outras raças. Todo o texto é por tutores cruéis e desonestos, masmorras, castelos
permeado por uma afiada sátira do orgulho arruinados, etc. O próprio estilo de Radcliffe é
britânico, com sua inclinação ao narcisismo, ao parodiado, numa espécie de metacrítica, quando a
egocentrismo e ao menosprezo pelo resto da inconsistência de determinado personagem é comen-
humanidade. Assim, quando se refere à Ann tada, bem como a mania da autora de
Radcliffe, o tratamento de sua amiga Jebb justificar e explicar.
é o mesmo que se deveria dar a uma Escrita em 1875 (portanto 22 anos antes de
deusa ou a um ser superior. E, quando Drácula), lança mão de alguns artifícios ino-
cai num buraco na Holanda, prestes a ser salva por um vadores no andamento da história; ela começa
jovem compatriota, Ann quase entra em êxtase ao ad- sendo parcialmente contada por frag-
mirar a beleza ímpar de seu salvador, descrito como um mentos de cartas e por alguém que a ouviu
semi-deus… Da mesma forma, Féval também zomba da própria boca de Ann Radcliffe. Outro detalhe é que
das rivalidades nacionais dos povos das ilhas britânicas. em alguns
O obtuso criado inglês de Radcliffe, em situação de ex- pontos a nar-
tremo perigo, prefere cruzar os braços em vez de ir ao rativa é interrom-
socorro de Merry Bones, um valente irlandês que consegue pida para voltar
escapar da sanha de um grupo de vampiros graças a… sua no tempo e des-
cabeça dura! Nem mesmo o clima da Inglaterra escapa crever os eventos
da ironia do autor. que precederam a
Alguém poderia argumentar que esse tipo de coisa ação que está sen-
nada tem a ver com o espírito do “romance noir”, ao do descrita. Im-
que poderíamos responder lembrando que há uma velada possível não dei-
xenofobia nas primeiras novelas góticas, onde quase sem- xar de lembrar que
pre o vilão é um estrangeiro, de preferência latino… Em este tipo de recur-
Confessionário dos Penitentes Negros, da própria Rad- so hoje é utilizado
cliffe, o vilão é italiano, assim como o monge diabólico por roteiristas de
do célebre romance de Mathew Gregory Lewis, The cinema até a
Monk. Não podemos esquecer, também, que as primeiras exaustão como se
lendas vampirescas no leste europeu surgiram entre povos fosse novidade.
submetidos à dominação estrangeira e, é claro, a figura A forma co-
do vampiro representa o invasor, que vem subjugá-los e mo Féval desdo-
“sugar o seu sangue”. Em uma de suas obras, Prosper bra a trama, mas Caricatura de Paul Féval, por
Merimée relatou algumas destas histórias onde o vampiro ao mesmo tempo Étienne Carjat (c. 1862)
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toma atalhos para encadear as sequências e evitar expli- beiram o ridículo são substituídos por uma história prosaica
cações detalhadas torna a leitura fluente; o leitor é e um cenário cotidiano plausível. Hoffmann mudou este
“fisgado” e não larga o livro até chegar ao final, como se panorama e inspirou muitos autores franceses como Nerval,
assistísse a um thriller. Além de não economizar surpresas, Musset, Gauthier e até Balzac – entre outros, dando nova
deixando o leitor à espera da próxima, não perde tempo direção para a literatura fantástica. Assim, um autor que
com descrições inúteis e nem mesmo com o modus abordasse a temática gótica mais de 40 anos depois de sua
operandi do vampiro Göetzi, que beira o bizarro. Ele faz saturação, só poderia transgredir o gênero, inová-lo, rom-
transplante de cabelo e suga o sangue de uma vítima sem per seus paradigmas, revestir a figura vampiresca com
mordê-la, depois de espetar-lhe o pescoço com uma outros atributos e é o que Féval fez com o vampiro Göetzi.
