Você está na página 1de 51

MOEMA PARENTE AUGEL

O DESAFIO DO ESCOMBRO

A LITERATURA GUINEENSE E A NARRAÇÃO DA NAÇÃO

Rio de Janeiro
2005
AUGEL, Moema Parente. O desafio do escombro: a literatura guineense e a
narração da nação. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras-UFRJ, 2005. 387 p. (Tese de
Doutorado em Literatura Portuguesa, na especialidade das Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa).

Orientadora: Profª Drª. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco.

1.Literatura guineense – análise. 2. Literatura africana.


I. Secco, Carmen Lucia Tindó Ribeiro (orientadora)
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras
III. Título
4 PÓS-COLONIALISMO, NEOCOLONIALISMO, ANTICOLONIALISMO

Os ocidentais podem ter saído fisicamente de


suas antigas colónias na África e na Ásia, mas
as conservaram não apenas como mercados,
mas também como pontos no mapa ideológico
onde continuaram a exercer domínio moral e
intelectual.
Edward Said. Cultura e imperialismo

A literatura que se tem produzido em Cabo Verde, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe,
Guiné-Bissau – e não só, se pensarmos em outros países historicamente herdeiros da
descolonização – é geralmente caracterizada como literatura pós-colonial, o que pressupõe e
subentende um discurso de resistência às ideologias colonialistas. O pós-colonial é um conceito
de múltiplas significações, devendo ser entendido aqui como expressão de uma produção tanto
ficcional ou poética quanto teórica que espelha e questiona essa herança e as relações dentro dos
binômios colonizador/colonizado, centro/periferia, primeiro/terceiro mundo. Essas dicotomias
não refletem, porém, nem a interligação nem a dependência mútua nem tampouco as relações de
poder entre os pólos. Trata-se de uma dialética de exclusão segundo a qual o mundo colonial
funciona. Pois, como já disse Frantz Fanon, “le monde colonial est un monde coupé en deux. La
ligne de partage, la frontière en est indiquée par les casernes et les postes de police” (FANON,
1961, p. 31)123. Essa exclusão se efetiva não apenas na separação física e geográfica, o espaço
colonial sendo fronteirizado e departamentado, como também no plano dos direitos e dos
privilégios e, inclusive, no plano das representações e dos valores (ib.). O sujeito colonizado,
lembra Michael HARDT (2003)124, é concebido no imaginário metropolitano como o “Outro” e,
como tal, é alijado tanto quanto possível dos princípios que definem os valores da civilização

123
“O mundo colonial é um mundo cortado em dois. A sua linha divisória, a sua fronteira está indicada por casernas
e postos policiais”. A tradução é minha.
124
Michael Hardt é um pensador americano que publicou, entre outros livros e ensaios, em colaboração com o
filósofo italiano Antonio Negri, o importante Empire (2000), obra que teve grande repercussão internacional. Em
seu artigo “L’hybridité de l’Empire”, saído na revista Futur Antérieur em 1995, e posto na internet em 2003 (e
de onde retiro as citações deste capítulo), já estão traçadas muitas das idéias mestras que foram mais tarde
desenvolvidas em Empire. Hardt e Negri definem com o termo “Império” a nova ordem mundial que está
surgindo e submetendo todo o planeta a uma globalização com efeitos positivos e negativos, criando um novo
poder (a “soberania imperial”) que já não se baseia na soberania dos Estados nacionais. Segundo eles, os Estados
nacionais perderam grande parte de sua influência, pois a competição na luta pela conquista de mercados não se
faz mais entre Estados. E quando a ideologia do mercado mundial se liberta do contexto nacional, ela abre
espaço à heterogeneidade, abarcando todas as culturas, religiões, origens étnicas. Todos são benvindos ao
“Império” desde que aceitem o lugar que lhes é indicado. As empresas “imperiais” fazem da multicultura e da
multi-etnicidade a chave do sucesso, patenteando a capacidade de apropriação e reapropriação do sistema
capitalista. Esse Império emergente é fundamentalmente diferente dos imperialismos da dominância européia e
expansão do capitalismo. Inclui tradições de identidades híbridas e fronteiras em dilatação.
116

européia. O colonialismo, tal como foi praticado no século XIX e parte do século XX, sob a
máscara do zelo civilizatório, desprezava e negava a identidade do colonizado. O poder colonial
funcionava como agente de controle social “produzindo”, por assim dizer, o colonizado. Os
valores locais, autóctones, relativos ao ambiente não europeu, à cultura, à tradição, às crenças
eram considerados inferiores e eram mesmo proibidos e combatidos com a patente intenção de
substituí-los. O que predominava era o princípio dos vasos estanques e incomunicáveis, pois o
sistema colonial determinava que as identidades fossem demarcadas com uma nítida separação a
partir das fronteiras entre a metrópole e a colônia, entre o colonizador e o colonizado; eram
válidas regras que se aplicavam diversamente segundo um lado ou outro da demarcação (ib.).
“Na álgebra do conquistador, a unidade é a única medida que conta. Um só Deus, um só
Rei, uma só Língua: o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua” (SANTIAGO,
1978, p. 16). O colonizador partia de suas verdades absolutas e da negação absoluta do nativo
enquanto sujeito. A estratégia era ignorar ou silenciar as culturas dos colonizados. Silenciar é um
não dizer que pode ter conotação histórica e ideológica, dependendo da posição do sujeito que
fala. Há um interrelacionamento significativo entre o silenciado, a memória e o esquecimento.
Através do instrumento do silenciamento, emudece-se a memória do subalterno, procura-se fazer
esquecer a narração do passado vergonhoso ligado à subserviência, ao acapachamento, ao tráfico
intercontinental que esvaiu e aviltou todo um continente e, com isso, esvaziam-se as tentativas de
resistência. Adormecendo uma memória, acorda-se outra. O silêncio permite que o discurso
etnocêntrico, homogeneizador e monolítico, que se quer único e verdadeiro, grite mais alto. O
silêncio boicota movimentos que tentam recuperar memórias sufocadas, por exemplo, a história
da resistência ao jugo colonial, em suas múltiplas facetas125. Muitas formas de dizer o dito
mascaram o não dito, motivam distorções, estereótipos, camuflam os conflitos entre os senhores
do poder e os que lutam pela sua visibilidade social (ORLANDI, 1997, p. 14 e ss.).
A historiografia eurocentrada silenciou a história africana, apropriando-se da cronologia,
iniciando a contagem da história na África com a chegada dos navegadores europeus. As terras
foram “descobertas” e a partir de então passaram a existir nos mapas e assim na percepção dos
ocidentais. Os regimes autoritários, como em um verdadeiro pacto do esquecimento, fizeram
valer sua visão da história, impuseram uma única memória oficial, a memória e a história dos
vencedores. No caso específico da Guiné-Bissau, seus escritores, por muitos e diversos
caminhos, empenham-se em dar voz ao avesso da história. Isso significa levar em consideração
os interstícios das relações coloniais, as concepções que as dominaram e fizeram com que lutas
fossem ignoradas e tornadas invisíveis, significa compreender a que interesses essa narrativa

125
Remeto, mais uma vez, ao livro de Peter Mendy, sobre a tradição da resistência na Guiné-Bissau (1994).
117

atende, revelando as rupturas e as experiências compartilhadas, os anseios que não se realizaram,


significa trazer à tona o passado emudecido, praticar o exercício da rememoração.
Uma obra fundamental que desencadeou uma revisão do modo de embasar as relações
estabelecidas entre a Europa e o “resto do mundo” é certamente Orientalism, de Edward SAID
(1978), que empreende uma análise pioneira tanto dos processos de cristalização de estereótipos
e de juízos de valor que dominam a formação de opinião quanto dos mecanismos pelos quais
certas idéias se difundem como indiscutíveis e generalizantes. O “Orientalismo” é baseado em
uma estratégia política e ideológica que possibilita subordinar ao Ocidente, metonimicamente, o
Oriente cuja representação passa a existir (a “ser”) como uma realidade. Edward Said, mostrando
uma importante ligação entre o imperialismo e a cultura, ressalta a grande força estratégica que
significa “o poder de narrar, ou de impedir que se formem ou surjam outras narrativas”, e
considera a literatura, em especial o romance, a expressão cultural que muito influenciou a
“formação de atitudes, referências e experiências imperiais” (SAID, 1999, p. 12), enfatizando
que “as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca das
regiões estranhas do mundo” (ib., p. 13). A literatura colonial é um dos exemplos mais marcantes
de uma tal afirmação pois, como disse Homi Bhabha, “o discurso colonial produz o colonizado
como uma realidade social que é ao mesmo tempo um ‘outro’ e ainda assim inteiramente
apreensível e visível” (BHABHA, 1998, p. 111).
Começando por exemplos da literatura colonial na Guiné-Bissau, vou proceder a uma
análise de diferentes manifestações literárias no espaço descolonizado.

4.1 Inocência versus força bruta

A literatura colonial articula sempre uma apologia do colonialismo, mas também faz transparecer
as diversas faces da perfídia do sistema. Denomina-se em geral literatura colonial os textos
escritos por metropolitanos que, tendo passado algum tempo na África ou em outros espaços
colonizados, produziram textos em que o olhar etnográfico ressaltava a alteridade e onde a
descrição dos costumes e do ambiente em que viviam as diferentes “tribos” africanas podia até
mesmo representar um interesse verdadeiro pelo país e pela gente, ultrapassando o mero pincelar
da cor local. Sempre, porém, um olhar de fora, onde se mesclavam o fascínio e o repúdio,
camuflado às vezes em piedade ou paternalismo.
Apesar de séculos de presença na África, na metrópole prevalecia um grande descaso e
mesmo desinteresse da população portuguesa pelas colônias, não existindo quase obras literárias
que tematizassem a vida em “ultramar”. Essa lacuna levou as autoridades competentes a instituírem
um concurso literário, pois
118

um dos melhores meios para despertar o espírito dos portugueses é, sem dúvida, a
literatura – o romance de assuntos coloniais, a descrição de aventuras de além-mar, a
novela, o conto, etc. Por isso, a Agência Geral das Colónias, que não se poupa a quaisquer
esforços na propaganda de Portugal ultramarino, tomou a iniciativa dum concurso de
Literatura Colonial (POLLACK, 1995, p. 756).

Foi a partir dessa motivação imediatista que surgiram obras de maior ou menor qualidade e
aqui só interessa destacar as que tiveram a Guiné-Bissau como palco: entre outras Mariazinha em
África (1925) e mais tarde O veneno do sol (1928), ambos de Fernanda de Castro; Auá, de Fausto
Duarte (primeiro prêmio em 1934); África: da vida e do amor na selva, de João Augusto da Silva
(também primeiro prêmio, em 1936). Os prêmios eram uma soma em Escudos, bastante elevada,
verdadeiro incentivo para os escritores. Por volta de 1952, torna-se usual a denominação literatura
ultramarina e os prêmios, do ponto de vista financeiro ainda mais convidativos, são diferenciados
por categoria – poesia, ensaio, novelística e história126.
O escritor mais conhecido desse período é o cabo-verdiano Fausto Duarte (1903-1953)127
que escreveu, entre outros, o romance Auá. Novela negra (1934), um “documentário etnográfico” e
“também um novo capítulo da psicologia indígena”, segundo suas próprias palavras (ib., p. 31). O
autor esforça-se em “apresentar o africano e a sua cultura sob uma luz favorável”, diz Russell
HAMILTON (1984, p. 217), embora esteja “patente o conflito entre as culturas africana e europeia”
(ROSA, 1993, p. 162). Nesse romance, a trama se desenrola em torno de Malan, jovem fula (etnia
islâmica) que viveu na capital e que volta, bastante aculturado, à aldeia natal para desposar Auá, sua
prometida segundo os costumes tradicionais. O contraste entre a vida urbana e a rural se mostra em
muitas passagens, servindo de ocasião para o louvor à civilização.
Considero bastante sintomáticas as referências estereotipadas e reducionistas de Fausto
Duarte às diferentes etnias e passo a dar alguns exemplos. Referindo-se a Malan, que foi “servir
mais tarde como criado do Administrador de Bissau”, o autor assim o descreve:

Inteligente e dócil, servia à mesa com aprumo e fidalguia característicos da raça e


altivez da religião. [...] Amoldara-se, sem se adaptar inteiramente à civilização
europeia, porque a sua crença islâmica, definida e espiritualista, fôra sempre uma
barreira insuperável ao domínio dos brancos, que usavam coisas proibidas pelo
Alcorão. A-pesar-disso, Malan era um criado exemplar que adivinhava os menores
pensamentos do amo, orgulhoso por servir a maior autoridade de Bissau. [...] Tinha
apenas um desgosto: não sabia ler, se bem que vagamente conhecesse os caracteres
árabes. Porém, as garatujas que enchiam os papéis timbrados do Govêrno não as
compreendia, a-pesar-dos esforços que fizera adquirindo muito em segredo uma
cartilha maternal por onde começara a aprender (DUARTE, 1934, p. 11-12).

126
Boletim da Agência Geral das Colónias, nº 7, jan. 1926, p. 9, (apud POLLACK, 1995, p. 756), de onde coligi as
informações a respeito.
127
Fausto Duarte escreveu vários romances tendo como cenário a Guiné, onde viveu muitos anos como funcionário da
administração colonial. É considerado o mais importante representante da literatura de temática guineense. Sobre o
assunto, cf. entre outros ROSA (1993, p. 162-165); AMADO (1990); GOMES; CAVACAS (1997 a, b).
119

Sobre os Balanta que, segundo sua descrição, eram sempre alegres e sorridentes, Fausto
Duarte ressaltou “a expressão das suas feições incorrectas, onde a fiada regular dos dentes brancos
punha uma nota de satisfação inconsciente, dir-se-ia insensível ao calor que os causticava” (ib., p.
3). Em relação aos Nalu, descreveu um “rito fúnebre – cerimônia singular duma tribu bárbara”,
“impressionante”, com “um bailado macabro, sobrevivência dum culto pagão”, com “mulheres
dançando freneticamente ao som dos tambores”, “bailado sinistro de mulheres habitando um
continente povoado de tradições quasi inverossímeis!”, cena que fez os dois Fula, Malam e seu pai,
concluirem que “os nalus eram ainda selvagens” (ib., p. 153-154).
Sobre as mulheres das diferentes etnias, as descrições são sempre rápidas e
estereotipadas. As mulheres mandjacas, por exemplo, “provocantes nos seus trajos bizarros, que
ocultavam a cabeça encarapinhada com lenços de seda multicores. Tinham atitudes duvidosas.
Olhavam os homens meneando expressivamente o corpo ondulante. Eram as horizontais de
Bissau” que vendiam aos “brancos por bom preço as hipotéticas primícias duma requintada
sensualidade” (ib., p. 165).
Edward Said afirma não acreditar que os escritores fossem “mecanicamente determinados
pela ideologia, pela classe ou pela história econômica, mas [...] profundamente ligados à história de
suas sociedades, moldando e moldados por essa história e suas experiências sociais em diferentes
graus” (SAID, 1999, p. 23).
Considero essa reflexão sumamente importante para nortear a leitura desses romances
produzidos sob o “olhar etnográfico” de seus autores. O discurso colonial128, do qual a literatura
colonial é um dos porta-vozes, como aparato do poder, afirma Homi Bhabha, procura legitimação
para suas “estratégias pela produção de conhecimentos tanto do colonizador quanto do
colonizado que se apresentam como estereotipados mas antiteticamente avaliados” (BHABHA,
1992, p. 184), como é possível constatar nos exemplos acima apresentados. O estereótipo é um
modo de representação incompleto e fetichista em meio ao próprio campo da identificação:
circula dentro do discurso colonial como uma forma limitada da alteridade, como uma forma fixa
da diferença (ib., p. 196). Tem-se, de um lado, os auto-louvores, as afirmações de
responsabilidade, um claro triunfalismo; e do outro lado da polarização, o primitivismo, a força
bruta, a animalidade, o servilismo, a inferiorização a todo custo.
Fausto Duarte expressa a opinião corrente entre seus iguais: “Uma coisa porém era certa:
com a presença dos brancos tinha melhorado a vida dos indígenas no seu aspecto social”

128
“O termo ‘discurso’ refere-se a uma série de afirmações, em qualquer domínio, que fornece uma linguagem para
se poder falar sobre um assunto e uma forma de produzir um tipo particular de conhecimento. O termo refere-se
tanto à produção de conhecimento através da linguagem e da representação, quanto ao modo como o
conhecimento é institucionalizado, modelando práticas sociais e pondo novas práticas em funcionamento”, assim
se expressou Stuart Hall e é como tal que estou empregando o termo durante este trabalho. Cf. HALL
(disponível em: http://www.educacaoonline.pro.br/art_a_centralidade_da_cultura.asp.).
120

(DUARTE, 1945, p. 51). Os autores dessa assim chamada literatura colonial são quase sempre
funcionários da administração portuguesa, ou militares ou missionários, todos marcados
logicamente pela convicção da missão civilizatória do branco, como é possível verificar em
muitas passagens do romance O negro sem alma, de Fausto Duarte, por exemplo, quando o narrador
onisciente faz conhecer os pensamentos de Henrique, o chefe do posto, o “bom tubabo129, a quem
todos os negros estimavam” (DUARTE, 1935, p. 176):

A África era ainda um mundo a explorar, dizia Henrique para consigo. A-pesar-de tudo,
quantas proezas, quantos esforços dos portugueses de antanho, atestavam tôdas essas
clareiras, todos êsses pontos ignorados do mato, onde agora viviam numa perene
tranqüilidade indígenas pacíficos voltados à gleba depois de inutilizadas as armas.
Henrique sentia-se estimulado por um íntimo orgulho ao vê-los resignados, saüdando
os europeus respeitosamente porque ainda se encontravam bem impressas nas suas
almas rudes e nos modos servis, a energia e a coragem dos brancos, agora senhores do
mato (ib., p. 176-177)130.

Num outro livro do mesmo autor, A revolta (1945), sucedem-se os exemplos dessa
imagem que se procura sempre de novo transmitir: a do chefe branco justo e magnânimo,
superiormente dedicado a estabelecer a paz entre os indígenas que barbaramente guerreavam
entre si:

Ele bem sabia qual a extensão que poderia adquirir a revolta do ambicioso fula, as suas
conseqüências entre a população vencida quer dum ou doutro lado, sujeita à crueldade
do vencedor, aos rancores entre famílias desejosas de um sucesso dêsse gênero para se
desagravarem. Culturas queimadas, aldeias arrazadas, raptos de mulheres à mão
armada e sangue de inocentes marcariam a passagem dos rebeldes ou o triunfo dos
adversários. [...] Antes de ser empossado no cargo de comandante do Posto Militar de
Geba, de quando em vez era declarado pelo Govêrno o estado de guerra nas regiões
vizinhas, suspensas as garantias e proibido o comércio, por meio de bando. Tudo isso
acabara com a sua presença. Os anos da dura escola que é o mato de África, a reflexão
e o conhecimento directo dos costumes indígenas tinham-lhe dado a necessária
experiência para agir com eqüidade, obrando com firmeza e prudência (DUARTE,
1945, p. 83-84).

