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O escorpião encalacrado (A poética da destruição em J11/io
GLOBAL EDITORA E
Cortázar); Achados e perdidos. Ensaios críticos; Enigma e
0ISTIUBUIDORA LTDA. co111entário. Ensaios sobre literatura e experiência; Hwnil
Rt1a Pirapitingüi, 111 - Liberdade
dade, paixão e ,norte: a poesia de Manuel Bandeira; O
CEP 01508-020 - São Paulo - SP cacto e as ruínas. A poesia entre outras artes.
Tel.: (11) 3277-7999 - Fax: (11) :3277-8141 Seus últimos trabalhos, sobre as relações entre litera
E.mail: global@globaleclitora.com.br
tura e experiência histórica, são estudos das obras de
Colabore com a produção científica e cultural. Guimarães Rosa e Jorge Luis Borges. Para a Global
Proibida a reprodução totnl ou parcial desta obra Editora, organizou o volume Os Melhores Contos de
sem a autorização do editor.
Rubem Braga, em 1985.
Nº DE CATÁLOGO: 1978
1..
AGORA É TUDO HISTÓRIA
No mínimo, poeta
7
"Balada", "O h01nem no quarto", "O engenheiro", lério poético ta] como já o professavam os poetas da
com aquele jeito peculiar dele de exprimir o senti geração de 45, a que cronolõgicarnênteaeveria per
mento do esforço inútil, a angústia meditativa, o ar tencer. A poesia, para esse futuro tradutor dos
de perplexidade 1 . Murilo também comparecia, "con ensaios de Ezra Pound, já parecia mostrar-se uma
versando com anjos e demônios", e Oswald, decisivo íorrna de condensação2. A faceta cortante da lin
depois, estava ainda ausente nesses versos de tom guagem e uma irônica atitude diante de si mesmo
sério e intimista,_gue encontravam em Carlitos, figu que só iria acentuar-se nos livros posteriores desta
ra tão cara aos modernistas algu ns anos antes, um cam a marcada diferença de seu perfil, ajustado ao
emblema de sonho e liberdade, evocando a esperança lalho do epigrama*.
utópica de uma nova ordem social. Com isso, se diferenciava também de João Cabral,
No livro seguinte, Cúmplices, de 1951, o poeta já que pertencia à mesma geração, mas logo se distin
tem voz própria; havia absorvido cm profundidade o guiu pe}a originalidade de sua sólida obra de grande
legado modernista, buscando a poesia que se revela poeta. E que depois do primeiro livro em que seu
nas coisas simples, em esferas baixas e corriqueiras engenho construtivo ainda se associava a traços sur
da realidade. Surge, então, com a simplicidade de um realistas, passou só a construir com observação precisa
idílio pastoral, quase como uma Marília de Dirceu, a e linguagem enxuta, como um antídoto anti-retórico, a
musa para sempre, Dora: a matéria íntima já não é dicção que lhe é tão característica. Ela parece ganhar
mera postura literária, ganhara com o lastro da peso e densidade pela materialidade verba], imitada
experiência, em depurada concentração artística. A de coisas concretas e recortada em versos breves e
novidade radical, nesse sentido, é agora a matriz epi quadras recorrentes, como se o poeta pela lucidez vigi
gramática, com o corte seco da linguagem reduzida à lante e a recusa ao supérfluo e a todo sentimentalismo
forma breve, embora sem a verve satírica que fosse capaz de aprender do modo de ser da pedra uma
desponta depois. lição ao mesmo tempo ética e poética. Na verdade,
Em resumo, fiel à herança modernista, José Paulo inventou com sua maneira tão própria de articular, a
tendeu logo à aproximação sem ênfase do cotidiano, pnlo seco, rigor intelectual e imaginação plástica urna
recusando-se a toda exaltação estilística. Desse modo, retórica nova, rondada pelo silêncio, máquina de achar
se afa�ta_va da retórica do sublime e do culto do mis- no menos o que os outros em vão buscavam no mais.
8 9
A vertente epigramática de José Paulo, sublinha traste com a seriedade estetizante do lirismo de 45.
da pelo sarcasmo, transformado em cm� ver Na direção de passagem do epigrama para o ideogra
dade, atinge grande contundência �, de mà:nõ'tõu ainda a incorporação dessacralizante do
....� depois de se mostrar como o ve10 prmcipal nas signõ não-verbal, como na ótima "Anatomia da
"Novas Cartas Chilenas" (1954) e nos "Epigramas" Musa", a seu ver já contida "nas últimas propostas da
(1958), séries que acrescentou a seus livros iniciais na poesia de vanguarda", reconhecendo, por fim, na
edição dos Poemas reunidos, em 1961. No livro de 67, síntese, a própria essência da poesia e no humor, uma
porém, a matriz formal, já armada do humor oswal arma legítima contra a pequenez do "sistema"3. À
diano, mostrava sua maleabilidade dentro da brevi-
- dade, em contacto estreito com o Concre..tismo..e suas
primeira _vista, p.Q_dia_parecer q_ue José Paulo se
enquadrava nos limites do projeto concretista, tantos
-
( exigências de uma poesia sintética: d�str�ição parq:- eram os pontos visíveis de contacto, quando no
0 dica; desmontagem dQ _yerso e destc!QJ.le da..p.alav.ra fundo já era muito diverso, e não tardaria a deixar ver
isqlada; remontagem vocabular, trocadilhos, jogos melhor as diferenças fundamentais.
paronomásticos; espacialização, incorporação do Em Meia palavra, de 1973, tudo se intensifica,
' vis�aTà estrutura do poema, mas tudo em espaço reduzindo-se paradoxalmente, ainda mais, a muito
exíguo, com recorte crítico e forte espírito satírico, menos, ao mínimo: o poeta buscava de fato, por meio
voltado para as circw1stâncias político-sociais do de reconcentrada operação verbal, '! correspondên
momento histórico brasileiro depois do golpe militar cia, que por vezes se faz identidade, do grande com o
de 64. Um epigrama em ponta seca, feito "À moda pequeno, c9mo seprocurasse ver o mundo num grão
da casa" e à maneira de Oswald, dá testemunho da de areia. Ia ficando claro que a condensação poética
cara dessa poesia e do país, ao enumerar na seqüên se encaminhava, pelo molde minúsculo e o corte
cia irônica de quatro palavras escolhidas a dedo as espirituoso, mas sem traço eufórico em sua latente
virtudes nacionais até seu fim histórico: gravidade, para uma forma de cf1iste 4 já muito dis
tante da tradição modernista.
feijoadn
marmelnda
goleada
quartelada
3. "Do epigrama ao ideogrnma", de Augusto de Campos, apareceu na
orelha de A11n/0111ins. São Paulo, Cultrix, 1967.
Ao comentar o livro, Augusto de Campos apon 4. Infelizmente mio dispomos de um termo melhor que chiste para nomear
o conceito de Wil: dos alemães ou wit dos ingleses, a que os românticos de lena
tou essa proximidade, sem ortodoxia, com os concre deram, conforme se sabe, grande importância teórica, como se pode ver pel;i
tos, frisando a desce1;dência ae Oswald e do poema obrn de Friedrich Schlegel. Consultar o excelente estudo que dedicou ao tem;i
M.írcio Suzuki em sua tese de doutorado: O gênio ro111â11tico. Crítica e ftistórin dn
piada modernista, levada ao extremo, e a afinidade filosofin em Friedriclt Scldrgel. S.io Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
com o "salto participante" concretista, em vivo con- Humanas da USP, 1997. -
10 11
Já não era a estocada oswaldiana, em que a para dizer. Mas no essencial esse livro já vem anteci
agressividade demolidora toma o ar brincalhão de pado pelo corte agudo de Meia palavra, por isso
jogo e a crueldade infantil desponta com aparente mesmo um marco do avanço da arte de José Paulo,
ingenuidade e euforia de uma espontânea compulsão no processo de ajuste da expressão reduzida à cir
à perfídia. José Paulo não perde a deixa para o .!!!!}t cunstância histórica. Em sua condensação formal, de
d'esprit, mas a chispa verbal, quando acertada, se valor sobretudo metonímico, pela relação com a rea
situa em conexão meditativa, numa encruzilhada de lidade em torno, por vezes também objeto de alusão
associações, de tendências contraditórias, com urna ou referência metafórica, o epigrama cumpria ao
ponta de fogo e gelo que arde e traz à luz o que não mesmo tempo sua antiga função social e política,
se pode dizer senão assim. Ao contrário de Oswald, como na velha Roma de Marcial e Juvenal, reivindi
dá mostras de estar acuado ou na defensiva, a e cando os direitos elementares dos cidadãos, agora
reduzidos, com o sal do chiste, a "suicidadãos".
economia de meios, o prazer lúdico do lance verbal,
o gosto do disparate, tudo o que parece fazer a ten A matéria vivida, comprimida ao máximo, ga
são, a graça e o prazer do chiste assume nele força nhava na expressão o realce do mínimo. Com efeito,
catártica, como o desafogo que pudesse redimi-lo ou num poemeto-sfotese de Meia palavra e desses tem
a todos nós de uma pressão indizível, feito uma arma pos soturnos, que lembra o "À moda da casa" de
de combate em luta contra a repressão vinda de den Anatomias, mas numa chave modificada e mais com
tro ou de fora do poetas. plexa, a técnica de montagem vocabular, afiada na
A opressão política dos anos da ditadura militar, prática da vanguarda, resumia, em poucas palavras
a que em boa parte corresponde a "meia palavra" do de prensada ironia, o enorme descalabro creditado
título, sob ameaça da tesoura da censura, encontrará aos brasileiros, sob a pressão das botas e a expansão
em19�0 a mais aguda resistência no humor ferino de sem freios do capital, obrigados a assistir a um
�síduoJ lapidarmente afeito à forma incisiva do epi ilusório milagre econômico, com dias contados até o
grama: redução extrema da poesia ao que sobrava inevitável desastre:
SEU METALÉXICO
5. Nesse sentido, é muito revelildora a ótima poesia para criançils que José
Paulo escreverá a partir de certa altura de sua carreirn. Nela se nota que ele se
aproxima, por assim dizer, da �icogênese do chiste, de que tratou Freud em seu economiopia
estudo sobre as relações entre o chiste e o inconsciente, porque nela, mais do que desenvolvimentir
na poesia para adultos, se sente que o poeta dá espaço livre para o prazer,
removendo por esse meio toda coerção ou autocensura. De fato, nela se reco
utopiada
nhece uma soltura maior daquele que escreve "poemas para brincar", fazendo consumidoidos
dos jogos verbais, sem medo do 11011se11se ou do absurdo, um campo extra patriotários
ordinário de invenção e liberdade, o que nos faz relembrar o que diz Schiller, nas suicidadãos
cartas para A educação eslélicn do lto111e111: "o homem só é verdadeira e plenamente
humano quando jo ga".
12 13
Mesmo de passagem, uma breve análise, que se distantes reproduzisse a força bruta de fora em con
case à abreviação reinante no texto, logo revela que o traponto verbal, para responder idealmente, com fina
fundamento do poema é um chiste múltiplo, forma ironia, à agressividade real do contexto histórico. A
do por essa lista aparentemente arbitrária de seis graça verbal, de que nasce primeiro o desconcerto, é
palavras dúplices. De fato, a duplicidade contra o ponto de fusão e afloramento do psicológico e do
ditória do sentido a cada novo termo, composto social: o que soa como resposta política também
como um neologismo pela fusão de dois termos dis ressoa como alívio subjetivo; o sujeito oculto é um
tantes, se reitera cumulativamente até o último dos cidadãos em padecente e compartilhado teste
vocábulo enumerado, de modo que resulta um léxico munho. Na economia do chiste, em que as palavras
insólito, a que o possessivo e o prefixo grego 111etá do vão além do que são em si mesmas - metnléxico -, o
título parecem conferir ao mesmo tempo uma resumo da opressão é também a graça espinhosa da
atribuição (ao leitor, ao cidadão) e a transcendência. descompressão.
Cada uma dessas palavras mistas vai de fato além do No importante poema que serve de súmula
limite de si mesma, ao sornar outra antes de concluir, desse momento duro e de fecho a Meia palavra, o
e assim a direção inicial do sentido é reposta em poeta parece atingir o limite nos atos e nos poemas,
rumo inesperado, que se enfrenta com o primeiro, em despojado de tudo e já sem o que dizer. Poesia com
contraposição irônica. Essas palavras compostas primida e existência reclusa; forma e vida diminuí
parecem então dialógicas e dramáticas em si mesmas, das, em áspero pacto, à beira do silêncio:
ao encenarem a cada passo a minúscula comédia em
que uma primeira proposta enfatuada de sentido é TERMO DE RESPONSABILIDADE
furada pela seqüência irônica do final. Como a enu
meração paralelística dos termos é cumulativa, os mais nada
a dizer: só o vício
suicidadãos do fim recebem o efeito do conjunto, em
de roer os ossos
que se resume em anedota mínima uma vasta, séria e do ofício
problemática situação de opressão política, e, a uma
só vez, a reação psicológica a essa situação. O que já nenhum estandarte
parece arbitrário na escolha e formação dos vocábu àmiio
los se torna necessário internamente, pela interli enfim a tripa feita
gação das partes análogas, postas em paralelo, e pelo coração
acúmulo e conseqüente enlace dos significados par silêncio
ciais na significação do todo. O chiste condensa, unifi por dentro sol de graça
ca e metaforiza, portanto, um mundo, como se a força o resto literatura
compressora com que funde os vocábulos distintos e às traças!
