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D O S S I Ê

O ANIVERSÁRIO DE EXU REI


DAS SETE ENCRUZILHADAS
E AS FACAS DE BOI – CELEBRAÇÕES
AFRO-GAÚCHAS*
Eduardo Regis**, Sônia Regina Corrêa Lages***

Resumo: Este artigo trata do relato construído por meio de observação participante de duas cele-
brações ocorridas em Porto Alegre (RS, Brasil) no âmbito da Quimbanda afro-gaúcha,
uma religião mediúnica baseada em incorporação de Exus e Pombagiras. A primeira,
uma festa de “aniversário” para o Exu Rei das Sete Encruzilhadas, uma celebração
para exaltar o longo tempo em que a entidade vem “trabalhando”. Já a segunda é mar-
cada pela distribuição de facas consagradas que permitem aos seus detentores realizar
o sacrifício de bois. Ambas as celebrações ocorreram no mesmo dia, imbricando-se,
configurando um evento complexo e disputado pelos adeptos. O presente relato busca
auxiliar no entendimento de como pessoas e espíritos se relacionam dentro da Quim-
banda afro-gaúcha e contribuir para a melhor compreensão dos rituais e fazeres desta
religião. Como conclusão, fica evidente que o sagrado e o profano se hibridizam, mis-
turando o que é dos espíritos e das pessoas, espaços e experiências.

Palavras-chave: Quimbanda; Religiões afro-gaúchas; Exu; Facas de boi.

O
dia 13 de agosto consta, conforme o calendário oficial do município de Porto Alegre
(Rio Grande do Sul, Brasil), como o Dia do Exu Rei das Sete Encruzilhadas,
conforme instituído pela Lei 12.191 de 30 de dezembro de 2016. A data não foi

* Recebido em: 14.02.2023. Aprovado em: 09.04.2023.


** Doutor em Biologia Celular e Molecular (Fiocruz). Mestre em Microbiologia (UFRJ). Es-
pecialista em Ciências da Religião (FSB). Graduado em Ciências Biológicas: Microbiologia
e Imunologia (UFRJ). Doutorando em Ciências da Religião na Universidade Federal de
Juiz de Fora. E-mail: eduardognpregis@gmail.com
*** Doutora em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pelo Departamento de
Psicologia da UFRJ, com pós-doutorado na mesma área. Mestre em Ciência da Religião
pela UFJF. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professora
no Departamento de Ciência da Religião no Instituto de Ciências Humanas da Universidade
Federal de Juiz de Fora. E-mail: soniarclages@gmail.com

103 , Goiânia, v. 21, n. 1, p. 103-123, jan./abr. 2023. DOI 10.18224/cam.v21i1.13179


uma escolha aleatória, pois se trata do dia do aniversário do Exu Rei das Sete
Encruzilhadas (doravante Seu Sete), que vem sendo incorporado pela Mãe Ieda
de Ogum desde o ano de 1960.
Mãe Ieda é uma sacerdotisa de Batuque, Umbanda e Quimbanda, cujo trabalho ino-
vador e carisma a coloca como um pilar da “Quimbanda Tradicional” do Rio
Grande do Sul, que poderíamos denominar, seguindo Silva (2003), como afro-
gaúcha. É importante notar que a “Quimbanda Tradicional” do Rio Grande
do Sul, também chamada de “Quimbanda de Cruzeiro e Almas”, é uma mo-
dalidade de culto distinta da Quimbanda que surge no sudeste brasileiro pelos
idos dos anos 1950-60, que possui expoentes como os autores Lourenço Bra-
ga e Aluizio Fontenelle (OXÓSSI, 2023). Neste contexto, cumpre destacar o
trabalho de Somaim (2012) que revela que, em 2010, o Rio Grande do Sul
continuava sendo um centro importante no que tange religiões afro-brasilei-
ras como o Candomblé e a Umbanda. Neste estudo, Somaim relata que Porto
Alegre possui um percentual superior ao do Rio de Janeiro e de São Paulo de
praticantes de Umbanda declarados, por exemplo. Dessa forma, evidencia-se
a relevância do cenário afro-gaúcho, que pede por mais investigações.
Silva (2003) organizou uma breve biografia sobre Mãe Ieda, na qual ficamos sabendo
que ela teve uma infância humilde na Cidade Baixa (Porto Alegre), trabalhando
como empregada doméstica. Ela se casou aos dezenove anos com Miguel Au-
gusto Silva, com quem abriria mais tarde sua Casa de Religião, denominação
dada aos templos ou terreiros das religiões afro-brasileiras no Rio Grande do Sul.
Acompanhando o ambiente familiar, Mãe Ieda, em sua juventude, seguia os preceitos
hibridizados do espiritismo de Kardec e do catolicismo. Porém, Silva (2003)
relata que, no bairro onde Mãe Ieda morava, ela teve contato com as religiões
afro-gaúchas. Segundo a autora, foi numa festa de Iemanjá, aos dezenove anos,
que Mãe Ieda recebeu pela primeira vez o Cacique Supremo da Montanha,
uma entidade de Umbanda. Entretanto, relatos orais dos filhos de santo de
Mãe Ieda e relatos que ela mesma conta em algumas entrevistas (MÃE IEDA,
2013; 2018) apresentam uma versão ligeiramente diferente, na qual, ainda aos
dezenove anos e com problemas na gravidez, ela teria ido se benzer com Vovó
Gabriela, e teria sido nesta ocasião que o Cacique teria surgido, já cantando o
seu ponto, ou seja, canção tradicional litúrgica que caracteriza a entidade.
A Quimbanda surgiu na vida de Mãe Ieda pela chegada de Seu Sete, que se apresentou
pela primeira vez na Umbanda. Seu Sete teria vindo muito “forte”, comendo
vela, vidro, se arrastando e precisou ser “cruzado” com o orixá Bará, no final
dos anos 1960 ou início dos anos 70. Cruzar, nesse contexto, surge no sentido
de unir Exu a outra entidade, para lhe dar mais poder, estabilidade e controle.
Em outras palavras, o Exu passa a receber oferendas, simultaneamente ao ori-
xá Bará (como é chamado o orixá Èṣù no Batuque) e também recebe demais
tratamentos similares ao mesmo, elevando-o a uma categoria comparável à
de uma divindade (OXÓSSI, 2023). Mãe Ieda, então, entrou na casa do Pai
Eliseu de Ogum, onde se trabalhava com Exu. Silva (2003) parece sugerir que
esta seria uma casa de Quimbanda. Entretanto, conforme o relato que Mãe

