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O narrador-autor dirige-se diretamente ao “leitor” e à “leitora”, que constituem o

narratário da obra, procurando despertar o seu interesse para a história que vai
narrar.
O assentamento transcrito serve, além do já referido, para despertar a
curiosidade e, principalmente, a piedade do leitor e apelar à sua simpatia para
com Simão, acreditando que não ficaria indiferente à tragédia de Simão e de
Teresa: “Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o
degredo de um moço de dezoito anos lhe há de fazer dó”.
Deste modo, entre toda a informação apresentada na Introdução, o narrador-
autor enfatiza os seguintes dados relativos para sensibilizar o leitor perante o
destino de Simão: a sua juventude, a inocência do primeiro amor, a pena a que foi
condenado (o degredo), a separação definitiva da família, a falta de liberdade. E
fá-lo socorrendo-se de um discurso pautado pela subjetividade e pela emoção
(atente-se na pontuação emotiva), o que pode indiciar o seu envolvimento na
história, ao mesmo tempo que procura envolver também o leitor.

Por isso, dirige-se primeiro ao leitor, no sentido geral (“Não seria fiar
demasiadamente na sensibilidade do leitor…”), ao leitor do sexo masculino (“O
leitor decerto se compungia…”) e, por último, à leitora (“e a leitora…”).

Apesar dessa referência ao leitor, o narratário que visa é a leitora. O narrador tem
a noção de que o homem reagiria à história que irá contar de forma diferente da
mulher, por isso prevê reações diferentes: “O leitor decerto se compungia”; “e a
leitora […] choraria!”.

A leitora é caracterizada como uma figura bondosa e piedosa (“a criatura mais
bem formada das branduras da piedade”) e solidária com os desafortunados
(“amiga de todos os infelizes”) e que choraria, se comoveria, pois a história de
amor entre Teresa e Simão contém todos os ingredientes necessários à comoção
de quem a ler. Dado que, na sua ótica, as leitoras eram mais sensíveis, dirige-se
sobretudo a elas, dando a entender que a história as comoverá muito.

Esta estratégia, por um lado, prepara os leitores para a narrativa que irão ler e, por
outro, é uma forma de o narrador procurar captar a sua empatia com o
protagonista. Afinal, trata-se de uma história triste: a história de um jovem – Simão
Botelho – que perdeu tudo por amor: “honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs,
mãe, vida”.

E qual é a causa desta desgraça? O amor: “… tudo, por amor da primeira


mulher…”. É a absolutização do amor: o sentimento amoroso é tudo e está acima
de tudo.
• “Amou, perdeu-se, e morreu amando”
Esta frase resume a estrutura tripartida da história de amor de Simão:

Introdução: Simão “amou, isto é, apaixonou-se por Teresa, e foi correspondido.


Desenvolvimento: Simão cometeu um homicídio e “perdeu-se por amor”.

Conclusão: “e morreu amando” – deixou-se morrer pelo seu amor impossível


por Teresa.

A Introdução antecipa algumas das linhas estruturantes da obra, como, por


exemplo, as seguintes:
• o amor-paixão: este é o tema da novela que vai ser narrada e que está sintetizado
na frase “Amou, perdeu-se, e morreu amando”;

• o herói romântico: Simão é o protagonista que perdeu tudo por amor, um herói
romântico;

• a sugestão biográfica: há semelhanças entre Simão e o narrador, cuja figura, por


sua vez, se confunde com a do próprio autor (preso, tal como Simão, por amor e
na cadeia da Relação do Porto);

•o caráter memorialístico da obra: o narrador assume-se como alguém que relata


as memórias de uma história cujo protagonista é verídico e seu parente;
• a crónica da mudança social: Simão representa a mudança da sociedade, que
assenta na noção de liberdade e no valor do indivíduo e que se opõe a uma
sociedade antiga, assente na falsa virtude, como Camilo assinala no final da
Introdução.

