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Copyright O 2002, by:
Rita Amaral

Pallas Editora — RJ
Editora
Cristina P. Warth

Coordenação Editorial:
Heloisa Brown

Capa
Renato Martins

Revisão
Maria do Rosário Marinho

EDUC — Editora da PUC-SP

Direção
Maria Eliza Mazzilh Pereira

Produção Editorial
Magali Oliveira Fernades

- Preparação e Revisão
Sonia Rangel

Editoração Eletrônica
Elaine Cristine Fernandes da Silva
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA REITORA NADIR GQUVÊA KFOURI- PUC-SP
Amaral, Rita
Xirêi O modo de crer e de viver no candomblé / Rita Amaral, — Rio de Janeiro :
Pallas ; São Paulo : EDUC, 2002.
119 p.; 23 cm
Bibliografia.

Originalmente apresentado como dissertação para obtenção do grau de mestre


— USP, 1992.
ISBN 85-283-0267-9 (Educ)
ISBN 85-347-0346-9 (Pallas)

1. Candomblé (Culto) 2. Cultos afro-brasileiros 1. Título.


CDD 299.60981

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INTRODUÇÃO
A CIDADE, OS ESTILOS DE VIDA E O CANDOMBIÉ / 15
Estilos de vida / 21

PARTE 1 - O POVO-DE-SANTO E SUA FESTA / 27

A preparação da festa / 34
Os custos da festa / 40
Os deuses entram em cena / 47

PARTE 1 — O ETHOS DO POVO-DE-SANTO / 57

Ser “do santo” e a valorização do corpo / 63


O corpo, a saúde e a noção de equilíbrio / 66
Sexualidade e sensualidade / 75

PARTE HI — ALÉM DOS MUROS DO TERREIRO / 93

CONCLUSÃO / 109

BIBLIOGRAFIA / 115
O ETHOS DO POVO-DE-SANTO

Analisando as religiões como sistemas culturais, Geertz (1978)


chama a atenção para o fato de que os simbolos sagrados funcio-
nam de modo a sintetizar o ethos de um povo. Esse ethos, segundo
o autor, constitui-se do “tom, o caráter, a qualidade da sua vida,
seu estilo e disposições morais e estéticas”! Ele inclui, também, a
visão de mundo desse povo (ou grupo, como é o caso do povo-de-
santo), entendida como o conjunto de valores que a compõem. Um
conjunto de valores semelhantes aqueles que Bourdieu aponta como
definidores de um estilo de vida distintivo de um grupo dentro de
uma sociedade mais ampla.

Na crença e na prática religiosa, o “ethos” de um grupo torna-


se intelectualmente razoável porque demonstra representar um
tipo de vida idealmente adaptado ao estado de coisas (...) Os sim-
bolos religiosos formulam a congruência básica entre um estilo
de vida particular e uma metafísica específica (implícita, no mais
das vezes) e, ao fazê-lo, sustentam cada uma delas com a auto-
ridade emprestada do outro. (Geertz, 1978, p. 104)

É Geertz, também, quem estabelece que as religiões forne-


cem as matrizes dos modelos de e para estar no mundo e indica
sua intertransponibilidade, estabelecendo, desse modo, “poderosas
e duradouras disposições e motivações nos indivíduos, através da

* Bateson define ethos como “o sistema de atitudes emocionais que comanda o valor
conferido pela comunidade a uma variedade de satisfações ou insatisfações que os
contextos da vida podem oferecer”. Refere-se ainda ao ethos como “o tom do com-
portamento adequado” e como um “conjunto definido de sentimentos em relação à
realidade” (1936, p. 220).
60 XIRÉL O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ
O ETHOS DO POVO-DE-SANTO 61
formulação de conceitos de uma ordem de existência
geral” (idem), teria tido um relacionamento homossexual com Ossaim, deus das
dando a essas concepções tal “aura de fatualidade”
que as disposi- folhas, que o raptara. Oxum abandona Logun-Edé com Iansã, uma
ções e motivações parecem especialmente realistas.
vez que Xangô não o aceita. iansá novamente abandona Logun-
No caso do candomblé, sendo os deuses semelhantes
aos Edé, e Ogum, apesar de sua truculência, termina de criá-lo. Ten-
humanos, não apenas na forma, mas também no
caráter, o que do se vestido de mulher para espiar a beleza de sua mãe no banho
inclui as virtudes e os defeitos €, conseguentemente,
suas reações (e, em alguns mitos, para roubar o segredo de Orunmilá, deus da
ante os acontecimentos (conforme se pode perceb
er através da adivinhação) Logun-Edé teria se convertido num deus bissexual,
narração dos vários episódios mitológicos); sendo
os deuses seme- como Oxumarê, Nanã, não suportando a feiúra de seu filho doen-
lhantes aos seus filhos, e, esses, semelhantes a seus pais
mitológicos, te, Obaluaiê, abandona-o à beira do mar. Iemanjá o encontra,
temos um caráter criador de disposições “duráveis”,
que acaba apieda-se e o cria. lemanjá, por outro lado, manteve relações
por gerar a matriz de um ethos-base do estilo de
vida distinto e incestuosas com seu filho, Aganju. Obaluaiê é um deus rancoroso e
distintivo do povo-de-santo, de modo bastante evident
e. vingativo, que tanto pode dar a saúde como a doença a seus filhos.
Os deuses do candomblé são extremamente human
izados, E assim por diante, sem falar de Exu, o mais amoral dos orixás,
no sentido de que suas emoções e atitudes, narradas
nos mitos, são para quem o bem e o mal são contextuais. Várias são as versões dos
absolutamente inteligíveis e compatíveis com as dos
seres humanos. mitos nas quais é possível perceber que os orixás têm sentimentos
Assim, o próprio Oxalá, criador do mundo, neglig
enciou uma im- humanos. E que, se são capazes de “erros”, também têm virtudes
portantíssima tarefa, embebedando-se durante sua
viagem à Ter- essenciais. Ossaim cura, do mesmo modo que Obaluaié. Iansã en-
ra, onde deveria espalhar o pó preto que criaria
a terra firme, caminha os mortos (egzns) a seu destino e produz os ventos e a
ficando sua incumbência a cargo de Odudua.
Ajalá, o deus que chuva que limpam o mundo. Oxóssi providencia a fartura das
faz as cabeças dos humanos cozinhando-as de barro,
também cos- frutas e das caças. Ogum criou a tecnologia que propiciou ao
tuma embriagar-se, criando, às vezes, cabeças
(oris) ruins por homem o domínio da natureza. Xangô é o senhor da justiça. Oxum
deixá-las cruas ou queimá-las, o que é a causa
dos problemas de rege o amor, a fertilidade e as riquezas. Assim, se os deuses são
muita gente aqui na terra. Ogum é um guerreiro,
lutador, deus do falíveis entre si, jamais desamparam o filho que cumpre suas obri-
ferro, que muitas vezes “perde a cabeça”, como
no episódio em gações rituais. Os orixás não julgam o caráter de seus filhos, pois
que voltou a Irê, sua cidade, durante uma
cerimônia religiosa esse é espelho do seu próprio.” Os orixás podem ser preguiçosos,
em que os habitantes eram obrigados ao silênci
o total. Ao ver que
ninguém lhe respondia as perguntas, degolou namoradores, pacientes, invejosos, impetuosos, amorosos ou vinga-
todos os habitantes,
acreditando não ter sido reconhecido por eles; tivos ao mesmo tempo. Mas, como os humanos, preferem a alegria.
quando percebeu o
engano, arrependeu-se e enfiou-se na terra, para É por isso que eles vêm ao mundo para dançar, comer, brincar no
só voltar quando
fosse chamado. Sua mulher, Iansã, apesar de corpo de seus filhos.
viver bem com ele,
pois os dois são guerreiros, não resistiu ao Baseado nessa concepção religiosa dos deuses, o candomblé
assédio de Xangô, seu
cunhado, e com ele partiu, apesar de Xangô tem uma ética particular. Ela é diferente da cristã e, às vezes,
ter duas outras mu-
lheres: Oxum e Obá. Oxum também “raj” pouco compreensível se não for analisada em seus próprios termos.
Xangô com Oxóssi, de
quem tem um filho — Logun-Edé — e com
Orunmilá, de quem * Ver os trabalhos de Lepine (1981), Binon-Cossard (1 971), Verger (1981) e Prandi
rouba parte do segredo do jogo de búzios. Oxóssi
, em alguns mitos, (1991). Esses autores estudaram a relação entre os arquétipos e as representações a
respeito dos filhos dos orixás.
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É uma ética que parte de pressupostos diferentes dos cristãos, por ber, amar, dançar. O mundo está aí para o homem, e deve ser
exemplo, sobre o que é a vida e como deve ser vivida. Os parâmetros aproveitado ao máximo, com a ajuda dos orixás e dos ebós. A vida
do bem e do mal são dados pela mitologia (orixás) e pelos ances- é festa e deve ser festejada. O único “pecado”, o único erro im-
trais, que regulam o modo como se deve viver e ser neste mundo e perdoável é não cultuar devidamente os orixás. É deixá-los com
se resolvem as diferenças e conflitos. E esse modo de ser do can- “fome” ou “sujos”, não sacrificando, não oferecendo comidas ou
domblé dialoga com a sociedade abrangente, urbana e imediatista. não realizando o ossé * (Prandi, 1991). É faltar às festas, impedin-
Ele não exige mais do que os fiéis podem dar. Ele compreende o do assim que seu orixá venha à terra dançar. No candomblé, como
bem e o mal de modo situacional: na festa, “a alegria é a prova dos nove”.
Essa visão de mundo, por sua vez é a matriz de um ethos
Quando alguém abraça o candomblé como religião, não é neces- peculiar, pautado pelos valores relacionados a ela, como a alegria,
sário que se opere mudança em sua maneira de se ver e estar no a beleza, a sensualidade e o dispêndio (elementos da Festa), ex-
mundo (..) pois diferentemente de outras religiões (..) o candom-
pressos principalmente no modo de falar, vestir, dançar, nos rela-
bié não rejeita o mundo e nem pretende mudá-lo, (...) As regras
cionamentos sexuais e de amizade do povo-de-santo. É Geertz
de conduta (...) são voltadas para a relação entre o fiel e seu san-
(1978), mais uma vez quem diz:
to, entre o fiel e seus parentes de santo, entre ele e a casa de can-
domblé. (..) O candomblé afirma o mundo, valoriza-o: muito
daquilo que é considerado ruim segundo outras religiões, como (...) a noção de que a religião ajusta as ações humanas a uma
dinheiro, prazeres (inclusive os da carne), sucesso, dominação, poder, ordem imaginada e projeta imagens da ordem cósmica no plano
para o candomblé é bom. (Prandi, 1991, p. 214). da experiência humana não é uma novidade. Todavia ela não é
também investigada e, em termos empíricos, sabemos muito pouco
sobre como é realizado esse milagre particular. Sabemos apenas
É claro que as concepções do candomblé são mescladas às
que ele é realizado anualmente, semanalmente, diariamente e,
concepções do catolicismo, no qual se sincretizou durante o perio-
para algumas pessoas, até a cada hora. (Geertz, 1978, p. 104)
do da escravidão no Brasil. A maioria dos adeptos dessa religião
não sabe dizer, por exemplo, o que acontece com o “espirito”
Tentemos, então, depois de passear pelos bastidores do can-
depois da morte, a não ser referindo-se ao julgamento e ao paraiso
domblé e pelo cotidiano do povo-de-santo, entender de que modo
cristãos ou à reencarnação nos moldes kardecistas. Alguns, contu-
é possível fazer uma análise desse assunto.
do, dizem que vai-se para o orum (céu), mas não sabem dizer
para que e nem atribuem esse fato a bons ou maus comportamen-
tos e/ou ações na vida terrena. A maioria acredita que
reencarnamos. Então, o que seriam os eguns? Os que não têm Ser “do santo” e a valorização do corpo
respostas para essas perguntas (ou não precisam delas) foram unã-
nimes: “Quem reencarna? Você reencarnou? Ninguém reencarna, No candomblé, a noção de pessoa é construída lentamente,
Morreu, acabow” (Edi de Oxumarê). acompanhando o processo iniciático. Como é ele que insere o
É por isso que no candomblé se deve ser feliz, seja como for,
custe o que custar. Hoje e neste mundo. É tudo o que realmente
importa. Realização profissional, amorosa e saúde para comer, be-
* Ossé: limpeza semanal ou quinzenal dos assentamentos.
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indivíduo na vida cotidiana do terreiro, pode-se dizer que a inicia- É, portanto, como se pode notar, principalmente no corpo e nas
ção é responsável, não só pela inserção da pessoa iniciada nas dimensões a ele relacionadas que se inscreve a identidade dos
dimensões religiosas propriamente ditas, mas também pelo apren- “filhos-de-santo”.
dizado e pela aquisição de uma visão de mundo e um modo de ser Sendo assim, os valores básicos na vida social do povo-de-
cujos valores são fundamentados em outros valores, os religiosos, santo estão associados e/ou se referem ao corpo e à totalidade de
que definem o povo-de-santo como um grupo que se distingue por sua expressão, como saúde/doença, sexualidade, sensualidade, can-
seu estilo de vida. to, dança, fala, gestos, etc., constituindo um conjunto de represen-
Sendo uma religião de possessão, a iniciação ainda insere o tações que superam as meramente biológicas. E se o corpo é o
adepto num sistema de representações específico, já que, enquanto meio (canal) usado pelos orixás para sua manifestação, não se
outras religiões desprezam o corpo, vendo-o como a “morada pode esquecer que ele é também o meio de expressão da própria
do
pecado” e responsável pelas “tentações da carne”, o candomblé vida humana e que revela as marcas da vida social numa dada

