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O DESAFIO DO ESCOMBRO
Rio de Janeiro
2005
AUGEL, Moema Parente. O desafio do escombro: a literatura guineense e a
narração da nação. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras-UFRJ, 2005. 387 p. (Tese de
Doutorado em Literatura Portuguesa, na especialidade das Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa).
A literatura que se tem produzido em Cabo Verde, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe,
Guiné-Bissau – e não só, se pensarmos em outros países historicamente herdeiros da
descolonização – é geralmente caracterizada como literatura pós-colonial, o que pressupõe e
subentende um discurso de resistência às ideologias colonialistas. O pós-colonial é um conceito
de múltiplas significações, devendo ser entendido aqui como expressão de uma produção tanto
ficcional ou poética quanto teórica que espelha e questiona essa herança e as relações dentro dos
binômios colonizador/colonizado, centro/periferia, primeiro/terceiro mundo. Essas dicotomias
não refletem, porém, nem a interligação nem a dependência mútua nem tampouco as relações de
poder entre os pólos. Trata-se de uma dialética de exclusão segundo a qual o mundo colonial
funciona. Pois, como já disse Frantz Fanon, “le monde colonial est un monde coupé en deux. La
ligne de partage, la frontière en est indiquée par les casernes et les postes de police” (FANON,
1961, p. 31)123. Essa exclusão se efetiva não apenas na separação física e geográfica, o espaço
colonial sendo fronteirizado e departamentado, como também no plano dos direitos e dos
privilégios e, inclusive, no plano das representações e dos valores (ib.). O sujeito colonizado,
lembra Michael HARDT (2003)124, é concebido no imaginário metropolitano como o “Outro” e,
como tal, é alijado tanto quanto possível dos princípios que definem os valores da civilização
123
“O mundo colonial é um mundo cortado em dois. A sua linha divisória, a sua fronteira está indicada por casernas
e postos policiais”. A tradução é minha.
124
Michael Hardt é um pensador americano que publicou, entre outros livros e ensaios, em colaboração com o
filósofo italiano Antonio Negri, o importante Empire (2000), obra que teve grande repercussão internacional. Em
seu artigo “L’hybridité de l’Empire”, saído na revista Futur Antérieur em 1995, e posto na internet em 2003 (e
de onde retiro as citações deste capítulo), já estão traçadas muitas das idéias mestras que foram mais tarde
desenvolvidas em Empire. Hardt e Negri definem com o termo “Império” a nova ordem mundial que está
surgindo e submetendo todo o planeta a uma globalização com efeitos positivos e negativos, criando um novo
poder (a “soberania imperial”) que já não se baseia na soberania dos Estados nacionais. Segundo eles, os Estados
nacionais perderam grande parte de sua influência, pois a competição na luta pela conquista de mercados não se
faz mais entre Estados. E quando a ideologia do mercado mundial se liberta do contexto nacional, ela abre
espaço à heterogeneidade, abarcando todas as culturas, religiões, origens étnicas. Todos são benvindos ao
“Império” desde que aceitem o lugar que lhes é indicado. As empresas “imperiais” fazem da multicultura e da
multi-etnicidade a chave do sucesso, patenteando a capacidade de apropriação e reapropriação do sistema
capitalista. Esse Império emergente é fundamentalmente diferente dos imperialismos da dominância européia e
expansão do capitalismo. Inclui tradições de identidades híbridas e fronteiras em dilatação.
116
européia. O colonialismo, tal como foi praticado no século XIX e parte do século XX, sob a
máscara do zelo civilizatório, desprezava e negava a identidade do colonizado. O poder colonial
funcionava como agente de controle social “produzindo”, por assim dizer, o colonizado. Os
valores locais, autóctones, relativos ao ambiente não europeu, à cultura, à tradição, às crenças
eram considerados inferiores e eram mesmo proibidos e combatidos com a patente intenção de
substituí-los. O que predominava era o princípio dos vasos estanques e incomunicáveis, pois o
sistema colonial determinava que as identidades fossem demarcadas com uma nítida separação a
partir das fronteiras entre a metrópole e a colônia, entre o colonizador e o colonizado; eram
válidas regras que se aplicavam diversamente segundo um lado ou outro da demarcação (ib.).
“Na álgebra do conquistador, a unidade é a única medida que conta. Um só Deus, um só
Rei, uma só Língua: o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua” (SANTIAGO,
1978, p. 16). O colonizador partia de suas verdades absolutas e da negação absoluta do nativo
enquanto sujeito. A estratégia era ignorar ou silenciar as culturas dos colonizados. Silenciar é um
não dizer que pode ter conotação histórica e ideológica, dependendo da posição do sujeito que
fala. Há um interrelacionamento significativo entre o silenciado, a memória e o esquecimento.
Através do instrumento do silenciamento, emudece-se a memória do subalterno, procura-se fazer
esquecer a narração do passado vergonhoso ligado à subserviência, ao acapachamento, ao tráfico
intercontinental que esvaiu e aviltou todo um continente e, com isso, esvaziam-se as tentativas de
resistência. Adormecendo uma memória, acorda-se outra. O silêncio permite que o discurso
etnocêntrico, homogeneizador e monolítico, que se quer único e verdadeiro, grite mais alto. O
silêncio boicota movimentos que tentam recuperar memórias sufocadas, por exemplo, a história
da resistência ao jugo colonial, em suas múltiplas facetas125. Muitas formas de dizer o dito
mascaram o não dito, motivam distorções, estereótipos, camuflam os conflitos entre os senhores
do poder e os que lutam pela sua visibilidade social (ORLANDI, 1997, p. 14 e ss.).
A historiografia eurocentrada silenciou a história africana, apropriando-se da cronologia,
iniciando a contagem da história na África com a chegada dos navegadores europeus. As terras
foram “descobertas” e a partir de então passaram a existir nos mapas e assim na percepção dos
ocidentais. Os regimes autoritários, como em um verdadeiro pacto do esquecimento, fizeram
valer sua visão da história, impuseram uma única memória oficial, a memória e a história dos
vencedores. No caso específico da Guiné-Bissau, seus escritores, por muitos e diversos
caminhos, empenham-se em dar voz ao avesso da história. Isso significa levar em consideração
os interstícios das relações coloniais, as concepções que as dominaram e fizeram com que lutas
fossem ignoradas e tornadas invisíveis, significa compreender a que interesses essa narrativa
125
Remeto, mais uma vez, ao livro de Peter Mendy, sobre a tradição da resistência na Guiné-Bissau (1994).
117
A literatura colonial articula sempre uma apologia do colonialismo, mas também faz transparecer
as diversas faces da perfídia do sistema. Denomina-se em geral literatura colonial os textos
escritos por metropolitanos que, tendo passado algum tempo na África ou em outros espaços
colonizados, produziram textos em que o olhar etnográfico ressaltava a alteridade e onde a
descrição dos costumes e do ambiente em que viviam as diferentes “tribos” africanas podia até
mesmo representar um interesse verdadeiro pelo país e pela gente, ultrapassando o mero pincelar
da cor local. Sempre, porém, um olhar de fora, onde se mesclavam o fascínio e o repúdio,
camuflado às vezes em piedade ou paternalismo.
Apesar de séculos de presença na África, na metrópole prevalecia um grande descaso e
mesmo desinteresse da população portuguesa pelas colônias, não existindo quase obras literárias
que tematizassem a vida em “ultramar”. Essa lacuna levou as autoridades competentes a instituírem
um concurso literário, pois
118
um dos melhores meios para despertar o espírito dos portugueses é, sem dúvida, a
literatura – o romance de assuntos coloniais, a descrição de aventuras de além-mar, a
novela, o conto, etc. Por isso, a Agência Geral das Colónias, que não se poupa a quaisquer
esforços na propaganda de Portugal ultramarino, tomou a iniciativa dum concurso de
Literatura Colonial (POLLACK, 1995, p. 756).
Foi a partir dessa motivação imediatista que surgiram obras de maior ou menor qualidade e
aqui só interessa destacar as que tiveram a Guiné-Bissau como palco: entre outras Mariazinha em
África (1925) e mais tarde O veneno do sol (1928), ambos de Fernanda de Castro; Auá, de Fausto
Duarte (primeiro prêmio em 1934); África: da vida e do amor na selva, de João Augusto da Silva
(também primeiro prêmio, em 1936). Os prêmios eram uma soma em Escudos, bastante elevada,
verdadeiro incentivo para os escritores. Por volta de 1952, torna-se usual a denominação literatura
ultramarina e os prêmios, do ponto de vista financeiro ainda mais convidativos, são diferenciados
por categoria – poesia, ensaio, novelística e história126.
O escritor mais conhecido desse período é o cabo-verdiano Fausto Duarte (1903-1953)127
que escreveu, entre outros, o romance Auá. Novela negra (1934), um “documentário etnográfico” e
“também um novo capítulo da psicologia indígena”, segundo suas próprias palavras (ib., p. 31). O
autor esforça-se em “apresentar o africano e a sua cultura sob uma luz favorável”, diz Russell
HAMILTON (1984, p. 217), embora esteja “patente o conflito entre as culturas africana e europeia”
(ROSA, 1993, p. 162). Nesse romance, a trama se desenrola em torno de Malan, jovem fula (etnia
islâmica) que viveu na capital e que volta, bastante aculturado, à aldeia natal para desposar Auá, sua
prometida segundo os costumes tradicionais. O contraste entre a vida urbana e a rural se mostra em
muitas passagens, servindo de ocasião para o louvor à civilização.
Considero bastante sintomáticas as referências estereotipadas e reducionistas de Fausto
Duarte às diferentes etnias e passo a dar alguns exemplos. Referindo-se a Malan, que foi “servir
mais tarde como criado do Administrador de Bissau”, o autor assim o descreve:
126
Boletim da Agência Geral das Colónias, nº 7, jan. 1926, p. 9, (apud POLLACK, 1995, p. 756), de onde coligi as
informações a respeito.
127
Fausto Duarte escreveu vários romances tendo como cenário a Guiné, onde viveu muitos anos como funcionário da
administração colonial. É considerado o mais importante representante da literatura de temática guineense. Sobre o
assunto, cf. entre outros ROSA (1993, p. 162-165); AMADO (1990); GOMES; CAVACAS (1997 a, b).
119
Sobre os Balanta que, segundo sua descrição, eram sempre alegres e sorridentes, Fausto
Duarte ressaltou “a expressão das suas feições incorrectas, onde a fiada regular dos dentes brancos
punha uma nota de satisfação inconsciente, dir-se-ia insensível ao calor que os causticava” (ib., p.
3). Em relação aos Nalu, descreveu um “rito fúnebre – cerimônia singular duma tribu bárbara”,
“impressionante”, com “um bailado macabro, sobrevivência dum culto pagão”, com “mulheres
dançando freneticamente ao som dos tambores”, “bailado sinistro de mulheres habitando um
continente povoado de tradições quasi inverossímeis!”, cena que fez os dois Fula, Malam e seu pai,
concluirem que “os nalus eram ainda selvagens” (ib., p. 153-154).
Sobre as mulheres das diferentes etnias, as descrições são sempre rápidas e
estereotipadas. As mulheres mandjacas, por exemplo, “provocantes nos seus trajos bizarros, que
ocultavam a cabeça encarapinhada com lenços de seda multicores. Tinham atitudes duvidosas.
Olhavam os homens meneando expressivamente o corpo ondulante. Eram as horizontais de
Bissau” que vendiam aos “brancos por bom preço as hipotéticas primícias duma requintada
sensualidade” (ib., p. 165).
Edward Said afirma não acreditar que os escritores fossem “mecanicamente determinados
pela ideologia, pela classe ou pela história econômica, mas [...] profundamente ligados à história de
suas sociedades, moldando e moldados por essa história e suas experiências sociais em diferentes
graus” (SAID, 1999, p. 23).
Considero essa reflexão sumamente importante para nortear a leitura desses romances
produzidos sob o “olhar etnográfico” de seus autores. O discurso colonial128, do qual a literatura
colonial é um dos porta-vozes, como aparato do poder, afirma Homi Bhabha, procura legitimação
para suas “estratégias pela produção de conhecimentos tanto do colonizador quanto do
colonizado que se apresentam como estereotipados mas antiteticamente avaliados” (BHABHA,
1992, p. 184), como é possível constatar nos exemplos acima apresentados. O estereótipo é um
modo de representação incompleto e fetichista em meio ao próprio campo da identificação:
circula dentro do discurso colonial como uma forma limitada da alteridade, como uma forma fixa
da diferença (ib., p. 196). Tem-se, de um lado, os auto-louvores, as afirmações de
responsabilidade, um claro triunfalismo; e do outro lado da polarização, o primitivismo, a força
bruta, a animalidade, o servilismo, a inferiorização a todo custo.
Fausto Duarte expressa a opinião corrente entre seus iguais: “Uma coisa porém era certa:
com a presença dos brancos tinha melhorado a vida dos indígenas no seu aspecto social”
128
“O termo ‘discurso’ refere-se a uma série de afirmações, em qualquer domínio, que fornece uma linguagem para
se poder falar sobre um assunto e uma forma de produzir um tipo particular de conhecimento. O termo refere-se
tanto à produção de conhecimento através da linguagem e da representação, quanto ao modo como o
conhecimento é institucionalizado, modelando práticas sociais e pondo novas práticas em funcionamento”, assim
se expressou Stuart Hall e é como tal que estou empregando o termo durante este trabalho. Cf. HALL
(disponível em: http://www.educacaoonline.pro.br/art_a_centralidade_da_cultura.asp.).
