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, Análises dos livros da lista da UFMG 2010

Cobra Norato
Raul Bopp
Prof.a Elaine

A 1A GERAÇÃO DO MODERNISMO BRASILEIRO

No início do século XX a Europa vivia um período marcado por intensas


transformações, que tinham como propulsores a eletricidade (expandida para uso
doméstico) e a velocidade (cultuada pela invenção do automóvel). Surgem os
movimentos considerados à frente de seu tempo, que influenciam todos os artistas da
época, as Vanguardas: Expressionismo (início do séc.); Cubismo (1907); Futurismo
(1909); Dadaísmo (1916); Surrealismo (1924).
Oriundos em grande parte de famílias ricas, jovens brasileiros começam a
voltar da Europa dispostos a praticar, no seio conservador e burguês de São Paulo, a
arte livre e revolucionária que conheceram. Entre 1911 e 1919 surgem as primeiras
manifestações da Arte Moderna no Brasil, através da pintura de Lasar Segall, Anita
Malfatti e Di Cavalcanti; e da poesia de Oswald de Andrade, Mário de Andrade,
Guilherme de Almeida e Manuel Bandeira, entre outros.
Fortalecidos como grupo a partir da polêmica Paranóia ou Mistificação,
envolvendo Monteiro Lobato e Anita Malfatti (criticada por sua exposição no Mappin,
em 1917), têm a idéia da Semana de Arte Moderna, que teve como principal
“mecenas” a família de Paulo Prado.
A partir de 22 os artistas modernistas brasileiros atuam através da revista
Klaxon, que após um ano se desfez, dando origem a várias outras publicações, devido
ao engajamento do grupo a correntes diversas do movimento. Apesar de influenciados
inicialmente pelas Vanguardas, o que herdaram delas foi a ousadia do rompimento
com o conservadorismo e as regras. O verdadeiro projeto dos nossos artistas era, ao
contrário, reforçar uma arte genuinamente nacional, originalmente brasileira, em
oposição à cópia dos modismos europeus que caracterizou todas as escolas anteriores.
Caracterizados pelo repúdio ao Parnasianismo e Romantismo, escolas que
refletiam o gosto burguês pelo estilo clássico, artificial, elitista e idealizado, os
modernistas tinham como principais características o uso do verso livre, do português
coloquial, os temas do cotidiano e a crítica aos problemas sociais.
Livros para o Vestibular da UFMG 2010 – prof.a Elaine Cobra Norato – Raul Bopp
do progresso técnico, a Amazônia, em situação privilegiada, poderá ser objeto de
cobiça por parte de poderosas organizações estrangeiras. É preciso um tratamento
Características genéricas do 1o Modernismo especial a esta região.”
presentes na obra
Anotações 

 Nacionalismo crítico (interpretação literária da realidade brasileira)


Primitivismo, Antropofagia
versos livres
 Mistura da prosa e poesia versos brancos
abandono da estrutura tradicional da narrativa
fragmentação – “flashes” cinematográficos
 Uso do português coloquial, popular brasileiro Cobra Norato (1931)
 Resgate da cultura e folclore brasileiros
 Humor
Segundo Carlos Drummond de Andrade, “Cobra Norato é seguramente o
 Influências das Vanguardas européias (Futurismo, Cubismo, Expressionismo, mais brasileiro de todos os livros de poemas de poetas brasileiros, escritos em
Dadaísmo e Surrealismo)
qualquer tempo”. E Oswald de Andrade: “Em Cobra Norato, pela primeira vez, se
realizou a poesia grandiosa e sem fraude. Bopp fez o qe Gonçalves Dias não
conseguiu, e o que mais de um modernista, viciado nos conchavos eleitorais do
talento, teima em fracassar. Aventura perigosa, essa, de trazer o Brasil nos dentes. E
portanto aventura de alto sentido. Bopp a realizou.”
RAUL BOPP (1898 – 19--)

