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Textos Completos do XII painel - As arquiteturas do medo e o insólito ficcional / ISBN 978-85-8199-023-1

Encontros noturnos em “Noites Brancas”, de


Gastão Cruls: traços do vampirismo na Literatura
Brasileira

Ana Paula A. Santos1

Introdução

O vampiro é um personagem bastante presente na cultura midiática.


Desde o século XVIII, quando esse personagem ganhou espaço na Literatura
através da publicação das primeiras histórias sobre vampiros, o tema tornou-se
popular, sendo, até os dias atuais, aproveitado pelo cinema, pela música, pelas
histórias em quadrinhos e pelos videogames, entre outras mídias.
No âmbito literário, as histórias sobre vampiros integram o cânone da
literatura do medo. Esta última compreende narrativas cujo principal objetivo é
produzir no leitor, como efeito estético de leitura, a emoção do medo artístico (cf.
FRANÇA, 2011). Esse tipo de emoção é suscitada, entre outras formas, através
da inserção de elementos que provoquem horror, terror, repulsa e suspense na
narrativa. A literatura vampírica proporciona ao leitor certo prazer estético, que
vai além da existência de um personagem sobrenatural: deve-se, também, à
exploração de atos monstruosos e de um cenário oportuno à produção do medo.
O presente trabalho pretende analisar a temática vampiresca no conto
“Noites Brancas”, de Gastão Cruls, e no romance A mortalha de Alzira, de Aluízio
de Azevedo. É importante ressaltar, em primeiro lugar, que o vampiro será
tratado como personagem monstruoso em suas narrativas, de acordo com sua
capacidade de causar medo nas obras. Noël Carroll, em sua obra A Filosofia
do horror ou Paradoxos do coração, nos fala a respeito das características
dos monstros nas narrativas de horror. Segundo ele: “o monstro na ficção de
horror não é somente letal, como também – e isso é da maior importância –
repugnante.” (CARROLL, 1999, p. 39). O vampiro carrega ambos os aspectos,
expressos principalmente através de sua necessidade de alimentar-se do
sangue de suas vítimas – o que, dados os simbolismos atribuídos a esse fluido
vital pelas culturas em geral, é algo tanto letal quanto repugnante.
Os enredos das histórias de vampiros apresentam, também, consonância
com alguns dos esquemas observados por Carroll em suas reflexões. Para o

1 Graduanda do Curso de Letras da UERJ e bolsista de iniciação científica membro do Grupo de Pesquisa “O Medo
como Prazer Estético”, sob a orientação do Prof. Dr. Julio França (UERJ).

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filósofo americano, a produção do horror nas narrativas ficcionais utiliza-se de


certas estratégias formais. Entre elas está o que ele chama de “descobrimento”,
o processo de tornar cognoscível a ameaça antes desconhecida. Assim ocorre
na maioria das histórias de vampiro, onde o enredo se desenvolve a partir do
descobrimento da criatura e da consequente destruição desta. O historiador
francês Claude Lecouteux (2005, p. 139), em Histórias dos Vampiros: autópsia
de um mito, chama atenção para como a eliminação do vampiro é o clímax
desse tipo de narrativa: “A eliminação do vampiro representa o ápice do horror
e do pavor nos romances góticos e no cinema”. O clima de mistério e suspense
advindo do aparecimento de um elemento sobrenatural e o enfrentamento
dessa criatura no decorrer das narrativas são, portanto, elementos das histórias
de vampiros que mostram a preocupação com a produção do medo artístico.
O sucesso de tais histórias não se explica, contudo, apenas por esses
elementos estruturais. O vampiro pode ser encontrado em mitos e antigas
narrativas populares muito anteriores à literatura moderna. Esse personagem
arquetípico está relacionado a temas caros ao ser humano, como doença,
sexualidade e morte, o que garantiu sua longevidade e sua difusão.
O século XIX e o início do XX foram o auge da literatura vampiresca
europeia e norte-americana. No Brasil, contudo, o personagem jamais encontrou
a mesma ressonância. Descobrir os motivos para a ausência do vampiro
em nossa literatura norteará o desenvolvimento deste trabalho. Para tanto,
proporemos a análise dos contos “Noites brancas” [1920], de Gastão Cruls,
e “A esteireira” [1898], de Afonso Arinos, e também do romance A mortalha
de Alzira [1891], de Aluízio de Azevedo, buscando refletir sobre os traços do
vampirismo deixados na literatura nacional.