120
(DUARTE, 1945, p. 51). Os autores dessa assim chamada literatura colonial são quase sempre
funcionários da administração portuguesa, ou militares ou missionários, todos marcados
logicamente pela convicção da missão civilizatória do branco, como é possível verificar em
muitas passagens do romance O negro sem alma, de Fausto Duarte, por exemplo, quando o narrador
onisciente faz conhecer os pensamentos de Henrique, o chefe do posto, o “bom tubabo129, a quem
todos os negros estimavam” (DUARTE, 1935, p. 176):
A África era ainda um mundo a explorar, dizia Henrique para consigo. A-pesar-de tudo,
quantas proezas, quantos esforços dos portugueses de antanho, atestavam tôdas essas
clareiras, todos êsses pontos ignorados do mato, onde agora viviam numa perene
tranqüilidade indígenas pacíficos voltados à gleba depois de inutilizadas as armas.
Henrique sentia-se estimulado por um íntimo orgulho ao vê-los resignados, saüdando
os europeus respeitosamente porque ainda se encontravam bem impressas nas suas
almas rudes e nos modos servis, a energia e a coragem dos brancos, agora senhores do
mato (ib., p. 176-177)130.
Num outro livro do mesmo autor, A revolta (1945), sucedem-se os exemplos dessa
imagem que se procura sempre de novo transmitir: a do chefe branco justo e magnânimo,
superiormente dedicado a estabelecer a paz entre os indígenas que barbaramente guerreavam
entre si:
Ele bem sabia qual a extensão que poderia adquirir a revolta do ambicioso fula, as suas
conseqüências entre a população vencida quer dum ou doutro lado, sujeita à crueldade
do vencedor, aos rancores entre famílias desejosas de um sucesso dêsse gênero para se
desagravarem. Culturas queimadas, aldeias arrazadas, raptos de mulheres à mão
armada e sangue de inocentes marcariam a passagem dos rebeldes ou o triunfo dos
adversários. [...] Antes de ser empossado no cargo de comandante do Posto Militar de
Geba, de quando em vez era declarado pelo Govêrno o estado de guerra nas regiões
vizinhas, suspensas as garantias e proibido o comércio, por meio de bando. Tudo isso
acabara com a sua presença. Os anos da dura escola que é o mato de África, a reflexão
e o conhecimento directo dos costumes indígenas tinham-lhe dado a necessária
experiência para agir com eqüidade, obrando com firmeza e prudência (DUARTE,
1945, p. 83-84).
129
O termo tubabo refere-se ao branco de modo geral. É um termo da língua mandiga e significa o europeu
(SCANTAMBURLO, 2002, p. 622).
130
A fixação obsessiva dos portugueses nas lembranças de façanhas marítimas e da colonização, forjando uma
imagem irreal de si mesmos, foi comentada por Eduardo LOURENÇO em O labirinto da saudade (1999) de
maneira bastante crítica e aberta, chamando de ficção uma tal idéia de grandeza.
131
Fernanda de Castro, portuguesa, viveu muitos anos na Guiné. Escreveu romances, sobretudo para a juventude, além
de poesia. Cf. também ROSA (1993, p. 158-162) e AMADO, 1990.
121
negativos, fazendo sobressair o fascínio pela alteridade, ao mesmo tempo temida e atraente:
África
no teu corpo rugem feras,
uivam fomes e medos ancestrais,
na tua pele há dardos e punhais.
[...] E a gente, a gente negra?
[...] a gente é como nós,
mais próxima, talvez,
dos bichos e de Deus.
De Deus pela inocência, pela alma,
dos bichos pela carne,
liberta do pecado
da ideia do pecado.
[...] Sua lei é o instinto, a força bruta.
Alma não tem (CASTRO, ib., p. 9-14).
Não me posso furtar a um paralelo com a literatura brasileira, lembrando o grande poeta
afro-brasileiro João da Cruz e Sousa, unanimemente consagrado como o maior representante do
simbolismo brasileiro132. Seu texto em prosa Emparedado, conservado inédito mesmo depois de sua
morte, ocorrida em 1898, só foi divulgado com a publicação de suas obras completas (1961). Nesse
texto, Cruz e Sousa refere-se à África acumulando todos os estereótipos negativos correntes no seu
tempo (e não só):
África, [...] tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas
bravias, arrastada sangrando no lodo das civilizações despóticas [...]. A África laocoôntica,
alma de trevas e de chamas [...]. Longínqua região desolada, criação dolorosa e
sanguinolenta de Satãs rebelados [...], grotesca e triste, África, gigantescamente medonha,
absurdamente ululante, pesadelo de sombras (SOUSA, 1961, p. 663).
Longe de abraçar tal perspectiva, o poeta afro-brasileiro esmera-se, com essas metáforas
violentas e depreciativas, em mostrar os preconceitos que o etnocentrismo europeu continuava a
divulgar e a fortalecer, pondo a descoberto com isso o “emparedamento” a que estão condenados
os descendentes dessa África “medonha” e por Deus castigada, esquecida e desprezada. Mesmo
sem a exuberância hiperbólica do simbolista santa-catarinense, é fato que a presença colonial na
África e no “Novo Mundo”, com a imposição de seus próprios valores taxados como superiores,
contribuiu, de modo negativo e decisivo, para um latente e autocorrosivo complexo de
inferioridade, empurrando os colonizados ao mimetismo e ao esvaziamento de seus bens
culturais. Até hoje, o sentimento de desqualificação, de inoperança, de falta de confiança em si
mesmo e nos seus conterrâneos, efeitos maléficos do colonialismo, não foram ainda
completamente suplantados.
132
João da Cruz e Sousa (1861-1898) deixou entre outras obras Missal, poemas em prosa (1893), Broquéis, poesias
(1884), Evocações, poemas em prosa (1898), publicação póstuma, onde se encontra Emparedado (p. 646-664, da
edição da Obra completa, ed. Aguilar, 1961).
122
Ele devia ver o que é dormir numa cama de molas e comparar a diferença com um
colchão de palha com troncos no meio; ele devia saber o que é dormir num quarto sem
mosquitos a chatear e com ventoinha a soprar fresco toda a noite e comparar isso com o
martírio de dormir com galinha e cachorro ao lado e dabi no colchão; ele devia
experimentar para depois explicar às mulheres dele a diferença entre sentar-se de manhã
a uma mesa e tomar calmamente o mata-bicho e o acordar com o segundo galo e
começar a pilar arroz, ainda por cima com filho às costas; ele devia ver como é que com
133
Expressão cunhada por Michael HARDT em L’hybridité de l’Empire, 1995/2003. Cf. bibliografia final.
134
Abdulai Sila destaca-se na literatura nacional como o pioneiro do romance guineense. Inaugurou suas atividades
de prosador com Eterna paixão (1994), a que se seguiram A última tragédia (1995) e Mistida (1997), todos
publicados pela Ku Si Mon Editora, a primeira editora privada do país e da qual ele é um dos três proprietários.
Nasceu em Catió, em 1º de abril de 1958, é engenheiro eletrotécnico, tendo feito sua formação em Dresden, na
Alemanha (1979-1985). Em Bissau, foi um dos que constituíram o pequeno núcleo de intelectuais fundadores do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, o INEP. É também co-fundador de um centro de computação (SITEC,
1987), o primeiro do país, e da empresa EGUITEL, desempenhando um papel pioneiro na telecomunicação do
país e contribuindo com cursos de computação para a formação técnica da juventude guineense. Sila continua
fazendo cursos de especialização nessa área em diversos centros nos Estados Unidos. No capítulo 7 vou tratar
com mais pormenores dos três romances de Abdulai Sila. Agradeço ao autor as explicações e esclarecimentos
que muito me ajudaram na leitura de sua obra.
135
Indivíduo das comunidades animistas com o dom de prever o futuro e fazer vaticínios, dominando fórmulas
encantatórias. É o curandeiro ou a curandeira, ou adivinho, vidente com capacidades paranormais, o xamã de
certas etnias.
123
um simples truque de torcer uma torneira, só com dois dedos, sem o menor esforço, se
podia obter a quantidade de água que se quisesse e comparar depois esse esforço com a
canseira das mulheres da tabanca de caminhar distâncias enormes com pote ou balde
grande na cabeça; ele devia ver a quantidade de carne que o cão daquela casa comia
todos os dias e comparar com a comida que os meninos tinham na tabanca [...]; ele
devia ver tudo o que o homem branco tem e ver se encontrava uma forma de convencer
o Yran a ajudar a encontrar coisas parecidas para o homem preto, em vez de estar só a
anunciar desgraças e tragédias (SILA, 1995, p. 30)136.
O “Professor”, protagonista do mesmo romance, educado pelos padres, foi o primeiro fruto
da missão evangelizadora dos colonizadores, assumindo ele próprio o elã missionário que lhe foi
inculcado (“ele respeitava a tradição, pelo menos enquanto não entrava em contradição com as suas
convicções religiosas”; ib., p. 88), evoluindo depois para uma independência de pensamento e de
ação, ousadia que lhe custou o degredo e a morte. Aqui, o autor apresenta, num primeiro momento,
a figura do africano que se acultura e incorpora os valores do colonizador, transformando-se num
“bom cristão” e conseqüentemente, abandonando suas próprias tradições. Mas que se distancia da
postura de benevolente protecionismo própria do agente civilizador. A população estranhou que ele
não ficasse amigo do Chefe, isto é, o administrador do posto, já que eram “duas pessoas com
escola”, portanto, “com pensamento parecido” (ib., p. 85). O Professor deveria ter interesse nessa
amizade, para poder “mostrar aos outros que ele não era um indígena, mas sim um assimilado e
talvez até um civilizado” (ib.). Agente propagador dos novos tempos, caracterizado pelo autor
como um homem digno e altivo, o Professor, em contacto com o povo da aldeia, bem depressa
ultrapassou a estreiteza do pensamento discriminatório dos missionários, reconhecendo os valores
tradicionais. Seu ideal como mestre não era transmitir aos alunos a cultura do branco, mas
sobretudo instrumentá-los para enfrentar as mudanças da modernização que não podiam ser mais
evitadas.
O administrador não está muito em evidência na trama narrativa, mas seu vulto, como o
prolongamento da mão autoritária da metrópole, lança sombras e ameaças. O outro lado da medalha
é o régulo, o grande régulo de Quinhamel137, exemplo da resistência dos Pepel – e não só – contra o
jugo colonial opressor:
Se um dia os brancos forem embora, não devia mais haver nem polícia, nem cipaio, nem
nada parecido. [...] O branco não vai nunca? Aí é que está o problema do preto, não quer
pensar como é que o branco veio, por isso não sabe que um dia tem que ir. [...] O branco
veio, tem que ir um dia. Ainda há-de aparecer um preto com coragem para pensar nisso
(ib., p. 81-82).
136
Alguns enunciados talvez não sejam muito conhecidos: dabi significa percevejo; mata-bicho é a primeira
refeição do dia, nosso café da manhã; tabanca é a aldeia; Yran (escreve-se geralmente iran ou irã) é o espírito ou
a divindade protetora. Para maiores esclarecimentos sobre os irans, cf. o capítulo 2.6.
137
Pequena localidade a oeste de Bissau.
124
Abdulai Sila traça o perfil do africano mentalmente emancipado, seguro de si, que recusa a
coisificação. Consciente de sua responsabilidade como chefe da comunidade nativa, dirige com
sabedoria sua gente e reconhece que muitos males provocados pelo colonizador poderiam ser
minimizados se o povo tomasse consciência da própria força e capacidade:
No fundo, este é que era o problema do preto: tem medo de fazer mal ao branco,
enquanto que o branco faz mal ao preto todos os dias que o sol nasce [...]. O branco está
a dominar o preto é só porque não há ninguém a pensar. Ninguém diz isto está bom,
aquilo está mal e depois procura pensar porquê. Tudo o que o branco faz é porque está
bom. O branco é que estava a pensar no lugar do preto. Mas branco é homem como
qualquer outro homem! (ib., p. 64).
Com uma visão ampla e independente, o régulo de Quinhamel respeita por um lado as
tradições, consultando o djambakus e cumprindo as cerimônias rituais, mas implementa novidades,
não receando assumir outras posturas que não as ditadas pelos “usos e costumes”. Uma de suas
transgressões foi nomear conselheiros para o ajudarem nas decisões importantes para a comunidade.
Apesar de analfabeto, utiliza-se da palavra escrita para fixar para as gerações vindouras seus
pensamentos e princípios. É através do testamento do Régulo, ditado ao jovem Professor, que
Abdulai Sila faz transparecer sua mensagem política. As idéias do Régulo Bsum Nanki, bastante
contundentes, são expostas de forma pitoresca e testemunham, na sua aparente simplicidade,
independência e orgulho, auto-confiança e destemor:
Duas cabeças valem mais que uma cabeça só. [...] apesar disso ser uma coisa evidente,
muitas pessoas se esquecem. Então vivem sem saber [...] que têm que a usar. [...] Um
régulo tem que ter conselheiro [...]. Quando uma pessoa manda numa terra tem que ter
bons conselheiros, não precisa de ter polícias. Uma pessoa não pode mandar na base da
força, força da polícia ou da tropa. [...] Porque quem toma um couro à força, ou pensa que
pode ficar com ele à força, sempre perde o couro à força138 (ib., p. 92-95).
138
O termo crioulo couro significa uma boa posição ou cargo.
