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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE LETRAS
DISCIPLINA: Literatura Portuguesa: Era Romântica e Modernidade
PROFESSOR: Mauro Dunder
ALUNO: Bruno Radner Bezerra de Oliveira

Um breve estudo sobre a(s) masculinidade(s) em Amor de Perdição

Apresentação

Camilo Castelo Branco, ao publicar Amor de Perdição (1862), nos presenteou com
uma obra que, passados quase dois séculos, ainda conserva-se icônica, emblemática,
representativa de um modelo de expressão artística e sociocultural deveras influente no
mundo ocidentalizado: o Romantismo. Seu enorme sucesso e penetração no gosto popular
não são infundados: sua trama, seus personagens, seu apelo discursivo, tudo encontra-se
disposto em consonância com os ideais e espírito da época, notoriamente marcados nesta obra
de forma cativante. Parafraseando Calvino (2007), clássico é todo aquele livro que sua leitura
se renova, no qual ainda encontramos chaves de interpretação e que ainda gera discussões
sobre seus aspectos inerentes; Amor de Perdição, portanto, insere-se nessa categoria de
clássico, sem reservas.
Pautado nessa perspectiva de tentar recuperar elementos desencadeadores de
apreensão de sentidos com os quais se possam estabelecer novas leituras – inclusive
extralinguísticas –, neste breve ensaio pretendo me debruçar sobre uma questão que me saltou
bastante instigante: a construção, ou melhor, a configuração de um perfil de masculinidade
comum às personagens masculinas. Assim sendo, lanço uma investigação introdutória acerca
das características presentes naquelas de maior destaque, a saber: Simão Botelho,
personagem que dá vida à história e em torno do qual ela se desenlaça; Domingos Botelho,
pai de Simão e um juiz sem muita projeção pessoal e profissional; Tadeu de Albuquerque, pai
de Teresa – interesse romântico de Simão –, que nutre um desafeto pela casa dos Botelho;
Baltasar Coutinho, primo de Teresa, candidato a seu esposo e principal antagonista; e João da
Cruz, mestre ferrador e comparsa de Simão em seus planos. Como recorte metodológico,
escolhi determinados episódios nos quais se denota uma presença mais assinalada de ações
e/ou discursos para, ao final, traçar um painel representativo desse (ou desses diversos) ethos
masculino apresentado no romance.
Caracterização e análise dos personagens

Iniciaremos com o personagem Domingos Botelho, patriarca da casa de onde nosso


protagonista provém. O narrador descreve-o como sendo de linhagem fidalga, bacharel em
Direito e frequentador da Corte em outros tempos; todavia, isto é tudo o que se lhe pode dizer
como algo de algum valor. Domingos carecia de feições físicas atrativas (“era extremamente
feio”), materiais (“faltavam-lhe bens de fortuna”) e intelectuais (“era alcançadíssimo de
inteligência”); ainda assim, logrou constituir família e, graças às benesses de amigos,
conquistou alguma posição na magistratura. No decorrer da leitura, podemos perceber que a
característica que mais lhe sobressai é a rudeza: Domingos enciuma-se de sua mulher,
esquiva-se de confrontos e procura manter uma postura burocrática quanto aos assuntos,
inclusive, familiares, agindo tal qual sua função de juiz – extremamente corretivo, sem um
exame minucioso preliminar das particularidade das circunstâncias.
Na ocasião do crime de Simão, em diálogo com D. Rita, sua esposa, Domingos
demonstra o caráter austero e distanciado para com sua família, agindo como se tivesse que
se desfazer rapidamente de uma situação desagradável: “–Eu não sou pai: sou corregedor.
Não me incumbe a mim interrogá-lo. Senhora D. Rita, eu não quero ouvir choradeiras; diga
às meninas que se calem ou que vão chorar no quintal.”. Nota-se aqui não apenas a rejeição
ao filho como também a censura a qualquer compaixão para com o mesmo. Ainda, no
diálogo com o magistrado responsável pelo processo: “–Eu não odeio, senhor doutor;
desconheço esse homem em que me fala. Cumpra os seus deveres, que lho ordena o
corregedor (...)”.
Quanto ao patriarca dos Albuquerque, vemos um tipo distinto de relação para com sua
família, mas que resguarda algumas semelhanças com aquela de seu desafeto, Domingos
Botelho. Partindo-se das especificidades, tem-se que Tadeu de Albuquerque é genitor de uma
única filha, Teresa, sendo ela o único centro de sua atenção e gravidade. O fato de ser a
menina sua única herdeira não o faz prover um tratamento mais cordial, afetivo, direcionado
à adolescente; em reiterados momentos, Tadeu mostra-se irascível ao menor sinal de
contrariedade da sua vontade paterna, a qual entende como direita e absoluta, senhor do
destino daqueles sob seu teto e nome. “Tadeu, atônito da coragem da filha e ferido no coração
e direitos paternais, correu ao quarto dela, disposto a espancá-la.”.
Para Tadeu, aquela recusa da filha em cumprir-lhe a expectativa é mais do que um
golpe em sua rígida noção de hierarquia, sendo-lhe também motivo de embaraço diante de
um negócio vantajoso à sua casa, pois calculava “(...) projecto de casar em breve a filha com
seu primo Baltasar Coutinho, de Castro Daire, senhor de casa e igualmente nobre de
prosápia.”. Tadeu intencionava assegurar estirpe e provisões à sua descendência, ainda que à
revelia da principal interessada, entendendo a união matrimonial como mera atividade de
negócios. O seu empreendimento era tão sólido que não considerava alternativas ajuizadas
pelo arbítrio da filha, estando totalmente disposto a sacrificar a liberdade dela em alternativas
nas quais só a menina perderia – ou o casamento forçado, ou o convento, ou a deserção –,
impondo-lhe a sua vontade suprema:

