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Universidade Federal de São Paulo

Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Curso de História

Monografia:
Batman, The Dark Knight Returns: Violência, Vigilantismo e Era Reagan na Obra de
Frank Miller (1981-1986)

Millena Barbosa de Carvalho

Orientadora: Profª Drª Ana Lucia Lana Nemi


Departamento de História.

Guarulhos
2019
Carvalho, Millena Barbosa de.
Batman, the dark knight returns: violência, vigilantismo e Era Reagan na
obra de Frank Miller (1981-1986) / Millena Barbosa de Carvalho. - 2019.
70 f.

Monografia (graduação em História) – Universidade Federal de São


Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Humanas, 2019.
Orientador: Ana Lúcia Lana Nemi
Título em outro idioma: Batman, the dark knight returns: violence,
vigilantism and the Reagan Era in Frank Miller’s work (1981-1986).

1. Batman, O Cavaleiro das Trevas. 2. Estados Unidos. 3. Frank Miller.


4. Quadrinhos. I. Nemi, Ana Lúcia Lana. II. Monografia (graduação em
História) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e
Humanas. III. Batman, the dark knight returns: violência, vigilantismo e Era
Reagan na obra de Frank Miller (1981-1986).

Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais nº
9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institucional da
UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento dos direitos
autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de divulgação
intelectual, desde que citada a fonte.

2
Agradecimentos

Não esperava chegar até aqui. Mas cá estamos. Muitas vezes pensei em desistir, mas
segui o conselho da minha orientadora: crie uma rede de amizade forte, em quem confie e te
apoie. Minha trajetória nesta universidade foi marcada por pessoas incríveis e inspiradoras, a
quem devo meu respeito e agradecimento.
Antes das pessoas que me acompanharam durante a graduação, quero agradecer aqueles
que fizeram e fazem parte da minha vida muito antes de pensar em me tornar historiadora. Meu
primeiro agradecimento vai para a mulher mais forte que conheci: minha avó Luiza, que mesmo
sem saber escrever o próprio nome soube educar e amar mais que qualquer pessoa no mundo.
Mãe de treze filhos, avó de trinta e um netos e bisavó de onze bisnetos, é nosso refúgio e nossa
casa. Mais uma vez, obrigada.
Mãe, obrigada, você sempre enxugou minhas lágrimas e me ensinou enfrentar qualquer
obstáculo de cabeça erguida. Obrigada por me dar o melhor irmão do mundo. Michel, espero
que eu possa sempre te proteger e ser um exemplo para você. Apesar de me pirraçar bastante,
sei que não vive sem mim, meu caçula. Seja um bom garoto.
Andressa, Tatiane e Letícia, nossa amizade já tem uma década e, apesar da distância,
cada encontro com vocês me revigora. Obrigada por tudo. Fico muito feliz e orgulhosa em ver
as mulheres que nos tornamos.
Gabriela, minha colega de curso, obrigada por trilhar este caminho comigo. Você é
incrível, lembre-se disso.
Não posso me esquecer das pessoas que fazem parte desta instituição: meu
agradecimento aos técnicos, estudantes, terceirizados e professores. Em especial, minha
orientadora, Ana Nemi, que teve paciência de me ajudar trilhar este caminho, sempre com os
pés no chão. Professora Márcia D’álessio, meus profundos agradecimentos pelos conselhos
sábios e contribuição para minha formação.
Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, por financiar esta
pesquisa.
Felipe, “you gave my dreams wings and set them beyond sunset. Now they can become
free from all things. As I did in the day we met”.

I can make it right.

3
Resumo

O presente projeto tem como objetivo analisar a narrativa de "Batman, the Dark Knight
Returns", produzido no ano de 1986, pelo autor Frank Miller. Pretendemos discutir as possíveis
relações e diálogos com o tempo vivido do autor da HQ, buscando signos e significados sobre
o governo de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, junto à historiografia que discute o aumento
da violência na década de 1980. Analisaremos quais foram as ações do governo Reagan para
os problemas socioeconômicos da década de 1980, e como aparecem na narrativa da HQ,
discutindo o papel do vigilante, Batman, e as possibilidades de resolver institucionalmente a
questão da violência proposta por Frank Miller.

Palavras-chave
Batman, o Cavaleiro das Trevas; Estados Unidos; Frank Miller; Quadrinhos.

Abstract

The present project aims to analyze the narrative of "Batman, the Dark Knight Returns",
produced in the year 1986, by author Frank Miller. We intend to discuss the possible relations
and dialogues with the lived experience of the comic's author, searching for signs and meanings
about Ronald Reagan's administration in the United States, next to the historiography that
discusses the increase of violence in the decade of 1980's. We will analyze what were the
actions from Reagan's administration to the socioeconomic problems of the 1980's, and how
they appear in the comic narrative, discussing the role of the vigilante, Batman, and the
possibilities of institutionally resolving the issue of violence proposed by Frank Miller.

Keywords
Batman, The Dark Knight Returns; Comics; Frank Miller; United States.

4
Sumário

Apresentação da Pesquisa ...................................................................................................... 6


Introdução: História, Representação e Quadrinhos ................................................................. 8
Capítulo I: Uma breve história das Histórias em Quadrinhos nos Estados Unidos. ................. 20
Capítulo II: Frank Miller e “O Cavaleiro das Trevas”........................................................... 37
1. Os vigilantes de Miller: Batman e Demolidor ............................................................. 42
2. A representação da mídia televisiva em “Cavaleiro das Trevas” .................................. 59
Considerações Finais............................................................................................................ 64
Fontes ................................................................................................................................. 68
Portais eletrônicos................................................................................................................ 68
Referências Bibliográficas .................................................................................................... 68

5
Apresentação da Pesquisa

Esta pesquisa de monografia é resultado de uma iniciação científica financiada pelo


Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), produzida entre maio de
2018 a abril de 2019 (Nº do Processo 25152-9), tendo como fonte principal a história em
quadrinhos Batman, the Dark Knight Returns, de 1986.
Batman, the Dark Knight Returns teve roteiro de Frank Miller, arte-final de Klaus
Janson e cores de Lynn Varley. Foi publicada mensalmente de março a junho de 1986, pela
editora DC Comics, nos Estados Unidos. Entretanto, a edição utilizada como fonte nesta
pesquisa foi publicada no Brasil pela Panini Comics no ano de 2011 e teve seu título traduzido
para Batman, o Cavaleiro das Trevas.
Na narrativa, os criadores transformam Gotham City em um ambiente escuro e
aterrorizante para o vigilante Batman agir. O Batman desta HQ se difere de outras
caracterizações, tais como de Bob Kane e seus sucessores. Bruce Wayne (identidade secreta de
Batman) estava aposentado do combate ao crime e beirando os sessenta anos, vivendo em uma
Gotham onde a violência havia chegado ao seu extremo e se encontrava desamparada pelos
poderes do Estado.
A partir disso, foi necessário analisar aspectos da carreira de Frank Miller, pois obteve
destaque como roteirista em sua carreira. Miller propôs uma nova perspectiva para os super-
heróis: lidar com problemas muito mais próximos da realidade, de forma que o cenário urbano
na maioria das vezes é representado de forma dura, cruel e violenta. Em Batman, o Cavaleiro
das Trevas, por exemplo, o conflito entre Estados Unidos e a União Soviética é o pano de fundo
para o desfecho.
Para analisar a perspectiva proposta por Miller foi necessário examinar as produções de
histórias em quadrinhos nos Estados Unidos durante as décadas de 1950 a 1980. Percebeu-se
que a partir da década de 1970, muitas publicações de histórias em quadrinhos abordaram
temáticas de diversos movimentos políticos e sociais que aconteceram nos EUA. Entretanto, a
reformulação das histórias em quadrinhos ocorreu na década de 1980, com narrativas que
trataram as temáticas da realidade e da ficção de forma mais crítica. Os quadrinhos que mais
ganharam destaque neste período foram Batman, o Cavaleiro das Trevas (Frank Miller),
Watchmen (Alan Moore) e Maus (Art Spielgman).
Além disso, analisamos a trajetória do personagem Batman desde sua criação em 1939
até a obra de Frank Miller em 1986. Buscou-se encontrar rupturas e continuidades nas

6
características do personagem Batman nas publicações da DC Comics, até sua reestruturação,
que o transformou em Cavaleiro das Trevas.
Para compreender as perspectivas sobre o vigilantismo, além de Batman, analisamos
outro personagem do universo dos quadrinhos: Demolidor, da Marvel Comics, enquanto foi
roteirizado por Miller, entre os anos de 1979 e 1981.
A comparação entre Demolidor e Batman foi feita buscando compreender até que ponto
Frank Miller e os personagens que escrevia desacreditavam das instituições. Notou-se que em
Batman, o Cavaleiro das Trevas as ações de Batman são propostas e legitimadas pelo autor,
uma vez que, no desfecho, o ideário do vigilante aparece como a única solução para o caos
social. Dentro da narrativa, procurou-se estabelecer dois pontos: 1. analisar e compreender
como a população (civis criminosos e não criminosos) reagiu à conduta do vigilante; 2. analisar
e compreender o papel da mídia que informa e forma a opinião pública.
Desta forma, através das representações da narrativa, foi feita a análise do gênero dos
quadrinhos numa perspectiva histórica, buscando compreender até que ponto a HQ se articula
com o tempo vivido pelo autor. Tendo em vista seu posicionamento conservador, que propõe,
de certa maneira, a necessidade de um vigilante “razoavelmente maníaco”, que organizasse a
sociedade ao seu modo, negando todo o aparato estatal representado em Batman, o Cavaleiro
das Trevas. A partir disso, analisamos a figura controversa do bilionário filantropo Bruce
Wayne.