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Ieda fez a estes autores durante as celebrações aqui relatadas, fora ela mesma
e o seu Exu que teriam inaugurado a Quimbanda. Portanto, é possível que a
casa de religião de Pai Eliseu de Ogum fosse uma casa de Umbanda com um
trabalho de Exu bem estabelecido – que poderíamos chamar até mesmo de
uma proto-quimbanda afro-gaúcha.
Nestes termos, a casa de Pai Eliseu poderia ser o que Leistner (2014) destaca como
uma possível antecessora da Quimbanda, a chamada Linha Cruzada, que teria
permitido a individualização da Quimbanda afro-gaúcha. A Linha Cruzada,
segundo o referido autor, seria uma modalidade compartilhada das três ver-
tentes principais afro-gaúchas: Batuque, Umbanda e Quimbanda. A casa de
Pai Eliseu poderia ser, portanto, uma casa de cruzamento entre Umbanda e
Batuque. Leistner (2014) chama a atenção para o fato de que Linha Cruzada
e Quimbanda, na literatura, costumeiramente possuem o mesmo significado.
Entretanto, ele mesmo prefere utilizar Quimbanda para se referir ao culto de
Exus, embora assuma que o mesmo termo possa ser utilizado para denominar
o culto específico de Exus dentro da Umbanda.
Apesar de Mãe Ieda relatar que começou a trabalhar com Seu Sete ainda na Umbanda,
os dois, em pouco tempo, criaram o que seria conhecido como Quimbanda,
uma religião própria para os Exus. Essa Quimbanda persiste com força e com
vigor no ano de 2022. Atualmente, a Quimbanda de Mãe Ieda conta com fi-
lhos e filhas por todo o Brasil, liderando casas de religião e adeptos em Mairi-
porã (São Paulo), na Argentina e no Uruguai, sem falar do Rio Grande do Sul.
Diante desse contexto, o presente artigo apresenta a festa e a cerimônia que ocorreram
em 13 de agosto de 2022, registrada por um dos autores do presente trabalho,
na ocasião do sexagésimo segundo aniversário de Seu Sete, na casa de reli-
gião de Mãe Ieda de Ogum (Ilê Nação Oyó), situada na Cidade Baixa, Porto
Alegre - RS, Brasil, com ênfase nas celebrações e no ritual das Facas de Boi.
A festa será ilustrada com imagens da casa de Mãe Ieda, com a intenção de mostrar
como todos os ambientes e altares da casa de religião são revestidos de um
forte simbolismo que remetem à sacralidade do espaço e de um tempo mítico
que se renova nas celebrações. Para Silva (2008), as esculturas da arte afro-
brasileira exprimem valores coletivos e individuais, tendo o corpo um lugar
central, e assim deve ser, pois é ele o receptáculo do divino na incorporação.
Como será visto, as imagens de Exus e Pombagiras povoam o universo re-
ligioso do templo dedicado a essas divindades e recebem toda a atenção da
sacerdotisa no sentido de sua revitalização.
Assim, este artigo se ocupará de apresentar os relatos tanto da festa quanto da ce-
rimônia supracitadas, visando analisar seus elementos, personagens e o de-
correr da hibridização destes dois acontecimentos. A metodologia utilizada
foi a observação etnográfica in loco, principalmente por meio da observação
participante. Na primeira parte do artigo, apresentamos o cenário da Quim-
banda afro-gaúcha, uma vez que é essencial descrever o contexto no qual as
celebrações relatadas estão inseridas. Já na segunda parte, apresentaremos o
palco das celebrações, a saber, a casa de religião de Mãe Ieda de Ogum, em

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Porto Alegre, RS. Além disso, nessa parte, discutiremos os acontecimentos
relativos à festa de aniversário do Seu Sete. Na terceira parte do artigo, foca-
remos na apresentação da cerimônia de outorga da Faca de Boi, o grau mais
alto no sacerdócio da Quimbanda afro-gaúcha. Finalmente, apresentaremos
uma quarta parte, na qual todos os dados coletados e apresentados servirão
de sustento para conclusões e observações pertinentes a dois momentos sin-
gulares da Quimbanda no Rio Grande do Sul, que suscitará novas matizes de
discussão sobre as religiões afro-brasileiras.