o corpo como o mediador da vida, fonte de prazer e meio pelo cultura. Portanto, o corpo da filha-de-santo é marcado tanto por
qual os deuses se expressam, pelo qual vêm à terra para brincar sua posição dentro da cultura quanto pela presença dos deuses em
e
dançar, sendo, portanto, extremamente valorizado. O corpo seu corpo. Tão importante é o corpo nas percepções do povo-de-
do
iniciado no candomblé é marcado na iniciação e, desse modo, santo, que um dos elementos que permitem ao pai ou mãe-de-
jamais perde o contato com seu deus, pois sempre haverá em santo identificarem o orixá de alguém é, justamente, a fisionomia.
seu
peito, costas, braços, solas dos pés, as marcas dos cortes rituais Gente “comprida” e magra é tida como de Oxumarê (talvez por
(aberês), também, o sangue do sacrifício ritual “misturando” serem características de uma cobra, esguia e comprida); pessoas
seu
sangue ao do animal sacrificado e aos pós-sagrados, fazendo loiras e de pele muito clara são tidas como filhas de Oxalá (porque
de
seu corpo um corpo ainda mais singular, pois cada iniciado Oxalá gosta de tudo muito branco); gente muito gorda é de Xangô
tem
especificidades em sua “feitura”, decorrentes da “qualidade” (essa associação é feita pela relação entre gordura e riqueza, mui-
de
cada orixá e de cada “nação”. Além disso, a cabeça do to comum na África); gente forte e musculosa é de Ogum (o deus
iaô é
raspada durante a cerimônia de iniciação e pintada com os da guerra, da luta e do ferro e que precisa, portanto, ser forte);
pig-
mentos sagrados. Durante o periodo de queié (de resguardo) o gente muito bonita é de Oxum ou de Logun-Edé (a deusa da
iaô
submete-se a uma série de interdições que se referem especia beleza e seu filho, tido como “príncipe”) e assim por diante. É
l-
mente ao corpo, dentre as quais se destaca o impedimento claro que apenas as características físicas não dão conta da extre-
de
manter relações sexuais durante três meses, pelo menos.” ma diversidade dos filhos e dos orixás e, assim, a personalidade do
O Jaó,
durante o período de quelê, dorme no chão, numa esteira, come indivíduo e o jogo de búzios é que são decisivos na atribuição de
com as mãos, senta apenas no chão e não pode ver-se no espelho um orixá a uma pessoa. Mas o corpo conta muito. Certas doenças,
.
inclusive, também são atribuídas à influência dos orixás no corpo
de seus filhos.
* Kiauss Vianna (1990),a propósito da beleza da dança de izôs, À visão de mundo do povo-de-santo é, portanto, marcada
após o recolhimento
de 17 dias em absoluto isolamento, observa: “(...) essas meninas
acabam conhecendo pela valorização e pelo uso do corpo de modo diferenciado, dada
profundamente o próprio corpo, as reações do corpo, a pessoa
mais idiota acaba se pela perspectiva religiosa que nela se imprime, marcando a estru-
conhecendo numa situação dessas. Então era uma beleza
quando abriam a porta e
vinha aquela pessoa, era uma coisa iluminada, uma musa, tura física individual (através da relação entre corpo e cosmologia,
linda” (p. 30).
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O ETHOS DO POVO-DE-SANTO 67
corpo e influência de cada orixá), de modo que a mente, o corpo
A diversidade cultural e social em São Paulo, pelo menos, é
c a coletividade formam uma “totalidade”. Portanto, a construção
muito frequente. Nos terreiros paulistas encontram-se pessoas de
social da noção de pessoa, no candomblé, expressa, ao mesmo
todas as classes sociais, etnias, procedências religiosas, regiões, na-
tempo, um processo de individuação e um de integração social.
É cionalidades. Minha convivência com o candomblé paulista mos-
claro que as relações sociais do povo-de-santo não são reproduções
puras e simples do modo de pensar religioso, pois elas se dão trou, entretanto, conflitos e problemas gerados pela inserção de
também dentro de referências globais da sociedade, mas as articu- individuos de classe e nível de instrução superiores nos terreiros
lações criadas pelos padrões desse ethos religioso geram a singula- pobres, como também de brancos em terreiros de negros e vice-
ridade do sistema de relações sociais e do discurso desse grupo. versa (Amaral e Silva, 1998), especialmente no que diz respeito ao
“serviço pesado” do terreiro, e que são superados, não pelos laços
de parentesco “no santo” (parece nem se cogitar do grau de pa-
O corpo, a saúde e a noção de equilíbrio rentesco durante os conflitos), mas, sim, pelo patrimônio simbólico
comum, que são os orixás. Esse patrimônio, e tudo que se relaciona
Como vimos até aqui, a condição principal para a inserção a ele, parece ser o principal “cimento” das relações sociais dentro
de uma pessoa na categoria “povo-de-santo” é que ela tenha se do candomblé. Mesmo porque, na grande metrópole, a noção de
submetido à iniciação, passando a fazer parte de um dado terreiro. família vem se tornando cada vez mais exclusiva e menos valori-
À organização social e a hierarquia dos terreiros estão intimamen- zada, referindo-se em geral apenas à família nuclear.
te relacionadas à posição dos indivíduos nesse grupo, a que se dá o O fato de grupos de indivíduos partilharem uma mesma
nome de “familia-de-santo”. origem divina, um deusº (portanto uma “essência”, um jeito de ser
Segundo Lima (1977), os laços adquiridos na iniciação são diferente desde a origem, do de outros homens), a experiência do
responsáveis pela rede de relacionamentos e pelos referenciais transe, os modos de comer, beber, vestir, de seguir preceitos idên-
sócio-religiosos. São também responsáveis pela imersão dos mem- ticos, passar pelos momentos difíceis da iniciação e tudo de sacrifi-
bros de um certo terreiro no conjunto do povo-de-santo e, conse- cio que ela implica, parece criar, nos filhos-de-santo, uma espécie
quentemente, por seu “enquadramento” social mais amplo. Esses de sentimento de solidariedade que é mais significativo do que os
laços supõem, também, direitos e deveres, que Lima entende como laços de parentesco religioso. A cumplicidade que verifiquei entre
explicativos da minimização das diferenças sociais, de procedên- os participantes de um mesmo “barco” é muito diferente da rela-
cia ou etnia que possam, eventualmente, existir no terreiro. Barros ção com os demais irmãos da famiília-de-santo. E a afinidade sen-
e Leão Teixeira, estudando terreiros no Rio de Janeiro, concordam tida por pessoas filhas de um mesmo orixá é bem maior do que a
com Lima e notam serem os laços de parentesco religioso que: que têm com relação aos filhos de outros orixás. Sem muito a ver,
propriamente, com o fato de serem filhas de um mesmo pai ou
(..) permitem a convivência de pessoas de posição social e ní- mãe-de-santo. Duas iaôs que compartilham horas e horas na cozi-
veis de instrução diversificados. A iniciação faz com que cs par-
nha, enquanto preparam as comidas do santo, depenam frangos,
ticipantes de um grupo de culto se tratem como “irmãos”, “tios”,
“sobrinhos”, “filhos” etc, Isto quer dizer que partilham de uma
“família”, opiniões e rituais; melhor dizendo, possuem bens sim-
bólicos comuns. (Barros e Leão Teixeira 1989, p. 41). * No monoteismo não existe essa possibilidade,já que todos os homens têm a mesma
origem, como, por exemplo, Adão é Eva no cristianismo, judaismo, etc.
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limpam a casa-de-santo, fumam escondidas (uma vigia enquanto a usa, se gasta, se repõe, se acumula. Axé é origem, é a raiz que
outra fuma, para que o pai-de-santo não veja), que dividem vem dos antepassados (...). Axé se ganha e se perde.(...) é ter legi-
a experiência da vida no candomblé, não só nos momentos de timidade junto ao povo-de-santo. (Prandi, 1991, pp. 1083-104).
rituais, mas também no dia-a-dia, criam, sem dúvida, fortes laços
afetivos mas que não se ligam, necessariamente, à noção de paren- O equilíbrio, para o povo-de-santo, é a harmonização desses
tesco religioso. vários “axés”, É a harmonia da relação entre os elementos
De todo modo, é inegável que o pertencimento a um terreiro constitutivos da vida humana, tanto individual quanto social. É
de candomblé gera todo um sistema de relações que proporciona poder gozar a plenitude da vida, isto é, ter saúde física, mental,
o controle dos membros entre si, embora isso não seja regra abso- emocional e também “saúde social”, traduzida pelo bem-estar,
luta. Digo isto porque a noção de coletividade é bastante impor- bem-viver. A falta de axé caracteriza a doença, o desemprego, a
tante para entendermos a noção de equilíbrio e desequilíbrio (e falta de amor, que são entendidos como desordem, como anti-
assim, também, de saúde e doença), fundamentais ao entendimen- naturais, como desequilíbrio, seja de ordem biológica ou em qual-
to do estilo de vida do povo-de-santo. quer domínio da vida social.
Uma das maneiras de percebermos quanto se valoriza o O povo-de-santo acredita que quando os orixás escolhem
corpo no candomblé, e sua importância para a noção de equili- alguém como seu “filho” imprimem nele algo de sua “essência
brio, é analisarmos, a partir de sua lógica religiosa, a perspectiva divina”, É o que permite considerar, como Barros e Leão Teixeira
religiosa da saúde. É também um aspecto importante, porque é em (1989, p. 41) que, no candomblé, doentes e doenças são “catego-
busca de solução para doenças, físicas ou psicológicas, que muita rias sociais explicadas de acordo com a visão de mundo do can-
gente procura o candomblé, seja para consultas ao jogo de búzios domblé, variando, então, obviamente, tanto doenças quanto doen-
(ou aos caboclos, no caso dos terreiros que os cultuam) e, conse- tes”. Assim, as etiologias e os diagnósticos subsequentes são
quente, realização dos ebós, seja para iniciação (especialmente nos
indissociados da cosmologia e do pensamento mágico-religioso, re-
casos mais agudos). fletindo ainda o conjunto das relações sociais e os princípios bási-
A noção de equilíbrio entre o espírito, o corpo e a vida social
cos dessa visão de mundo.
está ligada, fundamentalmente, à noção de axé O axé pode ser
A noção de equilíbrio é, desde a realização de um simples
definido como força vital, invisível, mágica, sagrada, que todo o
cbó até a iniciação, associada à idéia de saúde. A valorização do
ser, coisa viva e principalmente o orixá possui. Axé é energia e,
equilíbrio e da ordem é perceptível na exigência de que os ani-
sendo assim, as forças da natureza são axé. Mas ele é ainda mais
mais sacrificados em ebós ou na iniciação sejam perfeitos (sem
do que isso:
doenças ou defeitos físicos). A busca do equilíbrio físico e espiri-
tual surge, então, em uma de suas primeiras representações no
No candomblé a palavra axé tem muitos significados. Axé é força
processo iniciático.
vital, energia, princípio da vida, força sagrada dos orixás. Axé
é o nome que se dá às partes dos animais que contêm essas Para o povo-de-santo, na maior parte dos casos, as doenças
forças da natureza viva, que também estão nas folhas, semen- são resultado da “influência do orixá não satisfeito” sobre a pes-
tes e nos frutos sagrados. Axé é bênção, cumprimento, votos de soa, da necessidade de equilibrar as forças do homem e seu ori
boa-sorte e sinônimo de Amém. Axé é poder. (...) Axé é carisma; (cabeça) e a força do orixá que o deseja possuir. Quando essas
é sabedoria nas coisas-do-santo, é senioridade. Axé se tem, se forças não estão perfeitamente equilibradas, a pessoa adoece. À
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doença (fisica ou psíquica) não é vista, portanto, como natural. É “Fazer a cabeça” ou “fazer o santo” significa, muitas vezes,
desequilíbrio. E o povo-de-santo acredita que o equilibrio só pode para quem se inicia, a possibilidade de se redescobrir como pes-
ser recuperado depois de feitas as obrigações rituais que recom- Soa, ao mesmo tempo em que estabelece vínculos religiosos e so-
ponham formalmente (e com isso equilibrem) a relação entre a ciais permanentes. A cabeça é tão importante que recebe sacrifíci-
pessoa e seu orixá. os antes do próprio orixá, no bori, ritual que visa estabelecer um
O indivíduo recebe, desse modo, a influência dos orixás, tanto primeiro equilíbrio da pessoa consigo mesma para que o orixá
no seu corpo quanto no seu espírito, idéia fortemente associada à possa incorporá-la sem problemas.
personalidade individual, que é vista como derivada da do orixá. Apesar da primazia da cabeça, todo o corpo é importante,
Cada orixá é entendido como parte de um dos quatro ele- como representante do universo simbólico religioso. A frente do
mentos da natureza: água, fogo, terra e ar. São ainda concebidos corpo é relacionada ao futuro; a parte posterior, ao passado. As
como masculinos, femininos ou nçjf (quando são, ao mesmo tempo pernas associam-se aos ancestrais. O lado direito do corpo é consi-
ou alternadamente, masculinos e femininos). Cada orixá relacio- derado masculino; o esquerdo, feminino. Os pés são considerados
na-se ainda a fenômenos meteorológicos, cores, formas, dias da representantes do corpo (como entre os chineses) e devem sempre
semana, animais, folhas, plantas, minerais, comidas, etc. Assim, os estar em contato com o chão, captando axé da terra. As mãos são
orixás podem ser pensados como conteúdos que, através da rela- tidas como porta de entrada e saída do axé dos orixás incorpora-
ção com suas diferentes formas, estabelecem um arquétipo que dos: têm, portanto, um papel importante nos rituais, pois determi-
modela e cria padrões de temperamento e de comportamento. nados gestos são essenciais no cotidiano das relações sociais (como
Como os signos do zodíaco, para forçar uma comparação. no caso das bênçãos, que já vimos). O toque das mãos sobre o
Nessa concepção, o corpo do indivíduo também está relaciona- corpo de alguém geralmente é ritualizado, exprimindo diferenças
do ao orixá que o rege e, por extensão, a um dos elementos naturais e no síafus e no grupo de iniciação (Barros e Leão Teixeira, 1989).
às demais dimensões a ele associadas. O corpo é visto como uma Isso se expressa, ainda, no fato de a mãe ou o pai-de-santo chama-
manifestação do orixá. E apesar de ser pensado como um verdadeiro rem os honorários que recebem por seus serviços religiosos de
“microcosmo”, perfeitamente articulado, certas partes do corpo são “mão-de-chão” ou simplesmente de “mão”.
vistas como fundamentais para o equilíbrio da totalidade. A concepção dos órgãos sexuais como fonte de prazer, por
A cabeça (or), por exemplo, é privilegiada, porque direta- sua parte:
mente associada aos orixás. A “feitura” tem como fundamento
principal a busca do equilibrio dos elementos de que é feita a (...) viabiliza e legitima variadas expressões no âmbito do povo-
cabeça, a fim de fortalecer a identidade da pessoa; é “refazer”, na de-santo, já que o modelo mítico comporta uma multiplicidade
terra, o ori modelado no orun (além). É na cabeça que o orixá é de papéis (..) O órgão sexual masculino — “okani” — e o femi-
“fixado” na “feitura” e é nela que repousa a marca do pai ou nino — “iamapô” são complementares, tanto quanto os papéis
mãe-de-santo, a “mão”. Com a morte do iniciado, é preciso “abrir” sexuais a eles atribuídos. [Mas], as noções de masculino e fe-
o oxoS, para que o orixá saia; ao morrer o pai ou a mãe-de-santo, minino sofrem processo de reelaboração ao nível simbólico que
podem não corresponder às representações que delas faz, em
é preciso “tirar sua mão” (cortar os vínculos) da cabeça.
geral, o mundo ocidental de tradição judaico cristã. A valori-
zação da sexualidade se encontra expressa no aspecto lúdico
é Oxo: centro da cabeça, por onde entra e sai o orixá.
das atividades sexuais; “dar comida a iamap6”, ou “dar de comer
72 XIRÉL O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ O ETHOS DO POVO-DE-SANTO 13

