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Cobra Norato
Raul Bopp
Prof.a Elaine
Norato cumpre as provas, mas não encontra a moça. Avança sozinho pela selva
insone. O entusiasmo inicial cede a um certo desalento: 'Onde irei eu que já estou
CONTEÚDO: como sangue doendo das mirongas da filha da rainha Luzia?'
O MITO
É uma das mais conhecidas lendas do folclore amazônico. A região torna-se lúgubre. É a floresta de hálito podre, de raízes desdentadas saltando
A cobra Norato é um jovem encantado que durante a noite se desencanta e do lodo. Na Escola das Árvores, uma árvore velha enfileira impiedosa as jovens
vira gente, assumindo sua condição humana. árvores condenadas a produzir as folhas que cobrem a floresta. 'Ai, ai, ai,' gemem elas,
Norato freqüenta as festas, dança muito, namora as ribeirinhas e desaparece 'somos escravas do rio'.
antes do amanhecer.
A lenda diz que uma cabocla de nome Zelina deu à luz um casal de gêmeos: Cobra Norato alcança o fundo da floresta, onde a terra é fabricada e as árvores passam
Honorato e Maria Caninana, duas cobras. a noite tecendo folhas em segredo. Está perdido em um escuro labirinto de árvores. A
Jogou-as no rio, onde se criaram, mas Maria Caninana vivia fazendo atmosfera pesada prenuncia tempestade. Pernaltas movem-se devagar, miritis abrem
malvadezas até que foi morta pelo irmão, que tinha bom coração. os grandes leques vagarosos, sapos coaxam com vigor. Desaba a chuva violenta: o
Sempre que assumia a forma humana, ele ia visitar sua mãe, a quem vento saqueia as vegetação, nuvens negras se amontoam, lagoas arrebentam, árvores
implorava que o desencantasse. se abraçam.
Para que o encanto fosse quebrado, ela deveria chegar ao corpo adormecido
da serpente, pôr um pouco de leite na sua boca e ferir-lhe a cabeça, de forma que Norato atola-se em um útero de lama, de onde sai graças à ajuda do tatu que se
sangrasse. transforma também em companheiro de viagem. Vem um período de descanso e
A mulher, por medo, nunca chegou perto do réptil, até que um soldado da também de tristeza. Onde afinal andará a filha da rainha Luzia? O tatu propõe que
guarnição da ilha de Cametá livrou o jovem da maldição. partam para o lago Onça-poiema. Cobra Norato refresca-se nas águas do rio, comunga
Honorato, é um rapaz encantado em uma cobra-grande e que habita no fundo com os animais que por ali pastam. Quando partem novamente para o interior abafado
do rio. Aparece no Pará. Esse mito já produziu uma obra-prima da moderna literatura da floresta, a noite já está se fechando.
brasileira: "Cobra Norato", de Raul Bopp, livro que não pode deixar de ser lido com
alegria. O tatu avisa: começa naquele dia a maré grande. Os dois rumam, pelo mangue, paras
as bandas do Bailique. Querem ver chegar a pororoca. Quando a lua cheia aponta,
NARRATIVA HERÓICA vem a onda inchada, rolando em vagalhões. Na força da enchente, eles navegam para
A viagem de Cobra Norato pela floresta em busca da “filha da rainha Luzia” uma polpa de mato onde Norato descansa e cisma: 'o que é que haverá lá atrás das
(argumento lírico), seus obstáculos, resgate da virgem do monstro e desfecho estrelas?' Mas a fome aperta e dois vão para o patirum roubar tapioca.
(casamento):
Na casa das farinhadas grandes, as mulheres trabalham nos ralos mastigando os
Resumo cachimbos. Joaninha Vintém conta o causo do boto que a surpreendeu enquanto
lavava roupa. Vendo a animação da festa, Norato e o tatu viram gente. Cantam,
No ventre da noite, o poeta estrangula a Cobra Norato e enfia-se em sua pele elástica dançam os chorados de viola, bebem cachaça. Na hora de partir, Joaninha Vintém
para sair dos confins da floresta amazônica em direção a Belém do Pará, em busca da quer ir junto, mas Norato não aceita. Pegam o corpo que ficou lá fora e continuam
filha da Rainha Luzia, com quem ele quer se casar. viagem.