Traços de vampirismo em “Noites brancas”

De acordo com Claude Lecouteux (2005, p. 14), as primeiras


manifestações do vampiro na Literatura tiveram sua origem com a apropriação
de uma série de informes, mitos e causos pertencentes principalmente ao
folclore da região balcânica, no sudeste europeu. Porém, muitos foram os mitos
e as culturas que contribuíram para formar a concepção do que entendemos
por vampiro até os dias de hoje. Obviamente, essa miscigenação de culturas
está refletida na extrema variedade de tipos de personagens vampíricas, que
parecem convergir para um único traço em comum: a do morto que volta ao
mundo dos vivos para atacar suas vítimas à noite.
Lecoutex define essa criatura através de seu modus operandi: “o vampiro

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é um sugador de sangue que se aproxima à noite de quem está dormindo e


provoca-lhe morte lenta aspirando sua substância vital” (Ibid., p. 10). Ao conceituá-
lo dessa forma, o historiador chama atenção para os principais aspectos da
temática vampiresca, como o ato de beber o sangue de suas vítimas e os encontros
predominantemente noturnos que, somados ao aspecto sexual e a ligação com as
enfermidades, constituem elementos recorrentes nas narrativas vampíricas.
Através dessa definição mínima, é possível compreender “Noites
Brancas”, de Gastão Cruls, como uma típica história de vampiros. Neste conto,
o protagonista, Carlos de Azambuja, um estudante de quase dezoito anos,
está às voltas com o mistério acerca da identidade de sua amante noturna. A
narrativa se inicia com o convite que provocará o intercurso sexual entre ambos:

Carlos – Se tu queres conhecer a volúpia de meus beijos, deixa a


tua porta aberta e, esta noite, quando todos dormirem, no mistério
da treva e do silêncio, eu te virei proporcionar o mais lindo sonho de
amor. (CRULS, 1951, p. 59).

O bilhete cria em Carlos uma hesitação que possui motivações morais:


tendo ele se hospedado na fazenda do Coronel Jesus – onde as únicas
presenças femininas eram a esposa do Coronel, D. Clarice, e as filhas Olga
e Leonor –, aceitar o convite significaria cometer um ato contrário aos bons
costumes, agravado pelo fato de se desconhecer a identidade da remetente.
Ainda assim, o jovem estudante cede ao convite. Carlos deixa sua porta
aberta, levado pelas tentações inferidas e imaginadas a partir do conteúdo do bilhete,
dando início aos encontros noturnos nos quais se baseiam a história do conto:

Não havia mais dúvidas: a sua porta teria que ficar aberta...
E ficou. Ficou e ela veio, não uma, mas muitas outras noites a seguir.
Olga? Leonor? D. Clarice? Era o que Carlos não sabia e não cessava
de se perguntar a si mesmo, desde a primeira vez em que, mal
sopitando de emoção, tateara na treva e retivera entre os braços
aquele cálido corpo de mulher, que todas as noites se intrometia no
seu leito e lhe oferecia o seio à sofreguidão dos lábios febris. (CRULS,
1951, p. 66).

