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Ainda hoje são poucos os estudos sobre escritoras brasileiras. Isso acontece não
às custas de alguma raiz machista que ainda pulsa sob as lages do pensamento
brasileiro, mas, provavelmente, porque o montante de informações que temos sobre
escritoras brasileiras é pequeno. Alguns nomes como Júlia Lopes de Almeida, Cora
Coralina, Nísia Flores, Hilda Hilst, Cassandra Rios, Carolina Maria de Jesus 1... são até
conhecidos, mas pouco investigados se pensarmos a quantidade de estudos existentes
sobre autores brasileiros como Machado de Assis, José de Alencar, Guimarães Rosa,
Vinícius de Moraes...
Por exemplo, quantos conhecem Olavo Bilac e seus versos parnasianos e nunca
ouviram falar em Francisca Júlia, sua contemporânea e considerada “o poeta
parnasiano” mais parnasiano em seus versos. (c.f. Bosi). Já foram feitas diversas
pesquisas sobre um dos primeiros romances brasileiros A Moreninha, de Joaquim
Manuel de Macedo2. E quantas foram feitas sobre a primeira escritora a publicar um
romance em 1859, Maria Firmina dos Reis3?
O seu romance, Úrsula, conta a história de uma jovem (cujo nome dá o título à
obra) que está presa junto a mãe enferma na fazenda do tio. O tio, que amava a mãe
(e, por isso, comprara todas as dívidas do falecido marido para obrigá-las a viver sob
seu teto), decide ter Úrsula para si e fugir com ela. Mas Ursula é apaixonada por um
1
Há um catalogo com informações sobre algumas escritoras brasileiras do século XVIII ao XX,
organizado pelo Grupo de Trabalho Mulheres e Literatura, da ANPOLL (Associação Nacional de Pós-
graduação e Pesquisa em Letras e Linguística) que pode ser acessado pelo site:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/index1.htm.
2
Muitas pessoas acham que A Moreninha (1844) é de fato o primeiro romance romântico brasileiro. Mas
há críticos que tomam O filho do pescador (1843) de Antônio Gonsalves Teixeira e Souza como o
primeiro, mesmo com algumas falhas na sua narrativa romanesca.
3
jovem bacharel, com quem tenta fugir antes que seu tio a leve para longe. Os
enamorados são capturados e o jovem é morto. A moça enlouquece e amaldiçoa o
vilão. O que surte efeito, pois ele morre. O livro é intrigante, segundo Norma Telles, em
Escritoras, Escritas, Escrituras. Porém, não é por causa do tema de incesto, amor e
morte, nem por causa do estilo gótico da narrativa. Num determinado ponto do
romance, Úrsula comenta que inveja um ex-escravo, pois ele agora é mais livre do que
ela. Ou seja, Reis toma como pano de fundo para discussão o tema da escravidão e da
condição feminina no século XIX, algo praticamente inédito na época e incrível por ter
sido escrito por uma mulher (se pensarmos a partir da mentalidade então vigente).
As escritoras do século XIX, e até mesmo, as de décadas atrás, precisavam
quebrar imagens construídas em torno da condição feminina. Os anjos oitocentistas
deveriam perder as penas de suas asas, arrancando uma a uma, para transformá-las
em penas para escrever. As mães e donas de casa (que deveriam ser “honradas”)
eram vistas como rebeldes ou excêntricas por mergulharem nas sombras de si
mesmas e revelarem-se por trás e na frente das páginas de seus livros, muitas vezes,
confundindo-se com suas próprias personagens.
Esse poderia ser o caso de Suzana Flag. Autora que publicou folhetins nos jornais
O Jornal (de Assis Chateaubriand) e Última Hora (de Samuel Wainer) e no semanário
Flan e que se tornou best-seller nos anos 1940 e 1950. Que teve ainda seu romance
Meu Destino é Pecar (1944) transformado em novela de rádio, em filme de Manuel
Peluffo (1952), em minissérie da Globo (1984) com Lucélia Santos, Tarcísio Meira e
Marcos Paulo (nos papéis de Leninha, Paulo e Maurício, respectivamente) e em peça de
teatro (2002) pela Cia. dos Atores (dirigida por Gilberto Gawronski).
Mas quem é Suzana Flag? Quem se esconde por debaixo desse nome, por detrás
das linhas dos romances folhetinescos: Meu Destino é Pecar, Escravas do Amor,
Núpcias de Fogo, O Homem Proibido, A Mentira, e da “auto”biografia folhetinesca
Minha Vida?