Raul Bopp nasceu em 1898, na pequena cidade gaúcha de Tupaciretã; na


EPOPÉIA (POEMA ÉPICO)
selaria de seu pai, encantava-se com as histórias dos tropeiros e suas viagens e decidiu
ganhar estrada. Viajou para a Argentina, Paraguai, Mato Grosso e outros lugares. Mas
a Amazônia, que conheceu em 1921, o impressionou mais que todos, suas florestas ASPECTOS FORMAIS:
sem fim, suas águas sem fim. Iniciou o poema ainda nesse ano, mas sua transferência ESTRUTURA POÉTICA
para o Rio, em 1923, atrapalhou o trabalho, retomado em 1927, em São Paulo, devido predomínio de estrofes de 2, 3 e 4 versos (escrita “telegráfica”)
ao acolhimento otimista de Tarsila e Oswald de Andrade. Não participou da Semana liberdade formal
de Arte Moderna, segundo afirma, contrariando informações errôneas, mas foi gerente
da Revista de Antropofagia. Em 1930 entrou para a diplomacia e percorreu todo o
SONORIDADE
mundo, aposentando-se como embaixador.
Espantoso trabalho na produção/criação de efeitos sonoros, rítmicos, musicais
uso de aliterações e assonâncias
Os trechos abaixo foram retirados de uma entrevista ao jornal O Globo, em
5/1/77:
LINGUAGEM
“(...) O contato com a natureza sempre me foi substancial. O contato com a terra faz a economia absoluta de pontuação - vírgulas e pontos finais (influência do Futurismo)
gente pensar em ponto grande. O espírito se recobra de valores mais fortes. Os poetas, uso do falar regional
de um modo geral, magnetizam-se diretamente com os livros. Mas, o certo é mesmo presença de onomatopeias
descer ao chão, para escutar, com a fascinação dos sentidos, a vida subterrânea dessa criação de imagens poéticas a partir do uso de figuras linguagem:
Amazônia indecifrada. Na presente conjuntura mundial, com a vertiginosa aceleração Ex: “rios afogados bebendo o caminho”
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Obs.: A recorrência da prosopopéia reforça a vitalidade do cenário. sangue.

Norato cumpre as provas, mas não encontra a moça. Avança sozinho pela selva
insone. O entusiasmo inicial cede a um certo desalento: 'Onde irei eu que já estou
CONTEÚDO: como sangue doendo das mirongas da filha da rainha Luzia?'
O MITO
É uma das mais conhecidas lendas do folclore amazônico. A região torna-se lúgubre. É a floresta de hálito podre, de raízes desdentadas saltando
A cobra Norato é um jovem encantado que durante a noite se desencanta e do lodo. Na Escola das Árvores, uma árvore velha enfileira impiedosa as jovens
vira gente, assumindo sua condição humana. árvores condenadas a produzir as folhas que cobrem a floresta. 'Ai, ai, ai,' gemem elas,
Norato freqüenta as festas, dança muito, namora as ribeirinhas e desaparece 'somos escravas do rio'.
antes do amanhecer.
A lenda diz que uma cabocla de nome Zelina deu à luz um casal de gêmeos: Cobra Norato alcança o fundo da floresta, onde a terra é fabricada e as árvores passam
Honorato e Maria Caninana, duas cobras. a noite tecendo folhas em segredo. Está perdido em um escuro labirinto de árvores. A
Jogou-as no rio, onde se criaram, mas Maria Caninana vivia fazendo atmosfera pesada prenuncia tempestade. Pernaltas movem-se devagar, miritis abrem
malvadezas até que foi morta pelo irmão, que tinha bom coração. os grandes leques vagarosos, sapos coaxam com vigor. Desaba a chuva violenta: o
Sempre que assumia a forma humana, ele ia visitar sua mãe, a quem vento saqueia as vegetação, nuvens negras se amontoam, lagoas arrebentam, árvores
implorava que o desencantasse. se abraçam.
Para que o encanto fosse quebrado, ela deveria chegar ao corpo adormecido
da serpente, pôr um pouco de leite na sua boca e ferir-lhe a cabeça, de forma que Norato atola-se em um útero de lama, de onde sai graças à ajuda do tatu que se
sangrasse. transforma também em companheiro de viagem. Vem um período de descanso e
A mulher, por medo, nunca chegou perto do réptil, até que um soldado da também de tristeza. Onde afinal andará a filha da rainha Luzia? O tatu propõe que
guarnição da ilha de Cametá livrou o jovem da maldição. partam para o lago Onça-poiema. Cobra Norato refresca-se nas águas do rio, comunga
Honorato, é um rapaz encantado em uma cobra-grande e que habita no fundo com os animais que por ali pastam. Quando partem novamente para o interior abafado
do rio. Aparece no Pará. Esse mito já produziu uma obra-prima da moderna literatura da floresta, a noite já está se fechando.
brasileira: "Cobra Norato", de Raul Bopp, livro que não pode deixar de ser lido com
alegria. O tatu avisa: começa naquele dia a maré grande. Os dois rumam, pelo mangue, paras
as bandas do Bailique. Querem ver chegar a pororoca. Quando a lua cheia aponta,
NARRATIVA HERÓICA vem a onda inchada, rolando em vagalhões. Na força da enchente, eles navegam para
A viagem de Cobra Norato pela floresta em busca da “filha da rainha Luzia” uma polpa de mato onde Norato descansa e cisma: 'o que é que haverá lá atrás das
(argumento lírico), seus obstáculos, resgate da virgem do monstro e desfecho estrelas?' Mas a fome aperta e dois vão para o patirum roubar tapioca.
(casamento):
Na casa das farinhadas grandes, as mulheres trabalham nos ralos mastigando os
Resumo cachimbos. Joaninha Vintém conta o causo do boto que a surpreendeu enquanto
lavava roupa. Vendo a animação da festa, Norato e o tatu viram gente. Cantam,
No ventre da noite, o poeta estrangula a Cobra Norato e enfia-se em sua pele elástica dançam os chorados de viola, bebem cachaça. Na hora de partir, Joaninha Vintém
para sair dos confins da floresta amazônica em direção a Belém do Pará, em busca da quer ir junto, mas Norato não aceita. Pegam o corpo que ficou lá fora e continuam
filha da Rainha Luzia, com quem ele quer se casar. viagem.