No final da Introdução, o narrador-autor afirma que a leitura do registo de entrada


de Simão na prisão lhe despertou o ódio (“Ódio, sim…”), a indignação (“o doloroso
sobressalto”) e a amargura (“e lidas com amargura”) perante a injustiça de que o
protagonista da obra e Teresa tinham sido vítimas.
Aqueles que se opuseram ao amor (entre ambos) são apelidados de “frios
jugadores do coração”), dado que se mostraram insensíveis perante os projetos
de felicidade de Simão e Teresa.
No entanto, esta crítica não se restringe ao contexto da novela; de facto, estende-
se e dirige-se sobretudo a todos aqueles que, possuidores de uma falsa virtude,
se tornam bárbaros pela defesa da sua honra: “A tempo verão se é perdoável o
ódio, ou se antes me não fora melhor abrir mão desde já de uma história que me
pode acarear enojos dos frios julgadores do coração, e das sentenças que eu aqui
lavrar contra a falsa virtude dos homens, feitos bárbaros, em nome da sua honra.”
Deste modo, o narrador assume-se como um narrador judicativo.
É possível que esta crítica suscitada pelo amor de Simão e Teresa tenha sido
espoletada pelo caso pessoal de Camilo Castelo Branco. Que semelhanças
existem entre as duas situações? Simão foi julgado por causa do amor por Teresa
(em virtude do qual assassinou Baltasar Coutinho) e preso na Cadeia da Relação
do Porto; Camilo foi igualmente levado a julgamento por amor, isto é, por causa
da relação amorosa que mantinha com Ana Plácido, uma mulher casada, e esteve
preso no mesmo local. Por outro lado, o narrador chama a atenção para a injustiça
que constitui a condenação do seu tio Simão, sugerindo, assim, a injustiça da sua
própria condenação e da de Ana Plácido. Por último, apela à comiseração do leitor
para a história que vai narrar e, indiretamente, para a sua própria história (“Escrevi
o romance em quinze dias, os mais atormentados de minha vida.”).

O primeiro capítulo retrata os modos de vida e as relações sociais da época


da ação: a vida na corte vs. a vida na província, as relações familiares e o exercício
do poder social.

De facto, o narrador caracteriza as classes privilegiadas dos locais onde a


família de Domingos Botelho vai vivendo – Lisboa, Cascais, Vila Real e Viseu –,
retratando os seus costumes, os seus valores, os seus comportamentos e as suas
práticas, na segunda metade do século XVIII. Esta época é caracterizada pela
tensão entre os valores retrógrados e autoritários da sociedade portuguesa
marcada pelo Absolutismo e o desejo de mudança.

Neste contexto, a figura de D. Rita Preciosa é fundamental, pois é através


dela que o narrador retrata o contraste entre a vida em Lisboa e na província. Esta
é apresentada como um espaço rural atrasado, destituído de refinamento e
elegância, onde persistem os valores tradicionais, conservadores e retrógrados e
a nobreza é decadente (“A [liteira] dos Correias de Mesquita era a mais antiquada
no feitio, e as librés dos criados as mais surradas e traçadas que figuravam na
comitiva.”). Esta ideia é exemplificada por várias atitudes de D. Rita, como, por
exemplo, quando inferioriza os fidalgos de Vila Real, ao afirmar que “eram menos
limpos que os carvoeiros de Lisboa”, ou quando, ao ver as liteiras, sugere que o
tempo naquela zona do país tinha parado no século XII:

“ – Em que século estamos nós nesta montanha? – tornou a dama do paço.

– Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.


– Ah! Sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze…”.
Deste modo, através desta personagem, é criticada a arrogância da
fidalguia / nobreza de Lisboa e a mesquinhez de alguns fidalgos, nomeadamente
a partir dos episódios dos pastéis e da vitela, mas também o provincianismo e a
decadência da nobreza de Vila Real.
Através de Domingos Botelho e dos seus irmãos, critica-se o facto de a
honra estar associada ao nascimento, ao berço, à linhagem, independentemente
das qualidades do indivíduo, e não ser resultado de uma conduta violenta. Este
“desconcerto”, como diria Camões, mantém-se bem vivo na atualidade. Foi
conhecido há dias a notícia de que um aluno candidato ao mestrado em Medicina
na Universidade Católica ter sido aceite, ultrapassando outros candidatos com
notas superiores, porque os seus familiares teriam feito donativos anteriormente
à instituição.