a okani” são expressões empregadas indiferentemente em rela- Como se vê, o corpo representa, no candomblé, um eixo de
ção a qualquer das identidades e papéis sexuais legitimados. forças que devem estar (e se não estão, devem ser postas) em
(Barros e Leão Teixeira, 1989, p. 45) equilíbrio. A pessoa pode ser pensada, portanto, como resultado do
equilíbrio das diversas partes do corpo e também do equilíbrio
Cada parte do corpo é também regida por um orixá e o entre o mundo material e o mundo dos orixás. Pode-se dizer que o
sistema classificatório organizado por Barros e Leão Teixeira (e indivíduo é a imagem do meio religioso em que vive. Os mitos e
que encontra, evidentemente, diferenças de terreiro para terreiro, ritos dramatizados nas diferentes liturgias criam a possibilidade de
constituindo apenas um “esquema geral” da regência dos orixás reinterpretações, em dimensões diferentes da vida do povo-de-
sobre o corpo) pode ser apresentado da seguinte maneira: santo, dos códigos inscritos nos corpos dos que vivem o candomblé
As doenças de pele são a marca de Obaluaiê, e também as como religião e como estilo de vida.
epidemias como varíola, rubéola, coqueluche, tuberculose, saram- O desequilíbrio é visto, em geral, como consegiiência da
po, etc. O vitiligo é atribuído a Oxumarê e a erisipela, a Nanã. As infração aos interditos religiosos, como resultado de feitiços e en-
doenças femininas, problemas menstruais, infertilidade, abortos e costos ou do descontentamento dos orixás, e só pode ser resolvido
outras do mesmo tipo são atribuídos a Oxum e Iemanjá. A impo- pelo pai ou pela mãe-de-santo que, além de indicarem as soluções
tência e a infertilidade masculinas são ligadas a Exu, Xangô e e “sanções”, de acordo com o caso e sua gravidade, estipulam a
Oxalá. Os distúrbios respiratórios e problemas de visão são in- realização de rituais de purificação e reintegração para aqueles
fluência de lansã e de Oxum, respectivamente (por Iansã ser a que foram atingidos pelo desequilíbrio individual e que, através
deusa dos ventos e Oxum a protetora dos videntes e dos que jogam dele, ameaçam o equilíbrio coletivo. Não há dúvida de que todos
búzios, os “olhadores”, apenas para dar um exemplo de como são conhecem e admitem a ação de vírus, bactérias, micróbios, tenta-
feitas as associações). ção, inflação, recessão na vida das pessoas. Mas sua influência
A loucura e os demais problemas emocionais são atribuídos direta na vida de uma pessoa iniciada é justificada pela debilitação
“sobretudo a Oxóssi e Oxalá e, às vezes, a Iemanjá, a “dona das do axé, geralmente causada pela presença de eguns (espíritos dos
cabeças”. As doenças de fígado, vesícula, úlceras e enxaquecas são mortos), com os quais os orixás não se compatibilizam, ou pela
as marcas de Logun -Edé. A magreza excessiva também, A obesida- “quebra” de tabus religiosos. Para fortalecer o axé, os pais e as
de é a marca de Xangô. Os ferimentos e cortes e os acidentes mães-de-santo prescrevem, além de chós, uma série de ungientos,
automobilisticos e suas consequências são atribuídos a Ogum. Quei- infusões, banhos, chás feitos com ervas, sementes ou frutas escolhi-
maduras são responsabilidade de Xangô e de Exu. As doenças do das de acordo com sua relação com o sistema classificatório das
aparelho circulatório são ligadas a Oxalá, do mesmo modo que os doenças e os orixás que as determinam ou regem.
problemas nos ossos, A Nanã, Iemanjá e Oxalá, também estão Esse procedimento gera uma pauta de consumo específica
associados inchaços, artrites e artroses. Os distúrbios renais e os do povo-de-santo, no que se refere à saúde. Preferem-se as ma-
reumatismos também se relacionam a Oxalá e Nanã, no último gias, os tratamentos naturais, as ervas, a homeopatia, os passes, os
caso numa clara alusão à influência da velhice desses orixás sobre cristais, as benzeduras. As ervas mais usadas pelo povo-de-santo
e o corpo de seu filho. Recentemente, a AIDS tem sido atribuida podem ser encontradas secas ou frescas, ou ainda na forma de
tanto a Obaluaiê quanto a Ossaim; no caso desse último, talvez por defumadores ou garrafadas nas lojas que vendem artigos religiosos
causa da associação entre esse orixá e a homossexualidade. para candomblé e umbanda. Algumas podem ser encontradas tam-
Fá XIRÉL O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ O ETHOS DO POVO-DE-SANTO 15

bém nas feiras livres. À procura por elas em suas diferentes formas Sexualidade e sensualidade
é tão grande que o jornal O Estado de 8. Paulo publicou, em 1990,
no caderno de Economia & Negócios, matéria afirmando que o As três dimensões do candomblé vistas até aqui, ou seja, a
mercado desses artigos movimenta cerca de US$ 500 milhões ética da “felicidade urgente” (e a negação do pecado), a noção de
anuais, ocultos na economia informal em sua maior parte. que o elemento fundamental para que essa felicidade seja atingida
Essa “pauta de consumo” é gerada em partie no terreiro é o equilíbrio (entre o corpo e o espírito, o indivíduo e a coletivi-
(pela demanda religiosa) e em parte para o terreiro, pelas fábricas dade) entre a pessoa e o orixá, antes de qualquer outra relação, e
que criam uma linha de produtos que são oferecidos nas lojas de a extrema valorização do corpo (como meio de expressão dos
artigos religiosos. Isso, em alguns casos, gera a prática da orixás, não apenas através do transe, mas da própria vivência
“automedicação” do povo-de-santo, que compra os “remédios” desse corpo socialmente), resultam, para o povo-de-santo, na
sem “receita” da mãe-de-santo ou das entidades. A fábrica Iemanjá, vivência singular de sua sexualidade, percebida de modo peculiar
de Minas Gerais, produz mensalmente cinco toneladas de artigos e que apresenta “padrões” de relacionamentos típicos desse grupo.
que são distribuidos pelo Brasil, como os sabonetes de nomes signi- Pelo menos no que diz respeito às suas representações sobre esse
ficativos como Vence-Demanda, Abre-Caminho-do-Amor ou Des- assunto.
mancha-Tudo, todos à base de ervas sagradas. Com elas são feitos O modo fácil como o candomblé aceita a vivência das se-
ainda defumadores como o Chama-Freguês, Chama-Dinheiro e xualidades humanas (sejam quais forem) demonstra que o mais
Quebra-Demanda, entre outros. Segundo o dono da fábrica lemanjá importante para que o ser humano viva bem é que possa haver
(e da Drogaria e Flora São Jorge, sua distribuidora), “todas as também um equilibrio entre a cabeça e o corpo e, consegiiente-
fórmulas seguem os ensinamentos da religião”, mente, entre o sexo biológico e o sexo social dos iniciados. Ou
Como se vê, o povo-de-santo tem uma pauta de consumo
entre os dois pólos (masculino e feminino) da personalidade (ou
específica no que diz respeito tanto à sua saúde física como espiri-
ainda entre o que se é e o que se deseja ser) transpostos para o
tual, que é baseada na experiência religiosa e nos princípios
plano “do santo”. Desse modo, uma mulher, filha de orixá aborô
cosmológicos que ordenam a natureza segundo sua visão de mundo.
(masculino) pode (se quiser) justificar seu desejo por outras mu-
Nesse processo, a recuperação do equilibrio dos axés influencia e
lheres transferindo-o para o santo. No candomblé não se compre-
é influenciada pelos costumes mais abrangentes, o que encontra
ende esse desejo como um “desequilíbrio” da sexualidade, mas
expressão no fato de ser possível tomar um bom banho com o
um outro nível de expressão dela.
sabonete Desmancha-Tudo, limpando dessa forma o corpo da sujei-
É possível dizer, então, que o povo-de-santo vive sua sexua-
ra e das bactérias e o espírito de eventuais influências negativas.
lidade como a reconciliação dos desejos que culturalmente estão
A ausência aos rituais e às festas também é vista como uma
“separados”, tomando para si a liberdade e o poder inerentes às
espécie de quebra do equilíbrio, que pode abalar a organização
classificações e reclassificações, pois, para esse grupo, as diferentes
social, já que priva o terreiro, não apenas do axé do orixá da
combinações daquilo que estou chamando de “reconciliação dos
pessoa e do seu próprio, mas, especialmente, do trabalho, essencial
desejos” fornece a matriz para a construção e classificação
para o bom andamento das coisas e para o prestígio do terreiro no
dos gêneros, que resultam em cinco, em vez dos dois culturalmen-
âmbito da comunidade do povo-de-santo.
te reconhecidos,
76 XIRÉ! O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ O ETHOS DO POVO-DE-SANTO 77
No candomblé, a pessoa pode ser homem, mulher, adé À pessoa que se afina no culto é amoral. Tende a ser amoral,
(homossexual masculino), monokó (homossexual feminina) ou porque senão ela não agúenta ficar. isso em São Paulo, porque
“folha”, “gilete” (bissexual), e todos esses papéis sexuais são vivi- normalmente o cara (que é de candomblé) é viado, a mulher tem
dos legitimamente. milhões de vínculos afetivos, tem mulher, tem quinhentos homens
(..) via de regra, são pessoas assim, de uma forma ou de outra
Folha é porque tem dois lados. Usa os dois lados. Dá e come estão sempre à margem de alguma coisa, Ou economicamente
Homem e mulher Gosta de tudo. Pega tudo. Esses... essas pes- ou quanto ao estilo de vida. (Carlos de Oxum, pai-de-santo)
soas, elas criam problema, às vezes, Porque gosta de tudo. Mas
se comporiando aqui, é o que interessa. Gnayá de lansã). Os orixás também transavam entre eles. Oxóssi, Ossaim, Ogum,
Logun... femanjá... É normal, (Jorge de Xangô, ogã).
Não apenas do ponto de vista do cihos festivo-religioso, pen-
sado como transgressão ritualizada e orgiasmo, mas também do Evidentemente, também há um discurso moralista no can-
ponto de vista do consumo simbólico, o estilo de vida do povo-de- domblé, mas é minoritário e mesmo aqueles que o fazem vêem-se
santo implica representações específicas sobre a sexualidade. Como na contingência de conviver com a ética peculiar da religião, não
na Festa das sociedades “simples”, o sexo, para esse grupo é livre sendo possível excluir pessoas por razões morais, uma vez que, no
de padrões e regras (exceto nas ocasiões rituais, contrariamente ao limite, é a vontade dos orixás (expressa no jogo de búzios ou em
caso de tais sociedades, quando se torna tabu fortíssimo, cuja que- acontecimentos considerados significativos) que decide quem en-
bra é punida com rigor), os desejos são reconciliados com sua tra ou sai de um terreiro.
satisfação, todas as práticas são tornadas legítimas, sejam quais
forem, mesmo por que, como já vimos, todas elas encontram res- Eu não gosto [de adés/, principalmente desses debochados, que
paldo nos mitos dos orixás. vêm com deboche na casa. Eu não gosto desses atacados (..). Agora,
na ininha casa existe dois filhos que são, mas são pessoas com-
Também em termos do consumo simbólico, o sexo é “ofe-
portadas; eles não vão procurar sexo dentro do candomblé. E
recido” com mais opções, justamente por essa legitimação dos
geralmente, 90% de muitos candomblés esses... são chamados adés,
cinco papéis possíveis. Desse modo, homens podem se relacionar
são homossexuais — vão no candomblé pra procurar sexo. Pra
sem culpa com outros homens e mulheres; as mulheres podem
achar rapazinhos. Eles vão assim. Existe isso. (Carlos de Oxóssi)
fazê-lo com outras mulheres e homens; podem ser preferidas as
relações homossexuais exclusivamente ou, ainda, transitar tem- As identidades sexuais (e assim os papéis sexuais) inscre-
porariamente pelas várias categorias, uma vez que nos próprios vem-se, evidentemente, tanto no domínio social quanto no cultu-
mitos dos orixás tais relacionamentos encontram correspondência ral, sendo construídas por valores próprios do candomblé, mescla-
e explicação. dos aos valores da sociedade na qual esses grupos religiosos estão
mergulhados. Essas representações sobre a sexualidade, portanto,
não são um sistema simbólico independente. Existe sempre uma
* Ouvi, no candomblé paulista, a expressão “folha” referindo-se a indivíduos relação com as idéias dominantes sobre esse assunto e que interfe-
bissexuais. Maria Lina Leão Teixeira (1986) refere-se a esse termo, também usado
re na sua elaboração. As representações sobre a sexualidade e os
no candomblé carioca, como significando majoritariamente homossexuais masculi-
nos, adés. papéis sexuais ecoam também o discurso hegemônico da socieda-
78 XIRÉI O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ O ETHOS DO POVO-DE-SANTO 19