agulha; além de transformar algumas delas em animais e Os críticos sempre torceram o nariz para este gênero,
até insetos! Vampiro exigente, sente repugnância pelo considerado de gosto duvidoso e recheado de excessos
sangue de uma velha e só tem apetite por donzelas… imaginativos. Mas o que é condenável para a crítica, quase
A habilidade de Féval para contar bem sempre cai no gosto popular…
uma história pode ser avaliada pela ausência Sem dúvida o senso de humor apurado e o
de “fios soltos” na sua narrativa, onde detalhes gosto pelo burlesco, na medida certa, lembram
aparentemente insignificantes mais adiante Hoffmann. Aliás, em muitas produções da ver-
servirão para justificar e/ou “amarrar” tente gótica o humor está presente, mesmo
segmentos. Uma bela lição para os roteiristas que às vezes de forma sutil. Esse toque
de Hollywood, que quase sempre pulam por humorístico ou irônico faz o papel da habitual
cima da lógica, da verossimilhança e até da piscadela, deixando explícito a mentira, o
coerência do argumento, ao deixar de explicar embuste, a invenção.
pontos importantes do roteiro. Entre outras sutilezas que o leitor pers-
A sensação que se tem ao ler esta novela é picaz há de descobrir no texto, destacamos o
que ela poderia muito bem ter sido escrita nos Cidade Vampiro, nome do vampiro-vilão da história, sr. Göetzi,
dias de hoje. Contada num ritmo delirante, a Paul Féval aparentemente inspirado no termo “goétie”
história faz ao mesmo tempo uma paródia do tradução de Bira (em português goécia, do latim medieval goe-
romance de terror e a própria desconstrução Câmara, 2011 tia), que designa a prática da magia negra. Com
do gênero. Para quem está familiarizado com efeito, trata-se de um arquivampiro capaz de
14 X 21 cm.,
os clichês e arquétipos da clássica novela gótica, desdobrar-se em múltiplas personalidades,
164 págs.
Cidade Vampiro é um prato cheio, com todos como um verdadeiro mago negro.
os seus elementos: o fantástico, o assustador, O morcego é uma figura emblemática do universo
o terrorífico, mas também irresistivelmente divertida. vampiresco; no entanto, Féval quebra este paradigma e
Além disso, a narrativa é tensa e pontuada por muita põe a aranha em seu lugar. Não poderíamos deixar de notar
ação, sem contar com o inesperado a cada página. A que a estratégia do sr. Göetzi para alcançar seus objetivos
descrição de Selene, a cidade dos vampiros, é magistral, tem algo a ver com este aracnídeo: através do desdo-
cinética, onírica e lisérgica como uma viagem de ácido. bramento de seus asseclas, ele vai infiltrando-se no território
Que formidável desafio teria um diretor de cinema ou um da vítima, envolvendo-a com suas intrigas até dar o bote
desenhista de HQ se tentasse passar para a tela ou para o final. A própria trama da história é como uma teia de aranha,
papel as imagens surreais da cidade dos vampiros, com não linear, contada com saltos no tempo e cortes que
sua esdrúxula arquitetura, suas estátuas de animais bizarros lembram a estrutura narrativa de uma história em quadri-
e de donzelas subjugadas por feras mitológicas! nhos ou de um filme de ficção científica, o que lhe dá um
Um vampiro diferente toque de modernidade.
O rótulo de surrealista também poderia muito bem ser
A fixação pelo bizarro, pelo grotesco, pelo humor
negro, tem raízes na literatura fantástica na França por aplicado a Cidade Vampiro, assim como o de pós-moderno,
obra e graça de Hoffmann, que caiu no gosto dos franceses o que é surpreendente, pois seu autor passou ao largo das
e teve incontáveis edições por lá. Para o leitor entender correntes literárias ditas de “vanguarda” de seu tempo e
melhor, já por volta de 1828, quando os contos de gozava de grande popularidade. A única coisa que poderia
Hoffmann foram traduzidos pela primeira vez na França, explicar isso é que o que já nasce moderno não envelhece
os romances góticos ingleses (Radcliffe, Byron, Maturin, nunca e continua sendo atual e universal em qualquer época.