A preferência da amante misteriosa pelas noites escuras aproxima-a


do modo de agir típico de vampiros clássicos da literatura, como Carmilla, de
Sheridan Le Fanu [1872], e Drácula, de Bram Stoker [1897]. A analogia entre a
visitante noturna e uma criatura vampírica, insinuada pelo narrador, abre, para
o leitor, a possibilidade de interpretar os encontros como eventos sobrenaturais:

Afigurava-se-lhe mesmo uma negrejante vilania querer supor


que aquela figura tão fina, tão angélica, tão espiritual, se pudesse

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transformar no vampiro luxurioso e insaciável, que todas as noites


o possuía furiosamente, a arder na febre de mil desejos. Tão leves
eram seus passos e tanta a treva que a cercava, que, não raro, Carlos
só pressentia a amante quando ela, já abeirada do seu leito, deixava
cair as vestes e uma onda de perfume se lhe espalhava pelo quarto
todo. (Ibid., p. 68).

É preciso chamar a atenção para o ambiente construído por Cruls na


narrativa. O espaço narrativo segue algumas convenções típicas dos cenários
góticos, tais como a noite, as trevas e o decadente, como modo de evocar um
clima sobrenatural que contribua para a produção de uma emoção mais intensa
de vulnerabilidade e, consequentemente, de medo.
Há claramente a utilização de um vocabulário gótico, como se pode
observar nas passagens: “Tão leves eram seus passos e tanta a treva que a cercava”,
“longas saturnais, estiradas por noite a dentro, à revelia de sustos e apreensões” e
“a amante escoava-se presto do seu leito e lá se ia quarto em fora, sombra fugidia
e evanescente” (CRULS, 1951, p. 68-69). A utilização desses elementos contribui
para a construção do caráter vampiresco da amante misteriosa, uma vez que os
cenários dos romances góticos serviram como um ambiente assaz adequado para
inserção da figura do vampiro na modernidade, como aponta Claude Lecouteux:

O terreno já tinha sido preparado pelo movimento literário da


Gothic novel (...) que repôs em moda elementos da paisagem que
encontramos nas histórias de vampiros, a saber: velhos castelos
deteriorados, capelas em ruínas, cemitérios abandonados.
(LECOUTEUX, 2005, p. 20).

Ainda no plano da análise estrutural da narrativa, faz-se necessário


observar as particularidades da personagem amante de Carlos. Em primeiro
lugar, vale lembrar que é justamente ela a responsável por conferir um clima
sobrenatural e fantasmagórico ao conto de Cruls, mas não apenas isso: a
escolha do autor por uma personagem do sexo feminino corrobora a forte carga
erótica presente na história. Segundo Alexander Meirelles em sua introdução à
obra Contos clássicos de vampiro, Byron, Stoker e outros:

Ele [o vampiro] não ataca simplesmente visando o sangue, pois


há a presença de um elemento erótico entre ele e sua vítima e os
elementos eróticos ou libertinos ganham mais destaque na narrativa
do que a necessidade de sangue. (SILVA, 2010, p. 28).

Muitas são as personagens femininas que encarnaram a figura do


monstro vampírico. A título de exemplo temos A noiva de Corinto, em Goethe;
Geraldine, em Christabel, de Coleridge; Carmilla, em Sheridan Le Fanu; Lucy

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Westenra em Drácula, de Bram Stoker. Mas a obra com que “Noites Brancas”
mais dialoga é o célebre conto de Théophile Gautier, “A morta amorosa” [1836].
Os acontecimentos deste assemelham-se bastante aos daquela: em ambos há
a atmosfera sobrenatural e de sonho, a apropriação de vocabulário e cenários
da estética gótica, e os encontros noturnos com uma personagem misteriosa.
Também, no conto de Gautier, o personagem principal é subjugado pelos
atributos sexuais da figura vampírica, a saber, a cortesã Clarimunda:

Eu já não podia mais ter dúvidas, o abade tinha razão. Contudo,


apesar dessa atitude, eu não conseguia deixar de amar
Clarimunda, e de boa vontade daria a ela todo o sangue de que
precisasse para sustentar sua existência artificial. Por outro lado,
eu não tinha muito medo, a mulher me compensava da vampira.
(GAUTIER, 2010, p. 157).