UM BREVE RETRATO DA QUIMBANDA NO RIO GRANDE DO SUL

As religiosidades afro-gaúchas se expressam através do Batuque, da Umbanda e da


Quimbanda. O Batuque representa a face mais tradicional e africanizada des-
sas religiosidades, com a presença de orixás, tendo como língua litúrgica o
nagô. A Umbanda, como em todo o Brasil, congrega a diversidade do povo
brasileiro, os espíritos dos pretos-velhos e pretas-velhas, caboclos e cabo-
clas, crianças, boiadeiros, marinheiros, inúmeras entidades que representam
as camadas populares do país. A Quimbanda, por sua vez, nada mais é do que
o culto ao Povo da Rua, denominação dada aos Exus e Pombagiras (ORO,
2008; LEISTNER, 2014).
A entrada das religiões afro no Rio Grande do Sul deu-se como em outros estados
brasileiros, através da diáspora negra e da violência colonizadora, que ten-
tou destruir as experiências culturais dos africanos com interesse exclusivo
de usar o povo negro como mão-de-obra barata a ser utilizada nos engenhos
de cana-de-açúcar, na lavoura de algodão, nas minas, e posteriormente nas
fazendas de café (CORRÊA, 2005). No caso do Rio Grande do Sul, foi nos
anos de 1700 que escravizados chegaram de diferentes partes do país para tra-
balhar nas charqueadas. O crescimento das cidades, movido pela economia,
dinamizou o setor de serviços, incluindo a participação de negros e negras,
que trabalhavam nas ruas para seus senhores. Dessa forma, o intenso contato
entre diferentes grupos acabou por propiciar, no século XIX, a formação do
Batuque na região da cidade de Pelotas, e a partir dali se espalhou pelo res-
tante do estado (CORRÊA, 2005).
Algumas nações, chamadas de lados, se destacaram na formação do Batuque, como a
Jeje, a Ijeja, Oió, Cabinda, Nagô e Jeje-Ixexá, que se diferenciam a partir dos
aspectos litúrgicos, das canções e toques dos tambores. De forma geral cultuam
os orixás Bará, Iansã, Ogum, Obá, Xangô, Iemanjá, Oxalá, Japanã, Odé, Oxum,
Oxalá e Ossanha. Cada orixá possui qualidades específicas, símbolos, ritos e
animais específicos para a imolação sagrada (ORO, 2012; TADVALDI, 2016).
Quanto à Umbanda, de acordo com Leistner (2014), essa chega ao Rio Grande do Sul
via religiosos já iniciados nos códigos umbandistas em outros estados brasi-
leiros. A primeira casa de que se tem notícia é de 1926, na cidade de Rio Gran-
de, chamada de Templo Espírita e Umbanda Reino de São Jorge, fundado pelo
ferroviário Otacílio Charão. Apesar de não haver muitos dados sobre ele, é

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bem possível que o ferroviário tenha circulado pelo Rio de Janeiro, dadas as
semelhanças de suas práticas religiosas com a Macumba carioca (LEISTNER,
2014). Em 1932, a Umbanda chega a Porto Alegre, fundada pelo oficial da
marinha Laudelino de Souza Gomes, com o nome de Congregação Espírita
dos Franciscanos de Umbanda. O dito oficial Laudelino também viveu no
Rio de Janeiro e em São Luiz do Maranhão, onde fora iniciado. A partir daí,
outros terreiros vão sendo fundados, sendo sua expansão marcada por forte
influência do espiritismo kardecista, retirando os sacrifícios de animais do re-
pertório ritualístico, diminuindo o tempo de iniciação, assim como o tempo da
celebração ritual, acompanhando os valores da sociedade da época e inserida
num contexto de urbanização e industrialização do país. Já em 1950, a Um-
banda estaria consolidada no estado gaúcho, momento que também tem início
a Linha Cruzada, como veremos a seguir (LEISTNER, 2014)
Em relação aos aspectos das representações coletivas e rituais, eles se assemelham
àqueles presentes nos centros de Umbanda em todo o país, com a presen-
ça dos orixás iorubanos compondo as linhas de Umbanda, transmitindo suas
energias aos espíritos que representam os antepassados, aqueles que sofreram
a violência da escravização ou que foram explorados e marginalizados pela
sociedade brasileira, sendo encontrados de forma mais recorrente os guias ou
espíritos dos pretos e pretas velhas, caboclos e crianças (ORO, 2002). A um-
banda seria a face mais desafricanizada das religiosidades afro. Assim, para
que essa fosse reconhecida como uma religião de matriz africana foi neces-
sária a inclusão de elementos que a legitimassem como tal através da criação
de um espaço onde a africanidade pudesse ser acolhida, primeiro pela Linha
Cruzada e depois pela Quimbanda, embora encontremos autores que enten-
dam que esses termos se refiram à mesma prática, como Oro (2002; 2012).
A Linha Cruzada teria iniciado no final de década de 1950 – início da década de 1960.
Seu surgimento não se deu de forma pacífica, uma vez que enfrentou ten-
sões dentro do próprio campo religioso, onde muitos a encaravam como uma
deturpação da Umbanda, considerada de raiz, pura. Afinal, a Linha Cruzada
surgiu como um encontro do Batuque e da Umbanda, que eram praticados
pelas mesmas pessoas e nos mesmos espaços físicos, embora em momentos
e ocasiões separadas (LEISTNER, 2014). Para Oro, entretanto, o surgimento
da Linha Cruzada/Quimbanda (este autor usa os dois termos como sinôni-
mos) teria se dado nos anos de 1970, num momento de graves crises sociais,
desemprego e inseguranças (ORO, 2012). Apesar dos conflitos, o cresci-
mento desse campo religioso foi considerável, e alguns elementos podem ser
apontados como sendo a causa dessa expansão: o aprendizado ritual é mais
simplificado e leva menos tempo que o do Batuque; os custos são menores;
a “força mística” do Batuque e da Umbanda podem ser agregados; há uma
acentuação da experiência religiosa imanente, gerando maior eficácia sim-
bólica para os devotos; os médiuns têm a liberdade de colocar em prática sua
performance de maneira mais pessoal; existe total aceitação das pessoas e
suas sexualidades, etnia, condição social e experiências de vida; a religião