14 15
No modo de redução poética desses três últimos mesmo ritmo do aprendizado técnico; este às vezes
livros - Anatomias, Meia palavra e Resíduo - é que José dá saltos desencontrados por influência de estímulos
Paulo deixa ver às claras o verdadeiro sentido do exteriores, sem relação orgânica com a necessidade
processo de sua formação. Aceitando aqui e ali, pelo interna de expressão. Demorada, custosa, difícil, a
caminho, sugestões afins a seu próprio modo de ser, conjunção vai se mostrando, no entanto, cada vez
na verdade ele produzia uma síntese própria, obede mais dominante nos livros de 73, 80 e 90 em diante. É
cendo a uma coerência interna, que permite distin que só então se dá a posse mais íntima da fórmula já
guir sempre sua individualidade poética e a forma forjada numa forma verdadeiramente pessoal, de
particular e orgânica que inventou para se exprimir. modo a libertar o poeta de corpo inteiro, senhor de si
Para tanto, reelaborou a herança modernista, que, e de seus meios, pronto para muitos dos pontos mais
no mais fundo, foi mesmo o substrato drummon altos de sua obra.
diano, cujos desdobramentos depois se verá, mas é já A poesia reunida em Um por todos, em 1986,
tão evidente nos poemas citados; a isso depois veio delineia perfeitamente o longo percurso do apren
somar-se a vertente oswaldiana, e o fato decisivo foi dizado, com a lenta sendimentação do vivido em
que acabou casando tudo, pelo feitio de sua própria processo de ajuste com o aprimoramento da técnica,
personalidade, com a antiga matriz do epigrama, a até a plena confirmação da forma pessoal. Além
que tendeu desde muito cedo, estilizando-a a seu d isso, r�_vela ainda uma tendência que não se via bem
modo com a ponta afiada do chiste. O resultado foi nos primeiros livros isolados, mas que passa a ser
algo muito distinto do poema-piada modernista ou cada vez mais clara e significativa para a compreen
do "poema-pílula" oswaldiano. Era a fórmula pessoal são do conjunto da produção poética de José Paulo. É
que lhe permitia ao mesmo tempo reler a tradição, que os poemetos vão ganhando força pelo agrup�
glosar lições do passado (como ao reassumir o tom mento como partes de um mosaico maior ou mais
satírico das Cartas chilenas para falar do presente), propriamente de um cancioneiro só, como se fossem
aceitar ou não procedimentos da vanguarda coetânea, fragmentos de um todo inconcluso mas nitidamente
e inserir-se, com consciência irônica e carga crítica, configurado, na medida em que passam a compor
munido de um programa de recusas necessárias e lin uma espécie de mitologia pessoal a que o tempo vai
guagem sob medida, na perspectiva do mundo con dando uma inconfundível fisionomia. À maneira de
temporâneo. Uma altiva atitude, diga-se de pas algtms outros poetas contemporâneos, como Um
sagem, num homem modesto e muito voltado para a berto Saba na Itália, Jorge Guillén na Espanha ou, de
alquimia das pequenas coisas no cadinho do poema. certo modo, em seu percurso antipoético, Nicanor
Assim o artesão já chegara à plenitude madura Parra no Chile, para só nomear grandes exemplos, os
do estilo, mas não conjuntamente com o adensamen poemas isolados vão compondo uma mticulação vir
to da experiência pessoal, que nem sempre tem o tual com a obra toda, à proporção que são passos de
16 17
um mesmo testemunho individual e parecem coa Penso sobretudo em PJosas s_eguidas de odes míni
dunar-se com o próprio ciclo da existência humana mas, de 1992, a meu ver, o livro de poesia mais impor
do poeta. tante que escreveu, e A meu esmo, de 1995, com poe
Na verdade, no caso de nosso autor, cada pequeno mas de alta qualidade. Representam os instantes de
poema revela a forma que o movimento do espírito adensamento em que a experiência moldada pela
logrou fixar a cada instante de iluminação lírica a par imaginação se funde na melhor forma.
tir de um inesgotável conteúdo natural, à deriva no A poesia está morta mas juro que não ftâ eu, de 1988,
tempo, como um resgate do hmnano frente ao ine r�vela inclinação-12fila a boa vertent_g, quando não
xorável fluxo das coisas. A obra assume ares de mitolo c�de a facilidades e não se queima na pura piada.
gia pessoal ao acompanhar mimeticamente a curvatu Urna das questões essenciãis a respeito de toda a poe
ra do tempo no ciclo vital, como mn diagrama formal sia de José Paulo é saber q!:@_ndo é que a piada fun
do traçado da existência, interiorizando no ritmo ciona para além de si mesma,,llbrindo-se para o ines
poético o ritmo da natureza. À medida que se esvai o gotável. Nesse livro, se destacam procedimentos já
tempo, o poeta se aproxima cada vez mais do que ele dominados e infelizmente também não poucas fra
é no mais fundo. quezas. Nos bons exemplos, porém, está viva a ten
Assim, o envelhecimento fez bem a José Paulo - dência para a incorporação de algo mais complexo,
de algum modo a experiência foi modelando o poeta, conquistado e assimilado de modo orgânico. Como
como às vezes ela faz e às vezes desfaz -, como se ele sempre isso é um pouco paradoxal e parece ter de
precisasse da substância que fica do tempo que passa pendido de um contacto externo, da experiência acu
para mostrar o verdadeiro rosto e toda a sua garra, mulada em viagens ao exterior, capaz de propiciar,
em luta com o instante. A bengala que reúne o reba no entanto, a revisão do vivido no âmbito da intimi
nho de seus próprios passos viu reunirem-se também dade e do poema, que então também consegue alçar
os poemas, fragmentos dispersos ao longo da vida, vôo para além do mero jogo verbal e da fórmula feita.
na unidade múltipla e mutável dessa mitologia que Num poeta dessa linhagem, o trocadilho e todas
corresponde ao itinerário do autor como um traçado as outras modalidades de jogo verbal, sempre diver
em aberto, mediante o qual ele presta testemunho de tidos, constituem urna natural disposição do espírito,
si mesmo diante do mundo, em resposta ao desafio mas às vezes lhes falta consistência interna ou surge,
incessante que viveu na busca pelo sentido. Por isso apesar deles, uma insuficiência, e a poesia não se sus
exatamente, esse livro de incorporação dos demais, tenta. Isso não impede, por outro lado, que a agudeza
no qual a junção entre técnica e experiência vai se tor expressiva do chiste seja um procedimento funda
nando imperativa, integrando-se à busca mais ínti mental da obra toda e responda pela maioria de seus
ma, prepara ainda o salto para o melhor, que vem melhores momentos. A delicada relação entre chiste e
depois. poesia (com certeza tão complexa quanto as relações
18 19
entre o primeiro e o inconsciente, conforme s viu piterna Dora; aí e tão, m i a e e
e , n g ns s on s cm un sso
í
n
pelo estudo famoso de frcud6) se coloca, pois, corno com o se ntime to tudo s e o
n , e na
la
ç a no t odo, como
uma das questões centrais aqu . O que se nota de transluzindo no cosm a t s fid lid d d
i r an p re n e a e o
t
e
antemão, é que nos bons momentos o espírito log ra amante es elhad a n o lh d c ão e d ha
o
p o mn osa
r o
i
o ar , a
selarnasíntese verbalo encontro de coisasdesencon unidade brota pu ra a p i :
20
21
O pequeno e o grande vem associado em nossos dias. É que além do traço
primitivo da mistura dos gêneros e de sua extensa
José Paulo é um verdadeiro homem de letras, voga entre os romanos, ficou-nos sobretudo do epi
reconhecido como tradutor, crítico e ensaísta; ganhou grama essa idéia da forma incisiva, voltada para o
a vida como químico industrial e funcionário de uma comentário irônico ou corrosivamente satírico da
editora, e tem sido também desde sempre um auto vida pública.
�idata, estudioso de línguas, e um viajante, aprendiz José Paulo retoma, sem dúvida, essa tradição da
de lugares e coisas, sobretudo de espaços literários, forma epigramática, mas refaz o molde à sua ma
que percorre incansavelmente como fervoroso leitor neira, ajustando-o, é claro, às necessidades expressi
dos mais variados gêneros. São, entretanto, esses pe vas de nosso tempo e de sua própria personalidade
queninos poemas armazenados no decorrer de toda poética. O antigo vínculo do epigrama com a iron'ia,
uma existência que constituem o centro de sua obra, como em Roma, onde se mostrou uma forma de ex
pois neles está depositada a sua experiência mais ínti pressão profundamente I igada à urbanidade, se man
ma e seu sentimento do tempo, de seu tempo, na for tém por completo, mas mediado pelas muitas trans
ma em que foi tocado em sua sensibilidade artística e formações por que passou a concepção moderna da
pôde,responder por palavras enquanto cidadão e poeta. ironia, desde o Romantismo.
E provável que tenha sido para conjugar essas É sabido como esse conceito se estendeu muito,
duas dimensões de sua existência que o poeta esco deixando de se referir apenas ao procedimento retó
lheu o epigrama como a matriz formal de sua arte. rico que dá a entender o oposto do que se diz, para
Deve-se tomar num sentido lato o termo epigrama recobrir urna atitude socrática diante do mundo, feita
para compreender o que significa essa escolha, em a uma só vez de seriedade e espírito lúdico, como
várias direções. uma intuição dos reiterados contrastes entre o ideal e
Desde suas formas arcaicas, enquanto inscrição o real. Representação da antinomia, a ironia se torna
feita na pedra para assinalar o reconhecimento de expressãÕ da consciência cindida, q_ue ao mesmo
que ali alguma coisa é, até o amplo desenvolvimento tempo se diz parte e se aparta do que se chama reali
que teve na poesia greco-latina e, posteriormente, nos ciade,_ refletindo sobre si mesma e seus próprios limi
empregos pontuais ao longo dos séculos da cultura tes, movendo-se a partir de um agudo senso d�e paró
poética ocidental, o epigrama sempre se mostrou reni dia de si mesma.
tente à definição precisa. Em princípio, constitui uma A locução Quem, eu?, que serve de título à auto
fórmula condensada em poucos versos, na qual se biografia do poeta7, dá a justa medida irônica com
mesclam os gêneros, podendo combinar a notação que, também no âmbito dos poemas, surgem as figu-
épica do acontecimento e o sentimento do drama ao
tom lírico da elegia ou à verve satírica, a que em geral 7. P,1es, J. P. Quem, eu? l/111 poeta co1110 outro qualquer. São Paulo, Atual, 1966.
22 23
rações do sujeito lírico, demonstrando o quanto José o fio
da barba
Paulo deve a essa extensão moderna do conceito de
o fio
ironia e à sua abertura a tantas perplexidades rever da navalha
tidas sobre a questão do sujeito. Com efeito, pelo fil a vida
tro do epigrama, ao propor o reconhecimento do por um fio
mundo a partir da perspectiva diminuída, por vezes
deixa ver junto com a ironia a consciência reflexa e EU?
abjssaLde uma unidade quebrada, quando o vazio UE?
pode habitar o interior do próprio ser. Assim, em "O mas a barba
poeta, ao espelho, barbeando-se". Se o Eu, antes de feita
enfrentar a luta diária, depois de alguma perplexi a máscara
dade, se reconhece por inteiro no espelho, o que con refeita
templa afinal é a redução reiterada de si próprio à mais um dia
máscara esvaziada da rotina. Por isso, a repetição aceita
espelhada do Eu no fim serve de irônica ressonância,
EU
a esta espécie de anti-epifania: EU
o rito
do dia
Se a ironia conduz ao dobrar-se do sujeito sobre
o rictus si próprio, leva-o também, por outro lado, para fora
do dia de si. Fica evidente que a poesia de José Paulo tem
o risco também uma dimensão pública parecida à do epigra
do dia ma antigo e se inscreve sempre, com distância e obje
tividade, como uma notação épica da realidade cra
EU?
vada no momento: palavra sobre a História.
UE?
Essa épica em registro mínimo é um dos maiores
oil1o encantos de sua obra, pois confere ao epigrama o
por olho vivo interesse de um testemunho sobre o presente.
dente Seu engenho de agudezas reflete a consciência vigi-
por dente 1 ante diante da cidade dos homens, dos gestos e dos
ruga
rictos sociais, da mecanização rotineira dos hábitos,
por ruga
dos clichês da linguagem, das relações reificadas na
EU? intimidade do cidadão comum e em seus contactos
UE? com as esferas de poder. É uma poesia da civilidade,
24 25
estóicos, uma virtude fundamental9, de que a ironia,
q dire i t o s civ is estão
ex ta ament en u m mom en to cm u e os p or sua vez, era a expressão característica.
rte d pop la ç ão do p aís
a ma o r pa
d i
a i s a m eaça o s u
�ssa generalidade abstrata que permite o rcco
a
m e a, p l a fal ta de e d cação
g - p l
p b
es támuito lo e o re z e u
n
e a nhcc1mento d e semelha nças com o mundo dos roma
d it s mínimos.