O primeiro passo da caminhada é apagar os olhos, escorregar no sono e entrar na Mais adiante, uma pajelança. A onça curuana entra no corpo do pajé, que examina os
floresta cifrada. Sob a sombra fechada das árvores, entre sapos beiçudos, charco, lama, doentes de sezão, de inchado no ventre, de espinhela caída. Faz benzedura de
atoleiros provocados pelas águas dos rios, Norato avança e cumpre as missões destorcer quebranto, fuma, defuma, até tontear e cair. No meio da floresta, o som
impostas pelo mascarão que encontra no meio do caminho: passar por sete portas, ver longínquo de um trem Maria-fumaça acorda o mato.
sete mulheres brancas de ventres despovoados, guardadas por um jacaré; entregar a
sombra para o Bicho do Fundo; fazer mirongas na lua nova; beber três gotas de Ao longe, flutuando no rio, Norato vê um navio com casco de prata e as velas
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embojadas de vento. Navio não, corrige o tatu. É a Cobra Grande. Quando começa a e ficou com a cabeça enfiada debaixo dos pés de N. Senhora
lua cheia, ela aparece para buscar moça virgem. Enquanto a visagem vai se sumindo
paras bandas de Macapá, Norato resolve: quer ver o casamento da Boiúna. Enquanto isso, o poeta vai para as terras altas com a noiva onde se casam e são
felizes:
A caminho das bodas, Norato pede ao vento que o deixe passar, encontra-se com o
saci e com o pajé-pato que lhe arreda o mato em troca de cachaça. O herói e o tatu vaõ - E agora, compadre
com força, nem se escondem para ver as moças tomarem banho na ponta do vou de volta pro Sem-Fim
Escorrega. O tatu está aflito, apressado, mas Cobra Norato avisa: 'Devagar que chão
duro dói'. vou lá para as terras altas
onde a serra se amontoa
Na casa da Boiúna, um cururu se posta de sentinela. Norato esgueira-se pelos fundos onde correm os rios de águas claras
da grota e avista a noiva, que não é ninguém menos que filha da rainha Luzia. Mas entre moitas de mulungu.
Cobra Grande acorda e começa a perseguição sem fim. Norato pede a tamaquaré, seu
cunhado, que corra imitando seu rastro e entregue o seu pixé na casa do pajé-pato. Em Quero levar minha noiva
cima da hora! Cobra Grande passa rasgando caminho. Chega à morada do pajé que lhe Quero estarzinho com ela
ensina o caminho errado: 'Cobra Norato foi pra Belém se casar'. E lá se vai a Boiúna numa casa de morar
direto para Belém. Entra no cano da Sé e fica com cabeça enfiada debaixo dos pés de com porta azul piquininha
Nossa Senhora. pintada a lápis de cor

Cobra Norato volta para o Sem-fim, para as terras altas onde a serra se amontoa. Leva Quero sentir a quentura
consigo a noiva, para estar com ela numa casa de porta azul piquininha pintada a lápis do seu corpo de vai-e-vem
de cor. É lá que ele espera pela gente do Caxiri Grande, por Joaninha Vintém, pelo Querzinho de ficar junto
pajé-pato, por Augusto Meyer e Tarsila, por todo povo de Belém, de Porto Alegre e de quando a gente quer bem bem.
São Paulo para a festa de casamento que há de durar sete luas e sete sóis.
Convida para o casamento muita gente, até a Maleita:
O poema Cobra Norato trata da história de um eu poético que mergulha no mundo
maravilhoso do sonho, encarna a cobra lendária da Amazônia e segue para as “ilhas Procure minha madrinha Maleita
decotadas”, isto é, as terras do “Sem-fim”, em busca da mulher desejada. A aventura diga que eu vou me casar;
de Cobra Norato segue o padrão de unicidade ao descrever a trajetória do herói mítico: que eu vou vestir minha noiva
partida/iniciação/retorno. com um vestidinho de sol.