7
Introdução: História, Representação e Quadrinhos

[...] o documento é qualquer elemento gráfico, iconográfico, plástico


ou fônico pelo qual o homem se expressa. É o livro, o artigo de revista
ou jornal, o relatório, o processo, o dossiê, a correspondência, a
legislação, a estampa, a tela, a escultura, a fotografia, o filme, o disco,
a fita magnética, o objeto utilitário, etc. [...] enfim, tudo que seja
produzido por razões funcionais, jurídicas, científicas, culturais ou
artísticas pela atividade humana. 1

A definição do que é documento apresentada por Heloísa Bellotto, que abarca os mais
diversos tipos de expressões humanas, só foi possível através da Escola dos Annales de Lucien
Febvre e Marc Bloch, os líderes da “Revolução Francesa da Historiografia”2, como afirmou
Peter Burke. Os Annales buscavam junto a outras ciências humanas os conceitos que
permitiriam ao historiador ampliar sua visão do homem e o conceito de documentos. Por meio
dos mais diversos vestígios produzidos ao longo do tempo, abre-se diversas possibilidades para
o fazer historiográfico. Como afirma Bellotto, esses vestígios podem ser livros, esculturas,
fotografias, imagens, filmes e tantos outros.
Peter Burke, em seu livro Testemunha Ocular, discute o uso de imagens como uma
forma de evidência histórica e suas problemáticas, atentando-se para a crítica das fontes
imagéticas que devem ser utilizadas juntamente com outros tipos de evidências históricas.
Burke afirma que as imagens nos permitem “imaginar” o passado de forma mais vívida, por
isso é caracterizada como evidência, já que através delas é possível observar indícios do
passado no presente. O autor argumenta que as imagens são traiçoeiras e que devemos estudar
os diversos propósitos dos realizadores das imagens, as distorções do real, as visões
estereotipadas e as convenções singulares da arte. Entretanto, “o processo de distorção é, ele
próprio, evidência de fenômenos que muitos historiadores desejam estudar, tais como,
mentalidades, ideologias e identidades”.3
Imagens são feitas para comunicar, e como outras formas de evidências, não foram
necessariamente criadas pensando nos historiadores do futuro, ou seja, possuem preocupações
e mensagens próprias. A interpretação dessas mensagens resultou em dois estudos: a
iconografia e a iconologia. A iconografia é um estudo descritivo da representação visual das

1 BELLOTTO, H. As fronteiras da documentação. Cadernos FUNDAP. São Paulo, v. 4, n. 8, p. 12-16, abr. 1984
apud. RUBIM, Sandra. A imagem como fonte e objeto de pesquisa em história da educação. Seminário de
Pesquisa do PPE. Universidade Estadual de Magingá, 2010.
2 BURKE, Peter, A Escola dos Annales (1929-1989): A revolução francesa da historiografia. São Paulo:

Editora Unesp, 2010, p. 17.


3 Idem. Testemunha Ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Editora Unesp, 2017, p. 50.

8
imagens que faz a identificação dos objetos, dos eventos e dos significados convencionais.
Enquanto a iconologia é o estudo do significado intrínseco, os pressupostos em níveis
históricos de “uma nação, um período, uma classe, uma crença religiosa ou filosófica”4. De
forma geral, iconologia é o estudo descritivo da representação visual do simbólico. O estudo
iconográfico seria o estudo descritivo da representação visual de símbolos e imagens.
O filósofo e sociólogo Henri Lefebvre trouxe novas reflexões aos estudos das
representações, tratando-as de forma dialética: ao mesmo tempo que as representações fazem
parte do processo de formação do conhecimento e da transformação da sociedade, sua teoria
não é suficiente para explicar os fatos da vida. Dessa maneira, a representação é uma redução,
pois o real é dialético e a representação é estática. Em sua reflexão, Lefebvre apresenta a tríade
das representações que foi desenvolvida ao longo do tempo por diversos pensadores, tais como,
Immanuel Kant, Georg Hegel, Karl Marx e Friedrich Nietzsche. O estudo das representações
“destina-se a entender o processo pelo qual a força do representado se esvai, suplantada por
seu representante por meio da representação, e como essa representação distancia-se do vivido
e se multiplica, manipulando o vivido”.5
Lefebvre afirma que a arte e a criação se desenvolvem no espaço das representações, assim,
as obras de arte, os poemas, as esculturas, a literatura, o conhecimento e tantas outras formas
de expressões humanas são representações que se materializam no real. Portanto, as histórias
em quadrinhos também podem ser consideradas representações. Transpondo essa interpretação
para o objeto de estudo desta pesquisa, Batman, o Cavaleiro das Trevas encaixa-se na tríade
de representação, como observamos no esquema abaixo:

Nas histórias em quadrinhos, assim como outras produções artísticas, temos um quarto
elemento que compõe a tríade das representações: o espectador.

4 LUFTI, Eulina. As representações e o Possível. (et. al.) MARTINS, José de Souza. Henri Lefebvre e o Retorno
à Dialética. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 58.
5 Ibidem, p. 89.

9
O espectador, com seu repertório, consegue identificar as representações tanto no real
quanto no plano das ideias, decifrando os códigos próprios da linguagem dos quadrinhos. Peter
Burke afirma que é necessário o historiador familiarizar-se com os códigos culturais das
imagens para a análise dos símbolos e mensagens6. Os quadrinhos possuem uma linguagem
própria que deve ser interpretada pelo espectador. Esta linguagem se expressa na arte
sequencial, que não necessariamente precisa do recurso do texto para narrar a história, e nos
balões de texto que dão voz aos personagens e aos ambientes – no último caso por meio de
onomatopeias. Portanto, as narrativas em imagens em sequências (quadrinhos) trabalham com
dois códigos: (1) o código iconográfico dos quadrinhos, (2) o código linguístico da escrita.
Antonio Luiz Cagnin defende que os quadrinhos são:
a substância de expressão da narrativa, formada de dois códigos:
a imagem, signo visual analógico do código iconográfico,
formada por figuras de pessoas, animais, de objeto e do cenário
onde se desenrolam as ações da narrativa; o texto do código
linguístico representado na palavra escrita dos balões, das
legendas e do título pelo narrador, personagem fictícia que conta
a história.7

Paulo Ramos defende que a história em quadrinhos é uma linguagem autônoma e que
muitas vezes é confundida com a literatura. Entretanto, “quadrinhos são quadrinhos”, uma
linguagem própria que possui diferentes gêneros:

Todos esses gêneros teriam em comum o uso da linguagem dos


quadrinhos para compor um texto narrativo dentro de um contexto
sociolinguístico interacional. [...] Quadrinhos seriam, então, um grande
rótulo, um hipergênero, que agregaria diferentes outros gêneros, cada
um com suas peculiaridades.8

O teórico e historiador dos quadrinhos Thierry Groensteen aborda de forma objetiva a


história em quadrinhos em termos de “sistema”, que constitui uma totalidade orgânica que
associa elementos, parâmetros e procedimentos múltiplos.

As histórias em quadrinhos não constituem uma arte sincrética - ou


total, pode-se dizer - como a ópera, elas não exigem do leitor o mesmo
engajamento perceptivo que se faz ao espectador do cinema [...] Mas

6 BURKE, Peter. Testemunha Ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Editora Unesp,
2017, p. 59.
7 CAGNIN, Antonio Luiz. Os Quadrinhos: Linguagem e Semiótica. São Paulo: Criativo, 2014, p. 178.
8 RAMOS, Paulo. A leitura dos Quadrinhos. São Paulo: Editora Contexto, 2016, p. 20

10
mesmo que elas não mobilizem outro sentido fora a visão, as HQs - que
casam o visual e o verbal, apresentam descontinuidade, escalonamento
e efeitos de rede, constituem enfim uma espécie de bancos de imagens
- não ficam muito distantes da bifurcação entre a civilização do livro e
a civilização multimídia. Nesse sentido, hoje elas merecem muito mais
atenção crítica do que já receberam.9

Em vista disso os quadrinhos se utilizam somente do visual e do verbal para transmitir


aos seus espectadores (os leitores) as representações de movimento, tempo, sons, emoções que
criam as mais diversas representações de histórias, tempos, imaginários e ideologias. Deve-se
considerar que na produção de quadrinhos, o sistema iconográfico é essencial, mas que por trás
dele existem uma série de profissionais envolvidos, como roteiristas, ilustradores, coloristas,
letristas e editores.
Porém, as representações distanciam-se do real e o modificam. Logo, as representações
por si só não dizem nada. Como discute Carlo Ginzburg, os historiadores precisam entender os
indícios para compreender as distorções do real que estão representadas, já que a história utiliza
indícios para construir o conhecimento10. Dessa maneira, deve-se utilizar a simbiose entre o
conhecimento indiciário e o conhecimento científico para a análise da narrativa dos quadrinhos
e suas representações do real.
Will Eisner, em seu livro, Quadrinhos e arte sequencial: Princípios e Práticas do Lendário
Cartunista escreve que:

As histórias em quadrinhos apresentam uma sobreposição de palavra e


imagem, e, assim, é preciso que o leitor exerça as suas habilidades
interpretativas visuais e verbais. As regências da arte (por exemplo,
perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por
exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. A
leitura da história em quadrinhos é um ato de percepção estética e de
esforço intelectual.11

Porém, nem tudo no quadrinho está posto em imagens e texto, até porque seria impossível
desenhar passo a passo a narrativa, como ocorre em animações fílmicas, porque “o número de
imagens é limitado, ao passo que no cinema uma ideia ou emoção podem ser expressas por
centenas de imagens exibidas numa sequência fluida, numa velocidade capaz de imitar o

9 GROENSTEEN, Thierry. O Sistema dos Quadrinhos. Nova Iguaçu – RJ: Editora Marsupial, 2015, p. 166.
10 GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário. In: Mitos, Emblemas e Sinais. Sâo Paulo: Cia
das Letras, 1989, p. 156-158.
11
EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial: Princípios e Práticas do Lendário Cartunista. São Paulo:
Martins Fontes, 2010, p. 2.

11
movimento real”12. Eisner acredita que existe o “contrato” entre o autor e o leitor, para que
compreenda certos fatos que não foram explicitados:

O narrador espera que o público vá compreender, enquanto o público


espera que o narrador vá transmitir algo que seja compreensível. [...]
Nas histórias em quadrinhos, espera-se que o leitor entenda coisas
como tempo implícito, espaço, movimento, som e emoções. Para
que isso ocorra, um leitor deve não apenas se utilizar de reações
viscerais, mas também fazer uso de um acúmulo razoável de
experiências13.

Os quadrinhos possuem um emaranhado de relações internas ao quadro, que Groensteen


define em três componentes majoritários, a imagem, a escrita e o requadro. Além disso, também
existem outros parâmetros, tais como, a cor, composição, iluminação, qualidade do traço. Nesta
análise, vamos nos conter aos três componentes majoritários e alguns exemplos de relações que
se desenvolvem entre os quadros14, como suas representações imagéticas.
Uma das representações que mais chamou atenção e causou polêmica em Batman, o
Cavaleiro das Trevas foi a figura presidencial. Sua primeira aparição está implícita num
suposto encontro com Superman. Ambas as personagens não têm o rosto revelado, causando
suspense ao leitor. Entretanto, por meio dos códigos iconográficos da narrativa podemos supor
quem sejam - através da cumplicidade, ou “contrato”, entre o leitor e o autor.
Esta suposição se confirma na forma como estão dispostos os desenhos e os balões de
fala, como observa-se na Figura 01. Temos num primeiro plano horizontal, que está fora dos
quadros, a Casa Branca ao fundo de um portão, com um guarda armado em sua frente,
garantindo a segurança. No segundo plano, temos oito quadros verticais, que se sobrepõem à
Casa Branca. A sequência ocorre através dos balões-fala que indicam diálogo entre dois
interlocutores. O primeiro interlocutor é representado pela bandeira dos Estados Unidos
ondulando ao vento, o segundo interlocutor é representado nos últimos dois quadros pelo
brasão em forma de “S” nas cores azul, vermelho e amarelo. O leitor associa automaticamente
ao maior super-herói DC Comics, Superman.
Na Figura 01, observa-se a variedade de quadros utilizados na narrativa. Abaixo temos
um único quadro no canto esquerdo inferior, onde apresenta Batman numa mesa de cirurgia
sendo observado por Carrie Kelley, a nova Robin. Os quadros inferiores à direita transformam-

12 EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial: Princípios e Práticas do Lendário Cartunista. São Paulo:
Martins Fontes, 2010, p. 20.
13 Idem. Narrativas gráficas: Princípios e práticas da lenda dos quadrinhos. São Paulo: Devir, 2013, p 53.
14 GROENSTEEN, Thierry. O Sistema dos Quadrinhos. Nova Iguaçu – RJ: Editora Marsupial, 2015, p. 38.

