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 «Amor de perdição» – o herói romântico

o Simão Botelho: uma sensibilidade romântica

«Simão «Amou, perdeu-se, e morreu amando.». Para ele, tal como


para qualquer homem da sua geração, o eu é o centro do sistema do
Universo. Ele luta contra todos os preconceitos e hipocrisias sociais,
defendendo até ao fim o seu amor. [...]

[Simão] tem uma sensibilidade romântica, contestatária em relação


aos preconceitos sociais, uma alma sedenta de ideal. Daí as suas
frustrações, a sua revolta, a sua amargura e ao mesmo tempo a força e
coragem que revela para lutar e procurar a realização do plano
amoroso, em suma, a busca do seu ideal, esbarrando contra a
sociedade e o mundo «vazio». Essa procura do ideal leva-o a ter
atitudes menos ponderadas devido ao seu temperamento violento,
impulsivo e muitas vezes irrefletido.

Simão aparece-nos sempre como uma alma insatisfeita, possuidor de


uma imaginação fértil e de um temperamento irrequieto, brigão,
refletindo em certa medida a maneira de ser de Camilo Castelo Branco
e a sua experiência pessoal. Para além destes aspetos, Simão revela-se
corajoso, honesto e possuidor de nobreza moral.»

Maria da Assunção F. Morais Monteiro, Romantismo e Realismo no


Amor de perdição, Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto
Douro, 1996.

 Características da figura do herói romântico


 O herói romântico apresenta características que o definem e
distinguem das outras personagens. 
 De facto, é um indivíduo de estatuto nobre, normalmente
de condição social elevada, embora essa nobreza também possa
ser relativa ao domínio das atitudes e valores. É, pois e
indubitavelmente, uma personagem de exceção, que defende
ideais como o Amor ou a Liberdade, buscando o
absoluto nesses planos. Quando defende os seus ideais, como no
caso do Amor, revela a sua sensibilidade romântica. 
Dotado de uma enorme força anímica, o herói romântico
consegue, ou pelo menos tenta, superar contrariedades, muitas
vezes incorrendo em situações de violência e rebeldia que o
colocam numa posição desafiadora das normas. Quando vê
malogradas as suas aspirações, este indivíduo vê-se
atormentado pela insatisfação e pela tristeza , que o fazem
mergulhar na solidão e no isolamento e experienciar uma crise.
 Este herói pode, igualmente, revelar-se muito individualista e
egocêntrico, seguindo apenas as suas próprias convicções, sem
deixar espaço a outras opiniões ou soluções. Quando, de facto,
todas as esperanças são frustradas, a morte e o suicídio podem
ser vistos como a solução romântica para abolir o sofrimento.

 Estatuto nobre (social e moral)


 Simão Botelho é um jovem pertencente a uma família de
fidalgos, cujas ações refletem a sua nobreza de caráter, apesar de
o seu temperamento turbulento e o assassinato de Baltasar
mancharem a sua conduta. Na verdade, o jovem não aceita ser
tratado de forma privilegiada. Tal pode verificar-se no capítulo
X, quando o meirinho, na sequência da morte de Baltasar, o
queria deixar fugir e ele, dignamente, recusou, por considerar
que devia arcar com as consequências dos seus atos. Do mesmo
modo, a sua nobreza de caráter manifesta-se quando trata com
respeito e sem preconceitos as pessoas de uma classe social mais
baixa, como é o caso de João da Cruz e de Mariana.

«Em 1801, achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita


corregedor em Viseu.

Manuel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois anos, e


frequenta o segundo ano jurídico. Simão, que tem quinze, estuda
humanidades em Coimbra. As três meninas são o prazer e a vida toda
do coração de sua mãe.»