de brasileira. Essas articulações resultam num discurso próprio e Filho), que tentava separar Maria do Carmo de seu namorado
num sistema singular de relações sociais, conforme a situação des- (Toni Ramos), diziam: “Esse cara é um adezão. Ele gosta é do
se grupo em correspondência com os demais grupos, religiosos ou Edu”.
não (Fry, 1982). Essa classificação das personalidades em função dos orixás
A recorrência do tema da sexualidade nos mitos age como que as regem domina todas as relações do povo-de-santo. Cada
elemento básico na construção de identidades sexuais entre o povo- orixá determina qualidades e defeitos morais em seus filhos, do
de-santo. Os modelos de relacionamento e de expressão da sexua- mesmo modo que o faz com o corpo. Assim, as pessoas filhas
lidade são introjetados durante o longo processo iniciático, que de Exu são tidas como perigosas, malandras, encrenqueiras; as de
implica a convivência cotidiana com o terreiro. Isso também acon- Ogum, como conquistadoras, trabalhadoras e briguentas; as
tece através da experiência e da constante referência aos orixás de Oxóssi, como brincalhonas e desconfiadas; as de Obaluaiê,
em qualquer acontecimento ou pelas histórias e “casos” que se como deprimidas, vingativas, rabugentas. Quem é regido por Xangô
contam nos terreiros. Essas histórias c suas avaliações, recorrentes é voluntarioso, sedutor, vaidoso. A marca de Oxum na personali-
no cotidiano, servem também de instrumental para a transmissão dade das pessoas é a vaidade, a coqueteria, a meiguice. Logun-Edé
de informações, conhecimentos e, principalmente, conteúdos dos tem filhos e filhas volúveis, românticos e bem-humorados. Gente
orixás e dos candomblés.* de Iansã é ultra-sensual, desbocada e franca. Os filhos de Obá são
Para dar um exemplo do que estou falando, nas várias vezes trabalhadores, persistentes e melancólicos. Nanã tem filhos e filhas
em que tive a oportunidade de assistir a televisão junto ao povo-de- seguros, calmos mas resmungões. As pessoas de Iemanjá são mater-
santo, era curioso notar como classificavam os personagens dos nais, inteligentes e fofoqueiras. As de Oxalá são valentes, inteligen-
programas e das novelas em relação aos possíveis orixás que os tes, intuitivas e, ao mesmo tempo, se forem filhas do Oxalá em sua
regiam e como, frequentemente, insinuavam que havia desejo ho- qualidade “velha”, serão frios, sábios e ranzinzas.
mossexual entre eles. Assim, a vaidosa, impetuosa e fogosa Maria
do Carmo, empresária bem-sucedida e interpretada por Regina O interessante é que, não importa quai seja o seu orixá, o ini-
ciado (..) acaba sempre encontrando no tipo-orixá do seu santo
Duarte na novela Rainha da sucata, era tida consensualmente como
justificativas para suas ações ce modos de ser Que já é tempo
sendo de Oxum. “Apará”, juntavam alguns, “porque ela é muito
de erradicar o sentimento de culpa, como queria a psicanálise.
explosiva e boca dura” Então, também poderia ser de Iansã, jun-
(Prandi, 1991, p. 141)
tavam outros, “porque gente de Iansã não dorme com o acarajé na
boca”, significando que as pessoas de Iansã falam o que pensam, As amizades entre pessoas do mesmo sexo, seja na ficção ou na
não engolem desaforos, não deixam para amanhã a reação a algu- vida real, também são sempre consideradas como relacionamentos
ma desfeita. “Mas ela é muito vaidosa! Olha as luvas douradas! Só que guardam, de modo latente, desejos sexuais. O desejo consta de
pode ser de Oxum.” Sobre o vilão, Renato (vivido por Daniel todas as relações, apesar de nem sempre se concretizar em relações
sexuais de fato. E, com isso, o povo-de-sanio passa a viver os aconte-
cimentos de modo específico, ampliando o quadro de possibilidades
é Ver o livro publicado por mãe Beata de Yemonja, Caroço de Dende, publicado em
de realização sexual e incorporando, em seu interior, tudo o que a
1997,no qual são narradas algumas lendas e episódios diversos, em que esses conhe- sociedade e a cultura foram capazes de engendrar nesse sentido.
cimentos se encontram sintetizados.
80 XIRÉI O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ
O ETHOS DO POVO-DE-SANTO 81
Essa visão da sexualidade e a aceitação, por parte do can-
rante as festas, que a elas compareciam pela primeira vez, insisti-
domblé, das diversas opções sexuais das pessoas fazem com que
am em que o que mais lhes chamava a atenção, além da beleza
seja possível perceber, ao nos aproximar dele em São Paulo, hoje,
dos orixás, era exatamente esse grande contingente homossexual.
através de vários signos, que é uma religião extremamente lúdica e
De fato, o candomblé paulista, a exemplo dos demais can-
sensual. O que se revela não apenas no ritmo cadenciado das
domblés do Brasil, vem se tornando uma religião que, se não é
danças, os movimentos dos corpos, transparência das rendas, om-
formada ainda por maioria de homossexuais ou bissexuais, apre-
bros nus, cheiros de ervas diversas, comidas de sabores exóticos
senta forte tendência a sê-lo,'º devido não apenas à aceitação deles
(comidas com as mãos muitas vezes), brilho e beleza, mas também
em seu meio (o que ouiras religiões não fazem), como também à
nos olhares trocados maliciosamente entre as pessoas durante as
forte atração que exerce por seus aspectos de autoconhecimento e
festas e, muito principalmente, no conteúdo das conversas durante
ludismo. E isso parece explicar, pelo menos em parte, o brilhantismo
os intervalos e o gjeunº. Durante esse último, especialmente, per-
das festas, das danças e das roupas; o ethos gay (no sentido literal
cebe-se que a festa de candomblé pode ser também, e 6 um
da palavra: alegre) do candomblé."
momento de lazer e encontro de companhia; um lugar onde se
São os adés (pederastas) e as monokós (lésbicas) os responsá-
pode, inclusive, encontrar parceiros para amizade, amor ou sim-
veis pelo brilho e bom andamento do candomblé, respectivamen-
plesmente sexo.
te. Daí, na festa, serem os adés, evidentemente, que mais sobres-
saem. São eles que geralmente se encarregam de enfeitar o barra-
Eu já to de olho nesse ogã faz três festas. Ele não dá mole, mas
cão com flores, folhas, frutos, em arranjos admiráveis. Eles têm a
faz um sorrisinho. Minha “mãe” tde santo) disse que efe só quer
dar comida pra okó (transar). Mas eu encaro ele. Pode deixar. roupa mais bonita, mais vistosa, mais bem acabada. Seus orixás
(Irene de Iemanjá) dão verdadeiros espetáculos de dança. São incansáveis. Na roda de
santo, dançam com maestria e esmero, e muitos filhos e filhas-de-
O que eu caçar eu levo. Se for tainha, ótimo. Mas se só tiver santo tentam imitá-los, pois sabem que eles costumam dominar
pirarucu, eu como também (referindo-se às paqueras nas fes- com perfeição a etiqueta do candomblé e toda a parte ligada à
tas e à possibilidade de sair de lá com homens ou mulheres). estética litúrgica, especialmente a dança. A festa parece ser, para
(Osni de Oxóssi) muitos adés, um verdadeiro palco, no qual exercem seus talentos
artísticos, do figurino à coreografia, de modo vivo, livres da crítica
Outra coisa imediatamente percebida pela maioria das pes- social que os classifica negativamente. Esse é mais um motivo pelo
soas que assiste a uma festa de candomblé, seja pela primeira vez
ou que frequenta terreiros, é o grande número de homossexuais
na roda-de-santo ou na assistência. Principalmente homosse- '*º Outros autores já constataram a grande presença gay no candomblé. Entre eles
Binon-Cossard (1981), Fry (1982), Birman (1985), Leão Teixeira (1986), Segato
xuais masculinos, que chamam mais a atenção e, com menor visi- (1989) e Prandi (1991), entre outros. Entre os meus entrevistados, do total dos
bilidade (mas não necessariamente menor número), mulheres ho- homens, 68% eram homossexuais. Entre as mulheres a taxa era de 63% de homos-
mossexuais. O fato é tão significativo que muitos entrevistados du- sexuais. Estou excluindo desse percentual os individuos bissexuais, que somam 13%
do total de homens e mulheres. O que chama a atenção é que apenas 21% do total
dos entrevistados eram exclusivamente heterossexuais.
“ Perlongher (1987) lembra que “em algum lugar do imaginário social, a homos-
sexualidade é sempre uma festa: despesa de sêmen, esbanjamento de dinheiro, esban-
º Ajeun: refeição coletiva que é servida ao final de uma festa,
jamento de fluxos libidinais econômicos” (p. 229).
82 XIRÊ! O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ O ETHOS DO POVO-DE-SANTO 83
qual mesmo as casas que não os aceitavam a princípio, passem a Quando perguntei, entretanto, qual seria a explicação para
fazê-lo e, portanto, em qualquer terreiro de candomblé podemos a existência de mulheres homossexuais chefiando terreiros, sua
enconirar adés. “Os santos mais bonitos são os dos adés” (Neusa de resposta foi enfática: “Aí é sem-vergonhice mesmo”.
Ogum). É claro que as explicações acima não ajudam o entendimen-
Essa opinião é de grande parte do povo-de-santo: o candom- to desse fenômeno e, portanto, devem ser buscadas outras explica-
blé idealizado pelos adés é mais bonito. Mesmo havendo quem não ções, mais abrangentes, como a do sociólogo Prandi (1991), que
aprove o comportamento de muitos deles, no que diz respeito à estudou o candomblé paulista:
procura de parceiros nas festas, o que é bastante comum, nin-
guém, entretanto, pensa em barrá-los ou discriminá-los nos terrei- Se concordarmos que as maiores concentrações relativas de
ros. Aliás, os candomblés parecem ter se tornado outro ponto de homossexuais e bissexuais ocorreni nas grandes cidades, onde
encontro gay (sobretudo de extração social mais baixa), como podem refugiar-se no anonimato e na indiferença que os gran-
algumas boates e certos espaços da cidade. Alguns adés, contudo, des ceniros oferecem [...), encontramos uma razão a mais para
ao exagerarem nesse comportamento, criam má vontade e o sucesso do candomblé em São Paulo — a possibilidade de fazer
suspeição por parte de alguns chefes de terreiros. parie de um grupo religioso, isto é, voltado para o exercício
As explicações para a adesão homossexual em peso ao can- da fé, mas que ao mesmo tempo é lúdico, retorçador da per-
domblé são muitas, e vão desde as mais simplistas e reducionistas, sonalidade, capaz de aproveitar os talentos individuais e, por
que pretendem que os adés gostariam de expor publicamente sua que não? — um nada desprezível meio de mobilidade social e
“feminilidade”, fazendo-o na dança dos orixás (que em sua maio- acumulação de prestígio, coisas muito pouco ou nada acessi-
ria vestem saias para as danças sagradas), até as que pensam que veis aos homossexuais em nossa sociedade. Ainda mais quan-
para sobreviverem num grupo essencialmente feminino (como os do se é pobre, pardo, migrante, pouco escolarizado. O can-
candomblés antigos) os homens devem se afeminar. Essa explica- domblé é assim, de fato, uma religião apetrechada para ote-
ção já foi compartilhada por Landes (1961), Ramos (1942) e Ri- recer estratégias de vida que as ciências sociais jamais ima-
beiro (1965), sendo ainda hoje a opinião de muitas pessoas, de sginaram. (Prandi, 1991, p. 216).
dentro ou de fora do candomblé. A mãe-de-santo Silvia de Oxalá,
ao argumentar que o cargo de chefia de um terreiro é exclusiva- Entre os apetrechos de que fala Prandi estão também os
mente feminino, disse: simbólicos. No candomblé, ser “homem”, “mulher”, “ade” ou
66;
imonokó” 437 ou, ainda,
4
“gilete”,
a
“folha” (categorias
h)
que se referem
€..) só mulher gera. Fazer um fifho-de-santo, ser mãe, é fun- a sexualidade humana e, portanto, relativas à vida profana, cotidi-
damento feminino. É o fundamento da introdução do pênis [sic]. ana) ou “aboró”", “Gabá”*, “meji” ou “metá-metã* — categorias
Se um homem gera um filho ele acaba virando adé. É uma
questão muito séria, porque ele vai ficando, sem querer, vai
ficando lafeminado!. Por isto que tem tanto adé chefiando casa 2 Aborô: santo homem.
ide santol. 5 Jabá: sanita mulher.

Meji ou metá-meid: santo homem e mulher ao mesmo tempo. Barros (1983)
mostra que os orixás “mei” ou “metá-met?” não são orixás bissexuais, mas a pró-
pria sexualidade divinizada.
E
i
84 XIRÉ! O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ i O ETHOS DO POVO-DE-SANTO 85