125
Nos meios urbanos, onde o contacto entre brancos e negros era constante, os segundos
quase que sem exceção no papel subalterno e dependentes dos primeiros, a única via possível
para alcançar um mínimo de ascensão social e de respeitabilidade era a via da assimilação, e
eram muitos os que ansiavam pelo carimbo de “aculturado” (em oposição ao “indígena”), pelo
frágil prestígio de ser, pelo menos “um bocadinho português”, como uma estória bem
humorada de Carlos Lopes tão bem ilustra. Sociólogo e economista do desenvolvimento,
Carlos Lopes139 é autor de muitas obras e ensaios sobre temas sociológicos, históricos e
políticos, sendo também um ficcionista de grande talento; escreve crônicas e pequenos
estórias que por muito tempo eram publicadas regularmente no jornal português Público.
Alguns desses escritos estão reunidos no livro Corte geral (1997), onde o escritor retém, com
fina ironia, saborosos traços da vida cotidiana guineense, tanto da capital como do interior, tanto
episódios passados na época colonial da sua infância como no momento presente.
Em “O sipaio Mendes”, Carlos Lopes reporta-se aos tempos da ocupação portuguesa e
ridiculariza gostosamente essa inconsciente ou ingênua imitação colonial de que fala BHABHA
(1998, p. 131). O sipaio Mendes140 viu sua autoridade de capitão do mato ameaçada durante um
pequeno incidente com o motorista de um caminhão-cisterna que parou indevidamente na rua
em frente da praça do mercado, enlameando a rua e sujando os passantes. Diante da pergunta
“Você não sabe que não pode parar?”, o motorista, indignado, mostrou ao representante da
lei que não aceitava a arrogância por parte de um outro africano, não lhe reconhecendo a
autoridade –“pensar que és português, ou quê?” (LOPES, 1997, p. 16) – verbalizando o que
muitos tinham vontade de lançar-lhe ao rosto mas não se atreviam. A estória se desenrola em
muitas peripécias até que, dando-se novamente a ocasião dos dois se confrontarem, o
motorista dessa vez seguiu seu caminho, sem parar, isto é, sem desobedecer, não ousando
provocar novamente o sipaio, o qual concluiu muito satisfeito: “Afinal, sempre sou um
bocadinho português!” (ib., p. 19).
Para o bom funcionamento do aparato colonial, era necessária a constituição de uma
mínima camada que fizesse a ponte entre os dois mundos. A cooptação das elites
139
Carlos Lopes nasceu em Canchungo em 1960. Doutorou-se em Estudos Africanos pela Universidade de Paris I e
tem ainda graus acadêmicos em Sociologia, História e Planificação Estratégica. Aos 24 anos foi o primeiro
diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) e um dos seus fundadores. Exerceu atividades
acadêmicas em várias universidades, como em Zurique, Uppsala, México, Coimbra. Publicou uma vintena de
livros e dezenas de artigos no âmbito das ciências políticas e sociais (cf. bibliografia final). Desde 1988 integra o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/UNDP), tendo ali ingressado como economista
do desenvolvimento. Ocupou muitos postos de direção, entre eles o de Residente e Coordenador das Nações
Unidas em Harare (Zimbábue). De 2003 a 2005 foi o Representante Residente e Coordenador das Nações
Unidas no Brasil. Deixou o Brasil para exercer o cargo de diretor político da Secretaria Geral das Nações
Unidas, em Nova Iorque. Apesar de ter escrito sempre crônicas em vários periódicos, sobretudo no Público, de
Lisboa, apenas em 1997 reuniu-as em parte no livro Corte Geral.
140
Às vezes escreve-se cipaio; é o policial africano a serviço da administração colonial.
126
Entre os grupos a que podemos chamar pequeno-burgueses, gente com uma vida certa,
seja descendentes de guineenses ou de cabo-verdianos, aparecem sempre três grupos de
pessoas. Um grupo pequenino, mas forte, que é a favor dos colonialistas, que nem
mesmo querem ouvir falar disso, da luta contra os tugas. Daquelas pessoas que foram a
minha casa em Pessubé, como gente grande, bem empregada, comendo bem, bebendo
bem, que vai a férias, etc., sentaram-se e disseram:
“Bom, queremos conversar contigo. Tu, filho do fulano de tal, nós conhecemos-te bem,
estás-te a meter em problemas, estás a estragar a tua carreira de engenheiro, nós
queremos aconselhar-te, porque nós não temos nada que fazer contra os tugas, nós
todos somos portugueses”. Para esses não há remédio (CABRAL, A.)143.
A escola era um dos meios mais eficazes para uma certa ascenção social. Somente aquele
que era alfabetizado e comprovava possuir costumes “civilizados” tinha a prerrogativa de
adquirir o status de aculturado144. Carlos Lopes, numa de suas estórias, escrita na primeira
pessoa, faz a voz narradora relembrar os tempos da infância, quando os filhos dos “assimilados”
freqüentavam a melhor escola de Bissau:
Na Escola Primária Dr. Oliveira Salazar só andavam filhos de gente fina de Bissau. [...]
De manhãzinha, mal se chegava, fazia-se uma formatura e cantava-se o hino da
Mocidade Portuguesa. [...] Havia um dia na semana em que tínhamos de ir para a
formatura com a nossa farda da Mocidade. [...] A compra do fardamento era um acto
muito importante. [...] O “S” de Salazar [...] ornava a fivela. O “S” do cinto e o
emblema das quinas na camisola é que davam pinta àquilo tudo. [...] Só falávamos em
“kriol” no recreio das dez e meia. Os da metrópole faziam queixinhas de nós falarmos
141
O conceito de elite contém a idéia de concentração do poder nas mãos de um grupo de pessoas que formam uma
oligarquia que toma a si uma série de tarefas decisivas, sendo constituída pelos indivíduos que ocupam a mais
elevada posição na escala social (cf. CARDOSO, 2001, p. 232). Esse autor guineense tem trabalhado sobre as
elites e sua inserção na política da Guiné-Bissau, com vários ensaios sobre o assunto. Cf. bibliografia final.
142
Para uma biografia (entre muitas) de Amílcar Cabral, cf. CHABAL, 1983; sobre seu assassinato, ainda envolto
em mistério, cf. CASTANHEDA, 1995; sobre sua (pequena) obra poética, cf. entre outros, artigo de CHABAL,
1985; ou AUGEL, 1998a (p. 139-145).
143
Cf. CABRAL, A. “Unidade e luta”. Esse discurso está disponível, como as demais citações deste subcapítulo, no
site sobre a Guiné Bissau, mantido por Fernando Casimiro (Didinho): http://didinho.no.sapo.pt, e que visitei pela
última vez em julho de 2005. A fonte parece ser os arquivos da Fundação Mário Soares em Lisboa e os da
Fundação Amílcar Cabral, na cidade de Praia, Cabo Verde.
144
Mais uma vez cito de Amílcar Cabral um breve texto sobre o assunto: “Na Guiné, 99% da população não podia ir
à escola. A escola era só para os assimilados, ou filhos dos assimilados, vocês conhecem a história toda, não vou
contá-la outra vez. Mas é uma desgraça que o tuga causou na nossa terra, não deixar os nossos filhos avançarem,
aprender, entender a realidade da nossa vida, da nossa terra, da nossa sociedade, entender a realidade da África,
do mundo de hoje. Isso é um obstáculo grande, uma dificuldade enorme para o desenvolvimento da nossa luta”
(CABRAL, A.; disponível no mesmo site acima indicado).
127
“kriol” nos recreios. Era proibidíssimo falar “kriol” e isso só aumentava o interesse em
fazê-lo. Quem não arrisca não petisca. E daí que o “kriol” passasse a ser linha de
demarcação (LOPES, ib., p. 21-22).
No mesmo teor, uma outra estória lembra o reduzido número de africanos que tinha o
privilégio de participar da restrita e seleta elite local:
Terminei a comunhão solene em tempo recorde, quem sabe se com uma ajudinha do
padre Cruz, e também fui escolhido para entrar numa peça de Gil Vicente antes de
completar dez anos. Até o governador da província foi assistir a essa efeméride, se
calhar a primeira que proeminentemente exibia um mulato no papel de nobre da corte
(ib., p. 35-36).
Ainda Carlos Lopes, no seu conto “Fazi sapo”, traça a figura do jovem filho de um rico
comerciante local que “nunca duvidou que chegaria onde chegou porque era filho de quem era”
(LOPES, ib., p. 147). A descrição do jovem calha muito bem como exemplo do que acabamos de
comentar:
Tinha um bom carro, que comprara há pouco tempo, um BMW último grito, que não
aguentaria muito nas ruas de Bissau cheias de buracos, mas isso nem entrava em
linha de conta. [...] Vestia roupas da moda, sapatos de Lisboa, e até tinha introduzido
um accessório, raro: uns suspensórios que não serviam para agarrar as calças, já que
tinha engordado um pouco, mas eram óptimos para dar estilo (ib.).
145
Citado de um discurso de Cabral, ”Unidade e luta”, disponível no site acima referido.
128
Frantz Fanon discorre longamente, no capítulo sobre a violência, em seu livro Les damnés de la
terre (1961), sobre as complexas implicações da descolonização. Sem transição, “tudo passa a
ser diferente, tem lugar uma substituição radical, completa, absoluta”, podendo-se considerar que
uma tabula rasa define o início da descolonização (FANON, ib., p. 29). A necessidade dessa
mudança existia, em estado latente, impetuoso e impulsionador, na consciência e na vida dos
homens e das mulheres colonizados (ib.). Não se trata de um passe de mágica, é um processo que
parte da “desordem absoluta” depois da última “confrontação entre duas forças congenitamente
antagônicas” (ib., p. 30).
Na Guiné-Bissau, não se pode, entretanto, falar de tabula rasa. A substituição não foi
absoluta, faltaram sobretudo quadros qualificados para ocuparem os postos de direção, em todos
os setores, e isso provocou, de fato, um grande transtorno. Mas as estruturas da governança
continuaram em parte as mesmas. A ausência de pessoas qualificadas foi, e ainda é, um dos
grandes problemas do país. Fosse pela precariedade de meios, fosse pela inércia, ou ainda por
um certo comodismo que é também sinônimo de uma postura pouco politizada, até bem pouco
tempo as estampilhas para os documentos oficiais ainda eram as da época colonial. Pouco mais
de trinta anos não se mostraram ainda suficientes para que, depois da descolonização, o país
enfrentasse os tempos pós-coloniais de forma realmente soberana e independente. No campo da
literatura, o discurso pós-colonial tem muitas faces, refletidas na tensão entre representações das
culturas nativas e suas sobrevivências e representações da cultura imposta pelo dominador e que
hoje em dia, antropofagicamente, faz parte integrante da guineidade146.
O vasto debate sobre o pós-colonialismo tem provocado muitas vezes confusão e
misturas. Devido às múltiplas perspectivas segundo as quais se enfoca o pós-colonial ou a pós-
colonialidade, tornam-se necessárias uma análise e uma rearticulação do termo, muitas vezes
utilizado indiscriminadamente tanto para designar uma fase (ou uma situação) sócio-histórica
ligada à expansão colonial e à descolonização, quanto para referir-se a práticas teóricas e
acadêmicas nada uniformes.
SCHULZE-ENGLER (2003, p. 181 e ss.), anglista e africanista alemão, com obras
publicadas na perspectiva comparatística, sobretudo sobre o pós-colonial e a modernidade não
européia, arrola, para fins de simplificação, mas também para uma maior clareza quanto à
conceituação, cinco diferentes concepções (ou variantes, como ele chama) do conceito “pós-
146
A generalização é sempre perigosa. Mas, mesmo se em muitas áreas isoladas do mundo rural a ocidentalização não
se mostra tão presente (ou quase nada), seus reflexos se fazem sentir. “A fronteira entre o urbano e o rural, num país
como o meu, é sentida dentro das pessoas: não há ninguém completamente urbano ou completamente rural”, disse
Mia Couto numa entrevista (CHAVES, 1998). Na Guiné-Bissau, creio, é semelhante.
129
colonial”. Para ele, o “pós-colonial” pode ser tratado como uma teoria (variante 1), como uma
denominação geográfica (variante 2), como um termo político (variante 3), como uma nova
disciplina científica (variante 4) e, finalmente, como um termo pragmático, um simples adjetivo
(variante 5).
Explicitando melhor, o termo “pós-colonial” se refere, como teoria, na primeira variante,
a uma direção teórica específica que se caracteriza, sobretudo, por tratar de diferentes conceitos
teóricos pós-modernos e pós-estruturalistas para literaturas, culturas e sociedades nas regiões que
foram colonizadas – mas também para as culturas das “diásporas” ou culturas de migrantes nos
antigos centros coloniais. O adjetivo “pós-colonial” aparece, normalmente, em combinação com
enunciados como “teoria pós-colonial” e tem suas bases nas obras de três grandes pensadores
contemporâneos: Edward Said, Homi Bhabha e Gayatri Spivak. Aqui, é essa variante que
interessa à nossa perspectiva, mais estreitamente ligada à teoria literária, tal como é apresentada
na obra pioneira The Empire Writes Back, publicada em 1989, de Bill Ashcroft, Gareth Griffiths
e Helen Tiffin. “Pós-colonial” marca, com isso, uma direção teórica específica que encontrou
grande aceitação justamente na teoria e crítica literárias e nas ciências da cultura, estando no
mesmo nível de categorias como teoria ou crítica literária marxista ou feminista ou ainda pós-
estruturalista.
Enquanto na primeira variante o termo é definido na sua essência teórica, a segunda
variante tem a ver banalmente com o aspecto espacial, isto é, com certas regiões geográficas. O
termo aparece, por exemplo, em combinações como “literatura pós-colonial”, “sociedades pós-
coloniais”, “culturas pós-coloniais”, e mesmo “mundo pós-colonial”, referente aos países saídos
da situação colonial. Nesses contextos, “pós-colonial” se refere ao “mundo real” e não a certas
direções teóricas e com esse significado substitui categorias como “Commonwealth” ou
“Terceiro Mundo”. Apesar de os termos pós-colonial (1) e (2) não serem de forma alguma
associáveis, ou seja, como categorias não se pode estabelecer uma correspondência entre uma e
outra, no uso comum elas são vulgarmente confundidas entre si.