–Vais dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que te
deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo difícil,
conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser imposta pela
violência. Mas, repara, minha querida filha, que a violência de um pai é
sempre amor.

Essa relação de parentalidade verticalizada e autocrática não é encontrada no


personagem João da Cruz, personagem mais destoante em relação aos outros homens com
espaços marcantes no livro (Domingos, Tadeu, Baltasar, Simão). João não tem origem de
fidalgo; é um homem simplório, representativo das camadas populares sujeitas àquelas que
detêm o poder político e econômico em cada lugar. João tem trejeitos de fala pouco
rebuscada, aliados ao pensamento pragmático e imediatista para resolução de conflitos; em
certa altura, conta ele que recorreu à violência para dar cabo de um cavalo que lhe prejudicara
um negócio, no que o dono do animal disparou-lhe; então, sacou de sua arma e findou com o
sujeito, em retaliação, numa decisão tão instantânea que nos faz parecer natural. “E vai eu,
entro em casa, vou à cabeceira da cama e trago uma clavina, e desfecho-lha na tábua do
sujeito. O almocreve caiu como um tordo, e não tugiu nem mugiu.”.
Apesar dessa linha de raciocínio superficial e revanchista, uma postura toma-lá-dá-cá,
João conserva uma atitude de subserviência e gratidão para com aqueles que o socorreram,
como o juiz Domingos. Vê-se o quanto a questão da honradez e retidão de caráter estão
impregnados nesse personagem do povo, o que pode também pode ser indicativo de
argumento de hombridade – entre homens de posições desiguais, a noção de débito é o que os
nivela. Nessa linha de pensamento, a honra de seus nomes é mais valiosa que suas posses.
No entanto, não se pode deixar de notar que a violência é frequentemente o recurso
mais prático de que lançam mão. João, incapaz de dissuadir o jovem filho do homem a quem
deve a integridade, decide acompanhá-lo e, como veríamos, se desfazer dos capangas que o
emboscaram, mesmo já estando livres do perigo, o que choca o apaixonado Simão (talvez
Simão tenha aí o vislumbre de que seus planos têm consequências irreversíveis):

– Não sou cruel – disse o ferrador –, o fidalgo está enganado comigo; é que,
diz lá o ditado, morrer por morrer, morra meu pai que é mais velho. Tanto faz
matar um como dois. Quando se está com a mão na massa, tanto faz amassar
um alqueire como três. As obras devem ser acabadas ou então o melhor é não
se meter a gente nelas (...).

Retomando a questão da parentalidade, é nesta que observamos o diferencial de João,