12
se na tela de uma televisão, indicando a repórter anunciando as notícias. Todos os quadros que
delimitam o espaço são linhas contínuas que “representam um fato real ou fictício”15.

15
CAGNIN, Antonio Luiz. Os Quadrinhos: Linguagem e Semiótica. São Paulo: Criativo. 2014, p. 102.

13
Figura 01 – Encontro entre Superman e o presidente dos EUA. Batman, O Cavaleiro das Trevas – Edição
Definitiva. Panini Books, 2011, p. 88. Acervo pessoal.

14
Temos três elementos importantes na linguagem dos quadrinhos de Batman, Cavaleiro
das Trevas. O primeiro deles é que a HQ é composta pelos mais diversos tipos de quadros que
criam signos durante a sequência, de forma que não há um padrão na disposição dos desenhos.
O segundo é que a diversidade no padrão dos quadros indica a simultaneidade dos fatos
narrados pela HQ – o encontro entre Superman e o presidente acontece simultaneamente ao
tempo em que Batman está na mesa cirúrgica, que também ocorre ao mesmo tempo em que a
repórter anuncia as notícias sobre a Gangue dos Mutantes.
A falta de padrão na sequência dos quadros é proposital para que o leitor compreenda
que isso acontece em diversos espaços dentro do mesmo período de tempo.
Frank Miller representa fatos isolados da narrativa por meio do uso das sarjetas, que
segundo McCloud são essenciais para criar significado entre uma sequência de quadros. Isto
porque a sarjeta representa uma sequência que está fora dos quadros, que fragmentam o tempo
e espaço, ou seja, separa unidades significantes, oferecendo um “ritmo recortado de momentos
dissociados”16. E somente a conclusão feita mentalmente pelo leitor conecta esses momentos e
os estrutura em uma realidade única. Podemos observar este efeito na Figura 02, já que
enquanto a Gangue dos Mutantes fala à TV, sabemos que Batman se encontra dentro do Bat-
Móvel e também vemos o diálogo que ocorre dentro dele.
O terceiro elemento, que será aprofundado ao longo desta pesquisa, são as mídias
televisivas, que possuem papel fundamental em Batman, o Cavaleiro das Trevas. Dessa
maneira, sua importância se apresenta através do formato do quadro que se transforma num
televisor toda vez que as mídias aparecem na narrativa.

16
MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo. Editora M.Books do Brasil, 2005, p. 67.

15
Figura 02 – Diálogo entre Batman e Carrie Kelley (Robin). Batman, o Cavaleiro das Trevas – Edição
Definitiva. Panini Books, 2011, p. 88. Acervo pessoal.

16
Foi por meio das mídias televisivas que Batman, o Cavaleiro das Trevas apresentou ao
leitor a representação do rosto presidencial. Observa-se o quadro em formato de televisor que
apresenta o pronunciamento do presidente. Este é representado de forma realista, destacando
as rugas e o tom de pele alaranjado (Figura 03 abaixo). Durante a narrativa, em nenhum
momento o nome do presidente é citado, porém, através da imagem podemos associar essa
representação caricata ao presidente Ronald Reagan.

Além disso, o contexto de produção da obra, o ano de 1986, contribui para a associação
entre a representação e o então presidente Reagan. Na Figura 03, o presidente faz um
pronunciamento dizendo que as “heroicas tropas americanas” estão envolvidas em confronto
direto com as forças soviéticas porque estão ocorrendo boatos de uma suposta guerra nuclear.
O presidente diz que em momento algum estão partindo para cima da URSS, porém, não irão
se acovardar pois eles estão dispostos a “lutar pela liberdade”. As falas do presidente condizem
com as questões da época, como a Guerra Fria e o discurso de Ronald Reagan sobre a
“liberdade americana”17. Através dos indícios da narrativa, podemos associar o tempo vivido
pelo autor e as representações de sua obra.

Figura 03 - Primeira aparição do rosto do presidente na narrativa. Batman, o Cavaleiro das Trevas – Edição
Definitiva. Panini Books, 2011, p. 123. Acervo Pessoal.

17
PURDY, Sean. McGlobalização e a Nova Direita: 1980-2000. In: KARNAL, Leandro (et al.). História dos
Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2017. p. 261.

17
Pelo tom realista de Miller, podemos fazer uma comparação entre a imagem do
presidente em Batman, o Cavaleiro das Trevas e a fotografia oficial de Ronald Reagan (Figura
04). Temos traços no desenho que aludem ao ex-presidente dos Estados Unidos, como o
formato das sobrancelhas, o penteado, o sorriso de canto, e como já dito anteriormente, as rugas
e tom de pele alaranjado. Além disso, temos uma possível analogia ao seu passado como ator
hollywoodiano18, quando o fictício porta-voz da Casa Branca, Chuck Brick, afirma que o
presidente “entende de espetáculos” (Figura 05).

Figura 04: Retrato oficial de Ronald Reagan. Imagem retirada de:


<https://pt.wikipedia.org/wiki/Ronald_Reagan> Acesso em: 17/03/2019.

18 Ibidem, 258.

18
Figura 05 - Chuck Brick, porta-voz da Casa Branca, durante o debate sobre vigilantismo. Batman: O
cavaleiro das Trevas – Edição Definitiva. Panini Books, 2011, p. 70. Acervo pessoal.

Desse modo, a pesquisa buscou analisar aspectos da linguagem dos quadrinhos em


Batman, o Cavaleiro das Trevas com o objetivo de articular com o tempo vivido pelo autor
Frank Miller. Como vimos na narrativa, o autor criou uma sátira do presidente Ronald Reagan
e também ambientou na cidade fictícia de Gotham City os problemas socioeconômicos da
década de 1980. Além disso, Miller inseriu a figura do vigilante Batman como a possibilidade
de controlar a violência civil na HQ, uma vez que o problema não foi resolvido pelos
personagens que representavam as instituições do Estado. Essas questões serão aprofundadas
durante o desenvolvimento desta pesquisa nos capítulos a seguir.

19
Capítulo I: Uma breve história das Histórias em Quadrinhos nos Estados Unidos.

As histórias em quadrinhos fazem parte da nossa vida cotidiana desde o século XIX.
Sua massificação se deu através da consolidação da imprensa, trazendo conteúdo humorístico
com caráter crítico por meio de tiras, cartuns e charges. No século XX, os quadrinhos
tornaram-se autônomos em relação aos jornais, criando sua própria indústria. As histórias em
quadrinhos de super-heróis tomaram conta da cultura mainstream, e atualmente estão presentes
não só nas revistas, mas nos cinemas, em séries de televisão, jogos de video-games, marcas de
roupas, brinquedos e etc.
Existe um consenso entre os estudiosos que as histórias em quadrinhos existem desde
o século XIX, com publicações como M. Vieux Bois (1827), do suíço Rodolphe Töpffer19, e
Yellow Kid (1986), do estadunidense Richard Felton Outcault20. Entretanto, é importante
reconhecer o papel de Outcault na construção da linguagem dos quadrinhos, que ainda tomava
forma na época de publicação de seu Yellow Kid, ao utilizar balões de fala em seu personagem,
que são um elemento comum nas publicações dos dias de hoje. Yellow Kid teve papel crucial
na imprensa norte-americana e no mundo, mostrando que as histórias em quadrinhos eram um
fator que vendia jornais, permitindo o nascimento de uma nova indústria cultural nos Estados
Unidos.

Eric Hobsbawm notou o aparecimento dos cartoons – desenhos humorísticos de caráter


crítico – nos jornais no fim do século XIX, considerando a única inovação na imprensa durante
o período:
[...] talvez as únicas formas de comunicação que a imprensa renovou
foram os desenhos (cartoons), inclusive as primeiras versões das
modernas tiras, transpostas em forma simplificada, por razões
técnicas, dos impressos e folhetos populares. A imprensa de massa,
que começou a alcançar tiragens que totalizavam um milhão de
exemplares ou mais nos anos 1890, transformou as condições de
impressão, mas não seu conteúdo ou suas associações - talvez porque
os fundadores dos jornais fossem provavelmente cultos e certamente
ricos, portanto, sensíveis aos valores da cultura burguesa. Ademais,
em princípio, não havia nada de novo na atividade dos jornais e
revistas.21

19
CAMPOS, Rogério de. Imageria: o nascimento das histórias em quadrinhos. São Paulo: Veneta, 2015, p.90.
20
CAGNIN, Antônio Luís. Yellow Kid, o moleque que não era amarelo. São Paulo: Comunicação & Educação,
n. 7, 1996, p.26-33.
21
HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios, 1875-1914. São Paulo: Paz e Terra, 2016, p.365-366.