l
j ç
ti a
- , d re
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ace sso a qu a que r us os o nos é, no entanto, apenas um dos aspectos da questão
e de A experiência
s sim pr esta conta s,a s e u m od , da
o
r a b
e nos levaria a um eq u ívoco sobre a verdadeira
écu o d hi tó i sileira
d i
s ra ,
de qu em pa ec e u me o s l e
fisionomia da poesia de José Paulo, se não buscásse
o r it o trepi
d i
q as d e s
rt azen o a poes a cm p e u n os a m m s
Mode rn a (q ue não é � � outro aspecto fundamental com o qunl o
e
a n á
i
d C id
d e
dante e fr gme t r o a a
p ro se articula e que é, por assim dize ,r a dimen
) d a q ual
rimei
e pa cu a r ,
id d rti l
e atx a m en t e e n n h u m a c a são infinitamente pequena que se contrapõe a essa
r s e m sig os não
ex trai imagens ba a sedas po v z ee n face genérica e infinitamente grnnde. Dessa articu
ã d em s: como a
p
s lél
s a
verbnis p a rn él comp o s iç o o p o lação depende aquela palpitação particular e concre
Me i a lpn n rn, fal m or si da liber
ca s d e rua, de v qu e a p ta que dá vida ao epigrama como um todo, como um
d d e in t d itada n aqu e le m mento . Emb
o ra ness e
mundo m
a e r
cífi
o
a ref rênc a a ba
e i irros de � -�iniatura. Compreendê-la supõe pene
e o figu e ar a
cl trar na d1alchca entre a matriz formal e a l Iistória ou
poema es lp
c ,
l b d ade , fig ur am
o Pau o - na pa l ca, ao ado da Li e r se ja no movimento interno à forma pela qualo infini
a Vil Ma i a- a cidade aq ui é ,
S ã
o P a raíso e a ran , ta mente pcqueI)O chega n se abrir para o infinita
també m
o rexem
o d r e nte, p
ife
b
it
em ge ra l uma a s t rnção e mu mente g rande. E nessa articulação que o chiste com
,
l d Mário o u
pl o, da cid ade mode nis r ta, da Sã o Pau o e s u engenho e ironia desempenha um pape essen
d s ue à ? ,
do Rio de Ba n de rn e Drumm o n . Po e e r q s l
i d
cial, ao promovera ligaçãoentre coisas muito distan
i a la t e e e
nt d Sã o
rceb a a n da u m a pre s e
nç
tes, pensamentos desencontrados, provocando o
vezes se pe ia e d sátira olí
l
a es col ha d o a
l
v o d i ron
a
a p curto-circuito que incendeia o todoedesfecha oclarão
Pa ul o, pe
a pó/is nqu anto
, mas n Cid a d e é ante s de tu
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27
2 6
que, como em Drummond, é ainda sentimento do para o qual aponta com sua palavra corno que indi
mundo. Aqui é nítido o quanto incorporou, sem des cialmente, não apenas para registrar-lhe a viva pre
douro nenhum para a originalidade de sua personali sença na consciência subjetiva, ao tentar dizer o que é
dade poética, a lição do poeta modernista para a me cada coisa em cada caso, mas para exprimir o sinal da
ditação lírica sobre o tempo presente. Quer dizer: emoção, muitas vezes marca da ironia e da negativi
desde o princípio sua poesia se abriu para o seu dade de um ser individual em meio ao universo em
tempo e a História, mas o modo como o fez é para que lhe tocou viver.
doxal porque se deu, às vezes até bandeirianamente, A poesia é também aqui, como se vê, uma forma
pela incorporação das pequenas coisas, ou se se qui de comportamento - até provavelmente uma forma
ser, pela redução do mundo de fora à proporção peculiar de ·aprendizagem - que se traduz pela ex
diminuta da miniatura poética. pressão lírica como manifestação particular do
Dito desse modo, pode ainda soar genérico e sujeito individual, o qual, por esse modo de expri
abstrato, mas a verdade é que José Paulo lida com mir-se, exprime igualmente uma atitude frente ao
SQ_i_�as concretas à sua volta, que podem ser, e são com geral das coisas. Esta particular reunião de poética e
freqüência, como em seus últimos livros 10, pequenas ética tende, como se disse, às formas da brevidade, e
coisas: a casa, o jabuti do jardim, a tinta de escrever, f! mediante o contraditório movimento da ironia,
espelho, os óculos, a bengala, o fósforo, o alfinete. E · procura condensar ainda o modo de ser próprio das
mediante a percepção poética delas em determinadas coisas ao redor, em breves aparições, numa contida
situações que percebe ao mesmo tempo o movimen metafísica de meias palavras.
to da História que as anima, enquanto parte da expe Mexendo o tempo todo com coisas concretas e
riência a uma só vez mais íntima e mais ampla. próximas, José Paulo lança sondas além, em busca de
Com efeito, nesses poemas mais recentes é muito irradiações gerais. O chiste se mostra então como um
perceptível o adensamento da experiência interior e a meio de conexão: o verdadeiro princípio de articu
expressão muito próxima da intimidade, tudo recon lação pelo qual se processa a unificação do diver
centrado intensamente, com grande complexidade, gente no interior do todo minúsculo. O poema se
no mínimo, mas também tudo aberto para o geral, ou torna urna espécie de "anedota de abstração" 11, sem
seja, para o infinitamente grande. Através do pe deixar de situar-se sempre no aqui e agora. Como
queno, o poeta se liga a algo maior, ao vasto mundo
(para reafirmar ainda a expressão drummondiana),
11. Como se sabe, com esta expressão aguda, Guimarães Rosa designava
o modo de ser do chiste, dele aproximando seus continhos descarnados e difí
ceis da fase final de T11/ai11éia e fazendo pensar, ao mesmo tempo, nas fábulas
iO. Reíiro-nic ils Prosas seguiti11� ,ie odes 111í11i111lls (Siio Pauio, Companhia aêJS1raias de iciemiciadc em que se pode reconhecer o mito. a. o prefácio
das Letras, 1992) e aos 15 poemas desgarrados de J\ 111eu es,iw (Ilha de Santa "Aletria e hermenêutica". T11tn111éia. Terceiros cstârins. Rio de Janeiro, José
Citarina, Noa No.i, 1995). Olympio, 1967, pp. 3-12.
28 29
resultado, re_sume ao mínimo o mundo de dentro e de O pequeno se transforma em mediação para o gran
fora, num instante de iluminação subjetiva em que de: "Todo abismo é navegável a barquinhos de pa
fica evidente na atitude do poeta a marca particular pel", como escreveu Guimarães Rosa, falando da su
da realidade contemporânea, ao mesmo tempo que peração dos obstáculos às relações amorosas na vida
se projeta na dimensão do universal. No mais íntimo das aldeias, que, como se sabe e ele também diz, "são
do mínimo, em sua especificidade, está contido o a alheia vigilância" 12. Ali a vida privada e a pública
apelo do geral. Singular em sua fisionomia, pela fór se confrontam todo dia na rua, no mercado, na igreja,
mula peculiar de redução do mundo, cada poemeto nos bares. O íntimo está sempre exposto, de modo
traz em seus próprios fundamentos os traços típicos que o cotidiano na província é um pouco teatro e tri
do epigrama e sua vocação para exprimir os traços puna}, e, claro também, involuntário testemunho.
gerais da urbanidade. Daí que por vezes nos faça José Paulo desenvolveu em sua obra um especí
lembrar do antigo epigrama latino. Mas o essencial é fico olhar provinciano sobre as coisas ao seu redor.
que o momento histórico se faz parte constitutiva da Num depoimento que fez ao jornal paranaense
forma, no cerne dessa lírica engenhosa e de palavras Nicolau, em 1988, deixa ver com nitidez o que signifi
contadas. E é só assim, movendo-se do pequeno ao cou para ele a descoberta do vasto mw1do, aumenta
grande, e de seu tempo a todos os tempos, que ela se do de repente com a experiência histórica da Se
universaliza. gunda Grande Guerra: "Durante a guerra mundial,
Em consonância com esse mundo em pequeno, a os olhos provincianos haviam aprendido a se voltar
expressão lírica deve ser afiadamente reduzida ao para a amplidão do mundo: um dos romances dessa
mínimo também e, por surgir inscrita no momento época se chamava, significativamente, Grande e
histórico, faz do instante a fulguração da amplitude. estranho é o mundo. O alargamento de visão se tra
Nisso reside, portanto, a base da mescla epigramática duzia inclusive num boom editorial, já que os livros
dos gêneros com que o poeta veio construindo seu são janelas permanentemente abertas sobre o mundo.
universo desde os anos 40: como se vê, um original Nessas janelas nos debruçávamos nós, os da geração
minimalismo que lembra, noutra esfera, seu compa do imediato pós-guerra - também chamada, com
nheiro de geração e, cm-parte_, de formação curitibana,, menos propriedade, geração neomodernista ou ge
Dalton Trevisan, feroz resumidor de destinos miúdos. ração de 45-para respirar a plenos pulmões os novos
O peso que a formação provinciana terá tido na ares que começavam a soprar"13_
configuração interna da obra desses dois escritores
não é, com certeza, descartável: na província só se vê
de perto, em singular miopia, a figuração imaginária
e difusa do distante, apaipável quando muito nas i2. As citações são do conto ··oesenl't'do .. , àe Ttd11111éi11, ed. cit., p. 38.
13. Cf. "Um começo de vida .. , Nicolau, ano 1, n� 12, 1988, p. 5. Reprodu
miudezas vizinhas, as únicas ao alcance da mão. zido na reedição acima citada de O aluno, pp. 46--19.
30 31
A relação dessa questão com a literatura já se cidade ganha extraordinária força e enorme raio de
percebe desde o esquema dos gêneros. O romance, ação, atingindo a mais alta complexidade. É que se
gênero moderno por excelência, tão ligado ao univer observa com lente de aumento, no seu caso, pela
so do trabalho e da metrópole burguesa, manifestou própria grandeza de sua poesia, como as tensões
urna queda forte pela observação da vida provin entre o pequeno e o grande podem chegar a ser mui
ciana, corno se pode ver por algt.ms de seus mais to mais do que um dado da biografia ou elemento
famosos exemplos (como o de Mndmne Bovnry), mas a considerável na formação da personalidade poética
poesia moderna transformou a oposição entre a cida ou ainda um tema relevante, tomando-se, na ver
de grande e a província por vezes numa experiência dade, um fator básico na determinação da visão do
dilaceradora como no caso célebre de Rirnbaud. Mas rn�ndo e, na medida em que é constitutivo do pró
nem sempre, e são muitas as variações e os rumos prio processo de conhecimento poético, em compo
que tomou a questão, que parece tão relevante para a nente interno da estrutura. Seria preciso demons
compreensão da poesia de José Paulo em seu apego à trar, mas como não é o caso aqui, basta pensar no
visão minimalista. papel desempenhado por ltabira e Minas, que estão
No Brasil, o Modernismo trouxe essa oposição na raiz de seu lirismo e que, como algo que se
para o centro da vida cultural, espelhando não só a supera mas permanece, acompanham o poeta corno
formação característica da maioria de nossos escri a sua sombra 14_
tores, geralmente marcada por traços da tradição Ao relatar, em Quem, eu?, seus anos de formação,
rural, mas carreando também os complexos proble José Paulo dá ênfase à vida interiorana que levou em
mas da cultura híbrida pela mistura de elementos tra Taquaritinga, em Araçatuba, destacando sobretudo o
cionais e modernos e os ritmos desiguais do processo período decisivo de Curitiba, que, com o intenso con
histórico-social. O quanto isto pesa internamente na vívio nas rodas literárias e artísticas do Café Belas
configuração das obras é uma questão em aberto, que Artes e depois com a revista Joaquim, marca-o fundo,
deve ser considerada em cada caso. expande seus horizontes culturais e praticamente lhe
Diferentemente dos concretistas, dentre nossos define a vocação de escritor. Recompõe assim por
poetas os primeiros de extração puramente urbana, e�tenso, em termos biográficos, o processo de apren
corno já notou Antonio Candido, José Paulo se en dizagem que o torna um herdeiro dos fundadores de
tronca à mistura de província com cidade grande, à nossa modernidade poética. De fato é com eles,
maneira da linhagem principal do Modernismo, con segundo diz, que "aprendi que poesia é ver as coisas
forme se vê, por exemplo, em Bandeira e Drum do mundo como se fosse pela primeira vez e expri-
rnond. Neste, à semelhança do que ocorre com ou
tros elementos que entram no jogo de tensões carac
14. Como se sabe, "Província, minha sombra" é como Drurnmond intitu
terístico de sua obra, a oposição entre província e lou uma das partes de seus Passeios 1111 ilha.
32 33
mir essa novidade de visão da maneira mais concisa do mediante o procedimento de ver o grande no mí
e intensa possível, numa linguagem onde só haja lugar nimo, de minimalizar nos limites reduzidos do poe
para o essencial, não para o acessório"15_ ma, feito só com palavras essenciais, o todo intuído
O que fica implícito, porém, nesse depoimento num golpe de vista momentâneo16_
comedido, mas revelador, é o processo de constitui Na verdade, assim fazendo, José Paulo instaura
ção de uma visão à margem dos grandes centros no instante um testemunho sobre a História, que é
culturais do país, o registro de alguém que se for também um modo de se integrar, pelo registro da
mou na periferia do eixo Rio-São Paulo, longe dos passagem do pequeno ao grande, ao movimento do
focos de gestação e irradiação dos movimentos poé todo, na busca do sentido. A consciência disto vem
ticos principais, longe de tudo, mas tudo acompa expressa, sempre com lucidez irônica, na ode mínima
_
nhando de perto, e, por isso mesmo, constituindo dedicada "A tinta de escrever":
seu modo de olhar como um testemunho à distân
cia do vasto mundo. Sua arte, será a uma só vez Ao teu azul fidalgo mortifica
registrar a notícia, escrever
uma defesa e um meio de expandir a personalida o bilhete, assimu a promissória
de, ao dar forma poética ao testemunho, que é um esses filhos do momento. Sonhas
modo de se debruçar sobre o mundo, tornando-o
visível no mínimo. mais duradouro o pergaminho
O chiste será então um meio de encurtar as dis onde pudesses, arte longa em vida breve,
tâncias, de trazer para perto o universo longínquo, tor inscrever, vitríolo o epigrama, lágrima
a elegia, bronze a epopéia.
nando-o acessível à perspectiva diminuída do mundo
pequeno, familiar e íntimo, ao mesmo tempo que dá
Mas já que o duradouro de hoje nem
corpo concreto na brevidade à ampliação da consciên espera a tinta do jornal secar,
cia irônica e sua crescente percepção dos desencontros firma, azul, a tua promissória
contraditórios do mundo. Entre o pequeno e o grande, ao minuto e adeus que agora é tudo História.
o movimento que perfaz o enlace funda também o
sentido.