(Capítulo I)

 Personagem de exceção, defensor de valores como o


Amor ou a Liberdade
 O fidalgo mostra que sempre acreditou no Amor, agindo em
prol dele e crendo que o seu, que não se pôde concretizar na
terra e em vida, se prolongaria depois da morte. Vê este
sentimento como algo sagrado, como um destino a que nunca
poderia fugir. Demonstrou-o através das cartas de amor que
endereçou a Teresa, que revelaram a sua veia poética, patente na
descrição dos sonhos que tinha para o futuro de ambos ou na
descrição do sofrimento provocado pela distância e pelas
circunstâncias. 

Exemplo:

«Eras a minha vida: tinha a certeza de que as contrariedades não me


privavam de ti. Só o receio de perder-te me mata. […]
Tenho ciúmes de todas as tuas horas. Hás de pensar com muita
saudade no teu esposo do céu, e nunca tirarás de mim os olhos da tua
alma para veres ao pé de ti o miserável que nos matou a realidade de
tantas esperanças formosas. […].»

(Capítulo X)

 Defensor assumido dos ideais jacobinos, saídos da então


recém Revolução Francesa, Simão destacou-se na luta pela
liberdade do ser humano, que não deve estar subjugado às
convenções impostas por uma sociedade retrógrada,
nomeadamente a casamentos por conveniência e impostos pelos
pais, a clausura em conventos como forma de punição e correção
de comportamentos ou, ainda, a relações baseadas em interesses
que nada têm a ver com o amor, como os bens materiais, a raça
ou os conflitos.
«Estes sucessos tinham irritado contra Napoleão os ânimos daqueles
que odiavam o aventureiro, e para outros deram causa a
congratularem-se do rompimento com Inglaterra. Entre os desta
parcialidade, na convulsiva e irrequieta academia, era voto de grande
monta Simão Botelho, apesar dos seus imberbes dezasseis anos.
Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins, e muitos outros algozes e
mártires do grande açougue, eram nomes de soada musical aos ouvidos
de Simão. Difamá-los na sua presença era afrontarem-no a ele, e
bofetada certa, e pistolas engatilhadas à cara do difamador.»

(Capítulo II) 

 Força anímica que o faz superar contrariedades


 Determinado a superar os obstáculos que impedem o seu
caminho, Simão Botelho é tocado pelo poder redentor do amor,
que o transforma num bom aluno, num filho, aos olhos dos
progenitores, exemplar e num amante dedicado, uma vez que
estava decidido a tudo fazer para que o futuro com Teresa fosse
promissor.

Exemplo
«D. Rita pasmava da transfiguração, e o marido, bem convencido
dela, ao fim de cinco meses, consentiu que seu filho lhe dirigisse a
palavra. […]
A mudança do estudante maravilhou a academia. Se o não viam nas
aulas, em parte nenhuma o viam. […]

Estudava com fervor, como quem já dali formava as bases do futuro


renome e da posição por ele merecida, bastante a sustentar dignamente
a esposa.»

(Capítulo II)
 Porém, tendo em conta que também é dominado por
sentimentos avassaladores, febris e egoístas, associados ao seu
desejo de vingança e de conservação da sua honra, nada impede
Simão de, vendo-se ameaçado e insultado por Baltasar, o
assassinar em frente à sua família, às portas do convento de
Viseu, no momento em que Teresa ia ser transferida para o
Porto, para o convento de Monchique. Efetivamente, Baltasar
impunha-se à fidalga e, mesmo sabendo que não era amado, não
desistia de Teresa, influenciando o tio com as suas opiniões
machistas e inflamando nele a esperança de que curaria a sua
filha daquele amor maldito.

«O vulto de Tadeu de Albuquerque arrastando a filha a um convento,


não lhe afogueava a sede da vingança; mas cada vez que lhe acudia à
mente a imagem odiosa de Baltasar Coutinho, instintivamente as mãos
do académico se asseguravam da posse das pistolas. […]
Baltasar Coutinho lançou-se de ímpeto a Simão. Chegou a apertar-
lhe a garganta nas mãos; mas depressa perdeu o vigor dos dedos.
Quando as damas chegaram a interpor-se entre os dois, Baltasar tinha
o alto do crânio aberto por uma bala, que lhe entrara na fronte.
Vacilou um segundo, e caiu desamparado aos pés de Teresa.»