20
Essa aparição existiu em jornais no mundo todo, até mesmo no Brasil, através das
charges políticas do ítalo-brasileiro Angelo Agostini (1843-1910), publicadas nos jornais O
Cabrião (1866), O Arlequim (1867), Vida Fluminense (1868), e na Revista Ilustrada (1876-
1898).22 Outro exemplo são as bandas desenhadas elaboradas pelo artista português Rafael
Bordalo Pinheiro: por meio de caricaturas criticou à Monarquia Bragantina entre 1875 e 1890.
Bordalo criou personagens como ilustrado Zé Povinho, publicado em 1875, no periódico
português A Lanterna Mágica.23
Nos Estados Unidos, durante o século XX, as chamadas revistas pulps abriram espaço
para a popularização das histórias em quadrinhos. Os pulps, assim como os folhetins, eram um
tipo de entretenimento rápido e barato, que consistia em narrativas escritas em capítulos, dos
mais diversos gêneros, tais como, aventura, faroeste, romance policial, terror e ficção
científica.24 Personagens como Tarzan e John Carter surgiram através das revistas pulp,
escritas por Edgar Rice Burroughs, tornando-se uma febre entre os jovens. Os pulps inspiraram
diversos personagens de revistas em quadrinhos, como, por exemplo, Tarzan, que foi adaptado
em tiras diárias no ano de 1928, pelo ilustrador canadense Harold Rudolf Foster (Hal Foster).25
Na década de 1920, temos editoras de quadrinhos emergindo, como a editora Dell, que
publicou reimpressões das tiras em jornais numa revista intitulada The Funnies (1929). Com a
quebra da bolsa de NY e a economia em crise nos anos de 1930, os quadrinhos ganharam certa
relevância com o público jovem, sendo uma forma de entretenimento barato, comparado ao
cinema e o rádio. A editora David Mckay Publications aproveitou-se da popularização dos
quadrinhos e publicou pela primeira vez reimpressões das tiras de jornais do Mickey Mouse em
formato de revista, em 1931. Além disso, publicou famosos personagens como Dick Trace
(1931) e Mandrake the Magician (1934).
Ainda na década de 1930, Will Eisner e Jerry Iger fundaram o pequeno estúdio Eisner
& Iger Ltd., que produziam quadrinhos sob demanda para as editoras. Diversos artistas
passaram pelo estúdio, dentre eles o prestigiado Jack Kirby e Bob Kane, que futuramente
integrariam grandes editoras como a DC Comics e a Marvel Comics. Em 1934 a National Allied
Publications, que futuramente viria a se tornar a atual DC Comics, foi fundada pelo Major
Malcom Wheeler-Nicholson, e tinha como editor Vicent “Vin” Sullivan. Sullivan editava a

22
MARTINS, Ana Luiza. Imprensa em Tempos de Império. In: LUCA, Tânia Regina de & MARTINS, Ana
Luiza (et. al.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p.77-78.
23
NEMI, Ana. Rafael Bordalo Pinheiro e a Monarquia Bragantina. Revista do Instituto Histórico e Geographico
Brazileiro, v. 468, p. 111-132, 2015.
24
SCHUMACHER, Michael. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos. São Paulo: Globo, 2013, p. 19-20.
25
Ibidem, 97.

21
Dectetive Comics, quando Jerry Siegel e Joe Shuster criaram o personagem Superman,
publicado na Action Comics número 1 – em maio de 1938 –, alcançando um grande sucesso
entre o público jovem26. Em maio de 1939, Bob Kane e Bill Finger criaram o personagem
Batman, um homem sombrio de capa preta e roupa cinza, com o símbolo de um morcego
estampado no peito.27 Ambos os personagens alcançaram um enorme sucesso, que perdura até
os dias atuais.
Anteriormente, Bob Kane trabalhava como tapa-buracos desenhando tiras de humor
para Vin Sullivan, e apesar de não ser muito habilidoso nos desenhos e não escrever bons
roteiros, fora convidado para fazer uma história sobre o Superman para a revista Action Comics.
Foi quando Kane conheceu um rapaz chamado Bill Finger, que tinha grande talento para
escrita, influenciado pelos pulps da época.28
Kane, ao conhecer os romances e pulps de Finger, convidou-o para fazer roteiros em
troca de uma porcentagem nas vendas dos quadrinhos. Finger aceitou a proposta e permaneceu
na redação, enquanto Kane começou a vender suas histórias regularmente para Vin Sullivan.29
Apesar da parceria entre Kane e Finger, os créditos pelas revistas produzidas só possuíam a
autoria de Kane. Com o sucesso de Superman, outras empresas começaram a produzir histórias
de super-heróis para acompanhar as vendas. 30
Com novas editoras produzindo revistas de super-heróis, Vin Sullivan exigiu de Bob
Kane um personagem para alavancar a revista Detective Comics. Segundo Gerard Jones, “Kane
queria um inimigo do crime que possuísse asas mecânicas ou coisas do tipo. Finger sugeriu
algo mais sombrio, como um Homem-Morcego, de capa preta e roupa cinza, com o seu símbolo
estampado no peito, como o de Superman”.31 Após a aprovação de Sullivan, Bat-man teve sua
primeira história em maio de 1939.32

26
JONES, Gerard. Homens do Amanhã: geeks, gângsteres e o nascimento dos gibis. São Paulo: Conrad, 2006, p.
111. Vale ressaltar que Gerard Jones foi preso em 2017 por posse de pornografia infantil. E, apesar de repudiarmos
seus atos, Jones permanece como um importante historiador dos quadrinhos e sua obra ainda mantém seus méritos.
27
Ibidem, p. 185.
28
Ibidem, p. 170
29 Ibidem, p. 171
30
Ibidem, p. 178.
31
Ibidem, p. 181.
32
Ibidem, p. 185.

22
Figura 06: Na imagem da direita a edição nº 1 da Action Comics de Junho de 1938, com Superman na capa.
Na imagem à esquerda, primeira aparição de Batman na Detective Comics nº 27 em Maio de 1939. Imagem
retirada de: <https://www.maskworld.com/english/disguise-news/superman-vs-batman-duel-of-the-
superheroes> Acesso em: 14/04/2018.

A primeira edição de Bat-man teve uma arte monótona e pesada (Bob Kane não era
muito habilidoso com cenários), mas apesar disso, a revista obteve sucesso e ganhou
continuidade. Jones comenta sobre a segunda história do herói, “uma rápida olhada é suficiente
para percebermos que quem fez as primeiras cenas vertiginosas com a corda foi alguém que
entendia bem mais de perspectiva humana que Bob Kane”.33
Somente no terceiro número descobrimos quem é o arte-finalista: Jerry Robinson.34
Jovem de apenas dezessete anos era um desenhista talentoso e habilidoso que, diferentemente
de Finger, exigiu seu nome na capa. Kane acabara de convencer Sullivan a aumentar o número
de páginas, e Robinson teve papel fundamental para o desenvolvimento e continuidade da
revista, transformando Bat-man em Batman, mais próximo do que conhecemos nos dias de
hoje:

33
JONES, Gerard. Homens do Amanhã: geeks, gângsteres e o nascimento dos gibis. São Paulo: Conrad, 2006,
p, 183.
34
Idem.

23
No dia em que Batman precisava de um arquivilão para o primeiro
número do gibi que levava seu nome, foi Robinson quem o forneceu: o
Coringa. Quando Finger sentiu que Batman precisava de um
companheiro com quem conversar ele e Robinson criaram Robin, o
Menino Prodígio, depois de dissuadir Kane da ideia de um garoto
chamado Mercúrio, baseado na mitologia.35

A revista de Batman estava dando certo, como a de Superman. Kane e Finger notaram
a necessidade de uma história sobre as origens de Batman, e assim fizeram: o assassinato dos
pais de Bruce Wayne quando ainda era criança que o faria buscar justiça e vingança. Enquanto
promete que irá atrás de todos os criminosos, entra um morcego pela janela, “Um morcego! É
isso! Esse é o sinal. Eu hei de me tornar um MORCEGO! ”36, e então o menino decide que irá
virar um morcego, passando anos estudando ciência e se tornando um atleta para combater o
crime. Batman tinha um elemento diferente de outros super-heróis, por ter sofrido com a dor
da perda e na dor buscar sua motivação, o que o tornava mais humano.
O trio Kane, Finger e Robinson criara diversos vilões conhecidos até hoje, como
Mulher-Gato, Pinguim, Charada e Duas Caras. Essa fase de ascensão da indústria de
quadrinhos foi denominada como a Era de Ouro, onde personagens como Superman, Batman
e Mulher-Maravilha conquistaram o público.
O sucesso de personagens como Superman e Batman impulsionou as editoras a criarem
seus próprios super-heróis. Foi nessa época que surgiram Tocha-Humana (1939), Namor
(1939), Capitão Marvel (1939), originalmente publicado pela Fawcett e futuramente conhecido
como Shazam na DC Comics, e Capitão América (1941). Todos, com exceção do Capitão
Marvel, foram publicados pela editora Timely Comics, que na década de 1950 que se
transformou em Atlas Comics, até se tornar a famosa Marvel Comics que conhecemos nos dias
atuais.37
Contudo, após uma série de ataques de associações de pais e, principalmente, do
psiquiatra Fredric Wertham, que em seu principal livro, Seduction of the Innocent [A sedução
do inocente], acusava os quadrinhos de induzirem crianças a cometerem crimes violentos,
perversões sexuais e racismo, foi fundada em agosto de 1954 por um grupo de editores, a
Comics Magazine Association of America (CMAA) [Associação das Revistas em Quadrinhos
da América] que estabeleceu um conjunto de regras de auto-regulamentação, o Código de Ética

35
JONES, Gerard. Homens do Amanhã: geeks, gângsteres e o nascimento dos gibis. São Paulo: Conrad, 2006,
p, 185.
36
Ibidem, p, 186.
37
HOWE, Sean. Marvel Comics: a história secreta. São Paulo: Leya, 2013. Edição Kindle.

24
dos Quadrinhos.38 Algumas das regras eram: “Crimes jamais devem ser mostrados de forma a
criar empatia com criminosos, promover descrédito sobre a lei e a justiça, ou inspirar o desejo
de imitar criminosos”; “As revistas em quadrinhos jamais devem usar as palavras “horror” ou
“terror” em seus títulos”; “Cenas ou instrumentos relacionados a mortos-vivos, tortura,
vampiros e vampirismo, profanação de cadáveres, canibalismo e licantropia são proibidas”;
“As histórias sobre amor romântico devem enfatizar o lar como valor e o caráter sagrado do
casamento”; “Nenhuma forma de nudez é permitida, por ser uma exposição indecente e
indevida”.39
O Código de Ética de Quadrinhos fez com que empresas como a Marvel Comics
sofressem com a proibição de vendas, principalmente porque os principais títulos da editoras
eram policiais, de terror e horror. Nos anos de 1970, Chip Goodman e Stan Lee fizeram uma
campanha para o Código de Ética de Quadrinhos, pedindo autorização para utilizar quadrinhos
sobre narcóticos, o que lhes foi negado. Entretanto, após um pedido do Departamento de Saúde,
Educação e Bem-Estar dos EUA, solicitando que tratasse do abuso de drogas nos quadrinhos,
Martin Goodman – o fundador Atlas Comics, a empresa que antecede a Marvel Comics –
decidiu ignorar o código de ética e tratar do tema em uma de suas histórias. A Marvel lançou
uma história do Homem-Aranha (Spider-man), número 96 a 98, onde o amigo de Peter Parker,
Harry Osborn, ingeriu uma quantidade enorme de comprimidos (Figuras 07 e 08). A
repercussão fez com que muitos reprovassem o antiquado Código de Ética. A Marvel
conquistou o apoio da mídia e a revisão do Código de Ética, a partir de então a CMAA aprovou
não só referências ao uso de drogas como retirou as restrições ao conteúdo de terror. A Marvel
publicou revistas como Lobisomem, A Tumba do Drácula e A Marca de Satã.40

38
JUNIOR, Gonçalo. A Guerra dos Gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos
1933-64. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 242.
39
Ibidem, p. 396-397.
40
HOWE, Sean. Marvel Comics: a história secreta. São Paulo: Leya, 2013. Edição Kindle.