Atolado "num útero de lama", encontra um coadjuvante, seu compadre, o Tatu-da-


Bunda-Seca. Vem depois a chuva, o mar e a pororoca. O poeta Cobra Norato e o
compadre roubam farinha, ouvem de Joaninha Vintém o "causo" do Boto ("moiço CENÁRIOS:
loiro, tocador de violão"), vão a uma festa. O compadre percebe vindo pelas águas A AMAZÔNIA
algo como um navio prateado, a Cobra Grande. Vai levando "um anel e um pente de A natureza tem vida própria, orgânica, visceral (prosopopéias)
ouro / pra noiva da Cobra Grande", quando descobre que a moça que está com o Recorrência de elementos: ÁGUA, LAMA, ÁVORES, RAÍZES, AREIA etc.
monstro é sua amada. Ele a rapta e fogem. Cobra Grande os persegue. Mas Pajé-Pato
ensina o caminho errado para a Cobra Grande, que:
TEMPO
esturrou direito pra Belém  A história é contada

Deu um estremeção
Entrou no cano da Sé
Livros para o Vestibular da UFMG 2010 – prof.a Elaine Cobra Norato – Raul Bopp
FRAGMENTOS Um fio de água atrasada lambe a lama

– Eu quero é ver a filha da rainha Luzia!

I Agora são os rios afogados


bebendo o caminho
Um dia A água resvala pelos atoleiros
eu hei de morar nas terras do Sem-Fim afundando afundando
Lá adiante
Vou andando caminhando caminhando a areia guardou os rastos da filha da rainha Luzia
Me misturo no ventre do mato mordendo raízes
– Agora sim
Depois vou ver a filha da rainha Luzia
faço puçanga de flor de tajá de lagoa
e mando chamar a Cobra Norato Mas antes tem que passar por sete portas
Ver sete mulheres brancas de ventres despovoados
– Quero contar-te uma história guardadas por um jacaré
Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
Faz de conta que há luar – Eu só quero a filha da rainha Luzia

A noite chega mansinho Tem que entregar a sombra para o Bicho do Fundo
Estrelas conversam em voz baixa Tem que fazer mirongas na lua nova
Brinco então de amarrar uma fita no pescoço Tem que beber três gotas de sangue
e estrangulo a Cobra.
– Ah! só se for da filha da rainha Luzia!
Agora sim
me enfio nessa pele de seda elástica A selva imensa está com insônia
e saio a correr mundo
Bocejam árvores sonolentas
Vou visitar a rainha Luzia Ai que a noite secou A água do rio se quebrou 1
Quero me casar com sua filha Tenho que ir-me embora
– Então você tem que apagar os olhos primeiro
O sono escorregou nas pálpebras pesadas Me sumo sem rumo no fundo do mato
Um chão de lama rouba a força dos meus passos onde as velhas árvores grávidas cochilam

De todos os lados me chamam


II – Onde vais Cobra Norato?
Tenho aqui três arvorezinhas jovens à tua espera
Começa agora a floresta cifrada
– Não posso
A sombra escondeu as árvores Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia
Sapos beiçudos espiam no escuro

Aqui um pedaço de mato está de castigo 1


note aqui que a escolha da métrica por redondilhas maiores (versos de 7 sílabas)
Arvorezinhas acocoram-se no charco confere um ritmo oral, popular.
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III Chegam outras vozes

Sigo depressa machucando a areia O rio se engasgou num barranco


Erva-picão me arranhou
Caules gordos brincam de afundar na alama Espia-me um sapo sapo
Galhinhos fazem psiu Aqui tem cheiro de gente
– Quem é você?
Deixa eu passar que vou pra longe
–Sou a Cobra Norato
(...) Vou me amasiar com a filha da rainha Luzia

O resto da noite me enrola V

A terra agora perde o fundo Aqui é a escola das árvores


Um charco de umbigo mole me engole Estão estudando geometria

Onde irei eu (...)


que já estou com o sangue doendo
das mirongas da filha da rainha Luzia? – Tenho que anunciar a lua
quando ela se levanta atrás do mato
IV
(...)
Esta é a floresta de hálito podre
parindo cobras VI

Rios magros obrigados a trabalhar Passo nas beiras de um enchercadiço


A correnteza se arrepia Um plasma visguento se descostura
descascando as margens gosmentas e alaga as margens debruadas de lama

Raízes desdentadas mastigam lodo Vou furando paredões moles


Caio num fundo de floresta
Num estirão alagado inchada alarmada mal-assombrada
O charco engole a água do igarapé
Ouvem-se apitos um bate-que-bate
Fede Estão soldando serrando serrando
O vento mudou de lugar Parece que fabricam terra...
Ué! Estão mesmo fabricando terra
Um assobio assusta as árvores
Silêncio se machucou Chiam longos tanques de lodo-pacoema
Os velhos andaimes podres se derretem
Cai lá adiante um pedaço de pau seco: Lameiros se emendam
Pum Mato amontoado derrama-se no chão

Um berro atravessa a floresta (...)