Uma terceira variante tem a ver com um determinado comportamento político e
ideológico. “Pós-colonial”, nesse sentido, é aplicado para marcar um largo espectro de correntes
anticoloniais, nacionalistas, anti-imperialistas e anti-capitalistas que estão em maior ou menor
escala ligadas à idéia básica de “libertação do Terceiro Mundo”. Como os protagonistas de
diferentes movimentos políticos e sociais nos países da África, Ásia e América Latina, afirma
Schulze-Engler, não se tenham mostrado até agora inclinados a se definirem a si mesmos como
“pós-coloniais”, o termo (na acepção 3) continua sendo um constructo acadêmico, também
mesmo quando, ocasionalmente, se tenta definir o “pós-colonial” como uma forma de ativismo
político.
130
daquele continente. Niyi Osundare, autor nigeriano, poeta e crítico literário, resume assim suas
críticas:
The tag “postcolonial” is more useful for those who invented it than for those who are
supposed to wear it, its passive signifies [...] a project which sounds “post-colonialist”
in intent may turn out to be “neo-colonialist”, even “re-colonialist” in practice147.
147
Apud SCHULZE-ENGLER, 2003, p. 188, nota 5. “O rótulo ‘pós-colonial’ serve mais para os que a inventaram
do que a aqueles aos quais ela é atribuída. [...] um propósito que soa ‘pós-colonialista’ na intenção pode acabar
tornando-se neo-colonialista e na prática até ‘re-colonialista’”. A tradução é minha.
148
O mesmo autor chama a atenção também para a necessidade de não se perder de vista a existência de três planos
de raciocínio e análise: o primeiro abarcaria as situações e condições pós-coloniais (que apresentam muitas
diferenças entre elas); o segundo plano seria constituído pelos discursos (políticos, históricos, literários,
jurídicos) e finalmente o terceiro pelas teorias pós-coloniais – que seriam teorizações eruditas conectadas aos
estudos acadêmicos, por sua vez submetidos a regras institucionais e disciplinárias. Trata-se, segundo Mignolo,
como já vimos em exercício de raciocínio semelhante em Schulze-Engler, de marcos conceituais bem distintos,
se bem que imbricados. Considerando ainda ser menos a condição histórica pós-colonial o que lhe interessa, mas
sim os loci de enunciação do pós-colonial, o autor americano externa a opinião de que “a teorização pós-colonial
luta por um deslocamento do locus de enunciação do Primeiro para o Terceiro Mundo” (ib., p. 16) e ressalta que
“se pode conjecturar que uma característica substancial do pós-colonial constitua na emergência de loci de
enunciação de ações sociais que surgem dos países do Terceiro Mundo, e que invertem a imagem contrária
produzida e sustentada por uma longa tradição a partir da herança colonial (ib., p. 17).
132
e ensaistas como vem refletindo também nas obras literárias, que é a questão das modernas
formas de interação e de recuperação de influências por parte dos países centrais face aos países
satélites.
149
Conceito cunhado por Michael HARDT, 1995. Cf. nota 124.
134
150
Levaria longe demais discorrer sobre esse assunto que apaixonou sociólogos latino-americanos e de outras
regiões afetadas pelas conseqüências da expansão capitalista. Uma revisão das discussões da década de sessenta
centradas no binômio centro-periferia, com um balanço dos caminhos da teoria da dependência, pode ser
encontrada, por exemplo, em SANTOS, Theotônio dos. Evolução histórica do Brasil. Da Colônia à crise da “Nova
República”. Petrópolis: Vozes, 1995.
135
Nas estórias de Carlos Lopes que aqui apresentei, no caso de “O sipaio Mendes”, por
exemplo, tratava-se de um simples e ignorante policial; igualmente, em “Fazi sapo” (LOPES,
1997), a personagem principal era um jovem fanfarrão e irresponsável. Triste e inquietador
quando, no mundo real, são membros da camada dirigente que dão altas demonstrações dessa
assimilação ditada pelo oportunismo, resultando numa verdadeira colonização interna, a mais
perigosa de todas elas151.
Como já afirmara Frantz Fanon, “o opressor, pelo carácter global e terrível da sua
autoridade, chega a impor ao autóctone novas maneiras de ver e, de uma forma singular, um
juízo pejorativo acerca das suas formas originais de existir” (FANON, 1980, p. 42). Essa
“imposição” é assimilada, deglutida, e a ideologia capitalista se inocula no pós-colonizado,
condicionando seu comportamento e sua maneira de pensar. Tão criminosa mutilação foi uma
forma da qual os poderes hegemônicos exógenos se serviram para reduzir ainda mais a
autenticidade, o próprio” de cada cultura, de cada grupo étnico: despossuindo-os de seus próprios
valores, de seus bens simbólicos, de seus hábitos característicos para, esvaziando-os, preenchê-
los e satisfazê-los com os valores e produtos primeiro do mercado colonial, depois das transações
do mundo industrial e moderno e desenvolvido (SEABROOK, 2001).
Os movimentos de independência recuperaram, pelo menos em parte, as expressões
culturais tradicionais, revalorizando-as e procurando devolver aos povos suas identidades. Se
essas identidades culturais não foram totalmente extirpadas, elas foram grandemente reduzidas,
postas em dúvida, enfraquecidas em suas raízes. Tem sido lento e cheio de percalços o processo
de reinstauração das identidades fragmentadas, da auto-estima abalada e da luta contra a
descrença nos próprios valores.
No romance Kikia Matcho (1997)152, Filinto de Barros apresenta António Benaf, o sobrinho
“doutor” que tinha estudado na Europa e, voltando para a terra natal, foi obrigado a reconhecer que
seu título acadêmico não lhe trazia nenhuma vantagem. Depois de meses tentando a sorte,
continuava desempregado e sem ver chegar a grande oportunidade de tornar-se rico e poderoso,
fantasiosa ambição que o havia impelido a regressar. Obrigado a estar presente no enterro do tio,
151
A colonização interna ou autocolonização abrange um processo que acontece sobretudo dentro do sujeito quando
ele assume cegamente os interesses (econômicos, políticos) de um poder de fora assim como sua forma de viver
e de pensar (cf. p. ex. ALLERKAMP, 1991, p. 1).
152
Filinto de Barros nasceu a 28 de dezembro de 1942 em Bissau. Entrou para as fileiras do PAIGC em 1963, na Zona
Zero, isto é, em Bissau. Durante as lutas de libertação, desenvolveu atividades em Bissau e em Lisboa, onde estudou
engenharia e foi dirigente daquele partido na clandestinidade. Proclamada a independência, foi durante mais de uma
década ativo participante dos destinos políticos do país: foi membro do Comité Organizador do Partido e do Comité
do Sector Autónomo de Bissau; foi também Secretário Geral e Secretário de Estado da Presidência. Foi Embaixador
da Guiné-Bissau em Portugal, Ministro de Informação e Cultura, Ministro dos Recursos Naturais e Indústria,
Ministro da Justiça e Ministro das Finanças. Desde 1994, com as eleições multipartidárias e o início de uma nova era
na história política do país, Filinto de Barros retirou-se da vida pública. Tem exercido em Bissau cargos de
conselheiro técnico em entidades estrangeiras de cooperação. Autor de ensaios de ordem política e técnica, Filinto de
Barros surpreendeu com a publicação do romance Kikia Matcho do qual tratarei alargadamente no capítulo 7.
136
enquanto muitos dos conhecidos apareciam apenas para dar as condolências e iam embora, Benaf
tinha que permanecer toda a noite na vigília do velório, dever de família, tendo assim tempo para
refletir sobre o mundo de contradições em que vivia metido: os anos de estudo na Europa haviam
feito dele um materialista, “interessado nos sucessos pessoais” (ib., p. 21). Cínico e decidido a usar
da bajulação e do oportunismo para conseguir um posto vantajoso, viveu na ilusão de que, sendo os
diplomados ainda pouco numerosos no país, as oportunidades não lhe poderiam faltar. Mas estava
amargando a decepção de não ter seus planos realizados:
O lema é comer e deixar os outros comerem! [...] Desde que chegou das europas, que tem
visto os adaptados a saírem-se muito bem, com boas casas, boas mulheres e segundo lhe
disseram, com contas no estrangeiro. Era isso que ele pretendia e quanto antes melhor!
(ib., p. 154).
Benaf despreza as crenças e os rituais, se bem que não deixe de ser tomado pelo terror
ante a ameaça clara da presença do kikia matcho, a coruja azíaga pousada em sua janela, e da
cena de transe e incorporação a que assistiu, quando o defunto exigia, incorporado na pessoa da
jovem Ofitchar, que fossem feitas cerimônias rituais para redimir os muitos pecados e erros
cometidos durante as lutas libertárias, não só por ele, mas por tantos outros combatentes.
A análise dos efeitos da colonização sobre o colonizado é atravessada por muitos
conceitos como o do hibridismo cultural (Homi Bhabha), o da identidade rizomática das origens
(Deleuze e Guattari), entre outras, das quais não cabe, no momento, tratar. Para o colonizado, o
caminho para alcançar um equilíbrio passa por muitas curvas e desvios, tropeços e retrocessos
até se chegar à nova personalidade do sujeito cultural africano, dialogando com seus dois “eu”,
entre duas temporalidades: o presente africano-ocidental e um passado nativo que ainda se
mantém vivo, apesar de todas as pressões (REIS, 1999, p. 33). Ambigüidades e incoerências
fazem parte do processo, como Carlos Lopes ilustra em várias de suas estórias. Por exemplo, em
“Indigenização”:
O orador, conhecida figura pública, proprietário com o alvará de uma casa comercial, à
qual juntou também, com pompa, a denominação de industrial, falava sem parar: é
preciso mostrar ao Governo que não há progresso só porque se tem uma bandeira e os
ministros são pretos. O verdadeiro poder é económico e esse obtém-se com a
consolidação dos comerciantes da terra. [...] A economia continua nas mãos deles e nós
ficamos a ver navios. [...] O orador era imparável na sua retórica, agora apelidada de
novo nacionalismo africano, ou de luta pela independência económica.
O interesse neste discurso é que ele é protagonizado por gente que só veste camisas de
seda, passeia de Mercedes, tem os filhos a estudar nas melhores universidades
ocidentais e vive em palácios decorados com gosto de novo-rico (LOPES, 1997, p. 51-
52).
137
Armando Gnisci, na sua obra Via della decolonizzazione europea (GNISCI, apud
FONTES, 2003)153, argumentando que o “pós” não pode significar “após a colonização” como se
essa já tivesse terminado, mostra-se particularmente empenhado em que a Europa se
descolonize, abandone seu eurocentrismo e reconheça os crimes praticados. Para o comparatista
italiano, como para tantos outros autores, o mundo atual está confrontado com uma contínua
colonização, ampliada e agravada pela globalização neoliberal, controladora e determinante dos
destinos individuais e das massas e do seu imaginário. Para avançar na via da descolonização um
caminho seria através da literatura. Porque a literatura é um “diálogo com autores e com textos”
– e esses textos são fontes de experiência e de mudanças, oferecendo oportunidade de formação,
de educação. Para Gnisci, enfim, “la letteratura è produzione di realità” (ib.), constituindo a via
de diálogo mais intenso entre as culturas, pois permite estabelecer uma poética e uma política de
relações, a partir de uma determinada location, isto é, do lugar de onde se fala, de seu enunciado
(ib.).
Segundo o pensador ganês Kwame Anthony Appiah, o que ocorreu em grande parte da
África foi devido ao fato de que o Estado que surge após a independência passou a apresentar os
mesmos vícios e vivenciar as mesmas conjunturas do Estado colonial, em suma, perpetuando
muitos aspectos carcomidos do sistema econômico colonial, além de serem escamoteadas ou
ignoradas as diferenças étnicas, muitas vezes encobertas pelo discurso nacionalista no que diz
respeito à junção dos povos no processo de independência. As conseqüências dessa perpetuação
e a crença em uma igualdade étnica que de certa forma não existia (no caso da “Guiné” foi obra
de anos de empenho e obstinação de Amílcar Cabral) foram claras: um Estado independente que
nascia para gerar condições para o desenvolvimento e criação de infra-estrutura não poderia
jamais apoiar-se nas bases de um Estado que visava de certo modo à manutenção da ordem
hegemônica vigente. Aconteceu que os governantes pós-coloniais, afirma Appiah, assumindo as
rédeas do poder resgatadas do domínio colonial, não souberam reconhecer os limites desse
poder, “não repararam, no princípio, que elas não estavam ligadas a um bocal de freio”
(APPIAH, 1997, p. 230).
Anthony Appiah demonstra, em várias passagens de seu livro Na casa de meu pai, a
inviabilidade da idéia européia de nação no contexto pós-colonial africano. A idéia de nação
como resultado de um contrato social, como uma associação livre de cidadãos, para muitos
autores uma criação do Iluminismo europeu, é inapropriada para o contexto africano, pois não se
153
Maria Aparecida Ribeiro Fontes agradece a Armando Gnisci por lhe ter cedido o manuscrito do livro mesmo
antes da publicação, ocorrida somente em 2004. Como em geral nos artigos que cito a partir da rede eletrônica,
não me é possível indicar as páginas consultadas. Gnisci já tinha desenvolvido reflexões semelhantes em outros
trabalhos, como “A descolonização que não passa”, artigo que pode ser encontrado no site:
http://www.unigranrio.com.br/letras/revista/textoarmando.html.