Assim, sua poesia reflete em profundidade esse
16. Ao tratar recentemente de um "poeta do interior", o próprio José Paulo
ângulo de visão armado pela experiência provin revela a perfeita consciência da relação entre a "condição interiorana" e a "reite
ciana, no interior do modo mesmo como procede rada preocupação com a idéia de pequenez", que o livro Minuto di111i11ufo, de
Flávio Luís Ferrarini, a seus olhos parece exprimir tão bem. Todo o artigo é
artisticamente ao integrar a província ao vasto mun- extremamente revelador da própria poética aqui comentada, pois relaciona a
forma abreviada do epigrama - "o todo anão cuja alma é agudeza e cujo corpo
é cm ,ci� ão", confon11e a ddiniç;,u de Coleridgt: <1Í LÍi<1d<1 - e a t:xpeTiência
_
provonciana. Cf. Pacs, J. P. Os perigo, da poesia e outro, wsnios. Rio de Janeiro,
Topbooks, 1997, pp. 84-90.
15. Op. cit. , p. 34.
34 35
Convém buscar diretamente num poema dos trário, encara-o de modo realista e de frente em sua
mais significativos de José Paulo - um verdadeiro objetividade problemática para todo ser humano,
poema-síntese da obra toda -, os traços característi sem esconder angústias e tumultos do espírito, sem
cos dessa arte que soube incorporar a fundo uma mitigar a ironia, mas tampouco sem alarde descome
determinada experiência da vida interiorana brasi dido ou grandiloqüência: trabalha corno sempre, à
leira, transfigurando-a e condensando-a em formas sua maneira minimalista, enfrentando de perto o
poéticas da brevidade, para de algum modo prestar infortúnio sem tamanho.
contas do destino de um homem. Nota-se apenas, desde logo, uma variação de tom
e mudanças abruptas de ritmo no conjunto: repentinas
A perna e o Juízo Final oscilações, que parecem sinais de turbulências físicas e
espirituais intrínsecas à matéria difícil. Mas há tam
À minha perna esquerda" abre a seção de odes
11
bém repousos idílicos, quietudes da alma em pro
que constitui a segunda parte do livro de
111íni111ns visório abrigo, em meio à tempestade fora de controle.
1992 . É um de seus poemas mais longos, mas na
17 É como se o autor se sentisse obrigado a reconsiderar
verdade está formado por um bloco de sete pe os seus próprios ritmos e os da existência, partindo do
quenos textos, para os quais é ainda básico o molde próprio corpo. O golpe impõe um novo arranjo àquela
do epigrama, apesar das sensíveis variações de tra imperceptível música dos membros que funcionam
tamento da matéria comum que os liga. É difícil sem ruído até a perda fatal: e então irrompem dis
falar dele, mesmo depois de perceber como é repre ritmias violentas, em contraste com sossegadas cal
sentativo da obra toda e de sua inflexão para os marias, urna verdadeira reavaliação de toda a existên
temas em que sedimentou a experiência pessoal de cia frente à catástrofe que quebra de repente o deslizar
José Paulo. da rotina.
Trata-se de algo grave e terrível: o poeta vai ter Em princípio, o assunto comporta, portanto, por
sua perna esquerda mutilada e se prepara para sub sua própria natureza, urna dimensão trágica, e o poe
meter-se ao inevitável sacrifício. ma não se desvia da sugestão patética e implacável
Sempre avaliamos mal quando alguma coisa do ritual de sacrifício. Mas realmente se encaminha
assim medonha nos chega, mas o poeta que efetiva para o sparagmos, a dilaceração do corpo (e também
mente a viveu, não tem escrúpulos em tratar dela às da alma) que é o arquétipo da ironia e da sátira 18,
claras, e o faz com a maior dignidade, sem qualquer forma de tratamento que dá o tom predominante no
exibicionismo fácil ou excessivo dramatismo; ao con- texto desde o começo.
18. Cf. Frye, Northrop. /\11nto111ia da crítica. Trad. Péricles Eugênio da Silva
17. Como j;í ficou dito, me refiro ils Prosas seg11idns de odes 111i11i1Hns. Ramos. São Paulo, Cultrix, 1973, p. 190.
36 37
Por outro lado, o apoio no modo irônico de tratar Ao mesmo tempo íntimo e genérico, o poema
um fato real, extraído da experiência vivida, não choca pelo teor do tema e desconcerta pela despro
impede momentos em que a fantasia abre espaço porção contrastante do que põe em jogo. A ironia,
para o espírito satírico, que impregna todo o texto inclusiva, sela os contrastes, articulando os elementos
com sua tendência à miscelânea (sabidamente ligada divergentes no interior da unidade. Como isso se dá,
às origens da sátira) como se observa na mistura de
é tarefa analítica para realizar aos poucos. Convém
chiste com a seriedade romanesca das imagens de
começar pelo mais visível.
pesadelo, na mescla de prosa à poesia, ou na discre
A desproporção é, com efeito, brutal e poderia
pância fantasiosa e paródica da cena do Juízo Uni
por si só inverter a principal direção do assunto, tor
versal, quando a perna, tendo se antecipado ao resto
nando-a tragicômica, mas é de pronto irônica: as
do corpo, é moralmente advertida quanto à própria
eventuais considerações metafísicas começam terra a
inocência frente às faltas cometidas pelas outras par
tes que com ela hão de se reunir para o veredicto terra, isto é, pela perna, pela perna que ainda vai fal
final. tar. A conformação despretensiosa que assim se
A visão antecipada de um fim próximo, forçada imprime à matéria é ftmdamental do ponto de vista
pela amputação de um dos membros de um corpo artístico, pois vai permitir lidar com o difícil sem afe
ainda vivo, não é decerto sem conseqüências para o tação e sem perder a contundência do real, que se
espírito: o terror da morte e seus fantasmas, as refle apóia no detalhe concreto. É o pequeno que sustenta
xões que desperta, a meditação sobre o passado ou o grande.
sobre o destino humano em geral, as dúvidas e per A perspectiva minimalista de José Paulo, seu fino
plexidades diante da condenação à finitude, as inquie senso irônico das desproporções, a força abrevia
tações com o além, as imagens recorrentes do Juízo dora de seu epigrama, tudo isso que o leitor já co
Final, tudo isso deriva da mera menção ao assw1to e nhece tão bem, converte uma questão geral em pró
de fato compõe o complexo quadro de referências do xima, e a uma só vez faz de um problema pessoa 1
poema, para nele receber, entretanto, uma radical uma questão de todos. É esta a ocasião propícia ao
simplificação, própria da sátira e do espírito de José encontro entre a apurada técnica a que chegou e o
Paulo, afeito à perspectiva minimalista. Quer dizer: adensamento de sua experiência pessoal. Estamos
ao escolher para tratar um tema melindroso, vasto e no instante em que pode surgir sua melhor poesia, e
complexo corno o que está em pauta, o poeta vai logo ela de fato surge.
vinculando o grande ao pequeno, trazendo à conside O primeiro poemeto da série demarca o registro
ração do leitor uma enorme problemática, presa, con da ironia ao tornar a falta irreparável uma absurda
tudo, pela perna, pela sua perna. suficiência, pela conhecida arma do chiste:
38 39
1. A explicação lingüística não faz jus à graça do
Pernas chiste, cuja parte mais importante fica ainda na som
parn que vos quero? bra, sob o efeito da ironia. Realmente, é a atual
condição do sujeito o lado obscuro e grave, latente
Se já não tenho
por que dançar. sob o brilho verbal do chiste; dela depende a justi
ficativa de aceitação do aparente absurdo de se que
Se já não pretendo rer uma perna só, escorada numa estapafúrdia lei de
ir a parte alguma . compensações.
O que está latente é nada menos que a alma do
Pernas?
Basta uma.
poeta, com os complexos sentimentos que decorrem
da impossibilidade de se entregar livremente ao
O chiste, fundado nwn jogo verbal, se baseia movimento - à dança ou à simples locomoção-, o
numa frase feita - a locução familiar e gramatical que equivale a uma diminuição física que é de fato
mente incorreta Pernns, pnra que te quero!-, que se usa uma restrição da vida, obrigada a um forçado e, este,
ao fugir correndo do perigo iminente, frisando a sim, absurdo encolhimento. É esse conteúdo, por
necessidade das pernas. O caráter alusivo, que logo assim dizer realista, que está submetido a um trata
adquire o emprego da frase corriqueira e de todos mento irônico, com uma completa ausência de pose
conhecida num novo e inesperado contexto, desen por parte do autor.
cadeia o refinado procedimento construtivo da iro O poemeto, que se abre como um diálogo com as
nia. No poema, a frase vem primeiro corrigida na pernas, continua como uma fala próxima da prosa,
gramática, com a passagem do pronome singular te, tendendo quase à métrica regulai� com versos de qua
mal empregado, ao plural vos, mas com irônica ele tro ou cinco sílabas nas estrofes centrais mais enfáticas,
vação do tratamento: parn que vos quero?. A interro mas com uma discreta sonoridade (apenas realçada
gação final, em lugar da exclamação, indicia o deslo por uma rima consoante entre alguma e u111a com que
camento do c lichê surrado para outro contexto muito se fecha sonoramente o texto). As duas pequenas es
diverso, onde o destaque é para a perplexidade do trofes do meio reiteram, pelo reforço retórico da aná
sujeito como parte ativa interessada no objeto pernas. fora, essas obscuras razões de aparente desistência do
O ponto capital, porém, é que agora se inverte o sen movimento, deixando entrever, no entanto, o que não
tido, e a frase passa a servir para apregoar o oposto se pode dizer senão pelo chiste e a ironia. E então se
do esperado, ou seja, a irônica aceitação de uma comprova como a ironia é de fato uma forma do deco
perna só, como se o singular bastasse, diante da inuti ro, uma virtude da urbanidade, mas também um
lidade de duas, na condição atual do sujeito que já modo sutil de descobrimento da alma, no mais íntimo
não precisa delas. não falável.
40 41
A seqüência do poema traz um mergulho pro e o amigo sem corpo
zomba dos amantes
fundo nessa interioridade indevassável à clareza da a rolar na relva.
fala comum e vem povoada, em diversas modula
ções, das imagens de um sonho repleto de ansiedade. Por que me deixaste
pé morto
Com efeito, em nítido contraste com o primeiro pé morto
poerneto, o segundo, mais longo, muito mais instável e a sangrar no meio
visivelmente assimétrico em sua forma exterior, já co de tão grande sertão?
meça pela afirmação atribulada do movimento que de não
pende das pernas. Em seguida, se concentra num monó não
logo torturado, opresso pela angústia, carregado da NÃO
quelas imagens oníricas e fantasmagóricas, indo desem
bocar, por fim, num diálogo delirante com a imagem É essa talvez a mais penetrante incursão de José
obsessiva do pé morto, que conduz para dentro da noite: Paulo no reino das imagens noturnas, demoníacas e
recorrentes, provindas daquele veio subterrâneo, de
2.
Desço
enfrentamcnto com o inconsciente, que do Roman
que subo tismo, por via do Simbolismo e do Surrealismo, acaba
desço que por aflorar quando menos se espera entre poetas
subo modernos, por vezes até afastados dessa tradição.
camas A alma oculta pelo diálogo civilizado e perfeita
imensas.
mente urbano, sob a guarda da ironia e o fulgor do
Aonde me levas chiste, irrompe de repente desamparada no delírio,
todas as noites perseguida por um roldão de recordações desencon
pé morto tradas e fantasmais: fezes de infância se grudam a lençóis
pé morto?
hospitalnres, uma cidade insone se enche de sufocantes
Corro entre fezes vozes barrocas, um amigo incorpóreo cobre de ridícu
de infância, lençóis lo os jogos de desconhecidos amantes, e tudo culmina
hospitalares, as ruas na sensação do sacrifício sangrento em meio a um
de uma cidade que não dorme grande sertão feito de solidão e pesadelo, onde o poeta
e onde vozes barrocas
enchem o ar
apenas pode repetir, num crescendo, seu derradeiro
de p Não!, que de nada vale.
a No conjunto, esse torvelinho de fantasmas múri
cos desarticula o mundo organizado da Cidade dos
n homens, introduz a dissolução da noite, gera o caos e
a sufocante
42 43
rompe a ordem urbana, tudo o que conta para a poe poesia, cuja breve forma epigramática se desfaz nas
sia de José Paulo, cuja ironia é justamente uma pro turbulências e contorsões desse poema tortuoso, pu
jeção da urbanidade. xado para baixo no meio do redemoinho, em viagem
Aí não há chiste e penetramos num mundo dissolvente para dentro da noite e do fundo do ser, de
desconexo e infernal de sacrifício e mutilação, onde o onde crescem, em vão - de profundis clamavi -, os gri
pé morto, destacado metonimicamente de tudo isso, tos do sofrimento, do desespero e da negação19.
assoma como um símbolo macabro. Grotescamente
separado do corpo, ele reitera, com a ênfase aluci 3.
Aqui estou,
natória de um estribilho sinistro, a antecipação do Dora, no teu colo,
fim, pela divisão do ser e a desordem da Cidade, nu
levando o homem ao abandono, ao mais completo como no princípio
desamparo, em meio à selvageria do sertão. de tudo.