A obra de Fernanda de Castro (1900-1994) também conheceu grande repercussão. A


estória infanto-juvenil Mariazinha em África, publicada pela primeira vez em 1925, teve mais de
uma dezena de edições, apresentando alterações segundo a direção dos ventos políticos da
“metrópole”. O longo poema África raiz (1966), tantas vezes citado e integrando manuais
didáticos até mesmo na Guiné-Bissau, é um protótipo do eurocentrismo131, camuflado em
arroubos maternalistas/paternalistas. A imagem da África é sempre acompanhada de epítetos

129
O termo tubabo refere-se ao branco de modo geral. É um termo da língua mandiga e significa o europeu
(SCANTAMBURLO, 2002, p. 622).
130
A fixação obsessiva dos portugueses nas lembranças de façanhas marítimas e da colonização, forjando uma
imagem irreal de si mesmos, foi comentada por Eduardo LOURENÇO em O labirinto da saudade (1999) de
maneira bastante crítica e aberta, chamando de ficção uma tal idéia de grandeza.
131
Fernanda de Castro, portuguesa, viveu muitos anos na Guiné. Escreveu romances, sobretudo para a juventude, além
de poesia. Cf. também ROSA (1993, p. 158-162) e AMADO, 1990.
121

negativos, fazendo sobressair o fascínio pela alteridade, ao mesmo tempo temida e atraente:

África
no teu corpo rugem feras,
uivam fomes e medos ancestrais,
na tua pele há dardos e punhais.
[...] E a gente, a gente negra?
[...] a gente é como nós,
mais próxima, talvez,
dos bichos e de Deus.
De Deus pela inocência, pela alma,
dos bichos pela carne,
liberta do pecado
da ideia do pecado.
[...] Sua lei é o instinto, a força bruta.
Alma não tem (CASTRO, ib., p. 9-14).

Não me posso furtar a um paralelo com a literatura brasileira, lembrando o grande poeta
afro-brasileiro João da Cruz e Sousa, unanimemente consagrado como o maior representante do
simbolismo brasileiro132. Seu texto em prosa Emparedado, conservado inédito mesmo depois de sua
morte, ocorrida em 1898, só foi divulgado com a publicação de suas obras completas (1961). Nesse
texto, Cruz e Sousa refere-se à África acumulando todos os estereótipos negativos correntes no seu
tempo (e não só):

África, [...] tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas
bravias, arrastada sangrando no lodo das civilizações despóticas [...]. A África laocoôntica,
alma de trevas e de chamas [...]. Longínqua região desolada, criação dolorosa e
sanguinolenta de Satãs rebelados [...], grotesca e triste, África, gigantescamente medonha,
absurdamente ululante, pesadelo de sombras (SOUSA, 1961, p. 663).

Longe de abraçar tal perspectiva, o poeta afro-brasileiro esmera-se, com essas metáforas
violentas e depreciativas, em mostrar os preconceitos que o etnocentrismo europeu continuava a
divulgar e a fortalecer, pondo a descoberto com isso o “emparedamento” a que estão condenados
os descendentes dessa África “medonha” e por Deus castigada, esquecida e desprezada. Mesmo
sem a exuberância hiperbólica do simbolista santa-catarinense, é fato que a presença colonial na
África e no “Novo Mundo”, com a imposição de seus próprios valores taxados como superiores,
contribuiu, de modo negativo e decisivo, para um latente e autocorrosivo complexo de
inferioridade, empurrando os colonizados ao mimetismo e ao esvaziamento de seus bens
culturais. Até hoje, o sentimento de desqualificação, de inoperança, de falta de confiança em si
mesmo e nos seus conterrâneos, efeitos maléficos do colonialismo, não foram ainda
completamente suplantados.

132
João da Cruz e Sousa (1861-1898) deixou entre outras obras Missal, poemas em prosa (1893), Broquéis, poesias
(1884), Evocações, poemas em prosa (1898), publicação póstuma, onde se encontra Emparedado (p. 646-664, da
edição da Obra completa, ed. Aguilar, 1961).
122

4.2 A máquina de fazer o outro133

O discurso colonial tende a “construir” o colonizado, munindo-o de artefatos negativos baseados em


preconceitos raciais que têm como finalidade justificar a conquista e a ocupação e estabelecer
sistemas administrativos e culturais em seu próprio benefício (BHABHA, 1992, p. 184). Foi o
contexto da expansão imperialista e do colonialismo, com sua intrincada rede de interesses, que
incitou os invasores europeus a identificarem os africanos (e os habitantes das Américas
igualmente) como adversários que precisam ser subjugados e a englobá-los “nessa apelação
unificadora e redutora” (GRUZINSKI, apud ABDALA JR., 2003).
Para submeter o colonizado foi necessário quebrar-lhe a vontade, “coisificá-lo”,
surrupiar-lhe a língua, as crenças, as tradições, engabelá-lo com mistificações e roubar-lhe a
capacidade de escolha própria. Desprestigiar, desconsiderar a cultura autóctone em detrimento da
cultura imposta, embriagando o colonizado com o elixir da civilização, foi uma estratégia
recorrente e eficiente. Na literatura guineense, muitos textos aludem ao fascínio que a
“civilização” despertava nos africanos do meio rural, mas também na capital, provocando
admiração e cobiça pelos bens de consumo inimagináveis para aquelas sociedades. Ndani, a
protagonista do romance A última tragédia, de Abdulai SILA (1995)134, enumera algumas das
comodidades trazidas pelo colonizador, expressando sua satisfação por ter acesso aos benefícios
da moderna sociedade “dos brancos”. Referindo-se ao djambakus135 de sua aldeia que tinha
vaticinado que ela não poderia nunca ser feliz, Ndani aponta algumas das diferenças entre a vida
da tabanca que ele levava e a sua vida na cidade:

Ele devia ver o que é dormir numa cama de molas e comparar a diferença com um
colchão de palha com troncos no meio; ele devia saber o que é dormir num quarto sem
mosquitos a chatear e com ventoinha a soprar fresco toda a noite e comparar isso com o
martírio de dormir com galinha e cachorro ao lado e dabi no colchão; ele devia
experimentar para depois explicar às mulheres dele a diferença entre sentar-se de manhã
a uma mesa e tomar calmamente o mata-bicho e o acordar com o segundo galo e
começar a pilar arroz, ainda por cima com filho às costas; ele devia ver como é que com

133
Expressão cunhada por Michael HARDT em L’hybridité de l’Empire, 1995/2003. Cf. bibliografia final.
134
Abdulai Sila destaca-se na literatura nacional como o pioneiro do romance guineense. Inaugurou suas atividades
de prosador com Eterna paixão (1994), a que se seguiram A última tragédia (1995) e Mistida (1997), todos
publicados pela Ku Si Mon Editora, a primeira editora privada do país e da qual ele é um dos três proprietários.
Nasceu em Catió, em 1º de abril de 1958, é engenheiro eletrotécnico, tendo feito sua formação em Dresden, na
Alemanha (1979-1985). Em Bissau, foi um dos que constituíram o pequeno núcleo de intelectuais fundadores do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, o INEP. É também co-fundador de um centro de computação (SITEC,
1987), o primeiro do país, e da empresa EGUITEL, desempenhando um papel pioneiro na telecomunicação do
país e contribuindo com cursos de computação para a formação técnica da juventude guineense. Sila continua
fazendo cursos de especialização nessa área em diversos centros nos Estados Unidos. No capítulo 7 vou tratar
com mais pormenores dos três romances de Abdulai Sila. Agradeço ao autor as explicações e esclarecimentos
que muito me ajudaram na leitura de sua obra.
135
Indivíduo das comunidades animistas com o dom de prever o futuro e fazer vaticínios, dominando fórmulas
encantatórias. É o curandeiro ou a curandeira, ou adivinho, vidente com capacidades paranormais, o xamã de
certas etnias.
123

um simples truque de torcer uma torneira, só com dois dedos, sem o menor esforço, se
podia obter a quantidade de água que se quisesse e comparar depois esse esforço com a
canseira das mulheres da tabanca de caminhar distâncias enormes com pote ou balde
grande na cabeça; ele devia ver a quantidade de carne que o cão daquela casa comia
todos os dias e comparar com a comida que os meninos tinham na tabanca [...]; ele
devia ver tudo o que o homem branco tem e ver se encontrava uma forma de convencer
o Yran a ajudar a encontrar coisas parecidas para o homem preto, em vez de estar só a
anunciar desgraças e tragédias (SILA, 1995, p. 30)136.

O “Professor”, protagonista do mesmo romance, educado pelos padres, foi o primeiro fruto
da missão evangelizadora dos colonizadores, assumindo ele próprio o elã missionário que lhe foi
inculcado (“ele respeitava a tradição, pelo menos enquanto não entrava em contradição com as suas
convicções religiosas”; ib., p. 88), evoluindo depois para uma independência de pensamento e de
ação, ousadia que lhe custou o degredo e a morte. Aqui, o autor apresenta, num primeiro momento,
a figura do africano que se acultura e incorpora os valores do colonizador, transformando-se num
“bom cristão” e conseqüentemente, abandonando suas próprias tradições. Mas que se distancia da
postura de benevolente protecionismo própria do agente civilizador. A população estranhou que ele
não ficasse amigo do Chefe, isto é, o administrador do posto, já que eram “duas pessoas com
escola”, portanto, “com pensamento parecido” (ib., p. 85). O Professor deveria ter interesse nessa
amizade, para poder “mostrar aos outros que ele não era um indígena, mas sim um assimilado e
talvez até um civilizado” (ib.). Agente propagador dos novos tempos, caracterizado pelo autor
como um homem digno e altivo, o Professor, em contacto com o povo da aldeia, bem depressa
ultrapassou a estreiteza do pensamento discriminatório dos missionários, reconhecendo os valores
tradicionais. Seu ideal como mestre não era transmitir aos alunos a cultura do branco, mas
sobretudo instrumentá-los para enfrentar as mudanças da modernização que não podiam ser mais
evitadas.
O administrador não está muito em evidência na trama narrativa, mas seu vulto, como o
prolongamento da mão autoritária da metrópole, lança sombras e ameaças. O outro lado da medalha
é o régulo, o grande régulo de Quinhamel137, exemplo da resistência dos Pepel – e não só – contra o
jugo colonial opressor:

Se um dia os brancos forem embora, não devia mais haver nem polícia, nem cipaio, nem
nada parecido. [...] O branco não vai nunca? Aí é que está o problema do preto, não quer
pensar como é que o branco veio, por isso não sabe que um dia tem que ir. [...] O branco
veio, tem que ir um dia. Ainda há-de aparecer um preto com coragem para pensar nisso
(ib., p. 81-82).

136
Alguns enunciados talvez não sejam muito conhecidos: dabi significa percevejo; mata-bicho é a primeira
refeição do dia, nosso café da manhã; tabanca é a aldeia; Yran (escreve-se geralmente iran ou irã) é o espírito ou
a divindade protetora. Para maiores esclarecimentos sobre os irans, cf. o capítulo 2.6.
137
Pequena localidade a oeste de Bissau.
124

Abdulai Sila traça o perfil do africano mentalmente emancipado, seguro de si, que recusa a
coisificação. Consciente de sua responsabilidade como chefe da comunidade nativa, dirige com
sabedoria sua gente e reconhece que muitos males provocados pelo colonizador poderiam ser
minimizados se o povo tomasse consciência da própria força e capacidade:

No fundo, este é que era o problema do preto: tem medo de fazer mal ao branco,
enquanto que o branco faz mal ao preto todos os dias que o sol nasce [...]. O branco está
a dominar o preto é só porque não há ninguém a pensar. Ninguém diz isto está bom,
aquilo está mal e depois procura pensar porquê. Tudo o que o branco faz é porque está
bom. O branco é que estava a pensar no lugar do preto. Mas branco é homem como
qualquer outro homem! (ib., p. 64).

Com uma visão ampla e independente, o régulo de Quinhamel respeita por um lado as
tradições, consultando o djambakus e cumprindo as cerimônias rituais, mas implementa novidades,
não receando assumir outras posturas que não as ditadas pelos “usos e costumes”. Uma de suas
transgressões foi nomear conselheiros para o ajudarem nas decisões importantes para a comunidade.
Apesar de analfabeto, utiliza-se da palavra escrita para fixar para as gerações vindouras seus
pensamentos e princípios. É através do testamento do Régulo, ditado ao jovem Professor, que
Abdulai Sila faz transparecer sua mensagem política. As idéias do Régulo Bsum Nanki, bastante
contundentes, são expostas de forma pitoresca e testemunham, na sua aparente simplicidade,
independência e orgulho, auto-confiança e destemor:

Duas cabeças valem mais que uma cabeça só. [...] apesar disso ser uma coisa evidente,
muitas pessoas se esquecem. Então vivem sem saber [...] que têm que a usar. [...] Um
régulo tem que ter conselheiro [...]. Quando uma pessoa manda numa terra tem que ter
bons conselheiros, não precisa de ter polícias. Uma pessoa não pode mandar na base da
força, força da polícia ou da tropa. [...] Porque quem toma um couro à força, ou pensa que
pode ficar com ele à força, sempre perde o couro à força138 (ib., p. 92-95).

O régulo é a antítese da imagem do colonizado dependente e incapaz, contrariando o


discurso colonial que asfixia o africano dentro dos limites rígidos do estereótipo, reflexo da
arrogância do dominador que tantas vezes promoveu o silenciamento das culturas nativas pelas
mais diversas estratégias. A sua anulação leva à desorientação, à internalização do sentimento de
inferioridade e a uma assimilação acrítica e passiva do modelo imposto, ocorrendo uma
“epidermização”, para usar uma expressão de Frantz FANON (1952, p. 10). O olhar
eurocentrado sempre prevaleceu, num juízo de valores dicotomizado, em pares hierárquicos onde
o conhecido, o familiar, o “mesmo” era privilegiado em detrimento da cultura local, qualificada
pela ótica do negativo, da barbárie, da carência e da falta, como ficou patente nas passagens dos
romances de Fausto Duarte, acima referidos.

138
O termo crioulo couro significa uma boa posição ou cargo.
125

Nos meios urbanos, onde o contacto entre brancos e negros era constante, os segundos
quase que sem exceção no papel subalterno e dependentes dos primeiros, a única via possível
para alcançar um mínimo de ascensão social e de respeitabilidade era a via da assimilação, e
eram muitos os que ansiavam pelo carimbo de “aculturado” (em oposição ao “indígena”), pelo
frágil prestígio de ser, pelo menos “um bocadinho português”, como uma estória bem
humorada de Carlos Lopes tão bem ilustra. Sociólogo e economista do desenvolvimento,
Carlos Lopes139 é autor de muitas obras e ensaios sobre temas sociológicos, históricos e
políticos, sendo também um ficcionista de grande talento; escreve crônicas e pequenos
estórias que por muito tempo eram publicadas regularmente no jornal português Público.
Alguns desses escritos estão reunidos no livro Corte geral (1997), onde o escritor retém, com
fina ironia, saborosos traços da vida cotidiana guineense, tanto da capital como do interior, tanto
episódios passados na época colonial da sua infância como no momento presente.
Em “O sipaio Mendes”, Carlos Lopes reporta-se aos tempos da ocupação portuguesa e
ridiculariza gostosamente essa inconsciente ou ingênua imitação colonial de que fala BHABHA
(1998, p. 131). O sipaio Mendes140 viu sua autoridade de capitão do mato ameaçada durante um
pequeno incidente com o motorista de um caminhão-cisterna que parou indevidamente na rua
em frente da praça do mercado, enlameando a rua e sujando os passantes. Diante da pergunta
“Você não sabe que não pode parar?”, o motorista, indignado, mostrou ao representante da
lei que não aceitava a arrogância por parte de um outro africano, não lhe reconhecendo a
autoridade –“pensar que és português, ou quê?” (LOPES, 1997, p. 16) – verbalizando o que
muitos tinham vontade de lançar-lhe ao rosto mas não se atreviam. A estória se desenrola em
muitas peripécias até que, dando-se novamente a ocasião dos dois se confrontarem, o
motorista dessa vez seguiu seu caminho, sem parar, isto é, sem desobedecer, não ousando
provocar novamente o sipaio, o qual concluiu muito satisfeito: “Afinal, sempre sou um
bocadinho português!” (ib., p. 19).
Para o bom funcionamento do aparato colonial, era necessária a constituição de uma
mínima camada que fizesse a ponte entre os dois mundos. A cooptação das elites

139
Carlos Lopes nasceu em Canchungo em 1960. Doutorou-se em Estudos Africanos pela Universidade de Paris I e
tem ainda graus acadêmicos em Sociologia, História e Planificação Estratégica. Aos 24 anos foi o primeiro
diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) e um dos seus fundadores. Exerceu atividades
acadêmicas em várias universidades, como em Zurique, Uppsala, México, Coimbra. Publicou uma vintena de
livros e dezenas de artigos no âmbito das ciências políticas e sociais (cf. bibliografia final). Desde 1988 integra o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/UNDP), tendo ali ingressado como economista
do desenvolvimento. Ocupou muitos postos de direção, entre eles o de Residente e Coordenador das Nações
Unidas em Harare (Zimbábue). De 2003 a 2005 foi o Representante Residente e Coordenador das Nações
Unidas no Brasil. Deixou o Brasil para exercer o cargo de diretor político da Secretaria Geral das Nações
Unidas, em Nova Iorque. Apesar de ter escrito sempre crônicas em vários periódicos, sobretudo no Público, de
Lisboa, apenas em 1997 reuniu-as em parte no livro Corte Geral.
140
Às vezes escreve-se cipaio; é o policial africano a serviço da administração colonial.
126

tradicionais141 na administração colonial é vista como maneira de domesticar o instinto


ambicioso dos nativos (BHABHA, 1992, p. 185). A formação de uma elite autóctone, muitas
vezes mestiça, acenava com a “integração”, o que para os colonizados significava uma
completa assimilação dos valores brancos, ocidentais, uma identificação com o invasor.
Amílcar Cabral, o grande mentor intelectual, político e estratégico das lutas de libertação da
antiga Guiné e do Cabo Verde, em uma das suas falas aos revolucionários142, assim se expressou,
resumindo a situação desses assimilados que não queriam trocar as vantagens que tinham pelas
incertezas das lutas libertárias:

Entre os grupos a que podemos chamar pequeno-burgueses, gente com uma vida certa,
seja descendentes de guineenses ou de cabo-verdianos, aparecem sempre três grupos de
pessoas. Um grupo pequenino, mas forte, que é a favor dos colonialistas, que nem
mesmo querem ouvir falar disso, da luta contra os tugas. Daquelas pessoas que foram a
minha casa em Pessubé, como gente grande, bem empregada, comendo bem, bebendo
bem, que vai a férias, etc., sentaram-se e disseram:
“Bom, queremos conversar contigo. Tu, filho do fulano de tal, nós conhecemos-te bem,
estás-te a meter em problemas, estás a estragar a tua carreira de engenheiro, nós
queremos aconselhar-te, porque nós não temos nada que fazer contra os tugas, nós
todos somos portugueses”. Para esses não há remédio (CABRAL, A.)143.

A escola era um dos meios mais eficazes para uma certa ascenção social. Somente aquele
que era alfabetizado e comprovava possuir costumes “civilizados” tinha a prerrogativa de
adquirir o status de aculturado144. Carlos Lopes, numa de suas estórias, escrita na primeira
pessoa, faz a voz narradora relembrar os tempos da infância, quando os filhos dos “assimilados”
freqüentavam a melhor escola de Bissau:

Na Escola Primária Dr. Oliveira Salazar só andavam filhos de gente fina de Bissau. [...]
De manhãzinha, mal se chegava, fazia-se uma formatura e cantava-se o hino da
Mocidade Portuguesa. [...] Havia um dia na semana em que tínhamos de ir para a
formatura com a nossa farda da Mocidade. [...] A compra do fardamento era um acto
muito importante. [...] O “S” de Salazar [...] ornava a fivela. O “S” do cinto e o
emblema das quinas na camisola é que davam pinta àquilo tudo. [...] Só falávamos em
“kriol” no recreio das dez e meia. Os da metrópole faziam queixinhas de nós falarmos

141
O conceito de elite contém a idéia de concentração do poder nas mãos de um grupo de pessoas que formam uma
oligarquia que toma a si uma série de tarefas decisivas, sendo constituída pelos indivíduos que ocupam a mais
elevada posição na escala social (cf. CARDOSO, 2001, p. 232). Esse autor guineense tem trabalhado sobre as
elites e sua inserção na política da Guiné-Bissau, com vários ensaios sobre o assunto. Cf. bibliografia final.
142
Para uma biografia (entre muitas) de Amílcar Cabral, cf. CHABAL, 1983; sobre seu assassinato, ainda envolto
em mistério, cf. CASTANHEDA, 1995; sobre sua (pequena) obra poética, cf. entre outros, artigo de CHABAL,
1985; ou AUGEL, 1998a (p. 139-145).
143
Cf. CABRAL, A. “Unidade e luta”. Esse discurso está disponível, como as demais citações deste subcapítulo, no
site sobre a Guiné Bissau, mantido por Fernando Casimiro (Didinho): http://didinho.no.sapo.pt, e que visitei pela
última vez em julho de 2005. A fonte parece ser os arquivos da Fundação Mário Soares em Lisboa e os da
Fundação Amílcar Cabral, na cidade de Praia, Cabo Verde.
144
Mais uma vez cito de Amílcar Cabral um breve texto sobre o assunto: “Na Guiné, 99% da população não podia ir
à escola. A escola era só para os assimilados, ou filhos dos assimilados, vocês conhecem a história toda, não vou
contá-la outra vez. Mas é uma desgraça que o tuga causou na nossa terra, não deixar os nossos filhos avançarem,
aprender, entender a realidade da nossa vida, da nossa terra, da nossa sociedade, entender a realidade da África,
do mundo de hoje. Isso é um obstáculo grande, uma dificuldade enorme para o desenvolvimento da nossa luta”
(CABRAL, A.; disponível no mesmo site acima indicado).
127

“kriol” nos recreios. Era proibidíssimo falar “kriol” e isso só aumentava o interesse em
fazê-lo. Quem não arrisca não petisca. E daí que o “kriol” passasse a ser linha de
demarcação (LOPES, ib., p. 21-22).