Recorrente nas duas narrativas, o erotismo é o meio utilizado por


essas personagens femininas para alcançar seus intentos. Para Clarimunda, o
intercurso sexual proporciona a manutenção de sua sobrevida vampírica. E é
nessa característica que reside a monstruosidade desse tipo de personagem. A
fusão entre a bela defunta e a mulher fatal é comum à estética do Romantismo,
representando uma transgressão à rígida moral da sociedade, que, por muito
tempo em nossa história, impediu a mulher de se mostrar sexualmente ativa.
É apenas ao final da narrativa de “Noites Brancas” que o suspense acerca
da identidade da personagem é finalmente revelado, com um clímax que provoca
uma reviravolta inesperada para o leitor. Há uma noite em que a misteriosa amante
de Carlos falta ao seu encontro e, na manhã seguinte, o Coronel Jesus informa
ao estudante que uma hóspede secreta da fazenda, Maria Clara, irmã de D.
Clarice, veio a falecer por conta de um mal incurável que a consumia há tempos:
a morfeia, doença conhecida hoje como lepra ou hanseníase.

Neste ponto da narrativa, fica claro para o protagonista e para


os leitores que a misteriosa figura vampírica era essa irmã de D.
Clarice, que vivia em segredo na fazenda, consumindo-se pouco a
pouco pelo mal infeccioso e altamente transmissível. Após o relato
do Coronel Jesus, a lembrança dos encontros noturnos torna-se,
por conseguinte, uma fonte indireta de repulsa sentida por Carlos e
transmitida para o leitor: Carlos, à medida que ouvia essa narrativa,
sentia o coração aos pulos e sucessivos calafrios de terror lhe
percorriam os músculos. Um suor viscoso inundava-lhe o corpo,
que todo se agitava num tremor nervoso. E, mais adiante, no trecho
final: Carlos sentia pela primeira vez na boca o travo daqueles
beijos, que se muito o fizeram gozar, mais ainda o fariam sofrer.
(CRULS, 1951, p. 71).

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O mito do vampiro sempre esteve ligado a doenças. As famigeradas


mortes em massa, atribuídas aos vampiros no início do século XVIII, na maioria
das vezes correspondiam aos surtos de doenças epidêmicas que assolavam
a Europa desde a época medieval, do qual a epidemia da peste bubônica é o
mais conhecido (SILVA, 2010, p. 21). Nestes termos, as enfermidades passaram
a ser um traço inerente ao mito vampírico, através da construção de um drama
acerca da gradativa perda de forças sofrida pela vítima e da transmissão dessa
espécie de maldição de redivivo. No caso de “Noites brancas”, além do aspecto
repulsivo dos contaminados pela lepra, há ainda o caráter contagioso do mal,
que é transmissível pela saliva. Tais peculiaridades da enfermidade permitem
um paralelo com a própria condição vampírica.
Se, ao atribuir a causa dos males da história à doença, Gastão Cruls anula
o elemento sobrenatural que permeava a narrativa, optando por um desfecho
realista, não se pode dizer o mesmo em relação à configuração vampírica
presente em “Noites brancas”. Afinal, como já mostrado, desde muito tempo
as enfermidades são um elemento eloquente intercalado aos mitos e causos
relacionados ao vampirismo. Pode-se concluir então que, em seu conto, Gastão
Cruls faz do vampiro uma metáfora, mantendo, mesmo ao final da narrativa, os
traços característicos das histórias tipicamente vampirescas.