Ainda:
“Era menina e tinha coração de mulher”;
“Foi a maior humilhação que uma mulher podia sofrer”;
“Ele procurava na tempestade seu perdido amor”;
“Era o meu adeus à vida” (c.f. Fonseca)
A explicação para isso vem através da diferença entre romance e folhetim. Neste
não há um contrato com a realidade forte como num romance. E não se espera que
ele seja lido diretamente como um livro e sim, em pedaços, de acordo com a
publicação periódica num jornal.
O folhetim surgiu como uma espécie de casamento entre a imprensa e a
literatura, um filho bastardo, renegado (c.f. Fonseca). Seu aparecimento é dado na
França, na década de 1830. Desde sua criação, ele foi visto como uma “leitura
digestiva”, de entretenimento, sem maiores preocupações estilísticas ou narrativas.
Normalmente a temática era a mesma, a velha luta entre o bem e o mal, mas a
técnica era cuidadosa na sua construção: era preciso escrever de uma forma que o
leitor ficasse pregado até o próximo capítulo. Com a abertura do Romantismo para o
melodramático, o folhetim também foi afetado através das paixões exacerbadas e o
gosto pelo exótico e sobrenatural; a moral melodramática também apareceu de forma
simplificada (a vitória do bem no final) e as personagens melodramáticas
estereotipadas entre dois modelos: bondade ou malícia. Os ambientes e temas não
eram os do cotidiano. Geograficamente, a história se passava em lugares distantes e
cheios de mistérios (o que lembra os textos góticos) ou as ações se reduziam a casas
em que todas as personagens habitavam ao longo da trama (como um mundo à
parte). O tempo não tinha muita importância, mas a natureza era uma marca de fundo
para os sentimentos, como era feito no Romantismo.
Além disso tudo (que pode ser encontrado em Suzana Flag), os temas de Suzana
carregam sempre um tom de morbidez e ironia cínica (principalmente, em relação à
figura da mulher), afinal, “a vida como ela é; feia, vil, trágica” é a sua principal
temática. Não encontramos o cotidiano em suas histórias, no entanto. As personagens
não trabalham, não têm obrigações, parecendo viverem num mundo à parte e à base
de emoções primordiais que são aumentadas ao quíntuplo grau. Tudo é trabalhado
num plano superlativo, febril, quase mítico, em que as personagens lembram
protótipos dos deuses do Olimpo. Esse exagero leva a um estado de “irrealidade” que
pode perturbar alguns leitores. Esse tom dado é para não deixar que as coisas passem
desapercebidas, como nós tentamos fazer no dia-a-dia. Coisas estas, que não estão
diretamente relacionadas à vida das pessoas e sim, sobre as relações emocionais
entre pessoas. E apesar de toda uma visão negativa da vida, cheia de mortes,
tristezas e infortúnios, chega-se a um final feliz. Quem deve ser punido é punido,
quem merece ser feliz é feliz, seguindo a moral tradicional do folhetim.
Ele recebeu uma resposta à altura na edição seguinte sob o pseudônimo de Rosa
Bárbara:
“Os ‘rapazes honestos’ a quem os senhores Menotti Del Picchia e seus colegas de crítica se
referem, os chamados ‘filhos-de-família’, tomam por elegante e de bom-tom passar suas noites
‘nas casas de divertimentos livres, ao jogo ou nos cafés, embrutecendo o espírito, aviltando a alma
e arruinando o corpo pelas bebidas, cocaína, morfina ou cartas de pôquer. É a esses homens pouco
educados que as esposas se entregam (...) Ainda teremos o ‘prazer de ouvir e de ver uma moça
(...) quedar-se indecisa, mirando e remirando a elegância do pretendente, interrogando-se com
prudência... Caso ou não caso?’” (idem).
4
A história de Ercília em si já daria um bom romance. Ela era filha de uma família decadente de
fazendeiros. Fica órfã e é educada para se tornar esposa e mãe dedicada. Foge de casa e é encontrada
e internada numa instituição para “moças perdidas”. Depois se torna professora e sob o pseudônimo de
Suzy se torna dona de uma “casa de mulheres” em Caxias do Sul (Rio Grande do Sul).
violência5. Isso não estava diretamente escrito no código, porém, quando uma mulher
entrava com uma ação contra seu marido na Justiça e ele desse “motivo” para a
violência (ela o traíra ou não o obedeceu ou o injuriou... enfim, de alguma forma, a
mulher usurpara o direito dado pelo código ao marido), ela passava de vítima à ré. A
razão estava sempre com o homem.
O Código Civil também era para assegurar a ordem na sociedade. Mas havia
momentos em que isto estava tão enraizado na mentalidade do marido, que não eram
raros os suicídios desesperados porque não estavam conseguindo cumprir seu dever
como provedor ou porque alguma derrota moral havia acontecido. O personagem, pai
de Suzana, em Minha Vida, é um exemplo disso. Depois de descobrir a traição da
mulher (que se matou por causa do amante), acaba tirando sua própria vida numa
mistura de dor pela perda (amava ela) e humilhação (por não tê-la controlado como
um marido devia fazer).