No mesmo teor, uma outra estória lembra o reduzido número de africanos que tinha o
privilégio de participar da restrita e seleta elite local:

Terminei a comunhão solene em tempo recorde, quem sabe se com uma ajudinha do
padre Cruz, e também fui escolhido para entrar numa peça de Gil Vicente antes de
completar dez anos. Até o governador da província foi assistir a essa efeméride, se
calhar a primeira que proeminentemente exibia um mulato no papel de nobre da corte
(ib., p. 35-36).

Ainda Carlos Lopes, no seu conto “Fazi sapo”, traça a figura do jovem filho de um rico
comerciante local que “nunca duvidou que chegaria onde chegou porque era filho de quem era”
(LOPES, ib., p. 147). A descrição do jovem calha muito bem como exemplo do que acabamos de
comentar:

Tinha um bom carro, que comprara há pouco tempo, um BMW último grito, que não
aguentaria muito nas ruas de Bissau cheias de buracos, mas isso nem entrava em
linha de conta. [...] Vestia roupas da moda, sapatos de Lisboa, e até tinha introduzido
um accessório, raro: uns suspensórios que não serviam para agarrar as calças, já que
tinha engordado um pouco, mas eram óptimos para dar estilo (ib.).

Como no tempo do colonialismo, o comportamento eurocentrado, que sempre prevaleceu,


foi sendo assumido pelos nativos, acriticamente, num juízo de valores em dicotomias hierárquicas,
numa tentativa infrutífera de igualar-se ao usurpador. Trago mais um exemplo tirado de uma fala de
Amílcar Cabral, onde ele procura fazer uma categorização, de forma bastante didática e simples,
pois estava falando sobretudo para iletrados, dos diversos tipos de guineenses que aderiam aos
independentistas:
Uma grande maioria de pequeno-burgueses [...] está indecisa [...]. Quem mais sofre com os
tugas são essa gente da cidade, todos os dias os tugas estão em cima deles, a aborrecê-los.
[...] É gente que sofre directamente com o colonialismo todos os dias, enquanto, por
exemplo, o homem que vive no mato, lá no fundo do Oio, ou no Foreá, por vezes
morre sem ter visto um branco. Enquanto que quem vive na cidade vê brancos todos os
dias. Continuando, esse é um grupo de gente, grande grupo de pequeno-burgueses que
têm o seu vencimento no fim do mês, e que o seu desejo de facto é que os tugas se vão
embora, mas têm medo. [...] Perdemos a nossa geleira, o nosso dinheiro no fim do mês,
o nosso rádio, o nosso sonho de ir a Portugal passar as férias.
[...] E os nossos trabalhadores assalariados? [...] É que quando um homem que trabalha
como pedreiro ganha dez, e um branco ganha 80$00, senão 800$00, ele sente uma
exploração grande pela sua condição de vida. [...]
Muitos rapazes que não têm emprego certo, sabendo ler e escrever, trabalhando um
bocado ou outro, vivem muitas vezes à custa do tio que está na cidade, [...] tinham um
contacto permanente com o colonialismo: jogadores de bola, um tanto entusiasmados
com o tuga, mas sentiam também um bocado. [...] Essa gente veio para a luta muito
rapidamente. E desempenharam um papel importante nesta luta, porque, por um lado,
são da cidade e por outro lado estão muito ligados ao mato. [...] Gente que aprendeu na
cidade como é bom ter coisas boas, mas que por causa da humilhação que sofre, sente
que o tuga está a mais. E o Partido ajudou-os a aumentar a sua consciência disso
(CABRAL, A.)145.

145
Citado de um discurso de Cabral, ”Unidade e luta”, disponível no site acima referido.
128

4.3 Os espaços do pós-colonial

Frantz Fanon discorre longamente, no capítulo sobre a violência, em seu livro Les damnés de la
terre (1961), sobre as complexas implicações da descolonização. Sem transição, “tudo passa a
ser diferente, tem lugar uma substituição radical, completa, absoluta”, podendo-se considerar que
uma tabula rasa define o início da descolonização (FANON, ib., p. 29). A necessidade dessa
mudança existia, em estado latente, impetuoso e impulsionador, na consciência e na vida dos
homens e das mulheres colonizados (ib.). Não se trata de um passe de mágica, é um processo que
parte da “desordem absoluta” depois da última “confrontação entre duas forças congenitamente
antagônicas” (ib., p. 30).
Na Guiné-Bissau, não se pode, entretanto, falar de tabula rasa. A substituição não foi
absoluta, faltaram sobretudo quadros qualificados para ocuparem os postos de direção, em todos
os setores, e isso provocou, de fato, um grande transtorno. Mas as estruturas da governança
continuaram em parte as mesmas. A ausência de pessoas qualificadas foi, e ainda é, um dos
grandes problemas do país. Fosse pela precariedade de meios, fosse pela inércia, ou ainda por
um certo comodismo que é também sinônimo de uma postura pouco politizada, até bem pouco
tempo as estampilhas para os documentos oficiais ainda eram as da época colonial. Pouco mais
de trinta anos não se mostraram ainda suficientes para que, depois da descolonização, o país
enfrentasse os tempos pós-coloniais de forma realmente soberana e independente. No campo da
literatura, o discurso pós-colonial tem muitas faces, refletidas na tensão entre representações das
culturas nativas e suas sobrevivências e representações da cultura imposta pelo dominador e que
hoje em dia, antropofagicamente, faz parte integrante da guineidade146.
O vasto debate sobre o pós-colonialismo tem provocado muitas vezes confusão e
misturas. Devido às múltiplas perspectivas segundo as quais se enfoca o pós-colonial ou a pós-
colonialidade, tornam-se necessárias uma análise e uma rearticulação do termo, muitas vezes
utilizado indiscriminadamente tanto para designar uma fase (ou uma situação) sócio-histórica
ligada à expansão colonial e à descolonização, quanto para referir-se a práticas teóricas e
acadêmicas nada uniformes.
SCHULZE-ENGLER (2003, p. 181 e ss.), anglista e africanista alemão, com obras
publicadas na perspectiva comparatística, sobretudo sobre o pós-colonial e a modernidade não
européia, arrola, para fins de simplificação, mas também para uma maior clareza quanto à
conceituação, cinco diferentes concepções (ou variantes, como ele chama) do conceito “pós-

146
A generalização é sempre perigosa. Mas, mesmo se em muitas áreas isoladas do mundo rural a ocidentalização não
se mostra tão presente (ou quase nada), seus reflexos se fazem sentir. “A fronteira entre o urbano e o rural, num país
como o meu, é sentida dentro das pessoas: não há ninguém completamente urbano ou completamente rural”, disse
Mia Couto numa entrevista (CHAVES, 1998). Na Guiné-Bissau, creio, é semelhante.
129

colonial”. Para ele, o “pós-colonial” pode ser tratado como uma teoria (variante 1), como uma
denominação geográfica (variante 2), como um termo político (variante 3), como uma nova
disciplina científica (variante 4) e, finalmente, como um termo pragmático, um simples adjetivo
(variante 5).
Explicitando melhor, o termo “pós-colonial” se refere, como teoria, na primeira variante,
a uma direção teórica específica que se caracteriza, sobretudo, por tratar de diferentes conceitos
teóricos pós-modernos e pós-estruturalistas para literaturas, culturas e sociedades nas regiões que
foram colonizadas – mas também para as culturas das “diásporas” ou culturas de migrantes nos
antigos centros coloniais. O adjetivo “pós-colonial” aparece, normalmente, em combinação com
enunciados como “teoria pós-colonial” e tem suas bases nas obras de três grandes pensadores
contemporâneos: Edward Said, Homi Bhabha e Gayatri Spivak. Aqui, é essa variante que
interessa à nossa perspectiva, mais estreitamente ligada à teoria literária, tal como é apresentada
na obra pioneira The Empire Writes Back, publicada em 1989, de Bill Ashcroft, Gareth Griffiths
e Helen Tiffin. “Pós-colonial” marca, com isso, uma direção teórica específica que encontrou
grande aceitação justamente na teoria e crítica literárias e nas ciências da cultura, estando no
mesmo nível de categorias como teoria ou crítica literária marxista ou feminista ou ainda pós-
estruturalista.
Enquanto na primeira variante o termo é definido na sua essência teórica, a segunda
variante tem a ver banalmente com o aspecto espacial, isto é, com certas regiões geográficas. O
termo aparece, por exemplo, em combinações como “literatura pós-colonial”, “sociedades pós-
coloniais”, “culturas pós-coloniais”, e mesmo “mundo pós-colonial”, referente aos países saídos
da situação colonial. Nesses contextos, “pós-colonial” se refere ao “mundo real” e não a certas
direções teóricas e com esse significado substitui categorias como “Commonwealth” ou
“Terceiro Mundo”. Apesar de os termos pós-colonial (1) e (2) não serem de forma alguma
associáveis, ou seja, como categorias não se pode estabelecer uma correspondência entre uma e
outra, no uso comum elas são vulgarmente confundidas entre si.
Uma terceira variante tem a ver com um determinado comportamento político e
ideológico. “Pós-colonial”, nesse sentido, é aplicado para marcar um largo espectro de correntes
anticoloniais, nacionalistas, anti-imperialistas e anti-capitalistas que estão em maior ou menor
escala ligadas à idéia básica de “libertação do Terceiro Mundo”. Como os protagonistas de
diferentes movimentos políticos e sociais nos países da África, Ásia e América Latina, afirma
Schulze-Engler, não se tenham mostrado até agora inclinados a se definirem a si mesmos como
“pós-coloniais”, o termo (na acepção 3) continua sendo um constructo acadêmico, também
mesmo quando, ocasionalmente, se tenta definir o “pós-colonial” como uma forma de ativismo
político.
130

Continuando a classificação de Schulze-Engler, a variante número 4 refere-se a uma nova


disciplina científica e é usada, por exemplo, na designação “postcolonial studies”, “estudos pós-
colonais”. “Pós-colonial” designa, assim, uma área acadêmica de estudos interdisciplinares cujo
núcleo se situa nos estudos de teoria literária e da ciência das culturas e que se ocupam tanto com
as sociedades e as culturas das regiões geopolíticas e dos países ex-colônias – no sentido da
variante 2 – como com as incontáveis teorias pós-coloniais no sentido da variante 1. Como essa
nova disciplina ainda se está estruturando, uma grande parte dos estudos de temas “pós-
coloniais”, tanto na pesquisa como no ensino, está ancorada em disciplinas já consagradas e
reconhecidas. Nos últimos anos, diz o autor, cursos de “postcolonial studies” se vêm
estabelecendo em diversas universidades européias e americanas (e, acrescento eu, também
brasileiras e latino-americanas).
A última variante (5), sempre seguindo a classificação de Schulze-Engler, é
compreendida como o termo tem sido vulgarmente utilizado na linguagem cotidiana comum, um
adjetivo com um sentido meramente pragmático, empregado quando se trata dos assim chamados
países, literaturas e culturas “pós-coloniais”, ou quando há referência a alguma teoria pós-
colonial. Fala-se tanto de escritores ou críticos que são originários de países “pós-coloniais” ou
que estão de algum modo a eles relacionados, como de perspectivas políticas mais ou menos
radicais relativas ao “Terceiro Mundo”.
As literaturas chamadas de “pós-coloniais” são, em geral, caracterizadas pela sua relação
ambígua com a literatura do país europeu colonizador, oscilando entre o mimetismo e o repúdio.
Assim terá de fato acontecido nos primeiros tempos pós-independência. A literatura não escapou
do amplo espectro de questionamentos e ajustes de contas com a antiga metrópole. Entre, de um
lado, a rejeição e a negação e, do outro, a continuidade das relações historicamente constituídas,
uma necessária catarse se realizou (e se vem realizando) em quase todos os países que se
encontram a escanteio do centro hegemônico na era da globalização.
A descolonização é sempre um longo processo e não apenas um ato político e pontual.
Não é possível, simplificadamente, e muito menos generalizadamente, falar-se de “pós-
colonização”, sem situar espácio-temporalmente essas referências. A catarse acontece, está
acontecendo, mas também os países africanos se estão confrontando com novas formas de
dependência e de influências. Os analistas não africanos nem sempre estão atentos à
complexidade de atitudes, momentos, transformações, regressões, reações que envolvem a
descolonização, tendo herdado um par de antolhos conceituais (a expressão é de APPIAH, 1997, p.
22), fruto do etnocentrismo. E muitos autores, sobretudo africanos, ocupam-se em rever o olhar
eurocentrado, etnográfico, sobre a África, tendo em vista o que vem acontecendo, no plano
político e sócio-econômico, desde bem antes da virada do milênio, na maior parte dos países
131

daquele continente. Niyi Osundare, autor nigeriano, poeta e crítico literário, resume assim suas
críticas:

The tag “postcolonial” is more useful for those who invented it than for those who are
supposed to wear it, its passive signifies [...] a project which sounds “post-colonialist”
in intent may turn out to be “neo-colonialist”, even “re-colonialist” in practice147.

SCHULZE-ENGLER (2003, p. 188), na mesma linha, escudado inclusive em outros


analistas, mostra que as literaturas africanas contemporâneas têm hoje outras preocupações e
outras motivações que não a de se confrontarem com as ex-metrópoles, não lhes interessando
mais tanto uma acareação com a história colonial européia. Insistir na mesma tecla seria
bagatelizar outras formas de exploração política, continua o autor, como a má governação, a
corrupção ou ainda os genocídios, ou a violência do Estado em relação aos ‘inimigos internos’.
Tudo isso tem hoje em dia uma grande importância para os africanos posicionados criticamente,
constituindo um tema recorrente em escritores de todo o continente. Esses aspectos têm sido
teoricamente também discutidos por muitos cientistas sociais africanos e não só. Quanto à
Guiné-Bissau, veremos nos próximos capítulos deste trabalho exemplos da nova literatura que se
está fazendo desde a segunda metade dos anos noventa e que segue essa postura de autocrítica.
Nessas obras, o foco de interesse se desloca justamente para uma nova reterritorialização
desconstrutiva do status quo e se empenha em ultrapassar ou contestar o discurso hegemônico
vigente, ensaiando uma nova narração da nação.
No artigo “La razón postcolonial. Herencias coloniales y teorías postcoloniales”, Walter
Mignolo também problematiza os muitos usos do termo “pós-colonial”, lembrando ser “uma
expressão ambígua, algumas vezes perigosa, outras vezes confusa, e geralmente limitada e
empregada de forma inconsciente (MIGNOLO, 1996, p. 8). Ressaltando que existe uma
diferença entre, por um lado, as situações pós-coloniais e, do outro, os discursos e as teorias pós-
coloniais (ib., p. 13), defende a posição de que deva ser “a razão pós-colonial entendida como
um grupo diverso de práticas teóricas que se manifestam na raiz das heranças coloniais, na
interseção da história moderna européia com as histórias contramodernas coloniais” (ib., p. 9)148.

147
Apud SCHULZE-ENGLER, 2003, p. 188, nota 5. “O rótulo ‘pós-colonial’ serve mais para os que a inventaram
do que a aqueles aos quais ela é atribuída. [...] um propósito que soa ‘pós-colonialista’ na intenção pode acabar
tornando-se neo-colonialista e na prática até ‘re-colonialista’”. A tradução é minha.
148
O mesmo autor chama a atenção também para a necessidade de não se perder de vista a existência de três planos
de raciocínio e análise: o primeiro abarcaria as situações e condições pós-coloniais (que apresentam muitas
diferenças entre elas); o segundo plano seria constituído pelos discursos (políticos, históricos, literários,
jurídicos) e finalmente o terceiro pelas teorias pós-coloniais – que seriam teorizações eruditas conectadas aos
estudos acadêmicos, por sua vez submetidos a regras institucionais e disciplinárias. Trata-se, segundo Mignolo,
como já vimos em exercício de raciocínio semelhante em Schulze-Engler, de marcos conceituais bem distintos,
se bem que imbricados. Considerando ainda ser menos a condição histórica pós-colonial o que lhe interessa, mas
sim os loci de enunciação do pós-colonial, o autor americano externa a opinião de que “a teorização pós-colonial
luta por um deslocamento do locus de enunciação do Primeiro para o Terceiro Mundo” (ib., p. 16) e ressalta que
“se pode conjecturar que uma característica substancial do pós-colonial constitua na emergência de loci de
enunciação de ações sociais que surgem dos países do Terceiro Mundo, e que invertem a imagem contrária
produzida e sustentada por uma longa tradição a partir da herança colonial (ib., p. 17).
132

Considero importante destacar o aspecto, assinalado por Mignolo, de que os discursos e


teorias pós-coloniais começaram a desafiar a construção hegemônica da modernidade conectada
com a expansão européia, idéia que foi bastante poderosa para perdurar por quase quinhentos
anos. O primeiro mundo foi sempre visto como o locus de enunciação que, em nome do
racionalismo, da ciência e da filosofia, afirmou seu próprio privilégio intelectual (e não só), em
detrimento de outras formas de pensamento. Os discursos e teorias pós-modernas estariam
construindo uma razão pós-colonial como um locus de enunciação diferencial (ib., p. 19),
priorizando, ou pelo menos dando relevo, aos substratos subalternos (SPIVAK), marginais, até
então desprezados ou silenciados.
Na perspectiva do meu presente estudo, interessa-me a teoria crítica pós-colonial
(Postcolonial Critique) por estar estreitamente imbricada com o campo dos Estudos Culturais,
desenvolvidos, como já me referi, primeiramente por acadêmicos ingleses e americanos,
ocupando ali um lugar central. O deslocamento da perspectiva da análise constitui o pano de
fundo do desenvolvimento dos estudos pós-coloniais, passando para um segundo plano a análise
de processos e das relações sociais de produção, priorizando uma abordagem discursiva, política
e cultural na qual a literatura e a análise de texto passam a ser elementos de suma relevância. A
reflexão sobre as conexões entre o saber e o poder adquire maior peso do que o estudo das
condições materiais da existência social dos indivíduos e seus condicionamentos econômicos.
Como Gayatri Spivak formulou: “no contexto pós-colonial global atual, nosso modelo deve ser o
de uma crítica da cultura política, do culturalismo político, cujo veículo é a escritura de histórias
legíveis, seja do discurso dominante, seja das histórias alternativas” (SPIVAK, 1994, p. 189).
A exposição de diferentes aspectos da problemática pós-colonial pareceu-me importante
para me situar tanto criticamente como receptora da literatura africana, ou melhor, guineense,
quanto para orientar minha interpretação, sem perder de vista minha proposta teórica do estudo
da nação a partir do discurso literário e que passarei a desenvolver nos capítulos seguintes.
Considero que todas essas questões estão intimamente interligadas e a própria idéia de nação,
fruto da modernidade ocidental, vem sendo desconstruída, rearticulada, reorganizada, recriada
justamente a partir da implosão da descolonização, da queda dos impérios ultramarinos, com o
surgimento dos Estados soberanos africanos que lutam pela integração nacional.
Manuel Castells defende um posicionamento bastante diverso, taxando como
eurocêntrica a idéia de que as nações se moldam à imagem e semelhança do modelo europeu
surgido desde a Revolução Francesa. Critica, igualmente, considerando como uma atitude de
excessivo desconstrutivismo, reduzir-se a simples produto ideológico ou mesmo artificial o
sentimento ligado à nacionalidade (CASTELLS, 2002, p. 45-46). Das idéias de Castells voltarei
a tratar no capítulo 7. Passarei agora a abordar um aspecto que tem ocupado muito tanto teóricos
133

e ensaistas como vem refletindo também nas obras literárias, que é a questão das modernas
formas de interação e de recuperação de influências por parte dos países centrais face aos países
satélites.