que se referem à sexualidade mítica — é ter identidades que se


a
(1987), observa a incidência, no nível semântico, das ligações dos
complementam e trazem em si as características de dois mundos: michês que entrevistou com o candomblé e com a umbanda. A
as dos terreiros e as da sociedade abrangente. As explicações reli- vivência no candomblé de grande parte desse “gueto” impregna
giosas propõem que o indivíduo pode ser homossexual por ser de expressões “do santo” o mundo dos michês. Perlongher mostra
filho de tal ou qual santo. As das ciências sociais propõem que o que o mesmo rapaz, dependendo da região por onde circula (e,
individuo é classificado como sendo de determinado santo porque portanto, a que grupos se liga), pode ser chamado de gay ou de
é homossexual. É isso acontece com toda a categorização dos indi- “mona” (termo que significa “mulher” no candomblé). Os michês
víduos, como caráter, fisionomia, gosto, etc. “ativos” (com papéis mais próximos do masculino) têm também
A vida nesses dois mundos não pode ser dissociada e, como seu equivalente afro, okô. Da mesma maneira, okô-mati faz parti-
experiência complexa que é, é responsável pela adaptação e cular referência ao rapaz “feio” — e seu contrário, da mesma
reinterpretação de valores e simbolos de ambas as realidades. matriz, ckô-odara, alude ao rapaz bonito e bem transado”
Desse modo, o pensamento sobre as identidades sexuais no can- (Perlongher, 1987, pp. 148-149).
domblé permite notar o envolvimento de quem fala com o ethos A “língua do santo” é permeada de expressões banto ou
do povo-de-santo e com os valores de uma classe ou segmento ioruba relativas ao corpo e de referências ao sexo, à sexualidade,
social específicos. às relações sexuais, e de comentários jocosos, maliciosos, irônicos.
Essa visão singular da sexualidade é apreensivel, ainda, atra- Termos como “fazer barquinho” (alusão ao “barco” de iaôs, as
vés das falas dos adeptos do candomblé, seja ela diretamente sobre filhas e os filhos-de-santo “feitos” juntos, algo como “fazer filhi-
esse assunto ou nas conversas informais, no chamado “dialeto do nhos?), que significa ter relações sexuais com alguém; “dar comi-
santo”, nos ditos cotidianos, nas músicas, etc. ou, ainda, no nível da pro okó”, que significa relação sexual do ponto de vista mascu-
das atitudes, no terreiro ou fora dele. Esses dois níveis do compor- lino (numa tradução literal, “dar comida ao pênis”); “tomar no
tamento (discurso e ação) encontram sua expressão privilegiada, ed? (ter relações sexuais anais); “pisar folhas” (relações lésbicas)
paroxística, nas festas, desde sua produção até a posterior avalia- são comumente ouvidas da boca de gente do santo, e também
ção que se faz delas. O momento do ajeun, imediatamente poste- palavras como indaka (fofoca), odara (bom, bonito, correto, positi-
rior ao término do xirê, e as rodas-de-samba, especialmente nos vo), “exuzado” (complicado, ininteligível, endiabrado), “estar de
candomblés angola, são momentos em que podemos ver esses dois ge ou de “bajé” (estar menstruada) e “Jorogur” (confusão, dis-
níveis interatuando, putas, encrencas), entre outras, além daquelas específicas da reli-
As palavras e o jeito de falar, que constituem a “língua do gião, como decá, orô, paó, quizila, kelé, xaoró, etc.
santo” — dialeto composto de termos africanos —, e a jocosidade Apesar da aparente harmonia (quando falo em equilíbrio
peculiar ao grupo estabelecem a diferença e a identidade especi- pode-se pensar que a vida do povo-de-santo seja harmônica, o que
ficas do povo-de-santo como indivíduos que têm um estilo de vida não corresponde totalmente à realidade) que a vida e a festa no
próprio: o “do santo”. Essa “língua” tem termos fortes, que são candomblé expressam, ela não corresponde aos acontecimentos
utilizados pelos adeptos também fora do terreiro, como uma espé- dos bastidores. O conflito no candomblé é permanente. Há brigas
cie de “código” decifrável apenas por quem participa desse uni- por motivos vários, as acusações são infinitas entre os terreiros
verso religioso, em maior ou menor grau. Perlongher, por exem- (Prandi, 1991), entre os filhos e pais ou mães-de-santo por “er-
plo, em sua pesquisa sobre a prostituição masculina em São Paulo ros”, disputas por poder nos terreiros, por ciúmes, amor, por qual-
86 XIRÉI O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ O ETHOS DO POVO-DE-SANTO 87
quer coisa. A sexualidade pode ser usada, nesses casos, como cate- Além das intrigas e maledicências, qualquer coisa é passível
goria de acusação, por mais paradoxal que isso pareça (Birman, de comentários jocosos e troca de olhares maliciosos entre as pes-
1985). Nesse caso, acusam-se pais e mães-de-santo de homosse- soas. Ninguém “perdoa” a “pose” de alguns echomis, os trejeitos
xualidade promíscua, de manterem relações incestuosas com a afetados de alguns adés, o modo de falar de alguns filhos de santo,
família-de-santo, de roubarem amantes dos filhos, clientes, etc. as roupas de outros, as “mancadas” dos kossiº. E perguntar como
Além disso, qualquer falha, qualquer “gafe”, qualquer brincadei- é a maneira certa de se fazer também é gafe no candomblé. Os
ra mal entendida, o menor passo em falso, são motivos para desa- iniciados devem observar um grande número de preceitos, que
cordos e consequentes vinganças e falatórios. Em conversas com devem aprender, preferivelmente observando os mais velhos, sem
Hubert Fichte (1987), Giselle Binon-Cossard, antropóloga que se nunca fazer perguntas. A curiosidade dos mais novos não é bem
tornou mãe-de-santo diz, comentando a “traição” de um amigo vista pelo povo-de-santo.
“de santo”: A pressão dessa expectativa induz a muitas gafes dos mais
novos, gerando repreensões, gozações ou apelidos, que parecem
Ele é homossexual. ininteligíveis se não sabemos seu significado (e nem sempre se
Tem um defeito que todos no candomblé possuem: é muito explica a alguém “de fora” certos “porquês”. Numa festa, certo
amável, mas tem sempre alguma coisa em mente. dia, ouvi: “ Pede pra Maria.” “ Qual delas?” “ A Maria Alabé”
Nota cada uma das fraquezas dos outros. Segundo me explicou um ogã da casa, Maria recebeu esse
No dia em que você já não quer as coisas como ele as quer,
apelido porque, quando abiã, havia manifestado a intenção de
vai e desenterra todos os erros que você cometeu.
tocar atabaques depois de iniciada, uma vez que ainda não sabia
Eu falava muito abertamente com ele.
que essa função, no candomblé, é exclusivamente masculina. Nunca
€.)
Ele veio como amigo e diziamos as maiores besteiras. mais esqueceram, e o apelido ficou.
O que ele fazia na cama, o que eu fazia na cama. Pela valorização do corpo, da sexualidade, das gafes ou do
Eu dizia coisas inacreditáveis: “Você pode me contar o que quiser, prestígio no santo ou ainda por pura jocosidade é que certos ape-
você só pode abrir uma porta, uma mulher tem duas”. lidos são colocados nas pessoas, tendo alguns deles se tornado fa-
E mais tarde ele usou tudo isso contra mim. mosos nos candomblés da Bahia, Rio e São Paulo, como, por exem-
Confundiu todo o meu pessoal. plo, “Seu Bobó”, “Maria do Violão”, “Camarão de Iansã”, “Vavá
Conhecia todas.as manhas do candomblé. Negrinha”? (também conhecido como “seu Vavá Bom do Pó”),
€.) “Dalva Bunda”, “Miguel Pequeno”, “Nezinho Boa Bunda”, “Calu
O candomblé é uma religião do poder.
Boneca”, “Pai Maria Aparecida”, “Marieta Roçadeira”, “João da
Uma religião de intrigas e ódios.
Saia?, etc. Não se deve entender tais apelidos, entretanto, como
Sim.
simples ofensa ou atribuição de um caráter bom ou mau ao apeli-
Às pessoas passam o tempo todo espiando os outros.
Quando mais tarde, brigam com alguém, tudo vem à tona, como do ou ao apelidado. Tanto é assim que os próprios orixás podem
se saísse de um computador.
O tempo não destrói nada. (Fichte, 1987, pp. 70-76)
* Kossi: gente novata no candomblé e que, portanto, não conhece ainda a “etique-
ta” ou o dialeto do santo.
88 XIRÉ! O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ O ETHOS DO POVO-DE-SANTO 89
ser alvo dessa prática. Num terreiro, durante uma festa, ouvi algu- festas.Brinca-se de “dar ckê”' e os ekês favoritos são os de
mas pessoas se perguntando se a Oxum “Ultragás” viria. Mais Pombagira, entidade considerada por eles (principalmente pelo
tarde fiquei sabendo que essa Oxum “vinha” sempre numa festa adeptos do rito quetu, pois no angola a Pombagira é uma entidade
“sim e na outra não” (referência a um antigo slogan da Ultragás, cultuada também) como “de umbanda”. Os ekés são “dados” exa-
que dizia, “terça-feira: uma sim, outra não, Ultragás no portão”). É gerando-se ou interpretando-se com maestria esses papéis (uma
claro que algumas vezes os apelidos visam mesmo “xoxar” vez cheguei a acreditar que fosse verdade, tal a perfeição com
(desqualificar) o que o povo-de-santo considera errado, feio, ina- que um ogá imitava uma Pombagira, chegando mesmo a ficar
dequado, segundo seu gosto. Foi o caso da coroa feita em material avermelhado, como costuma acontecer com os médiuns que rece-
plástico brilhante, que refletia em várias cores, como certos cha- bem essas entidades). Alguém pode comentar, como fez uma mãe-
veiros que se compram no comércio e que custou ao orixá O de-santo numa festa, após assistir a um eké desses: “Eu não tenho
apelido de “Xangô Laser”. Como os orixás são vistos como muito pombagira. Minha pomba é fixa”."” Ou então, enquanto alguns
íntimo dos homens, parece que os adeptos não temem essa prática comentam o brilho e a beleza de certos orixás, alguém faz um
de apelidar os orixás (ou seus filhos). O certo é que os apelidados, pas-de-gat, dizendo: “Minha Iansã é de Balet”? (trocadilho com
homens ou deuses, poucas vezes ficam sabendo dos apelidos, a não lansã de Balé, deusa dos eguns (mortos), que dança espantando-os
ser por meio de comentários de outras pessoas, indiretamente. E e uma improvável Jansã bailarina, que dance nas pontas de sapati-
lhas). Muitos comentários jocosos também são tecidos, como, por
geralmente replicam com outros.
exemplo, “Fulano está fazendo um novo ritual, o orodupau” (orô
Para evitar esse tipo de coisa (ou mesmo para praticá-la), o
significa “cerimônia ritual”) e que explicarão que é um tipo de
povo-de-santo repara em absolutamente todos os detalhes dos ri-
“descarrego sexual”. Casos sobre as “marmotagens” (falcatruas,
tuais das casas e festas alheias e das suas próprias. Por esse motivo,
engodos) ou erros de alguns chefes de terreiro, como “pintar o iaó
esmera-se, também, em fazer com que nada possa ser dito de sua
com guache”, na falta dos pigmentos sagrados, são bastante conta-
própria casa, seus filhos, seus orixás. Para que ninguém “xoxe”,
dos, nem sempre para serem levados a sério. É ainda em tais
pois esses comentários voltarão inevitavelmente, através da rede de
momentos de descontração que o povo-de-santo articula, com os
informação do povo-de-santo, à casa ou pessoa da qual se fala,
convidados ou com gente conhecida — como clientes, visitas, pe-
que, por sua vez, rebaterá com outros comentários, verdadeiros ou
quenas relações de favores como a consulta com o dentista simpa-
caluniosos, sobre seus críticos. Às vezes, tais intrigas geram cisões e
tizante — uma doação para a próxima feitura, alguma coisa para o
inimizades bastante duradouras. Há inclusive quem, por esse moti-
terreiro, um emprego, etc., e que começa (essa articulação), geral-
vo, prefira não convidar nem aceitar convites para festas de outros
mente, pelo convite: “Vem fazer uma fofoquinha comigo, vem?”.
terreiros. A preocupação com o diz-que-diz torna comum os pais e
mães-de-santo “discursarem” no barracão, dizendo coisas como:
“Quem souber fazer melhor que vá fazer nas suas casasP”,
Apesar das “intrigas” e “fofoquinhas”, o povo-de-santo tem “ Dar cké: fingir que virou no santo ou qualquer outra entidade.
um senso de humor delicioso e até mesmo suas piadas são, “ Pombagira é um Exu feminino, geralmente associado à sexualidade feminina
e em
frequentemente, impregnadas dessa vida “no santo”. É muito di- alguns cultos, como a umbanda, também às prostitutas. Originariamente,
o nome
desse Exu do rito angola é Bombogira. Parece que a associação ao termo
vertido ouvir suas conversas, principalmente durante o ajeun, nas “omba”
muito usado no Nordeste para designar a vulva, deu origem a esse termo
e essa
brincadeira.
90 XIRÉ! O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ O ETHOS DO POVO-DE-SANTO 91
Esses tipos de comentários, brincadeiras, avaliações, parecem mam ser responsabilizados pelos comportamentos “infantis” das
criar entre as pessoas de um mesmo terreiro um sentimento de pessoas e pelos súbitos desejos que possam ter por doces, frutas,
cumplicidade e de pertencimento que gera a própria noção guloseimas, refrigerantes, entre outras coisas.
de grupo que se identifica e se distingue dos demais, não só pelo O povo-de-santo também compartilha uma série de
que acredita, mas também pelo modo de viver essa crença, pelo idiossincrasias e superstições provenientes da vida religiosa e, prin-
domínio de uma linguagem particular, de um código religioso, cipalmente, da iniciação. Desde a maneira de tomar banho, até o
uma “etiqueta”. Pelo modo de avaliar e interpretar os aconteci- que fazer com a roupa que não se usa mais, existem cuidados
mentos e pela postura ante eles. Isso não significa, porém, que específicos que lembram, diariamente e quase que o tempo todo,
num momento de crise não haja dissidências entre as pessoas de que se é um “filho-de-santo”:
uma mesma casa e que podem acabar até mesmo com a expulsão
de pessoas que eram consideradas bastante importantes pelo grupo. (..) deve entregar-se a uma limpeza rigorosa, que está na base
O caráter jocoso e malicioso também é característico de de suas crenças, pois precisa estar em condições de receber o
algumas entidades, como os caboclos e os erês (espíritos infantis). orixá, visto que seu corpo é suporte dele. Assim sendo, o pró-
O uso do duplo sentido é a marca da fala desses últimos. Quase prio banho obedece a um verdadeiro ritual, pois ele ressacraliza
tudo que se diz ou faz pode ser “maliciado” quando os erês incor- quotidianamente o receptáculo do deus, A vawo só pode utili-
poram; mas, então, o sentido da malícia é invertido: são os erês zar água fria ou morna. Começa por lavar a boca por meio
de três goles sucessivos, que ela cospe. Lava em seguida os ór-
que, propositalmente, dizem coisas com duplo sentido ou mesmo
gãos sexuais. Derrama em seguida um pouco de água no topo
pronunciam as palavras de modo “errado”, criando alguns cacófatos
da cabeça, após dizer “agô, meu pai” (ou “minha mãe”). Dê-
ou termos pornográficos, como se não soubessem o que estão di-
me permissão, meu pai (ou minha mãe). Agora pode ensaboar-
zendo. Muitos deles contam em público a vida intima de seus
se, mas é preciso evitar as esponjas do mar, pois estão ligadas
“filhos” (o erê chama aquele a quem incorpora de “minha filha” às almas. (Binon-Cossard, 1981, p. 137).
ou “meu filho”) e, também, muitas vezes, a das pessoas presentes,
com jocosidade. Sendo espíritos infantis, ri-se muito deles e tenta- Várias outras “quizilas” (preceitos, tabus) são compartilha-
se ensinar-lhes “modos”. Os erês também “funcionam” como uma das pelo povo-de-santo: uma filha-de-santo dificilmente dorme
espécie de “superego” religioso, contando à mãe-de-santo as faltas com a barriga para cima, senta em soleiras de portas, atravessa
e transgressões cometidas por seus “filhos”, recuperando, desse encruzilhadas em diagonal, senta de costas para as janelas. Coloca
modo, a “confissão” como reorganizadora da consciência religiosa sua cama com os pés virados para o lado oposto ao da rua porque
do indivíduo. Eles exageram o estereótipo da “criança travessa”, é desse modo que os defuntos saem de casa e a morte, por engano,
muito aceito em nossa cultura, brigando com os outros erês, brin- poderia levar a pessoa incauta.
cando com a comida, fazendo sujeira, pedindo dinheiro, presentes, Conforme o orixá da pessoa, certas cores não devem ser
etc. São impossíveis! Sei de um “er” que um dia saiu dirigindo o usadas. As filhas de Oxalá não devem ficar perto de azeite-de-
carro de seu “filho”, com pessoas dentro, que só perceberam que dendê, nem dar as costas para o fogo; no dia da semana que
o erê estava “virado” (incorporado) quando começou a falar no pertence a seu orixá, qualquer filho-de-santo que se preze, e ao
seu linguajar tatibitate, apavorando os passageiros. Os erês costu- seu orixá, deve usar branco. Por essas idiossincrasias, muita gente
do santo se reconhece. Clotilde de Iansã, contando como reconhe-
ceu que seu marido era “do santo”, no escritório em que trabalha-
92 XIRÉ! O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ

vam, diz: “Eu comecei a reparar que cle ia trabalhar toda quarta-
feira de branco. Achei que cra coisa. Botei mais tenio até que um
dia eu vi. As conta vermelha c branca icores do orixá Xango]”.
Um membro do povo-de-santo não deixa ninguém sentar ou
deitar em sua cama. Não termina o que outra pessoa começa nem
fecha o que outra pessoa abriu. Não deixa gavetas, caixas ou malas
abertas. Não come os restos deixados no prato por outra pessoa,
não usa roupa alheia, não empresta suas roupas nem as da. Prefere
não comer e nem beber em prato ou copo já usados por outra
pessoa. Não permite que se ponha a mão sobre sua cabeça e pede
licença ao orixá para cortar os cabelos. Recolhe os cabelos que
ficam no pente ou que corta para jogar na água corrente (que
pode ser na pia do banheiro ou no vaso sanitário). PARTE HI