Lewis, etc.) já tinham entrado em estado de saturação Quanta coisa não foi produzida em nome do moderno, em
com seus castelos, ruínas, paisagens tétricas, fantasmas, todos os campos e se tornou datada, precocemente enve-
monges malfeitores, etc. Todos esses clichês já estavam lhecida? Assim, Homero, Shakespeare, Cervantes, Goethe,
esgotados e só poderiam ser objeto de paródia ou crítica, Lewis Carol, e tantos outros, desafiam o tempo e per-
como o fez Jane Austen em A Abadia de Northanger manecem sempre atuais, mesmo sofrendo sucessivas
(1817), onde os romances góticos e seus excessos que adaptações e releituras.
Bira Câmara
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A coletânea Histórias de Vampiros traz dois contos inéditos no Brasil:
“A família do Vurdalak” e
“O fumante de haxixe e o Vampiro”
obra de Aleksey Tolstoi No fundo, A Família do Vurdalak
é pouco conhecida no é uma história de amor, assim como

AA
Brasil, embora sua outra obra de Tolstoi – O Vampiro,
novela “A Família do mais densa e intrincada. Aliás, nas
Vurdalak” inclua-se melhores histórias do gênero há um
entre as melhores do caso de paixão irrealizada ou que
gênero vampiresco, e termina funestamente. É o que
citada pelos cultores do gênero do acontece também em La morte
mundo inteiro. Centrado na figura Amoreuse, de Théophile Gautier e
lendária do upyr russo, mereceu uma em Fantasmas, de Ivan Turgueniev,
adaptação para o cinema em 1963, para citar poucos exemplos.
com Bóris Karloff no papel do velho Os poetas do período romântico
patriarca russo que acaba vampi- costumavam cercar a figura feminina de
rizando toda a sua família. A história uma aura de mistério, não raro associada à
tem como cenário a agreste campina perdição, e nenhum outro personagem na
sérvia, e seu ritmo, atmosfera e de- literatura representou melhor esta visão que
senlace feérico antecipam as narrativas mais a femme vampire. Assim, o Marquês de Urfé –
inquietantes que consagrariam o gênero cinematográfico personagem que relata a história da família
no século XX. Este foi o único papel de Karloff como vampirizada – deixa-se seduzir pela doce e ingênua Sdenka,
vampiro no cinema e, depois de ler o conto e assistir ao para depois descobrir a terrível verdade...
filme, tem-se a impressão que Tolstoi criou o perso-
nagem exclusivamente para que ele o interpretasse. O O fumante de haxixe e o Vampiro
filme toma poucas liberdades com o texto e mantém-se Uma história vampiresca pouco conhecida das Mil e
fiel à história original, preservando o seu clima fúnebre e Uma Noites foi traduzida para o francês, no século XIX,
sinistro. por Albert Caise. Aqui, a figura do vampiro assume uma
Aleksei Tolstoi escreveu A Família do Vurdalak du- morfologia mitológica que lembra o dragão das tradições
rante sua estadia na França, no final dos anos 30, entre as antigas. Esta curiosidade literária, intitulada O fumante
muitas viagens que fez ao estrangeiro no período de 1827 de haxixe e o Vampiro, provavelmente era conhecida
a 1839 (Alemanha, Itália e França). Este conto foi por Hoffmann, que pode ter se inspirado nela para escrever
originalmente redigido em francês e só publicado na Rússia O elixir do Diabo (não confundir este conto com a célebre
em 1883. novela do autor que recebeu o título de Os elixires do
Assim como outra obra sua – O Vampiro (1841) – Diabo). O ponto em comum entre ambas histórias é que
o herói desce às profundezas da terra, onde descobre um
atende ao gosto romântico pelas narrações de terror
mundo subterrâneo e acaba protagonizando uma série de
cultivadas na Rússia por muitos autores da época, dos
aventuras insólitas, até retornar à superfície. O desenlace
quais se destacam Gogol (Viyj), Dostoiewski (Bobok), das histórias é semelhante, mas enquanto o herói da
Turgueniev (Les Fanthômes), entre outros. O tema história das Mil e uma Noites é um consumidor de haxixe,
vampiresco se introduziu na literatura européia desde o o personagem de Hoffmann é um estudante de medicina
final do século dezoito, tornando-se eco de toda uma que ingere um miraculoso ponche — o elixir do Diabo —
série de crenças populares do leste europeu. , que acaba sendo o gatilho da história.