4.4 O neocolonialismo e a “lógica imperial”149

Quem primeiro cunhou a expressão “neocolonialismo” foi Kwame Nkrumah (1909-1972), o


primeiro presidente de Gana, depois da independência (1957). Ele mesmo membro da elite
burguesa, defendeu a opinião que a soberania nacional dos países africanos, adquirida com a
independência, não passava de fato de uma formalidade e que na verdade não tinha havido
grandes modificações no relacionamento assimétrico entre os poderes coloniais e os povos
colonizados, permanecendo uma relação de dependência e exploração, sendo assim o
neocolonialismo a pior forma de imperialismo (NKRUMAH, 1965).
Em plena época da expansão econômica da Europa e sobretudo dos Estados Unidos, na
busca de novos mercados, na euforia capitalista de multiplicação de lucros e de poder,
desenvolveu-se a idéia da necessidade de modernização, constatando-se a dificuldade de países
saídos da colonização de se pautarem pelos princípios tais como eram demarcados pelo
Ocidente, segundo os quais o desenvolvimento é linearmente definido por parâmetros do
crescimento econômico. Foi quando surgiu o binarismo reducionista que dividia os países entre o
“primeiro” e o “terceiro” mundo. Os países do “primeiro mundo” etiquetavam o atraso do
“terceiro mundo” pelo atraso econômico devido à não industrialização, sendo necessária uma
modernização fomentada a partir de fora, com uma “ajuda ao desenvolvimento”, palavra de
ordem que permitiu justamente um novo surto de camuflada colonização. Sendo assim, os países
descolonizados não tiveram outra saída do que fazerem parte desse sistema, naturalmente como
subalternos, continuando vítimas da exploração e da dependência. Como disse G. Spivak, “o
neocolonialismo é uma repetição deslocada de muitas das velhas linhas traçadas pelo
colonialismo” (SPIVAK, 1994, p. 192).
O conceito de neocolonialismo está estreitamente ligado à teoria da dependência, enfoque
de grande relevância a partir da década de sessenta, com base em estudos sobretudo latino-
americanos. Os estudiosos da teoria da dependência consideravam que as razões do atraso dos
nossos países, latino-americanos e africanos, estavam nas estruturas da economia mundial e
eram devidas à perpetuação da subordinação e suas conseqüências que bloqueavam a auto-
iniciativa e as tentativas de produção econômica autônoma dos assim chamados países

149
Conceito cunhado por Michael HARDT, 1995. Cf. nota 124.
134

subdesenvolvidos. O subdesenvolvimento estaria estreitamente conectado com a expansão


capitalista dos países industriais, sendo que o desenvolvimento e o subdesenvolvimento não
seriam senão dois aspectos diferentes do mesmo processo global150.
Edward Said comenta que, apesar de emancipadas, as nações descolonizadas continuam,
sob muitos aspectos, “tão dominadas e tão dependentes quanto o eram na época em que viviam
governadas diretamente pelas potências européias. [...] E assim, no final do século XX, o ciclo
imperial do século passado parece se repetir em alguns aspectos” (SAID, 1999, p. 51).
O neocolonialismo não tem a ver tanto com instrumentos formais de controle, tais como a
implementação de estruturas administrativas, o estacionamento de forças militares nem tampouco
com a incorporação ou submissão das populações nativas ao controle de um governo metropolitano,
de um poder exógeno. Refere-se, muito mais, a uma forma indireta de domínio através de uma
dependência cultural e sobretudo econômica. O neocolonialismo reflete um tipo de controle mais
sutil das antigas colônias, processado pela continuada cooptação das elites nativas e do poder
hegemônico local, cúmplices das potências neocoloniais em detrimento dos interesses do povo. É
mantida a dependência, tanto no que se relaciona com o trabalho como no plano do subconsciente,
das populações exploradas, submetidas a uma sujeição psicológica e mental que as leva a querer
satisfazer suas necessidades tanto culturais quanto materiais a partir dos bens e valores etiquetados
como imprescindíveis por parte desse mundo primeiro e perfeito.
A dependência não constitui apenas um fenômeno de ordem externa, pois se manifesta
também através de muitos fatores interligados e infiltrados na estrutura interna de um país. A
cooptação das elites periféricas, assumindo os padrões de consumo dos países centrais, principais
usufruidoras dos benefícios dos avanços tecnológicos, distanciou cada vez mais a classe
dirigente, concentrada na renda e no proveito próprio, do povo, herdeiro dos malefícios não
ultrapassados da colonização, disfarçada sob a máscara neocolonial e neoliberal. A aceitação, e
até o encorajamento, por parte das antigas metrópoles, da política levada a efeito por um sem
número de ditadores e caudilhos africanos, asiáticos, latino-americanos têm sua justificativa ou
explicação evidente, pois essa relação assimétrica e abstrusa tem trazido muitas vantagens para o
“Centro”. Ao discurso imperialista nada importa, nem os abusos de autoridade, nem a
brutalidade da repressão das revoltas populares, nem o fato de os direitos humanos ficarem
submetidos aos interesses do mercado e da economia internacionais.

150
Levaria longe demais discorrer sobre esse assunto que apaixonou sociólogos latino-americanos e de outras
regiões afetadas pelas conseqüências da expansão capitalista. Uma revisão das discussões da década de sessenta
centradas no binômio centro-periferia, com um balanço dos caminhos da teoria da dependência, pode ser
encontrada, por exemplo, em SANTOS, Theotônio dos. Evolução histórica do Brasil. Da Colônia à crise da “Nova
República”. Petrópolis: Vozes, 1995.
135

Nas estórias de Carlos Lopes que aqui apresentei, no caso de “O sipaio Mendes”, por
exemplo, tratava-se de um simples e ignorante policial; igualmente, em “Fazi sapo” (LOPES,
1997), a personagem principal era um jovem fanfarrão e irresponsável. Triste e inquietador
quando, no mundo real, são membros da camada dirigente que dão altas demonstrações dessa
assimilação ditada pelo oportunismo, resultando numa verdadeira colonização interna, a mais
perigosa de todas elas151.
Como já afirmara Frantz Fanon, “o opressor, pelo carácter global e terrível da sua
autoridade, chega a impor ao autóctone novas maneiras de ver e, de uma forma singular, um
juízo pejorativo acerca das suas formas originais de existir” (FANON, 1980, p. 42). Essa
“imposição” é assimilada, deglutida, e a ideologia capitalista se inocula no pós-colonizado,
condicionando seu comportamento e sua maneira de pensar. Tão criminosa mutilação foi uma
forma da qual os poderes hegemônicos exógenos se serviram para reduzir ainda mais a
autenticidade, o próprio” de cada cultura, de cada grupo étnico: despossuindo-os de seus próprios
valores, de seus bens simbólicos, de seus hábitos característicos para, esvaziando-os, preenchê-
los e satisfazê-los com os valores e produtos primeiro do mercado colonial, depois das transações
do mundo industrial e moderno e desenvolvido (SEABROOK, 2001).
Os movimentos de independência recuperaram, pelo menos em parte, as expressões
culturais tradicionais, revalorizando-as e procurando devolver aos povos suas identidades. Se
essas identidades culturais não foram totalmente extirpadas, elas foram grandemente reduzidas,
postas em dúvida, enfraquecidas em suas raízes. Tem sido lento e cheio de percalços o processo
de reinstauração das identidades fragmentadas, da auto-estima abalada e da luta contra a
descrença nos próprios valores.
No romance Kikia Matcho (1997)152, Filinto de Barros apresenta António Benaf, o sobrinho
“doutor” que tinha estudado na Europa e, voltando para a terra natal, foi obrigado a reconhecer que
seu título acadêmico não lhe trazia nenhuma vantagem. Depois de meses tentando a sorte,
continuava desempregado e sem ver chegar a grande oportunidade de tornar-se rico e poderoso,
fantasiosa ambição que o havia impelido a regressar. Obrigado a estar presente no enterro do tio,

151
A colonização interna ou autocolonização abrange um processo que acontece sobretudo dentro do sujeito quando
ele assume cegamente os interesses (econômicos, políticos) de um poder de fora assim como sua forma de viver
e de pensar (cf. p. ex. ALLERKAMP, 1991, p. 1).
152
Filinto de Barros nasceu a 28 de dezembro de 1942 em Bissau. Entrou para as fileiras do PAIGC em 1963, na Zona
Zero, isto é, em Bissau. Durante as lutas de libertação, desenvolveu atividades em Bissau e em Lisboa, onde estudou
engenharia e foi dirigente daquele partido na clandestinidade. Proclamada a independência, foi durante mais de uma
década ativo participante dos destinos políticos do país: foi membro do Comité Organizador do Partido e do Comité
do Sector Autónomo de Bissau; foi também Secretário Geral e Secretário de Estado da Presidência. Foi Embaixador
da Guiné-Bissau em Portugal, Ministro de Informação e Cultura, Ministro dos Recursos Naturais e Indústria,
Ministro da Justiça e Ministro das Finanças. Desde 1994, com as eleições multipartidárias e o início de uma nova era
na história política do país, Filinto de Barros retirou-se da vida pública. Tem exercido em Bissau cargos de
conselheiro técnico em entidades estrangeiras de cooperação. Autor de ensaios de ordem política e técnica, Filinto de
Barros surpreendeu com a publicação do romance Kikia Matcho do qual tratarei alargadamente no capítulo 7.
136

enquanto muitos dos conhecidos apareciam apenas para dar as condolências e iam embora, Benaf
tinha que permanecer toda a noite na vigília do velório, dever de família, tendo assim tempo para
refletir sobre o mundo de contradições em que vivia metido: os anos de estudo na Europa haviam
feito dele um materialista, “interessado nos sucessos pessoais” (ib., p. 21). Cínico e decidido a usar
da bajulação e do oportunismo para conseguir um posto vantajoso, viveu na ilusão de que, sendo os
diplomados ainda pouco numerosos no país, as oportunidades não lhe poderiam faltar. Mas estava
amargando a decepção de não ter seus planos realizados:

O lema é comer e deixar os outros comerem! [...] Desde que chegou das europas, que tem
visto os adaptados a saírem-se muito bem, com boas casas, boas mulheres e segundo lhe
disseram, com contas no estrangeiro. Era isso que ele pretendia e quanto antes melhor!
(ib., p. 154).

Benaf despreza as crenças e os rituais, se bem que não deixe de ser tomado pelo terror
ante a ameaça clara da presença do kikia matcho, a coruja azíaga pousada em sua janela, e da
cena de transe e incorporação a que assistiu, quando o defunto exigia, incorporado na pessoa da
jovem Ofitchar, que fossem feitas cerimônias rituais para redimir os muitos pecados e erros
cometidos durante as lutas libertárias, não só por ele, mas por tantos outros combatentes.
A análise dos efeitos da colonização sobre o colonizado é atravessada por muitos
conceitos como o do hibridismo cultural (Homi Bhabha), o da identidade rizomática das origens
(Deleuze e Guattari), entre outras, das quais não cabe, no momento, tratar. Para o colonizado, o
caminho para alcançar um equilíbrio passa por muitas curvas e desvios, tropeços e retrocessos
até se chegar à nova personalidade do sujeito cultural africano, dialogando com seus dois “eu”,
entre duas temporalidades: o presente africano-ocidental e um passado nativo que ainda se
mantém vivo, apesar de todas as pressões (REIS, 1999, p. 33). Ambigüidades e incoerências
fazem parte do processo, como Carlos Lopes ilustra em várias de suas estórias. Por exemplo, em
“Indigenização”:

O orador, conhecida figura pública, proprietário com o alvará de uma casa comercial, à
qual juntou também, com pompa, a denominação de industrial, falava sem parar: é
preciso mostrar ao Governo que não há progresso só porque se tem uma bandeira e os
ministros são pretos. O verdadeiro poder é económico e esse obtém-se com a
consolidação dos comerciantes da terra. [...] A economia continua nas mãos deles e nós
ficamos a ver navios. [...] O orador era imparável na sua retórica, agora apelidada de
novo nacionalismo africano, ou de luta pela independência económica.
O interesse neste discurso é que ele é protagonizado por gente que só veste camisas de
seda, passeia de Mercedes, tem os filhos a estudar nas melhores universidades
ocidentais e vive em palácios decorados com gosto de novo-rico (LOPES, 1997, p. 51-
52).
137

Armando Gnisci, na sua obra Via della decolonizzazione europea (GNISCI, apud
FONTES, 2003)153, argumentando que o “pós” não pode significar “após a colonização” como se
essa já tivesse terminado, mostra-se particularmente empenhado em que a Europa se
descolonize, abandone seu eurocentrismo e reconheça os crimes praticados. Para o comparatista
italiano, como para tantos outros autores, o mundo atual está confrontado com uma contínua
colonização, ampliada e agravada pela globalização neoliberal, controladora e determinante dos
destinos individuais e das massas e do seu imaginário. Para avançar na via da descolonização um
caminho seria através da literatura. Porque a literatura é um “diálogo com autores e com textos”
– e esses textos são fontes de experiência e de mudanças, oferecendo oportunidade de formação,
de educação. Para Gnisci, enfim, “la letteratura è produzione di realità” (ib.), constituindo a via
de diálogo mais intenso entre as culturas, pois permite estabelecer uma poética e uma política de
relações, a partir de uma determinada location, isto é, do lugar de onde se fala, de seu enunciado
(ib.).
Segundo o pensador ganês Kwame Anthony Appiah, o que ocorreu em grande parte da
África foi devido ao fato de que o Estado que surge após a independência passou a apresentar os
mesmos vícios e vivenciar as mesmas conjunturas do Estado colonial, em suma, perpetuando
muitos aspectos carcomidos do sistema econômico colonial, além de serem escamoteadas ou
ignoradas as diferenças étnicas, muitas vezes encobertas pelo discurso nacionalista no que diz
respeito à junção dos povos no processo de independência. As conseqüências dessa perpetuação
e a crença em uma igualdade étnica que de certa forma não existia (no caso da “Guiné” foi obra
de anos de empenho e obstinação de Amílcar Cabral) foram claras: um Estado independente que
nascia para gerar condições para o desenvolvimento e criação de infra-estrutura não poderia
jamais apoiar-se nas bases de um Estado que visava de certo modo à manutenção da ordem
hegemônica vigente. Aconteceu que os governantes pós-coloniais, afirma Appiah, assumindo as
rédeas do poder resgatadas do domínio colonial, não souberam reconhecer os limites desse
poder, “não repararam, no princípio, que elas não estavam ligadas a um bocal de freio”
(APPIAH, 1997, p. 230).
Anthony Appiah demonstra, em várias passagens de seu livro Na casa de meu pai, a
inviabilidade da idéia européia de nação no contexto pós-colonial africano. A idéia de nação
como resultado de um contrato social, como uma associação livre de cidadãos, para muitos
autores uma criação do Iluminismo europeu, é inapropriada para o contexto africano, pois não se

153
Maria Aparecida Ribeiro Fontes agradece a Armando Gnisci por lhe ter cedido o manuscrito do livro mesmo
antes da publicação, ocorrida somente em 2004. Como em geral nos artigos que cito a partir da rede eletrônica,
não me é possível indicar as páginas consultadas. Gnisci já tinha desenvolvido reflexões semelhantes em outros
trabalhos, como “A descolonização que não passa”, artigo que pode ser encontrado no site:
http://www.unigranrio.com.br/letras/revista/textoarmando.html.
138

pode perder nunca de vista o fato dos Estados africanos terem surgido como conseqüência da
política imperialista européia. A identidade cultural entre os grupos étnicos não foi levada em
conta para a formação (arbitrária) das colônias, não tendo igualmente sido fundamental na
manutenção dos novos países. Muito mais relevante foi o esforço para conseguir a unidade
política dentro do espaço geográfico pré-traçado pela conjuntura imperial, apesar das
heterogeneidades culturais. Aos novos países africanos, tal como se passou na América Latina,
“tratava-se de vertebrar as nações que padeciam as indefinições próprias do império” (AINSA,
1986, p. 126). Como disse Eliana Reis, referindo-se às idéias de Anthony Appiah e de Wole
Soyinka, não cabia estimular a criação de uma identidade nacional ou étnica dentro de ambientes
caracterizados pela multiplicidade, postura “difícil ou mesmo imprudente”, haja visto o
exacerbamento de emoções desencadeadas por rivalidades étnicas (dentro ou além fronteiras) que as
políticas nacionalistas puseram e ainda põem em prática e que tantas e tão trágicas conseqüências
têm trazido, acendendo rivalidades e etnocentrismos (REIS, 1999, p. 123-124).
É justamente devido a certos excessos perpetrados em nome do bem comum nacional que
Ernest Gellner chega mesmo a comparar o tribalismo com o nacionalismo que, por algum acaso,
conseguiu, sob condições modernas, constituir-se como potência capaz de exercer o poder. Os
movimentos nacionalistas inventam, diz Gellner, num processo de racionalização dos interesses
de uma elite, idéias que a propaganda política usa para sensibilizar as massas, em nome de uma
determinada identidade nacional a ser defendida ou a ser conquistada, mas, em caso de sucesso,
é apenas uma minoria que tem acesso aos benefícios. Dentro da sua crítica veemente aos
nacionalismos, aponta, já antes do advento das independências dos Estados africanos, para as
conseqüências que de fato sempre se repetem:

Em geral, tanto a intelligentsia quanto o proletariado são solicitados para um


movimento nacional efetivo. Seus destinos divergem depois de conseguirem a
independência nacional. Para os intelectuais, a independência significa uma vantagem
imediata e enorme: empregos, e empregos muito bons… Para os do proletariado, por
outro lado, a independência só pode, a curto prazo, trazer desilusões. As dificuldades
não são eliminadas, elas provavelmente aumentam no afã de um desenvolvimento
rápido e pelo fato que o governo nacional às vezes consegue ser mais duro do que um
governo estrangeiro (GELLNER, 1964, p. 169; minha tradução).