Nunca deve vestir suas roupas pelo avesso, deve enfiar suas saias
e vestidos pela cabeça e tirá-los também pela cabeça. Se enro-
lar as mangas, deve desenrolá-las antes de se despir. Não pode
deixar os sapatos com a sola voltada para cima e nem deve
deixá-los um por cima do outro. Se entra na igreja pela pri-
meira vez, deve penetrar pela porta principal e sair por ela. Se
entra num bosque ou no mato, deve sair pelo mesmo caminho.
(Binon-Cossard, 1981, pp. 134-135).

Como se vê, a dimensão religiosa envolve, não apenas os


momentos rituais dentro dos terreiros, mas permeia todo o cotidia-
no de um filho ou uma filha-de-santo. Essas práticas, detalhistas e
frequentes, sempre explicadas em relação ao universo mítico do
candomblé, acabam gerando um habitus, que é o ponto de apoio
da constituição do candomblé como mais que uma religião: como
um estilo de vida, que ultrapassa os muros do terreiro.
ALÉM DOS MUROS DO TERREIRO

A vivência nesse mundo religioso, cheio de minúcias rituais,


constantemente referido à mitologia dos orixás, regido por uma
ética diferenciada (geradora de relações e comportamentos tam-
bém singulares) e pleno de uma estética impar, soma-se à vivência
na sociedade envolvente, criando o “gosto” peculiar do povo-de-
santo. Gosto que é capaz de distingui-lo como grupo e de oferecer
matrizes para a construção de uma identidade entre os membros
dos terreiros através, não só dos códigos reconhecíveis entre eles,
mas, também, do contraste que apresentam em relação a outros
grupos religiosos.
Nesse universo de relações, o povo-de-santo estabelece, fora
do terreiro, laços com outros grupos que compartilham, de alguma
forma, seu ethos, muitas vezes exatamente pelo fato de abrigarem,
em seu interior, muitos adeptos do candomblé e da umbanda. Essa
relação dialética implica uma espécie de “espelhamento” do uni-
verso de um grupo no outro.
Esse é o caso das escolas de samba (ou mais radicalmente
dos afoxés) ou, ainda, da capoeira, de modo menos enfático. A
música dos tambores, a alegria, o dispêndio, o ludismo, a sensuali-
dade e o livre uso do corpo são elementos constitutivos também do
grupo dos sambistas e dos afoxés, do mesmo modo que as intrigas,
o falatório, as mudanças de escola. Os mesmos elementos festivos
que encontramos no candomblé. Muitas escolas de samba e afoxés,
inclusive, tiveram sua origem em candomblés, por meio de pessoas
que se reuniam na “roda-de-samba” após a festa religiosa, como
aponta Moura (1983) referindo-se ao Rio de Janeiro da primeira
metade do século.
56 XIRÉL O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ
ALÉM DOS MUROS DO TERREIRO 97
Enquanto as classes populares, em sua minoria proletarizada,
Tumba la vê, tumba la uá
sob a liderança sindical dos anarquistas, se organizavam em
Vem de Ketu, vem de angola
sindicatos e convenções trabalhistas, a grande parte do povão
De malé e jjexá (...) (enredo da Vai-Vai, 1992)
carioca que se desloca do cais para a Cidade Nova, subúrbio e
favela (...) também se organizava politicamente, em seu senti-
Ai leieu mamãe Oxum
do extenso, a partir dos centros religiosos e das organizações
lemanjá mamãe sereia
festeiras. (p. 63).
salve as Águas de Oxalá
uma estrela me clareia
Essas organizações deram origem às escolas de samba, fa-
(...) (enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel, 1992)
mosas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mesmo quando não foram
fundadas por gente do santo, a tendência a aglutinar esse grupo foi É claro que nem todos os sambas-enredos são sobre o can-
se revelando. Há também pessoas que foram para o candomblé domblé, especificamente, mas sempre existem alusões ao universo
através do caminho da escola de samba, levadas por algum sam- do culto, revelando a marca da presença do povo-de-santo nas
bista, como é o caso de Delba de lemaniá, uma ex-passista da escolas de samba. Além disso, pelo menos alguns chós são feitos
escola de samba Nenê da Vila Matilde: pelas escolas antes de entrar na avenida.
No carnaval tudo é vivido de modo intenso, com muita ale-
Eu nem imaginava o que ecra. Aí o £, que era diretor de har- gria, sensualidade e erotismo. Depois do ano inteiro economizando
monia disse que era ogã de um terreiro no jabaquara, que ia para a compra da roupa, contribuindo com a escola e, principal-
ter testa-de-santo, no final tinha uma roda-de-samba, um fundo-
mente, trabalhando no barracão, na construção dos carros alegóri-
de-quintal.. E foi aí que eu entrei e me apaixonei.
cos, das alegorias de mão, dos chapéus, costurando e bordando
(uma produção que exige tempo, dinheiro e dedicação, além de
Esse diálogo entre o candomblé e as escolas de samba deixa
talento, como no candomblé), tudo se acaba num só dia. A festa é
marcas nos dois lados. As cores das escolas, por exemplo, gerai-
assim. No final do desfile de escolas de samba paulistas de 1991, a
mente são escolhidas em homenagem a algum orixá, geralmente o
escola Vai-Vai apresentou o carro de Oxalá (e também a Mocidade
da casa de candomblé relacionada mais intimamente com a fun-
Independente de Padre Miguel, no Rio, fez o mesmo), todo branco
dação da escola. As baterias das escolas tocam sempre em hrome-
e cheio de espelhos. Os desfiles se encerraram com Oxalá, da
nagem a um orixá, que é considerado seu “patrono”. A Mangueira
mesma maneira que cantar para Oxalá encerra a festa de can-
toca para Oxóssi, a Portela toca para Ogum e assim por diante.
domblé, “fecha o xirê”, indicando o recomeço, num novo momen-
Não é à toa, também, que a ala das baianas é tradicional, pois faz
to, pois Oxalá é o princípio criador de tudo.
referência as antigas mães-de-santo que, na Bahia, vestiam-se as-
O mesmo acontece com os afoxés e maracatus, ainda mais
sim. As longas saias brancas (agora usadas nas cores das escolas) de
próximos do candomblé do que as escolas de samba. O afoxé foi,
renda, sobre sete saiotes engomados, com pano-da-Costa, camisu e historicamente, a primeira manifestação da religiosidade do can-
torço (pano enrolado na cabeça de modo característico) são tam- domblé nas ruas. Nina Rodrigues (1988, pp. 157-158), no começo
bém roupa do candomblé, muito usada nas festas. Também os do século, já relatava notícias de protestos contra os afoxés no
sambas-enredos, muitas vezes, fazem alusão ao candomblé, quan- carnaval, época em que o candomblé e o samba eram proibidos.
do não é o seu próprio tema: Apesar dos protestos, a participação do grupo negro num carnaval
98 XIRÉI O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ ALÉM DOS MUROS DO TERREIRO 99

de ranchos e enirudos não poderia acontecer sem a marca de sua acordo com elas, mas geralmente estilizada, simplificada ou adap-
religiosidade e alegria. Foi assim que surgiram os Pândegos da tada. E quando as cantigas não são as do candomblé propriamente
África, os Filhos da África e a Chegada Africana, sempre lembra- dito (há inclusive quem “vire no santo”, algumas vezes, durante a
dos na história do carnaval. Hoje, são famosos e disputados, inclu- exibição dos afoxés, tanto no próprio grupo como na assistência),
sive pelas elites, os afoxés Filhos de Gandhi, Ilê Ayê, Badauê € elas remetem, quase que invariavelmente, à religião, aos orixás,
Olodum, entre outros. Em São Paulo, desde sua fundação, em 1981, seus signos e elementos. Ficou famoso esse afoxé (que é também o
é o afoxé Filhos da Coroa de Dadá, que abre o desfile das escolas nome dos cantos), gravado por cantores conhecidos e que depois
de samba, inclusive fazendo padê, em plena avenida. disso passou a ser cantado por vários outros afoxés:
Apoiados na tradição religiosa afro-brasileira, exibindo dan-
ças, ritmos e cantos da liturgia do candomblé e, ao mesmo tempo, Omolu, Ogum, Oxumarê
inseridos no contexto profano do carnaval, os afoxés se situam no todo pessoal
limite desses dois mundos, unindo, por caminhos ao mesmo tempo manda descer pra ver

iniciáticos e seculares, os universos dialeticamente complementa- Filhos de Gandhi.


Iansã, Iemanjá, chama Xangô
res: sagrado e profano.
Oxossi também,
Os afoxés também são, em geral, dirigidos por gente “do
Manda descer pra ver
santo” ou por personalidades envolvidas com o culto. O afoxé Filhos de Gandhi
paulista Filhos da Coroa de Dadá é dirigido pelo ogã Gilberto de (..). (Gilberto Gi
Exu e sua mulher, Wanda de Oxum, a responsável pelo figurino
com que o grupo se apresenta. Hoje, entretanto, diferentemente do Há um outro aspecto, ainda, em que os mundos do candom-
passado, os afoxés e as escolas de samba não se ligam a nenhum blé e do carnaval se assemelham ou são reflexos um do outro: no
candomblé com exclusividade. Talvez por isso mesmo venham conflito gerado pela disputa por poder e no tipo de avaliação
crescendo e, já no ano de 1992, tendo como tema uma homena- hipercrítica e seu consegiente falatório. É comum que porta-ban-
gem a Oxalá saíram, no Filhos da Coroa de Dadá, cerca de mil deira, mestre-sala, carnavalescos, mestres da bateria, envolvendo-
pessoas, todas de branco, vestidas por “mãe Wanda”. Também os se em conflitos nas escolas onde estão, transfiram-se, geralmente,
músicos que tocam nos afoxés são, muitos deles, os que tocam nos para a escola adversária, passando a apontar todos os defeitos da
candomblés (alabês) e a massa de seus “foliões”, em sua quase escola ou do afoxé a que pertenciam. Há disputas de todos os tipos:
totalidade, é constituída por pessoas que, de uma forma ou de pelos destaques no desfile, pelos sambas a serem levados para a
outra, mantêm vínculos, em graus variáveis, com essa religião. avenida, acusações de roubo de idéias, de “cambalachos”, etc., do
No dia do desfile, como acontece com a festa de candomblé, mesmo modo que, no candomblé, quem muda de terreiro, em
apenas depois de despachar Exu, para que tudo corra sem proble- geral, passa a criticar tudo que se fazia no terreiro anterior e a
mas (e que é feito do mesmo modo que se faz no candomblé) é divulgar os problemas e “marmotagens” que acredita existirem no
que o afoxé começa a cantar e dançar, vestindo seu figurino de terreiro de onde veio. Essa mudança de “axé”, frequente no can-
estilo africano, iniciando sua apresentação pública. A dança, no domblé paulista (Prandi, 1991), é comum também nas escolas de
seu traçado básico, é a mesma dos terreiros. As cantigas vão samba. E nos afoxés.
se desenrolando e os “foliões” realizam uma coreografia ritual de
100 XIRÉ! O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ
ALÉM DOS MUROS DO TERREIRO 1ô

PINA
(...) Bem mais complicados que as rivalidades interg rupais são
si utas pelo poder no interior dos novos afoxés e blocos afrc no candomblé gerar um
Aqui é pau puro (...) algumas dessas brigas (...) entre outras clas, entretanto, não che-
2
dúvida de que
2
; m antigas rivalidades de grupos de bairros iosa, Não ha
É.) disputas pessoais (inclusive amor Osas), ambição wros do terreiro e impregne
de poder
na comunidade e até 4 mesmo casos mais ou menos notório
s de
; adeptos, como vemos. Mas,
roubo de dinheiro. (Risério, 1981, p. 125) deve manter sua idontidado que se expressa prin-
que se chama de o “segredo”, o “fundamento”,
Risério explica esse iras palavras, significa aquilo que não se partilha, a não
e,