D. Rita Preciosa e Domingos Botelho representam a nobreza decadente de


província e a ascensão de uma nova classe que vive próxima da corte. Neste
contexto, convém atentar no contraste que existe entre a relação deste casal e o
amor de Teresa e Simão e com as mudanças que provinham da Revolução
Francesa. Este contraste simboliza a substituição da velha geração por uma nova
com novos ideais.

• A ironia traduz o contraste entre Lisboa e a província, denunciando o atraso rural


português e a decadência da nobreza provinciana de forma irónica e trocista:
“excelente flautista”, “ficamos pensando que seria ela a própria rainha”, “Cuidei
que o tempo parara aqui no século doze”; “[…] glória, na verdade, um pouco
ardente” (o modo como morreu o antepassado de D. Rita – “frito” – não era motivo
de orgulho para os seus descendentes).

• Linguagem popular: as alcunhas de Domingos Botelho (“Brocas”, “doutor


Bexiga”); “dizendo que receberia como escárnio um presente de doces, que
valiam dez patacões”.

• Vocabulário depreciativo: “Domingos Botelho era extremamente feio”, “bacharel


provinciano”, “A dos Correias de Mesquita era a mais antiquada no feitio, e as librés
dos criados as mais surradas e traçadas que figuravam na comitiva”, “a neta do
general frigido no caldeirão”, “brutal e estúpido juiz”.
• Escassez de diálogo: o único momento dialogal acontece quando se narra a
chegada de D. Rita e Domingos Botelho a Vila Real.

• Predomínio de frases curtas: “D. Rita quer que seu filho seja cadete de cavalaria”.
• Profusão de verbos associados à ideia de movimento e de dinamismo, como,
por exemplo, “ir”, “quebrar”, “espancar”, “partir”, “fugir”, etc.
• Uso do presente histórico: “Manuel […] tem vinte e dois anos, e frequenta o
segundo ano”.
• Descrições breves: no que se refere à caracterização física de Simão, o narrador
apresenta apenas alguns traços gerais; no episódio dos cântaros, o mesmo
narrador não descreve o local, os objetos ou os intervenientes.
• Predomínio da caracterização indireta das personagens: o retrato psicológico
das personagens é conseguido através, sobretudo, do seu comportamento.

• Uso predominante do discurso indireto: “[…] ele responde que seu irmão o quer
forçar a viver monasticamente…”.
• Uso frequente da coordenativa copulativa: “O pai maravilha-se do talento do
filho, e desculpa-o da extravagância por amor do talento.”

• Uso do eufemismo irónico para caracterizar Domingos Botelho: “[…]


minguavam-lhe dotes físicos…”.

O retrato de Teresa é feito de forma muito elogiosa, configurando o perfil


da heroína romântica.

O narrador inicia o capítulo, aludindo a uma mentira de Teresa (“[…]


coração de Teresa estava mentindo.”), que se refere ao facto de a jovem ter
prometido ao pai que não amaria nenhum outro homem a partir desse momento.
Não se trata, porém, de uma mancha de caráter de Teresa, antes de um recurso
necessário para conseguir prosseguir o seu amor com Simão.

A jovem é apresentada como uma “mulher varonil”, com força de caráter,


orgulhosa (“orgulho fortalecido pelo amor”) e com “despego das vulgares
apreensões”. Além disso, é uma figura distintíssima, excecional, isto é, diferente do
habitual: “[…] a mulher do romance quase nunca é trivial”; “era distintíssima”.