O vampiro como metáfora na Literatura Brasileira

O emprego metafórico do vampiro observado em “Noites brancas”


não é um caso isolado na Literatura Brasileira. Assim como no conto de Cruls,
duas outras obras nacionais remetem ao tema do vampirismo sem, contudo,
afirmá-lo. São elas, A mortalha de Alzira, romance de Aluísio de Azevedo, e “A
esteireira”, conto de Afonso Arinos.
A primeira, sendo uma adaptação da obra “A morta amorosa”, de
Gautier, mantém semelhanças de enredo e de personagens que vão além do
nível intertextual: constituem um tributo ao famoso conto de vampiros do escritor
francês. Curiosamente, a presença incontestável da criatura sobrenatural – tão
forte e aparente em “A morta amorosa” sob a forma da vampira Clarimunda – é
suprimida no romance de Azevedo. Não há, em toda obra, uma única alusão a
um vampiro, ainda que a personagem Alzira assuma um papel equivalente ao
da personagem de Gautier. Ao final de sua obra, Aluísio de Azevedo mantém
a atmosfera onírica que ambienta o romance e conclui, de forma dramática, o
binômio amor e morte, mas se abstém de uma explicação acerca da verdadeira
natureza sobrenatural de sua femme fatale.

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Já no conto de Afonso Arinos, a metáfora fica por conta de uma única


cena, em que a personagem principal, Ana, a esteireira, suga o sangue de sua
rival após tê-la matado:

Ana, sem que a companheira o percebesse, saca de uma navalha


e, vibrando-a com a mão rápida e firme, corta a carótida à infeliz
companheira, que estava unida a si, abraçada à sua cintura, na
garupa do animal. Caíram ambas, e Ana, não querendo que na
estrada houvesse grande marca de sangue, encostou os lábios ao
lugar de onde irrompia aos cachões, e, carnívora esfaimada, chupou,
chupou por muito tempo. (ARINOS, 2006, p. 60).

Novamente, em nenhum momento temos a menção a uma personagem


vampira. A explicação para o estranho comportamento de Ana provém do
temor de que houvesse rastros do assassinato que esta acabara de cometer.
Contudo, podemos relacionar tal comportamento transgressor, sobretudo, por
um crime que possui motivações passionais, a um comportamento vampírico. O
aspecto monstruoso presente na esteireira advém da mesma fonte que confere
monstruosidade a personagens como Carmilla, Clarimunda, Lucy Westenra,
entre outras vampiras célebres: o fato de ingerir o fluido vital do sangue.
Em ambos os casos, os autores das narrativas apresentadas flertam
com o tema do vampiro em nossa Literatura. Contudo, nem Aluísio de Azevedo
nem Afonso Arinos deixam claras qualquer referência ao mito ao longo de suas
narrativas, tornando difícil, dessa forma, a compreensão destas como genuínas
histórias de vampiro nacionais. Ainda assim, é possível e interessante notar
os traços vampíricos presentes nas duas histórias, e observar que o vampiro
também faz parte de nossa literatura do medo, mesmo que se apresente
discretamente, sob a forma de metáforas.

Conclusão

Após as análises apresentadas e propostas no presente trabalho, é


possível compreender que a figura do vampiro está de todo ausente na Literatura
Brasileira do período estudado. A clara preferência dos autores em utilizar
apenas metaforicamente o vampiro é uma mostra de que esse personagem
arquetípico foi suprimido à nossa literatura do medo – resta-nos saber o porquê.
Em primeiro lugar é preciso considerar que, diferente da cultura
dos autores responsáveis pela inserção do tema do vampiro na Literatura,
a nossa teve pouca ou quase nenhuma convivência com as lendas do leste
europeu. Esses construtos folclóricos, como abordado anteriormente, serviram

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de principal fonte para disseminar no imaginário popular o mito do vampiro,


e foram apropriados pelos escritores do século XVIII, gerando as primeiras
representações literárias do vampirismo, e introduzindo, com sucesso, esse
personagem na literatura. De acordo com Alexander Meirelles, o exotismo e
o folclore sobrenatural da região balcânica foram os pontos responsáveis por
suscitar o interesse da Europa Ocidental e produzir o levante vampírico que
assolou o século das luzes (SILVA, 2010, p. 20).
Ademais, o clima, a região e o folclore balcânicos se mostraram desde
sempre propícios para a popularização do mito, tornando-se, muitas vezes, o
cenário perfeito para a ficção de cunho vampírico. A ciência mostra que, por uma
série de condições facilitadas pelo frio europeu, a conservação dos cadáveres
se dava de forma mais prolongada, como apontado no excerto abaixo:

O intenso frio europeu por vezes ajudava na preservação do corpo.


