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REPUBLICA

MUSICAAL

M O D E R N I S T A

J O S E M I G U E L WISNIK
O ARREGAÇO

at mais importantc do que revisitar circunstâncias que cer-


as
aa realização da Semana de Arte Modernaé ler, cem anos
cam

uAs enfibraturas do Ipiranga", poema musical de Mário de Andrade depois,


encerra a Pauliccia desvairada.' Escrito antes da
que encerra
Semana, em 1921,
Ascnfibraturas do Ipiranga" é uma antevisão alucinada- como só
a Doesia seria capaZ de fazer- das entranhas sociais e artísticas do
acontecimento. Rebarbativo, desequilibrado e desmedido, mas fiel
a0 desvairismo que Mário professava no "Prefácio interessantíssimo",
o Doemaé uma espécie de pesadelo visionário no qual se expõe o
iogo deforças envolvidas no arregaço modernista para usar aqui
o termo empregado com precisão por Emicida, ao se referir ao even-
to de 1922 no filme AmarElo.2
Como sabemos, a Semana foi uma cerimônia de profanação do
templo da cultura burguesa --0 Theatro Municipal de São Paulo-
sem deixar de ser uma cerimônia burguesa que sacudia seu
próprio
território, pondo em confronto as correntes inovadoras e as corren-
tes conservadoras internas à classe que a promovia. O poema da
Pauliceia, no entanto, situava o embate não dentro do teatro, mas
fora dele, no grande anfiteatro do vale do Anhangabaú. Mário faz da
fenda geológica que corta o centro de São Paulo, contígua ao Muni-
cipal, o palco de uma batalha campal de forças comportamentaise
artísticas, encenando alegoricamente suas contradições gritantes.
Dessa massa, que vai dos "milionários e
burgueses" à "gente pobre",
posicionados em respectivos nichos territoriais como se estivessem
em camarotes, frisas, plateia e poleiro de um grande teatro de ópera,
fazem parte os incluídos e os excluídos da Semana, reunidos num
coro dos contrários que tem por palco a cidade que os engloba.3 Além
de antecipar o que viria a ser seu núcleo conflituoso, o poema dá ao
evento uma escala urbana e telúrica, ampliando seu alcance e diri
gindo-o dramaticamente ao futuro.
E certo que permanece nele algo daquele rúim esquisito que Ma-
nuel Bandeira identificou na poesia juvenil de Mário, e que podemos
reconhecer, com certa parcimônia, como um traço constitutivo na
dicção original do poeta da Pauliceia desvairada. Foi escrito num jorro

171
libe
Ocasiäo
do
"cstouro"
1ibertário e desrecalcante
por sacrificialmente à
"tempestade de:ichi,
de jii
lirismo".'

ofe oferccer
sacrilici.

Vinteé aDo
à se
onforme narrou, mais
ois, na conlercnciaa"O movimento modernista de Mas
ictou

quc
ri.a
com a Semana,

Ovim yinte anOs de


por
sua
embocadur

siona
dura convulsionada,
convulsionada
seu
caráter
fracassante
mesmo, e utópico, por escancarar s u a a m b i c ã o e a t e
imites
r
o
seus ruîngy
o pocma fala conosco, hoje, quando lnterrogamos
Brasil.
o d limites,da e
stino
modernismo e do
dc. do
gigantesco "oratório
Escrito à maneira de
um prof.

tOda a oral e
população de SãoCoral
sinfônico, cuja execuçao mobilizasse
de 550 mil vozes aquela altura), reunida em Pauly
em torno
de confronto no vale do AnhangabasPOS POSh.
Osta-
dos em posições
banda formada por "cinco
mil instrumentistas" (com orques
tra e
conjunto ingovernável de cordas, sopros e percussões ad libitu
mpondo u
re-
gido penosamente por "maestros... Vindos do estrangeiro").
secomporta como a narrativa dramatica de um evento musieal
poema
do
qual ele fosse, ao mesmo tempo, o texto e a partitura, incluindo in.
dicações de ritmo, de instrumentação e de dinämica, além da alusão
usão
a gêneros musicais, a naipes corais e orquestrais. Mais que um ora-
tório profano que representa a cidade, é uma representação em que a
própria cidade atua um oratório profano. Na contramão do caráter
unívoco, concorde e altissonante desse gênero de celebrações, se faz
de contrapontos em choque, de embates dissonantes e derrisórios.
O título alude ao centenário da Independência que se avizinhava,
associado, no entanto, não às "margens plácidas" do Ipiranga (do m
no, do grito e do riacho), mas às fibras entremeadas e contlagrad
ae um tecido social as-
ponto de se romper sobre o leito oculo
a
Sombrado do
Anhangabaú. Uma referência às comemoraçoes a olo-
geticas e patrióticas de datas cívicas, mas invocando ja unld nação