Por outro lado, Teresa demonstra possuir uma grande capacidade de


argumentação, determinação, inteligência, força e até frieza na forma como
assume a sua posição e recusa ceder à vontade do pai.
De estatuto nobre, jovem, pura e frágil, o seu caráter pouco convencional,
pautado pela capacidade de autodomínio, astúcia e perspicácia na defesa do
amor, configuram-na como uma heroína romântica. No entanto, nessa qualidade
de heroína romântica, está condenada e cairá em desgraça: “A mim me basta, para
crer em sua distinção, a celebridade que ela veio a ganhar à conta da desgraça.”
Deste modo, Teresa continua a corresponder-se com Simão, omitindo-lhe
as ameaças de Baltasar para não despertar nele a sua fúria. Apaziguado o pai, a
vida parece tranquila a Teresa, já que Tadeu não voltara a falar no convento nem
no casamento com Baltasar, que regressara a casa: “Parecia bonançoso o céu de
Teresa. Seu pai não falava em claustro nem em casamento. Baltasar Coutinho
voltara ao seu solar de Castro Daire”.

A presença do diálogo transforma a narrativa numa cena dramática, como


se se tratasse de uma representação teatral, em tempo real e não concentrado.
Por outro lado, o diálogo faz com que a tensão do relato aumente. Além disso, o
narrador fornece ao leitor breves indicações, semelhantes às didascálias do texto
dramático, como sejam a entoação de voz das personagens, os gestos, o aspeto
físico, etc. Assim sendo, podemos considerar que o diálogo preenche, no Amor
de Perdição, duas funções: 1.ª) confirmar as características das personagens; 2.ª)
apresentar a transgressão como um dos fios condutores da ação – contra os
costumes da época, Teresa, a filha, recusa a vontade do pai, Tadeu de
Albuquerque.

Este diálogo interrompe o ritmo rápido da narração e evidencia a oposição


entre pai e filha, a partir do que conversam sobre o casamento.

Tadeu inicia o dia relembrando à filha as suas “condescendência e


brandura” e procura convencê-la de forma carinhosa (“cariciosamente”) a casar
com Baltasar (“ – Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha.”).

Esta fala inicial de Tadeu de Albuquerque mostra que a sociedade da época


se regia pela violência e pela submissão total da mulher ao pai e/ou ao marido: “É
preciso que te deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este
passo difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser
impostas pela violência. Mas repara, minha querida filha, que a violência de um
pai é sempre amor.” Tadeu rege-se, de facto, pelas normas da época, mesmo que
isso implique a infelicidade da sua filha. Atente-se na forma como ele procura
justificar a sua intenção de casar a filha com Baltasar sem o consentimento dela:
“[…] conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser impostas pela
violência.”. A antítese “felicidade” / “violência” sugere que Tadeu queria, de forma
prepotente e autoritária, assegurar a felicidade de Teresa, que não seria ainda
lúcida para escolher o caminho certo para a sua vida. Assim sendo, a imposição
do pai constituiria um gesto de amor. Condescendente, afirma que outro, no seu
lugar, teria castigado a desobediência da filha com maus tratos, com a clausura
num convento e até com a retirada do seu património, enquanto ele lhe deu
tempo para que aclarasse o juízo.

Tudo isto significa que o pai da fidalga representa os valores e os princípios


de uma sociedade patriarcal, em que os pais exerciam a sua autoridade sobre as
filhas com frieza e insensibilidade.
Teresa recusa, porém, a intenção do pai, pois considera o que ele lhe pede
um sacrifício e odeia o primo. Perante esta resposta, Tadeu, irado, amaldiçoa a filha
e ameaça-a com o convento: “– Hás de casar! Quero que cases! Quero!... Quando
não, amaldiçoada serás para sempre, Teresa! Morrerás num convento!” Ele
mostra-se, assim, autoritário, intolerante, prepotente, procurando impor a sua
vontade de forma agressiva: “– Hás de casar! Quero que cases! Quero!...”. Por fim,
determinado, afirma que já não a vê como sua filha: “Se és uma alma vil, não me
pertences, não és minha filha…”.
Por outro lado, Tadeu norteia-se na vida pelo orgulho e pelos valores da
honra familiar (“– Nenhum infame há de aqui pôr um pé nas alcatifas de meus
avós.”; “[…] não és minha filha, não podes herdar apelidos honrosos, que foram
pela primeira vez insultados pelo pai desse miserável que tu amas!”). Este passo
da novela tem ainda outra intencionalidade crítica: a denúncia das imposições
sociais que inviabilizam a liberdade de amar e, consequentemente, a realização
da pessoa humana.
Em suma, Tadeu de Albuquerque simboliza a sociedade repressiva e a
tirania.