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tem um viés prático, voltado para os encaminhamentos simbólicos dos pro-
blemas da vida cotidiana (ORO, 2012).
Outro autor, Leistner (2014), afirma que as denominações Quimbanda e Linha Cruza-
da foram termos intercambiáveis historicamente por razões políticas, diante
da forte conotação pejorativa do termo Quimbanda. A Linha Cruzada seria um
termo empregado para identificar um conjunto de práticas acomodadas dentro
de uma mesma unidade de culto, quando elementos do Batuque, da Umban-
da e da Quimbanda estariam presentes. Já Quimbanda seria um termo “ora
empregado para se referir a uma vertente autônoma do culto aos exus, ora
para descrever uma subcategoria ritual da Umbanda (Linha de exu), na qual
aquelas divindades são também cultuadas” (p. 27). Nesse sentido, cumpre
notar que na casa de Mãe Ieda, Quimbanda e Linha Cruzada não se confun-
dem. Para ela, sua religião é a Quimbanda, conforme ela pontuou durante as
celebrações ora reportadas.
Para Leistner (2014), até meados da década de 60, os cultos a Exus e Pombagiras no
Sul estavam impregnados das concepções umbandistas, ou seja, ainda ope-
rando muito dentro de uma concepção da Linha Cruzada, onde diferentes
elementos religiosos estavam integrados no culto. Nesse contexto, é impor-
tante notar que a Quimbanda afro-gaúcha não pode ser considerada como
uma categoria de acusação que se expressa por uma noção de magia negra
presente no lado esquerdo da Umbanda, subordinada à linha dos espíritos de
luz, evoluídos, também coloca Leistner (2014). Essa Quimbanda deixa de ser
tolerada dentro do próprio campo umbandista, no qual as entidades são edu-
cadas pelos cambones, adeptos que atuam como auxiliares das entidades que
estão incorporadas nos médiuns, para que possam evoluir espiritualmente de
acordo com os preceitos dessa religião. A Quimbanda, então, no Rio Grande
do Sul, se distanciando dessas concepções negativas do culto, passa a ocupar
um espaço próprio, autônomo, tendo como primeira mudança no código ritual
a feitura dos Exus, agora tendo seus próprios assentamentos e recebimento
da sacralização animal como recurso de mediação simbólica, “recuperando
parte do modo como eram cultuadas nas antigas Macumbas e se distanciando
de forma substancial da liturgia presente na Umbanda” (LEISTNER, 2014,
p. 143). A feitura dos Exus se aproxima, pois, de uma absorção dos códigos
rituais do Batuque, tanto nas práticas sacrificiais quanto nas similaridades das
oferendas destinadas ao orixá Bará (LEISTNER, 2014).

ONDE SEU SETE HABITA – A CASA DE RELIGIÃO DE MÃE IEDA

A casa de religião da Mãe Ieda de Ogum está localizada no coração da boemia da cidade
de Porto Alegre, local onde estão situados muitos bares que reúnem jovens até a
madrugada para beber e se divertirem. No entanto, quem passa por ali não per-
cebe que está passando por um portal que leva a outro mundo, a entrada do Ilê
Nação Oyó. O pequeno portão de ferro revela apenas um corredor muito estreito
e comprido. Do lado de fora, duas placas gastas (Figura 1) anunciam do que se

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trata o local. Quem atravessa os dito portão e corredor (Figura 2), entretanto, logo
começa a descobrir um complexo socio-religioso-familiar. O Ilê Nação Oyó não
é apenas uma casa de religião, mas é a casa de Mãe Ieda, de sua família e de seus
muitos amigos e admiradores que parecem sempre estar dispostos a visitá-la.
O Seu Sete de Mãe Ieda de Ogum é um Exu da alta, no sentido de ser evoluído, ao con-
trário daqueles da Umbanda localizados na baixa hierarquia espiritual, e essa
evolução se apresenta também em suas vestes que denotam realeza, assim
como em outros elementos, trono, cetros e o recebimento de presentes valio-
sos pelos trabalhos prestados. Exu, na Quimbanda de Mãe Ieda, possui auto-
nomia em relação a outras entidades, sendo motivo de grande orgulho para ela
e para todos dos médiuns da casa (GIUMBELLI & ALMEIDA, 2021).

Figura 1: Placa de entrada localizada acima do portão


Fonte: Acervo digital Eduardo Regis (2022).

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Figura 2: Fotografia – Corredor de entrada
Fonte: Acervo digital Eduardo Regis (2022).

Uma das paredes (à direita) está repleta de pinturas e exibe a saudação Ogunhê, tí-
pica do Orixá Ogum dentro da Umbanda (SANTANA JUNIOR, 2001). No
momento da foto, já figurava um bode que seria oferecido nas obrigações da
noite. Assim que as celebrações começaram, como veremos mais adiante, este
mesmo corredor estava repleto de animais.
A parte religiosa domina a dianteira do complexo. Assim que se entra, encontra-se um
pequeno pátio coberto (Figura 3) onde há imagens de Ogum e fotos do Seu
Sete, bem como compartimentos fechados, nos quais são guardadas imagens
de Exus e de Pombagiras. Este pátio se liga por uma porta a um salão, no qual
também há várias imagens, e um pequeno quarto, também povoado por ima-
gens, e onde ficam guardadas bebidas para venda e consumo nos dias de festa.
Neste salão (Figuras 4 e 5), há duas figuras enormes do Seu Sete e da Pom-
bagira Rainha das Sete Encruzilhadas (Dona Sete, doravante). Estas figuras,
acompanhadas de outras imagens menores, ficam em um pequeno anexo ao

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salão. Na lateral desse anexo, há um pequeno quarto no qual Mãe Ieda realiza
jogos oraculares para clientes. O dito salão também tem um corredor ainda
mais estreito do que o de entrada, que leva para o quarto de dormir da Mãe
Ieda, que tem um banheiro feminino e que termina em um pátio interno, que
também pode ser acessado por um corredor saindo do primeiro pátio.
Observa-se certa continuidade do espaço íntimo da sacerdotisa, o quarto de dormir de
Mãe Ieda, com o espaço religioso, o que demonstra a ação de Exu, possibili-
tando uma “continuidade” entre estes dois espaços, um desafio às noções dico-
tômicas entre o espaço sagrado e espaço profano. Silva (2012) se refere a essa
composição como a capacidade de Exu fazer ligações, construindo passagens,
presidindo encruzilhadas, como nos mercados, cemitérios, praias e outros terri-
tórios. Numa direção contrária à de Eliade (2018), em que o sagrado se destaca
significativamente do profano, exaltando as diferenças entre eles, podemos pen-
sar que talvez a Quimbanda de Mãe Ieda desafie o entendimento desse autor.

Figura 3: Pátio externo


Nota: pátio ao qual se chega seguindo o corredor que vem do portão que dá para a rua.
No momento da foto, o pátio estava repleto de imagens que haviam sido lavadas com
bebidas alcoólicas. É possível notar três compartimentos, um aberto e dois fechados
(com portas vermelhas), onde são guardadas algumas imagens de Exu e de Pombagira.
Fonte: Acervo digital Eduardo Regis (2022).