138
pode perder nunca de vista o fato dos Estados africanos terem surgido como conseqüência da
política imperialista européia. A identidade cultural entre os grupos étnicos não foi levada em
conta para a formação (arbitrária) das colônias, não tendo igualmente sido fundamental na
manutenção dos novos países. Muito mais relevante foi o esforço para conseguir a unidade
política dentro do espaço geográfico pré-traçado pela conjuntura imperial, apesar das
heterogeneidades culturais. Aos novos países africanos, tal como se passou na América Latina,
“tratava-se de vertebrar as nações que padeciam as indefinições próprias do império” (AINSA,
1986, p. 126). Como disse Eliana Reis, referindo-se às idéias de Anthony Appiah e de Wole
Soyinka, não cabia estimular a criação de uma identidade nacional ou étnica dentro de ambientes
caracterizados pela multiplicidade, postura “difícil ou mesmo imprudente”, haja visto o
exacerbamento de emoções desencadeadas por rivalidades étnicas (dentro ou além fronteiras) que as
políticas nacionalistas puseram e ainda põem em prática e que tantas e tão trágicas conseqüências
têm trazido, acendendo rivalidades e etnocentrismos (REIS, 1999, p. 123-124).
É justamente devido a certos excessos perpetrados em nome do bem comum nacional que
Ernest Gellner chega mesmo a comparar o tribalismo com o nacionalismo que, por algum acaso,
conseguiu, sob condições modernas, constituir-se como potência capaz de exercer o poder. Os
movimentos nacionalistas inventam, diz Gellner, num processo de racionalização dos interesses
de uma elite, idéias que a propaganda política usa para sensibilizar as massas, em nome de uma
determinada identidade nacional a ser defendida ou a ser conquistada, mas, em caso de sucesso,
é apenas uma minoria que tem acesso aos benefícios. Dentro da sua crítica veemente aos
nacionalismos, aponta, já antes do advento das independências dos Estados africanos, para as
conseqüências que de fato sempre se repetem:
que antes cabia aos colonizadores, aos exploradores estrangeiros e invasores. Uma
autocolonização, eficiente e nem sempre sutil, substitui a interferência estrangeira, impondo-se
um modelo econômico importado de fora, que nada tem a ver com os reais interesses e
necessidades da população, submetendo o povo às duras e opacas regras de consumo, de
obrigações fiscais, de dependência completa do mercado externo, acenando-lhes com a ilusão
dos benefícios e doações.
Enquanto o povo é aniquilado ou integrado pelas avalanches sucessivas de progresso e
modernização, diz Jeremy Seabrook, a camada dirigente encontra para si mesma uma outra saída
desse impasse, formas complementares de adaptar-se às mudanças vindas de fora, por esse
processo chamado de “autocolonização”. “Os objetos dessa nova fase da construção do império
saúdam-no de braços abertos” (SEABROOK, 2001, p. 7). Enquanto o povo perde a sua
identidade, a camada dirigente assume a identidade da elite dos países do “Centro”, com sua
cultura de mercado, do dinheiro, do enriquecimento e de uma suposta liberdade de escolha.
Autocolonização é definida por Jeremy Seabrook como “a imposição em seu próprio país de um
modelo econômico importado de fora, um modelo que não corresponde aos interesses da maioria
do povo” (ib., p. 8-9). As instituições das Nações Unidas, especialmente o Banco Mundial, o
Fundo Monetário Internacional, os sucessivos acordos de comércio e liberalização do mercado
são interpretados por Seabrook como os instrumentos pelos quais os governos e elites locais
executam, em nível dos países periféricos, as estratégias do “Centro” que não lhes deixa
“nenhuma chance a não ser como uma parte do sistema mundial” (ib., p. 8). A expansão global
do sistema ocidental é executada através dos governos e elites locais. “O que o Ocidente aplicou
antigamente pelo uso da força”, continua Seabrook, “os governantes dos países do Sul agora
praticam voluntariamente contra seus próprios povos” (ib., p. 9) 154.
Michael Hardt especula sobre a mudança de atitude das antigas metrópoles face aos
países africanos que deixaram de pautar-se pela dialética excludente e dicotômica do passado e
adotaram comportamentos mais diferenciados, inclusive ambivalentes. E pergunta-se se essa
mudança de comportamento marca uma atitude de respeito e de aceitação da liberação ou se se
trata apenas de uma forma mais sutil de controle e dominação:
Essa lógica não dialética de controle que, de um certo modo, substituiu o sistema
dialético do colonialismo, eu chamaria de a lógica do Império; por “imperial” eu
compreendo antes de tudo um outro tipo de relação entre o poder e as periferias. O fato
colonial funciona segundo uma divisão binária central e a dialética do seu governo se
organiza recobrindo ambos os lados dessa fronteira fixa. O fato imperial não repousa
sobre uma divisão binária; suas fronteiras são sempre indefinidas, flexíveis e em
expansão. A lógica imperial se apresenta primeiro como integrativa e impõe em
seguida, em seu espaço linear e aberto, lógicas de diferenciação e de controle
(HARDT, 2003; minha tradução).
154
Estou indicando a paginação, mesmo tratando-se de um site na internet: http://globalization.icaap. org.
140
Não seremos
o velho das grandes avenidas
de cadillacs e benzes
que estende a mão
sem vintém
ouve desdém
e passa fome (ib.).
155
António Soares Lopes Júnior, conhecido pelo pseudônimo Tony Tcheka, nasceu em Bissau a 23 de dezembro de
1951. É jornalista desde 1974. Foi chefe de redação (1976) e depois por muitos anos diretor do Nô Pintcha, o
primeiro jornal do país depois da independência; ali criou um suplemento cultural denominado Bambaram, que
circulou de 1979 ao começo da década seguinte. Exerceu também os cargos de secretário executivo da UNAE
(União Nacional de Artistas e Escritores) e de presidente da Associação de Jornalistas da Guiné-Bissau. Foi
correspondente em Bissau do periódico português Público, de Lisboa, desde o seu primeiro número, e é um dos
jornalistas colaboradores da Agência Lusa. Foi co-prefaciador de Mantenhas para quem luta! (1977); aparece
com dezesseis poemas na Antologia poética da Guiné-Bissau (1990). Foi o organizador da coletânea O eco do
pranto (1992), autor de Noites de insónia na terra adormecida (1996). A obra em prosa de Tony Tcheka
(crônicas, ensaios, resenhas, produção jornalística) é abundante e se encontra dispersa na imprensa nacional e
estrangeira, sobretudo portuguesa. Depois do conflito de 98/99, instalou-se em Lisboa, onde é redator chefe da
revista África Lusófona. Sobre o autor, cf. AUGEL, 1998a, p. 87-114.
141
difusão de novos bens de consumo e a auratização de uma imagem criada refletindo humanidade,
solidariedade e anunciando uma nova ordem, permitindo o acesso de todos à felicidade do
mundo global. Tudo isso tanto fazia parte da missão civilizatória do colonialismo quanto hoje em
dia da globalização, e tudo está apontando “numa só direção: a extirpação de todas as anteriores
maneiras de satisfazer as necessidades da vida e sua substituição pelo mercado” (ib.).
São muitos os autores que tratam do neo e do autocolonialismo como estando hoje em dia
estreitamente ligados ao fenômeno da globalização. Néstor García Canclini analisa largamente
com os efeitos da globalização sobretudo nos países latino-americanos, ressaltando a influência
exercida pelos Estados Unidos, responsável por grande parte das mudanças socioculturais
ocorridas em nossos países e que, através dos modernos meios de comunicação de massas,
despertaram novos hábitos (ou desejos e sonhos) de consumo e novos comportamentos. Para
Canclini, se a globalização trouxe uma homogenização, descarrilhou também um fracionamento
e um novo reordenamento das diferenças e das desigualdades (CANCLINI, 1995, p. 13 e ss.).
Essa visão crítica dos efeitos da mundialização como conseqüência (ou prolongamento)
do neocolonismo não ignora os diversos aspectos positivos do mesmo processo. A globalização
está levando, como foi dito, a um alargamento dos horizontes de informação e comunicação, ao
mesmo tempo tornando irrelevante e até ameaçando de extinção partes das tradições, inclusive as
línguas não codificadas em escrita, mas trouxe também, por outro lado, novas facilidades de
revitalização dos elementos locais. Nem sempre teve o efeito de abafar os particularismos e
tornar irrelevantes ou desqualificar o ambiente imediato de vivência das pessoas e de grupos
humanos; o acesso nos meios urbanos à internet e as facilidades de informação e de
comunicação tornaram local o global e global o local156. Constata-se, em muitas situações
concretas, uma nova consciência dos particularismos, surgem novos e se revigoram velhos
movimentos identitários que, ao menos potencialmente, levam a uma revitalização de
identidades.
Pierre Bourdieu, referindo-se às classes sociais e à classificação hierárquica em
indivíduos subordinados e indivíduos superiores, chamou a atenção para uma duplicidade
importante: a hierarquia existe em dois níveis: uma vez na realidade e uma outra vez na mente
humana, encravada na cabeça das pessoas. Mesmo se classes e hierarquias deixassem de existir,
mesmo assim voltariam bem depressa a serem realidade porque os indivíduos cujas cabeças elas
continuam a povoar, sempre de novo as projetariam na realidade (BOURDIEU, 1992, p. 20).
156
Os diferentes sites que circulam na rede eletrônica sobre a Guiné-Bissau constituem uma plataforma de diálogo e
de formação de opinião, sobretudo para os milhares de guineenses que vivem fora do país, mas não só. Destaco
aquele assinado por Fernando Casimiro, já referido no terceiro capítulo, e que se consolidou como um forum de
trocas e espaço para vários colaboradores e onde se propagam e defendem valores que se querem
especificamente guineenses.
143
De repente, já não eram só os produtos da Cicer que nos faziam orgulhosos, era uma
série de outras coisas que contribuíram para que a nossa dívida externa passasse de zero a
três vezes o produto nacional bruto. Uma dívida também ela revolucionária, já que só há
três ou quatro países no mundo que se atreveram a chegar tão alto (ib.).
A autocolonização vai ainda mais longe que o neocolonialismo imposto pelos governos
periféricos a seu próprio povo. Segundo Andrea ALLERKAMP (1991), a colonização interna
refere-se a processos dentro do próprio sujeito que, como um território, é invadido por elementos
157
Sobre as tentativas de industrialização, especialmente a fábrica Citroën, cf. PADOVANI, 1991.
144
158
Gayatri Spivak enfoca diferentemente a colonização interna. Para seria “o modo como os países metropolitanos
discriminam em seu meio os grupos não emancipados” (SPIVAK, 1994, p. 192).
159
Félix Sigá exerce atividades no jornalismo, sobretudo na rádio e na televisão, com programas culturais. Autor de
um livro de poemas, Arqueólogo da Calçada (1996). Sobre Sigá, cf. nota 261 e o capítulo 6.2.2.
145
A África tinha-se esfumado do seu ser. Voltou porque era africano e intelectual, portanto
podia ser ministro ou presidente, mas do continente não conseguia reter nem compreender
a profundidade da sua mística.
Fixou o olhar no caixão e tentou imaginar como foi possível que um semi-analfabeto
pudesse ter sentido a necessidade de lutar por algo transcendental (ib., p. 21).
160
O Volvo era o carro de prestígio na época, devido à ajuda sueca ao desenvolvimento do país. Falava-se da
“volvocracia”, que designava o regime de privilégios de que gozavam os membros do governo e do partido
único. Cf. também notas 308 e 326.
146
assina contratos duvidosos com firmas estrangeiras, recebendo propinas, mostra-se convencida
de que a “África, para se desenvolver, precisava de novas tecnologias”, e para isso ser realizado,
“vamos meter aqui mais máquinas, mais tecnologia, moderna tecnologia” (ib., p. 28). Premiada,
por isso mesmo, com “sucessivas promoções”, passa a comportar-se com “arrogância,
agressividade”, chocando pela “intolerância dos seus actos” (ib., p. 67).
Odete Semedo, pela via da efabulação, do humor e da paródia, diverte-se, e diverte os
leitores com “Kunfentu, stória da boa nova”161, conto em que esboça, com traços precisos, o
ambiente monótono de uma localidade do interior onde nada acontecia até que a chegada de um
“filho da terra”, vindo de viagens, trazendo “novas dos quatro cantos do mundo”, abalou a
tranqüilidade do lugarejo, “mexeu com as cabeças, com o povo, com a população e, logo logo,
todos começaram a pensar em como fazer para serem iguais aos dos quatro cantos do mundo”
(SEMEDO, 2000a, p. 109). A autora ironiza com primor os efeitos da implantação de novos
costumes e a procura de expressões correspondentes dessas “modernidades” no seio da
sociedade tradicional: numa localidade imaginária de nome Nbetenne, os nbetennianos discutem
sobre a nbetennecracia, ocupando-se também com novidades tais como a desenvoltura, o
desenvolvimento e o developemento, decidindo-se a promover democraticamente a eleição do
régulo. Essa novidade pouco africana se transmuda de repente numa abota – a moderna e
desconhecida modalidade de escolha pelo voto (con)fundiu-se com o familiar costume local de
“fazer um peditório, uma cotização ou subscrição” (segundo o dicionarista Luigi
SCANTAMBURLO, 2002, p. 49), que sofreu um jocoso alargamento de significação. A partir da
encenação das atividades que transformaram a vida daqueles pacatos cidadãos, Odete Semedo
parodia a campanha eleitoral, o desconhecimento da complicada ação democrática de escolha
entre vários candidatos. Um dos pontos altos da história é o diálogo hilariante entre os
“mesantes” e duas velhotas, completamente desnorteadas:
– Qual destes é o Djoku? É nele que eu quero dar a minha abota, mas são tão parecidos
[...].