Este diálogo confirma as características que Teresa já revelara em


momentos e capítulos anteriores.

Teresa é uma figura excecional, que não corresponde ao padrão do seu


tempo enquanto mulher e filha. Pelo contrário, ela transgride os códigos familiares
e sociais da época:

a) é determinada e resoluta, firme e convicta das suas resoluções: pretende traçar


o seu destino e decidir com quem casar (por isso, opõe-se ao pai e recusa
desposar Baltasar; quando o pai lhe ordena friamente que entre no quarto, ela
“ergueu-se sem lágrimas, e entrou serenamente no seu quarto.”) – “É escusada a
violência, porque eu não caso!...”;

b) é astuta e segura de si;


c) tem caráter e não quer ser dominada por uma figura masculina (por isso, opõe-
se ao pai e à sua resolução, mesmo comprometendo o seu futuro);
d) é transgressora dos códigos familiares e sociais da época: recusa um
casamento imposto pela vontade do pai, como era habitual na época, pondo em
causa a autoridade paterna e comprometendo o seu futuro (o seu destino seria a
clausura no convento);

e) é perspicaz (“Teresa adivinha que a lealdade tropeça a cada passo na estrada


real da vida, e que os melhores fins se atingem por atalhos onde não cabem a
franqueza e a sinceridade”; “Teresa maravilhou-se da quietação inesperada de seu
pai e desconfiou da incoerência.”);
f) opõe-se ao pai (“ – Meu pai… – continuou ela, chorando, com as mãos erguidas
– mate-me; mas não me force a casar com meu primo!”);
g) é orgulhosa, sendo o seu orgulho fortalecido pelo amor, o que lhe permite
resistir à violência do pai, desafiando a sua autoridade e não cedendo à imposição
do casamento com Baltasar;
h) luta pelo seu amor e exprime os seus sentimentos com intensidade.

Tadeu de Albuquerque ama Teresa, o que pode ser deduzido a partir do


facto de não a ter castigado de forma mais severa quando ela se recusou a casar
com Baltasar: “Outro teria subjugado a tua desobediência com maus tratos, com
os rigores do convento, e talvez com o desfalque do teu grande património. Eu
não.”

No entanto, o seu autoritarismo é superior ao amor que nutre pela filha, o


que o leva, num primeiro momento, a procurar obriga-la a casar, à força, com
Baltasar. De facto, a sua mentalidade conservadora leva-o a considerar que Teresa
não tem discernimento suficiente para saber o que é melhor para si, pelo que
deve, enquanto pai, conduzi-la à verdadeira felicidade: “ – Vais hoje dar a mão de
esposa a teu primo Baltasar, minha filha. […] Logo que deres este passo difícil,
conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser impostas pela
violência.
Quando Teresa recusa a imposição do pai, Tadeu de Albuquerque reage de
forma tirânica e violenta: “Se és uma alma vil, não me pertences, não és minha
filha, não podes herdar apelidos honrosos, que foram pela primeira vez insultados
pelo pai desse miserável que tu amas! Maldita sejas! Entra nesse quarto, e espera
que dali te arranquem para outro, onde não verás num raio de sol.”

No que diz respeito a Teresa, esta recusa-se definitivamente a obedecer e


a submeter-se à vontade do pai relativamente ao casamento com Baltasar: “Meu
pai […] mate-me; mas não me force a casar com meu primo! É escusada a
violência, porque eu não caso!”. Não obstante esta postura, Teresa ama e respeita
o pai, como se pode comprovar pelo facto de continuar a obedecer-lhe, em tudo
o mais: “Teresa ergueu-se sem lágrimas, e entrou serenamente no seu quarto.”