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Passo por baixo de arcadas folhudas (...)


Arbustos incógnitos perguntam:
– Já será dia? O céu tapa o rosto
Manchas de luz abrem buracos nas copas altas
Chove... Chove... Chove...
Árvores-comadres
passaram a noite tecendo folhas em segredo IX
Vento-ventinho assoprou de fazer cócegas nos ramos
Desmanchou escrituras indecifradas Ai que estou perdido
num fundo de mato espantado mal-acabado
VII
Me atolei num útero de lama
Ai! Tenho pressa. Vou andando O ar perdeu o fôlego
Furo tabocas
– Onde estou? – Olelé. Quem vem lá?
– Eu sou o Tatu-de-bunda-seca
Árvores de galhos idiotas me espiam
Águas defuntas estão esperando a hora de apodrecer – Ah, compadre Tatu
que bom você vir aqui
Escorrego por um labirinto Quero que você me ensine a sair desta goela podre
com árvores prenhas sentadas no escuro
Raízes com fome mordem o chão – Então se segure no meu rabo
que eu le puxo.
(...)
X
Sapo sozinho chama chuva
Agora
(...) quero um rio emprestado pra tomar banho
Quero dormir três dias e três noites
VIII com o sono do Acutipuru

Desaba a chuva – Você me espere


lavando a vegetação que depois vou le contar uma história

Vento saqueia as árvores folhudas XI


de braços para o ar
Sacode o mato grande Acordo
A lua nasceu com olheiras
Nuvens negras se amontoam O silência dói dentro do mato
Monstros acocorados
tapam os horizontes beiçudos Abriram-se as estrelas
As águas grandes se encolheram com sono
Palmeiras aparam o céu
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A noite cansada parou
(...)
Ai, compadre!
Tenho vontade de ouvir uma música mole XIII
que se estire por dentro do sangue;
música com gosto de lua Solzinho infantil
e do corpo da filha da Rainha Luzia cresceu engordurado e alegre

que me faça ouvir de novo Arvorezinhas impacientes


a conversa dos rios mamam luz escorrendo das folhas
que trazem queixas do caminho
e vozes que vêm de longe (...)
surradas de ai, ai, ai
XIV
Atravessei o Treme-Treme
Passei na casa do Minhocão Meio-dia
Deixei minha sombra para o Bicho-do-Fundo de um céu demorado
só por causa da filha da Rainha Luzia
(...)
(...)
O sol belisca a pele azul do lago
XII
(...)
A madrugada vem se mexendo atrás do mato
– Vou refrescar o corpo com um mergulho
Clareia Se eu demorar muito você me chame
Os céus se espreguiçam
A água tem a molura macia de perna de moça,
Arregaçam-se os horizontes compadre!

No alto de um cumandá XVI


está cantando a Maria-é-dia
– Mar fica longe, compadre?
Acordam-se raízes com sono – Fica
São dez léguas de mato e mais dez léguas
Riozinho vai pra escola – Então vamos
Está estudando geografia
Está começando a escurecer
Árvores acocoradas A tarde esticou a asa vermelha
lavam galhos despenteados na correnteza
(...)
Gaivotas medem o céu
A noite encalhou com um carregamento de estrelas
Horizontes riscados de verdes me chamam
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XIX (...)

(...) XXV
– De onde é que vem tanta água, compadre?
A festa parece animada, compadre
XX – Vamos virar gente pra entrar?
– Então vamos
Começa hoje a maré grande
(...)
(...)
– Puxe mais um chorado na viola, compadre
Brigam raízes famintas – Mano, espermente um golinho de cachaça ardosa pra tomar sustança

A água engomada de lama (...)