A concessão de vantagens políticas e econômicas às ex-colônias se torna para o “Centro”


cada vez menos atraente, dada a mudança do foco de interesses e prioridades por parte dos países
doadores e das organizações internacionais, privadas e públicas. Para os governantes “terceiro-
mundistas”, o avanço econômico que vem sendo alcançado pelo menos em parte por alguns
desses países, assim como a promessa de participação do círculo dos privilegiados, dos
“importantes”, acrescendo-se a corrupção aberta ou escamoteada por meio de agrados,
“parcerias”, “intercâmbios”, todos esses fatores têm levado a eles mesmos assumirem o papel
139

que antes cabia aos colonizadores, aos exploradores estrangeiros e invasores. Uma
autocolonização, eficiente e nem sempre sutil, substitui a interferência estrangeira, impondo-se
um modelo econômico importado de fora, que nada tem a ver com os reais interesses e
necessidades da população, submetendo o povo às duras e opacas regras de consumo, de
obrigações fiscais, de dependência completa do mercado externo, acenando-lhes com a ilusão
dos benefícios e doações.
Enquanto o povo é aniquilado ou integrado pelas avalanches sucessivas de progresso e
modernização, diz Jeremy Seabrook, a camada dirigente encontra para si mesma uma outra saída
desse impasse, formas complementares de adaptar-se às mudanças vindas de fora, por esse
processo chamado de “autocolonização”. “Os objetos dessa nova fase da construção do império
saúdam-no de braços abertos” (SEABROOK, 2001, p. 7). Enquanto o povo perde a sua
identidade, a camada dirigente assume a identidade da elite dos países do “Centro”, com sua
cultura de mercado, do dinheiro, do enriquecimento e de uma suposta liberdade de escolha.
Autocolonização é definida por Jeremy Seabrook como “a imposição em seu próprio país de um
modelo econômico importado de fora, um modelo que não corresponde aos interesses da maioria
do povo” (ib., p. 8-9). As instituições das Nações Unidas, especialmente o Banco Mundial, o
Fundo Monetário Internacional, os sucessivos acordos de comércio e liberalização do mercado
são interpretados por Seabrook como os instrumentos pelos quais os governos e elites locais
executam, em nível dos países periféricos, as estratégias do “Centro” que não lhes deixa
“nenhuma chance a não ser como uma parte do sistema mundial” (ib., p. 8). A expansão global
do sistema ocidental é executada através dos governos e elites locais. “O que o Ocidente aplicou
antigamente pelo uso da força”, continua Seabrook, “os governantes dos países do Sul agora
praticam voluntariamente contra seus próprios povos” (ib., p. 9) 154.
Michael Hardt especula sobre a mudança de atitude das antigas metrópoles face aos
países africanos que deixaram de pautar-se pela dialética excludente e dicotômica do passado e
adotaram comportamentos mais diferenciados, inclusive ambivalentes. E pergunta-se se essa
mudança de comportamento marca uma atitude de respeito e de aceitação da liberação ou se se
trata apenas de uma forma mais sutil de controle e dominação:

Essa lógica não dialética de controle que, de um certo modo, substituiu o sistema
dialético do colonialismo, eu chamaria de a lógica do Império; por “imperial” eu
compreendo antes de tudo um outro tipo de relação entre o poder e as periferias. O fato
colonial funciona segundo uma divisão binária central e a dialética do seu governo se
organiza recobrindo ambos os lados dessa fronteira fixa. O fato imperial não repousa
sobre uma divisão binária; suas fronteiras são sempre indefinidas, flexíveis e em
expansão. A lógica imperial se apresenta primeiro como integrativa e impõe em
seguida, em seu espaço linear e aberto, lógicas de diferenciação e de controle
(HARDT, 2003; minha tradução).

154
Estou indicando a paginação, mesmo tratando-se de um site na internet: http://globalization.icaap. org.
140

Também na Guiné-Bissau foi levada a efeito uma forma de alienação eficiente e


duradoura, subreptícia e enganadora, primeiramente em nome da “civilização” e, mais tarde, em
nome da “modernidade”, do “progresso”, acenando-se com o “desenvolvimento sustentado”, a
integração no Ocidente e a ilusão do “direito” quimericamente adquirido de participar, em uma
relação simétrica, igualitária e justa, das benfeitorias da globalização. A literatura deu
testemunho dessas ambivalências, pondo a nu, pelo viés da ficção ou da poesia, identidades
fragmentadas, bifocalizadas, iludidas. Como escreveu o sul-africano Ezekiel Mphahlele, em seu
livro The African Image (1974), referindo-se à colonização inglesa, “a língua do homem branco,
a tecnologia que ele introduziu, as conveniências que resultam dessa tecnologia”, tudo isso é
absorvido, provocando “a síndrome da classe média” (MPHAHLELE, apud REIS, 1999, p. 33),
ppor parte da franja populacional mais permeável a internalizar os valores considerados mais
apreciáveis e por isso merecedores de imitação.
O poeta e jornalista Tony Tcheka, já na década de oitenta, se ressentia dessa situação de
dependência. Em “Poesia brava”, orgulhosamente, recusa-se a aceitar meios-termos, concessões,
paternalismos por parte dos assim considerados “primeiro-mundistas”: “Não seremos / o casco do
velho galeão combatente que / [...] brigou sem saber / matou sem conhecer” (TCHEKA, 1996, p.
81)155. Quando a utopia se desvaneceu, a traição aos ideais revolucionários anuviou o entusiasmo
do passado recente e, ao lado do descalabro dos governantes, a autocolonização ulcerou a dignidade
e o amor próprio da classe dirigente. Os interesses alienígenas passaram a se fazer valer no país, à
custa do bem-estar da população. A Tony Tcheka horroriza a visão da degradação do emigrante
africano na antiga metrópole ou de todo aquele dependente da complacência – e do desprezo – dos
privilegiados. O poema prossegue alistando recusas a perpetuar aquele estado de dependência:

Não seremos
o velho das grandes avenidas
de cadillacs e benzes
que estende a mão
sem vintém
ouve desdém
e passa fome (ib.).

155
António Soares Lopes Júnior, conhecido pelo pseudônimo Tony Tcheka, nasceu em Bissau a 23 de dezembro de
1951. É jornalista desde 1974. Foi chefe de redação (1976) e depois por muitos anos diretor do Nô Pintcha, o
primeiro jornal do país depois da independência; ali criou um suplemento cultural denominado Bambaram, que
circulou de 1979 ao começo da década seguinte. Exerceu também os cargos de secretário executivo da UNAE
(União Nacional de Artistas e Escritores) e de presidente da Associação de Jornalistas da Guiné-Bissau. Foi
correspondente em Bissau do periódico português Público, de Lisboa, desde o seu primeiro número, e é um dos
jornalistas colaboradores da Agência Lusa. Foi co-prefaciador de Mantenhas para quem luta! (1977); aparece
com dezesseis poemas na Antologia poética da Guiné-Bissau (1990). Foi o organizador da coletânea O eco do
pranto (1992), autor de Noites de insónia na terra adormecida (1996). A obra em prosa de Tony Tcheka
(crônicas, ensaios, resenhas, produção jornalística) é abundante e se encontra dispersa na imprensa nacional e
estrangeira, sobretudo portuguesa. Depois do conflito de 98/99, instalou-se em Lisboa, onde é redator chefe da
revista África Lusófona. Sobre o autor, cf. AUGEL, 1998a, p. 87-114.
141

Na Guiné-Bissau, país que, principalmente depois da crise de 1998/99, não tem


conseguido equilibrar-se nem política nem sócio-economicamente, as vozes que se alteiam, na
ficção, na música ou no ensaio, estão preocupadas com os problemas locais urgentes e atuais e,
se consideram a antiga metrópole como ponto de referência, é sobretudo para denunciar um
outro tipo de perigosa dependência, isto é, o auto-colonialismo reinante. Além de cientistas
sociais como Carlos Cardoso e Carlos Lopes, sobressai o romancista Abdulai Sila que, no
momento atual de crise de confiança na governança, tem escrito em jornais uma série de artigos
da maior relevância, combativos e denunciadores da falta de interesse pelo bem comum por parte
da elite dirigente. Destaco, como exemplo, um trecho da “Apologia da barbaridade”, publicada
em 20 de outubro de 2004 no semanário local Kansaré. Eis aqui apenas uma curta passagem que
já pode dar uma idéia da diatribe do articulista:

Mais de trinta anos depois de proclamada a independência, depois de uma experiência


considerada exemplar de luta pela sua emancipação, seis meses depois das eleições
legislativas que recolocaram o PAIGC novamente no poder, importa indagar-se sobre o
destino e, sobretudo, os novos paradigmas da sociedade guineense. […] Depois de
submetido a infindáveis sacrifícios, tão injustos como difíceis de entender, de facto
mesmo o mais pessismista dos guineenses não podia admitir que, hoje e justamente
pela mão do “partido libertador”, o país voltasse a enveredar por uma humilhante e
vergonhosa fase de colonização versão digital. Uma colonização discreta, moderna,
mas muito violenta; uma colonização que, tal como no passado, vai encher os bolsos e
as contas bancárias de alguns, mas retirará a última esperança de uma vida decente e
honrada a muitos cidadãos (SILA, 20.10.2004).

Tal afirmação vai justamente ao encontro do posicionamento do sul-africano Jeremy


Seabrook (2001), já tantas vezes citado, que, entre muitos outros, considera que o colonialismo
está sendo de novo re-exportado, de modo mais eficaz e sistemático do que no século XIX, aos
países africanos, asiáticos e latino-americanos, camuflado em “pacotes de reforma econômica”,
diferente da versão clássica do colonialismo, tal como foi praticado no século XIX, que envolvia
o aniquilamento e negava a identidade do colonizado. O neocolonialismo alimentou e agravou
essa tendência, expandindo-se subrepticiamente através de uma assimilação dos valores
alienígenas, encravando-se nos indivíduos e reforçando a dependência dos Estados satélites. Essa
expansão hoje em dia tem o nome de globalização e suas conseqüências estendem-se por toda
parte.
No seu ensaio sobre “as metamorfoses do colonialismo”, Jeremy Seabrook analisa a
autocolonização como um processo. Se, no tempo do colonialismo, os valores, as culturas, as
línguas e as tradições dos indígenas foram inferiorizados, diminuídos, ridicularizados e
proibidos, a globalização representa uma nova onda de repressão a tudo que não corresponde às
linhas mestras e às finalidades da “nova ordem mundial”, representado pelo lucro, pelo processo
de acumulação e de uniformização. Uma tal transformação, rápida e violenta, pretende “a
pacificação da população refractária do país” (ib.), tanto pela agressão capitalista quanto pela
142

difusão de novos bens de consumo e a auratização de uma imagem criada refletindo humanidade,
solidariedade e anunciando uma nova ordem, permitindo o acesso de todos à felicidade do
mundo global. Tudo isso tanto fazia parte da missão civilizatória do colonialismo quanto hoje em
dia da globalização, e tudo está apontando “numa só direção: a extirpação de todas as anteriores
maneiras de satisfazer as necessidades da vida e sua substituição pelo mercado” (ib.).
São muitos os autores que tratam do neo e do autocolonialismo como estando hoje em dia
estreitamente ligados ao fenômeno da globalização. Néstor García Canclini analisa largamente
com os efeitos da globalização sobretudo nos países latino-americanos, ressaltando a influência
exercida pelos Estados Unidos, responsável por grande parte das mudanças socioculturais
ocorridas em nossos países e que, através dos modernos meios de comunicação de massas,
despertaram novos hábitos (ou desejos e sonhos) de consumo e novos comportamentos. Para
Canclini, se a globalização trouxe uma homogenização, descarrilhou também um fracionamento
e um novo reordenamento das diferenças e das desigualdades (CANCLINI, 1995, p. 13 e ss.).
Essa visão crítica dos efeitos da mundialização como conseqüência (ou prolongamento)
do neocolonismo não ignora os diversos aspectos positivos do mesmo processo. A globalização
está levando, como foi dito, a um alargamento dos horizontes de informação e comunicação, ao
mesmo tempo tornando irrelevante e até ameaçando de extinção partes das tradições, inclusive as
línguas não codificadas em escrita, mas trouxe também, por outro lado, novas facilidades de
revitalização dos elementos locais. Nem sempre teve o efeito de abafar os particularismos e
tornar irrelevantes ou desqualificar o ambiente imediato de vivência das pessoas e de grupos
humanos; o acesso nos meios urbanos à internet e as facilidades de informação e de
comunicação tornaram local o global e global o local156. Constata-se, em muitas situações
concretas, uma nova consciência dos particularismos, surgem novos e se revigoram velhos
movimentos identitários que, ao menos potencialmente, levam a uma revitalização de
identidades.
Pierre Bourdieu, referindo-se às classes sociais e à classificação hierárquica em
indivíduos subordinados e indivíduos superiores, chamou a atenção para uma duplicidade
importante: a hierarquia existe em dois níveis: uma vez na realidade e uma outra vez na mente
humana, encravada na cabeça das pessoas. Mesmo se classes e hierarquias deixassem de existir,
mesmo assim voltariam bem depressa a serem realidade porque os indivíduos cujas cabeças elas
continuam a povoar, sempre de novo as projetariam na realidade (BOURDIEU, 1992, p. 20).

156
Os diferentes sites que circulam na rede eletrônica sobre a Guiné-Bissau constituem uma plataforma de diálogo e
de formação de opinião, sobretudo para os milhares de guineenses que vivem fora do país, mas não só. Destaco
aquele assinado por Fernando Casimiro, já referido no terceiro capítulo, e que se consolidou como um forum de
trocas e espaço para vários colaboradores e onde se propagam e defendem valores que se querem
especificamente guineenses.
143

Mas não se pode reduzir a um só aspecto o autocolonialismo. No recém-criado Estado


guineense, depois que “a noite colonial foi vencida”, como exclama Tony Tcheka em
“Abusivamente” (Mantenhas para quem luta!, 1977, p. 29), não foi possível fazer reviver as
expressões culturais tradicionais, pois o orgulho da conquista da independência levou também
em parte à negação do que ficou sendo considerado passado e retrógrado. A alienação colonial
levava a uma despersonalização a partir da profanação das culturas e do território e talvez se
tenha aqui um dos seus efeitos mais dramáticos: a orientação socialista dos discursos nacionais
hiperbolizava o progresso, priorizando a modernização do país. Assim, os eflúvios da
mentalidade colonialista continuaram a surtir efeito, escorregando-se para um neocolonialismo
mimetizante e que impunha “máscaras brancas” (FANON, 1952) alienantes, dobrando-se ao
fascínio das “opressivas tecnologias assimilacionistas” (BHABHA, 1998, p. 26). No afã da
modernização e na vaidade de equiparar-se à metrópole (ou a um outro centro econômico ou
ideológico), ambicionou-se um rápido desenvolvimento industrial, apesar da falta de infra-
estruturas, em detrimento de um direcionamento de recursos para a agricultura, base econômica e
cultural da grande maioria da população (PADOVANI, 1991, p. 3). Na Guiné-Bissau, esse
impulso de grandeza sem medida resultou na queda do primeiro presidente (Luís Cabral) e na
implantação, por golpe, de um “movimento reajustador” (cf. cap. 2.2.5).
No elenco das 36 crônicas ou estórias de Carlos Lopes, uma delas ressalta justamente
essa mentalidade. Em “Cerveja em barda” (LOPES, 1997, p. 43), o escritor, pela tangente da
ironia, relembra o prestígio da cerveja guineense de nome Cicer, fabricada no país, “um dos
legados mais importantes do fustigado período colonial” (ib.). Apesar da origem, o povo
orgulhava-se daquela fabricação, pois se tratava de “cerveja produzida por um país
revolucionário, com uma fábrica moderna, dirigida, pela primeira vez, por guineenses!” (ib., p.
45). No entusiasmo e na crença de que a modernização finalmente catapultaria o país para os
píncaros do desenvolvimento, os projetos monumentais se multiplicaram: instalou-se uma
fábrica de automóveis Citroën157, foi construída uma enorme instalação para o descascamento do
arroz e outros produtos agrícolas e

De repente, já não eram só os produtos da Cicer que nos faziam orgulhosos, era uma
série de outras coisas que contribuíram para que a nossa dívida externa passasse de zero a
três vezes o produto nacional bruto. Uma dívida também ela revolucionária, já que só há
três ou quatro países no mundo que se atreveram a chegar tão alto (ib.).

A autocolonização vai ainda mais longe que o neocolonialismo imposto pelos governos
periféricos a seu próprio povo. Segundo Andrea ALLERKAMP (1991), a colonização interna
refere-se a processos dentro do próprio sujeito que, como um território, é invadido por elementos

157
Sobre as tentativas de industrialização, especialmente a fábrica Citroën, cf. PADOVANI, 1991.
144

de fora, explorado e submetido, colonizado enfim158. As conquistas e ocupações de áreas


geográficas estendem-se até as latitudes do subconsciente, do eu historicamente colonizado. Os
indivíduos dos Estados “periféricos” – e não apenas as instâncias econômicas e políticas –
assumem os valores que são ditados pelo “Centro”. Foi injetada como indispensável uma nova
socialização e alimentada a ambição de fazer parte dos círculos privilegiados, o que se manifesta
por posturas na base do consumo de bens modernos, alienígenas e em grande parte inaccessíveis,
impossíveis de serem adquiridos pelas camadas mais largas das populações, desencadeando-se
nas esferas mais favorecidas ondas de consumismo, de afetado arremedo por parte de uns poucos
e conseqüente insatisfação da maioria. É a “cultura do consumo” de que fala Jeremy Seabrook.
Paralelamente, deu-se o processo do esquecimento construído, planejado, da própria história, da
própria tradição. Como Albert MEMMI (1966) expressou, as estratégias colonialistas
condenaram o colonizado a perder progressivamente a memória, esfumando-se nas brumas do
silêncio suas ligações com a tradição. Seu posicionamento, muito anterior, é semelhante ao de
Seabrook: o povo é envolvido (mas não integrado) pelas avalanches sucessivas de progresso e de
modernização, a camada dirigente encontra para si mesma formas complementares de aproveitar-se
das seduções e ofertas vindas de fora. Como satirizou Félix Sigá159, no poema “Manás”:

Compraram [...] Já têm bacalhau


compraram grão-de-bico e azeite
da China maçãs uvas e figos
os fatos Receberam de aviões
os vasos e mais vinhos e whiskies
da França [...] Mas compraram
os postiços compraram [...]
as sapatilhas crentes e ateus
de Portugal cristãos e muçulmanos
outros calçados todos
da América serventes e o Presidente
os jeans entraram no feriado
(SIGÁ, 1996, p. 109-110).

Muitos foram os autores africanos que apresentaram na ficção as conseqüências ou


efeitos da educação européia nas sociedades autóctones. O papel da moderna educação que as
escolas, sobretudo, incutiam nos jovens africanos, ou depois, ao irem estudar no exterior, tem
também o sabor amargo da dependência e da submissão a uma ordem que não lhes é (ou era)
própria, resultando em dramas individuais muito bem explorados na textura literária. Na linha do
autor senegalês Cheik Hamidou Kane, com seu conhecido Aventure ambiguë (1961), um dos

158
Gayatri Spivak enfoca diferentemente a colonização interna. Para seria “o modo como os países metropolitanos
discriminam em seu meio os grupos não emancipados” (SPIVAK, 1994, p. 192).
159
Félix Sigá exerce atividades no jornalismo, sobretudo na rádio e na televisão, com programas culturais. Autor de
um livro de poemas, Arqueólogo da Calçada (1996). Sobre Sigá, cf. nota 261 e o capítulo 6.2.2.
145

clássicos da literatura africana, e de tantos outros, Filinto de Barros retrata o dilaceramento


interno de um desses africanos divididos e inadaptados através da personagem António Benaf,
no romance Kikia Matcho (1997).
António Benaf, o sobrinho “doutor” que tinha voltado por oportunismo e não por vontade
própria para seu país, não consegue reintegrar-se nem fazer a síntese entre os valores tradicionais
e os ocidentais. Mostra-se arrependido de ter retornado ao país natal e somente com dificuldade
aceita o papel de “sobrinho do falecido”; enfada-o ter que conviver com as pessoas simples que
constituem o ambiente em que viveu o tio, incapaz de enfrentar a realidade insossa e medíocre que
o aguardava e que ele desprezava, secretamente ansioso para que terminassem as cerimônias
fúnebres, para se livrar daquela gentalha. “Anos de vivência na Europa [...] haviam-no
transformado num ser desumano, num materialista interessado nos sucessos pessoais, saudoso
das grandes cidades de luzes por todos os lados, dos automóveis, dos gigantes de betão armado”
(BARROS, 1997, p. 21).
Os anos na Europa – de passagem alude aos estudos em Sófia, na Bulgária (ib., p. 51) –
tornaram-no completamente estranho e insensível aos valores e às tradições do seu grupo étnico:

A África tinha-se esfumado do seu ser. Voltou porque era africano e intelectual, portanto
podia ser ministro ou presidente, mas do continente não conseguia reter nem compreender
a profundidade da sua mística.
Fixou o olhar no caixão e tentou imaginar como foi possível que um semi-analfabeto
pudesse ter sentido a necessidade de lutar por algo transcendental (ib., p. 21).