VOcal e
instrumental semelhante à das obras monumel
VIla-Lob0s Suas

comporia mais tarde,


massas corais-sinfônicas e sua
ao longo dos anos
mistura c a r a c t e r i s t i19
a i n a n t e vnen-
com

tos vio-
europeus com
indígenas ("Só aguentam o rubato a t o lancinante
inos, flautas, clarins, a bateria e mais borés e maracas
grupo das
moder

nistas, assumidos"Juvenilidades Auriverdes", formado pelos te


como "nós"- o sujeito coletivo d opoema

172
Op
errados" no fundo do valee se debate heroicamente, mes-
s e s" e n t e r r a d e

ssta da desafinaçã assumida e do pouco ensaio, contra o


cus
mo
que.
loquente dos "Orientalismos Convencionais", constituí-
b l o c og r a n d i

dêmicos, parnasianos e beletristas, entrincheirados


d op o ra r t i s t

do anelas e nos terraços do Theatro Municipal. Esse coro acadê-


mico e
radicionalista é secundado pela dança caricata, em tempo de
tradicio

inuete, Senectudes
das "Se
touete, das burguesia endinheira-
tremulinas"-a

e exib seu privilégio nas sacadas elegantes do outro lado do


da que
ngabaú (Automóvel Clube, Prefeitura, Rôtisserie, Tipografia
Anhangabaú

Weisflog, Livraria
Weisflog, Alves). Contraposta a todos, a massa dos assim
Livraria Alv
amados "Sandapilários indiferentes", formada por trabalhadores e
desempregados, ocupa o viaduto do Chá, avessa às batalhas campais
e mais interessada em árias de ópera italiana ou
da cultura de elite
na emergente música popular urbana (como a marcha carnavalesca

Pé de anjo", que de Sinhô).


era um sucesso recente

Entre vaias mútuas, Os grupos antagônicos se comportam como


torcidas nos nascentes estádios de futebol (torcida que, àquela
altura, ocupava às vezes parte do vale para acompanhar em tempo
real notícias lance a lance de jogos da seleção brasileira acontecendo
em outras cidades) A propósito, Nicolau Sevcenko diz, em Orfeu
extdtico na metrópole, que a cidade, "dissipada no caos de um cresci-
mento tumultuoso", encontrava no evento esportivo "a enfibratura"
capaz de organizar "pela exaltação" estratégica as correntes entrópi-
cas das multidões urbanas, buscando dar-lhes coesão.7 "As enfibratu-
ras do Ipiranga" combina assim, de maneira intencionalmente dis-
Crepante, o rito artístico da cultura erudita em crise - no qual se
EDatem os acordes bombásticos dos "Orientalismos", as interven
Oes dissonantes das
"Juvenilidades" e os ecos francamente anacrô0-
COS das"Senectudes"- com os sinais ruidosos da cultura de mas-
4
Cmergente, vocalizados pelos "Sandapilários", tudo reunido num
PO urbano que comecava a ser tomado pelas demonstraçoes es-
portivas.
e
Vocalizado
a1zado emem meio à falha e
em torno dela, junta
o rito de massa
divide a multidão. staura-se nele a polifonia cacofönica, a "grita
Insta
ompassada" da metrópole alegoria musical dos choques sociais
eculhu
culturais
-

avassalam a cidade e, por isso mesmo, figuração hiper-

173
da Semana dc Arte
Mrale
n e r v o s o

núcleo
núcl

a
ser
o o fronteiras c
Ironteiras
cuullttu
urra i s e ic classe. Enquante
viria

bolica

na.
mas
do q u e
alémde
indo
suas

convencionalismos
n a l i s m o s
convencionais
c

opressiv,
o n v e n c

de
onais (o
i o n a

marcha fim.
marcha
i

pleonasnoépr
priy,
fúncbre, Scguini
dos
("Temos n
nossos
o s s O S coros so no tom de d
c a d é n c i a

voves coros
uma
as
("Temos
assunmem

sital) ininterrupto

cipó/.[...]
] ória
Glória aos
Glóri iguais! Um é
c r s e m d o

utrina
de
de cipoj
convenci
ncionais!"
d o u t r i n a

um O r
O r i
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n t
t a
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l i
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s m
m o
o s
s

desafinados

os
os
Somos
Somos manifess
Para o s so/ como a manifestação.
desge
como
um
Todos
são despontam

dos! modernistas

somos
as
Juvenilidades
nilidades Auriverd
" J u v e n i l i d a d e s "