resvala devagarinho na vasa mole
XXVII
Abrem-se pântanos de aninga
nas clareiras alagadas Mais adiante uma pagelança
Raízes descalças afundam-se nos charcos
(...)
(...)
XXIX
XXI
(...)
Noite pontual Aquilo é a Cobra Grande
Lua cheia apontou, pororoca roncou Quando começa a lua cheia ela aparece
Vem buscar moça que ainda não conheceu homem
(...)
(...)
XXIII
XXXI
Noite grande...
Esta é a entrada da casa da Boiúna
(...)
(...)
– Há tanta coisa que a gente não entende, compadre
Neste Buraco do Espia
– O que é que haverá lá atrás das estrelas? Pode-se ver a noiva da Cobra Grande

XXIV Compadre! Tremi de susto


Parou a respiração
– Compadre, eu já estou com fome
Vamos lá pro putirum roubar farinha? Sabe quem é a moça que está lá em baixo
... nuinha como uma flor?
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– É a filha da rainha Luzia! Luzia/ quero me casar com sua filha” (BOPP,1994, p.3). Cobra Norato é a saga
de um eu poético que mergulha no mundo maravilhoso do sonho, encarna a
(...) cobra lendária da Amazônia e segue para as “ilhas decotadas” − as terras do
Semfim−, em busca da mulher desejada. Este estágio que se refere ao
Trechos da Tese de doutorado de Ana Leal Cardoso “chamado da aventura”, segundo os padrões campbellianos, evidencia a
convocação do destino e transferência do herói do centro da sociedade para
Bopp procura as raízes nacionais, numa tentativa de distanciamento
uma região desconhecida, cujo arauto é a voz do inconsciente que se manifesta
do eurocentrismo. Para Bopp, ao menos, ao nível do discurso, o mergulho no
espontaneamente na intenção do herói de habitar as terras do Sem-fim, e casar-
mito amazônico quereria representar uma originalidade paradigmática
se com a filha da rainha Luzia, um desejo de construção da paridade contra-
divorciada de quaisquer influencias estranhas.
sexual. O termo “Sem-fim” remete para os horizontes sem fronteiras do
Não precisamos chegar às noções de intertexto veiculadas pela teoria
imaginário, confirmando, dessa forma, a irrupção do inconsciente. Segundo
literária das últimas décadas para percebermos a preocupação ingênua do
Campbell, a ‘aventura do herói’ pode-se dar sob várias formas, inclusive um
brasileirismo “independente” pregado pelo verde-amarelismo e
convite, o que acontece com Cobra Norato: “Vamos passear naquelas ilhas
antropofagismo de Bopp. Na verdade, os primitivistas brasileiros estavam tão
decotadas? Faz de conta que há luar” (p. 3). Vivendo o maravilhoso,
abertos ao eixo Freud/Frazer/lévy-Bruhl quanto suas contrapartes européias.
penetrando num mundo onde tudo é possível, o eu poético “brinca de
O grupo antropofágico ao trazer consigo o sentido de retorno às origens (seu
estrangular a cobra” e veste sua pele de seda elástica, o que constitui o
ponto de contato com o Modernismo Internacional) propõe a harmonização
transporte da jornada (que dura cerca de 3 dias), camufla-se e corre para o
entre o Brasil do Sul (progressista) e aquele do norte ainda menino, selvagem e
mundo da selva, atingindo o primeiro limiar. A violência desse ato denuncia
mágico.
um gesto instintivo do herói e proclama sua atitude de defesa contra os
(...) O texto permite uma análise da trajetória do herói. (...)Nossa abordagem
arquétipos.
da remitologização pauta-se no esquema do herói mítico traçado por Joseph
Entretanto, matar a cobra e se vestir com seu escalpo significa para este
Campbell (1993, p.28-36), que vê na mitologia e nos rituais a chave para
herói um disfarce para penetrar na ‘terra do tesouro’, pois se assemelha à
compreender os princípios permanentes e universais na natureza humana. Nos
Cobra Grande, contra quem terá que lutar para se apossar da “filha da rainha
estágios da trajetória mítica do herói Campbell reconstrói uma história
Luzia” que está sob sua propriedade; por outro lado, a casca da serpente
universal deste, similar ao Processo de individuação junguiano, englobando no
facilita sua mobilização na floresta, uma vez que na condição de simples
monomito os elementos históricos e imaginários que possibilitam criar um
homem, não superaria os obstáculos.
modelo de indivíduo em transformação interior; ao lermos Cobra Norato e A
Contudo, para realizar seu intento, o herói deverá mergulhar no sono e
Serpente Emplumada, reconhecemos nos protagonistas um sujeito milenar com
vencer etapas probatórias no mundo onírico, uma vez que sua aventura
várias identidades arquetípicas.
encontra-se no mundo imaginário. Logo no início da trajetória, ele tem que