(Capítulo X)

 Solidão e crise
 Vendo que a distância física entre si e a sua amada vai
aumentando cada vez mais, e quando percebe que a união, na
vida terrena, será impossível, Simão, dominado pelo desespero e
pela tristeza, sente-se saturado da sua vivência no cárcere, ao
ponto de responder mal a Mariana, sua única companhia.
«Não esperes nada, mártir – escrevia-lhe ele. – A luta com a
desgraça é inútil, e eu não posso já lutar. Foi um atroz engano o nosso
encontro. Não temos nada neste mundo. Caminhemos ao encontro da
morte… Há um segredo que só no sepulcro se sabe. Ver-nos-emos?  
Vou. Abomino a pátria, abomino a minha família; todo este solo está
aos meus olhos cobertos de forcas, e quantos homens falam a minha
língua, creio que os ouço vociferar as imprecações do carrasco. Em
Portugal, nem a liberdade com a opulência; nem já agora a realização
das esperanças que me dava o teu amor, Teresa!»

(Capítulo XIX)

 Individualismo e egocentrismo
 Com a possibilidade de comutar os dez anos de degredo na Índia
por dez anos de prisão em Vila Real, o jovem Botelho toma uma
atitude individualista e egocêntrica, ao pensar apenas em si, que
não suportava mais estar enclausurado. Apesar de Teresa lhe ter
suplicado que aceitasse os dez anos de prisão, o jovem foi
perentório na sua decisão, não abdicando dela nem mesmo
perante os argumentos da amada.

«Teresa pedira a Simão Botelho que aceitasse dez anos de cadeia, e
esperasse aí a sua redenção por ela. […]
Não me peças que aceite dez anos de prisão. Tu não sabes o que é a
liberdade cativa dez anos! Não compreendes a tortura dos meus vinte
meses.»
(Capítulo XIX)

 Morte como solução romântica para o sofrimento


 Por fim, sabendo da morte de Teresa no convento de Monchique,
e já a bordo do navio que o conduziria à Índia, Simão adoece de
febre maligna e, na noite do nono dia de viagem delira pela
última vez, vindo a morrer de madrugada. O seu corpo foi
lançado ao mar. A morte terá sido a solução para uma existência
que já não tinha um destino auspicioso, o destino do Amor.

o Exemplo
«Ao escurecer, voltou de terra o comandante, e contemplou, com os
olhos embaciados de lágrimas, o desterrado, que contemplava as
primeiras estrelas, eminentes ao mirante.

– Procura-a no céu? – disse o nauta.


– Se a procuro no céu! – repetiu maquinalmente Simão.
– Sim!... no céu deve ela estar.
– Quem, senhor?
– Teresa.
– Teresa!... Morreu?!
– Morreu, além, no mirante, donde ela estava acenando. […]
– Acabou-se tudo!... – murmurou Simão – Eis-me livre... para a
morte...»

(Capítulo XX)

 Características de Teresa como heroína romântica


 Estatuto nobre
 Teresa de Albuquerque é uma jovem e bela fidalga que, apesar da
tenra idade, revela muita maturidade e princípios dignos de
admiração. 