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Figura 4: Detalhe do salão principal
Nota: altar votivo encontrado dentro do salão principal. Destaque para o bolo de
aniversário do Seu Sete.
Fonte: Acervo digital Eduardo Regis (2022).

Figura 5: detalhe do nicho ou quartinho dos Exus no salão principal


Nota: nicho ou quartinho de Seu Sete e Dona Sete no salão principal. À esquerda, a
cortina leva a uma pequena sala na qual Mãe Ieda realiza consultas espirituais.
Fonte: Acervo digital Eduardo Regis (2022).

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O pátio interno possui um banheiro masculino, quartinhos de estoque de utensílios,
um tanque e também dois anexos, onde estão imagens de Exus e Pombagi-
ras, inclusive de Seu Sete, de Dona Sete (Figura 6). Atrás do pátio, há uma
cozinha e, por isso, nesse pátio são realizados churrascos – geralmente com a
carne dos animais que são sacrificados nas obrigações. Desse pátio, segue-se
um corredor que dá acesso à dita cozinha e a outra área deste complexo, que
guarda as chamadas “peças”, quartos muitos simples que são alugados como
moradia e que talvez também sejam usados para obrigações religiosas. Ao fim
desse corredor, chega-se a uma área doméstica.

Figura 6: Nicho ou quartinho dos Exus no pátio interno


Nota: nicho ou quartinho de Seu Sete e de Dona Sete no pátio interno. Diversas imagens
de Exus e Pombagiras que seriam agraciados com oferendas também estavam presentes.
Em destaque, no canto inferior direito da fotografia, é possível notar a imagem do Exu
Sete Facadas, um dos Exus mais importantes da casa, vestido com um terno branco.
Fonte: Acervo digital Eduardo Regis (2022).

Neste dia 13, a casa estava agitada. A todo o momento, pessoas entravam e saiam
trazendo animais, bolo e outras encomendas. Mesas, cadeiras e outros uten-
sílios eram retirados e colocados na rua para abrir espaço para a festa que
começaria logo mais à noite. Conversar com mãe Ieda era uma tarefa um tanto
complicada, pois ela era constantemente demandada para resolver todo o tipo
de questão e também por pessoas que apenas queriam sentar-se um pouco ao
lado dela e trocar algumas palavras.

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Apesar da idade, ela tem mais de oitenta anos, Mãe Ieda é jovial e gosta de conversar.
Ela não fala espanhol, mas faz o que pode para entender e conversar com os
inúmeros filhos e filhas que chegam a cada momento da Argentina. Na festa
do dia 13, não seria exagero dizer que quase metade dos presentes eram ar-
gentinos, o que transformou a casa de Mãe Ieda em uma torre de babel curiosa
onde se ouvia português em diferentes sotaques, espanhol e portunhol. Isso
sem contar o jargão da religião, com seus termos que podem parecer verdadei-
ramente uma língua estrangeira para os que não são adeptos dela – como a pa-
lavra elebó, por exemplo, que denomina um prato servido em algumas festas.
Paralelamente à festa, ocorreria uma série de obrigações, dentre as quais a da Faca
do Boi, sobre a qual discutiremos na próxima seção, tornando o dia da festa
ainda mais abarrotado de tarefas. A todo o momento adeptos da Quimbanda
entravam, saíam e se revezavam nas mais variadas tarefas. Nessa festa come-
mora-se a primeira vez que Seu Sete se manifestou – por isso, a celebração é
equiparada a um aniversário. O bolo enorme e caprichado que estava no salão
não deixava dúvidas de que o que estava por vir seria uma demonstração de
carinho ao Seu Sete, com paralelos inegáveis com uma festa que é organizada
para um membro da família.
Conforme o anoitecer se aproximava, mais e mais pessoas chegavam para a festa.
Seguindo os preceitos da Quimbanda afro-gaúcha, os adeptos que recebe-
riam – incorporariam – Exus e Pombagiras vestiram-se ao gosto dos espíritos.
Alternativamente, muitos utilizavam uma blusa confeccionada especialmente
para a festa, com o rosto de Seu Sete estampado nela. Ainda, a ampla maioria
dos médiuns estava descalça e todos que fossem receber seus espíritos de-
viam portar um chapéu. Esse código de vestimenta é interessante, pois só é
permitido o uso do chapéu pelo médium incorporado, de maneira a identificar
claramente quem é Exu e quem não é.
Aos Exus e às pombagiras, aliás, são reservados outros códigos sociais. Além do uso
do chapéu, é curioso notar que o fumo só é permitido no salão de festas a eles.
A quem não estiver incorporado é gentilmente requisitado que não fume no dito
salão, embora o fumo seja permitido nos outros ambientes, como nos pátios.
O fumo é um elemento bastante presente no culto de Exu e Pombagira, pois, por ser
vegetal, traria elementos de terra e de água como algo inato e que ao ser ace-
so, faria alusão ao fogo e ao ar, sendo usado também como descarrego na des-
truição de campos magnéticos negativos (LIMA, 2021). O uso do fumo, nessa
perspectiva, teria um caráter mágico, espiritual, agindo como uma barreira
contra as energias indesejáveis. Na festa, os médiuns incorporados estavam
constantemente fumando ou pedindo um pito, fumo, para alguém, o que pode
ser visto como a expressão de um ato prazeroso, retratando o mundo em que
viveram em épocas passadas, quando os cigarros e bebidas alcoólicas estavam
sempre presentes nos bares e cabarés. Nessa ritualística do fumo é possível
pensar sobre Exu e Pombagira promovendo a continuidade entre espaços su-
postamente distintos, colocando em continuidade o sagrado e o profano, as-
sim como também o passado e o presente.