Da mesma forma, a presença do sangue na boca era resultante
da decomposição dos órgãos, liberando fluidos pelos orifícios
do corpo. Por fim, pesquisas mostram que algumas funções
bioquímicas do corpo humano, como a troca celular, continuam
ativas em um corpo, mesmo após a morte. Tal fato explica o
crescimento de cabelos e unhas nos cadáveres suspeitos. Essa
aparência de crescimento intensifica-se a partir da perda de água
do organismo (...). A junção de todos os fatores criou o vampiro na
mentalidade popular. (Ibid., p. 22).

Pode-se perceber, portanto, que uma série de fatores culturais e


sociais fizeram do vampiro uma realidade literária – fatores estes que faltavam
à realidade sociocultural brasileira. O clima tropical e a falta de intercâmbio
com os mitos vampíricos podem ser apontados como motivos para que este
personagem jamais tenha penetrado de forma efetiva em nossa literatura.
Em segundo lugar, devemos considerar a inegável preferência da
Literatura Brasileira por uma ficção de cunho realista, que, se não inibiu por
completo a produção de obras de cunho fantástico e/ou sobrenatural, ao
menos restringiu a produção daquelas em que o elemento sobrenatural é o
responsável por provocar o medo artístico. O resultado disso é que temos muito
mais monstros humanos em detrimento de monstros puramente sobrenaturais –
diferentemente da maioria do cânone da literatura do medo.
Aos autores, restavam poucas opções para a inserção de um tema
caracteristicamente sobrenatural como é o tema vampírico. A solução, como
foi mostrado anteriormente, foi transformar o vampiro em metáfora, tal qual
pudemos observar em “Noites Brancas”, A morta amorosa e “A esteireira”.

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Pode-se dizer, por fim, que o vampiro não encontrou no Brasil uma
terra fértil onde pudesse aportar e atacar suas vítimas – à maneira do Drácula
de Bram Stoker. Porém, dignou-se a deixar certos traços em nossa Literatura e
espalhar, de forma semelhante, o medo, através de sua famigerada maldade.

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Referências:

ARINOS, Afonso. A esteireira. In: Contos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. P. 51-62.

AZEVEDO, Aluísio de. A mortalha de Alzira. Rio de Janeiro, Fundação Biblioteca


Nacional.

CALMET, Auguste. Informe sobre os vampiros. In: Histórias de Vampiros. Tradução:


Torrieri Guimarães. Brasil: Hemus, 2008. P. 23-38.

CARROLL, Noël. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. São Paulo: Papirus,


1999.

CRULS, Gastão. Noites Brancas. In: Contos Reunidos. Rio de Janeiro: José Olympio,
1951. P. 59-71. Disponível em: < www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000045.
pdf>. Acesso em: 23 de maio de 2013.

FRANÇA, Júlio. As relações entre “Monstruosidade” e “Medo Estético”: anotações para


uma ontologia dos monstros na narrativa ficcional brasileira. Anais do XII Congresso
Internacional da ABRALIC. Curitiba: ABRALIC, 2011.

GAUTIER, Théophile. A morta amorosa. In: Contos clássicos de vampiro, Byron, Stoker
e outros. Org. COSTA, Bruno. Tradução Marta Chiarelli. São Paulo: Hedra, 2010. P.
123-161.

LECOUTEUX, Claude. Histórias dos Vampiros: autópsia de um mito. Tradução: Álvaro


Lorencini. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

SILVA, Alexander Meireles da. Introdução. In: Contos clássicos de vampiro, Byron,
Stoker e outros. Org. COSTA, Bruno. Tradução Marta Chiarelli. São Paulo: Hedra, 2010.
P. 9-41.

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