O sonho mau é, como se vê, regressivo, uma espé Me pega
cie de imaginária descida aos infernos, ao mundo dos me embala
refugos do desejo, impelindo a civilização ao infindo me protege.
mundo selvagem, aonde o sertão ressurge contraposto
à Cidade, como o outro que revém sob o verniz civi Foste sempre minha mãe
e minha filha
lizado. Antecipando a morte do corpo, insinua tam depois de teres sido
bém a morte do mundo hwnano, sugere a fw1esta fan- (desde o princípio
tasmagoria da destruição da ordem que o trabalho do de tudo) a mulher.
homem impõe à natureza, ou seja, da construção
humana por excelência que é a Cidade, a que está O terceiro poemeto revela ainda o movimento
umbilicalmente ligada toda a poesia da civilidade de regressivo, mas agora num plano oposto ao anterior
José Paulo. Visão infernal da noite para a qual conduz e mais precisamente idílico. É de novo uma lírica e
o pé morto e contra quaI de nada vale o apelo do não. comovente entrega do poeta à musa, Dora (cuja en
Não é de se estranhar, portanto, que sentimentos trada na poesia de José Paulo, como ficou dito, evoca
extremos de impotência e desamparo - aumentados o quadro de simplicidade da pastoral neoclássica),
equivalendo a uma busca de resgate do mais profun-
pelo sertão sem tamanho em que se sente abandona
do o poeta -, acompanhem esse momento de anteci
pação trágica do sacrifício, antevisão do spnmgmos, 19. É interessante not11r como neste momento tào pessoal e forte da poe
sia de José Paulo se sente m<1is uma vez, e ilinda aqui sem qualquer desdouro,
quando a dilaceração do corpo já se transfigura ter a presença vivi! da herança drummondiana e, em ecos mais longínquos, mas
rivelmente em imagens demoníacas da divisão do também perceptíveis, a de Baudelaire. Por outro fodo, sào quase ostensivas <1s
referências à imagem do "boi morto" de Bandeira e ao "sertào" de Guimarães
próprio ser. Elas subvertem a própria ordem dessa Ros11.
44 45
do desamparo vivido antes. Depois do percurso tene entrega total: o ser, no limite da absoluta dissolução
broso de descida aos infernos, regressus ad uterum. do não-ser. O pequenino idílio tem, portanto, valor
O contraste faz perceber melhor como as ima apocalíptico, de revelação, em contraste e confronto
gens de sonho mau no segmento precedente relem com a divisão demoníaca cujas imagens terríveis são
bram o esquema arquetípico da aventura romanesca impostas pelo sentimento da mutilação.
em que o herói batido por um rude golpe se precipi Por outro lado, aí se pode observar ainda como a
ta no fundo de um poço infernal; de forma análoga, obra de José Paulo realmente se converte, em seu mo
ele dali agora reascende ao mundo idealizado do vimento íntimo e aglutinante à medida que progride,
idílio em que o espírito se reconforta com o prazer de numa espécie de mitologia pessoal. Nela, a figura
reencontrar um mundo que corresponde ao desejo. recorrente da amada e musa desempenha um papel
O idílio, termo que na origem significa, como se decisivo, de algum modo assinalando o princípio da
sabe, "pequeno quadro", se aparenta ao epigrama e poesia, pontuando-lhe a cada passo o desenvolvi
se coaduna com perfeição à simplicidade e à tendên mento e acompanhando-a até o fim. A transfiguração
cia à miniatura da poesia de José Paulo. Nele o poeta de um ser tirado da experiência real se completa
pode assumir toda a sua força expressiva propria nesse movimento interno de incorporação de uma
mente lírica, em contrapartida à sua verve satírica, musa inspiradora e protetora constante, a que se con
exprimindo uma conciliação momentânea entre o fere a força do mito. É essa a força que a poesia sem
ideal e o real, quase sempre apartados por aquela dis pre sabe reencarnar e fazer de novo valer, quando
tância que marca a ironia. deseja exprimir os seus próprios fundamentos.
Aqui o quadro em miniatura vem muito mais Assim, o momentâneo idílio exprime o reencon
realçado pelo contraste com o anterior e se refaz em tro com a Musa, que é também reencontro da poesia
doçuras e suavidades, como numa cantiga de ninar: o consigo mesma, com sua fonte perene, num momen
Eu, despojado de tudo e feito de novo criança, se to extremo em que o poeta vive a ameaça iminente
abandona à Mulher que é para ele a Mãe e todas as de destruição.
mulheres, à procura de aconchego e abrigo.
O movimento em busca de proteção é aí tão dire O quarto poemeto reata o fio das imagens oníri
to e evidente (quando tantas vezes é um conteúdo cas e demoníacas, acentuando a atmosfera fantástica
latente e disfarçado, só se deixando interpretar por com um togue surreal, ao introduzir a imagem notur
meio da psicanálise), expõe tanto a fraqueza do ser, na de um morcego na enfermaria de um hospital e
que comove pela força do desnudamento, sinal da inexplicáveis manchas de sangue por toda a parte, na
situação extrema vivida pelo poeta. manhã seguinte:
A nudez, que estava no começo, descobre a imi
nência do fim, revelando o indivíduo no limiar da
46 47
Dizem que ontem à noite um inexplicável morcego assustou
Esta quinta parte é de novo um diálogo imagi
os pacientes da enfermaria geral.
nário, mas agora com a perna que vai ser amputada.
Dizem que hoje de manhã todos os vidros do ambulatório A matéria realista e o tratamento irônico são retoma
apareceram inexplicavelmente sem tampa, os rolos de dos na construção do poemeto. Nele também se re
gaze todos sujos de vermelho. torna ao corte epigramático e à veia satírica, voltada
para o momento da dilaceração física: cabe à perna a
Como se vê, o texto tende à prosa narrativa e ao
necessária espera até a hora de reunir-se como o
humor negro à maneira de uma historieta insó�ta so
_ restante do corpo.
bre um grotesco vampiro hosp�talar; p�d1a ter saido �:
Há algo de rabelaisiano nesse movimento paró
uma página da célebre antologia �r?arnzada por ��re
dico e grotesco para o baixo corporal, cuja conside
Breton20_ No conjunto da ode m1rnma, exerce, porem,
ração foi imposta ao poeta, pois acaba determinando
uma função de gradação climática e metafórica, pre�a
lhe o mmo do destino. Na despedida tragicômica de
rando as composições restantes, à semelhança do efeito
de antecipação do terceiro segmento, que avança pela parte de sua carne, repetindo ecos da hora marcada na
imagem do pé morto rumo à mutilação inapelável. famosa elegia de Lorca e uma suposta etimologia gue
se diria verdadeiramente carnavalesca21, o poeta se
Chegou a hora prepara com um trocadilho - minha cnra/data vermibus
de nos despedumos - para a forçada e eterna separação. Na verdade, o
um do outro, minha cara
data vennibus movimento desse chiste paródico da hora fatal parece
perna esquerda. querer exorcizar pelo riso catártico o horror da ampu
A las doce en punto tação, que torna no entanto presente o que se oculta
de la tarde
atrás de tudo: o verdadeiro horror da morte. A muti
vão-nos separar
ad eternitatem. lação efetivamente antecipa na parte o terror do todo.
Pudicamente envolta
num trapo de pano Ainda em ritmo paródico, mas de sinistra marcha
vão te levar
da sala de cirurgia
militar, manquitolando a partir do terceiro verso, o
para algum outro (cemitério sexto poemeto da ode mínima reconhece pela cadência
ou lata de lixo batida os dias contados da própria perna. E martela
que importa?) lugar
onde ficarás à espera
a seu tempo e hora
21. Como se s,1be, d.idil a vocação da etimologi;i para il fant,1sia, il preten
do restante de nós.
sa origem etimológica do termo cadáver estari,1 11,1 perífrase latina caro dnta ,�'r
mib11s, assim como a de carn,1val, na expressão cnme, vnle!, propostil por F. Diez,
20. Refiro-me, é cl;iro, à A11t/10/o gie de /'hu111011r noir, que Brct�n _publicou com um vocativo impossível (o correto seria caro e não cnmr) e sem base históri
pela primeira vez em 1939 e depois reeditou divcrsas vczcs com ac resc1mos. Cf., ca. /\o poeta não escapou, porém, il ocasião para o chiste, grafou cnra e111 lugar
_
por exemplo, a edição de Jean-Jacques Pauvert, P,ms, 1%6. de cnro, destacando carinhosa e ironicamente a perna destinada aos vermes.
48
49
sobre ochão contingente de nosso tempo o alt o e vast o
Na pior d h
as se s
ipót e
tema da elernidadc, ligado ao motivo central do d a se chegare
i s
do Juízo, tomado cada vez ma s próxim o: «nte s de nós
i
diante d
o Juiz
coragem:
6. não tens c
esquerd;i dirc1 , 1 u lp«
t e mbr -
(l «t e
esquerda dirci )
t ;i .
direi da
de n a
ta
direi Os maus passos
ta
qu em osdeu n
a a
vi d
Nenhuma pern foi a arro
a nci;i
g â
é ctcrn;i. da cabl'Çil
a afoi LC/ él
das glândulas
O último pocmeto, com prid o, masde versos cur
a incur,1v l ce u e
c g ir a
tos, chega por fim ao motivo bíblico, dantesco e meta do coração.
físico do Juízo Fina E o faz ainda na forma epig ra O:. tropt•ços
l.
deu-os a alma
mática do chiste, com inflexão paródica, em rela çã o a
ignorante d o ra s
s u co
esse terna quase ::;empre tratado em termos relig iosos b
da estrad,1
e orn retomado pelo diálogo fantasioso, com for ça d as annad
la s
ih
satírica,entr e o poeta esua perna d o m undo.
:
pressa ou a
in conceb v
pa z í el
nem o que temer :
haveremos do Nada.
de opor
O fund o m o ra lis ta da sá ti ra, dimensão
tunamente
i J sempre
t n apo es a de osé P aulo, e c
te alcançar nontr a um c a p
. atuan e m o
50
51
perfeito na situação fantasiosa aí desenvolvida, osci o que se organiza é urna vida em resumo no poema.
lante entre o grave e o jocoso. É esse fundo que aflo A poesia é uma ordem no caos de nossos dias, uma
ra no irônico aconselhamento dado pelo poeta, ao tentativa de organizar na forma breve da arte a expe
tirar da perna o peso de qualquer possível erro ao riência sem rumo certo. E dá a medida do humano
longo da vida - outras partes é que levam a culpa -, frente ao limite.
e só é posto de lado, quando se chega à consideração O poema sobre a amputação constitui, na ver
final, à dúvida metafísica quanto ao além, suspensa dade, um testemunho da integridade do poeta en
frente ao fiel da balança, entre a imanência e a trans quanto ser no mundo. Nisso reside a sua maior iro
cendência de nosso destino. nia, que é um modo de exprimir a pequenez, a fra
Bem pensadas as coisas, do lado grave, é esse o gilidade, mas também a dignidade de sua condição.
momento da síntese do vivido, do resumo de um Dessa integridade faz parte ainda o desejo de saber o
destino, pela reunião paradoxal de todos os passos, que nos espera, para o qual falta resposta.
quando precisamente o próprio movimento padece o Desse modo, aí se dá a ver em sua máxima ampli
risco de parar, não só pela perna que falta, mas por tude a busca da poesia toda de José Paulo Paes pelo
defrontar-se com o limite extremo, que é a morte. sentido. A busca a que responde seu cancioneiro co
Chegando ao Julgamento, o poeta, ao reunir-se com mo a história de um homem que luta por se exprimir
a perna, está irremediavelmente exposto em todas as na brevidade do instante, deixando seu testemunho
suas fraquezas, nomeadas no relatório das faltas que da História. É isso justamente o' que imprime sentido
não cabem à perna. a seu destino enquanto homem e poeta. Por fim, de
Com efeito, ao chegarmos, nós leitores, a esse novo e para sempre, o todo no rn ínirno.
sétimo patamar do Juízo Final, nos damos conta de
que a ode 111í11i111a representa em seu conjunto, pela Davi Arrigucci Jr.
integração das partes no todo, justo no momento da
maior ameaça, que é o momento da mutilação, equi
valente à retaliação da carne e do espírito, um resu
mo verdadeiramente completo e notável do destino
do poeta em sua integridade. Ele agora surge por
inteiro e inteiramente exposto, com todas as suas
fraquezas, dúvidas e temores, diante do fim. Ante a
ameaça iminente de destruição, ao prestar contas do
passado, o que se organiza é a vida de um homem,
dispersa e erradia em seu movimento, mas nesse
instante confrontada com a paralisia do fim imposto:
52 53
POEMAS
DE O ALUNO (1 94 7
)
CA NÇ Ã
O D O í- OG O
AD
A
Es ta cord a de forro
me apert a a cabeça,
não deixa meus braços
s e er guerem n o ar.
Ef o mar me ro de ai ,
a oga meus lho .s
o
Ma me sa l ve
ninha
o
n ã posso chora r!
Minha mão e stá presa
na cord a de ferro
e os dedos não tocam
a rosa que desce,
q u e afunda sorrindo
nas águas do mar.
Ma ni nha me sal ve
n ão pos so nada !r
Alg as flutuam
por entre os c abelos ,
me u s lábios de sa ng ue
pa lp ita n
m a sombr a
59
e a voz esma gad
a
não pode f ug r
i.
Maninha me salv
e
não posso falar DRUM M A A
ON D I N
!
E a rosa libert ,
a
a inefável ros ,
a
vai long , vai long
e . Quando as amantes e o ami o
Um gesto é inúti , e g
l te ransformare mn u ,
meu grito e meu prant
t m trap o
o faça um poem ,a
in(1te s também.. .
i a
f um o e ma , J o a
q ui m!
ça p
Maninha me sal v
e
que eu vou naufra gar
!
60
61
Mas a dama morreu,
os castelos se foram
na lnrde cinzenta!
BALADA
O caminho se alonga
por entre montanhas,
or campos e vales.
p
Talvez me conduza
F lh ao roteiro erdido
n
d a
p
o a ga ,
ru
e l no fundo do mar .
.
i
poe ra nos v s
i ro Mas estou tão cansado
A pena se ari raútil sta
na tarde cinzenta
!
no e s
fo
rç o n
ã .
de li r ç o
b t
a se v a
esp er n o
d
d Só me restam os livros.
Ne m so
bra á sis
m e o .
P b ár v Vou ficarcom ele
o re s
o re s e ca
es erando que chegue
a a e t p
n t r e c nz n a !
d i
do íundo da noite ,
da tarde cin1cnta
t a ve z eu fizes s e !
l
alg m ma
d
a l.
rig
u
63
62
O POETA E SEU MESTRE MURILIANA
Carlitos!