personagem sem renome nem brasões, em relação aos outros pais, senhores de casa e
negócios. João, em sua rústica simplicidade, dialoga e pondera com sua filha Mariana em
igualdade de termos, outorgando-a decisões que lhe escapam ao juízo rude. Há uma
horizontalidade nessa relação pai-filha: a tirania de Tadeu, a burocracia de Domingos para
com o filho, não se encontram aqui. Mariana é o contraponto ao comportamento agressivo de
João e quem recupera a sentimentalidade de seu mundo brutalizado: “O caso é que a moça
não tem querido casar, e eu, a falar a verdade, sou só e mais ela, e também não tenho grande
vontade de ficar sem esta companhia (...) se não fosse ela, fidalgo, muita asneira eu tinha
feito!”.
No tocante ao personagem Baltasar Coutinho, principal antagonista, observamos
características peculiares: pretendente à mão de Teresa escolhido por seu pai, Baltasar se
mostra convicto de que alcançará seu intento, mesmo sabendo das circunstâncias adversas à
sua concretização; isto, contudo, não o faz esmorecer, pelo contrário, incita-lhe mais ainda a
conquista como num jogo de predação e eliminação de oponentes.
Logo que é introduzido, Baltasar demonstra os escrúpulos de alguém que se recusa a
ser derrotado, não importando que, para sua vitória pessoal, tenha que desprezar o arbítrio de
seu objeto de desejo. Para ele, a vontade de Teresa é algo a ser dominado às custas de
privação, chantagem, dissimulação e outros mecanismos obtusos: “Malograda a tentativa de
seu amor de emboscada, tornou para a terra o primo de Teresa, dizendo ao velho que ele o
livraria do assédio em que Simão Botelho lhe tinha o coração da filha.”. Percebe-se, em sua
conduta, muito pouco apreço pela agência feminina se esta não lhe for satisfatória, como
demonstrado no diálogo com Teresa:
“– Então o primo quer-me governar? – atalhou ela com desabrida irritação.
– Quero-a dirigir enquanto a sua razão precisar de auxílio. Tenha juízo, e eu serei
indiferente ao seu destino.”.
Baltasar recorre igualmente à violência enquanto recurso para resolução de conflitos,
porém, em divergência à de João da Cruz que é reativa, a sua é premeditada, friamente
calculada e evasiva. Baltasar age nas sombras enquanto mantém a aparência de um homem
centrado para o público, mas, em profundidade, também é governado pela noção da não-
contrariedade.
Simão Botelho, protagonista de nossa história, detém um lugar especial nessa
configuração. A princípio, seu comportamento arredio e revoltoso o coloca em posição
semelhante aos outros personagens masculinos que recorrem à violência e ao discurso
enérgico. Seu próprio irmão o quer distante, temendo as consequências de seu
comportamento; seu pai admira sua virilidade, enquanto esta ainda não lhe tenha trago
problemas. “Os quinze anos de Simão têm aparência de vinte. É forte de compleição; belo
homem com as feições de sua mãe e a corpulência dela; mas de todo avesso em gênio. Na
plebe de Viseu é que ele escolhe amigos e companheiros.”.
Simão também sustenta seu gênio na resolução prática de conflitos; se contrariado,
não tardava em chegar às vias de fato com quem quer que fosse. Teresa, em carta endereçada
a Simão, “(...) omitiu ela as ameaças do primo Baltasar, cláusula que, a ser transmitida,
arrebataria de Coimbra o moço, em que sobejavam brios e bravura (...)”. 1 Em mais de uma
ocasião nos é informado que Simão colocava mãos às armas impulsivamente; que a força da
cólera tomava-lhe o corpo escurecendo-lhe a razão, e que não media agravos a outrem se
pudesse aplacar a sua ira juvenil: “O acadêmico, chegando ao período das ameaças, já não
tinha clara luz nos olhos para decifrar o restante da carta. Tremia sezões, e as artérias frontais
arfavam-lhe entumecidas"; e “Em recurso extremo, prometia assaltar com homens armados o
mosteiro, ou incendiá-lo para se abrirem as portas. Este programa era o mais parecido com o
espírito do acadêmico.”.
A disparidade encontrada em Simão apresenta-se tão logo o crime de homicídio é
consumado: Simão põe-se melancólico, arrefece-lhe o vigor e entrega-se ao desamparo. O
seu brio tão idiossincrático desapareceu e ocupa-lhe o lugar uma inação resoluta: “Simão
Botelho vira imperturbável chegar o dia do julgamento (...) às perguntas respondeu com o
ânimo frio daquelas respostas ao interrogatório do juiz.”; “Quando intimaram a Simão
Botelho a decisão de recurso e a graça do regente, o preso respondeu que não aceitava a
graça; que queria a liberdade do degredo (...)”. A partir daqui temos uma nova ilustração de
uma hombridade, mas de efeito oposto àquela que antes causava danos aos inimigos: a recusa
1 Nota-se aqui que o discernimento é um aspecto predominantemente feminino no romance; assim como
Mariana dissuade o temperamento acalorado do pai, cabe à Teresa confortar seu amado Simão, e D. Rita a seu
esposo, Domingos.
de auxílio que só resulta infligir prejuízos a si mesmo, seja esta pautada em teimosia,
resignação, obediência a princípios inexplicados, aversão à dívida de favores,
desmerecimento, entre outras tantas causas.