• O diálogo entre Teresa e Tadeu reforça a caracterização das personagens, já


esboçada anteriormente, enfatizando a prepotência e o autoritarismo do pai e a
determinação e firmeza da filha.

• O diálogo determina a evolução dos acontecimentos, com a recusa de Teresa


em obedecer ao pai e sujeitar-se aos códigos da época, o que acarretará o
afastamento entre a fidalga e Simão e a sua perdição.
Em suma, à semelhança do que sucede com Simão, Teresa afirma-se como
uma figura de exceção pelo seu caráter e pelo percurso que trilha.

Baltasar é um homem sem princípios e com “absoluta carência de brios”,


características que são ilustradas pela forma como aceita e persiste no casamento
com Teresa (que ele acredita que poderá seduzir), preparado sem o seu
conhecimento e consentimento. Esses traços são também evidenciados pelo facto
de aconselhar Tadeu a usar a filha para atrair Simão a Viseu para o surpreender.

Esta figura constitui o anti-herói da novela. É arrogante, cínico e vaidoso,


com “absoluta carência de brios”, causando repugnância e terror em Teresa, ao
contrário de Simão, que representa o amor-paixão puro e generoso e a segurança.

Após o diálogo com o pai, Teresa escreve a Simão para lhe dar conta do
sucedido, por isso, no final do capítulo, assistimos à reação do filho de Domingos
Botelho ao relato da sua amada.

Simão tinha sofrido uma mudança enorme por amor a Teresa, refreando a
sua rebeldia, porém, agora, assume novamente o seu “génio sanguinário”. Assim,
começa por reagir de forma impulsiva, com fúria/cólera e perturbação à leitura da
carta, inclusivamente em termos físicos: “[t]remia sezões, e as artérias frontais
arfavam-lhe entumecidas”. Bastante perturbado, movido pelo orgulho, pela
“índole arrogante do ódio”, que se sobrepõem ao amor, pensa em ir a Castro Daire
assassinar Baltasar para defender a sua honra. Obstinado e ferido pela afronta ao
seu amor por Teresa e receando que o primo da sua amada o tivesse difamado e
que ela o visse de forma diferente, num primeiro momento, deixa-se, pois,
dominar pela irracionalidade e pela intensidade dos sentimentos. É a faceta do
herói romântico de Simão que vem à tona. Note-se, por outro lado, que esta ideia
de assassinar Baltasar é um prenúncio do que sucederá mais tarde.
Num segundo momento, depois da tripla leitura da carta, e enquanto
espera por transporte, as lembranças de Teresa e da felicidade amorosa com ela,
bem como da sua resolução de levar uma vida honrada, levam-no a tomar
consciência das consequências trágicas desse seu ato de vingança. Se o
concretizasse, tornar-se-ia um assassino, o que o afastaria da amada e acarretaria
o ódio do pai: “Fugirei como um assassino, e meu pai será o meu primeiro inimigo,
e ela mesma há de horrorizar-se da minha vingança…”. Simão vive, neste passo,
um conflito entre a defesa da sua honra e o amor por Teresa, como o exemplifica
o seguinte excerto textual: “ – Quem pode ser feliz com a desonra de uma ameaça
impune?!... Mas eu perco-a! Nunca mais hei de vê-la…”.
Deste modo, após três vezes a missiva, reflete melhor, conclui que o seu
orgulho e a sua honra não foram manchados, o bom senso e a serenidade
sobrepõem-se à sua impulsividade e decide ir a Viseu encontrar-se com Teresa no
dia seguinte. Para concretizar o seu propósito, conta com a ajuda do arrieiro, que
lhe indica a casa de um primo ferrador para se acolher durante a estadia em Viseu.
No final do capítulo, sobressai a sua faceta de jovem apaixonado, puro,
tímido, ansioso. Depois de ter marcado um encontro com Teresa (através de cartas
trocadas através de uma mendiga) em casa da fidalga na noite do aniversário
desta, o filho de Domingos Botelho deseja apenas um breve encontro com a
amada, apesar do nervosismo e dos receios que sentia: “Apertar-lhe a mão, sentir-
lhe o hálito, abraçá-la talvez, cometer a ousadia de um beijo…”.
No que diz respeito à linguagem, neste passo do capítulo, encontramos
diversas frases exclamativas, interrogativas, bem como outras suspensas por
reticências. Estes recursos traduzem o estado de perturbação, de inquietação, de
confusão mental e emocional de Simão, que, após a leitura repetida da carta, se
sente, por momentos, perdido e imagina que perdeu Teresa, o seu amor,
recordando o passado de felicidade e antecipando o desenlace trágico.