Uma mulher não podia trair. E se traía não podia dar boa mãe (c.f. Bassanezi).
Esse era o pensamento da época que também está nas entrelinhas de Minha Vida, na
posição da mãe de Suzana, uma mulher que não cuidava dela nunca e chegava até a
odiá-la. As mulheres tinham que controlar seus desejos e não destruir o lar, mesmo
que o marido desse suas escapulidas. Desde que eles mantivessem as aparências e
continuasse provendo a família, não havia problemas para tal. A articulação traição e
fidelidade, tão presente também nos textos, revela por detrás de si a concepção da
época que os homens e as mulheres eram vistos como biologicamente diferentes e
sua psique estava atrelada a isso. Dessa forma, cada um teria uma missão diferente a
cumprir na sociedade seguindo esse determinismo biológico (homem: procura,
domina, penetra, possui; mulher: atrai, abre-se, capitula, recebe). Mesmo assim, havia
o desejo de civilizar o amor, regrar comportamentos sexuais, e o casamento era uma
das formas de se obter isso, além de garantir controle sobre o poder e economia.
Mas mulher exigente e dominadora era sinônimo de má esposa. Em sua vida, o
marido era quem devia estar em primeiro lugar. Deveria animá-lo, confortá-lo, nunca
discordar dele... E um casal não deveria ter muitos interesses em comum fora a
5
Numa cena de Minha Vida, comenta-se a relação violência e amor e a necessidade de algumas
mulheres em sentirem-se ou aceitarem ser dominadas por homens: “-Mas isso é bom; é bom para o
amor, que a mulher tenha medo do homem. Eu –está ouvindo?- só gostarei de um homem que, um dia,
se eu der motivo, possa me partir em dois, me matar. Este homem eu amarei toda a vida! É preciso que
eu tenha medo dele!” (Flag, 2003, p.95).
família. “Qualidades como paciência, espírito de sacrifício e capacidade para sobrepor
os interesses da família aos seus interesses pessoais.”, explica o papel da mulher a
revista O Cruzeiro, de 1960. (Bassanezi, p.627).
Sacrifícios pessoais e interesses da família: duas questões primordiais nos
folhetins de Suzana Flag. A todo momento, as moças são postas à prova, obrigadas a
se casarem com que não querem por pressão da família. Porém, vale lembrar que, por
exemplo, em Minha Vida e em Meu Destino é Pecar, Suzana e Leninha são obrigadas a
se casarem com homens brutais6 e aparentemente maus e sem caráter (Aristarco e
Paulo), mas que se revelam, no fim, os personagens com mais caráter e capazes de
poderem fazê-las aceitar seus destinos de mulheres casadas e subservientes aos seus
maridos como toda a mulher da época deveria ser.
Em 1924, a Revista Feminina lançou um decálogo sobre como a esposa deveria
agir. Em primeiro lugar havia: “Ama teu esposo acima de tudo na terra e ama o teu
próximo da melhor forma que puderes; mas lembra-te de que a tua casa é de teu
esposo e não do teu próximo.” O último fala sobre o marido que abandona e o fato de
ficar esperando ele voltar, pois “és ainda a honra do seu nome. E quando um dia ele
voltar, há de abençoar-te”. (Maluf e Mott, p.396). E o mais importante: “Lembrei-me
que o casamento é para a vida toda; que nunca mais poderia olhar para outro
homem.” (p.149), diz Suzana, a personagem principal em Minha Vida.
Gostava de ser fiel a um marido morto. Isso lhe parecia bonito, doce. Tinha a impressão de que, se
casasse, faria uma traição, uma infidelidade. Dizia a todo o mundo, sóbria, digna, castíssima no
seu luto:
- Estou bem assim! (Núpcias de Fogo, de Suzana Flag)
6
“Mas havia, talvez, no fundo de cada uma de nós, mulheres, uma espécie de prazer, secreto,
inconfessado, agudo, diante da cena bestial (...) um pouco desse deslumbramento que a mulher sente
diante da força bruta.” (Flag, 2003, p.117).
havia uma análise sobre a decisão tomada. As que optavam por criar uma violenta
cena de ciúmes eram vistas como as de temperamento incontroláveis e as mais
propensas a perder o marido e, ainda explica, “após uma dessas pequenas
infidelidades, volta mais carinhoso e com um certo remorso.” Também havia a opção
de deixar a casa. A revista avisava que essa era a decisão mais insensata a se tomar.