("Nós neraldas das


de Eros
das
pulsões bananeiras/
As
esmeraldas

araras O
rada
flâmulas
das
frat música do Universl
musica Univer
franjadas a
As Todos para
dos colibris,
[../ "ignorâncias iluminadas", buse
iluminadas"
rubis de
por meio de meta
errantes por
m e s m a s

Chamando-se
a si sonham
errantes

multifário
do infinito, e n t r e magnólias e rosas..
lvoradas entre
alvoradas

gosto das
t a r d o - r o m â n t i c a s
("Magia ão de
Pão de Icaros sobre aa toalha
lcaros sobre too
aos
alguéns../
visível
estelário de autoflageh.
Apelos do exCruciante processo
num
e entram
extática do azull")
conservadars
contra o paredao
da grita
chocam
medida que se
das "chatezas ho
cão à num
duelo coral, o
Dioco

Alternam-se, pois, ao burguês" da Pauliceia-


"Ode
se o burguês da
rizontais" (como
P a u l o " - se multiplicasse num coro
feita de São
a digestão bem libertária,
cantando um
torturante

cordão da diferença
tanático) e o um descompas
fosse ao m e s m o tempo
"Hino à Alegria" tropical que
não existia) ou,
ainda,
escola de samba (que ainda
sado enredo de 1S50,
lettre. Postos de través em meio a
uma parada gay
muito avant la
indiferentes" (a palavra
alude a antigos carregau
Os "Sandapilários
convivendo cotialkn
res de detuntos nos enterros pobres),
mesmo
d
participam
mente com a morte, como indica sua designação,
da canção popuk
exaltação de que acompanha a emergência massa
m-posta
como

de mercadoe vaiam tanto as chiquezas da cultura


as estridëncias de vanguarda. a n a d eAr

Vista assim, a polêmica estética que caracterizOu a arnasi

te Moderna -

isto é, a querela de poetas modernistas na sinfön Sinfönico

n0s, da pintura acadêmica com a expressionista, do pu man

como ruidismo futurista- acontece dentro de u tocon-

engolfando classes e grupos sociais em reaçoes díspares e aut


não reg

traditórias. O "oratório profano" da cultura dominante

174
mais, nem
idealmente, a socieda
idealmentc
de massas industrializada, com
ais, ne
sCus maestros "v)
vindos do estrangeiro"; assim também, a política ve-
us c a f é com leite das oligarquias, ou o que se chamou depois de
tha,oo
lha, Velha, senil e tremulina, não dá mais conta da escalae da
embates socioculturais. A massa urbana transita
R e p ú b l i c a

novos
dos
emergente Carnaval pelo gramofone;
c s c a l a d a

sansto
entre da velha
ogosto da ópera e o

sabendo-se tateante, e arcando com o peso


evaltacão modernista,
a exalt modern

assentados, namora, em delírios


pelo ataque a paradigmas
pa
Culpa decadentista. O texto é uma espécie de
com a autoaniqullaçao
febris, em Mário, a
sismógrafo
iemógrafo púpúblico do terremoto intimo que precedeu,
agônicae agonisticamen-
exneriência da Semana, que fez jogar-se
e o

e mesmo nas Contrições envolvidas


tenas constrições, nas contradições
no ato transgressor

Mas é oportuno observar,


desde quanto o cenário traçado no já, o

se tornará uma questão subjacente aos


poema aponta para aquilo que
desenvolvimentos posteriores do modernismo: 0 que fazer, para

além de combater a arte acadmica, com a pressão da cultura de


sociedade de massas? Qual o elemen-
mercado campo minado da no
essa barafunda? E, diante
to unificador capaz de orientar e reger
nacional? As res-
disso, que lugar tem a entidade "povo" no projeto
postas para perguntas
essas virão da música: à medida que o movi-
mento modernista passa da fase necessariamente atritante
da ação de
é na mú-
vanguarda para a fase construtiva de um projeto nacional,
Sica que se encontrará a aliança do intelectual letrado com o povo,

Daseadano substrato folclóricoe contraposta à intluência considera-


da
desagregadora da música popular urbana.
A republica musical modernista, se chamarmos assim a politica cul-

terá dois atores


que se desenhará jáno decorrer dos anos I920, Andra-
amentais empenhados na resposta a essa crise. Mário de
buscando una-
POLESSará a conversão do folclore em arte erudita,
no grande coral nacional do boi esse nume tutelar
p a í s
-

gueOmparece na cultura popular de norte a sul (como declara a

de mor-
dao do Ensaio sobre a música brasileira), entidade capaz
rer e
renascer nas danças dramáticas brasileiras. Villa-Lobos empla-
ará, Dor
Car, por outro lado, o ograma do canto orfeônico como política de
Estado, aoOlongo
g o do governo getulista, de 1930 a 1945,
introduzindo

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