– Tia, tem paciência, a tia não pode, é secreto – diziam os mesantes quase em coro, e
perante o espanto do responsável máximo; só a tia e Deus é que podem saber em
quem...
– Ai sim? – dizia a tia [...] então mostra-me o retrato do Djoku que lá dentro só Deus e
eu é que saberemos que foi nele que dei a minha abota (SEMEDO, 2000a, p. 115).
Com essa storia paródica, Odete Semedo (e este não é o único exemplo entre os seus
textos curtos) hiperboliza pelo viés do riso uma situação de fato, comum ainda nas aldeias, da má
161
Odete Semedo, em suas Histórias e passadas que ouvi contar I e II, faz uma fusão entre o moderno e o tradicional,
entre o inventado e o rememorado, tendo o grande mérito de contribuir para preservar e valorizar com seu trabalho
um campo literário – a oratura – cada vez mais esquecido pelas novas gerações, menosprezado como uma arte
menor, algo do passado e portanto ultrapassado. Os contos, publicados pelo INEP em Bissau, estão reunidos em dois
volumes. Cf. a edição original (2000a, 2000b). A obra teve uma nova edição em um só volume em Viana do Castelo
(2003a). Cf. a bibliografia no final.
147
absorção de idéias vindas de fora e, por isso mesmo, consideradas positivamente como melhores.
Traz ao mesmo tempo, para o palco textual, todo um cenário verídico da vida cotidiana das
pequenas comunidades rurais. O termo Kunfentu, parte do título da estória, é estranho aos nossos
ouvidos lusófonos, um termo crioulo que significa ventania, vento forte e frio, sendo
simplesmente derivado de “com [muito] vento”. Os ventos da modernidade sopram às vezes de
uma forma violenta, desorganizando as estruturas tradicionais. O régulo não é geralmente eleito,
ele é investido por direito de linhagem. A abota é uma instituição tradicional, uma quotização
entre os membros de uma comunidade, doação ou contribuição para algo que deve servir ao bem
comum. Nas mandjuandadi, por exemplo, dá-se a abota como uma mensalidade, para as
despesas em comum como uma quota extra quando há alguma festa, cerimônia ou funeral162.
No mesmo teor, também recorrendo à comicidade, Carlos Lopes transporta os leitores
para a tabanka163 de Ponate, onde “a vida sempre se manteve igual”, até que um dos filhos do
lugar, que vivia na capital, voltou à casa dos pais para convencer a família e os demais aldeões a
votar num certo candidato. Diante da explicação do filho de que se tratava de um “voto
democrático, universal e secreto”,
Domingos queria saber qual era a diferença com o outro voto em que lhe diziam em
quem votar e que servia para não pagar imposto. [...] Domingos finalmente decidiu
aceitar o que o filho lhe tinha pedido. Sábado [assim se chamava o rapaz] vinha da
cidade e via-se que tinha ido à escola. Vestia já como os tugas. Domingos prometeu
mobilizar a tabanka [...] convocou a assembleia [...] anunciou que ia haver um grupo de
gente que viria a Ponate para que eles dissessem que governo é que queriam. Que
agora era assim, eles podiam escolher e que havia muitos governos que queriam formar
partidos. E ditou a escolha para que ficasse mais fácil. Todos deveriam votar no
democrático, universal e secreto (LOPES, 1997, p. 64-65).
162
Sobre as mandjuandadi, cf. SEMEDO, 1996c. 1996d.
163
Ou tabanca. Temos visto como é grande a flutuação na grafia das palavras da língua guineense.
148
Edward Said, em Cultura e Imperialismo (1999), ressalta que “em quase todos os lugares do
mundo não europeu a chegada do homem branco gerou algum tipo de resistência”, tendo sido
justamente “a reação ao domínio ocidental que culminou no grande movimento de
descolonização em todo o Terceiro Mundo” (ib., p. 12):
O contacto imperial nunca consistiu na relação entre um ativo intruso ocidental contra
um nativo não ocidental inerte ou passivo; sempre houve algum tipo de resistência
ativa e, na maioria esmagadora dos casos, essa resistência acabou preponderando (ib.).
Uma das resistências foi sempre a não assimilação, a recusa a renunciar ao modo de vida
anterior à colonização. Escritores como Camara Laye, da República da Guiné, o nigeriano Wole
Soyinka ou Anthony Appiah, de Gana, mostram em suas obras de caráter memorialístico como,
apesar da proximidade de convivência com o colonizador, apesar do biculturalismo em que
foram educados, não se distanciaram de suas raízes africanas: “a experiência da vasta maioria
desses cidadãos das colônias européias na África foi a de uma penetração essencialmente
superficial por parte do colonizador” (APPIAH, 1997, p. 25). Prosseguindo, Appiah afirma que
Parece-me importante observar uma tal postura que apenas registro sem juízo de valor,
bem distante daquela de Seabrook, por exemplo, não se podendo deixar de levar em conta o
lugar a partir do qual Appiah fala, sua inscrição nos dois mundos sociais, africano e “ocidental”;
trata-se de um intelectual oriundo de uma família de elite, tanto étnica quanto cultural e política,
para quem os laços com a Europa estão estreitados tanto pela educação e pela religião, como
pelos muitos casamentos multiétnicos, a começar pela origem inglesa materna. Sua visão e sua
experiência não podem ser generalizadas e certamente houve outros tipos de interação bem
menos simétricos e bem mais traumáticos, até o extremo dos muitos casos de genocídio que
ensombreceram a época colonial.
149
Há muita gente que pensa que ser africano é saber sentar-se no chão e comer com a
mão. Sim, isso é certo africano, mas todos os povos no Mundo se sentaram já no chão e
comeram com a mão. [...] Ninguém pense que ser africano é ter chifres pegados ao
peito, é ter mesinho165 na cintura. Esses são os indivíduos que ainda não
compreenderam bem qual a relação que existe entre o homem e a natureza. [...] Temos
que ter coragem para dizer isso claramente. Ninguém pense que a cultura de África, o
que é verdadeiramente africano e que, portanto, temos de conservar para toda a vida,
para sermos africanos, é a sua fraqueza diante da natureza. Qualquer povo do Mundo,
em qualquer Estado que esteja, já passou por essas fraquezas, ou há-de passar. Nós não
164
Esses “discursos”, muito informais, eram pronunciados “no mato”, isto é, nos acampamentos da guerrilha, para
combatentes em geral iletrados, aldeões agricultores, praticantes das religiões tradicionais. Mas “mato” também
é o “mato sagrado”, onde habitam os irans, as divindades sagradas de muitas etnias guineenses.
165
Mesinho significa medicamento, remédio, mas também amuleto e é nessa acepção que Cabral aqui emprega o
termo.
150
podemos convencer-nos de que ser africano é pensar que o relâmpago é a fúria de Deus
[...]. A nossa luta é baseada na nossa cultura, porque a cultura é fruto da história e ela é
uma força. Mas a nossa cultura é cheia de fraqueza diante da natureza. É preciso saber
isso. [...] Muitos de nós acreditaram que não nos devíamos instalar em certos matos
porque está lá o “irã”. Mas hoje, graças aos muitos “irãs” da nossa terra, a nossa gente
entendeu, e o “irã” também, que o mato é do homem, e ninguém mais tem medo do
mato. O nosso Partido, no plano cultural, procurou tirar o maior efeito possível, o
maior rendimento possível da nossa realidade cultural. Quer não proibindo aquilo que é
possível não proibir sem prejudicar a luta, quer criando no espírito dos camaradas
novas ideias, nova maneira de ver a realidade (CABRAL, A.)166.
166
Cf. o já referido site disponível na internet: http://didinho.no.sapo.pt. A citação foi tirada do discurso que tem
como título “Partir da realidade da nossa terra” e está no parágrafo sobre a “realidade cultural”.
167
Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura, 1997. Appiah é um dos pensadores africanos mais
conhecidos no Brasil.
151
168
J. Hountondji , da Costa do Marfim; Ngugi wa Thiong’o, que escreve em seu idioma
materno, o gikuyo, a língua do maior grupo étnico de Quênia 169, ou ainda o congolês
Valentin Yves Mudimbe 170. Acrescento ainda a nigeriana Sophie B. Oluwole171, o sul-africano
Mogobe B. Ramose172, o moçambicano Elísio Macamo173 e também Jeremy Seabrook, ao qual
devo muitas das idéias para este capítulo, um dos mais brilhantes intelectuais sul-africanos.
Axelle Kabou, em seu provocante livro Et si l'Afrique refusait le développement (1991),
discute o uso do passado colonial como pretexto para não se falar dos males “cometidos em
casa” pelos maus governos, na África. Seu livro teve grande repercussão na década de noventa,
tendo desencadeado muita indignação. Segundo a autora camaronesa, os africanos alfabetizados
foram condicionados a “perceber a tradição e a modernidade como valores conflitantes. [...]
Aplicada à África de hoje em dia, a noção de alienação cultural é um mito tendo como função
instaurar um clima de resistência à penetração de idéias novas nas mentalidades” (KABOU,
1991, p. 94). Se os povos africanos querem participar do circuito mundial de trocas, torna-se
indispensável a modernização, diz ela. Esse dilema foi tratado por vários outros autores, como os
já aqui várias vezes citados Paulin J. Hountondji e Anthony Appiah ou ainda o apaixonado
Ngugi wa Thiong’o.
168
Entre suas publicações, destacam-se Combats pour le sens: Un itinéraire africain. Academic Literature, 1997;
Les savoirs endogènes. Pistes pour une recherche. Paris, Karthala, 1994 / Les savoirs endogènes: pistes pour
une recherche, édité par le CODESRIA, Dakar, 1994; edição em inglês: Endogenous Knowledge: Research
Trails; como organizador: Sur la philosophie africaine. Critique de l'ethnophilosophie. Paris: François Maspero,
1997.
169
Além de obras de ficção e um depoimento de seu tempo como preso político, destacam-se Decolonising the
mind. The politics of language in African literature (1986), onde defende a posição que os autores africanos
devem expressar-se nas suas línguas nativas, pois só assim podem atingir as populações africanas. Em
Homecoming: Essays on African and Caribbean Literature, Culture, and Politics (1972) traz uma série de
ensaios, todos orientados por essa postura descolonizadora. Appiah comenta que a postura de Ngugi despertou
também uma reação negativa: “ao escrever em sua língua materna, o gikuyu, levou muita gente em seu próprio
país a vê-lo – erroneamente, em minha opinião – como uma espécie de imperialista gikuyu (o que não é uma
questão nada trivial no contexto das relações interétnicas no Quênia)” Cf. APPIAH, 1997, p. 20.
170
Mudimbe é um conceituado pensador africano, com mais de uma vintena de obras, das quais as mais discutidas
são The invention of Africa. Gnosis, philosophy and the order of knowledge (1988) e The ideia of Africa (1994),
além de Diaspora and Immigration.(1999). Como Hountondji e outros, critica o etnocentrismo dos etnólogos
ocidentais, responsáveis por uma “invenção” reducionista e uma idéia monolítica do continente; a lógica
etnológica teria servido para “patologizar os africanos” e para dominá-los.
171
Autora de uma firme defesa das crenças tradicionais na obra Witchcraft, Reincarnation and the God-Head. Issues
in African Philosophy. Lagos: Excel Publishers, 1992. Critica a visão depreciativa européia da religiosidade
africana, mostrando como esses elementos (magia, reincarnação, crença nos espíritos e na ligação com os
mortos) estão estreitamente ligados a sentimentos religiosos, constituindo uma das bases das estruturas sociais
dos povos africanos).
172
Sua principal publicação, African Philosophy through Ubuntu. Harare: Mond Books, 1999, foi comentada em An
African perspective on justice and race (disponível na internet: http://them.polylog.org/3/frm-en.htm). O
conceito umbuntu de justiça, baseado no equilíbrio e na harmonia, foi desequilibrado pela desumana conquista
colonial. Colonização e racismo, negando esse princípio fundamental de igualdade humana, são a face oposta da
filosofia umbuntu.
173
Publicou Was ist Africa? Zur Geschichte und Kultursoziologie eines modernen Konstrukts. Berlin: Duncker &
Humblot, 1999 (O que é a África? Sobre a história e a sociologia da cultura de uma idéia construída) Macamo é
professor em Bayreuth, na Alemanha, e o livro é o resultado de sua tese de doutoramento.
152
Abdulai Sila, em Eterna paixão, pela voz de Daniel, o afro-americano por nascimento e
africano por adoção que emigrara para a “terra dos nossos avós” (SILA, 1994, p. 34), expressa a
decepção que tantos experimentam ao constatarem que os ideais pregados pelas revoluções
libertadoras não eram seguidos:
Lembrou-se de Mark, das suas ideias apaixonadas sobre África, da sua convicção no
sentido de justiça e de solidariedade do Homem africano. Sentindo desmoronar todo
aquele edifício, procurou forças para [...] confessar-lhe tudo o que sentia.
Iria contar da África que estava descobrindo. Daquela com cara cruel, que reprimia
barbaramente; daquela com mãos sanguinárias, que assassinava nas prisões; da outra,
de olhos vedados, perdida na corrupção (ib., p. 71).