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Perto das dezenove horas do dia em questão, quase todos já estavam presentes. A casa
de religião de Mãe Ieda estava lotada. No corredor de entrada, cerca de qua-
torze cabras e bodes e mais de cinquenta aves estavam presos, aguardando o
momento das obrigações religiosas. O banheiro masculino havia sido inter-
ditado, pois fora preciso guardar um porco dentro dele. Com a quantidade
elevada de pessoas e a bebida – principalmente cerveja – e também com as
mulheres usando o cômodo para se arrumarem, ir ao banheiro havia se tor-
nado uma tarefa árdua. Por conta disso, muitos homens passaram a usar o
banheiro interditado, mesmo com o porco preso em uma caixa dentro dele.
Era preciso pular o porco para alcançar o vaso sanitário, mas isso não inibiu
a maioria dos convidados.
Na hora do início da festa, um grupo de músicos estava arrumado o salão, munidos
de tambores similares aos ilus africanos, enquanto os participantes dentro do
ambiente aguardavam Mãe Ieda. Ao chegar ao salão, ela sentou-se em uma
cadeira e começou a ser cumprimentada por diversos convidados. Da manei-
ra costumeira, os convidados se ajoelhavam diante dela e beijavam as suas
mãos em sinal absoluto de respeito. Após alguns instantes, o bolo foi trazido
até Mãe Ieda, uma vela preta e vermelha acesa e começou o “parabéns para
você” (Figura 7). Neste momento, não seria possível saber se era Mãe Ieda
quem ali estava ou se o Seu Sete já havia chegado, salvo pelo fato de que Mãe
Ieda ainda não vestira sua boina branca, indicando que ainda não havia incor-
porado Seu Sete. Após o “parabéns”, os músicos começaram a tocar músicas
de Quimbanda, chamadas de pontos cantados. Neste momento, gargalhadas
e gritos encheram o salão, pois a grande maioria dos médiuns havia sido in-
corporada e agora uma multidão de Exus e Pombagiras dançavam pelo local.
Seu Sete se levantou com um pequeno tridente nas mãos e, dançando e caminhando,
foi sendo seguido por diversos Exus e Pombagiras. A comitiva – chamada na
Quimbanda gaúcha de Corte Real – saiu pelo salão, foi até o pátio de entrada,
seguiu pelo corredor estreito que leva ao pátio interno e voltou. A festa havia
começado e, agora, comandada pelos exus, ela começava a se misturar com
as obrigações da noite.

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Figura 7: Parabéns para o Seu Sete
Nota: o “parabéns” para Seu Sete. É possível notar Mãe Ieda atrás do bolo, ainda sem
a sua boina branca, que indicaria a chegada do exu.
Fonte: Acervo digital Eduardo Regis (2022).

AS FACAS DE BOI E AS OBRIGAÇÕES DA NOITE

O sacrifício de animais é uma ritualística que tem centralidade nas religiões afro-bra-
sileiras e tem o sentido de trocas simbólicas entre as divindades, seres espiri-
tuais e os membros da comunidade religiosa, realizando a comunicação entre
este mundo e o mundo sobrenatural (ORO; CARVALHO; SCURO, 2017).
Essas trocas dizem respeito às oferendas, às entidades em agradecimento e ao
auxílio prestado por elas aos adeptos. A matança, como também é chamado
o ritual, fortalece os vínculos de solidariedade entre os membros da comuni-
dade, uma vez que todos podem usufruir do banquete compartilhado com os
deuses e deusas, e também, dependendo do tamanho do animal, podem levar
um pedaço de carne para casa, para ser consumido na alimentação diária.
Consumir as partes de um animal devotado ao sagrado é compartilhar o Axé
dos orixás, energia vital incomensurável, que renova e fortalece a força dos
seres humanos e de tudo que existe (TADVALD, 2007).

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A faculdade de imolar um animal é conferida a apenas algumas pessoas que, em seu
aprontamento (iniciação), receberam de sua mãe ou pai de santo a mão de
faca, também chamada de o Axé da faca, a autorização para realizar o ritual
(OXÓSSI, 2023). Essa função, para ser alcançada, inclui uma grande dedica-
ção à comunidade religiosa e à aprendizagem dos fundamentos da casa, sob
orientação espiritual da liderança religiosa. Para a realização do sacrifício, é
necessário ter mão, ou seja, ele deve ser feito por uma pessoa que tem o dom de
movimentar as forças cósmicas. A faca se torna, pois, uma extensão do corpo
do iniciado e proporciona um fluxo energético que é capaz de transformar as
situações nocivas de vida dos devotos (FAVARO; CORONA; RAMOS, 2022).
Na Quimbanda gaúcha, durante os anos de aprendizado na casa e avanço hierárquico
do iniciado, como diz Oxossi (2023), filho de Mãe Ieda, diversos graus de
faca vão habilitando o médium na prática do sacrifício. Dessa forma, a Faca
de Feitiço é restrita à imolação de aves, e seu uso pode ser feito por qualquer
iniciado; a Faca de Feitura ou Faca de Pronto está vinculada aos rituais de
ordenação no sacerdócio e destinada à imolação de aves e caprinos; a Faca
de Egun é usada nos sacrifícios aos mortos apenas pelos sacerdotes que têm
igbalé de Exu em seus templos, e finalmente, a Faca de Boi é entregue para
poucos, com grande honraria, pois o animal é considerado como o Axé Real
(OXOSSI, 2023).
A imolação de animais, a oferenda de suas partes para uma divindade ou espírito e a
distribuição de outras partes para os devotos adquirem em Mauss (2005) o
sentido da dádiva, quando é necessário retribuir aos deuses e deusas tudo que
eles oferecem, desde a força espiritual até os bens materiais. Na cosmovisão
afro-religiosa essa troca é algo compreendida de forma natural, uma vez que
os entes sobrenaturais são os donos de tudo o que existe, e como nesse campo
religioso o santo come, pois participa de todas as atividades cotidianas dos
adeptos, oferecer o alimento à divindade é um ato de comunhão com o sagrado.
Entre as obrigações mais importantes da noite da festa de aniversário estava o sacrifí-
cio de um boi e a distribuição de Facas de Boi, que atribuíram aos seus donos
o poder (ou outorga sacerdotal) de sacrificarem bois em suas casas religiosas.
Além disso, diversos Exus e Pombagiras seriam “alimentados” com “quatro
patas”, ou seja, cabras e bodes. A alimentação dos espíritos é um fundamento
que sustenta os territórios afro-religiosos e diz respeito à vida, e não à morte.
Imolar um animal e compartilhar suas partes, incluindo a divindade e a co-
munidade religiosa, produz a ideia de continuidade, de transformação (TAD-
VALD, 2007). Assim como os seres humanos necessitam se alimentar para
sua sobrevivência, assim também acontece com as entidades sobrenaturais.
Essa lógica aponta para a estreita ligação dos fiéis com os espíritos, que estão
presentes em todos os momentos da vida cotidiana do adepto.
Por conta das obrigações era possível sentir desde cedo uma tensão entre os participan-
tes. Muitas conversas pela casa se referiam a quem viria ou não, a que horas
chegaria uma ou outra pessoa para preparar suas coisas e assuntos similares.
Isso porque, para que o espírito seja corretamente alimentado, é necessária