Uma tal atitude de autocolonização é produto do neocolonialismo que pressupõe uma


dependência moral, psicológica, que torna o indivíduo incapaz de identificar mesmo o que está
por detrás desse empobrecimento identitário e cultural. O sobrinho sofreu uma aculturação
voluntária, o “doméstico” e o “familiar” foram sendo perdidos, esquecidos, substituídos, mas
essa perda não levou entretanto a um ganho da parte de Benaf, deixando-o à margem da
sociedade envolvente, inadaptado e insatisfeito.
Em Eterna Paixão, Abdulai Sila apresenta Ruth, a esposa africana do afro-americano
Daniel, como exemplo da personagem que se embriaga pelos requisitos da modernidade e da
“civilização”. Ruth distancia-se dos costumes de origem, preferindo copiar o que viu e aprendeu
durante os estudos no exterior: os móveis de sua casa são importados, o filho vai estudar na
Europa desde pequeno, seu carro é um Volvo, símbolo do progresso e do poder160, em tudo
seguindo as pisadas dos “Altos Dignatários da Nação” (SILA, 1994, p. 66). Na vida profissional,

160
O Volvo era o carro de prestígio na época, devido à ajuda sueca ao desenvolvimento do país. Falava-se da
“volvocracia”, que designava o regime de privilégios de que gozavam os membros do governo e do partido
único. Cf. também notas 308 e 326.
146

assina contratos duvidosos com firmas estrangeiras, recebendo propinas, mostra-se convencida
de que a “África, para se desenvolver, precisava de novas tecnologias”, e para isso ser realizado,
“vamos meter aqui mais máquinas, mais tecnologia, moderna tecnologia” (ib., p. 28). Premiada,
por isso mesmo, com “sucessivas promoções”, passa a comportar-se com “arrogância,
agressividade”, chocando pela “intolerância dos seus actos” (ib., p. 67).
Odete Semedo, pela via da efabulação, do humor e da paródia, diverte-se, e diverte os
leitores com “Kunfentu, stória da boa nova”161, conto em que esboça, com traços precisos, o
ambiente monótono de uma localidade do interior onde nada acontecia até que a chegada de um
“filho da terra”, vindo de viagens, trazendo “novas dos quatro cantos do mundo”, abalou a
tranqüilidade do lugarejo, “mexeu com as cabeças, com o povo, com a população e, logo logo,
todos começaram a pensar em como fazer para serem iguais aos dos quatro cantos do mundo”
(SEMEDO, 2000a, p. 109). A autora ironiza com primor os efeitos da implantação de novos
costumes e a procura de expressões correspondentes dessas “modernidades” no seio da
sociedade tradicional: numa localidade imaginária de nome Nbetenne, os nbetennianos discutem
sobre a nbetennecracia, ocupando-se também com novidades tais como a desenvoltura, o
desenvolvimento e o developemento, decidindo-se a promover democraticamente a eleição do
régulo. Essa novidade pouco africana se transmuda de repente numa abota – a moderna e
desconhecida modalidade de escolha pelo voto (con)fundiu-se com o familiar costume local de
“fazer um peditório, uma cotização ou subscrição” (segundo o dicionarista Luigi
SCANTAMBURLO, 2002, p. 49), que sofreu um jocoso alargamento de significação. A partir da
encenação das atividades que transformaram a vida daqueles pacatos cidadãos, Odete Semedo
parodia a campanha eleitoral, o desconhecimento da complicada ação democrática de escolha
entre vários candidatos. Um dos pontos altos da história é o diálogo hilariante entre os
“mesantes” e duas velhotas, completamente desnorteadas:

– Qual destes é o Djoku? É nele que eu quero dar a minha abota, mas são tão parecidos
[...].
– Tia, tem paciência, a tia não pode, é secreto – diziam os mesantes quase em coro, e
perante o espanto do responsável máximo; só a tia e Deus é que podem saber em
quem...
– Ai sim? – dizia a tia [...] então mostra-me o retrato do Djoku que lá dentro só Deus e
eu é que saberemos que foi nele que dei a minha abota (SEMEDO, 2000a, p. 115).

Com essa storia paródica, Odete Semedo (e este não é o único exemplo entre os seus
textos curtos) hiperboliza pelo viés do riso uma situação de fato, comum ainda nas aldeias, da má

161
Odete Semedo, em suas Histórias e passadas que ouvi contar I e II, faz uma fusão entre o moderno e o tradicional,
entre o inventado e o rememorado, tendo o grande mérito de contribuir para preservar e valorizar com seu trabalho
um campo literário – a oratura – cada vez mais esquecido pelas novas gerações, menosprezado como uma arte
menor, algo do passado e portanto ultrapassado. Os contos, publicados pelo INEP em Bissau, estão reunidos em dois
volumes. Cf. a edição original (2000a, 2000b). A obra teve uma nova edição em um só volume em Viana do Castelo
(2003a). Cf. a bibliografia no final.
147

absorção de idéias vindas de fora e, por isso mesmo, consideradas positivamente como melhores.
Traz ao mesmo tempo, para o palco textual, todo um cenário verídico da vida cotidiana das
pequenas comunidades rurais. O termo Kunfentu, parte do título da estória, é estranho aos nossos
ouvidos lusófonos, um termo crioulo que significa ventania, vento forte e frio, sendo
simplesmente derivado de “com [muito] vento”. Os ventos da modernidade sopram às vezes de
uma forma violenta, desorganizando as estruturas tradicionais. O régulo não é geralmente eleito,
ele é investido por direito de linhagem. A abota é uma instituição tradicional, uma quotização
entre os membros de uma comunidade, doação ou contribuição para algo que deve servir ao bem
comum. Nas mandjuandadi, por exemplo, dá-se a abota como uma mensalidade, para as
despesas em comum como uma quota extra quando há alguma festa, cerimônia ou funeral162.
No mesmo teor, também recorrendo à comicidade, Carlos Lopes transporta os leitores
para a tabanka163 de Ponate, onde “a vida sempre se manteve igual”, até que um dos filhos do
lugar, que vivia na capital, voltou à casa dos pais para convencer a família e os demais aldeões a
votar num certo candidato. Diante da explicação do filho de que se tratava de um “voto
democrático, universal e secreto”,

Domingos queria saber qual era a diferença com o outro voto em que lhe diziam em
quem votar e que servia para não pagar imposto. [...] Domingos finalmente decidiu
aceitar o que o filho lhe tinha pedido. Sábado [assim se chamava o rapaz] vinha da
cidade e via-se que tinha ido à escola. Vestia já como os tugas. Domingos prometeu
mobilizar a tabanka [...] convocou a assembleia [...] anunciou que ia haver um grupo de
gente que viria a Ponate para que eles dissessem que governo é que queriam. Que
agora era assim, eles podiam escolher e que havia muitos governos que queriam formar
partidos. E ditou a escolha para que ficasse mais fácil. Todos deveriam votar no
democrático, universal e secreto (LOPES, 1997, p. 64-65).

Os episódios visam ao desmascaramento do papagueamento e do mimetismo próprio ao


neocolonizado, acrítico e despreparado politicamente, já denunciado por Frantz Fanon e por
Amílcar Cabral, entre muitos outros. Homi Bhabha, referindo-se à “economia conflituosa do
discurso colonial”, destaca a ação desconstrutiva da mímica. O discurso da mímica, segundo
aquele crítico, “é construído em torno de uma ambivalência; para ser eficaz, a mímica deve
produzir continuamente seu deslizamento, seu excesso, sua diferença” (BHABHA, 1998, p. 130).
Temos acompanhado esses excessos causadores do riso nos exemplos dados.
No presente, mudados os tempos, a estratégia neocolonialista surtiu e vem surtindo
efeitos duradouros e desastrosos: as novas nações africanas, recém-criadas graças às heróicas e
impressionantes lutas pela libertação do jugo estrangeiro, caíram numa nova dependência,
econômica e moral, psicológica. A massa popular continua incapaz de identificar o que está por
detrás dessa perda de autonomia, desse empobrecimento identitário, cultural e econômico.

162
Sobre as mandjuandadi, cf. SEMEDO, 1996c. 1996d.
163
Ou tabanca. Temos visto como é grande a flutuação na grafia das palavras da língua guineense.
148

Continua, pois, lícito e atual falar-se de neocolonialismo, de colonialismo interno, de


dependência acrítica e da ganância “primeiro-mundista” com seus tentáculos globalizantes. Mas
não é possível deixar de pôr em relevo o anticolonialismo, suas muitas faces e seus ainda pálidos
mas promissores efeitos.

4.5 A reação anticolonialista

Edward Said, em Cultura e Imperialismo (1999), ressalta que “em quase todos os lugares do
mundo não europeu a chegada do homem branco gerou algum tipo de resistência”, tendo sido
justamente “a reação ao domínio ocidental que culminou no grande movimento de
descolonização em todo o Terceiro Mundo” (ib., p. 12):

O contacto imperial nunca consistiu na relação entre um ativo intruso ocidental contra
um nativo não ocidental inerte ou passivo; sempre houve algum tipo de resistência
ativa e, na maioria esmagadora dos casos, essa resistência acabou preponderando (ib.).

Uma das resistências foi sempre a não assimilação, a recusa a renunciar ao modo de vida
anterior à colonização. Escritores como Camara Laye, da República da Guiné, o nigeriano Wole
Soyinka ou Anthony Appiah, de Gana, mostram em suas obras de caráter memorialístico como,
apesar da proximidade de convivência com o colonizador, apesar do biculturalismo em que
foram educados, não se distanciaram de suas raízes africanas: “a experiência da vasta maioria
desses cidadãos das colônias européias na África foi a de uma penetração essencialmente
superficial por parte do colonizador” (APPIAH, 1997, p. 25). Prosseguindo, Appiah afirma que

Insistir na alienação dos súditos coloniais de educação ocidental, em sua incapacidade


de apreciar e valorizar suas próprias tradições, é correr o risco de confundir o poder
dessa experiência primária com o vigor de muitas formas de resistência cultural ao
colonialismo (ib.).

Parece-me importante observar uma tal postura que apenas registro sem juízo de valor,
bem distante daquela de Seabrook, por exemplo, não se podendo deixar de levar em conta o
lugar a partir do qual Appiah fala, sua inscrição nos dois mundos sociais, africano e “ocidental”;
trata-se de um intelectual oriundo de uma família de elite, tanto étnica quanto cultural e política,
para quem os laços com a Europa estão estreitados tanto pela educação e pela religião, como
pelos muitos casamentos multiétnicos, a começar pela origem inglesa materna. Sua visão e sua
experiência não podem ser generalizadas e certamente houve outros tipos de interação bem
menos simétricos e bem mais traumáticos, até o extremo dos muitos casos de genocídio que
ensombreceram a época colonial.
149

Appiah, como muitos pensadores africanos, recusa-se a reduzir a definição da


africanidade à fidelidade aos costumes e crenças tradicionais, como se o “moderno” não se
coadunasse ao esquema mental pré-fabricado da “invenção da África” que, tal como o
“Orientalismo”, é um reflexo da atitude, da mentalidade ainda colonizada de pensadores
ocidentais. “Podemos reconhecer que a verdade não é propriedade de nenhuma cultura; devemos
apoderar-nos das verdades de que precisamos onde quer que as encontremos” – é novamente a
voz de Anthony Appiah que faço ressoar aqui, mas que encontra eco em muitos espaços. Appiah
continua sua linha de reflexão, afirmando ser necessário “saber se as verdades que retiramos do
Ocidente serão ou não dignas de crédito”, e isso vai depender “de como consigamos administrar
as relações entre nossa herança conceitual e as idéias que correm a nosso encontro, vindas de
outros mundos” (APPIAH, ib., p. 21).
No que concerne à Guiné-Bissau, ressalto o pensamento de Amílcar Cabral, o grande
nome das lutas da independência da Guiné e de Cabo Verde, para quem a experiência da
repressão fascista, durante seus estudos universitários em Portugal, constituiu o motor de sua
politização e o levou a juntar-se a outros estudantes africanos que mais tarde se destacaram
igualmente na luta anticolonial, empenhados em pugnar a favor de um espaço de dignidade,
recusado até então ao africano. E, ao mesmo tempo em que se batiam pela "reafricanização dos
espíritos", pois a lavagem cerebral perpetrada pela máquina colonialista amortecia as mentes,
negava a afirmação da personalidade e da dignidade humanas, também peleavam pela
modernização das instituições e pela entrada de seus países no mundo moderno. Amílcar Cabral,
no seu estilo didático, ao dirigir-se aos militantes do partido e aos guerrilheiros, procurava
conscientizá-los, mostrando-lhes que era necessário ultrapassar certa dependência da tradição. A
citação é extensa, mas considero o texto sumamente interessante, sobretudo ao levar-se em conta
o locus da enunciação e seus receptores, observando o cuidado com que Cabral, sem renunciar à
sua tarefa de mentor e formador de uma nova consciência revolucionária, abordava delicadas
questões, respeitando o saber local164:

Há muita gente que pensa que ser africano é saber sentar-se no chão e comer com a
mão. Sim, isso é certo africano, mas todos os povos no Mundo se sentaram já no chão e
comeram com a mão. [...] Ninguém pense que ser africano é ter chifres pegados ao
peito, é ter mesinho165 na cintura. Esses são os indivíduos que ainda não
compreenderam bem qual a relação que existe entre o homem e a natureza. [...] Temos
que ter coragem para dizer isso claramente. Ninguém pense que a cultura de África, o
que é verdadeiramente africano e que, portanto, temos de conservar para toda a vida,
para sermos africanos, é a sua fraqueza diante da natureza. Qualquer povo do Mundo,
em qualquer Estado que esteja, já passou por essas fraquezas, ou há-de passar. Nós não

164
Esses “discursos”, muito informais, eram pronunciados “no mato”, isto é, nos acampamentos da guerrilha, para
combatentes em geral iletrados, aldeões agricultores, praticantes das religiões tradicionais. Mas “mato” também
é o “mato sagrado”, onde habitam os irans, as divindades sagradas de muitas etnias guineenses.
165
Mesinho significa medicamento, remédio, mas também amuleto e é nessa acepção que Cabral aqui emprega o
termo.
150

podemos convencer-nos de que ser africano é pensar que o relâmpago é a fúria de Deus
[...]. A nossa luta é baseada na nossa cultura, porque a cultura é fruto da história e ela é
uma força. Mas a nossa cultura é cheia de fraqueza diante da natureza. É preciso saber
isso. [...] Muitos de nós acreditaram que não nos devíamos instalar em certos matos
porque está lá o “irã”. Mas hoje, graças aos muitos “irãs” da nossa terra, a nossa gente
entendeu, e o “irã” também, que o mato é do homem, e ninguém mais tem medo do
mato. O nosso Partido, no plano cultural, procurou tirar o maior efeito possível, o
maior rendimento possível da nossa realidade cultural. Quer não proibindo aquilo que é
possível não proibir sem prejudicar a luta, quer criando no espírito dos camaradas
novas ideias, nova maneira de ver a realidade (CABRAL, A.)166.

As “novas idéias” estão diretamente ligadas ao progresso e ao desenvolvimento


tecnológico, à inserção da sociedade guineense na modernidade, definida por Appiah como
“formação intelectual e social característica do mundo industrializado” (APPIAH, 1997, p. 155),
aspiração que não tem que passar (nem deve) pela polarização com o tradicional mas que exige
uma maior ou menor interação com o Ocidente, com toda sua carga de esperanças e de ameaças.
O grande problema trazido pela modernização tem sido a enorme discrepância entre o estilo de
vida dos representantes dos novos estados africanos e o de seus representados. No dizer de
Boaventura de Sousa Santos, houve “uma assimilação mimética de padrões [...] dos Estados e
das sociedades políticas (em sentido gramsciano) dos países centrais”, sem que tivesse havido
uma interiorização da parte dos agentes políticos (SANTOS, 1999, p. 69). O resultado foi o
descalabro e o deslizamento para a corrupção, o clientelismo, a autopromoção e o auto-
enriquecimento, mazelas que Cabral previu mas não vivenciou. As profundas mudanças e o
descarrilhamento político que ocorreram na Guiné-Bissau, espelho do que está acontecendo em
quase todo o continente desde a descolonização, proporcionaram (ou melhor: até provocaram) as
mais expressivas obras literárias do país.
Em toda a África, intelectuais opõem-se, preocupados, à situação neocolonial. São
muitos os filósofos da cultura, cientistas sociais e políticos, teóricos da descolonização como
foram denominados por Appiah, que, em suas publicações, denunciam o status quo e se batem
por uma transformação, incluindo-se uma mudança mental e não apenas política, tanto da parte
dos africanos como dos estrangeiros que se ocupam com a África. Chamam também a atenção
para o perigo de generalizações indiferenciadas, condenando tanto o ressentimento acerbo contra
as novas feições do imperialismo, supervalorizando a penetração branca no continente, quanto
o contrário, a subestima das deficiências da autoconfiança que escorregam para a alienação
autocolonizadora. Entre muitos autores, lembro apenas alguns, sem entrar em pormenores
quanto ao leque variado de suas abordagens: o ganense Kwame Anthony Appiah167, Paulin

166
Cf. o já referido site disponível na internet: http://didinho.no.sapo.pt. A citação foi tirada do discurso que tem
como título “Partir da realidade da nossa terra” e está no parágrafo sobre a “realidade cultural”.
167
Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura, 1997. Appiah é um dos pensadores africanos mais
conhecidos no Brasil.
151
168
J. Hountondji , da Costa do Marfim; Ngugi wa Thiong’o, que escreve em seu idioma
materno, o gikuyo, a língua do maior grupo étnico de Quênia 169, ou ainda o congolês
Valentin Yves Mudimbe 170. Acrescento ainda a nigeriana Sophie B. Oluwole171, o sul-africano
Mogobe B. Ramose172, o moçambicano Elísio Macamo173 e também Jeremy Seabrook, ao qual
devo muitas das idéias para este capítulo, um dos mais brilhantes intelectuais sul-africanos.
Axelle Kabou, em seu provocante livro Et si l'Afrique refusait le développement (1991),
discute o uso do passado colonial como pretexto para não se falar dos males “cometidos em
casa” pelos maus governos, na África. Seu livro teve grande repercussão na década de noventa,
tendo desencadeado muita indignação. Segundo a autora camaronesa, os africanos alfabetizados
foram condicionados a “perceber a tradição e a modernidade como valores conflitantes. [...]
Aplicada à África de hoje em dia, a noção de alienação cultural é um mito tendo como função
instaurar um clima de resistência à penetração de idéias novas nas mentalidades” (KABOU,
1991, p. 94). Se os povos africanos querem participar do circuito mundial de trocas, torna-se
indispensável a modernização, diz ela. Esse dilema foi tratado por vários outros autores, como os
já aqui várias vezes citados Paulin J. Hountondji e Anthony Appiah ou ainda o apaixonado
Ngugi wa Thiong’o.