25
Figura 07 – O colega de apartamento de Peter Parker, Harry Osborn, toma pílulas para esquecer Mary Jane.
The Amazing Spider-Man nº 97. Acervo pessoal.

26
Figura 08 – Peter encontra Harry Osborn tendo uma overdose em seu apartamento. The Amazing Spider-
man nº 97. Acervo pessoal.

27
Na década de 1970, as histórias em quadrinhos mudaram de tom e absorveram discursos
das reivindicações das décadas de 1960-70, principalmente as do movimento negro,
articulando-as em suas narrativas e tornando-as mais politizadas. Um dos exemplos é a HQ de
Dennis O’Neil e Neal Adams, “Lanterna Verde & Arqueiro Verde” (Green Lantern & Green
Arrow). Em seu número 76, um morador negro se aproxima do Lanterna Verde e o acusa de já
ter defendido homens de diversas cores de outros planetas, mas nunca havia se preocupado
com alguém de pele negra (Figura 09).

Figura 09 – Um homem negro cruza com o Lanterna Verde e faz os seguintes questionamentos: “Eu andei
lendo sobre ti… Cê trabalha pruns anõezinhos azuis… e ajudou uns sujeitos laranjas em outro planeta.
Também deu uma forcinha prum povo roxo! Só que está esquecendo de uma duma cor… Por que cê nunca
ajudou os negros?! Responde aí, Sr. Lanterna Verde!”, Lanterna Verde & Arqueiro Verde nº 76. Acervo
pessoal.

28
No número 85 da revista, Arqueiro Verde descobre que seu parceiro Ricardito (Speedy)
é viciado em heroína (Figura 10), a história foi publicada quase ao mesmo tempo da criação
do termo “Guerra contra as drogas” (“War of Drugs”), que foi pronunciado num discurso de
Richard Nixon em 18 de junho de 1971, onde o presidente disse que o maior inimigo dos EUA
são as drogas.41 A história de O’Neil e Adams foi um marco na ruptura com paradigmas das
produções anteriores das histórias em quadrinhos, desde a década de 1930.

41
O’NEIL, Denis. Lendas do Universo DC: Lanterna Verde & Arqueiro Verde, volume 2. Barueri: Panini
Books, 2016, p. 131.

29
Figura 10 – Arqueiro Verde encontra seu parceiro Ricardito usando heroína, na revista Lanterna Verde &
Arqueiro Verde nº 85. Acervo pessoal.

30
Nos anos de 1980, as histórias em quadrinhos foram consideradas como uma mídia
legítima, que teve “o maior pico desde a Primeira Grande Guerra”42. As mudanças ocorreram
após publicações como Batman, o Cavaleiro das Trevas (Frank Miller), Watchmen e O
Monstro do Pântano (Alan Moore), Maus (Art Spiegelman), entre outras. Miller e outros
autores revolucionaram as HQs naquele momento, tendo um olhar e uma abordagem diferente
para os heróis e vilões. O cultuado autor e desenhista Will Eisner, que dedicou sua vida à
legitimação dos quadrinhos como forma de arte, elogiou a série, “tiveram a coragem de deixar
Frank Miller assumir Batman e levá-lo para outra dimensão, digamos assim”.43
A autora Beatriz Sequeira de Carvalho deixou claro como o ano de 1986 destacou-se
dos anteriores:
1986 foi o ano, como nenhum outro, que trouxe obras que marcariam
e modificariam o que se compreendia por quadrinhos até então, com
trabalhos mais politizados e recheados de crítica política e social.
Dentre estas obras está a “tríade” de 1986: Batman: o cavaleiro das
trevas, de Frank Miller; Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, e
Maus, de Art Spiegelmen. 44

Na Inglaterra, o artista Alan Moore estava ganhando muito destaque no início dos anos
de 1980. Moore já havia recebido prêmios no mercado britânico de quadrinhos quando foi
convidado para dar continuidade à série Monstro do Pântano (personagem criado por Len
Wein) da editora DC Comics. Certamente, a obra que o fez ganhar mais destaque foi Watchmen,
uma desconstrução do gênero super-herói também publicada pela DC Comics em uma
maxissérie de doze partes, entre 1986 e 1987. A história foi construída de forma independente
dos outros universos da DC Comics. Durante a publicação da série, Moore fez diversas
experimentações em Watchmen, utilizando um mundo hiper-realista onde os super-heróis
enfrentam situações políticas semelhantes às do mundo real.
Os roteiros de Alan Moore forçaram questionamentos sobre o que aconteceria se
pessoas se vestissem como justiceiros e começassem a combater o crime nas cidades ou
interferissem em guerras, como a do Vietnã. Esse tipo de narrativa foi algo inovador para a
época, pois antes pouco se refletia sobre os impactos sociais, políticos, psicológicos, culturais
e econômicos caso super-heróis viessem a existir de fato.

42
GHIROTTI, J. C. Frank Miller e os quadrinhos: pelo que vale a pena morrer. Tese (Doutorado) – Programa
de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicações e Artes, USP, São Paulo, 2017, p. 97.
43
SCHUMACHER, Michael. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos. São Paulo: Globo, 2013, p. 280.
44
CARVALHO, Beatriz Sequeira de. O processo de legitimação cultural das histórias em quadrinhos.
Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicações e
Artes, USP, São Paulo, 2017, 101.

31
Figura 11 - Capa da edição defitiva de Watchmen, publicada pela
Panini Books. Imagem retirada de:
<https://www.amazon.com.br/Watchmen-Edi%C3%A7%C3%A3o-
Definitiva-V%C3%A1rios-Autores/dp/857351549X> Acesso em:
10/01/2018.

Neste cenário, Beatriz Sequeira de Carvalho apontou que Batman, o Cavaleiro das
Trevas, e Watchmen
ambas lançadas pela DC Comics, uma editora do mainstream, se
tornaram dois dos maiores clássicos de todos os tempos ao
descontruírem o conceito do super herói, trazendo-os para uma “Era
das trevas”, era essa mais realista e muito mais sombria. Entretanto, foi
Maus – agora sim o livro – de Art Spiegelman, que mais transformaria
o meio.45

Em 1980 a publicação de Maus, de Art Spiegelman, apresentou a biografia de Vladek,


pai do autor, sobrevivente de Aushwitz. Spiegelman criou uma narrativa muito interessante e

45
CARVALHO, Beatriz Sequeira de. O processo de legitimação cultural das histórias em quadrinhos.
Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicações e
Artes, USP, São Paulo, 2017, p. 101.

32
diferente das publicadas até então. Utilizou-se da forma antropomórfica para retratar as
personagens: judeus como ratos, nazistas como gatos, poloneses como porcos, americanos
como cachorros, etc.
Além disso, a história se divide em duas linhas temporais: o passado, que conta a
trajetória de seu pai, antes, durante e depois do aprisionamento em Aushwitz; e o tempo
presente, onde Art entrevista seu pai para produção da HQ. Neste tempo presente são abordadas
tensões como o suicídio da mãe de Art Spiegelman e os problemas do relacionamento
conturbado entre pai e filho. Trata-se de uma narrativa sobre a experiência individual delicada,
mas que fez parte de um cenário histórico mundial.

Figura 12 – Capa de Maus, história completa. Imagem


retirada de: <https://www.saraiva.com.br/maus-a-historia-
de-um-sobrevivente-177012.html> Acesso em: 17/01/2018

Em 1986, o roteirista Frank Miller publicou Batman, o Cavaleiro das Trevas, publicada
mensalmente de março a junho do mesmo ano. Com ilustrações de Klaus Janson e cores de
Lynn Varley, Miller criou um justiceiro tão questionável quanto os criminosos que enfrentava.
Em um mundo distópico, foi criado um Batman diferente dos outros: “estava perto dos sessenta
anos, aposentado do combate ao crime, assombrado por seu passado e tão irritado com a

33
violenta sociedade em que vivia que abandonou a aposentadoria”.46 O empresário e filantropo
Bruce Wayne, alter ego do herói Batman, investia na reabilitação de criminosos que eram seus
antigos inimigos e que se encontravam no Asilo Arkham. O cenário social de Gotham City fez
com que os fantasmas do passado assolassem a mente de Bruce. O assassinato de seus pais,
junto à dúvida em retornar a ser o Homem-Morcego após a morte do segundo Robin (Jason
Todd), o levou a aposentar sua identidade como herói.
Miller neste trabalho apresentou seu posicionamento conservador de forma mais
explícita, pois agora Batman possuía as suas próprias “leis”. Miller explorou as ações de
Batman e seus impactos, sempre sendo analisado pelos jornais televisivos que discutiam a
grande violência de Batman com suas vítimas, e os altos níveis de criminalidade incontroláveis
pelo Estado,
De certo modo, foi com este trabalho que Miller intensificou e marcou
sua visão conservadora, que não havia ficado expressa claramente em
Demolidor, e desenvolveu mais os elementos de realismo que ele havia
usado naquela obra. Batman é um fora da lei e tem “essencialmente
uma personalidade fascista” (SABIN, 1993, p. 8), combatendo o crime
em seus próprios termos e agindo como juiz, júri e executor.47

Joaquim Ghirotti escreve que na obra de Miller, Batman pode ser analisado de duas
maneiras. A primeira delas como parte do pensamento conservador norte-americano de
vigilantismo. A segunda seria Batman mostrado como anti-governo, desconsiderando a
burocracia e as regras do Estado:
No que pode ser considerado um paralelo com o pensamento
conservador norte-americano, Batman é mostrado como anti-governo,
combatendo de forma independente as leis e a força policial com o
objetivo de fazer “o que é direito”, desconsiderando a burocracia e as
regras do sistema, para entregar a justiça, instantânea e necessária.
Miller também retrata o impacto dessa justiça fora de lei: a aprovação
e participação de elementos conservadores da sociedade nessas ações.
Um grupo de jovens veem Batman como um exemplo de justiça a ser
seguido; eles pintam seus rostos de branco, desenham o logo de Batman
neles e se autodenominam “os filhos de Batman” castigam criminosos.
Assim, Batman cria um exército de seguidores e devotos, justiceiros
que acreditam nele e seguem suas ações cegamente. Desta forma, pode-
se afirmar que Miller atirou o personagem numa mistura de pós-

46
SCHUMACHER, Michael. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos. São Paulo: Globo, 2013, p. 280.
47
GHIROTTI, J. C. Frank Miller e os quadrinhos: pelo que vale a pena morrer. Tese (Doutorado) – Programa
de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicações e Artes, USP, São Paulo, 2017, p. 93.