“Que mulher inteligente que deixa o marido só porque sabe de uma infidelidade? O
comportamento poligâmico do homem é uma verdade; portanto, é inútil combatê-lo.
Trata-se de um fato biológico que para ele não tem importância”. Uma terceira opção
era a de fingir ignorar tudo e arrumar-se mais para atraí-lo (“Um homem que tem uma
esposa atraente em casa, esquece a mulher que admirou na rua.”, era o ditado da
época). Essa é tida como a coisa mais acertada a se fazer. A possibilidade de desquite
ou trair em retorno (a maior humilhação que um homem poderia sofrer e que levaria
até à morte, sem que ele fosse condenado pela opinião pública ou pela justiça) não
eram nem cogitadas, pois em ambas a mulher sofria preconceito.
A distinção entre o papel masculino e o feminino era necessário na época.
Principalmente, depois da Segunda Guerra Mundial quando os papéis tinham se
mesclado (mulheres trabalhando enquanto os maridos lutavam nos campos de
batalha). Agora havia propagandas sobre a reconstrução da família e os deveres da
mulher como esposa e mãe. A mulher era treinada para ser dona-de-casa, mãe e
esposa, e deveria manter isso tudo com muita maestria. Se o marido lhe era infiel, ou
era por acusa do instinto dele de macho ou porque a mulher não estava dando o
máximo para agradá-lo. Nunca foi posta em questão a moral do homem que era infiel.
Essas eram as expectativas, aquilo que se queria que as moças seguissem. Mas
será que isso realmente era seguido? Ou era existente apenas na literatura de Suzana
Flag?
Numa conversa entre Suzana e Noêmia, em Minha Vida, após Hermínia dar um
beijo na boca do seu amado Jorge, as duas jovens discutem a ação da outra,
mostrando uma divisão comum na época: entre moças de família e as moças levianas.
“-Então, você não viu? Aquilo que ela fez com Jorge? Teve a iniciativa de beijá-lo e na frente de
todo o mundo, com todo o mundo vendo! Achei isso bonito, lindo essa coragem! Você não acha,
Suzana?
-Depende.
-Como depende?
Pensei um pouco, antes de responder:
-A mulher que faz isso, está tomando uma atitude que só o homem deve ter.
-Bobagem! – interrompeu Noêmia; na sua excitação, levantou-se – Por que a mulher deve sempre
esperar que o homem faça? Por que não tomará ela a iniciativa?
-Uma questão de pudor.” (Flag, 2003, p.160).
Obviamente, a personagem principal toma a posição da moça de família da
época, aquela de moral dominante, que obtinha um casamento modelo, não ficava
mal-falada, respeitava os pais, tinha gestos contidos, conservava a inocência sexual,
não usava roupas ousadas (nesse caso Suzana usa, pois herdou as roupas da mãe e a
avó queria vê-la sedutora para arrumar um pretendente), não saíam com rapazes
sozinhas – o casal estava sempre acompanhado pelos “seguradores de vela” - ou não
iam para lugares escuros, não permitiam beijos ou abraços intensos. Noêmia
representa a moça leviana, um tipo de moça que permitia intimidades, “desviava-se
do bom caminho”, tida como a que nunca casaria porque nenhum rapaz gostaria de
ter uma moça assim como mãe de seus filhos.
Como os homens não podiam tomar liberdades com as namoradas que eram
moças de família, eram incentivados a fazer isso nos prostíbulos ou saírem com moças
levianas. Eram raros os casos em que rapazes aceitavam se casar com moças já
defloradas. No Código Civil, inclusive, havia um artigo que dizia que existia
possibilidade de anulação do casamento se o recém-casado descobrisse que sua noiva
não era mais virgem7.
Nos folhetins de Suzana Flag, a loucura está atrelada ao conhecimento do amor
carnal ou proximidades com ele fora do casamento. A perda da virgindade ou o tipo de
moça leviana que Noêmia se torna ao longo da história (quando beija Aristarco e
quase foge com ele), normalmente, levam a loucura. É tão importante o herói se
mostrar honrado no final quanto a heroína ser virtuosa8. Num trecho de conversa,
Aristarco deixa isso claro à Suzana, sua noiva e sobrinha:
“Eu não admito mulher que tenha passado. Eu quero ser o passado, o presente, o futuro da
mulher. Só eu devo existir antes e depois – compreendeu? São uns imbecis esses homens que não
se incomodam com o passado. Eu me incomodo – ouviu? – me incomodo e não admito!” (Flag,
2003, p.169).
7
Havia medo, tanto na sociedade, quanto em Meu Destino é Pecar, da mulher não conseguir controlar
seu impulsos e desejos e acabar sendo seduzida pelo galã irresistível. Interessante pensar que tanto
nesse folhetim de Suzana Flag quanto no Minha Vida, os dois protótipos de galãs/canalhas, Maurício e
Jorge, acabam morrendo no final.