Aquilo que realmente marca a identidade

desses grupos têm, hoje em dia, suas músicas gravadas, apresen io criado na convivência com o candomblé, contudo,
ia-
das em shows e programas de televisão, e alguns carnav:ivalescos relicte-se não
4
só na op çã
se
tornaram famosos. Em resumo, escolas de samk ba, blocos, quais se relacionar —- como no caso da “participação do povo-de-
afoxés e
candomblé, tendo se projetado nacionalmente, tornaram-se santo nas escolas de samba, afoxés e capoeira (que maniêm em
meios
para a obtenção de poder e de prestígio além dos limites maior ou menor am os elementos simbólicos por eles valorizados)
dos
próprios grupos, fatores que possibilitam uma certa mobili — inas também se expressa no consumo que se faz dos bens mate
dade
social, Principalmente porque os integrantes desses grupos fazem riais -simbólicos disponíveis para tanto. E é nesse consumo, como
parte de um segmento economicamente desprivilegiado da socie vimos, que se expressa aquilo que Bourdieu (apud Ortiz, 1081)
dade, para o qual tais oportunidades de ascensão permanecem chamou de “estilo de vida” distintivo.
escassas (Prandi, 1997). Nas diferentes dimensões da vida cotidiana fora do terreiro,
Tendo se projetado nacionalmente carnaval e candomblé, atividades culturais, sociais e outras, o povo-de-
e
partilhando o mesmo ethos, os mesmos valores, que são a santo expressa seu gosto distintivo, Existe, |inclusive, uma espécie
matriz
dessa identidade comum, é necessário, entretanto, que esses mesmo ilentado pelos “do santo”. As apresentações de
s
valores possam ser definidores de diferenças. O candomblé filmes relativos à cultura religiosa afro-brasileira sempre contam
não ça À
pode virar carnaval e nem o carnaval se tornar religião. Assim, com a presença desse “povo”, Vários são os filmes consumidos pelos
:
mesmo tempo em que se reconhecem os traços comuns a ambos os do santo” entre os quais: Amuleto de Ogum, Barco de Iansã
universos, buscam-se imediatamente os
o elementos que distinguem Esungum — ancestralidade africana, Iaô, ou A iniciação num terrei-
as
duas imagens, para que elas não se tornem uma coisa sÓ.2 ro gege-nagô, Por que Oxalá usa ekodidé, Ori, A deusa negra, etc.
Exposições de arte africana, fotos e outras, relativas ao uni-
Á coisa não pode parecer alegoria de carnaval, Porque verso do culto, também fazem parte desse circuito. Os grupos de
se não
tomar cuidado, fica parecendo (não é a ala das baianas fro-brasileira são também prestigiados em suas pe
), fica
uma coisa muto certinha. Eu não gosto de orixá ruitos
v deles são compostos por integrantes que
empetecado, também
com ianíejoula, strass, brocado, esses negócios. Não é carnava
lr “do santo”. Trequentam-
é se dinda oficinas de dança que oferecem,
(Armando de Ogum) entre cuíras
q
coisas, cursos de percussão de atabaques e construção
dos mesmos, além de capoeira, “conscientização corporal negra” (sic),
102 XIRÉ! O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ ALÉM DOS MUROS DO TERREIRO 103
etc. O povo-de-santo frequenta, também, cursos de língua ioruba já os programas de rádio nos quais pais ou mães-de-santo
(como o oferecido pela USP) e outros institutos,de divulgação da jogam búzios e respondem às questões dos ouvintes, são ouvidos
cultura religiosa afro-brasileira, como o Centro Cultural Oduduwa, pelo povo-de-santo por curiosidade e pelo reconhecimento, neles,
em São Paulo, e o Yorubana, no Rio de Janeiro. Paralelamente 20 de suas práticas e convicções. Eles servem, também, de assunto
circuito dos institutos, acontece o consumo de uma literatura espe- para conversas cotidianas, dentro do terreiro ou fora, com gente
cializada que conta com inúmeros títulos, vendidos nas casas de “do santo?, Gente que adora contar e ouvir “casos”, todos eles
artigos religiosos ou em livrarias especializadas (como a Eboh e a
sempre cheios de mistérios e feitiços e reiterando a crença na
Zipak) ou não. Essa literatura trata de temas de interesse do povo-
influência dos orixás sobre a vida de seus filhos.
de-santo, como receitas de chós, práticas mágicas em geral, his-
Essas conversas também são entabuladas a respeito das noti-
tórias dos orixás, manuais de jogo de búzios, receitas de remédios
cias veiculadas pelos jornais tablóides publicados e consumidos pelo
feitos com ervas, etc. O povo-de-santo também consome obras de
povo-de-santo. Em jornais como Umbanda & Candomblé, Umbanda
caráter científico, como as de Edison Carneiro, Roger Bastide,
e À voz do Orixá, entre outros, são tratados temas de interesse do
Juana Elbein e Pierre Verger e outros. Quase todos os chefes de
grupo, como o mundo do candomblé, notícias sobre carnaval, fute-
terreiro possuem pelo menos o exemplar de Orixás, de Pierre
bol, capoeira, medicina alternativa, previsões, festas de candomblé,
Verger e, atualmente, de Os nagô e a morte, de Juana Elbein,
trabalhos nas federações, congressos religiosos, AIDS, além da divul-
bastante manuseados.
gação de conhecimentos e serviços religiosos. Esses jornais são patro-
Quando o candomblé é tematizado, seja nos programas de
cinados por anunciantes também ligados ao culto dos orixás, como
rádio, como o de Mãe Gui, o de Mãe Sylvia de Oxalá, o programa
os fabricantes de velas e defumadores, tanoarias, além de escolas de
Nosso Cantinho, de pai Celso de Oxalá, ou ainda em novelas ou
dança, cabeleireiros, butiques de “confecções afro-brasileiras” (sic)
minisséries de televisão como Pacto de Sangue, O Sorriso do La-
e lojas de artigos religiosos. Mais ainda, pequenos comerciantes e
Sarto, Anasiácia, Mandala, Carmem, etc., o povo-de-santo assiste
“casas de santo” oferecem seus serviços nessa “imprensa espe-
invariavelmente, fazendo a crítica de acordo com sua vivência
cializada?, fazendo amplo uso do código e da linguagem religiosa.
pessoal. À minissérie exibida pela extinta Rede Manchete de Tele-
O vocabulário do candomblé também é encontrado no título
visão, Mãe-de-Santo, foi tema de conversa durante semanas, den-
das colunas desses jornais, tais como a coluna “Correio Nagô”
tro e fora do terreiro. As críticas mais ferozes referiam-se ao
(comentários sobre as festas, aniversários de santo e demais acon-
tratamento dado à sexualidade mítica em relação à dos filhos dos
tecimentos sociais do povo-de-santo), no jornal Umbanda & Can-
orixás, com o qual discordavam veementemente. Reclamava-se
domblé, “Olossain” (uma coluna onde são discutidas questões so-
que as filhas de Iansã não são prostitutas como a personagem
bre os fundamentos da religião, como folhas, comidas, etc.) e Olukó
construída, nem os filhos de Oxóssi são homossexuais “enrustidos”
(palavra que em ioruba significa “professor”), onde são ensinados
como eles interpretaram que a minissérie propagandeava. Aqui, rudimentos de ioruba, geralmente usando as cantigas como exem-
novamente, percebe-se a sexualidade valorizada como elemento
plo, no jornal 4 voz do Orixá, indicando claramente o modo como
fundamental na compreensão das identidades e atitudes dos ho-
esses jornais refletem o mundo e os interesses do candomblé. Isso é
mens (com o que Freud certamente concordaria), através da críti-
tão evidente que alguns deles comentam por escrito (da mesma
ca, que ficou circunscrita a esse aspecto.
maneira que se comenta nos terreiros) as fofocas, intrigas e dispu-
tas entre o povo-de-santo.
104 XIRÉ! O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMEI É
ALÉM DOS MUROS DO TERREIRO 165
Mesmo quando o candomblé não é explicitamente
Existe ainda a produção e o consumo de uma discografia
tematizado, mas apenas referido, como é o caso de certas mani-
ligada propriamente ao culto que, como já vimos, tem na músi-
festações culturais como músicas e shows de música, o gosto
já ca um elemento estrutural (Amaral e Silva, 1992). Esses discos
consolidado e que tem por matriz o ethos e a estética da religião
, apresentam cantigas de candomblé de várias nações ou “pon-
guia as escolhas do povo-de-santo para aquelas que mais próxi-
tos? de caboclos, boiadeiros, pombagiras, etc. Geralmente, são
mas se encontrem de seu habitus. “O candomblé é uma coisa
gravados por ogãs e/ou pais-de-santo, gente que conhece a
que entra no sangue, entra no psiquê das Pessoas; precisa dagui-
fundo os interesses do grupo. Apenas em uma única loja encon-
lo. Vive aquela coisa; e é Sostoso, é uma embriaguez psíquic
o”. trei 36 álbuns.
(Marco Antonio de Ossaim).
É tão explicito o gosto particular do povo-de-santo, e já
Sendo assim, os adeptos do candomblé podem ser encontra-
alcançou tantas esferas de sua vida social que até mesmo os
dos em boates “étnicas” como a Balafon, em São Paulo, nos shows
e cartões postais que envia e recebe têm como tema c candomblé,
nas “rodas-de-samba”, nos espetáculos de cantores ligados à reli-
a África, a Bahia, a capoeira. Os mais populares são os que
gião — como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethâni
a, apresentam figuras dos orixás (plenos de significado, portanto)
Margareth Menezes, Martinho da Vila, Jerônimo, Leci Brandão -,
ou símbolos do candomblé. Finalmente, como o povo-de-santo
nos afoxés baianos Olodum e Ilê Ayê, entre outros. Do mesmo
está inserido na sociedade mais ampla, a sobreposição desse ethos,
modo, a música que o povo-de-santo ouve e os discos que compra
desse “gosto”, aos valores próprios da sociedade ocidental, cristã,
também são marcados pelo gosto criado no contato com a religião.
consumista, faz com que surjam elementos inusitados, como car-
Alguns cantores se projetaram, mesmo, cantando as coisas do can-
tões de visita em que consta o cargo religioso da pessoa ou um
domblé, como Dorival Caymmi e Clara Nunes. E, na a umbanda,
cartão de natal com um “papai Noel” negro, de barba branca
Martinho da Vila. As músicas podem ser inspiradas no candomblé,
desejando “AXÉP
como as cantadas por Clara Nunes (a musa do candomblé), Gil-
O estilo de vida do povo-de-santo, impregnado de valores
berto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia, ou as do terreiro,
criados na religião, é também percebido pelos “de fora”, de modo
como certos “pontos”? de umbanda cantados por Martinho da Vila.
a compor uma imagem social do povo-de-sanio como um grupo
A maioria, no entanto, faz apenas pequenas referências aos orixás
diferenciado, imagem que nem sempre, contudo, corresponde à
ou a termos do candomblé e que apenas o povo-de-santo ou quem
sua auto-imagem ou à realidade. Socialmente, existe algo que, no
com ele mantém intimidade reconhece. São comuns, também, can-
limite, pode ser chamado de um “estereótipo” atribuido a esse
ções homenageando o orixá do próprio cantor ou sua mãe-de-
grupo (o que mostra que também no contexto da cidade ele se
santo, como a famosa Oração a Mãe Menininha, de Dorival
define de modo distintivo). Ele é constituído por elementos que vão
Caymmi, em homenagem à sua mãe-de-santo, líder do terreiro
desde a atribuição de um caráter racial envolvido nesse estilo de
mais conhecido do Brasil), o Canto de Oxalutã (de Vinícius de
vida (“coisa de negros”), de classe (“cultura da pobreza”) ou,
Moraes, em homenagem a seu orixá) e Logun-Edé (de Gilberto
Gil, ainda, moral (pessoas feiticeiras, malévolas, orgulhosas, perigosas,
em homenagem ao “dono” de sua cabeça). O povo-de-santo geral-
oportunistas, envolventes, altivas).
mente conhece as músicas que fazem referência a seu orixá
e
compra o disco, se tem condições para tanto.
Eu não arrisco la contrariar adeptos do candomblél. Essa gen-
ic macumbeira é muito vingativa. (Nélson, publicitário)
106 XIRÉ! O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ ALÉM DOS MUROS DO TERREIRO 107
É uma Sente irresponsável” Tudo o que ganha gasta com issor Algumas pessoas, entretanto, sabendo desse estereótipo, es-
(a religião). Minha empregada, que é do candomblé, gasta todo condem as marcas da religião, vivendo-a de modo secreto, O que
O salário no terreiro e na escola de samba! Por isso que não contribui para esse “mistério”, que também constitui um dos atra-
sai disso! E você sabe que eles se orgulham disso?. (Marly,
tivos do candomblé. Não resta dúvida, ainda, de que a “nessoa”
fonoaudióloga)
construida dentro do candomblé, divinizada, glorificada, livre de
uma série de preconceitos e imbuída de um sem-número de tabus,
Sabendo muito bem dessa imagem, muitos adeptos do can-
domblé usam-na de modo “positivo”, a fim de tirar dela algumas cuidados e desconfianças sai às ruas, ultrapassando os limites do
vantagens. A aura de “feiticeiro” e “perigoso” leva os filhos-de- terreiro. Assume-se totalmente o arquétipo do orixá « a posição do
santo a exercerem um certo domínio sobre as pessoas da família, deus vivo, o que é percebido pelos leigos e interpretado como
do grupo de amigos leigos ou dos colegas de trabalho. orgulho, arrogância, desprezo pelos “outros”: “Eu acho que é o
que eles pensam: Se eu quiser, eu acabo com a ma vida” (Laura,
Eu trabalhei com dois ladeptos de candomblé]. Um era calmo, estudante).
sossegado. O outro, que era bicha também, qualquer encrenca É claro que há muita gente, também, que valoriza positiva-
ameaçava: “Cuidado que eu te mando uma coisa pesada, heini?” mente o candomblé, seu ethos e seu estilo de vida.
Às vezes até falava no meio das brincadeiras, mas assustava as
pessoas por saberem que ele era de candomblé. Qualquer dis- Eu acho o candomblé o máximo. O fiel do candomblé é o má-
cussão com ele já ficava com medo: “Ai meu Deus, discuti com ximo. É um fiel que dança. Ele dança no candomblé, dança na
O Jl.; será que ele vai fazer alguma coisa pra mim?” Porque ele capoeira, dança no carnaval, dança no pagode, no “fundo-de-
andava com aquelas... aqueles colares. Deixava bem claro que quintal”, no funk, no afoxé... (Cícero, universitário)
era de candomblé. (Christiane, contabilista)
Assim, a imagem do grupo, positiva ou negativa, construida
Essa imagem negativa do candomblé é estimulada também socialmente, soma-se à auto-imagem, dando-nos uma espécie de
pelas representações que dele são feitas por outras religiões (como holografia na qual se vê, em três dimensões, o povo-de-santo como
as pentecostais) e com base em acontecimentos dispersos, quando o gente diferente, distinguindo-se, no contexto urbano “homoge-
adepto de candomblé é visto como perigoso, muito mais pelo que neizante” pelo seu modo de crer, ser e viver. Como vimos aqui,
dele se imagina do que por atitudes que realmente tenha tomado. essa distinção se expressa em todas as dimensões de sua vida, da
Entende-se esse imaginário, que pensa o povo-de-santo como “di- mais íntima à mais pública, e isto parece ser uma razão a mais
ferente” justamente porque ele, através de suas práticas, não ape-
para o sucesso e o crescimento do candomblé numa sociedade de
nas mágico-religiosas, mas inclusive sociais, distingue-se dos de-
massas. Tem-se, nessa religião, não só um deus pessoal, único e
mais. Também a aura de “irresponsabilidade”, ligada ao dispêndio
intransferível, como tem-se também poder mágico e, principal-
de tempo e dinheiro com a religião, e de “escravidão” para com a
mente, um elemento distintivo que atua nos dois níveis, fazendo do
mãe-de-santo e o orixá, faz com que se veja o adepto de candom-
adepto e do candomblé singularidades que dão sentido à existên-
blé alguém “capaz de tudo” para satisfazer aos desejos deles. Um
cia plural na sociedade complexa.
mistério cerca o povo-de-santo, que se recusa a tornar públicas as
práticas do terreiro. E o povo-de-santo usa essa imagem positiva-
mente, protegendo-se socialmente atrás do mistério.
CONCLUSÃO