De facto, Teresa coloca o amor acima de tudo, relegando para segundo


plano aquilo que pessoas como o pai, com uma mentalidade mais
retrógrada, valorizavam na altura, como o património, os conflitos ou
a classe social. É com respeito e gratidão que trata Mariana, quando
esta se encontra com a fidalga no Convento de Viseu (encontro
conseguido por intermédio de uma amiga de Mariana, Joaquina Brito)
e lhe faz chegar uma carta de Simão.

o Exemplo
«– Adeus, adeus – disse Teresa sobressaltada. – Tome lá esta
lembrança como prova da minha gratidão.
E tirou do dedo um anel de ouro, que ofereceu a Mariana.  
– Não aceito, minha senhora.»
(Capítulo X)
 Do mesmo modo, vemos que Teresa se pauta por princípios nobres
quando despreza o ambiente de intriga e mentira que povoam o mesmo
convento.

o Exemplo
«Não delongaremos esta amostra do evangélico e exemplar viver do
convento onde Tadeu de Albuquerque mandara sua filha a respirar o
puríssimo ar dos anjos, enquanto se lhe prepara crisol mais depurador
dos sedimentos do vício no convento de Monchique.
Encheu-se o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas duas
horas de vida conventual. Ignorava ela que o mundo tinha daquilo.
[…] Daquelas mesmas dominicanas, em cuja casa estava, ouvira dizer
às velhas e devotas fidalgas de Viseu virtudes, maravilhas de caridade,
e até milagres. Que desilusão tão triste e, ao mesmo tempo, que ânsia
de fugir dali!»

(Capítulo VII)

 Personagem de exceção, defensora de valores


como o Amor ou a Liberdade
 Teresa opta por não desistir do verdadeiro amor, nem que para isso
tenha de agir de forma desapropriada ao que era esperado de uma
jovem na época retratada na obra. De facto, era expectável que não
ousasse enfrentar nem desobedecer ao pai. Vigorava um patriarcalismo
baseado num autoritarismo exagerado que não olhava a meios para
corrigir comportamentos indesejáveis e impor vontades. 

Assim, como personagem de exceção, Teresa não se importa de ser


amaldiçoada ou deserdada pelo pai, nem de ser enclausurada ou morrer
por amor, preferindo ser fiel aos seus sentimentos a casar com um
homem que não ama. Ela própria, logo que chega ao convento de
Viseu, refere sentir-se livre, na medida em que estava longe da
repressão e das pretensões do pai.

o “E não será mais certo odiá-lo eu sempre!? Eu agora mesmo o
abomino como nunca pensei que se pudesse abominar! Meu pai… –
continuou ela, chorando, com as mãos erguidas – mate-me; mas não
me force a casar com meu primo! É escusada a violência, porque eu
não caso!...»
(Capítulo IV)

 Força anímica que a faz superar contrariedades


 Teresa apoia-se na esperança de ser feliz com Simão, razão pela qual
suporta ser enclausurada, maltratada e estar distante do homem que
ama. Esse futuro que almeja para ambos fá-la, ainda, suportar a vida
nos dois conventos e até recuperar inicialmente do seu estado de saúde
débil, quando toma conhecimento de que a pena à forca fora comutada
por dez anos de prisão em Vila Real.

o «- Dez anos! – dizia-lhe a enclausurada de Monchique – Em dez anos
terá morrido meu pai e eu serei tua esposa, e irei pedir ao rei que te
perdoe, se não tiveres cumprido a sentença.»
(Capítulo XIX)

 Crise e morte como solução romântica para o sofrimento


 Depois de comutada a pena de morte (na forca) em dez anos de prisão,
Teresa implora a Simão que aceite o cárcere, porém o jovem prefere o
degredo na Índia, onde, pelo menos, poderia ver o céu, ao invés de
continuar enclausurado no cárcere. Perante esta postura do amado e a
certeza de que já não se voltariam a ver (pois as saudades ou as
temperaturas tórridas e trabalhos forçados da Índia não o permitiriam),
Teresa, atacada também pela tuberculose, desiste de viver, esperando,
no entanto, voltar a encontrar o seu «esposo do céu».

o «Teresa pedira a Simão Botelho que aceitasse dez anos de cadeia, e
esperasse aí a sua redenção por ela. […]
As ânsias, a lividez, o deperecimento tinham voltado. O sangue, que
criara novo, já lhe saía em golfadas com a tosse.»

(Capítulo XIX)

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