8
No primeiro capítulo de Escravas do Amor, a personagem principal, Malu, se mostra o protótipo da
moça de família, mas com uma certa “maldade” que sempre aparece atrelada a figura feminina nos
folhetins de Suzana: “Tinha um pequeno corpo, frágil, leve, elástico e belo Queria que até lá ele nada
conhecesse do seu corpo, a não ser que o pudesse adivinhar através do vestido. Isso era uma maldade
inteligente de mulher, uma maneira de não se banalizar aos olhos do namorado. Até aquele momento
não fora beijada nem por Ricardo, nem por ninguém. Podia dizer: "Eu nunca fui beijada!". E não
adiantavam os comentários das primas: "Que é que tem beijo? Ora, Malu". Solange ia mais longe: "Beijo
não quer dizer nada!".”
Nesse trecho, como em muitos outros, podemos notar que a sexualidade não está
diretamente apresentada nas histórias. O sexo está subentendido no nível da
linguagem.
“-Peço-lhe, por tudo que há de sagrado. E depois, há o seguinte: se você não quiser; sabe o que
ele faz?...
Fez um suspenso para me impressionar. Eu, realmente, senti o coração apertado, uma angustia
nova. Espiamos uma à outra. Vovó baixou a voz:
-Se você não quiser, ele tem outros recursos.
–Quais? – quis saber.
E ela, lacônica:
- A força.
–Como?
–Ele usa a força. Você não se iluda, Suzana, não se iluda. Ele é dono de todas nós. Faz com a gente
o que quiser. Mas se você ceder é outra coisa.” (Flag, 2003, p.151)
Peça fundamental dessa relação entre casamento e amor é o beijo como ato
consumador e não o sexo. No início de Meu Destino é Pecar, Leninha se recusa a beijar
Paulo, porque “eu sempre quis ter um namorado, um noivo, um marido, que eu
amasse, que eu pudesse beijar na boca....” mas ela não amava ele. Outro momento
decisivo em relação ao beijo como um ato íntimo e pessoal é numa conversa entre as
irmãs de Jorge e Suzana:
“Maria Helena, pelo que dava a entender, achava um fenômeno uma moça que não tivesse sido
beijada antes do atual namorado. Caí na asneira de expor meu ponto de vista a respeito:
-Acho beijo uma coisa muito séria.
Disse isso com uma gravidade, um tom definitivo que, ainda hoje, me faz corar de vergonha. Elas
me olharam de alto a baixo:
-Séria por quê?
–Tão natural!
Noêmia deu-me conselhos:
-Seja mais moderna!
–Que é que tem de mais o beijo?
Engasguei, sem ter o que dizer. Afinal, a minha concepção de amor era tão diferente! Como dizer
àquelas duas, explicar o que eu achava? Elas não compreenderiam nunca que um homem e uma
mulher que se amam se julgam Adão e Eva, se supõem os criadores da família humana. Elas
jamais veriam o amor assim, absoluto, exclusivo, cheio de eternidade. Noêmia teve uma confissão
espontânea:
-Pois eu, minha filha, se fosse contar os beijos que já me deram!
Seria verdade aquilo ou brincadeira? Subitamente, sentia-me inferior diante daquela moça que
possuía uma experiência amorosa, conhecimento de carícias com que eu nem sonhava. Maria
Helena, também. Esta foi mais longe:
-A coisa mais comum é uma moça ter vários namorados, ao mesmo tempo. A gente pode ter
namorado e flertar com outros.
–Mas isso é traição! –teimei, na minha inocência obstinada.
–Que o quê!
–Traição coisa nenhuma! Você parece criança!
Usei o argumento desesperado:
-O meu caso com Jorge, por exemplo. Se eu tiver outros namorados, além dele – está certo? Ou
não está?
As duas me olharam, com surpresa. Evidentemente não esperavam por esta pergunta, ficaram
sem jeito e se entreolharam. Noemia falou:
-Bem, aí seria diferente.
–Como diferente?
–Porque você e Jorge vão se casar, já há um compromisso, é outra coisa. Isso muda a situação.
Agora, se fosse um simples namoro, você teria o direito de flertar, claro. Por que não? Antigamente
é que a moça não podia fazer isso, aquilo, tudo ficava feio. Minha mãe contava –imagine- que, no
seu tempo, a mulher não podia nem cruzar as pernas em público. Todo o mundo dizia logo que ela
era assanhada e coisas parecidas. Tudo mudou!” (Flag, 2003, p.91-92)
Isso mostraria porque Suzana merecia o final feliz na ilha deserta com Aristarco e
não, Noêmia. Apenas as moças de família se casam e têm um final feliz.