Desde as últimas décadas do século XX que se vem assistindo a uma tomada de posição
cada vez mais clara e mais diferenciada por parte da intelligentsia dos assim chamados
“periféricos”, povos saídos da colonização. Com a expansão dos estudos sociais e
antropológicos, e mais recentemente dos estudos culturais, vêm afluindo ao palco acadêmico
novos atores, africanos, asiáticos, árabes, latino-americanos, contribuindo com novos aportes e
novas perspectivas, desalojando o eurocentrismo e suas conseqüências. As teorias pós-coloniais,
dentro desses novos horizontes, têm tido uma abrangência cada vez maior.
Paulin J. Hountondji, em seu livro Sur la “philosophie africaine” (1980; a expressão
aparece no título entre aspas)174, faz uma revisão crítica de obras de africanistas europeus que se
propuseram a explicar o fundo filosófico e ético que norteava as práticas sociais de determinados
grupos étnicos do território colonizado. Na sua opinião, porém, o que esses autores praticaram
foi uma “etnofilosofia”, às vezes até “bonita demais para ser verdadeira” (HOUNTONDJI, 1980,
p. 19). Por etnofilosofia ele entende uma pesquisa que parte do pressuposto da existência de uma
“filosofia africana” que admite uma visão de mundo coletiva e hipotética de um determinado
povo (ib., p. 33), isto é, são construções arbitrárias, hipotéticas, que não se baseiam em material
discursivo concreto, “discursos explícitos” (ib., p. 32), ou seja, tradições orais, contos, mitos, o
saber dos anciãos.
Tomando como exemplo a obra do missionário belga Placide Tempels sobre a filosofia
bantu, Hountondji mostra que, apesar desse sistema ontológico apresentar uma “maravilhosa
coerência”, considerando-o sob a lente da sua função política, verifica-se que ele “desvia a
atenção dos problemas políticos fundamentais dos povos bantu [...], defasado em relação à
ardente realidade da exploração colonial” (ib., p. 19), “uma abstração incrível face à situação
concreta histórica do país” (ib.). O então Congo Belga reconhecia a superioridade do branco e,
174
Paulin J. Hountondji ressalta que há mais de meio século intelectuais africanos se vêm ocupando em produzir um
“discurso laborioso pelo qual nos empenhamos em nos definir” e essa literatura “não pára de crescer” (1980, p.
12). E procede a uma extensa listagem, nas páginas seguintes, de um grande número de nomes de autores e de
títulos de obras africanas das mais variadas procedências (p. 12-13).
153
Os fundamentos sobre os quais se esteiava a dominação colonial foram constituídos pela tríade
“o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua” (SANTIAGO, 1978, p. 16).
Coerentemente, dentro das estratégias de desfiguração cultural, também na Guiné-Bissau as
línguas autóctones, algaravias incompreensíveis, foram proibidas, assim como a língua veicular,
o crioulo. Apesar de toda repressão, contudo, os idiomas nacionais continuaram vivos e ativos,
permanecendo o centro de referência para as comunidades étnicas, não tendo jamais perdido seu
status de meio de comunicação e de expressão familiar e grupal. Já tratei desse assunto no
segundo capítulo (segmento 2.5) e não preciso reter-me novamente nele. A língua do dominador
passou a língua oficial do país depois da descolonização, continuando a ser a mais prestigiada
socialmente, constituindo a língua do ensino escolar, das redações oficiais no campo da
legislatura e da representação no exterior. Seu conhecimento pleno estava (e ainda está)
175
Trata-se de um dos temas recorrentes da discussão contemporânea e tem sido muitos os intelectuais africanos que
procuram demonstrar, em suas obras, a falácia do pressuposto que Hountondji chamou de “unanimismo”, isto é,
a afirmação da existência de um conjunto central e geral de idéias compartilhadas pelos “africanos”, como um
bloco unitário e indiferenciado, um “pressuposto de que exista, mesmo num nível de abstração bastante elevado,
uma única visão de mundo africana” (APPIAH, 1997, p. 123).
154
reservado praticamente a uma pequena minoria privilegiada que com ela mantém, como em
outros países ex-colonizados, uma relação ambivalente e não totalmente desprovida de
artificialismo. A língua portuguesa é, apesar de todos os limites, indissociável da vida cultural da
Guiné-Bissau, tendo sido considerada por Amílcar Cabral como sendo o melhor legado deixado
pelo colonizador.
Como se pode constatar em toda a África, nos primeiros tempos pós-independência, o
intelectual muitas vezes repudiou a língua do dominador da mesma forma como se distanciou da
cultura metropolitana. Fez e continua a fazer parte da política cultural de uma grande parte dos
países africanos a preocupação em valorizar as línguas maternas, faladas pelas diferentes etnias
nacionais, como constituindo elemento básico e indispensável para a afirmação da identidade
pessoal e coletiva. O problema da confrontação entre a presença de idiomas nativos e línguas de
contacto com a língua colonial é comum à maioria dos países africanos e não está livre de
ambigüidades. Apesar do conflito evidente, para dar apenas alguns exemplos, existe uma literatura
escrita em iorubá, na Nigéria, em xona no Zimbábue; em suaíli e em ganda em Quênia; em sotho,
língua da África do Sul.
Mas os imbricamentos internacionais dos tempos modernos inviabilizam um insulamento
improdutivo. Apesar de signo do colonialismo, é a língua do dominador o veículo que acabou
por impor-se como língua literária, depois de muitos debates e indecisões, discussões que
continuam atuais e sempre de novo reabertas176.
Albert Memmi, em seu livro Portrait du colonisé suivi de portrait du colonisateur
(1966), esboçou sem rodeios a real dificuldade, se não impossibilidade, do uso da língua nativa:
A língua materna do colonizado, aquela que é alimentada por suas sensações, suas
paixões e seus sonhos, aquela na qual se liberam a ternura e os espantos, aquela, enfim,
que reúne a maior carga afetiva, é justamente essa que é menos valorizada. Ela não tem
nenhuma dignidade no país nem no conjunto dos países. Se quer conseguir um
trabalho, construir seu espaço, existir na cidade ou no mundo, ele tem primeiro que se
dobrar face à língua dos outros, a dos colonizadores, seus senhores. No conflito
lingüístico que habita o colonizado, sua língua materna é humilhada, esmagada
(MEMMI, 1966)177.
176
E assim, o emprego das línguas européias, tanto do português como do francês ou do inglês, terá preferência em
termos internacionais e será dominante, pois as leis do mercado assim o exigem. Além disso, o idioma do antigo
dominador está arraigado nas mentes como a língua da “civilização” e do “desenvolvimento” e é bem mais tenaz
do que até pode parecer ou desejar-se.
177
A tradução é minha. Consultei o site http://www.mef.qc.ca/portrait%20du%20colonise.htm.
155
lingüístico costumeiro foi completamente rejeitado e uma nova sintaxe, crua, urgente e
revolucionária, foi dada a esse meio que havia se tornado o maior repositório de
conceitos racistas (SOYINKA, apud REIS, 1999, p. 103).
O fato é que a grande maioria dos autores africanos prefere escrever no idioma do
colonizador, embora isso não corresponda geralmente à realidade lingüística de seus países.
Assim, falar da Guiné-Bissau como “país de língua portuguesa” implicaria não levar em conta
que ali o português é uma língua falada por uma pequena minoria, sendo ainda mais reduzido o
número dos que a falam corretamente, e ínfimo o dos que a escrevem. As implicações
ideológicas do termo “lusófono” são de certo modo até mesmo perversas, seguindo o
pensamento do estudioso beninense Guy Ossito MIDIOHOUAN (1986) que se refere
especialmente ao francês. Admitir que “os” guineenses, como totalidade, sejam lusófonos seria
inverter a realidade, pois isso implicaria em admitir que falam habitualmente o português. Mas o
português na Guiné-Bissau, embora seja o idioma oficial, não é nem a língua segunda da maior
parte da população, nem mesmo a da elite instruída, que não a usa espontaneamente em situações
descontraídas, no seu meio de origem. Afirmar o contrário seria querer iludir-se ou pretender
distorcer politicamente a realidade. Poderia ser viável, talvez, falar que a Guiné-Bissau é um país
lusógrafo, embora essa realidade esteja cada vez mais confrontada com o crescente emprego da
língua guineense também na comunicação escrita.
Numa primeira instância, numa visão diacrônica, ao escritor guineense sucedeu o mesmo
que ao brasileiro ou ao angolano recém-descolonizado. Socializado e aculturado pelo
instrumento da língua, o vínculo com a metrópole perdurava e “fazia com que o produtor textual
colonizado quisesse inserir-se, e a sua obra, no quadro geral da literatura do dominador,
esforçando-se ao máximo para aproximar a sua dicção literária da dos autores metropolitanos”
(PADILHA, 1995, p. 3)178. Mas, se existe a cooptação, existe igualmente a sublevação. Entre as
táticas subversivas empregadas por escritores latino-americanos ou africanos, uma das muitas
faces da reação contra os tentáculos do neocolonialismo, está a utilização da língua imposta pelo
vencedor como forma de expressão, sem obedecer à norma castiça e culta, modificando-a,
estética e ideologicamente. A consciência de que os efeitos condicionantes da colonização
continuam a corroer a auto-estima e a autoconfiança dos ex-colonizados mostra-se através do uso
que os escritores fazem do português, abrindo um espaço de expressão contestatória. A
introdução de elementos da tradição oral das diferentes culturas, a constante referência a mitos e
lendas, à sabedoria ancestral de múltiplas raízes, tudo isso é enunciado por uma desconstrução da
linguagem, numa rebelde apropriação.
178
Conheci um intelectual guineense que se autoqualificava de “Camilo Castelo Preto”, considerando aquele autor
português (1825-1890) como modelo de beleza e elegância de linguagem que pretendia alcançar.
156
que decidir-se à renúncia de algo que lhe é essencial, em favor do dever supra-ordenado e que
julga imprescindível: transmitir às gerações vindouras como que a prova da existência da cultura
da sua gente. E cabe uma tal tarefa – o texto na língua guineense é mais longo e mais explícito –
anos... mindjeris ku omis d'e tchon, “a nós, mulheres e homens deste chão”, pois são eles, e só eles,
que de fato podem firmanta no storia (ib., p. 12). Trata-se, portanto, a meu ver, nesse poema de
abertura do livro inaugural de Odete Semedo, de um texto programático, da articulação proposital
de uma tomada de posição que transcende a esfera pessoal e íntima dos demais poemas e a partir do
qual a leitura do resto do livro poderá até certo ponto orientar-se. Foi por atitude, por
posicionamento consciente, portanto, que Odete Semedo optou por um livro bilíngüe179. Para os
guineenses que lerem Odete Semedo, ser-lhes-á fácil detectar laivos da sua origem mandjaca, em
pequenos pormenores espalhados em um ou outro poema. Não são casuais as referências, por
exemplo, à stera di n bañala (“[Re]unidos”, p. 66/67), que evoca um tipo de “pano de pente”
muito especial, resultado da junção de vários pedaços de outros panos, e que acaba sendo como
que o mostruário do conjunto das peças que uma mulher guarda na sua arca. Ela refere-se também
às histórias do pássaro “se n'há n'há e das serpentes do grande mar”, do folclore mandinga
(“Saudades”, p. 79) ou “aos passos de asalmas”, as almas defuntas (“Ansiedade”, p. 71). Sua
guineidade não aflora de modo ostensivo, mas faz parte integrante do seu ser, estando sobretudo
espelhada em seus poemas na língua guineense180.
É possível constatar, em quase todos os autores guineenses contemporâneos, a desenvoltura
com que escrevem em guineense e como essa língua faz parte integrante do seu universo, uma
presença clara ou subreptícia ao longo da maioria das obras. Tony Tcheka escolheu para abrir seu
primeiro livro individual (Noites de insónia na terra adormecida, 1996) uma série de dez poemas
que denominou “Kantu Kriol”. Odete Semedo decidiu-se, como vimos, por uma publicação
bilíngüe (Entre o ser e o amar, 1996), com poemas em português e em crioulo. Nas suas obras
posteriores (Histórias e passadas que ouvi contar, 2000a e 2000b; 2003a) e No fundo do canto,
179
Lembro aqui a posição do queniano Ngugi wa Thiong’o, bastante radical, argumentando que “uma cultura
específica não pode ser transmitida através de uma língua na sua universalidade, mas sim na sua particularidade
enquanto língua de uma comunidade específica com uma história específica”. A literatura e a oratura, prossegue
Thiong’o, “são os principais meios pelos quais uma língua particular transmite as imagens do mundo contidas na
cultura que ela carrega. [...] A língua carrega a cultura e a cultura carrega todo o corpo de valores pelos quais nós
nos apercebemos de nós mesmos e de nosso lugar no mundo. Ela é inseparável de nós que constituímos uma
comunidade de seres humanos com uma forma específica, uma história específica, uma relação específica com o
mundo. (THIONG’O, 1986, p. 15-16).
180
As dúvidas que Odete Semedo sente diante da decisão de poetar em português ou em crioulo não correspondem
só a uma questão da sua identidade individual, à expressão dos seus sentimentos. Um outro queniano, Ali A.
Mazrui, professor de estudos culturais globais na Universidade de Binghamton, vê uma desvantagem
fundamental da África em depender das línguas dos colonizadores europeus para o desenvolvimento das suas
culturas e da ciência. Para ele, é extremamente grave essa “deficiência linguístico-cultural” que acontece até
entre africanos do mesmo grupo lingüístico que não conseguem comunicar-se entre si nas suas línguas maternas,
como podem, por exemplo, os japoneses (MAZRUI, 2001). Como se vê, o debate em torno do assunto suscita
paixões e as posições são as mais diversas.