34
modernismo, violência e análise política dos anos 1980 e o resultado
foi algo sombrio, duro e estranho.48

Entretanto, ao dizer que Batman é um “anti-governo” que desconsidera a burocracia


para entregar a justiça instantânea e necessária, Ghirotti ignora o fato que o vigilante assume
sobre si as atribuições do Estado para aplicar suas definições de justiça; ainda com base nas
leis, mas de forma mais rápida que as legalmente possíveis para as instituições. Desse modo,
Batman pode ser anti-governo, mas não um anti-Estado, pois não questiona as estruturas dos
aparatos estatais. Pode-se dizer que uma vez que, para Batman, as instituições não funcionam,
o vigilante utiliza da força para retomar a ordem e o status quo de seu interesse.
Na HQ, os seguidores de Batman faziam parte da Gangue dos Mutantes, uma gangue
composta por jovens criminosos que assolavam Gotham City. Não diferente de qualquer outro
criminoso, Batman os tratava de forma fria e implacável, aplicando sua “justiça” sobre eles.
Inclusive já havia confrontado o líder dos Mutantes, que desencadeou na prisão do mesmo.
Antes de ser preso, o líder dos Mutantes alegou para as câmeras que Batman utilizou armas
militares durante a batalha, e por isso não passava de um covarde; ainda declarou que Gotham
pertencia aos Mutantes. Batman responderia à provocação de forma animalesca, permitindo
que o líder mutante fugisse da prisão com a ajuda do comissário de polícia Gordon para que
encerrassem o assunto de uma vez por todas. Fugindo pelos encanamentos da prisão, o líder
mutante, ao concluir sua fuga, se encontraria em um lixão rodeado por todos os seus seguidores
da gangue com Batman o esperando para o combate. Desta vez, sem armas ou equipamento de
proteção. Batman diz ao líder dos Mutantes: “Você... ainda não entendeu. Isso não é uma
fossa... É uma mesa de cirurgia... E eu sou o médico”49; o líder foi humilhado de forma fria e
cruel na frente de seus seguidores. Os ex-mutantes agora se denominam filhos do Batman. Um
deles aparece na televisão com o símbolo do morcego no rosto, disse “Os mutantes estão
mortos! São coisa do passado! Esta é a marca do futuro! Gotham City pertence ao Batman!” ...
“Não esperem mais declarações. Os filhos do Batman não falam. Nós agimos. Que os
criminosos de Gotham se preparem. Eles estão prestes a entrar no inferno!”50.

48
GHIROTTI, J. C. Frank Miller e os quadrinhos: pelo que vale a pena morrer. Tese (Doutorado) – Programa
de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicações e Artes, USP, São Paulo, 2017, p. 93.
49
MILLER, Frank. Batman: o cavaleiro das trevas. Barueri: Panini Books, 2011, p. 105
50
Ibidem, p. 106.

35
Figura 13 – Capa Batman: The Dark Knight Returns (30th Anniversary Edition. Dc Comics, 2016).

Ao longo do século XX, as histórias em quadrinhos criaram, em seus universos


ficcionais, personagens que “testemunharam” eventos políticos e sociais de seus contextos de
produção51. Por causa dessas e outras obras, o final da década de 1980 e o início da década de
1990 foi o momento em que as histórias em quadrinhos de fato voltaram-se a um público
adulto. Dessa forma, criou-se um conteúdo mais denso e reflexivo em suas narrativas, deixando
de lado o teor cômico e pastelão do início da indústria dos quadrinhos. Existem então
quadrinhos para todos os gostos e todas as idades, uma forma de arte que alcança todas as
pessoas, de todas as classes, gêneros e idades.

51
CALLARI, Victor. Guerra Civil - Super Heróis: terrorismo e contraterrorismo nas histórias em quadrinhos.
São Paulo: Criativo, 2016, p. 19.

36
Capítulo II: Frank Miller e “O Cavaleiro das Trevas”

Frank Miller nasceu em Olney, no estado de Maryland (EUA) em 27 de janeiro de 1957,


porém foi criado em Vermont. Miller mudou-se para Nova York e na década de 1970 já
trabalhava com quadrinhos na editora Gold Key Comics. Em uma entrevista à Comic Con
Experience São Paulo 2015 (CCXP-SP 15), Miller declarou:

minha mãe diz que eu tinha 5 anos quando anunciei que ia desenhar
gibi. Eu preferia morrer de fome do que não trabalhar com quadrinhos.
Quando eu comecei, ninguém vivia disso – você tinha quadrinhos como
um trabalho extra. Eu fui um dos primeiros da minha geração que pôde
viver de quadrinhos. 52

Miller trabalhou em diversas editoras no início de sua carreira como ilustrador


substituto, e por conta de seu traço expressionista conquistou espaço dentro da Marvel Comics,
assumindo o título do personagem Demolidor – um advogado que, ao ser cegado por cilindros
radioativos, ganha sentidos sobre-humanos – como desenhista e com roteiros a cargo do
veterano Roger McKenzie. Foi a participação na série Demolidor que transformou Miller num
astro dos quadrinhos, onde assumiu a arte do título em 1979. Em Demolidor número 168, de
1981, destacou-se por mudar o tom da série ao assumir também os roteiros, abandonando as
grandes aventuras super-heróicas e focando em histórias urbanas, com personagens mais perto
da realidade e uma ambientação mais sombria e violenta de Nova York. A estética adotada por
ele fazia com que cada ângulo da cidade deixasse explícita a angústia e agressividade que
oprimia as pessoas, com páginas cheias de viadutos, arranha-céus, lugares sujos e apertados,
retratando a crueza do cenário urbano. Como discutiu o Joaquim Ghirotti, Miller abordou
representações sobre os conceitos de “heroísmo, sacrifício, princípios, vida em comunidade,
perdão, redenção, vingança e violência”53, e também posteriormente em sua carreira, questões
como a “percepção de violência, a política externa dos Estados Unidos e da guerra
anticomunista na década de 1980”54 numa perspectiva conservadora. Miller criou a
personagem Elektra Natchios na série Demolidor, transformando-a num dos grandes

52
ASSIS, Érico Gonçalves de. CCXP 2015 | “Preferia morrer de fome do que não trabalhar com quadrinhos”,
diz Fran Miller em painel. Omelete. Disponível em: <https://omelete.uol.com.br/quadrinhos/noticia/ccxp-2015-
preferia-morrer-de-fome-do-que-nao-trabalhar-com-quadrinhos-ciz-frank-miller-em-painel/> Acesso em:
23/11/2017.
53
GHIROTTI, J. C. Frank Miller e os quadrinhos: pelo que vale a pena morrer. Tese (Doutorado) – Programa
de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicações e Artes, USP, São Paulo, 2017, p.
104.
54
Idem.

37
personagens femininos da Marvel. Dentro da Marvel Comics, Miller também participou das
histórias de outros títulos, como: Homem-Aranha, Capitão América, Hulk, Wolverine,
Justiceiro, Luke Cage, Punho de Ferro e John Carter.55

Figura 14 – Elektra Natchios e Demolidor. Daredevil nº 168. Imagem retirada de:


<https://canaltech.com.br/quadrinhos/canaltech-indica-hqs-do-demolidor-para-ler-antes-da-
segunda-temporada-59701/> Acesso em: 15/12/2017.

55
MILLER, Frank. Demolidor, volume 3. Barueri: Panini Books, 2016, p. 288.

38
Figura 15 – Demolidor e Elektra lutam juntos. Daredevil nº 176. Acervo pessoal.

39
Com o grande sucesso de seu trabalho na série do Demolidor, que deixava de ser um
personagem à beira do cancelamento para se tornar um dos títulos mais atrativos da Marvel
Comics publicado mensalmente, a carreira de Miller se encontrava em plena ascensão.
Insatisfeito com o modelo de trabalho contratado (work-for-hire), onde era pago por página e
não possuía os direitos autorais e artes originais sobre qualquer criação que fizesse para a
Marvel, Frank Miller conseguiu que a principal editora concorrente, a DC Comics, oferecesse
royalties superiores e direitos de propriedade sobre sua nova minissérie, Ronin, que misturava
elementos samurai com ficção científica futurista.56
Ele já havia trabalhado com Batman em 1980, como ilustrador de uma história especial
de natal, e a boa recepção de Ronin possibilitou que, em 1986, Miller, o ilustrador e arte-
finalista Klaus Janson e a colorista Lynn Varley, produzissem a aclamada história em
quadrinhos “Batman – The Dark Knight Returns” (no Brasil, “Batman, o Cavaleiro das
Trevas”), publicada mensalmente de março a junho daquele ano. Seus trabalhos para a Marvel
e DC tiveram significado marcante para a história das histórias em quadrinhos, tornando-se
referência para autores das décadas seguintes. Suas obras trouxeram diferentes “referenciais
estéticos para suas revistas que aproximaram sua narrativa de narrativas cinematográficas” 57.
Na introdução que escreveu em 2011, para a edição definitiva brasileira de Batman, O
Cavaleiro das Trevas, da editora Panini Comics, Miller comentou sobre o aumento da
criminalidade na cidade de Nova York e como interpretou os noticiários televisivos
apresentados na época. Miller apontou também sua opinião sobre as tiras diárias de alguns
jornais norte-americanos que tratavam desses assuntos, e como elas causavam impacto na
sociedade, podendo assim, ser poderosas:
Então os anos 80, adequadamente chamados de Era Reagan, chegaram.
Era uma época ótima para acompanhar os noticiários e produzir
histórias em quadrinhos. Um período repleto de graves ameaças, forças
impressionantes e eventos incrivelmente todos produzidos pela mídia.
O índice de criminalidade explodiu. A comédia também. Eram tempos
cheios de raiva, acidez e humor. E a televisão mostrou a que nível a
estupidez poderia chegar. Mesmo que apenas por um momento. Como
um ávido leitor de jornais, fiquei impressionado com duas coisas.
Primeira: o mundo estava ficando louco. “Não dá pra acreditar nisso!”
era meu primeiro pensamento mais recorrente. Segundo, todos os
jornais, com exceção daquela velharia retrógada de Nova York,
publicavam tirinhas diárias que, sem banalizar o que estava

56
HOWE, Sean. Marvel Comics: a história secreta. São Paulo: Leya, 2013. Edição Kindle.
57
CALLARI, Victor. Guerra Civil - Super Heróis: terrorismo e contraterrorismo nas histórias em quadrinhos.
São Paulo: Criativo, 2016, p. 87.