64 65
O ALUNO
d d
São meus to os o s v res os já canta os:
l i
A for,i a rua, as mús cas da infân c a,
i
O lí do mo me nto e o s azulado s
l l qu p did s na di tân cia.
or zontcs er
i
o s
In tacto me ó
re v
e j nos mi l ad
o l i o s
Dei um s poe . N lâ as da es tância,
ma ó a s m ub n
DE CÚMPLICES (1951)
lam as mem rias e a s s nc a
tâ i
C rc
De al v u de ges t s iso la d .
p a ras, o os
Sao me s t am
bé
mo
s lír i c o s s a pato s
i u
D R d fu n d o dos me u s atos
Centambdoç au u , e no t
ra r s te de Ban de ira.
i
a a
6 6
MADRIGAL
69
De m ai or beleza
É, pois, nada p
re v e
r
CANÇÃO SENSAT E à fina incerteza
A De amor ou viag
e m
Ab ir nossa port .
r a
a , is s oimpor ta.
Do r
Dora, qu e import
a
O ju z que escrev
i
e
Exem plos na arei
a,
Se livres se uimo
g s
O rastro dos faunos
A voz das sereias ,
?
Dora ue im porta
, q
Esse frág il muro
Que defende os cautos
Se além do pe ueno ,
q
Há horizontes loucos
,
De que somos arautos
?
70
71
PEQUENO RETRATO POEMA CIRCENSE
Vou despreocupado,
Dora, tão despreocupado,
Que nem sei morrer.
72 73
Agora , Dora, a teu lado,
Estou sempre a recompor
ODE PACCFICA Essa verdade tão simples,
De q ue me torno senhor.
en e n e
i o,
A ss m barmad
fr t i
d
As em os ca a s e o s cr imes.
Tos co rr e dor se do ód io ,
C b li, gr ite i e rdi-m e .
om a , p
h
inava
O pu n a l me dom olta ,
F asi nava-me a er v .
ci
(V ve os presos ch ev
a
Que cm i gil
à
m s o no ss o a.)
lt
Mas um d a duma e
i
v rd ade ,
Qu e nega to o punh al,
Pôs br si a s na min ha fac e ,
F tou- à
u r me s vozes do ma l.
74
75
EPIGRAMA
i d z, i c t z s.
En re so nlího i e l u c e e as n er et a
t
En tre de r o e dev r, as t e mpes ades.
seíb mpl re sere o t deu ps r do dne iros
i i isi
ANes, p ara
p
te a t u o am arg e a u a e . ..
76
ÉV IA
ODEP R
IIistória, pa sto r a
Do s alfar rábi os.
Mcretri7 do rei,
Ma rt o an do s ábi .o
Ba n co de escola,
Enfado, surpr e sa,
Álco o l juvenil,
P ão de m adurez a .
Mármore ab st rato
Que o vent o, lento, rói.
C a lafrio de covard e,
Façanha de he rói.
79
Musa, confusa
Bola de cristal.
Arenade luta
Entreobem e o ma OS NAVEGANTES
l.
Cálcio de esqueleto,
Pó de livraria,
Bronze mentiroso,
Rima de poesia. Tenham scm ha s
, q uere la s , te m pes a
t d s
e ,
Os mare s nun
c a dan es nav eg a os .
t d
Histriã do rico, No rude mai s eali m
Madrasta do pobre, s p a e mais se apu ra
A es ti r e do sb a rõ s a
e s s n a a os .
i l d
Copo de vinag re, p
Moeda de cobre. Ca nte o ve nto na re de das en xá r ci s .
a
Afane-se a a tid .
o
o maruj n p r a
Estrela da manhã,
Impc o vcla m e inqu ie t o , corte a roa
Mapa ainda obscuro. p
O infinito das ág uas tid .
r e e a s
História, mãe e esposa p
De todo o futruro. Ande a e t l ábi .
sre a c ativa d oa ro l
Mostre a bú st o
ss o la válido ac m i nh .
o
Nas ca t s s e se r itu e t d
r a c r o o ach ad
E foma no vir á cm et mp o a i h .o
s s n o
Pene o mo u ro na gle b a,
que bu scam so
Não colheit s de
va s .
i
t err , mas n a
a
a
No com érc i o a íti o f d
m r m u n a m os
Op ulência de stin o a p it i .
, , c a s
80 81
Almejamo s Cipan os m isteriosa
9 s,
Fabulosas Catais Indias lendária .
s
,
As latitudes são-nos desafi
o,
Sendo as ondas do mar nossa alimá i .
r a
A A TA
C R
Diga o zarolho, poi s da grã porfi
, a o oceano a
Da Jusitann grei cont r ,
Recorde embora o velhodo Restel
o
Da fama e da amb ição o ledo engano
.
As galas da te ra
r
Um dia, nos bras s de boa a guad Vo-las contarei,
i a,
Ilavemos nosso ocaso de encontra Se a tanto engenho
r
E, algemado à Con quis ta há de morr e Ou arte me ajudare m ,
r
,
Aquele Im pério que nasceu do ma . o - .
Senh r m e
u EI R ei
r
Po r este mar d
e lo n
go
Navegamos : lei
Éa nossa de servi-lo,
Sem pouso nem re so,
po u
Sen o u El-R c
hr m e i.
De pois da G ã-Can a
r ári
E Cabo Verde, olhei
As águas, demandan
d o
Algum sinal de ter ,
ra
h r meu
Sen o EI-R e
i.
u El-Rci.
no r m e
Se h
82
8 3
Na quarta-feira, alfim, Chantada a cruz de Cristo
Vista de terras hei: No chão, logo atentei
Arvoredos, montanha, praia chã. À gente destas partes
As âncoras surgimos, Saudar-vos a divisa,
Senhor meu El-Rei. Senhor meu El-Rei.
Roubando-me a folguedos,
Na missa me ajoelhei,
Que altar bem corregido
Sob esperável armou-se,
Senhor meu El-Rei.
84 85
A M ÃO DE OBRA L 'AFFAIRE SARDINHA
- -
87
86
A CRISTANDAD
E
PALMA R
E S
Padre açúcar,
Que estais no céu I
Da monocultura
, o a t o da serra,
Santificado l
Seja o nosso lucro
A
pal me irn ao ven o t.
, P a meira, mastro
Venha a nós o vosso reino l
D e band ei ra, cr u
De lúbricas mulatas z
De mad eira, páli
E lídimaspatacas o
, D e fúnebre lite ira ,
Seja feita
Q u e n egr o u ao,
A voss vontade s d
a , Cu
r ci ficado,
Assim na casa-g rande
Traído, mor o,
Como na senzala. t
Vela s a nda
i ?
Não sei , nã o sabes ,
O ouro nosso
Não sabem. Os rn to s
De cada dia
Roem seu livro,
Nos da hoje
i Comem seu quei o
E perdoai nossas dívidas j
E calam- se, que o te m o
Assim como perdoamos p
Apaga a manc ha
O escravo faltoso
D sangu no ta e te
p
e
Depois de puni -lo.
e
E perd oa o gato
Não nos deixeis cair cm tentação
Pu n it i vo. Os ratos
De liberalismo,
Nã o clamam, os ra tos
Mas l ivrai-nos de todo
N ão ac usa m , o s t o
s
Remorso, amém. rn
Es c o nde m
O c r me e es.
i d Palm ar
88
8 9
Neg ra cida de
II
Dos negros casti ada
, g
Sobre a pedra rude
R ezad a n a ma c
u mba .
N gra cid ade Domingos Jorge velho
e ,
Da felicid a de, Chacal a barba
,
Onde a chaga se c u , Sinistramente g ra ve
ra
O gri hão se par t ,e E o sangue
l
O pão se r e pa r te Curtindo-lhe o couro
E o re de O u nino
, Da alma mercenária.
g
Sangô , Oloru , Dom ngo s Jorge velho
,
n
i
I stala - na er ra Verdugo ua
t q
n s e
, l
E o negro sem dono, A tua pa ga ?
Em
su pa z ov e l a.
91
9 0
Pal ma s,
Umdia, cm rei
o do c r m
hã e
No mesm o c ,
Terás teu mau s oléu :
AFUGA
Lápide en te rra da
l a
ob
Na areia e, s re e ,
s
,
A urina d s o
cã e
O v ômito do s cor v o s
E d sp
e z
re o ete o.
rn
o Tendo a espada renegada
De Napoleão sem medir
,
O desmedido da afronta
,
Picado nossos fundilhos
,
!louvemos por bem partir.
As damasda comitiva
Sofreram muitos piolhos.
Arribamos finalment
e
A porto certo e destino
,
As gentes se jubiland
o
DestaColônia cm que temo
, s
Pirmc assento e inteiro mando.
93
92
I louve folgan a nas rua ,
ç s
Minue o no aláci , Ga nhais bancos, on e
t p o d a rend a,
Salva s , missa s bandeirola .
, s Bíblicament e avisada,
Com nua munificênc Se cre sce e se mult
i ip lica .
a
Distribuíram-se esmola . E l iceus de sapiência
s
O nde a .
te fruti fic a
me n
Sendo nossa vol a ao Rein
t
Coisa do mbítr o divino o E ma is: doutores, legistas
i ,
J íouvcmos então o r bem E mestres de muito ofício.
p
Fundar aqui pa ç o di gn E o áureoclarim da impr n s a
o e ,
De tão subido in quilino Cu o s om, de forte e grave,
. j
N ã
o há rda a
m o ç guc e.
tra v
Abrimos os ortos
p à
Mercancia universa , estrela da liberdade
l A
94
9 5
CEM ANOS DEPOIS PORQUE ME UFANO
96 97
enfar elados Mas, sal da terra, reverso da medalha,
O
gera s,
ido es i
uv r p
O ut ro a a s marlo ta s doutora i s, Balaiadas, Praiei ras, Sabinadas,
r n
O a r bit ndo rui d osos lu d op édios . Palmares, Itambés, Jnconfidências.
r a ra
L e
it ra t
o s de t ru z , j á vacinados
ntra a do vil enga jamento
Co febre ,
À fe e str das torres-de-marfim .
n a
sele i t os no timão
Os c ama re iro ,
úblic a c u idosos
Da bar ca da Rep , cntários
Àbús s la de vári o s arg .
o
99
98
DE (1
9 5 8)
EPIGRAMA
S
É
P O TI C
A
a ro
h p m et di p
A posse
Só é- me a,·entura sem sentid .
m reendo o ã o e d v i do.o
co p s i di
p
103
A EDGAR ALLAN POE BUCÓLICA
Desconcertado, invecliva-o
De anjo, demônio, adivinho.
Pede-lhe mágirns, mapas,
Soluções, chaves, caminhos.
10-l
10 5
BALADILHA
IL P OVERELLO
Morre o boi
De sg e h d o m
r n a e ava n a flo r a.
ig o , an d es t
Quando chega ao fim
e
0> ás s ro
a s d am em s e us ca e o s.
or m
i
p
b l
A paciência bovina
As feras ose gu a m . ma nsa m en e.
i t
e
r , do m e i a força, cu r i o mal. a m r
M o str e o e ro Morre o cão
A di cr i m . De i d mim o o ."
e o e ,
nt se e m , o p s
i m
No meio da rua
d ia Sob él luz da lua
s e squece
u
,no outro ,
a s a
M bíbli flo re ta ã A que tanto uivou.
O co serm o e, nov a m e nte,
Guardou fielmente
O lobo com ue a ov e
lha , a ág c
u a om u e a p
omba
,
i
C hu O celeiro do homem,
m ca ve ra s n os n em s e
r .
mõe s
e n
o o s nu
t
o a Mas morreu de fome.
Morr e o pássaro
Dentro da gaiola
Quando é noite eo canto
Já não o consola.
Pela últim a vez
Canta para o homem
Que, embora livre, dorm e.
10 7
1 06
E11v o :
y
eus
A d e s.
, ad u
eus, ade u .s
A d
108
1 09
La r, espos a,
Filhos, pija ma,
Jant a, livin ,
g
Jorna l, cismares,
Tric ô, vagare ,
W Z
A CL AU SE IT
s
1 liato, ausências,
Boc e j o, escad ,
a
Adeu ,s adeu .
s
Om rechal de cam
po
a
Quarto, cama ,
Sonha um un iverso
Glândulas, êxtase
,
m
rró idas.
m o
Dois em um, Se pa z n e
m h e
Do s em nada
i ,
Dever cum prido ,
Luz a p a ada
g ,
Adeus, adeus.
I Toras, dias
,
Meses, anos
,
Cãs, eng anos,
Deseng anos
,
Vácuo, náusea
,
lnd i feren ç a,
Cipreste, olvido,
1 Tá Deus? adeus.
110
111
DE (1
9 6 7)
ANATOMIA
S
Á
E P TI FIO PAR A UM B N
A QUE
IR O
neg
óc o
go i
e óci
ioo
c
o
11 5
DESENECTUT
E TROVA D OP O ETA D E
VAN G U A R D A
ou
E
T H MEDI U MIS T EH M A
S SA G E
já anteci pa a lín gu
a
afeita à alegor a
i
na carne da vid se me
a dec ifrarem
o verme da a goni recifro
a
se me d
esrc c a re
i fr m
já tritura o olh re rr ec i o
o fr
no gral da a pati
a
o carvão da noit se m
e e d esrrerrcc fra re
então i m
a brasa do dia
meu o
s c rrerrerrec frn orcs
i d
já se juntaum p se rão
é
a outro em simetria
de viag em além
da cronologia
já por metafísico
o medo anuncia
sua máquina de espantos
à alma vazia
116
117
EPITALÂMI
O
O C
ID E
NTAL
uv
a
p ensc1 d a miss a
a
concha oclus amiss
a
entre coxas abru
o mís s
il
pta
s
te
u
vinho sab
e
à tinta cspes�
a
de polvos noturno
s
(falo
da noit e
primeva nas ág uas
do amor da m orte
)
118
119
AMAIACÓVSKI
À
M O D AD /\ C/\ S
A
120
121
EU?