168
Entre suas publicações, destacam-se Combats pour le sens: Un itinéraire africain. Academic Literature, 1997;
Les savoirs endogènes. Pistes pour une recherche. Paris, Karthala, 1994 / Les savoirs endogènes: pistes pour
une recherche, édité par le CODESRIA, Dakar, 1994; edição em inglês: Endogenous Knowledge: Research
Trails; como organizador: Sur la philosophie africaine. Critique de l'ethnophilosophie. Paris: François Maspero,
1997.
169
Além de obras de ficção e um depoimento de seu tempo como preso político, destacam-se Decolonising the
mind. The politics of language in African literature (1986), onde defende a posição que os autores africanos
devem expressar-se nas suas línguas nativas, pois só assim podem atingir as populações africanas. Em
Homecoming: Essays on African and Caribbean Literature, Culture, and Politics (1972) traz uma série de
ensaios, todos orientados por essa postura descolonizadora. Appiah comenta que a postura de Ngugi despertou
também uma reação negativa: “ao escrever em sua língua materna, o gikuyu, levou muita gente em seu próprio
país a vê-lo – erroneamente, em minha opinião – como uma espécie de imperialista gikuyu (o que não é uma
questão nada trivial no contexto das relações interétnicas no Quênia)” Cf. APPIAH, 1997, p. 20.
170
Mudimbe é um conceituado pensador africano, com mais de uma vintena de obras, das quais as mais discutidas
são The invention of Africa. Gnosis, philosophy and the order of knowledge (1988) e The ideia of Africa (1994),
além de Diaspora and Immigration.(1999). Como Hountondji e outros, critica o etnocentrismo dos etnólogos
ocidentais, responsáveis por uma “invenção” reducionista e uma idéia monolítica do continente; a lógica
etnológica teria servido para “patologizar os africanos” e para dominá-los.
171
Autora de uma firme defesa das crenças tradicionais na obra Witchcraft, Reincarnation and the God-Head. Issues
in African Philosophy. Lagos: Excel Publishers, 1992. Critica a visão depreciativa européia da religiosidade
africana, mostrando como esses elementos (magia, reincarnação, crença nos espíritos e na ligação com os
mortos) estão estreitamente ligados a sentimentos religiosos, constituindo uma das bases das estruturas sociais
dos povos africanos).
172
Sua principal publicação, African Philosophy through Ubuntu. Harare: Mond Books, 1999, foi comentada em An
African perspective on justice and race (disponível na internet: http://them.polylog.org/3/frm-en.htm). O
conceito umbuntu de justiça, baseado no equilíbrio e na harmonia, foi desequilibrado pela desumana conquista
colonial. Colonização e racismo, negando esse princípio fundamental de igualdade humana, são a face oposta da
filosofia umbuntu.
173
Publicou Was ist Africa? Zur Geschichte und Kultursoziologie eines modernen Konstrukts. Berlin: Duncker &
Humblot, 1999 (O que é a África? Sobre a história e a sociologia da cultura de uma idéia construída) Macamo é
professor em Bayreuth, na Alemanha, e o livro é o resultado de sua tese de doutoramento.
152

Abdulai Sila, em Eterna paixão, pela voz de Daniel, o afro-americano por nascimento e
africano por adoção que emigrara para a “terra dos nossos avós” (SILA, 1994, p. 34), expressa a
decepção que tantos experimentam ao constatarem que os ideais pregados pelas revoluções
libertadoras não eram seguidos:

Lembrou-se de Mark, das suas ideias apaixonadas sobre África, da sua convicção no
sentido de justiça e de solidariedade do Homem africano. Sentindo desmoronar todo
aquele edifício, procurou forças para [...] confessar-lhe tudo o que sentia.
Iria contar da África que estava descobrindo. Daquela com cara cruel, que reprimia
barbaramente; daquela com mãos sanguinárias, que assassinava nas prisões; da outra,
de olhos vedados, perdida na corrupção (ib., p. 71).

Desde as últimas décadas do século XX que se vem assistindo a uma tomada de posição
cada vez mais clara e mais diferenciada por parte da intelligentsia dos assim chamados
“periféricos”, povos saídos da colonização. Com a expansão dos estudos sociais e
antropológicos, e mais recentemente dos estudos culturais, vêm afluindo ao palco acadêmico
novos atores, africanos, asiáticos, árabes, latino-americanos, contribuindo com novos aportes e
novas perspectivas, desalojando o eurocentrismo e suas conseqüências. As teorias pós-coloniais,
dentro desses novos horizontes, têm tido uma abrangência cada vez maior.
Paulin J. Hountondji, em seu livro Sur la “philosophie africaine” (1980; a expressão
aparece no título entre aspas)174, faz uma revisão crítica de obras de africanistas europeus que se
propuseram a explicar o fundo filosófico e ético que norteava as práticas sociais de determinados
grupos étnicos do território colonizado. Na sua opinião, porém, o que esses autores praticaram
foi uma “etnofilosofia”, às vezes até “bonita demais para ser verdadeira” (HOUNTONDJI, 1980,
p. 19). Por etnofilosofia ele entende uma pesquisa que parte do pressuposto da existência de uma
“filosofia africana” que admite uma visão de mundo coletiva e hipotética de um determinado
povo (ib., p. 33), isto é, são construções arbitrárias, hipotéticas, que não se baseiam em material
discursivo concreto, “discursos explícitos” (ib., p. 32), ou seja, tradições orais, contos, mitos, o
saber dos anciãos.
Tomando como exemplo a obra do missionário belga Placide Tempels sobre a filosofia
bantu, Hountondji mostra que, apesar desse sistema ontológico apresentar uma “maravilhosa
coerência”, considerando-o sob a lente da sua função política, verifica-se que ele “desvia a
atenção dos problemas políticos fundamentais dos povos bantu [...], defasado em relação à
ardente realidade da exploração colonial” (ib., p. 19), “uma abstração incrível face à situação
concreta histórica do país” (ib.). O então Congo Belga reconhecia a superioridade do branco e,

174
Paulin J. Hountondji ressalta que há mais de meio século intelectuais africanos se vêm ocupando em produzir um
“discurso laborioso pelo qual nos empenhamos em nos definir” e essa literatura “não pára de crescer” (1980, p.
12). E procede a uma extensa listagem, nas páginas seguintes, de um grande número de nomes de autores e de
títulos de obras africanas das mais variadas procedências (p. 12-13).
153

assim, salvaguardava e consolidava a dominação imperialista. O pérfido da questão, diz


Hountondji, é que pensadores africanos caíram na mesma armadilha, assumindo a
interpretação do sacerdote belga de que haveria uma visão do mundo que seria subjacente a
todas as tradições africanas e a todo comportamento. O sacerdote, escrevendo sobretudo para
um público europeu, adotando igualmente um universalismo abstrato, ignorou a realidade
local, “por cima das costas de seu povo”: “O etnofilósofo africano se fazia o porta-voz da
África global diante da Europa global” (ib., p. 35). Concluindo que “a filosofia africana é um
imenso contrasenso”, como se fosse possível admitir a existência de “um sistema de crenças
implícitas ao qual adeririam espontaneamente todos os indivíduos de uma sociedade, passados,
presentes e futuros” (ib., p. 88-89)175.
Parece-me que, no momento, os intelectuais da Guiné-Bissau não estão muito
interessados em formulações desse teor, embora lembre aqui os artigos já referidos de Abdulai
Sila contra as intempéries da desgovernança, um exemplo entre muitos outros que aparecem
diariamente na imprensa do país. Queria completar este capítulo registrando um aspecto muito
presente nas discussões sobre a relação do escritor africano com a língua do colonizador,
repetindo a velha metáfora do Caliban shakespeariano que, aprendendo a fala do seu senhor,
passa, com sua voz, a contestá-lo.

4.6 A língua portuguesa – espaço de transgressão

Os fundamentos sobre os quais se esteiava a dominação colonial foram constituídos pela tríade
“o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua” (SANTIAGO, 1978, p. 16).
Coerentemente, dentro das estratégias de desfiguração cultural, também na Guiné-Bissau as
línguas autóctones, algaravias incompreensíveis, foram proibidas, assim como a língua veicular,
o crioulo. Apesar de toda repressão, contudo, os idiomas nacionais continuaram vivos e ativos,
permanecendo o centro de referência para as comunidades étnicas, não tendo jamais perdido seu
status de meio de comunicação e de expressão familiar e grupal. Já tratei desse assunto no
segundo capítulo (segmento 2.5) e não preciso reter-me novamente nele. A língua do dominador
passou a língua oficial do país depois da descolonização, continuando a ser a mais prestigiada
socialmente, constituindo a língua do ensino escolar, das redações oficiais no campo da
legislatura e da representação no exterior. Seu conhecimento pleno estava (e ainda está)

175
Trata-se de um dos temas recorrentes da discussão contemporânea e tem sido muitos os intelectuais africanos que
procuram demonstrar, em suas obras, a falácia do pressuposto que Hountondji chamou de “unanimismo”, isto é,
a afirmação da existência de um conjunto central e geral de idéias compartilhadas pelos “africanos”, como um
bloco unitário e indiferenciado, um “pressuposto de que exista, mesmo num nível de abstração bastante elevado,
uma única visão de mundo africana” (APPIAH, 1997, p. 123).
154

reservado praticamente a uma pequena minoria privilegiada que com ela mantém, como em
outros países ex-colonizados, uma relação ambivalente e não totalmente desprovida de
artificialismo. A língua portuguesa é, apesar de todos os limites, indissociável da vida cultural da
Guiné-Bissau, tendo sido considerada por Amílcar Cabral como sendo o melhor legado deixado
pelo colonizador.
Como se pode constatar em toda a África, nos primeiros tempos pós-independência, o
intelectual muitas vezes repudiou a língua do dominador da mesma forma como se distanciou da
cultura metropolitana. Fez e continua a fazer parte da política cultural de uma grande parte dos
países africanos a preocupação em valorizar as línguas maternas, faladas pelas diferentes etnias
nacionais, como constituindo elemento básico e indispensável para a afirmação da identidade
pessoal e coletiva. O problema da confrontação entre a presença de idiomas nativos e línguas de
contacto com a língua colonial é comum à maioria dos países africanos e não está livre de
ambigüidades. Apesar do conflito evidente, para dar apenas alguns exemplos, existe uma literatura
escrita em iorubá, na Nigéria, em xona no Zimbábue; em suaíli e em ganda em Quênia; em sotho,
língua da África do Sul.
Mas os imbricamentos internacionais dos tempos modernos inviabilizam um insulamento
improdutivo. Apesar de signo do colonialismo, é a língua do dominador o veículo que acabou
por impor-se como língua literária, depois de muitos debates e indecisões, discussões que
continuam atuais e sempre de novo reabertas176.
Albert Memmi, em seu livro Portrait du colonisé suivi de portrait du colonisateur
(1966), esboçou sem rodeios a real dificuldade, se não impossibilidade, do uso da língua nativa:

A língua materna do colonizado, aquela que é alimentada por suas sensações, suas
paixões e seus sonhos, aquela na qual se liberam a ternura e os espantos, aquela, enfim,
que reúne a maior carga afetiva, é justamente essa que é menos valorizada. Ela não tem
nenhuma dignidade no país nem no conjunto dos países. Se quer conseguir um
trabalho, construir seu espaço, existir na cidade ou no mundo, ele tem primeiro que se
dobrar face à língua dos outros, a dos colonizadores, seus senhores. No conflito
lingüístico que habita o colonizado, sua língua materna é humilhada, esmagada
(MEMMI, 1966)177.

Entretanto, a apropriação que o intelectual africano faz do inglês, do francês, do


português, transfigurando-o e reterritorializando-o, é uma atitude tipicamente anticolonial. São
de Wole Soyinka as seguintes palavras:

Os povos negros arrancaram a lâmina lingüística das mãos do castrador cultural


tradicional e entalharam novos conceitos na carne da supremacia branca. O uso

176
E assim, o emprego das línguas européias, tanto do português como do francês ou do inglês, terá preferência em
termos internacionais e será dominante, pois as leis do mercado assim o exigem. Além disso, o idioma do antigo
dominador está arraigado nas mentes como a língua da “civilização” e do “desenvolvimento” e é bem mais tenaz
do que até pode parecer ou desejar-se.
177
A tradução é minha. Consultei o site http://www.mef.qc.ca/portrait%20du%20colonise.htm.
155

lingüístico costumeiro foi completamente rejeitado e uma nova sintaxe, crua, urgente e
revolucionária, foi dada a esse meio que havia se tornado o maior repositório de
conceitos racistas (SOYINKA, apud REIS, 1999, p. 103).

O fato é que a grande maioria dos autores africanos prefere escrever no idioma do
colonizador, embora isso não corresponda geralmente à realidade lingüística de seus países.
Assim, falar da Guiné-Bissau como “país de língua portuguesa” implicaria não levar em conta
que ali o português é uma língua falada por uma pequena minoria, sendo ainda mais reduzido o
número dos que a falam corretamente, e ínfimo o dos que a escrevem. As implicações
ideológicas do termo “lusófono” são de certo modo até mesmo perversas, seguindo o
pensamento do estudioso beninense Guy Ossito MIDIOHOUAN (1986) que se refere
especialmente ao francês. Admitir que “os” guineenses, como totalidade, sejam lusófonos seria
inverter a realidade, pois isso implicaria em admitir que falam habitualmente o português. Mas o
português na Guiné-Bissau, embora seja o idioma oficial, não é nem a língua segunda da maior
parte da população, nem mesmo a da elite instruída, que não a usa espontaneamente em situações
descontraídas, no seu meio de origem. Afirmar o contrário seria querer iludir-se ou pretender
distorcer politicamente a realidade. Poderia ser viável, talvez, falar que a Guiné-Bissau é um país
lusógrafo, embora essa realidade esteja cada vez mais confrontada com o crescente emprego da
língua guineense também na comunicação escrita.
Numa primeira instância, numa visão diacrônica, ao escritor guineense sucedeu o mesmo
que ao brasileiro ou ao angolano recém-descolonizado. Socializado e aculturado pelo
instrumento da língua, o vínculo com a metrópole perdurava e “fazia com que o produtor textual
colonizado quisesse inserir-se, e a sua obra, no quadro geral da literatura do dominador,
esforçando-se ao máximo para aproximar a sua dicção literária da dos autores metropolitanos”
(PADILHA, 1995, p. 3)178. Mas, se existe a cooptação, existe igualmente a sublevação. Entre as
táticas subversivas empregadas por escritores latino-americanos ou africanos, uma das muitas
faces da reação contra os tentáculos do neocolonialismo, está a utilização da língua imposta pelo
vencedor como forma de expressão, sem obedecer à norma castiça e culta, modificando-a,
estética e ideologicamente. A consciência de que os efeitos condicionantes da colonização
continuam a corroer a auto-estima e a autoconfiança dos ex-colonizados mostra-se através do uso
que os escritores fazem do português, abrindo um espaço de expressão contestatória. A
introdução de elementos da tradição oral das diferentes culturas, a constante referência a mitos e
lendas, à sabedoria ancestral de múltiplas raízes, tudo isso é enunciado por uma desconstrução da
linguagem, numa rebelde apropriação.

178
Conheci um intelectual guineense que se autoqualificava de “Camilo Castelo Preto”, considerando aquele autor
português (1825-1890) como modelo de beleza e elegância de linguagem que pretendia alcançar.
156

Na Guiné-Bissau é Odete Semedo quem levanta a questão que tanto apaixona os


escritores africanos: escrever na língua do colonizador ou escrever nas línguas étnicas? O debate
vem de longe e certamente ainda não terminou.
Odete Semedo, como quase todos os demais escritores aqui analisados, escreve tanto em
português como na língua guineense. Sentindo-se inteiramente à vontade dentro da cultura
portuguesa, tem, entretanto, suas raízes profundamente fincadas no seu “chão”. Ela abre seu
primeiro livro, Entre o ser e o amar (1996), escrito em português e em crioulo, com um poema
intitulado “Na kal lingu ke n na skirbi nel” – “Em que língua escrever”, ressaltando a ambigüidade
dessa dupla influência, expressando a dúvida em escolher expressar-se entre a língua do coração e
dos sentimentos e a língua que a ligará com o resto do mundo: “Em que língua escrever / as
declarações de amor? [...] Em que língua escrever / contando os feitos das mulheres / e dos homens
do meu chão?” Por um lado, o eu poético sabe que “em crioulo gritarei / a minha mensagem / que
de boca em boca / fará a sua viagem”, ao mesmo tempo em que reconhece ser importante expressar-
se num idioma de maior repercussão, “falar nesta língua lusa / eu sem arte nem musa, pois assim
terei palavras para deixar / aos herdeiros do nosso século” (ib., p. 10/11).
Através da palavra, a voz poética quer vencer suas dúvidas e angústias interiores, quer ver-
se una, harmonizada interiormente e quer também chegar ao outro. Ciente da força transformadora e
mágica da palavra, a autora hesita na escolha de em que língua escrever, pois sabe que não só o
efeito será diverso, como a própria essência do seu enunciado dependerá dessa decisão. Daí a
questão se se articula em sua língua materna e uterina ou se lança mão de um meio de expressão
estranho às suas raízes. A escritora se põe diante de um problema que precisa resolver e que mostra
a ambivalência face à cultura ocidental. Ela quer ser testemunha da sua própria cultura, quer
transmiti-la aos seus sucessores (e a seus leitores, acrescento eu). Quer passar adiante “as histórias
que ouvi cantar”, quer divulgar “os feitos das mulheres e dos homens do meu chão, [...] falar dos
velhos, das passadas e cantigas”, e o lógico seria fazê-lo em seu próprio idioma, que é igualmente o
das pessoas e dos fatos aos quais ela se refere: “Falarei em crioulo? Falarei em crioulo!”. Falar na
sua língua materna e original, gritar mesmo, é o impulso primeiro do eu poético. Mas, seguindo essa
direção, restringindo-se ao registro oral, o testemunho que tanto deseja prestar, passando apenas “de
boca em boca”, não chegaria a expandir-se muito, pois a posteridade só tomará conhecimento do
que ela tem a dizer se a poetisa deixar escritos tais feitos, e isso numa língua que transcenda os
horizontes da sua terra natal. O eu enunciador tem que se decidir: “Mas que sinais deixar aos netos
deste século?”, e o faz de uma maneira pragmática: “deixarei o recado num pergaminho nesta
língua lusa [...] os netos e os herdeiros saberão quem fomos” (ib., p. 11).
Escrever em português significa, porém, usar um veículo de segunda mão, empalidecer a
riqueza da tradição, da história e dos sentimentos da sua própria cultura. Assim, a escritora tem
157

que decidir-se à renúncia de algo que lhe é essencial, em favor do dever supra-ordenado e que
julga imprescindível: transmitir às gerações vindouras como que a prova da existência da cultura
da sua gente. E cabe uma tal tarefa – o texto na língua guineense é mais longo e mais explícito –
anos... mindjeris ku omis d'e tchon, “a nós, mulheres e homens deste chão”, pois são eles, e só eles,
que de fato podem firmanta no storia (ib., p. 12). Trata-se, portanto, a meu ver, nesse poema de
abertura do livro inaugural de Odete Semedo, de um texto programático, da articulação proposital
de uma tomada de posição que transcende a esfera pessoal e íntima dos demais poemas e a partir do
qual a leitura do resto do livro poderá até certo ponto orientar-se. Foi por atitude, por
posicionamento consciente, portanto, que Odete Semedo optou por um livro bilíngüe179. Para os
guineenses que lerem Odete Semedo, ser-lhes-á fácil detectar laivos da sua origem mandjaca, em
pequenos pormenores espalhados em um ou outro poema. Não são casuais as referências, por
exemplo, à stera di n bañala (“[Re]unidos”, p. 66/67), que evoca um tipo de “pano de pente”
muito especial, resultado da junção de vários pedaços de outros panos, e que acaba sendo como
que o mostruário do conjunto das peças que uma mulher guarda na sua arca. Ela refere-se também
às histórias do pássaro “se n'há n'há e das serpentes do grande mar”, do folclore mandinga
(“Saudades”, p. 79) ou “aos passos de asalmas”, as almas defuntas (“Ansiedade”, p. 71). Sua
guineidade não aflora de modo ostensivo, mas faz parte integrante do seu ser, estando sobretudo
espelhada em seus poemas na língua guineense180.
É possível constatar, em quase todos os autores guineenses contemporâneos, a desenvoltura
com que escrevem em guineense e como essa língua faz parte integrante do seu universo, uma
presença clara ou subreptícia ao longo da maioria das obras. Tony Tcheka escolheu para abrir seu
primeiro livro individual (Noites de insónia na terra adormecida, 1996) uma série de dez poemas
que denominou “Kantu Kriol”. Odete Semedo decidiu-se, como vimos, por uma publicação
bilíngüe (Entre o ser e o amar, 1996), com poemas em português e em crioulo. Nas suas obras
posteriores (Histórias e passadas que ouvi contar, 2000a e 2000b; 2003a) e No fundo do canto,