158
2003b), já procede de forma diferente, lançando mão com freqüência do guineense, assim como
Filinto de Barros em Kikia Matcho (1997) respinga seu romance com uma centena de termos em
crioulo, explicados no final em um glossário. O mesmo acontece com Abdulai Sila, nos seus três
romances (1994; 1995; 1997), sendo que somente o segundo contém um glossário.
A língua guineense é também onipresente na poesia em português de Félix Sigá (1996).
Muitas vezes camuflada, contribui para uma remodelação da língua de prestígio a partir de efeitos
originais e vivificantes. O poeta não só introduz na enunciação em português muitos termos e
expressões em crioulo, dando o tom de oralidade à fala das personagens, como emprega construções
daquele idioma nos enunciados em português. Ele recorre também a vocábulos não só do crioulo
como de algumas línguas étnicas, alterando com empréstimos escolhidos conscientemente à sintaxe
portuguesa culta. Assim, tocava palmas, cabelo tecido, cobou-o mal (insultou-o), contar passadas
(contar, passando adiante, notícias, acontecimentos ou “fofocas”), kulkar (vender na rua ou na feira)
são expressões imediatamente detectáveis pelos crioulófonos, mas de difícil compreensão para os
leitores exógenos. Félix Sigá também insere freqüentemente pequenas frases em crioulo de grande
efeito estilístico, assinalando uma mudança de registro, a passagem de um tema mais geral para
outro, mais diretamente ligado a si mesmo, ressaltando a origem social do sujeito.
Pegar teso (trabalhar duro), falar mantenha (cumprimentar), roncar (vangloriar-se, contar
vantagem), usar o soco de bas (usar pistolão), tomar o couro (ocupar um lugar de direção), fumar
uma ordem (dar uma ordem), apanhar castigo (ser castigado), rampar o terreno (nivelar), uma
situação de afronta (momento de dificuldade, de “foronta”, desgraça), branco coitado (europeu
pobre, sem prestígio) são expressões, entre muitas outras, encontradas nos romances A última
tragédia e Mistida, de Abdulai Sila, dentro de contextos fraseológicos do português culto. Esse
autor também usa com freqüência torneios sintáticos próprios da língua guineense, tais como
“um grande problema que era preciso pensar nele”, construção que ocorre várias vezes.
Abdulai Sila renunciou propositadamente, em seu terceiro romance, Mistida, a acrescentar
um glossário ao livro. É preciso estar a par do código da cultura guineense para alcançar o
significado de certas alusões: conhecer o código “moderno” – por exemplo o papel representado
pelos carros de marca Volvo (cf. notas 160 e 308); ou o significado da Cicer, a companhia nacional
de bebidas (uma fundação que data da época da guerra, quando Portugal teve que satisfazer certas
necessidades do grande contingente dos seus soldados) e uma das poucas tentativas industriais do
país independente, mas que acabou falhando; saber o que é um klandô (designativo dos bares na
época logo depois da libertação); decifrar o significado de um soco de baixo, enunciado em
português de um termo crioulo (suku di bas) relativo ao pistolão e/ou ao dinheiro pago
corruptamente para se alcançar algo da parte de um funcionário. E também é preciso dominar o
código “tradicional” para compreender referências aos djambakus, murus, yrans, aos poderes da
159
alma biafada, ao apoló (tortura em que se é amarrado pelos tornozelos, com as pernas para o ar),
ao kambletch (pedaços partidos de cabaça) e assim por diante.
Em todo o tecido textual há símbolos e situações que podem ser imediatamente
decodificados mas o recurso ao código usual em geral não causa espanto nem admiração, passa
praticamente desapercebido. É a transgressão a esse código que surte efeito.
Odete Semedo lança mão, a todo momento, de vocábulos da língua guineense, no seu livro
mais recente, No fundo do canto, e procede a uma re-ocupação da palavra e do seu conteúdo
semântico, recorrendo a neologismos plenos de intencionalidade, quando nomeia certos
personagens que entram na cena textual, fazendo desfilar, ao lado de um “Matutino” e de um
“Vespertino”, ou de um “Vivêncio” (SEMEDO, 2003b, p. 138, 140, 141), outras figuras paródicas
que dão ênfase e vivacidade ao contexto de crítica e sarcasmo que a autora pretende encenar: “o
Viviano de ontem / hoje Presentino / neto de nhu Prudêncio / e de nhara Conveniência / anda de
porta em porta / pronto a vender / palmo e meio / de trapo e trapaça / a quem mais der” (ib., p. 144).
O surgimento de um enunciado em uma outra língua (sobretudo na guineense) no meio de
um texto em português é sempre intencional e essa aparição é estilisticamente bem marcada,
patenteando sempre um momento de tensão no acontecer literário. Na prosa de Abdulai Sila e na
poesia de Félix Sigá, na minha opinião, encontram-se os melhores exemplos dessa propositada
inserção da língua materna no texto em português, num ato de criatividade e de liberdade,
sinalizando um posicionamento transgressor consciente e não apenas ilustrativos “guineismos”.
Além disso, o uso do crioulo nem sempre é de forma direta e às claras, mas sim detectável por
detrás de muitas estruturas frásicas em português, sendo uma das marcas estilísticas própria a esses
dois escritores que a manejam com maestria. Sem dúvida, o pleno gozo dessas pérolas estilísticas
está reservado aos que dominam ambas as línguas, restando irreveladas aos não crioulófonos,
ficando quando muito uma impressão de desconforto ou curiosidade diante de estruturas insólitas
que se pressentem propositais sem ser possível decodificá-las.
Ao utilizarem transgressoramente a língua oficial, enxertando-a com crioulismos e
elementos de outras línguas étnicas, subvertendo a sintaxe e emprestando-lhe um visual próprio, os
autores guineenses estão tomando uma postura política de rebelde independência, de clara
contestação e de distanciamento anticolonialista, nacionalizando o instrumento herdado, praticando
uma literatura menor, como entendem Gilles Deleuze e Félix Guattari (1977): uma produção
literária que subverte a língua “maior” que é a língua do dominador (e do segmento dominante). O
autor ou a autora comporta-se como ponta de lança de um proclamar coletivo de autodefinição e
auto-afirmação. Verifica-se uma orgulhosa postura que ressalta a diferença e que procura seu
próprio espaço, a voz movendo-se entre a terrritorialidade, a desterritorialização e uma
reterritorialização (DELEUZE; GUATTARI, 1977). O idioma oficial e elitista, a estética
160
legitimada são desmontados e desestabilizados para dar lugar a uma nova ordem, um novo
espaço inventivo e libertário.
Ana Mafalda Leite, estudando à luz das teorias pós-coloniais a literatura angolana, onde a
tematização e o questionamento da língua são recorrentes, ressalta que “o hibridismo lingüístico
foi uma das constantes mais significativas da textualidade africana em língua portuguesa”;
refere-se à língua do colonizador como “lugar de abrogação e de apropriação” (LEITE, 2003, p.
19), lembrando que o termo “abrogation” foi empregado pelos organizadores da coletânea de
ensaios The Empire Writes Back (ASHCROFT et al., 1989, p. 44) para indicar a “negação,
supressão, da normatividade lingüística, imposta pela metrópole colonial, e a apropriação da
língua em múltiplas vertentes, e sua textualização” (ib.).
Tropicalizado, canibalizado, deglutido e ruminado antropofagicamente, o português na
África se torna digestível, reterritorializado. Desmontada a rigidez canônica da “língua de
Camões” (metonímia irônica ou aberrante, costumeira e irrefletidamente empregada, evocando
exatamente o grande vate da expansão imperialista portuguesa), o autor se converte em filtro ou
plataforma, porta-voz da coletividade antes subalterna e silenciada. É de novo Caliban opondo-
se, pelo exercício da fala, a seu opressor. O espaço textual deixa de ser o lugar da enunciação de
um “eu” autoral para tornar-se a expressão de um “nós” coletivo, pulsante de sentido político e
de orgulhosa afirmação de sua diferença.
PAIGC (então mandatário do governo), que regeram ideologicamente o período de luta foram
sendo desprezados em favor de uma corrida pelo poder e foram muitos (e continuam) os
conflitos internos de interesse regidos por militantes de origens diversas (LOPES, ib., p. 73). Os
interesses políticos e econômicos se sobressaíam num real confronto de classes e, sobretudo,
entre o movimento de libertação nacional e uma pequena burguesia de comerciantes aliada aos
funcionários coloniais (ib., p. 75-76).
Essa classe dirigente está em grande parte imersa numa autocolonização prejudicial
aos interesses da soberania do país, enredado no neocolonialismo. Vimos que o que se
observa depois das independências dos países africanos são mecanismos que favorecem
determinadas elites dentro do Estado, de bases frágeis, o que explica os vários golpes de
Estado sucessivos em muitos países recém-independentes, que acabam por comprometer a
formação de estruturas que viabilizem o desenvolvimento dos mesmos. A Guiné-Bissau,
sobretudo desde o conflito de 1998/99, vive em sobressalto, sob constante ameaça de novo
dramático desequilíbrio, resultado de tensões internas baseadas na luta pelo poder. Os jornais,
que hoje em dia na Guiné-Bissau expressam com espantosa clareza e liberdade o estado de
insatisfação reinante, espelham a frágil estabilidade em que o país se encontra, congestionado
por lutas partidárias, na verdade entre grupos oriundos da mesma classe privilegiada da
oligarquia política. O queniano Ngugi wa Thiong’o, tanto em seu livro sobre a
“descolonização das mentes” como nos ensaios reunidos em Homecoming, insiste nesse triste
fato:
A independência não lhes trouxe a terra de volta. Eles continuam sem alimentos e sem
roupa. Mas agora há uma diferença. Antes da independência, as realidades básicas eram
clara e visivelmente delineadas: todos os conflitos eram reduzidos a duas polaridades –
branco significava saúde, poder e privilégio; negro, pobreza, trabalho e servidão.
“Expulsemos o homem branco”, gritavam os líderes nacionalistas, “e desaparecerá a
fundamental razão dos nossos problemas”. Desapareceu? Não exatamente! Os
camponeses e os operários continuam sendo só os trabalhadores das minas e os
carregadores, mas agora, são o que Aluko chamaria “o Branco Homem Negro”
(THIONG’O, 1972, p. 56)181.
181
Independence has not given them back their land. They are still without food or clothes. But now there is a
difference. Before independence basic realities were boldly and visibly delineated: all conflicts were reduced to
two polarities – white was wealth, power and privilege; black was poverty, labour and servitude. 'Remove the
white man’, cried the nationalist leaders, 'and the root cause of our troubles is gone.' Gone? Not exactly! The
peasants and workers are still the hewers and carriers, but this time, for what Aluko would call the 'black White
Man. A tradução é minha.
162
182
A citação foi tirada do prefácio ao romance Sonhos d’Ouro, a partir da edição da obra completa de José de
Alencar (1829-1877), editada pela Editora Aguilar (1959). É interessante ler todo o prefácio, “Benção paterna”,
p. 691-702 do primeiro volume.
163
nome muitas vezes silenciado de Guerreiro Ramos (1915-1982), autor da original e frutífera teoria
da redução sociológica. Enfatizando a desafiante necessidade da formação de uma consciência
crítica das massas, Guerreiro Ramos procurou caminhos para impedir a transposição acrítica de
problemáticas (e de soluções) alheias à realidade local, combatendo a assimilação literal e passiva
dos produtos científicos importados183.
Vimos, também apenas rapidamente, ao longo deste capítulo, muitas expressões da
reação nos países africanos contra a imposição clara ou subreptícia dos valores das antigas
metrópoles. O colonialismo serve indiretamente de propulsor, provocando a reação anticolonial,
abrindo espaço para um confronto, um redimensionamento, uma reterritorialização. E no poder
do confronto dessa rebelião literária, lingüística e ideológica, diz Pires Laranjeira, “é que reside o
estatuto de liberdade”, da emancipação das amarras metropolitanas (LARANJEIRA, 1985, p.
10)184. Nesse sentido, a Guiné-Bissau nada mais é que um exemplo, no qual me detive, pondo
em evidência o posicionamento dos escritores, com sua postura transgressora, recuperando, pela
trama literária, seu território simbólico original.
Hoje em dia, é sobretudo na ampla rede dos estudos culturais que se tematiza
dialeticamente o confrontamento centro versus periferia. O “saber local” (Geertz), o “local da
cultura” (Bhabha), a recusa às idées reçues e aos estereótipos reducionistas do juízo de valor (Said),
a recuperação do subalterno (Spivak), a insistência na importância do locus da enunciação
(Mignolo), o direito à diferença (Derrida) e à alteridade, a construção simbólica das etnias e a
imaginação da nação (Barth, Gellner, Anderson) e, não por último, as relações entre a cultura e o
poder (Hall), são meadas de um mesmo complexo bordado que vou elaborando ao longo de
diferentes segmentos deste meu trabalho. Vou tratar, nos próximos três capítulos, de como a
literatura reflete a busca identitária e de seus reflexos na definição da nação guineense praticada
pelo discurso literário e de como esse discurso mesmo engendra a nação, narrando-a enquanto
unidade simbólica identificatória daquele povo.
183
Autor prolífero, sua obra mais conhecida é a A redução sociológica, publicada em 1958, com uma terceira edição
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1996.
184
Por não ter sido praticamente presente na Guiné-Bissau, não me referi ao movimento da Negritude, movimento
tão controverso, mas, de todo modo, também uma reação pós-colonial que assumiu o discurso da diferença e do
retorno aos valores e à estética africanas. Sobre a Negritude nos países africanos de língua portuguesa, cf.
LARANJEIRA, 1995b.