Conclusões e apontamentos

A questão da masculinidade é um demarcador social interessante que pode nos


fornecer alguns pontos norteadores a respeito da época e da sociedade em que a obra foi
composta e, assim, enriquecer nossa leitura. De posse de alguns dados referentes às
características presentes na configuração das personagens masculinas de maior destaque,
podemos traçar um panorama geral e estabelecer pontos fulcrais sobre a questão. Observemos
como se apresentam.
Três das personagens masculinas centrais são pais: Domingos, Tadeu e João da Cruz.
Dentre esse subgrupo, podemos estabelecer alguns apontamentos: Domingos e Tadeu
desempenham o papel de pais rígidos para os quais a desobediência ou desagravo é punível
de forma severa, inclusive fisicamente. Ambos ainda mantêm convergência de serem
senhores de posses, homens renomados em sua respectiva região. Podemos descrever a
relação destes para com seus familiares como vertical, sendo eles os centros de poder. Já o
personagem João da Cruz é representante de um arquétipo popular, rústico e mal instruído;
contudo, sua relação familiar é muito mais maleável, jamais se valendo de violência para
impor sua opinião e vontade sobre sua filha de forma soberana.
Tadeu, Domingos e João estão categorizados enquanto personagens planas e,
complementando, como tipos: todos têm pouco desenvolvimento e aprofundamento
psicológico, cumprindo tão somente os papéis de chefes de família autocráticos – à exceção
de João, que conserva uma proximidade bem maior em relação à sua prole. Ainda assim,
parece-nos que ao desempenho da função paterna resta pouca alternativa a não ser a rigidez,
distanciamento, pragmatismo e a brutalidade na defesa de seus ideais e honra.
O personagem Baltasar Coutinho também está inserido na categoria plana – ele
cumpre o papel demarcado do vilão sedento pela conquista de um amor que lhe feriu a
reputação. Valendo-se de recursos e estratagemas, intenciona livrar-se do homem que julga se
intrometer em suas ambições, sequer considerando válidas as vontades alheias às suas. Dentre
os personagens que recorrem à violência, apresenta-se como aquele que mais confia em
subterfúgios para conseguir seus fins.
O protagonista Simão é a representação caricata de um jovem adulto mal saído da
adolescência: arruaceiro, pouco empenhado em decidir a vida, com ares de revolucionário.
Sua situação muda drasticamente ao apaixonar-se por Teresa e, em outra reviravolta, ao
cometer o crime que desencadeia as consequências de seu desfecho. Por conta dessas
transformações de caráter, Simão é o personagem que se enquadra na categoria redondo,
passando de um jovem explosivo a um centrado e, novamente, a um taciturno. Não obstante,
a violência sempre o acompanhou como causa ou consequência de seus descaminhos.
Composto majoritariamente de personagens planas, o romance nos assinala um modus
vivendi bastante perceptível em todos os perfis masculinos: resolve-se qualquer pendência
recorrendo-se à violência. Ainda que haja ponderações e debates, é quase inescapável a
utilização da mesma em alguma medida, seja em defesa da honra, seja para fins escusos, seja
como fim imediato de uma demanda.
Entretanto, além da saída agressiva para a maioria dos conflitos, há uma outra
característica observável que perpassa uniformemente tais personagens: a irredutibilidade.
Domingos, Tadeu e João mostram-se irredutíveis na defesa de hierarquias e convicções
(familiares e sociais); Baltasar mostra-se irredutível no seu projeto de tornar Teresa sua
esposa, ainda que à revelia; e Simão mostra-se irredutível na aceitação de sua pena,
recusando atenuação. Se pretendemos entender melhor o funcionamento dos caracteres
sociais masculinos imbuídos neste romance, e que podem ser reflexos dos sujeitos homens de
um tempo e espaço sociais específicos, este é um ponto salutar de investigação. O romance
nos demonstra de forma indireta, ou seja, a partir das escolhas textuais do autor, que o
homem português do século XIX é inflexível e aferrado às suas ideias e condutas,
transtornando, destarte, todos ao seu redor.
Este ensaio pretende-se introdutório, com a demanda singela de apresentar um olhar
mais atencioso sobre uma temática inerente à obra. Outros aspectos podem ser intercruzados
para criar novos pontos interessantes na depreensão desse modo de ser masculino como, por
exemplo: de que forma tais características estão ligadas às classes sociais (no caso de João,
que mantém uma relação familiar mais orgânica em oposição àquelas de famílias mais
abastadas); de que forma a honra masculina é entendida e em que é fundamentada (por
exemplo, em princípios religiosos, econômicos, ideológicos, etc.); a questão do antagonismo
entre o agir impulsivamente (masculino) e a ponderação (marcadamente feminina); a
configuração das famílias e que influência ela exerce sobre a atitude dos homens, entre
outros.
Referências

BRANCO, Camilo Castelo. Amor de perdição. Porto: Porto Editora, 2011.


CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.

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