179
Lembro aqui a posição do queniano Ngugi wa Thiong’o, bastante radical, argumentando que “uma cultura
específica não pode ser transmitida através de uma língua na sua universalidade, mas sim na sua particularidade
enquanto língua de uma comunidade específica com uma história específica”. A literatura e a oratura, prossegue
Thiong’o, “são os principais meios pelos quais uma língua particular transmite as imagens do mundo contidas na
cultura que ela carrega. [...] A língua carrega a cultura e a cultura carrega todo o corpo de valores pelos quais nós
nos apercebemos de nós mesmos e de nosso lugar no mundo. Ela é inseparável de nós que constituímos uma
comunidade de seres humanos com uma forma específica, uma história específica, uma relação específica com o
mundo. (THIONG’O, 1986, p. 15-16).
180
As dúvidas que Odete Semedo sente diante da decisão de poetar em português ou em crioulo não correspondem
só a uma questão da sua identidade individual, à expressão dos seus sentimentos. Um outro queniano, Ali A.
Mazrui, professor de estudos culturais globais na Universidade de Binghamton, vê uma desvantagem
fundamental da África em depender das línguas dos colonizadores europeus para o desenvolvimento das suas
culturas e da ciência. Para ele, é extremamente grave essa “deficiência linguístico-cultural” que acontece até
entre africanos do mesmo grupo lingüístico que não conseguem comunicar-se entre si nas suas línguas maternas,
como podem, por exemplo, os japoneses (MAZRUI, 2001). Como se vê, o debate em torno do assunto suscita
paixões e as posições são as mais diversas.
158

2003b), já procede de forma diferente, lançando mão com freqüência do guineense, assim como
Filinto de Barros em Kikia Matcho (1997) respinga seu romance com uma centena de termos em
crioulo, explicados no final em um glossário. O mesmo acontece com Abdulai Sila, nos seus três
romances (1994; 1995; 1997), sendo que somente o segundo contém um glossário.
A língua guineense é também onipresente na poesia em português de Félix Sigá (1996).
Muitas vezes camuflada, contribui para uma remodelação da língua de prestígio a partir de efeitos
originais e vivificantes. O poeta não só introduz na enunciação em português muitos termos e
expressões em crioulo, dando o tom de oralidade à fala das personagens, como emprega construções
daquele idioma nos enunciados em português. Ele recorre também a vocábulos não só do crioulo
como de algumas línguas étnicas, alterando com empréstimos escolhidos conscientemente à sintaxe
portuguesa culta. Assim, tocava palmas, cabelo tecido, cobou-o mal (insultou-o), contar passadas
(contar, passando adiante, notícias, acontecimentos ou “fofocas”), kulkar (vender na rua ou na feira)
são expressões imediatamente detectáveis pelos crioulófonos, mas de difícil compreensão para os
leitores exógenos. Félix Sigá também insere freqüentemente pequenas frases em crioulo de grande
efeito estilístico, assinalando uma mudança de registro, a passagem de um tema mais geral para
outro, mais diretamente ligado a si mesmo, ressaltando a origem social do sujeito.
Pegar teso (trabalhar duro), falar mantenha (cumprimentar), roncar (vangloriar-se, contar
vantagem), usar o soco de bas (usar pistolão), tomar o couro (ocupar um lugar de direção), fumar
uma ordem (dar uma ordem), apanhar castigo (ser castigado), rampar o terreno (nivelar), uma
situação de afronta (momento de dificuldade, de “foronta”, desgraça), branco coitado (europeu
pobre, sem prestígio) são expressões, entre muitas outras, encontradas nos romances A última
tragédia e Mistida, de Abdulai Sila, dentro de contextos fraseológicos do português culto. Esse
autor também usa com freqüência torneios sintáticos próprios da língua guineense, tais como
“um grande problema que era preciso pensar nele”, construção que ocorre várias vezes.
Abdulai Sila renunciou propositadamente, em seu terceiro romance, Mistida, a acrescentar
um glossário ao livro. É preciso estar a par do código da cultura guineense para alcançar o
significado de certas alusões: conhecer o código “moderno” – por exemplo o papel representado
pelos carros de marca Volvo (cf. notas 160 e 308); ou o significado da Cicer, a companhia nacional
de bebidas (uma fundação que data da época da guerra, quando Portugal teve que satisfazer certas
necessidades do grande contingente dos seus soldados) e uma das poucas tentativas industriais do
país independente, mas que acabou falhando; saber o que é um klandô (designativo dos bares na
época logo depois da libertação); decifrar o significado de um soco de baixo, enunciado em
português de um termo crioulo (suku di bas) relativo ao pistolão e/ou ao dinheiro pago
corruptamente para se alcançar algo da parte de um funcionário. E também é preciso dominar o
código “tradicional” para compreender referências aos djambakus, murus, yrans, aos poderes da
159

alma biafada, ao apoló (tortura em que se é amarrado pelos tornozelos, com as pernas para o ar),
ao kambletch (pedaços partidos de cabaça) e assim por diante.
Em todo o tecido textual há símbolos e situações que podem ser imediatamente
decodificados mas o recurso ao código usual em geral não causa espanto nem admiração, passa
praticamente desapercebido. É a transgressão a esse código que surte efeito.
Odete Semedo lança mão, a todo momento, de vocábulos da língua guineense, no seu livro
mais recente, No fundo do canto, e procede a uma re-ocupação da palavra e do seu conteúdo
semântico, recorrendo a neologismos plenos de intencionalidade, quando nomeia certos
personagens que entram na cena textual, fazendo desfilar, ao lado de um “Matutino” e de um
“Vespertino”, ou de um “Vivêncio” (SEMEDO, 2003b, p. 138, 140, 141), outras figuras paródicas
que dão ênfase e vivacidade ao contexto de crítica e sarcasmo que a autora pretende encenar: “o
Viviano de ontem / hoje Presentino / neto de nhu Prudêncio / e de nhara Conveniência / anda de
porta em porta / pronto a vender / palmo e meio / de trapo e trapaça / a quem mais der” (ib., p. 144).
O surgimento de um enunciado em uma outra língua (sobretudo na guineense) no meio de
um texto em português é sempre intencional e essa aparição é estilisticamente bem marcada,
patenteando sempre um momento de tensão no acontecer literário. Na prosa de Abdulai Sila e na
poesia de Félix Sigá, na minha opinião, encontram-se os melhores exemplos dessa propositada
inserção da língua materna no texto em português, num ato de criatividade e de liberdade,
sinalizando um posicionamento transgressor consciente e não apenas ilustrativos “guineismos”.
Além disso, o uso do crioulo nem sempre é de forma direta e às claras, mas sim detectável por
detrás de muitas estruturas frásicas em português, sendo uma das marcas estilísticas própria a esses
dois escritores que a manejam com maestria. Sem dúvida, o pleno gozo dessas pérolas estilísticas
está reservado aos que dominam ambas as línguas, restando irreveladas aos não crioulófonos,
ficando quando muito uma impressão de desconforto ou curiosidade diante de estruturas insólitas
que se pressentem propositais sem ser possível decodificá-las.
Ao utilizarem transgressoramente a língua oficial, enxertando-a com crioulismos e
elementos de outras línguas étnicas, subvertendo a sintaxe e emprestando-lhe um visual próprio, os
autores guineenses estão tomando uma postura política de rebelde independência, de clara
contestação e de distanciamento anticolonialista, nacionalizando o instrumento herdado, praticando
uma literatura menor, como entendem Gilles Deleuze e Félix Guattari (1977): uma produção
literária que subverte a língua “maior” que é a língua do dominador (e do segmento dominante). O
autor ou a autora comporta-se como ponta de lança de um proclamar coletivo de autodefinição e
auto-afirmação. Verifica-se uma orgulhosa postura que ressalta a diferença e que procura seu
próprio espaço, a voz movendo-se entre a terrritorialidade, a desterritorialização e uma
reterritorialização (DELEUZE; GUATTARI, 1977). O idioma oficial e elitista, a estética
160

legitimada são desmontados e desestabilizados para dar lugar a uma nova ordem, um novo
espaço inventivo e libertário.
Ana Mafalda Leite, estudando à luz das teorias pós-coloniais a literatura angolana, onde a
tematização e o questionamento da língua são recorrentes, ressalta que “o hibridismo lingüístico
foi uma das constantes mais significativas da textualidade africana em língua portuguesa”;
refere-se à língua do colonizador como “lugar de abrogação e de apropriação” (LEITE, 2003, p.
19), lembrando que o termo “abrogation” foi empregado pelos organizadores da coletânea de
ensaios The Empire Writes Back (ASHCROFT et al., 1989, p. 44) para indicar a “negação,
supressão, da normatividade lingüística, imposta pela metrópole colonial, e a apropriação da
língua em múltiplas vertentes, e sua textualização” (ib.).
Tropicalizado, canibalizado, deglutido e ruminado antropofagicamente, o português na
África se torna digestível, reterritorializado. Desmontada a rigidez canônica da “língua de
Camões” (metonímia irônica ou aberrante, costumeira e irrefletidamente empregada, evocando
exatamente o grande vate da expansão imperialista portuguesa), o autor se converte em filtro ou
plataforma, porta-voz da coletividade antes subalterna e silenciada. É de novo Caliban opondo-
se, pelo exercício da fala, a seu opressor. O espaço textual deixa de ser o lugar da enunciação de
um “eu” autoral para tornar-se a expressão de um “nós” coletivo, pulsante de sentido político e
de orgulhosa afirmação de sua diferença.

4.7 Guiné-Bissau: descolonização... e agora?

Consumada a independência, reconhecida a Guiné-Bissau como um Estado soberano, iniciou-se


a tarefa de também se consumar o Estado. Segundo Carlos Lopes, diferentemente da Europa, a
criação do Estado na Guiné-Bissau (como na África em geral) “não foi precedida pela criação de
uma nação” (LOPES, 1982, p. 53). Aqueles poucos indivíduos que tomaram as rédeas do país
depois das lutas libertárias tiveram a tarefa de “reunir um patrimônio territorial e de unificar, e
mesmo integrar, as populações do país assegurando uma orientação política comum” (ib., p. 53-
54). E Carlos Lopes prossegue, ressaltando ser essa uma situação que ocorre em quase todo o
continente africano: “Constituindo uma ‘unidade física’ sólida, pensa-se assim resolver os
problemas de integração das diferentes etnias” (ib., p. 54).
Entretanto, interesses individuais, pessoais – e não coletivos – orientaram a base do fazer
político. Ao lado da assimilação, processo de absorção física e cultural de um grupo pelo outro,
havia também a acomodação, uma posição estratégica de boa convivência. Novas relações de
poder se estabeleceram e resultaram em novas relações sociais, dissolvendo em parte a base da
conjugação interétnica que fez a força das lutas de libertação. Os princípios democráticos do
161

PAIGC (então mandatário do governo), que regeram ideologicamente o período de luta foram
sendo desprezados em favor de uma corrida pelo poder e foram muitos (e continuam) os
conflitos internos de interesse regidos por militantes de origens diversas (LOPES, ib., p. 73). Os
interesses políticos e econômicos se sobressaíam num real confronto de classes e, sobretudo,
entre o movimento de libertação nacional e uma pequena burguesia de comerciantes aliada aos
funcionários coloniais (ib., p. 75-76).
Essa classe dirigente está em grande parte imersa numa autocolonização prejudicial
aos interesses da soberania do país, enredado no neocolonialismo. Vimos que o que se
observa depois das independências dos países africanos são mecanismos que favorecem
determinadas elites dentro do Estado, de bases frágeis, o que explica os vários golpes de
Estado sucessivos em muitos países recém-independentes, que acabam por comprometer a
formação de estruturas que viabilizem o desenvolvimento dos mesmos. A Guiné-Bissau,
sobretudo desde o conflito de 1998/99, vive em sobressalto, sob constante ameaça de novo
dramático desequilíbrio, resultado de tensões internas baseadas na luta pelo poder. Os jornais,
que hoje em dia na Guiné-Bissau expressam com espantosa clareza e liberdade o estado de
insatisfação reinante, espelham a frágil estabilidade em que o país se encontra, congestionado
por lutas partidárias, na verdade entre grupos oriundos da mesma classe privilegiada da
oligarquia política. O queniano Ngugi wa Thiong’o, tanto em seu livro sobre a
“descolonização das mentes” como nos ensaios reunidos em Homecoming, insiste nesse triste
fato:

A independência não lhes trouxe a terra de volta. Eles continuam sem alimentos e sem
roupa. Mas agora há uma diferença. Antes da independência, as realidades básicas eram
clara e visivelmente delineadas: todos os conflitos eram reduzidos a duas polaridades –
branco significava saúde, poder e privilégio; negro, pobreza, trabalho e servidão.
“Expulsemos o homem branco”, gritavam os líderes nacionalistas, “e desaparecerá a
fundamental razão dos nossos problemas”. Desapareceu? Não exatamente! Os
camponeses e os operários continuam sendo só os trabalhadores das minas e os
carregadores, mas agora, são o que Aluko chamaria “o Branco Homem Negro”
(THIONG’O, 1972, p. 56)181.

Na Guiné-Bissau, as últimas décadas da colonização foram caracterizadas por dezessete


anos de luta política e onze anos de luta armada. A vitória contra as forças coloniais abriu
caminho para a realização do sonho de transformar o país numa nação em que a sociedade
descolonizada se modernizaria e se autogeriria, ingressando na “civilização” pelas portas da

181
Independence has not given them back their land. They are still without food or clothes. But now there is a
difference. Before independence basic realities were boldly and visibly delineated: all conflicts were reduced to
two polarities – white was wealth, power and privilege; black was poverty, labour and servitude. 'Remove the
white man’, cried the nationalist leaders, 'and the root cause of our troubles is gone.' Gone? Not exactly! The
peasants and workers are still the hewers and carriers, but this time, for what Aluko would call the 'black White
Man. A tradução é minha.
162

educação e da independência política e econômica. Aos poucos, os heterogêneos grupos étnicos


conheceram uma unidade, reunida em torno da causa nacional. A meta comum, isto é, a luta
contra o inimigo colonialista comum e a tarefa de conquistar a independência e construir um
Estado novo, estreitou os laços entre as etnias e as fez superar as divergências.
Caindo no caos devido tanto à herança colonial quanto ao desgoverno, à inoperância e à
corrupção, o país, trinta anos após a independência, ainda não se encontra capaz de caminhar pelos
próprios pés. Mas, apesar de ter tido seus limites determinados pela arbitrariedade das nações
colonizadoras e a inoperância dos governos nacionais, a Guiné-Bissau, na multiplicidade e na riqueza
de sua multiculturalidade, é, hoje em dia, uma unidade geopolítica que procura seu lugar no mundo
como um Estado-nação. A literatura participa dessa busca.
Limitei-me neste capítulo a uma breve referência ao amplo tópico da reação anticolonial
que, como também a resistência contra a escravidão, sempre acompanhou a pressão exercida
pelos dominadores. Os movimentos nacionalistas latino-americanos, tão nossos conhecidos, não
foram senão outra face dessa insatisfação e da auto-afirmação, um erguer-se contra a
dependência e o “entreguismo”, termo já quase esquecido mas tão em voga num passado não
muito longínquo. No Brasil, no campo da literatura, já data do Romantismo a oposição aos
modelos europeus importados, a procura de caminhos próprios de expressão. José de Alencar já
se sublevava, em 1872, conclamando os escritores a evitarem “cousa que pareça vinda em
conserva lá da outra banda, como a fruta que nos mandam em lata”, (ALENCAR, 1959, p. 701),
concluindo com saborosa ironia: “O povo que chupa o caju, manga, o cambucá e a jaboticaba,
pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra,
o damasco e a nêspera?” (ib., p. 702)182.
A Semana de Arte Moderna (1922) vai marcar de forma definitiva a virada não só
nacionalista, mas nativista, que definiu a maturidade literária brasileira. De forma irreverente e
carnavalizante, Oswald de Andrade defendeu a nacionalização da literatura na base de temas
autóctones e, com ele, seus companheiros desencadeadores do Modernismo batiam-se contra o
“passadismo” mimético e pleiteavam o “antropofagismo” (título da famosa revista-manifesto, de
1928). Não posso aqui, pelo menos de relance, deixar de lembrar o nome e a influência seminal
do brasileiro Mário de Andrade, o “papa do Modernismo”, seu marcante guia intelectual. Nos
estudos sociais da década de sessenta e seguintes, a já referida teoria da dependência procurou
caminhos alternativos para o florescimento do pensamento social latino-americano livre das
amarras do pensamento capitalista europeu e norte-americano. Apraz-me recordar, nesse contexto, o

182
A citação foi tirada do prefácio ao romance Sonhos d’Ouro, a partir da edição da obra completa de José de
Alencar (1829-1877), editada pela Editora Aguilar (1959). É interessante ler todo o prefácio, “Benção paterna”,
p. 691-702 do primeiro volume.
163

nome muitas vezes silenciado de Guerreiro Ramos (1915-1982), autor da original e frutífera teoria
da redução sociológica. Enfatizando a desafiante necessidade da formação de uma consciência
crítica das massas, Guerreiro Ramos procurou caminhos para impedir a transposição acrítica de
problemáticas (e de soluções) alheias à realidade local, combatendo a assimilação literal e passiva
dos produtos científicos importados183.
Vimos, também apenas rapidamente, ao longo deste capítulo, muitas expressões da
reação nos países africanos contra a imposição clara ou subreptícia dos valores das antigas
metrópoles. O colonialismo serve indiretamente de propulsor, provocando a reação anticolonial,
abrindo espaço para um confronto, um redimensionamento, uma reterritorialização. E no poder
do confronto dessa rebelião literária, lingüística e ideológica, diz Pires Laranjeira, “é que reside o
estatuto de liberdade”, da emancipação das amarras metropolitanas (LARANJEIRA, 1985, p.
10)184. Nesse sentido, a Guiné-Bissau nada mais é que um exemplo, no qual me detive, pondo
em evidência o posicionamento dos escritores, com sua postura transgressora, recuperando, pela
trama literária, seu território simbólico original.
Hoje em dia, é sobretudo na ampla rede dos estudos culturais que se tematiza
dialeticamente o confrontamento centro versus periferia. O “saber local” (Geertz), o “local da
cultura” (Bhabha), a recusa às idées reçues e aos estereótipos reducionistas do juízo de valor (Said),
a recuperação do subalterno (Spivak), a insistência na importância do locus da enunciação
(Mignolo), o direito à diferença (Derrida) e à alteridade, a construção simbólica das etnias e a
imaginação da nação (Barth, Gellner, Anderson) e, não por último, as relações entre a cultura e o
poder (Hall), são meadas de um mesmo complexo bordado que vou elaborando ao longo de
diferentes segmentos deste meu trabalho. Vou tratar, nos próximos três capítulos, de como a
literatura reflete a busca identitária e de seus reflexos na definição da nação guineense praticada
pelo discurso literário e de como esse discurso mesmo engendra a nação, narrando-a enquanto
unidade simbólica identificatória daquele povo.

183
Autor prolífero, sua obra mais conhecida é a A redução sociológica, publicada em 1958, com uma terceira edição
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1996.
184
Por não ter sido praticamente presente na Guiné-Bissau, não me referi ao movimento da Negritude, movimento
tão controverso, mas, de todo modo, também uma reação pós-colonial que assumiu o discurso da diferença e do
retorno aos valores e à estética africanas. Sobre a Negritude nos países africanos de língua portuguesa, cf.
LARANJEIRA, 1995b.

Você também pode gostar