U E
?
a m á sc a
ra
re feit a
mais um
o ri t d ia
o
do di ita
ace
a
o rictu
s EU
do di
a
o risc E U
o
do di
a
EU
?
UE
?
o lho
por o ho
l
dente
po
r dente
ru ga
por ruga
EU
?
UE
?
o fio
da barba
o fio da navalha
a vida
por um fio
122
12 3
ANATOMIA DA MUSA
c,1p1 th d1mmu :
io
t 11
.uc , 1 11011 , wdific
a d1
O SU IC IDA O UD ES A
C RTES ÀS AVE S SAS
ergo
pu !m
mullum in p ,irvo : mut a ndb:
m ut a
t
is
m ho.: signo nnces od
us in re bu s !
m
II
r ig h l"\'L>d
,1 ts n. '!' C
124
125
-
DE MEIA PALAVRA (1 9
7 3)
LIBERDADE
INTERDITADA
PARAISO
V. MARIANA
1
1
l
1
12 9
1
CANÇ ÃO DE EXÍLIO FACILITADA SEU META LÉXICO
ah! dcsenvolvimcntir
ulopiada
s biá
consumidoidos
.
a .. pa triotários
á
.
pap . . suicidadãos
maná . .
.
sofá
.. .
inhá
.
s ..
cá
?
b h
a !
130 131
MINICANTIGA D'AMIGO
ARSAMAN D
I
coyta
amar
amar
a ma r co yto
qu al am a
o nascituro a mama
o incen d iário a cha am
o op ilado a lama
13 3
13 2
VÊ US LIÇÃO DE CASA SOBRE UM
TO-ES C
A U A
O L N
TEMA DE APOLLINAIRE
c o
ntat o
la vu lverrosc
je t'le rappcle
para trás
qu oique royale n'est pas la seulc
(devagar)
fleur possible à ton jardin ma belle
para frente
(devagar
)
pa ra trás
(ACELERE
)
para frente
( ACE LE R )E
e d se gar
li
po d
134 13 5
SALDO
E T
N O
R P IA
a torneira seca
não que a chama não ( ma pior: a falla
s
vagomelancólico
a perturbar agor a
di e t e
a g s ão d ad ã
o?
13 7
136
DECLARAÇÃO DE BENS
ANTITURÍSTICA
meu deus
via
minha pátria
ge s e m olhos
por cimm: a do m br o
minha família o
mirage m e m
minha casa n nhu
ne n hu m e s cmo broa
meu clube
meu carro
n a mala ( v l a
a
inc mu m) s ó
minha mulher o um
minha escova de dentes
be o se m
m
meus calos :
o ne m o na d
a
minha vida
v i o n nca
age m
meu câncer u :
mapa a e m re es t d
meus vermes s p ra a
138
13 9
TERMO DE RESPONSABILIDADE
mais nada
a dizer: só o vício
de roer os ossos
do ofício
já nenhum estandarte
à mão
enfim a tripa feita DE RESÍDUO (1980)
coração
silêncio
por dentro sol de graça
o resto literatura
às traças!
140
EPITÁFIO PARA RUI
143
UM SONHO AMERICAN
O
LE S MAIN S SA L
E S
CIA limitada
m ão s à ob !ra
144
14 5
NEOPAULÍSTl CA
B R E C TH R E
VI S A
IT D O
146
14 7
H1NOAOSONO Í
D O N O V S S IMO T E STAM ENTO
148
149
GRAFIT
O
DE CALENDÁRIO (1 9 8 3
extravasa sem sursi
s
PE RP
como num confessionári
o LE OX )
o mais íntimo de s
i
o aflito vocabulário
de suas própria s entranhas
150
1� ,fr j,mdro
BRINDE
ano no v :o v ida
nov a
dív ida s novas
dú v i ad s nov rts
ab ovo out rn
vez: do revé s
ao talvez (ou
ao t a tno faz como fez)
hora z er o: soma
do velho?
idade do novo?
o nada: um o ov
s alvc(-se) o an o no v !o
153
11
19 de abril
1
31 � de março/ 12 de abril
DIA DO ÍNDIO
DÚVIDA REVOLUCIONÁRIA
154 155
12 , fr maio
12 dt' j1 /111w, dia d,is 1 10 ,111,rn,fos
ETIMOLOGI
A A VE R D A
IJE AIR F E STA
no suor do ros to
mas ra
o gosto p qu e fogue ira
rojão
do nosso pão diário
q ue t
n oã ?
sal: salário
ba sta o fogo n a s v e a
is
e a esc ri ão
u d
c o
raçã o
156
157
15 de novembro
158
AC E QU L
I AM D R SUSP E
A QU E ITA
a i á
o s a est morta
e
p
sj fui
ma uro que n ão c u
é fa -
c uat qu etentei zer o me lh or que podia para sa lvá la
i i i
m te dili gente me nte au gu sto d o sanjospaulo torre s
carlo ils drum mo nd de and r ade m <1n uel bandei ra
mur o meo ndes vladimir maia kóv s k i jo ã o cab ral d
e
elo n
m li i a í le t p u! é uar d osw ald de a n
d ra de guillaum e
a po na rc sos enes c o� ta b ertolt brech t au u sto
de c a m s g g
p o
ã di d
n o a a nt uo na a
n e meu
16 1
POÉTICA FÊTES GALANTES
. '.
162 163
TAQUARITINGA CURITIBA
cidade:
agora nem as pedras
me conhecem
164 165
LISBOA: AVENTURAS
PISA: A TORRE
tomei um expresso
em vão te inclinas pedagogicamente
cheguei de foguete
subi num bonde
o mundo jamais compreenderá a obliqüidade dos
desci de um elétrico
bêbados ou o mergulho dos suicidas
pedi cafezinho
serviram-me uma bica
quis comprar meias
só vendiam peúgas
fui dar à descarga
disparei um autoclisma
gritei "ó cara!"
responderam-me "ó pá!"
positivamente
as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá
166
167
FLORENÇA:ANTEDILUVIANJ\
DUAS ELEGIA S BIBLIOGR Á FIC
A S
sem nen um
h
m
e a or
o qu e épior :
sem ne nh m hu mr
u o
168
169
A /. P Sartre Á
E PIT FIO PAR A U M S C
O IÓLOG O
mort
o
sem filho nem deus t e m agora
árvor sé ri o co n c r
orente
um
e
livros s
ó
enfim
a existênci
a
feita essência
:
pó
170
17 1
DEPROSAS SEGUIDAS E
ODES MÍNIMA S (1 9 9 2 D
)
ES C
O LHA MULO
D ET Ú
ª"
Mais /11t•11 jc t•c11x q11'1111 mine
Ro n �ard
Onde os cavalos do so on
ba te m cas c o smati anis .
Onde o mw1do se entre abr e
e m c asa, pomar e galo.
Ondeao espelho duplicam -s e
to.
as anêm o n as do pra n
Onde um lúcido menino
prop õe uma nov ainfân cia.
A li repous ao po eta.
Al i um vôo termina,
outro vô os ein icia.
17 5
CANÇÃO DE EXÍLIO
NOTURNO
Um d ia segu viagem
i
O apito do trem perfura a noite. sem olhar sobre o meu ombro.
As paredes do quarto se n o m.
e c lh e
i vi terras de passagem
. N
O mundo fica m as vasto
ão
. . u
um raminho de alecrim.
t as mulheres a
t a n s iur .
po s
177
17 6
Falava pouco comigo.
Estava sempre
noutra parte: ou trabalhando
UM RETRATO ou lendo ou conversando
com alguém ou então saindo
(tantas vezes!) de viagem.
178 179
A CASA INICIAÇÃO
Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas. Com os olhos tapados pelas minhas mãos, os dois
seios de A. tremiam no antegozo e no horror da
Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas morte consentida.
com corações de purpurina.
Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e De ventosas aferradas à popa transatlântica de B., eu
programas de circo. conheci a fúria das borrascas e a combustão dos
Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais sóis.
até o fim dos tempos.
No quarto, uma mãe que está sempre parindo a Pelas coxas de C. tive ingresso à imêmore caverna
última filha. onde o tneu desejo ficou preso para sempre nas
Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente sombras da parede e no latejar do sangue, reali
o seu próprio caixão. dade última que cega e que ensurdece.
Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mor
talhas da família.
Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias
do outro mundo.
No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do
Paraguai rachando lenha.
E no telhado um menino medroso que espia todos
eles; só que está vivo: trouxe-o até ali o pássaro dos
sonhos.
Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, ven
dam-na depressa.
182 183
NANA PARA GLAUR
A B L
A AC
NETE
A mo rte: esquina
ainda por virar
quando já estava q s
u ae esqu e o
ci d
o o so e v r - a s
.
g t d i á l
184
185
j
BALJ\DA DO BELJ\S-ARTES
RE NCONTRO
E
o tro fo i no po rão de um
O en c n
i i eça do se u
a r a
cujo t eto ba ixo eleen c a a p me r p
en v Não que as leis do rea
J fin i o. l
Tea lro do n t se abolissem de todo
mas ali dentro Curitiba
, Vitórin dn dig11i n
d d
e s obre n vioh 111 cin, não tinha
era quase Paris :
A peça d l
l
pa avr as: e l já n ã
e o pr
i
ec sava e as.
187
186
Não se desfazia nunc
a
a roda de amigo
;
o tempo congelasr a -se
no seu melhor minuto.
À IN H A E
M P RNA E Q
SUERDA
Um d a foi fechad
i o
o Ca é Belas- Artes
f
e os amigos não acharam 1
outro luga r de encontro.
Pernas
Talvez porqu ejá não tivessem
ra
a
p qu e v os quero?
(adeus Paris adeus
) Se já não tenho
mais razões de encontrar- se
.
mais nada ase dizer. p o nar
r que da ç
Se já não preten
a ar d o
ir
p te a guma.
l
Pernas?
Ba s at um a
.
2
D s ço
e
e subo
qu
e sço q u e
d
subo
camas
n s a s.
im e
Aonde me levas
as noites
da s
t o
pé morto
m
p é o r to?
188
189
Foste sem minha mãe
p
re
Corro, entre fezes
minha filha
de infância, ençóis e
l
hospitalar es, a s ruas depois de teres sido
desde o princíp io
de uma cidade que nã o m
re (
o d
e onde vozes de tudo) a mulher.
bar
c
roa s
ench e m
o a r
e p 4
d
a
i Di ontem à noite um inex licáve morcego
z m qu e p l
e
as s s t u os pacientes da enfermaria geral.
n
u o
a sufocante
e o amigo sem corp D ho de manhã todos os vidros do ambu
o iz m que j
e e
zomba os am a l tó i a a eceram inex lic avelmente sem tampa
ntes ro p ,
d
a pr
rol de g todos su jo s d vermelho .
a ro lar n a r l
eva . s e
az
o os e
o u m deixaste
P r q e
e
5
pé morto
pé morto
Che go u a hora
a sangrar no meio
de de pedirmo
s n s
o s
e
3 v
ã o -nos se para
r
ad cternitatcm.
Aqui estou,
P dicamen e envolt
D ra, no eu u a
o t co lo I t
nu m trapo de pan
nu o
cí
vão e leva r
como n o r i
p n pi o t a de c
da sa iru r g
e u . l
d t do ia
ara a lgum outr o (cemitér
p io
Me pega ou la ta de 1ixo
me embala que import a ?)
lug r
a
.
me pro tege
191
190
cora gem :
onde ficarás à espe
ra
não tens culpa
a seu tempo e hora
(l embra - te)
do rest a
nte d e nós .
de nada
.
6 Os maus
passos
direita q uem os deu na vida
esquerda
f o a arrog ância
es ue rda direita
q i
da cabeç a
direita
a afoiteza
d ireita das glândulas
incurável cegueira
Nenhum a e rna
a
p
do c ora ção .
é et rna
e .
O tro p eço
s s
deu- o s a alm
7 ignora nte doas buraco
s
da estrad
Longe a
das armadilha
d o co r o s
p do mundo
terás .
doravante
Mas não te re ocu e
de caminhar soz n a p p s
i h
até o dia o u z o q u e no instante fina
í . l
d J estaremosjunto
Não s
h á
pressa pronto s par a a sentenç
a
se a ela qual fo
nem o qu t e e r r
e m : con j tra nó
haveremos s
lavrad
de oportun m a ente a:
as pe rplexida de
a a . s
te lca n
ç r de ainda outro
L uga r
ou a inconcebív
Na pior das h e e
t s el
ip ó
se chegares pa
z
do Nad
an tes de nós a.
ne do u iz
d ia t J
192 19 3
À BENGALA
A O S ÓCU LO S
N a verdade me exila m
dele com filtrar-l eh
o
a m n r imag em .
e
194 195
À TINTA DE ESCREVER AO SHOPPING CENTER
196 197
AO ESPELIIO
A O A L F IN ET E
O que ma is me aprovei
la
cm nosso tão fre qüent A tua cabeça
e
comércio é a tu é um in finito às avessa .
s
a
peda g o gia de avesso Com tua ponta apren
s de
.
Fazem-se cm nós defeito lín u am a r
s a g is pe v e
rsa.
as virtudes que ensinas
:
o brilho de su perfíci Pied osa mente. ' es c o n
e d e
s
a profundidade mentiros obs ce nos rasgões.
a
o exist r apena Com prender o molde a o a on
i
s p
no reflexo alheio. a i
um a roup lhe mpões .
No entanlo, sem L
i
sequer nos saberíamos No idioma da ambição
o outro de um outro só ao módico dás nome:
"
outro por sua vez Algum para os alfinetes "
de algum outro,cm infinito e
l e .m
pede a m uh r a o ho m
corredor de espelhos .