Bopp traz de volta a cobra ctônica, que se arrasta dentro das matas, que
passar por uma espécie de “prova de competência”, visando seu adestramento
desliza e habita as grotas e fontes (...) o que demonstra que Bopp se refugiou
heróico: “ − Então você tem que apagar os olhos primeiro/ O sono escorregou
no espaço imaginário em que se situam as imagens edênicas, com vigor do seu
nas pálpebras pesadas/ um chão de lama rouba a força dos meus passos”
primitivismo paradisíaco e ficaram em êxtase com a redescoberta da natureza
(p.3). Após matar a cobra, algumas tarefas lhe são impostas. Vencidas todas
primal.
elas, Cobra Norato após “passar por sete portas” chega à floresta (o
(...) O poema é composto de 33 cantos e ilustra o ciclo do herói
inconsciente), cujos terrores pânicos metaforizados pelos gritos de “ − Ai me
moderno, cuja mente se abriu à plena consciência desperta. O canto I se nos
acudam!” (p. 5), são medos das revelações do desconhecido. Assim, o pavor
apresenta como uma proposição em que o herói conscientizado da sua
da “sombra que esconde as arvores” (p.5) representa o temor ancestral da
condição híbrida de ‘homem-cobra’, manifesta o desejo de fixar a condição
floresta e dos rios, que o inconsciente coletivo guarda como lugar onde
humana; movido pelo desejo erótico segue em busca da filha da rainha Luzia −
habitam seres que devoram ou destroem o homem. Não obstante os perigos, o
ser lendário do folclore da Amazônia − com quem pretende casarse: “Um dia/
herói é cada vez mais atraído pela majestosa floresta. Essa atração significa, do
hei de morar nas terras do Sem-Fim/ vouandando caminhando caminhando/
ponto de vista psicológico, um rompimento com o mundo real e,
me misturo no ventre do mato mordendo raízes/ (...)/ Vou visitar a rainha
conseqüentemente, um retorno às origens, à Grande Mãe.
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Assim como na visão mágico-poética referente ao reino encantado dos energizar: “− Vou refrescar o corpo com um mergulho/ se eu demorar muito
contos de fada, o caminho que leva à filha da rainha Luzia é igualmente você me chame” (p.21). A água confere um novo nascimento por um ritual
guardado por sentinelas. Ao adentrar a “floresta cifrada” (p. 5), o herói Cobra iniciático; ele representa as pulsões atuantes da vida: a de Eros e a de
Norato é interceptado por diversos sapos “Sapos beiçiudos me espiam/ onde Thanatos, as forças construtivas e destrutivas presentes em tudo. A imersão
vais Cobra Norato” (p. 6), eles metaforizam os guardiões do limiar de significa eliminar o ser anterior através da purificação; a emersão corresponde
passagem. Porém, com a ajuda de alguns amuletos doadospelo Pai do mato (o à revelação e o surgimento de um novo ser regenerado, numa analogia ao
guia transpessoal), o herói serpente vence a todos, e segue a jornada por terra e batismo.
por água. O motivo da dança é outro ponto: Cobra Norato ao chegar ao Caxirí (a
Mais adiante, cai num charco e dessa vez recebe ajuda do Tatu-de- casa das farinhas) dança com a dona da casa: “Puxe mais um chorado na viola,
bunda-seca (o guia de passagem), “− Olelé. Quem vem lá?/ Eu sou o Tatu-de- compadre/ (...)/ mexa o corpo velho/ Trance pernas com a moça, compadre”
bunda-seca/(...)/ me ensine a sair desta goela podre”(p.14). O Tatu não só o (p. 36). Através da dança o herói participa do Tempo Primordial.
ajuda a sair do atoleiro, como o conduz pela escuridão da selva. No caudal O teriomorfismo tem lugar de destaque no texto. O herói recebe
psicológico o guia pode ser personificado como uma figura real que conduz o auxílio de animais. O motivo do “adestramento” heróico (...) Cobra Norato
‘sonhador’ pelo reino interior da experiência, ou poderá também manifestar-se mata a cobra e veste-se com sua pele (que também tem a função de proteção);
de modo muito sutil, na forma de um palpite ou uma intuição, que, se Segundo Larsen (1987, p.181), nossas raízes mitológicas encontram-se no reino
obedecida, revela-se a coisa acerta. dos animais e nas infindáveis eras, hoje esquecidas, da caça paleolítica; e a
Enquanto descansa Cobra Norato pensa em assistir ao casamento da nossa psique foi modelada pelos nossos poucos milhões de anos de existência
Cobra Grande com uma bela donzela, fato que acontecerá no dia seguinte. À terrestre, então os animais são nossos mais velhos mestres.
entrada do buraco da Boiúna (local da boda), descobre que a noiva é Cobra Norato está fundamentada em lendas e mitos regionais. O mito básico a