Tolstoi, que “não
pretendia ir adiante
do seu tempo” (como
confessa o seu perso-
nagem, Marquês de SONO POR DUAS SEMANAS
Urfé), não ficou
alheio à voga das
novelas góticas sur-
gidas durante a era ro-
mântica e além disso,
como russo, carregava
a herança mitológica
dos antigos eslavos
que inventaram as
lendas dos vampiros.
8 Jornal i vr
vroos

O Mago, de Bulwer-Lytton,
embrião de “Zanoni”
Quatro textos antológicos de Bulwer-Lytton, de épocas
diferentes, alguns engajados na vertente gótico-
fantástica: O Mago – inédito no Brasil até hoje –, A Casa
e o Cérebro , A Mor te e Sísifo , e Fi-Ho-Ti , ou Os prazeres
da celebridade .

ulwer-Lytton tam- metafísicas e filosóficas recor-


O Elixir do Diabo
e Mademoiselle B bém produziu nar-
rativas curtas e o
seu conto A Casa
rentes na obra de Lytton. Pará-
bola bela mas assustadora,
concebida quando ainda era
de Scudéry e o Cérebro é considerado uma estudante, O Mago já revela o
Brochura, 152 páginas, das melhores histórias de assom- talento descritivo e a imagi-
formato 13,5 X 20 cm. bração de todos os tempos. O nação poderosa que o colocaria
personagem maligno e imortal entre os autores ingleses mais
2017 desta obra teria sido inspirado lidos de sua época.
na figura do lendário conde de Mas Bulwer-Lytton não
Saint-Germain. produziu somente obras
Já O Mago — inédito no O Mago engajadas na vertente gótico-
Brasil até hoje — é um texto e outros Contos fantástica; incursionou tam-
pouco conhecido, embora seja Edward Bulwer-Lytton bém pelo gênero histórico e era
o embrião do célebre Zanoni e Bira Câmara Editor, seduzido pela temática mito-
de Raça Futura, que o con- 2014. Brochura, 138 lógica, como se pode ver pela
sagraram. Este conto pode ser páginas, formato 11 X sua versão do mito de Sísifo —
considerado uma parábola ao 20 cm.. Tradução de “A Morte e Sísifo”. Neste
Júlia Câmara. Ilustrações
estilo de Pöe, com toques faus- conto, o autor adota um estilo
de Odilon Redon, Van
tianos. Intitulado originalmente Gulik, Friedrich John e leve e conciso, com toques de
O Conto de Kosem Kesa- Bira Câmara. humor, o que contrasta com a
mim, aborda o tema da gravidade da maioria de suas
imortalidade, produções.
entre outras O conto chinês de Fi-ho-ti,
questões ou Os Prazeres da Celebridade
(1835), apesar de ser um produto
de seus tempos de estudante, pode ser
Jornalivros considerado como uma obra prima do
Boletim informativo conto filosófico. Despido do cunho
de literatura e fantástico e simbólico de O Mago, este
bibliofilia texto se destaca dos outros pela ironia
Contato: quase voltaireana, que há de agradar até
aos leitores de nosso Machado e de Eça
jornalivros@gmail.com de Queiroz
www.jornalivros.com.br Portanto, estas quatro narrativas
biracamara-editor.blogspot.com oferecem ao leitor a oportunidade de
apreciar a evolução do escritor a partir
Todos os textos deste de uma criação de seus tempos de
informativo são de estudante e de um produto de sua
autoria de Bira Câmara. maturidade literária.
É proibida a reprodução
dos mesmos sem
autorização. PEDIDOS: jornalivros@gmail.com

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