vida não
o
pa)
g
propõem, je acordo com os

s
mitos e as propagam como
modelos : é o homem e
qual é seu destino. No caso
mais adequado de acesso a essa n te de sua expr
englobar os mitos, a hierarquia, o conjunto dos valores religiosos e
a vivência dos adeptos (por ser um fato social total) pelo que ela
representa da visão de mundo do povo-de-santo,
Outras religiões, é claro, também têm a festa como elemento
capaz de agrupar seus fiéis em torno de objetivos comuns e con-
fraternização, 3 como é o caso, 3 &principalmente, do catolicismo £po-
pular, do pentecostalismo e, em alguns momentos fortes, da
umbanda, como as festas de iemanjá e Cosme e Damião, que já
foram incorporadas pela maioria da poputação brasile
do, ainda que a festa esteja presente em quase todas as religiões, é
preciso compreender de que modo ela se insere na estrutura reli-
giosa; se considerada como elemento constitutivo dessa estrutura
ou como elemento “exterior”, usado para intermediar o sagrado 5 e
profano de modo inteligível. No primeiro caso, que é o caso do
candomblé, a festa e a religião se confundem, expressando sua
estrutura comum através dos eventos que marcam seu acontecimen-
to. Festa e candomblé são sinônimos, explicitando-se um no outro. A
esta é estrutural, No segundo caso, ela pode ser vista como um meio
E

que os homens usam para expressar seus sentimentos de alegria e


esperança diante de seu deus. Aqui, a festa é circunstancial,
conjuntural, A festa é um momento. É o caso do catolicismo popular.
110 XIRÉI O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ
Quando a festa é estrutural, caso do candomblé, CONCLUSÃO li
ela impreg-
na a visão de mundo de modo total, impli O que tentei mostrar foi que, partindo de uma dada matriz
cando um estilo de vida
marcado pelos valores festivos, como o religiosa, a do candomblé, é possível delinear um estilo de vida
ludismo, o dispêndio, a
alegria, a sensualidade, a iransgressão, etc. que dialoga com o sistema religioso que o origina e que influencia
que se expressam tam-
bém fora do terreiro. Já no caso da festa as várias dimensões da vida dos fiéis, constituindo um gosto pecu-
circunstancial/ conjuntural,
mesmo quando é permanentemente produ liar, reconhecível por seus signos próprios. Esse gosto, que define
zida, como é o caso do
catolicismo popular, não se estabelece um um estilo de vida, identifica-se, por contraposição aos demais gos-
estilo de vida propria-
mente dito. Porque os mitos que estão tos (estilos) que se encontram na cidade, adquirindo o povo-de-
na base de sua estrutura
religiosa são ligados, na maior parte das santo o caráter de um grupo distinto, porque esse gosto comum
vezes, a temas de sofri-
mento, abandono, culpa e expiação, fican gera escolhas comuns que, por sua vez, implicam o partilhar sen-
do a alegria, a vida, a
festa para um mundo pós-morte. Os timentos, subjetividades, emoções. Sendo uma religião que cor-
temas das festas católicas,
como se sabe, sempre se ligam aos santos responde às necessidades de simbolização e ritualização na cida-
(mártires, sofredores), à
paixão de Cristo; e não podemos esquecer de, o candomblé é capaz de fornecer elementos para a construção
que o próprio mito de
origem do homem, no cristianismo, mostr da distinção na sociedade urbana, respondendo, de modo eficaz, à
a que o paraiso perdido
pela desobediência virá com a remissão tendência homogeneizante difundida pelos meios de comunicação
do pecado humano. Feste-
ja-se então, não a vida presente, mas e, principalmente, pelo Estado. O mesmo acontece com outras
a esperança, o perdão vir-
tual, o paraiso ao qual estamos adquirindo religiões e formas de agrupamento.
direito através da dor e
da privação. Assim, sendo “conjuntural”, Não é possível, portanto (e há tempos sabe-se disso), pensar
a festa católica não che-
ga a delinear uma pauta de consumo a cidade, especialmente as metrópoles, como o lugar da solidão e
de bens simbólicos e mate-
riais que sejam representativos da adesã do individualismo, como o senso comum tende a estereotipar. Na
o à Festa como estilo de
vida distintivo dentro da sociedade urban verdade, vivem-se, atualmente, novos tipos de associação, com ba-
a. O que não quer dizer
que o catolicismo não gere uma pauta ses mais “afetivas”, que têm no partilhar um gosto comum e práti-
de consumo religioso espe-
cífica, como velas, medalhinhas, imagens, cas comuns seu elemento mais notável.
etc. É claro que o catoli-
cismo fornece, também, simbolos que Se o povo-de-santo se identifica e se delimita por contra-
podem atuar como sinais
distintivos de um estilo de vida católico. posição a outros grupos, circunscrevendo, para tanto, um
Acontece, contudo, que a conjunto
“cultura nacional” (por sinal bastante “feste de práticas e de atitudes como peculiares e pertencentes aqueles
ira”) absorveu em gran-
de parte as práticas, os símbolos e valor que o compõem, não se deve pensar que sua “auto-suficiência” —
es do catolicismo, diluindo
seu significado nas diferentes dimensões ou a de outros grupos — signifique que eles se fecham em si, no
da vida social, como, de
resto, acontece com todas as religiões hegem espaço e/ou no tempo. Principalmente quando sabemos que não
ônicas. A festa católica
foi, portanto, absorvida pela cultura nacio almejam nenhum fim político. Essa falta de um projeto, de expec-
nal. Talvez seja por isso
que católicos e povo-de-santo sintam-se tativa de crescimento e organização, é compensada pela ênfase
perfeitamente à vontade
para estar tanto nas igrejas como nos posta na qualidade das relações, que passam a ser mais intensas e
terreiros, traduzindo ou
complementando as respostas que os dois vividas no agora. Se se acredita que a causa dos sentimentos nega-
universos religiosos dão à
satisfação dos anseios humanos. tivos diante do mundo seja a vida nas cidades (devido às relações
competitivas, efêmeras, distanciadas), a solução é encontrada no
recolhimento do indivíduo no grupo (que ele escolhe e que o
112 XIRÉ! O MODO DE CRER E DE WVER NO CANDOMBLÉ CONCLUSÃO tis

acolheu) e pelo aprofundamento das relações no interior Outro aspecto importante diz respeito ao caráter das reli-
desses
grupos. Que fique claro que esse “aprofundamento” giões na metrópole. Nem mesmo os mais fervorosos defensores da
não gera
consenso ou unanimidade. Tanto não é assim que o conflito cidade, da urbanidade, podem deixar de colocar o problema do
de-
sempenha um papel marcante entre eles (vejam-se as “sentido” na sociedade complexa, “pós-moderna”, tecnológica,
querelas
entre o povo-de-santo, as “guerras” entre os grupos atualissima,
punks, as
dissidências entre as várias religiões-seitas, etc.). Na medida em que a vida urbana afeta todas as instituições,
Antes, portanto, de acreditarmos que os indivíduos se agru- ela atinge também as religiões e não somente os adeptos, os fiéis.
pam — na cidade, nas festas, no candomblé — apenas para partilh
ar
Assim, o aspecto sagrado tende a não ser mais investido exclusiva-
afeto, sem nenhum objetivo e sem nenhuma consequência, mente nas organizações que têm o encargo de sua gestão; como
lem-
bremos que a maioria dos indivíduos que periencem ac povo-de notou Bastide (1975), escapa-lhes e permanece difuso por toda a
-
santo é gente pobre, pouco escolarizada, migrante, muitas sociedade, tornando-se parcialmente disponível para novas defini-
vezes
doente, solitária, desamparada socialmente, sem contar os que ções, e essas definições devem ser formuladas, pois o nível do
têm
comportamentos estigmatizados (homossexuais, prostitutas, sagrado é o do sentido, em que se associam valores e se organizam
droga-
dos, neuróticos, etc.). Gente oprimida social, econômica e cultura certas formas que contribuem para a definição sublimada e para a
l-.
mente. A alegria, a festa, a transgressão e a jocosidade do unificação do sistema social, para a adesão dos indivíduos. É assim
povo-
de-santo não poderiam ser entendidas como uma forma de que os estilos de vida, a adesão a valores tende a adquirir um
resistir
a essa opressão? Sua linguagem e seu discurso, constantemente caráter “sagrado”, marcadamente se eles têm como matriz, como
cifrados e codificados em termos da experiência religiosa no caso do povo-de-santo, um sistema religioso. |
(que é
mantida em segredo, partilhada apenas entre os “do santo”) Na cidade, diferentemente do que imaginavam os autores da
, ao
mesmo iempo que confirma os laços, permite rejeita Escola de Chicago e outros, a vida cotidiana torna-se mais permeá-
r a
massificação, a homogeneização. A referência constante ao ritual e vel à religiosidade e à sacralização. Criam-se (geralmente por
a jocosidade diante do mundo mostram que a qualidade essenci “trocas simbólicas”) e se difundem novas linguagens teológicas; as
al
desse grupo é justamente ser “mais ardiloso que ofensivo”. manifestações rituais se multiplicam no quadro das experimenta-
Sendo
assim é que ele pode se exprimir através de práticas conside ções sociais e culturais; expandem-se as religiões alternativas. Num
radas
“alienantes” ou “alienadas”, “Eterna ambigiidade da fraquez nível menos “dramatizado”, mesmo dependente de acontecimen-
a que
pode ser a máscara de uma inegável força”, como diz Maffeso tos constituídos em liturgias, a associação do político e do religioso
li
(1987). O “Gogo-de-cintura”, o mistério, a abstenção, a “aliena permanece ativa. Os grupos mobilizam o “sagrado selvagem”, para
-
ção” são as armas que grupos como o povo-de-santo usam usar uma expressão de Bastide, e os líderes figuram como “mes-
para
enfrentar a opressão, do mesmo modo que a ironia e a jocosid tres? ou gurus (veja-se, por exemplo, o papel de Chico Mendes
ade,
que muitas vezes podem, desestabilizar sistemas de domina para o movimento de preservação do meio ambiente ou de Caeta-
ção. E
nada mais representativo dessa atitude do que a continuada no Veloso e Gilberto Gil para o Tropicalismo); as religiões “impor-
pro-
dução da festa por um grupo que teria razões suficientes tadas”, como os diferentes orientalismos, contribuem para expres-
para
poupar cada centavo, cada resto de força, cada minuto sar uma forte rejeição da ordem social; o religioso elementar (como
de tempo
que pudesse ser aplicado na sobrevivência. Nada como as práticas do candomblé) e o apelo a vários tipos de ocultismos
a Festa
para afirmar e valorizar sua existência. (cabala, tarô, astrologia, numerologia, cartomancia, bicenergéticas,
li4 XIRÉI O MODO DE CRER E DE VIVER NO CANDOMBLÉ

cromoterapia, videntes, etc.) demonstram não só as diverg


ências
com a “cultura oficial” e o saber institucionalizado, mas
também o
exercício da liberdade de escolha entre as múltiplas ofertas
do
sagrado e que revelam, no seu consumo, expectativas e gostos
capazes de indicar a adesão a estilos de vida distintivos que
confi- BIBLIOGRAFIA
guram a construção de novas instituições.
Essa proliferação de grupos com estilos de vida distintos, esse
“multiculturalismo”, é um dos princípios que organizam a
cidade;
e essa multiplicidade dos grupos fortemente unidos por sentim
en-
tos comuns (inclusive os de pertencimento a um mesmo territó AMARAL, Rita de Cássia e SILVA, Vagner Gonçalves da. Cantar para
rio
urbano-fisico) estrutura, através de sua diversidade, a unidad subir. Um estudo antropológico da música ritual do candom-
e da
cidade. E, então, podemos recuperar seu caráter positivo blé paulista. Religião & Sociedade, v. 16, nº8. Te 2. Iser, Rio de
se pen-
sarmos que ela é uma sucessão de territórios, físicos e/ou Janeiro, 1992.
simbéli-
cos onde as pessoas fazem suas trocas, enraizam- se, retraem
-se, - À cor do Axé: brancos e negros no candomblé de São
buscam abrigo, segurança e festejam apesar ou por causa
de tudo Paulo. Estudos afro-asiáticos, n. 25. Rio de Janeiro, 1998.
isto.
Os grupos “fazem a cidade” porque são diferentes e AMARAL, Rita de Cássia. Povo-de-Santo, Povo de Festa — O estilo
até
mesmo opostos. Sua lógica é o resultado de tantas outras, de vida dos adeptos do candomblé paulista. Dissertação de
que, por
sua vez, partilham a “lógica da cidade” em sua práxis. E mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia. São
como o
povo-de-santo vive intensamente a cidade, transitando pelos Paulo, USP, 1992,
múlti-
plos grupos dos quais se pode extrair, como elemento comum
, o
hedonismo, a dança, a música, para esse grupo (como para - “Cidade em festa — O povo de santo (e outros povos) co-
muitos
outros), ela é o lugar da Festa; o lugar em que, dentro ou fora memora em São Paulo”. In: MAGNANI, José Guilherme C. e
do TORRES, Lilian de Lucca (orgs.). Na metrópole — Textos de
terreiro, contrariamente ao que afirmam os noticiários dos
jornais, antropologia urbana. São Paulo, Edusp, 1996.
“a alegria é a prova dos nove”.
- Festa à brasileira. Sentidos do festejar no país que “não
é sério. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de
Antropologia. São Paulo, USP, 1998,

BARROS, José Flávio Pessoa de e LEÃO TEIXEIRA, Maria Lina. “O


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