exatamente àquela com quem deseja se casar: “ Esta é a entrada da casa da partir do qual se organiza a idéia central do poema de Bopp é o mito da Cobra
Boiúna/ cururu está de sentinela/desço pelos fundões da grota/(...)sabe que é Grande (Boiúna), gênio maléfico das águas, criador de uma atmosfera de
a moça que está lá em baixo nuinha em flor?/ − É a filha da rainha Luzia” (p. verdadeiro terror cósmico que perpassa o poema, como contraponto da ação
52). narrativa, potestade que transforma a floresta em inimiga do homem e com a
Trava uma luta com seus oponentes: primeiro, os sapos “beiçudos” qual estabelece a luta do herói Cobra Norato.
depois, contra a própria Cobra Grande, de quem foge, auxiliado pelo Pai do Porém, Cobra Norato na sua autenticidade de lenda, narra em verso a
mato, que metaforiza do ponto de vista mítico, o guia transpesoal: “ − Então saga do mito amazônico, o que configura o mito vivo, retirando toda
corra com ela depressa/não perca tempo, compadre/ Cobra Grande se possibilidade de verossimilhança. O leitor de Cobra Norato é posto em contato
acordou” (p. 53). Ao final, sagra-se vencedor e recebe a cativa como prêmio, direto com o mito (...) o que reitera a teoria de Jung que afirma ser a ‘formação
mas não retornou ao local de onde partiu, preferiu seguir o curso do seu de mitos’ um processo psicológico que constitui um traço essencial da psique
caminho de volta para o Sem-fim, permanecendo mergulhado no sonho. humana, cuja existência pode ser demonstrada tanto no homem primitivo
quanto no homem moderno.
No âmbito das etapas da jornada do herói pertinentes ao esquema de
CONSIDERAÇÕES FINAIS Campbell, podemos afirmar que a última etapa referente ao retorno triunfante
do herói para o seio da coletividade inexiste: Cobra Norato prefere permanecer
O primeiro ponto diz respeito ao estilo de época que caracterizam: o no local para onde partiu, em busca da realização dos seus sonhos.
Modernismo. Este trazia, dentre outras propostas, o retorno ao primitivo; (...) O primeiro aspecto a ser considerado diz respeito ao gênero literário: um
Bopp concretiza o mergulho nas fontes primitivas através de sua viagem para poema épico moderno; Cobra Norato é o próprio mito. temos um herói
a Amazônia; no que diz respeito à temática: o mito da serpente e aos motivos padrão, isto é, o jovem, masculino, que executa o mito vivo e experimenta o
mitológicos. São abundantes as expressões de movimento a denunciar o curto maravilhoso ao ‘cair’ no inconsciente, e cuja busca é social.
tempo de que parece ser escravo o homem moderno. Assim, respondendo a nossa pergunta em relação à meta do herói em
O banho ritual que faz parte da travessia do herói é presença marcante questão, podemos afirmar que, apesar de seguir um caminho que o conduz ao
na obra: cansado, Cobra Norato mergulha nas águas como que para se (re)
Livros para o Vestibular da UFMG 2010 – prof.a Elaine Cobra Norato – Raul Bopp
objeto de sua busca, tudo o que desejava era tão somente o gozo de estar com
a mulher amada, portanto, a anima, não se importando com o futuro.
Bopp, ao remitologizar a serpente − um dos mitos que melhor
representam as fantasias do homem de todos os tempos − , impregna sua
narrativa com invejável força poética. Como modernista, se serviu do mito
para denunciar o velho modelo de comportamento e anunciar um outro
latente, baseado na natureza impessoal de um Eu que se encontra numa
“gangorra” entre atração e repulsão face à determinadas situações da vida.
Revisitar o arcaico para extrair o novo − uma das propostas do Modernismo
Internacional − corresponde, na visão da psicologia moderna, trazer à luz da
consciência o deus imanente vital (Self), que, como a serpente uroboro está no
início e no final da busca.
A obra analisada evidencia não só um mergulho nas fontes primitivas,
visando a compreender o homem moderno, mas agencia do ponto de vista
cultural, a harmonização entre
o primitivo e o civilizado; e do ponto de vista psicológico, a união entre a
consciência e o inconsciente. Assim, a serpente − um mito presente em todas as
épocas e culturas − ressurge ao
final da nossa análise como ulterior ao desenvolvimento psíquico individual,
como símbolo da união dos contrários (masculino e feminino), da integridade e
plenitude recuperadas da vida; o lugar da transfiguração e da iluminação, do
fim, assim como do início da aurora primordial.
te

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