Será? Suzana Flag nunca escreveu sobre o que acontecia depois que os pares
amorosos se acertavam... sobre a vida cinza do dia-a-dia.
Assim Suzana Flag começa a sua “autobiografia”. Uso a expressão entre aspas,
pois em nada (tanto estilo quanto narrativa) Minha Vida se diferencia de qualquer
outro romance da autora. Inclusive, apesar dela fazer questão de ressaltar “vou
apresentar os fatos tais como aconteceram, sem uma fantasia que os atenue”, na
frase seguinte já encara esses fatos e seu livro como constituintes de um romance
(tradicionalmente, oposto à biografia por ser sinônimo de ficção). Essa escorregadela
nos faz acreditar ainda mais que Suzana não escreveu sobre sua vida: o suicídio dos
pais (e a dramática cena em que a mãe lhe roga uma praga antes de morrer), seu
complicado noivado com Jorge (amante de sua mãe e filho bastardo de sua avó), seu
casamento com o tio de criação Aristarco, a fuga para a ilha numa lancha, o quase
rapto pelo aleijado Cláudio... (pontos comuns na sua ficção). Minha Vida é tão difícil de
ser considerado biográfico (num sentido tradicional, sinônimo de verdade), que
mesmo quando foi lançado em 1946, depois do sucesso de Meu destino é pecar, as
leitoras de O Jornal, fãs de Suzana, tiveram dificuldades aceitar a história como
Verdade.
Mesmo assim, sem revelar sua identidade, Suzana continuou fazendo sucesso.
Minha Vida saiu em O Jornal por três meses seguidos, seguindo os passos do famoso
folhetim anterior. Saiu em formato livro no mesmo ano e vendeu muito, mas uma
vendagem menor do que anterior Meu Destino é Pecar.
Não se sabe dizer quem era Suzana Flag, o que viveu realmente para escrever
esses folhetins que fizeram muito sucesso entre as mulheres da época e ajudou a
reerguer O Jornal de Assis Chateaubriand. Nem aonde Leão Gondim de Oliveira, diretor
de O Jornal, conseguiu os folhetins de Suzana. Só podemos tentar imaginar quem era a
mulher por trás da máquina de escrever e se perguntar se seu nome era realmente
Suzana Flag. O nome dela, também, em inglês, pode ter sido sugerido por Gondim ou
pelo diretor geral Freddy Chateaubriand. Nessa época, textos assinados por nomes
estrangeiros ganhavam uma credibilidade maior. Ou se ela usava o pseudônimo como
uma forma de proteção a sua família.
Isso era comum no final do século XIX e no início do século XX, quando mulheres
usavam pseudônimos para poderem escrever e não serem mal-vistas ou terem suas
famílias de alguma forma prejudicadas pelo que escreviam. Assim fizera a escritora
Maria Benedicta Câmara Bormann, nascida numa prestigiada família e casada com o
Ministro da Guerra, José Bernardino Bormann. Ela assinava sob o nome Delia, lançando
no jornal O Paiz, em finais do século XIX, Carta a Sindol, sobre uma moça que recusa
se casar com um bom partido escolhido pela família e Lésbia, história de uma jovem
que se separa do marido tirano e decide escrever sua vida. Temas que poderiam
comprometer seu marido, pois mostravam uma nova mulher que ia se delineando na
sociedade brasileira oitocentista: uma mulher mais independente e que se achava no
direito de saber para si própria o que era melhor, ao invés de deixar que esse tipo de
decisão ficasse à cargo do pai ou do marido. Porém, essa mulher ainda demoraria a
ganhar sua real fundamentação na sociedade brasileira. E os anos em que Suzana Flag
viveu, 1940 e 1950, foram apenas uma época em que essa independência era
enfraquecida através de conselhos em revistas e das pressões sociais, querendo ainda
manter a mulher presa ao marido e a família, pensando primeiro neles e só depois em
si mesma.
Por que os folhetins de Suzana Flag faziam sucesso? Porque contavam de uma
forma fácil (muito próximo à oralidade), divertida e bem escrita histórias
rocambolescas, aventuras amorosas levemente apimentadas e recheadas de
sentimentos extremos. Era uma forma de entretenimento barato para as mulheres,
pois vinham nos jornais que os maridos compravam, e ajudavam a sair da rotina entre
arrumar a casa e cuidar dos filhos e do marido.