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uma preparação prévia da sua imagem, que funciona como sua representação
terrena. Essa preparação inclui muitas vezes pintar a imagem para deixá-la
com aparência de nova, muitas vezes variando as cores, o que os adeptos da
Quimbanda afro-gaúcha chamam de trocar de roupa. Além disso, a imagem
é colocada numa bacia com folhas de mamona e outros elementos e lavada
cuidadosamente com cachaça, no caso dos Exus e da Pombagira Maria Mo-
lambo, e com espumante, no caso das demais Pombagiras.
Essa lavagem é de responsabilidade de cada adepto, mas percebemos que os mais no-
vos, que ainda estão aprendendo, muitas vezes acabam tomando essas tarefas
de maneira indiscriminada e trabalham para outros que não seus pais e mães
de santo, motivados tanto por uma vontade de se mostrarem prestativos, quan-
to por um senso de comunidade que deseja que tudo corra bem nas cerimônias.
Em verdade, as preparações começaram dias antes da obrigação, com arrumações, com-
pras, pintura de imagens, de quartinhas e outros pequenos ajustes. Como nesse
treze de agosto a festa de aniversário do Seu Sete e as obrigações coincidiram,
em muitos momentos era difícil dizer exatamente se uma dada arrumação ou
tarefa serviria a uma, ou às outras. Ocorreu uma grande amálgama dessas duas
ocasiões. O consenso geral entre os participantes era que essa condição sui ge-
neris tornara todo aquele momento prévio mais complicado e atarefado.
As Facas de Boi também necessitavam de preparação prévia. Ao longo do dia, elas
receberam tratamento especial, que não será descrito aqui em respeito aos
processos religiosos, para o ritual. O elemento final seria banhá-las com o
sangue do boi sacrificado.
Era difícil imaginar como um boi passaria pelos corredores estreitos da casa de Mãe
Ieda. Porém, outros bois já haviam sido sacrificados naquele mesmo local,
então, apesar da tensão de se ter de lidar com um animal de tão grande porte,
todos estavam certos de que não haveria impedimentos importantes.
O início da cerimônia contou com o chamado calçar a rua, em que os adeptos jogaram
pipoca e cachaça nos quatro cantos da encruzilhada mais próxima, bem como
acenderam velas. Curiosamente, os transeuntes e as pessoas nos bares não
pareceram surpresas ou incomodadas. Depois, os adeptos retornaram com a
pipoca para o nicho do Seu Sete e de Dona Sete no pátio interno e ofereceram
um pouco dela ao casal.
Quando o boi chegou, começou uma comoção geral. Exus saíram para conduzir o boi
até o pátio interno onde seria sacrificado. Com muito cuidado, o animal foi
colocado no dito pátio e preso por cordas e imobilizado por diversos Exus e
Pombagiras. Quando o animal estava em uma posição segura, embora estives-
se nervoso e desse alguns coices vez ou outra, bem como tremesse tentando
livrar-se daquela situação, o boi foi sacrificado por cortes de faca, sendo o
primeiro corte dado por Seu Sete, cabendo ao Exu João Caveira terminar o
abate sacrificial. As facas foram banhadas em sangue e os Exus e os partici-
pantes aproveitaram para receber o Axé – algo similar à “energia”, uma força
que dinamiza e incentiva a prosperidade - do boi lavando as suas mãos no
sangue do animal.

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Imediatamente, alguns profissionais contratados previamente começaram a remover o
couro e a separar os cortes de carne do boi. O pátio, então repleto de sangue,
passava a testemunhar uma tarefa braçal exaustiva, enquanto os profissionais
carneavam o boi a duros golpes de facão.
Após o sacrifício do boi e quando do fechamento da cerimônia das Facas de Boi,
passou-se aos sacrifícios das cabras e cabritos para alimentarem os Exus e
Pombagiras, mas, dessa vez, no pátio de entrada. Como rei e dono da casa,
Seu Sete conduziu os sacrifícios, tendo o auxílio de outros Exus e Pombagi-
ras. Conforme os quatro patas eram sacrificados, eles eram entregues para
os profissionais para a limpeza. Em relação às aves, ficou a cargo dos pais de
santo e de seus filhos e filhas – ou ainda de Exus e Pombagiras – realizarem a
sua limpeza na cozinha.
Mais para a madrugada, os Exus e Pombagiras se reuniram no pátio interno e foi dis-
tribuído o elebó, prato contendo muito Axé, preparado com o fígado cru do
boi, farofa de dendê e pimenta. Em princípio, esse é um alimento servido ex-
clusivamente aos Exus e Pombagiras, mas um dos autores do presente artigo
foi aconselhado por Seu Sete Facadas a também consumir o mesmo, o que foi
considerado como um ato de generosidade e uma bênção.
Neste momento, muitos convidados e Exus já haviam se retirado, pois alguns foram
embora das celebrações após terem recebido seus quatro patas. De toda sorte,
após a distribuição do elebó, as festividades foram se encaminhado para o seu
final, com vários Exus indo aos pés de Mãe Ieda – já desincorporada – saudá-
la e também desincorporar.
Começaria então outra fase das celebrações – a da limpeza do ambiente. Alguns filhos da
casa deram início à limpeza no exato momento no qual tudo se encerrava. Enquanto
alguns viraram a noite limpando, outros, exaustos, foram dormir – já pelas quatro
da manhã – se preparando para auxiliar na limpeza e na arrumação no dia seguinte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Visando concluir, é oportuno que pensemos as relações e o capital simbólico que se