40
acontecendo, mostravam o quanto a astúcia, a caneta e o papel podem
ser poderosos.58

O interesse de Miller não estava em desenhar e escrever sobre super-heróis em roupas


com cores extravagantes, mas sim em contar histórias com teor mais adulto. Porém, Miller
utilizou os super-heróis para passar “mensagens” aos leitores. Em sua passagem pelo título do
Demolidor, a mensagem apresentada era um retrato pessimista da violência que excedia o
alcance da justiça. Já em Batman, o vigilante não suporta mais a violência, abandonando a
aposentadoria e tornando-se tão violento quanto seus inimigos, com humor irascível, pois,
segundo o autor, a justiça não dava conta da criminalidade. Naquele momento, o autor deixou
mais claro suas posições sobre a criminalidade e a sensação de impunidade que sentia. Em
entrevista durante o período que esteve na Marvel, Miller disse que já havia sido assaltado duas
vezes em Nova York, e a experiência o havia deixado com muita raiva, que ele acabou
transferindo diretamente para seus quadrinhos. Assim, Miller contou como foi necessário fazer
um Batman diferente dos que já haviam sido feitos:
O Cavaleiro das Trevas é, obviamente, uma história do Batman. Em
grande parte, procurei usar a escalada da criminalidade ao meu redor
para retratar um mundo que precisava de um gênio obsessivo, hercúleo
e razoavelmente maníaco para pôr as coisas em ordem. Mas isso era
apenas metade do serviço. Eu não guardei meu veneno mais poderoso
pro Coringa ou pro Duas-Caras, mas para as insípidas e apelativas
figuras das mídias que cobriam de forma tão pobre e os gigantescos
conflitos daquela época.59

Possivelmente, Miller canalizou suas frustrações e o ódio à violência de forma também


violenta. Em Batman, o Cavaleiro das Trevas podemos perceber como o autor acredita que a
justiça aplicada pelo Estado está falida, e que seria necessário um vigilante que andasse acima
da lei, alguém “razoavelmente maníaco”60 que cumprisse o papel de resolver os conflitos
daquela sociedade por meio da violência. Miller focou não na dicotomia de bem e mal, herói e
vilão, e sim na consciência das personagens e como reagem ao trauma e violência. As noções
de certo e errado até então estabelecidas nas histórias em quadrinhos são deixadas de lado,
problematizando as ações dos super-heróis que agem de forma autônoma ao Estado e à margem
da lei. Para alguns autores, como Victor Callari, a obra de Miller é uma crítica à New Right e

58
MILLER, Frank. Introdução de Batman: Cavaleiro das Trevas – Edição definitiva. Barueri: Panini Books,
2011.
59
Idem.
60
Idem.

41
ao neoliberalismo de Ronald Reagan, pois apresentou a marginalização após o fim das políticas
de bem-estar social e a despreocupação do governo com as necessidades da população pobre e
a violência dentro dos EUA.61 Ghirotii, em sua dissertação sobre Frank Miller, apresenta os
elementos utilizados na obra de Miller:

[...] Miller faz uso de um outro elemento recorrente na história de heróis


clássicos: as circunstâncias, poderes, personagens e cenário
extraordinários que ele utiliza nos temas e conflitos que apresenta. Essa
crença no uso do extraordinário e seu poder de atração fará com que as
histórias em quadrinhos de super-heróis utilizem confrontações
incomuns como catalizador para discussões sobre justiça, ética e
sociedade que eles pretendem trazer à tona.62

Um dos pontos catalisadores, foi a questão moral e o papel da justiça, utilizando


ambiente social violento como pano de fundo para a sua narrativa, diferenciando-o do
fantástico das HQs de super-heróis criadas até então. As ações dos super-heróis tornaram-se
cada vez mais problemáticas, criando representações da realidade que questionam o papel da
política, das grandes mídias, da justiça e do herói. Talvez esses questionamentos e
problematizações sejam a maior contribuição de Frank Miller para o mundo dos quadrinhos.

1. Os vigilantes de Miller: Batman e Demolidor

Nas décadas de 1970 e 1980 a situação econômica dos guetos negros dos centros das
cidades norte-americanas piorou. Os cortes em políticas sociais atingiram diretamente os
subúrbios, que permaneceram desproporcionalmente pobres63. O sociólogo Loïc Wacquant
investigou o aumento da política de encarceramento, e apresentou o aumento desproporcional
de negros em penitenciárias nas décadas de 1970 e 1990:

É verdade que os negros sempre estiveram sobre-representados no seio


das penitenciárias, e isso por duas razões. A primeira é que eles
cometem proporcionalmente mais crimes que os brancos, em função
da diferença de estatuto sócio-econômico entre as duas comunidades
(um afro-americano entre três vive abaixo da linha oficial de pobreza

61
CALLARI, Victor. Guerra Civil - Super Heróis: terrorismo e contraterrorismo nas histórias em quadrinhos.
São Paulo: Criativo, 2016, p. 90.
62
GHIROTTI, J. C. Frank Miller e os quadrinhos: pelo que vale a pena morrer. Tese (Doutorado) – Programa
de Pós-graduação em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicações e Artes, USP, São Paulo, 2017, p. 112.
63
PURDY, Sean. McGlobalização e a Nova Direita: 1980-2000. In: KARNAL, Leandro (et al.). História dos
Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2017. p. 249.

42
contra um euro-americano entre dez) e da segregação extrema que lhes
é infringida nas cidades. A segunda é a discriminação que assola todos
os patamares do sistema judiciário (CRUTCHFIELD et al., 1994;
DONZIGER, 1996, p. 99-129): por "crime igual" os negros são
frequentemente mais detidos, mais vezes denunciados diante dos
tribunais e mais pesadamente condenados que os brancos. Mas o
agravamento espetacular da "desproporção racial" no período recente
sugere que uma nova relação se estabelece entre o encarceramento e a
divisão de casta que sustenta a estrutura da sociedade americana.64

Wacquant também apontou que de 1973 a 1982, cerca de quarenta milhões de


americanos, foram vítimas de incidentes criminais.65 As obras de Miller, Demolidor (1979-
1982) e Batman, o Cavaleiro das Trevas (1986), tiveram o caos social do contexto de sua
elaboração representado nas HQs.
Os personagens Demolidor e Batman possuem um ponto em comum: ambos são
vigilantes. Entretanto, existem algumas diferenças que precisam ser destacadas para que
possamos compreender a transição do olhar de Miller para a violência, os criminosos e o papel
das instituições jurídicas. Os personagens possuem origens diferentes dentro da hierarquia
social. Demolidor ficou cego por conta de produtos radioativos e presenciou o momento em
que seu pai foi morto após se recusar a perder uma luta de boxe armada; tornou-se vigilante
para saciar sua sede de vingança. Matt Murdock (Demolidor) cresceu pobre, melhorou a
qualidade de vida após ter se formado na faculdade e ter feito certo sucesso como advogado de
causas aparentemente perdidas. Batman veio de uma família milionária e teve seus pais mortos
durante um assalto a mão armada; tornou-se vigilante também por motivo de vingança;
utilizava seus privilégios na sociedade para se especializar em artes marciais, ciências e
conhecimentos em novas tecnologias; é dono de um conglomerado de empresas que são
praticamente donas de Gotham City.
Os dois vigilantes possuem uma proporção em sua atuação que os difere. Demolidor
atua somente no bairro (Hell’s Kitchen), e procura levar esses criminosos para que as
instituições jurídicas apliquem a lei. Entretanto, quando esses criminosos saem impunes,
Demolidor os procuram para fazer “justiça”. Diferentemente do Demolidor, Batman não atua
apenas em um bairro, mas em toda a cidade (Gotham City), e sua relação com os criminosos e
os bairros periféricos é fria e livre de solidariedade pelas condições que levam ao crime.

64
WACQUANT, Loïc. Crime e Castigo nos Estados Unidos: de Nixon a Clinton. Revista de Sociologia e
Política. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
44781999000200004&script=sci_arttext&tlng=es> Acesso em: 20/04/2018.
65
Idem.

43
Ambas as obras retratam um ambiente muito violento, muitas vezes inspirados na realidade e
impulsionados pela ficção. Na HQ Batman, o Cavaleiro das Trevas existem os “problemas
internos” de aumento da violência e criminalidade nos EUA, e os “problemas externos”, a
ameaça comunista e o suposto ataque nuclear soviético.
Beirando os 60 anos, Bruce Wayne estava há mais de dez anos sem atuar como o
vigilante Batman. Ele acreditou na possibilidade de reabilitar criminosos perigosos do Asilo
Arkham, então investiu parte de sua fortuna em tratamentos psicológicos para realização da
reabilitação. O tratamento parecia ter sido um sucesso com o primeiro paciente, Harvey Dent
(Duas-Caras), mas infelizmente foi falho, fazendo Bruce repensar sobre se o que estava
fazendo era o correto.
No segundo momento, Batman volta à ativa e age da forma mais violenta e cruel contra
os criminosos da cidade. A maioria deles são jovens que fazem parte da Gangue dos Mutantes,
como já foi dito, Batman desafiou seu líder e o humilhou na frente de seus seguidores. No
terceiro momento, Batman começa a acreditar que são esses jovens o futuro, e que precisam de
um novo líder que proponha acabar com o crime. Deste modo, parece que Miller, em Batman,
desacredita na justiça do Estado e nas forças policiais. Enquanto em Demolidor, Murdock leva
esses criminosos para que o Estado aplique a pena, em Batman existe um legado para as novas
gerações, em espelhar-se na figura do vigilante para fazer justiça com as próprias mãos.
Em Demolidor número 183 são retratados problemas com o uso de drogas e o porte de
armas por crianças e adolescentes. Na história, uma garota chamada Mary tem uma overdose
na sala de aula por conta da droga nomeada na HQ de “pó dos anjos” (Figura 16). Demolidor
tenta levá-la o mais rápido possível ao hospital, mas infelizmente a garota vem a óbito. O irmão
da garota, Billy chega ao hospital desesperado e recebe a notícia de que sua irmã está morta por
overdose (Figura 17). Billy promete vingança ao traficante e volta para casa enfurecido. Seus
pais estão numa discussão e ainda não sabem da morte da filha. Então, Billy entra no quarto
dos pais e pega algo “rígido, frio e cheio de morte. Como sua irmã.”66 (Figura 18).

66
MILLER, Frank. Demolidor, volume 3. Barueri: Panini Books, 2016, p.16.

44
Figura 16 - Demolidor chega à escola e leva Mary ao hospital. Daredevil nº 183, p. 14. Acervo pessoal.

45
Figura 17 - Billy chega ao hospital e recebe a notícia que sua irmã está morta. Daredevil nº 183, p 15. Acervo
pessoal.