Os folhetins de Suzana formaram uma espécie de sustentáculo de venda. Cada capítulo diário trazia um
final eletrizante ou revelador, que ficava em suspenso até o dia seguinte, quando era preciso comprar o jornal
novamente para ler a continuação. Isso elevou vertiginosamente as vendas de O Jornal, que estava entrando
em colapso nos últimos anos. De três mil exemplares vendidos, passou para seis mil quando Suzana começou
a publicar Meu Destino é Pecar. Depois o número dobrou e em quatro meses chegou quase a 30 mil
exemplares vendidos.
Em junho de 1944, com o final de Meu destino é pecar, foi decidido que ele seria publicado em livro
pela Edições O Cruzeiro (que eram baratas), vinculadas a revista de sucesso O Cruzeiro. A propaganda foi
massiva tanto nos jornais e revistas do grupo Chateaubriand quanto nas rádios. A primeira edição foi de oito
mil exemplares, o que não foi o suficiente. Em finais de junho, o livro já havia vendido 12 mil exemplares e
em outubro atingiu a casa dos 50 mil. Segundo Freddy Chateaubriand, foram vendidas mais de 300 mil
cópias de Meu Destino é Pecar, antes do título ter sido vendido à editora Martins, em São Paulo, em 1946,
onde chegou a 12 edições.
Meu Destino é Pecar ainda virou novela de rádio (rádio de Chateaubriand,
obviamente), porém, teve que passar por algumas adaptações para ser repassada,
transformando-se quase numa história leve para mocinhas. Na época, o rádio era um
instrumento que reunia toda a família na sala (o que o televisor fez no seu
aparecimento, pois hoje cada um tem uma tv no seu quarto e as pessoas não mais
precisam se reunir para ver uma mesma coisa) e era preciso haver uma certa censura.
Por mais que Suzana não deixasse claro o teor sensual de suas obras, o tema adultério
aparecia sem qualquer máscara de beleza. O rádio, naquela época, como nos lembra
Ruy Castro, nem podia colocar no ar a expressão “amante da música” por possuir a
palavra “amante”, então, como fazer com uma história em que o tema adultério era
fundamental para o desenrolar da trama? Realmente, foi preciso transformar a história
toda. A mesma censura foi feita no filme de 1952 de Manuel Peluffo. A palavra amante
foi trocada por amiga.
Em setembro do mesmo ano, começou a ser publicado outro folhetim de Suzana
Flag, intitulado: Escravas do Amor. Esse era a história de uma herdeira, Malu, que vai
se casar com o jovem Ricardo. No dia do pedido de casamento, Ricardo aparece morto
misteriosamente e Malu era a única pessoa que estava com ele. Enquanto vai sendo
investigada a morte de Ricardo, suicídio ou assassinato, a mãe de Malu revela que a
grande paixão de Ricardo era ela e não a filha. Esse é o início da história que saiu não
apenas em O Jornal, mas em todos os jornais de Chateaubriand. Em seguida, com o
término do folhetim, saiu o livro.
Entre 4 de agosto e 12 de setembro de 1948, foi publicado Núpcias de Fogo, a
história de duas irmãs, Lúcia e Dóris, que amam o mesmo homem, na revista O
Cruzeiro e depois em O Jornal.
As senhoras mais velhas eram as mais fascinadas pelas histórias da escritora.
Conta-se que um dia, 200 senhoras invadiram a redação de O Jornal, que ficava na
avenida Venezuela, para reclamar um erro cometido pela gráfica. Foi solto um capítulo
por engano e elas queriam saber como a história da véspera de Meu destino é pecar
tinha continuado. O jornal acalmou as senhoras publicando o capítulo faltante no dia
seguinte.
Eram escritas, incrivelmente, catorze laudas datilografadas, uma média de 420
linhas, por dia. Que tipo de mulher teria tempo para escrever isso numa época em que
ainda vivia-se sob a ideologia de que a mulher tinha que ficar em casa cuidando da
família? Criam-se assim, perguntas sobre Suzana: era ela uma esposa “relaxada” ou
uma solteirona convicta?
Dentre as milhares de cartas para Suzana que a edição do jornal recebia, houve,
certa vez, a de um presidiário que se apaixonou por ela. Suzana lhe mandou uma
resposta insinuando que estava comprometida. Não entrou em detalhes se era casada
ou se ia se casar. A história terminou como num romance de Suzana: happy end. O
presidiário foi obrigado a se conformar com tal e chegou a convidá-la para ser
madrinha do seu casamento na prisão.
Poderíamos levantar outra hipótese à respeito da vida pessoal de Suzana Flag. A
sua primeira aparição teria sido disfarçada sob o “pseudônimo” de Maria Lúcia, em O
Globo Feminino. É um artigo, escrito à maneira Flag, que comentava a famosa peça de
Nelson Rodrigues, Vestido de Noiva, logo depois da sua estréia. Será, então, que
Suzana, na verdade se chamava Maria Lúcia? E como ela era fisicamente? Bonita
como a descrição inicial em Minha Vida ou o contrário: baixinha, gordinha e de óculos,
uma Maria Lúcia ao invés de uma Suzana Flag? Dizem que os leitores acreditavam na
sua beleza e que achavam que podia ser algo entre Ingrid Bergman e Marlene Dietrich.