Isso até o último Mas se cais ao chão ni
n guém
vazio de toda imagem s e rebaixa em colher-te.
espelho de um s mesmo Com "um mu xoxo de desdé
m
i d : u s im l a lf
iz "
É
anterior , posterio p inete .
r m e s
a tudo, isto é, a nada .
198
19 9
Que bichinho é este
que por milagre cessa
o choro assim que pode
mamar numa teta
A UM RECÉM-NASCIDO túrgida, madura?
- É o filho da fome.
201
200
DE A MEU ESMO (1995)
REVISITAÇÃ
O
Cida de q
, por ue m e
pers egu e ?s
os s et e pa lmos r egulamen t s
a
para en ter rar meus mo r tos? re
Não fic m a os qu ites de sde então?
Por q in i
u e s st eds
cm lacender to a noii t e
as uzes de tu a s vilr n as
co m as me r c ador ias do son ho
a tão bo
m pr eço?
Não é
mai ste mpo deco mp rar.
Log ser tempo d e viajar
o á
pabr ã se be o de.
a n o sa n
Sda e-sã e apenai s que é prec so ir
i
e m o s vaz as.
E mv o a ongas tuas ru sa
ã l
205
Em vão os conhecidos me saúdam
do outro lado do vidro,
desse umbral onde a vo
z
se detém interdil
a FOLHA CORRIDA
intemporais, absolutos.
206
207
CENTAURA PÓS-EPITALÂMIO
de impossível viagem,
vão todos os olhos
das ruas por que passa.
208 209
Re etiu- o o dia inteiro diante d vidro im í
p o a ss e l.
p
Porém ela continuou para tod o s e m p e p isi v i
do espelho
o r r one ra
.
ORFEU
210 21 1
MEIO SONETO EPITÁFIO PROVISÓRIO
212 213
ÉCLOGA METAMORFOSES
214 215
DE DE ONTEM PARA HOJE (1996)
GONZAGUIANA
219
ÍTACA
Na gaiola do amor
não cabem asas de condor.
Penélopes? Cefaléias!
Quanta saudade, odisséias...
DE SOCRÁTICAS (INÉDITO)
220
MOMENTO
223
PREPARATI VOS DE VIAGEM
U -E P
A TO JÁT F IO N!:! 2
224
225
BIOGRAFIA
227
A fase curitibana, pelo convívio com a roda de nos anos seguintes, enriquecido pela expenencia
escritores e artistas do Café Belas-Artes, que freqüen vivida intensamente sob uma perspectiva histórica
tou com assiduidade, pelas primeiras colaborações nova, alargada pela visão mundial do pós-guerra.
em jornais e revistas, pelas muitas e variadas leituras Pouco antes da viagem a Minas, em 1947, josé
que fez, pela descoberta do vasto mundo que ali se Paulo publica O aluno. Era o seu primeiro livro e foi
deu, foi de fato decisiva para a sua formação e para a bem acolhido pela crítica de Sérgio Milliet, mas visto
carreira literária posterior. Conviveu então com um com rigor por Carlos Drummond de Andrade, que
crescente círculo de amigos, de que fizeram parte o observa, com agudeza, o jovem poeta ainda se procu
poeta Glauco Flores de Sá Brito, o contista e crítico de rando através dos outros, sem se encontrar dentro de
cinema Armando Ribeiro Pinto, o jornalista e ensaís si mesmo. A procura de si mesmo se estendia tam
ta Samuel Guimarães da Costa, o crítico de arte bém ao campo social. O poeta se entusiasmara com
Eduardo Rocha Virmond, o pintor Carlos Scliar. os ventos renovadores que se seguiram à derrota do
Aproximou-se também do grupo da Livraria Ghig nazi-fascismo, e internamente, à queda do Estado
none, freqüentada pelos críticos Wilson Martins e Novo, com o movimento de redemocratização do
Temístocles Linhares e por Dalton Trevisan, o grande País, a libertação de Luís Carlos Prestes e a reorgani
contista e fundador da revista Jonquim, em que José zação do partido comunista. Empenhara-se na luta
Paulo pouco depois colaboraria. Era o mundo cultu pelas questões sociais em prol de "um mundo só",
ral da província, mas siderado pelos grandes centros, como então se dizia. A arte de propaganda e a pre
bem-informado sobre as correntes principais do pen gação stalinista do realismo socialista, no entanto,
samento e da literatura da época. logo o desencantaram, deixando-o com as perplexi
Junto com Dalton e outros jovens intelectuais dades dos conflitos irresolvidos entre arte e ideologia
paranaenses comporia uma frente comum por que partiram ao meio o século. As simpatias de
ocasião do II Congresso Brasileiro de Escritores, de esquerda, porém, não desfalecerão, retornando no
importante atuação política no combate final, em miolo de uma poesia empenhada na defesa da
1947, ao que restava da ditadura do Estado Novo. O cidadania, dos valores da civilidade, dos direitos
encontro com os grandes nomes da literntura plenos do homem na cidade.
brasileira então retmidos em Belo Horizonte e os Em 1949, após tentar um estágio numa usina de
novos contactos que fez com James e Jorge Amado, álcool em Taquaritinga, o poeta se muda para São
com Graciliano e Ricardo Ramos, na breve estada no Paulo, a fim de trabalhar numa indústria farmacêuti
Rio de Janeiro, após a reunião do Congresso em ca, onde aos poucos consegue exercer seu ofício de
Minas, toda essa emocionante aventura para o químico, no cargo de analista. Começa uma vida
mocinho provinciano se tornaria inesquecível. Foi, cheia de novidades e descobertas: amigos como
além disso, muito fecunda para o trabalho do escritor Edgar Cavalheiro ou o ferino e fulgurante Oswald de
228 229
Andrade; e, de repent e, Dom, que se converterá na
t poc me t s
o o mo tra m a for ça que tê m no co n
do
musa de toda c1 sua poesia. Dora em Dorinha Costn, o s, s
s
junto, c m diag
bailarina clássica de 18 anos , aluna de balé de Maria mos a i o deo u ra m a de uma vida e i n ac a�a_do
c o ma mito lo gia pes al. Segue -s e van o
Olencwn, com quem José Paulo se casaria em 1952. so m s
outros li ros,
Fo sua companheira inseparáve de todos o v com oA po e s,n está 111 or tn 111ns juro que 1u 1
i l s f u i c11 em 1988, i da o
momentos. , mas o pri nc pal produção mai s
r ec nt e d
Em fevereiro de 1952, publica Cií111plices, poema e e o m e lh or J o s é P aulo surge cm Prosas
s segu i da s de o des
í i 2
inspirados nesse amor qu e vei o para fica . A nov de 199 d, e A 111 e11 esm o , de
n
111 111 s ,
11
r a 1995. E p et t
plaquete representa um salto qualitativo grande com o o a me promet i a no v a col et ânea,
S oc át icns, d que j d ,
á eu a con ecer vár o poe m
h
relação à anterior, um a vez que já nno se tratava de r e s
a s
alguns aq ui r un i
dos . i
um aprendiz do ofício, dependente dos grandes e
A r t a alt de sua v ida , Jos é Pa lo se afa
mestresdo Modernismo - d Drummond, Bandeira c e u ra u stou
e s
do mund o d laboratór o, pa
o i
ou Murilo -, mas de um poeta que tem rumo próprio
mais d li\ ra e apro xi mar ainda
e caminha com simplicidade e ironiê1, sem qua lque r o s i·os, trn balha nd nu a m edit ora por mais
o
d vi n te an o s. Grnn de il são .
altissonância, cm busca da poesia condensad n e u Ao sair, sentiu- se con-10
a a i d
forma concisa do epigram a. O modelo d humor que alforr n do ecom vonta e de se ded ca r ape as às
e t r cfa lit á i s q i i n
oswaldiano, muito presente em certo momento, a s er r a , u e eram muit o ma s ex ten sas, em
ra ã
quando o poeta se aproxima tnmbém da vanguarda b o n o menos mc1l pagas qi e u as d o poeta. A esse
tempo, o gos to v
i
concrctista, é logo superado na fórmula pessoa de a ra d odo le tor co tuma/ o lev a ra a
n
l e
apre n er línguas a ded ar- se à traiçoeira la buta �o
d ic
grande contundência com que trabnlha o epig rama tradut r, s i
para nfeiçoá-lo a um orig ina l tratamento minimalistél o c1 s m c o m o à imper ceptív e l arte do en sa1s
ta, te nd qu e c n i de rar de m is
em que a vcrvc satírica, a ironia e o chiste escondem os p rt o q uãa ntocu s
d c iaa á ve r o
o
tav o ofíci e
t i
ro r n , s
uma latente gravidade. a o r a s e r r o e s a s em a
b nção dos bo n z
ê
os.
O caminho poético estava aberto e a viagem
J é Pa l f
ã
começa, delineando uma traJetória cada vez m ais o s u o se z ent o muit o conheci do c m
n s s mei c lt ral,e
voltada para a experiência resguardada ao longo dos o o o u u mos trando- s e sempre avesso, à s
e
v es injustam en te, a os a b re a cc1dêmico e descon fia
anos: os pequenos poemas vão com pondo a fisiono d zdo rit i
s u a s un ve rs t r o i s, masdispostoao d ál o
i i á
o
mia de um homem, cujos passos são resg a tados na i og
cr ítico c m os ov o s e a tra diç l e á ia, c
formc1 precisa de um cancioneiro único, cm que a o id n d ão i t r r u j s valo
o
poesia se torna a imagem do ser e seu destino. Desse re s esq u ec o s uo ignora o s ajudou c1 re v e r pe lo t a
b lho de diç
ã
e
li �
percurso são marcos rclevc1ntcs os livros A11nto111ins a e ru o a ç o
re va a ã crít ci a, c omo foi o
s
(1967), Mein pnlnvrn (1973) e Resíduo (1980). Quando ca o de Sos íg e n cs C osta. Tornou-se, assim,�) trad or
d Ar tin o, de K v á fis, de St ut
se reúnem, cm 1986, sob o título sugestivo de U111 por e e d m it a t e rn , de G 1 bbo n, d e
d
u os o ros, dc1 li rat ra fan á tica, c1
e
Audc n
, e u t e u t s
230
231
poesia erótica edos poetasgregos modernos que deu
a conhecer emnosso idioma, como o notável Ritsos
.
Foi também o ensaísta que estudouAugusto dosAnjos
BIBLIOGRAFIA
Graça Aranha, Jorge Amado e tantos mais de nossa ,
,
literatura e estrangeiros, sempre com a mes ma
dig
nidade eo empenho de um íntegro homem de letras POESIA
.
José Paulo Pc1es faleceu cm 9 de outubro de 1998
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De 011te111 pnra hoje. São Pa ulo Bo i tem Edit i l 1996
r
, po o a , .
POESIA INFANTO-J UVE1'.TIL
PRINCIPAIS TRADUÇÕES
234 235
ÍNDICE
, . , .
A gora tud o eh1stona ............................................. 7
De O a/11110 (1947)
De CIÍ111plíces (1951)
Madrigal ................................................................... 69
Canção sensata........................................................ 70
Pequeno retrato....................................................... 72
Poema circense........................................................ 73
Odepacífica............................................................. 74
Epigrama.................................................................. 76
Odeprévia.......................................... ..................... 79
Os navegantes......................................................... 81
A carta...................................................................... 83
237
A mão-de-obra. ........................................................ 86 De Meia palavra (1973)
L' affaire sardinha..................................................... 87
A cristandade........................................................... 88 Sick tra11sit................................................................ 129
Palmares................................................................... 89 Canção de exílio facilitada..................................... 130
A fuga....................................................................... 93 Seu metaléxico......................................................... 131
Cem anos depois..................................................... 96 Ars amandi............................................................... 132
Porque me ufano..................................................... 97 Minicantiga d' amigo ................ ..... .......................... 133
Auto-escola Vênus .................................................. 134
De Epigramas (1958) Lição de casa sobre um tema deAp9llinaire...... 135
Entropia... ............... .... ................................... ........... 136
Saldo.......................................................................... 137
Poética....................................................................... 103
Declaração de bens................. ............................. ... 138
A EdgarAllan Poe.................................................. 104
Antiturística ............................................................. 139
Bucólica.................................................................... 105
Termo de responsabilidade................................... 140
Il poverello ......... ...................................................... 106
Baladilha................................................................... 107
De Resíduo (1980)
Ivan Ilitch, 1958 ....................................................... 109
AClausewitz ............................................................ 111 Epitáfio para Rui..................................................... 143
Um sonho americano ............................................. 144
De Anatomias (1967) Les mains sales......................... .... ........................... 145
Neopaulística........................................................... 146
Epitáfio para um banqueiro .................................. 115 · Brecht revisitado..................................................... 147
DeSenectute............................................................ 116 Hino ao sono.......... .................................................. 148
Trova do poeta de vanguarda ou Do novíssimo testamento...................................... 149
T11e medium is the massage.................................. 117 Grafito ............................................................... ........ 150
Epitalâmio................................................................ 118 /
Ocidental.................................................................. 119 De Calendário perplexo (1983)
AMaiacóvski..... ...................................................... 120 "
À moda da casa. ...................................................... 121 Brinde........................................................................ 153
O poeta ao espelho, barbeando-se ....................... 122 Dúvida revolucionária........................................... 154
Anatomia da musa................................................. í24 Dia do índio ............................................................. 155
O suicida ou Descartes às avessas....................... 125 Etimologia................................................................ 156
238 239
A verdadeira festa ................................................... 157 Ao shopping center ................................................. 197
A marcha das utopias .................. .................. ......... 158 Ao espelho ................................................................ 198
Ao alfinete ................................................................ 199
De A poesia está morta mas juro q11e não fiâ eu (1988) A um recém-nascido ............................................... 200
240 241