As cartas trocadas entre Teresa e Simão, transportadas por uma mendiga,


constituem o meio de comunicação entre ambos. Além disso, permitem a ambos
expressarem o que sentem, alimentando assim o seu amor, e concertarem os
passos a dar para proteger esse mesmo amor.

A relação amorosa de Simão e Teresa conta com adjuvantes e oponentes.


Neste capítulo, os adjuvantes são o arrieiro, o seu primo ferrador (João da Cruz) e
a mendiga, que permitem a proximidade e a comunicação entre os dois
apaixonados. Por outro lado, os oponentes são Tadeu de Albuquerque e Baltasar
Coutinho, que procuram afastar Simão e Teresa e liquidar o seu amor.

● Crítica – a novela como crónica da mudança social

1. Assuntos abordados:
• Tadeu quer obrigar Teresa a casar com Baltasar.
• Teresa recusa esse casamento por conveniência.
• Face à recusa da filha, Tadeu decide enclausurá-la num convento.

• Teresa não cede e reage contra a repressão de que é vítima.


2 )

• Crítica à sociedade repressiva – forte pressão das instituições familiar e religiosa:

→ intransigência na defesa do nome familiar, visível no ódio existente entre as


famílias de Teresa e Simão (resultante de uma sentença de Domingos Botelho
desfavorável a Tadeu);
→ autoritarismo de Tadeu;

→ casamentos por conveniência (o desejado por Tadeu entre a filha e Baltasar);


→ a sobreposição / imposição do poder paterno à vontade da filha: Tadeu quer
obrigar Teresa a contrair matrimónio com Baltasar;

→ a falta de expressão feminina (Teresa e os seus sentimentos não são tidos nem
achados na questão do casamento com Baltasar e é proibida de se relacionar com
Simão);
→ o convento como forma de aprisionamento.

• a recusa do casamento por conveniência (Teresa);

• a rebeldia da mulher no seio familiar (Teresa);

• o amor como motor de transformação social (Simão e Teresa).

● O amor-paixão

O amor-paixão é um dos temas centrais de Amo de Perdição. À semelhança


do que sucede noutros passos da obra, ele manifesta-se de diversas formas:

a) Simão é o herói romântico: novamente, mostra-se impulsivo e incauto,


nomeadamente quando decide deslocar-se a Viseu, tendo consciência deque a
sua vida pode correr perigo.
b) Teresa é a heroína romântica: à semelhança do que sucede com o seu amado,
a jovem fidalga deixa-se levar pelos sentimentos, aceitando a aventura de Simão,
reagindo de forma irrefletida à sua ida a Viseu – a intensidade do amor-paixão e o
desejo de ver Simão são tais que a jovem tudo esquece.
c) A precipitação dos amantes: a marcação do encontro entre ambos é irrefletida
e não ponderada, ou seja, Simão não pondera as consequências desse encontro
e Teresa quer encontrar-se com o seu amado, sabendo os perigos que corria.
d) Os devaneios amorosos: os devaneios amorosos do par, nomeadamente de
Simão, refletem a ingenuidade e a imaturidade com que os adolescentes
percecionam o seu futuro e a sua relação amorosa.

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