apresentam no relato acima, sendo possível pensar a Casa de Religião de Mãe
Ieda de Ogum como um território em que o profano e o sagrado são demarca-
dos por uma tênue linha, que quase desaparece nas festas quimbandeiras. Sua
casa parece hibridizar o que é dos espíritos e o que é das pessoas, com seus
anexos e ambientes que se misturam no uso corriqueiro.
O encontro entre os mundos dos Exus e das pessoas parece ser mesmo o tema central
da festa de aniversário do Seu Sete. É evidente que não se pode falar literal-
mente em aniversário para um Exu, que é um espírito de uma pessoa falecida,
mas ao se fazer este paralelo entre a chegada de um Exu e a comemoração de
um nascimento, o que está se celebrando, na verdade, é a longevidade de uma
relação. Neste caso, da relação entre a médium e seu espírito, que age como
um espírito tutelar e um amigo, Exu é mais do que apenas um espírito a ser
comandado, como fica claro pela própria preocupação em se comemorar a

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data. Assim, estas relações surgem regidas por um imaginário compartilhado,
o que nos aproxima de um modelo durkheimiano no qual um sistema solidário
de crenças parece estruturar a realidade tanto sagrada quanto a profana.
A estreita relação que Mãe Ieda tem com Seu Sete pode ser vista com sua preocupação
em pintar as imagens de Exu. Comentou seu filho, Pai Diego de Oxóssi, que dias
antes da festa, ela o havia alertado para a necessidade de pintar a imagem do Exu
Sete Facadas, pois as namoradas dele estavam chegando e ele não ficaria feliz
em recebê-las sem uma roupa nova, uma preocupação que chega a ser maternal.
O espaço da casa e da festa da Quimbanda de Mãe Ieda não é, de fato, completamente
homogêneo, ao menos não fisicamente. Há os quartos de dormir e uma par-
te que parece ser principalmente dedicada ao cotidiano profano, é verdade.
Porém, mesmo nesses, é provável que o sagrado toque. Por isso, se o espaço
físico ainda pode aparentar algumas rupturas, o espaço social, com a mistura
de rua, de casa e de sagrado e de profano, se revela como um acoplamento e
hibridização de existências.
Se as demandas levadas a Exu e Pombagira tratam, prioritariamente, da resolução de
problemas como amor, dinheiro, saúde, sexo, situações mundanas e dizendo
respeito ao material, por outro lado, o numinoso pode ser visto quando Mãe
Ieda declara para todos os presentes na festa ‘que estes espíritos têm sua ma-
gia ou usam determinados elementos para sua magia, recuperando o sentido
de mistério diante do sagrado, mistério esse que culmina com a troca entre
este mundo e o outro, através da amolação dos animais.
No momento do sacrifício do boi, ápice da festa de aniversário do Seu Sete, era palpá-
vel a excitação dos exus e pombagiras e até mesmo dos convidados que não
estavam incorporados, mas que compartilhavam daquela atmosfera. A dança
frenética, a presença do álcool e do fumo, o semblante dos médiuns incor-
porados deixava claro que seus corpos estavam habitados pelo sobrenatural.
Agora eram Exus e Pombagiras que presidiam a festa.
O sangue de um animal como um boi, de proporções gigantescas quando comparado
a um cabrito, neste sentido, é o elemento que vai proporcionar energia, Axé
para a casa e para todos os Exus e Pombagiras que estão vinculados a ela. Os
sacrifícios de animais menores, como aves e cabras, por exemplo, são espe-
cíficos para determinados espíritos, comprovando a relação estreita entre o
porte do animal, seu volume de sangue e uma espécie de qualidade de fartura.
Aponta para essa noção o fato de que após sacrificados, as patas e a cabeça
dos quatro patas, bem como as patas e penas das aves, ficam junto das ima-
gens do Exu para o qual foram ofertados.
Assim, de acordo com a noção de dádiva maussiana, conforme a potência da oferta
aumenta se agiganta também a expectativa de retorno – chegando ao ponto de
um só boi ser capaz de trazer benesses para toda uma Casa de Religião e até
mesmo aos convidados presentes.
E, assim, é encerrada a festa de aniversário do Seu Sete de Mãe Ieda de Ogum, trans-
mitindo a todos a certeza de que o Axé da vida cotidiana foi renovado, que a
força espiritual lhes acompanhará.

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THE BIRTHDAY OF EXU KING OF THE SEVEN CROSSROADS AND THE OX’S KNIVES –
AFRICAN-GAÚCHAS CELEBRATIONS

Abstract: This article deals with the report constructed by participant observartion about two
celebrations that took place in Porto Alegre (RS, Brazil) in the context of the African-
Gaúcha Quimbanda, a mediunic religion based on the possession by Exus and Pomba-
giras. The first, a “birthday” party for the Exu King of the Seven Crossroads, a celebra-
tion to exalt the long time since this Exu has been “working”. The other, the distribution
of consecrated knives that allow their owners to sacrifice oxen. Both celebrations took
place on the same day, overlapping and forming a complex event disputed by support-
ers. This report aims at helping to unravel how people and spirits relate within African-
Gaúcha Quimbanda and also to contribute to a better understanding of rituals and
practices of this religion. As a conclusion, it becomes evident that sacred and profane
hybridize themselves, mixing what is of the spirits whith what is of the people, and also
spaces and experiences.

Keywords: Quimbanda; African-gaúchas Religions; Exu; Ox knives.

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