O primeiro passo da caminhada é apagar os olhos, escorregar no sono e entrar na Mais adiante, uma pajelança. A onça curuana entra no corpo do pajé, que examina os
floresta cifrada. Sob a sombra fechada das árvores, entre sapos beiçudos, charco, lama, doentes de sezão, de inchado no ventre, de espinhela caída. Faz benzedura de
atoleiros provocados pelas águas dos rios, Norato avança e cumpre as missões destorcer quebranto, fuma, defuma, até tontear e cair. No meio da floresta, o som
impostas pelo mascarão que encontra no meio do caminho: passar por sete portas, ver longínquo de um trem Maria-fumaça acorda o mato.
sete mulheres brancas de ventres despovoados, guardadas por um jacaré; entregar a
sombra para o Bicho do Fundo; fazer mirongas na lua nova; beber três gotas de Ao longe, flutuando no rio, Norato vê um navio com casco de prata e as velas
Livros para o Vestibular da UFMG 2010 – prof.a Elaine Cobra Norato – Raul Bopp
embojadas de vento. Navio não, corrige o tatu. É a Cobra Grande. Quando começa a e ficou com a cabeça enfiada debaixo dos pés de N. Senhora
lua cheia, ela aparece para buscar moça virgem. Enquanto a visagem vai se sumindo
paras bandas de Macapá, Norato resolve: quer ver o casamento da Boiúna. Enquanto isso, o poeta vai para as terras altas com a noiva onde se casam e são
felizes:
A caminho das bodas, Norato pede ao vento que o deixe passar, encontra-se com o
saci e com o pajé-pato que lhe arreda o mato em troca de cachaça. O herói e o tatu vaõ - E agora, compadre
com força, nem se escondem para ver as moças tomarem banho na ponta do vou de volta pro Sem-Fim
Escorrega. O tatu está aflito, apressado, mas Cobra Norato avisa: 'Devagar que chão
duro dói'. vou lá para as terras altas
onde a serra se amontoa
Na casa da Boiúna, um cururu se posta de sentinela. Norato esgueira-se pelos fundos onde correm os rios de águas claras
da grota e avista a noiva, que não é ninguém menos que filha da rainha Luzia. Mas entre moitas de mulungu.
Cobra Grande acorda e começa a perseguição sem fim. Norato pede a tamaquaré, seu
cunhado, que corra imitando seu rastro e entregue o seu pixé na casa do pajé-pato. Em Quero levar minha noiva
cima da hora! Cobra Grande passa rasgando caminho. Chega à morada do pajé que lhe Quero estarzinho com ela
ensina o caminho errado: 'Cobra Norato foi pra Belém se casar'. E lá se vai a Boiúna numa casa de morar
direto para Belém. Entra no cano da Sé e fica com cabeça enfiada debaixo dos pés de com porta azul piquininha
Nossa Senhora. pintada a lápis de cor
Cobra Norato volta para o Sem-fim, para as terras altas onde a serra se amontoa. Leva Quero sentir a quentura
consigo a noiva, para estar com ela numa casa de porta azul piquininha pintada a lápis do seu corpo de vai-e-vem
de cor. É lá que ele espera pela gente do Caxiri Grande, por Joaninha Vintém, pelo Querzinho de ficar junto
pajé-pato, por Augusto Meyer e Tarsila, por todo povo de Belém, de Porto Alegre e de quando a gente quer bem bem.
São Paulo para a festa de casamento que há de durar sete luas e sete sóis.
Convida para o casamento muita gente, até a Maleita:
O poema Cobra Norato trata da história de um eu poético que mergulha no mundo
maravilhoso do sonho, encarna a cobra lendária da Amazônia e segue para as “ilhas Procure minha madrinha Maleita
decotadas”, isto é, as terras do “Sem-fim”, em busca da mulher desejada. A aventura diga que eu vou me casar;
de Cobra Norato segue o padrão de unicidade ao descrever a trajetória do herói mítico: que eu vou vestir minha noiva
partida/iniciação/retorno. com um vestidinho de sol.
Deu um estremeção
Entrou no cano da Sé
Livros para o Vestibular da UFMG 2010 – prof.a Elaine Cobra Norato – Raul Bopp
FRAGMENTOS Um fio de água atrasada lambe a lama
A noite chega mansinho Tem que entregar a sombra para o Bicho do Fundo
Estrelas conversam em voz baixa Tem que fazer mirongas na lua nova
Brinco então de amarrar uma fita no pescoço Tem que beber três gotas de sangue
e estrangulo a Cobra.
– Ah! só se for da filha da rainha Luzia!
Agora sim
me enfio nessa pele de seda elástica A selva imensa está com insônia
e saio a correr mundo
Bocejam árvores sonolentas
Vou visitar a rainha Luzia Ai que a noite secou A água do rio se quebrou 1
Quero me casar com sua filha Tenho que ir-me embora
– Então você tem que apagar os olhos primeiro
O sono escorregou nas pálpebras pesadas Me sumo sem rumo no fundo do mato
Um chão de lama rouba a força dos meus passos onde as velhas árvores grávidas cochilam
(...) XXV
– De onde é que vem tanta água, compadre?
A festa parece animada, compadre
XX – Vamos virar gente pra entrar?
– Então vamos
Começa hoje a maré grande
(...)
(...)
– Puxe mais um chorado na viola, compadre
Brigam raízes famintas – Mano, espermente um golinho de cachaça ardosa pra tomar sustança