Seja como for, em 1949 Suzana Flag sumiu e apareceu uma colunista e
conselheira amorosa chamada Myrna no Diário da Noite, irmão de O Jornal,
comandado por Freddy Chateaubriand. Suzana Flag só reapareceu anos mais tarde no
jornal A última hora, de Samuel Wainer. Era 1951 e ela lançava O homem proibido. A
história, muito parecida com o início de Minha Vida, contava a história de Joyce cuja
mãe se suicida e o pai some, sendo obrigada a ficar com uma prima sete anos mais
velha. Tudo parecia começar a se resolver quando surge um belo médico que faz com
que a relação entre as primas se complique. O ponto clímax é quando Joyce fica
temporariamente cega.
Essa história é considerada por alguns críticos como a mais cuidada no arranjo
das palavras. Provavelmente, porque fazia tempo que Suzana não publicava nada e
devia estar com saudades de escrever. Será que parara por causa do casamento? À
pedido do marido que achava que estava relegando as tarefas domésticas com essa
“mania terrível” de escrever? Ou será que era porque acabara de ter o primeiro filho e
decidira ficar alguns anos tomando conta da cria até que o impulso literário a
chamasse de volta às páginas?
O último folhetim de Suzana, A Mentira, saiu no semanário colorido Flan (que
durou apenas nove meses), de Wainer, lançado em abril de 1953. O nome de Suzana
Flag estava entre expressivos nomes da literatura como Joel Silveira, Otto Lara,
Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Dorival Caymmi, Hélio Pellegrino,... Era a
história de um pai obcecado por sua filha caçula, Lúcia. Um dia, a menina de 14 anos,
revela que está grávida, o que é um choque para a família (e para o leitor).
Ainda sob o comando de Samuel Wainer, Suzana assinava o correio sentimental
Sua lágrima de amor. Depois disso, Suzana Flag desapareceu, sem deixar vestígios,
mantendo o mesmo mistério que conseguiu sustentar capítulos a fio nos seus
folhetins.
Suzana Flag conseguiu manter o anonimato ao longo dos anos. Sua vida, um
mistério que só pode ser encontrado diluído nas páginas de seus romances. Seu
destino era amar a literatura e se tornar parte dela, fosse como personagem principal
de Minha Vida ou fosse como um mito nos corredores dos jornais cariocas. Não
importa. O que importa para nós em Suzana é seu legado literário pelo qual viveu.
Como dizia Fernando Pessoa: “viver não é necessário; o que é necessário é criar”.
Se tivéssemos que revelar a verdadeira identidade de Suzana Flag, teríamos
muitas dificuldades por causa dessa brincadeira entre ficção e realidade que constrói a
sua vida e obra. Porém, há indícios que nos levam a crer que Suzana Flag está de
alguma forma relacionada a Nelson Rodrigues, o famoso, ululante e fluminense “anjo
pornográfico”. Os dois trabalharam nos mesmos jornais e na mesma época. Outra
prova disso está nas linhas do jornal Ultima Hora. Depois que Suzana parou de
escrever sua coluna sentimental, surgiu uma outra coluna, com teor e temas muito
parecidos com os de seus folhetins. A vida como ela é... era sinônimo de sucesso,
principalmente entre leitores masculinos, com sua escrita jornalística e irônica, mas
similar a de Suzana em alguns pontos e frases. A partir disso só uma conclusão pode
ser tirada: Nelson Rodrigues era pseudônimo de Suzana Flag.
Bibliografia:
BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: História das Mulheres no Brasil, PRIORI, Mary
(org.). São Paulo: Editora Contexto e Editora Unesp, 2000.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994, 42ª edição.
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FLAG, Suzana. Meu Destino é Pecar. Coleção Prestígio. Rio de Janeiro: Editora Ediouro.
FLAG, Suzana. Minha Vida. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
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Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio. SEVCENKO, Nicolau (org.). São Paulo: Cia. das
Letras, 1998.
TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: História das Mulheres no Brasil. PRIORI, Mary
(org.). São Paulo: Editora Contexto e Editora Unesp, 2000.
Sites:
FONSECA, João Barreto. Folhetim: o sensacional a conta-gotas, o bastardo fatiado, o sonho seriado. Site:
http://reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/4360/1/NP2FONSECA.pdf (Visitado em:
27/10/2007)