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De Bacurau ao chapéu usado por Juliette:

devemos nos orgulhar do cangaço? (tese inicial)


Escrito por Durval Muniz de Albuquerque Jr, em 01 de Junho de 2021. Publicado no
jornal Diário do Nordeste (adaptado)

Primeiro foi o filme Bacurau, de Mendonça Filho, a reatualizar o imaginário do


cangaço, com a famosa cena das cabeças degoladas dos integrantes do bando de Lampião,
arrumadas em pose de retrato de família, na escadaria da igreja. Depois o fenômeno Juliette,
com sua personagem, construída pelo marketing, portando sempre, orgulhosa, de cabeça
erguida, um chapéu de cangaceiro. Nas redes sociais, até grupos feministas começaram a se
nomear de cangaceiras, símbolo que seria de bravura, de resistência, de coragem, de luta.

Em tudo isso, uma certeza: o cangaço e o cangaceiro fazem parte das mitologias que
sustentam o discurso da identidade regional nordestina, (objeto de acordo) e, como toda
mitologia, tem muito pouco a ver com a realidade histórica do que foi esse fenômeno e foram
esses personagens. (tese proposta) Desde a Grécia antiga, o discurso da história surgiu para
se contrapor ao mito, para colocar no tempo e na realidade terrena e prosaica dos homens,
aquilo que parecia habitar o intemporal e as esferas do sagrado, do mitológico.

O cangaço é um fenômeno que, com essa designação, surgiu durante a seca de 1877-
1879, embora o banditismo rural já existisse anteriormente. (operador argumentativo:
contraposição) Nasceu como bandos de antigos jagunços, homens armados a serviço dos
coronéis que, deixados à própria sorte por causa da seca, resolveram usar as armas para
atacar os comboios com os socorros públicos ou pilhar as fazendas e grupos de retirantes que
seguiam pelas estradas. Com o fim da seca, tendo descoberto um meio de vida e provado da
liberdade de agirem por conta própria, sem estar debaixo das ordens de um mandão, muitos
desses saqueadores e bandoleiros continuaram agindo independentemente.

Desde o início, portanto, (operador argumentativo: conclusão) o cangaceiro será


uma figura ambígua, podendo saquear e roubar tanto ricos quanto pobres, realizar seus
“serviços” (uso das aspas: alteridade) de forma independente ou se colocar às ordens de um
coronel, de um coiteiro (que também podia ser um modesto camponês) (metadiscurso) que
o protege, o abastece de armas, o abriga em fuga de um entrevero com as polícias ou
volantes, que lhe salva a vida quando chega ferido e, em troca, ele põe seu braço armado a
serviço das vinganças e interesses do seu protetor, recebendo, muitas vezes, pelo “serviço”
prestado.

Quando a ditadura do Estado Novo (1937-1945) resolveu, após a morte de Lampião e


Corisco, proibir que a imprensa designasse qualquer criminoso de cangaceiro, por causa da
aura de excepcionalidade que esse nome conferia a quem era assim chamado, o cangaceiro
começou a deixar o plano a realidade e ir se alojar no plano do mito. Para isso, (operador
argumentativo: explicação) muito contribuiu a literatura popular de folhetos, que tornou o
cangaceiro, notadamente Lampião, um de seus personagens recorrentes, mesmo que fosse
para tratar de como chegara ao inferno e como tomara aquele território do demônio.

Se a maioria dos cangaceiros vinha das camadas populares e entrava no cangaço em


busca de um meio de vida – atraídos pelo seu caráter aventureiro e nômade, oportunidade de
dar expansão a demonstrações de valentia, coragem e destreza nas armas, traços que
definiam o padrão hegemônico de masculinidade (metadiscurso)–, suas principais
lideranças, como Sinhô Pereira, Antônio Silvino e Lampião não eram pobres, desprovidos de
terra, pelo contrário (operador argumentativo: introduzir oposição); entraram no cangaço
porque viram suas terras e posses desapropriadas violentamente por vizinhos, ligados a
outras parentelas.

O cangaceiro estava longe de ser o revolucionário (posicionamento) que as esquerdas


pintaram, nos anos sessenta; ele aspirava a ser um coronel, como os fatos de Lampião passar
a exigir que o chamassem de capitão e a correspondência que enviou ao presidente do estado
de Pernambuco, Estácio Coimbra, propondo a divisão do governo estadual, claramente
indicam.
Devemos estudar e entender historicamente o fenômeno do cangaço, (concessão)
mas fazer dele um mito regional, tomá-lo como motivo de orgulho, fazer dele culto, como
fazem, inclusive, muitos intelectuais e artistas da região, é uma extravagância inaceitável.
(refutação) Ver mulheres se nomeando de feministas e cangaceiras é constatar o quanto em
nosso País a história é desconhecida. (posicionamento) O cangaço era o reino da
masculinidade autoritária, machista e patriarcal, onde as mulheres eram maltratadas,
raptadas, sistematicamente estupradas.

Muitas das cangaceiras, chegaram ao cangaço por serem raptadas, levadas à força,
mantidas sob ameaça e cárcere privado, ocupando lugares subalternos, tidos como lugar de
mulher. Não descarto o fato de que uma ou outra mulher se acostumou, se afeiçoou àquela
vida e até a seu raptor, (concessão) todo fenômeno humano é complexo e assim deve ser
tratado, daí porque a simplificação mítica não é o mais adequado. (explicação e refutação)

Não devemos nos envergonhar do cangaço, (concessão) pois não era mera selvageria
e barbárie, mas também não devemos tecer loas regionalistas a um fenômeno que em nada
contribui para o aprendizado necessário de vivermos em um Estado democrático de direito
(refutação), onde o macho valente e armado não se ache no direito de atacar uma mulher
indefesa (como acaba de ocorrer na cidade do Recife), (metadiscurso) onde o respeito à lei
venha acompanhado da luta política democrática por conquistas sociais.

O cangaceiro deve ser deixado no passado, pois seu mito só reforça a heroicização da
violência individual e pessoal, (operador argumentativo: explicação/ retomada da tese) só
veicula um modelo de ser masculino, de ser homem, que deve ser superado: o modelo do
cabra macho que lava a honra com sangue, que afirma sua virilidade e masculinidade no
recurso à violência sanguinária.

Cultuar o cangaceiro é cultuar a violência e não precisamos de modelos de seres


violentos. (posicionamento) Os fascistas, com seu amor às armas, já estão infelicitando
nossos dias. (técnica argumentativa: antimodelo) Mulheres, leiam o livro de Adriana
Negreiros, Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço, antes de se nomearem de
cangaceiras, como se fosse um gesto de afirmação feminina.

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