46
Figura 18 - Billy promete vingança à morte de sua irmã e pega a arma de seu pai. Daredevil nº 183, p 16.
Acervo pessoal.

47
Miller trabalhou em Demolidor a banalização da violência, onde o ato violento funciona
como uma fórmula para resolver problemas estruturais, como no caso citado, por exemplo,
onde a criança pretende matar um traficante que vendia drogas para sua irmã. Isso faz Matt
Murdock questionar seu papel enquanto o vigilante Demolidor e qual o modelo de justiça ele
aparenta defender perante a sociedade nos momentos que combate o crime em Hell’s Kitchen.
Outro exemplo é Demolidor número 191, onde mais um garoto tem acesso a uma arma
e desta vez não foi impedido de usá-la. A história começa com Demolidor jogando roleta russa
sentado na cadeira ao lado de Mercenário, um de seus inimigos, que está hospitalizado (Figura
19). Em silêncio com o revólver calibre 38 na mão, Demolidor está pensando sobre que “o
julgamento de Hank Jurgens custou à sua família cada centavo que eles tinham. Eu garanti o
dinheiro da psicoterapia de Chucky. Os meses se passaram e, com eles o trauma. Era o que eu
pensava... Mas no dia em que Jurgens foi sentenciado, uma criança maldosa fez um comentário
a mais... E alguma coisa se partiu na mente de Chucky. Só Deus sabe onde ele achou a arma.
Mesmo para uma criança, elas são fáceis de manipular. Era um revólver calibre 38...
exatamente como o do pai dele. [...] O que levanta a pergunta... Quando Chucky apertou o
gatilho, ele estava sendo o pai... Você, Mercenário.... Ou eu? A propósito, a criança que Chucky
baleou sobreviveu. E Chucky também... de certa forma. Não vamos saber como ele realmente
está até que volte a falar...” 67 (Figura 20)
Chucky tinha Demolidor como ídolo e o pai, Hank Jurgens, como seu referencial. O
garoto havia assistido uma gravação da luta entre Demolidor e Mercenário e presenciou o
momento em que Demolidor impedira seu pai de cometer um crime. Demolidor, de certa
maneira, se culpa pelos problemas psicológicos de Chucky. “Estou mostrando que o bem
sempre vence, que o crime não compensa, que a cavalaria está sempre a caminho... ou que
qualquer idiota de punhos no lugar do cérebro pode conseguir o que quer se for rápido, forte e
violento o bastante? Estou combatendo a violência ou ensinando a cometê-la?”68, reflete
Demolidor (Figura 21).

67
Demolidor, volume 3. Barueri: Panini Books, 2016, p. 216.
68
Ibidem, p. 229.

48
Figura 19 - Demolidor está no hospital ao lado do Mercenário, assassino de Elektra, enquanto joga roleta
russa com um revólver calibre 38. Daredevil nº 191, p. 215. Acervo pessoal.

49
Figura 20 – Cena em que Chucky decide pegar uma arma e atirar num colega de escola que fez um
comentário maldoso sobre a prisão de seu pai. Daredevil nº 191, p. 216. Acervo pessoal.

50
Figura 21 – Demolidor joga roleta russa com Mercenário enquanto reflete sobre seu papel como justiceiro.
Daredevil nº 191, p. 229. Acervo pessoal.

51
Nesta obra, Miller preocupa-se com a responsabilidade do vigilante perante a
sociedade, com suas atitudes e seus efeitos. Ele retratou a vulnerabilidade de pessoas de um
bairro periférico, e nos mostrou como essa população estava à mercê de uma violência
enraizada no pensamento social. E, também, como a violência pela violência pode ser
prejudicial e problemática naquele meio. Em Batman, o Cavaleiro das Trevas, parece-nos que
Miller já não questiona o papel do vigilante, e sim o legitima como a melhor via para
estabelecer justiça.
Em Batman, o Cavaleiro das Trevas, a violência e a criminalidade é levada ao extremo.
O ambiente criado por Miller é escuro, sujo, aterrorizante e claustrofóbico. Nem um lugar
parece seguro em Gotham City, o Estado representado não dá a mínima para a população. Até
certo ponto, Miller faz com que o leitor acredite que seja necessário a presença do vigilante.
Para exemplificar essa sensação temos o momento em que uma garçonete, Margaret Concoran,
está voltando para casa de metrô. O narrador explica que Margaret não tinha condições
financeiras para pagar suas dívidas ou fazer a cirurgia de que tanto precisava, e trabalhava
quase que exclusivamente para sustentar os filhos de forma digna. Naquele dia, a garçonete
felizmente recebeu uma gorjeta de dez dólares, e decidiu gastá-la com tintas para o filho. No
meio da viagem, rapazes da gangue dos Mutantes puxam-lhe a bolsa e tudo que ela pensa é no
estojo de tintas que comprou para seu filho. Ela suplica para que devolvam sua bolsa. O que
Margaret não sabia é que os criminosos haviam colocado uma bomba dentro de sua bolsa,
causando uma explosão no metrô e sua morte (Figura 22).
Entretanto, as ações de Batman são questionáveis e, para dizer o mínimo, autoritárias.
Batman aproveita-se de sua posição social para aniquilar criminosos, mas não questiona em
momento algum o que os levou para aquela situação. Para ele, o culpado pela violência desses
criminosos é o Estado que não faz justiça, mas em momento algum questiona por que esse
Estado marginaliza cada vez mais essa população, não oferecendo oportunidade de escolha

52
Figura 22 - Margaret Concoran sofre ataque pela Gangue dos Mutantes no metrô. Batman, o Cavaleiro das
Trevas – Edição Definitiva. Panini Books, 2011, p. 75. Acervo pessoal

53
Miller insere na narrativa uma garota destemida que decide ser uma seguidora de
Batman, tornando-se a nova Robin. Batman em nenhum momento preocupou-se com a
integridade da jovem, colocando-a em perigo diante de suas ações contra os criminosos (Figura
23). Diferente de Demolidor, fica claro que Batman acredita que suas ações devem ser
seguidas, e que a violência é sim um meio para acabar com o crime. Batman ensina aos ex-
integrantes da Gangue dos Mutantes, que agora se denominam Filhos de Batman, a usarem os
próprios punhos, pois a arma de fogo é “a arma do inimigo”69, colocando-se, ainda, como a
própria lei personificada (Figura 24).

Figura 23 - Batman apresenta a nova Robin, Carrie, para Alfred. Batman, o Cavaleiro das Trevas – Edição
Definitiva. Panini Books, 2011, p. 97. Acervo Pessoal.

Figura 24 – Batman explicando seus novos seguidores como devem agir. Batman, o Cavaleiro das Trevas
– Edição Definitiva. Panini Books, 2011, p. 177. Acervo Pessoal.

69
MILLER, Frank. Batman: o cavaleiro das trevas. Barueri: Panini Books, 2011, p. 177.

54
Como foi abordado pelo sociólogo Loïc Wacquant, na década de 1980 houve uma forte
política de encarceramento, desencadeando na superlotação de presídios. Na HQ há uma cena
que oitenta e sete membros da Gangue dos Mutantes estão presos numa mesma cela, e as
autoridades pretendem levá-los a uma penitenciária do Estado até que aguardem julgamento.
O advogado dos jovens presos alega que muitos deles ainda são menores de idade e que
deveriam voltar para a casa de seus pais. Entretanto, os pais fazem um abaixo assinado para
que os filhos continuem presos. O Estado e os próprios familiares parecem acreditar que o
encarceramento é solução para resolver os problemas referentes a violência e criminalidade.
Nessa mesma cena, os presidiários estão assistindo televisão, quando entra no ar um
informe extraordinário e o presidente – que aparenta ser uma caricatura de Reagan – vestido
de astronauta traz boas e más notícias. As boas são que os soviéticos retiraram suas tropas da
ilha de Corto Maltese (lugar fictício). As más são que “...bem, parece que os soviéticos são
péssimos perdedores, sim. E como são...”70 No mesmo instante, Clark Kent (Superman) escuta
a notícia e voa aos céus para impedir que a bomba nuclear que os soviéticos enviaram para os
EUA atinja o solo. Esse ambiente de terror da Guerra Fria é mais um elemento que Miller
utiliza na HQ, mas que fica totalmente nas mãos de Superman. O presidente e Superman
possuem um acordo que determina a forma como o super-herói pode agir: junto ao Estado para
proteger à nação; ao contrário de Batman que age de forma autônoma ao Estado.
A preocupação de Batman não é, neste caso, a Guerra Fria, mas os conflitos que existem
em Gotham City. Pode-se dizer que Batman pretende, primeiramente, “consertar” o caos social
aplicando a sua lei, agindo de forma autônoma e com a ajuda de uma nova geração de
vigilantes. Para ele, a sociedade necessita de um líder moral, justo e impiedoso, na perspectiva
de Miller. Essa perspectiva é muito perigosa, pois representa, de certa maneira, o que uma
parcela da sociedade americana tem o desejo de fazer: justiça com as próprias mãos.

70
MILLER, Frank. Batman: o cavaleiro das trevas. Barueri: Panini Books, 2011, p. 167.

55
Figura 25 - Presos integrantes da Gangue dos Mutantes assistem ao noticiário em que o presidente conta
sobre o possível ataque soviético aos EUA com uma bomba atômica. Batman, o Cavaleiro das Trevas –
Edição Definitiva. Panini Books, 2011, p. 167. Acervo pessoal.

56
Novamente a HQ mostra como a população posiciona-se diante do caos social e das
ações proporcionadas pelo vigilante Batman. Desta vez, o posicionamento foi individualizado
no personagem Peppi Spandeck, um católico que não é favorável às intervenções do vigilante,
mas que tem medo da violência de Gotham City. Peppi estava lendo um jornal quando escutou
os gritos de sua mulher na calçada. Enfurecido, decide enfrentar o bandido:

Um católico praticante, Peppi Spandeck não pode dizer que aprova o


tal Batman. Quando ouve a mulher gritar na rua, ele sabe que deveria
sentir medo. Em vez disso, seus olhos percorrem o sistema de alarme
que lhe custou o lucro de dois meses, e as barras de ferro nas vitrines,
que fizeram sua loja parecer uma prisão. Ele sente o coração acelerado
e lembra que foi tomado por uma fúria insana, mas o assaltante está
fugindo com medo... com medo de Peppi.71

Mais uma vez a narrativa mostra o cenário que aterroriza e amedronta a população de
Gotham City. Nesse caso, a revolta do civil está acima do medo, por isso o personagem decidiu
agir contra o criminoso, mesmo não concordando com as práticas de Batman. A cena encerra-
se com o narrador dizendo que “ninguém se feriu o bastante para interessar a imprensa”,
trazendo à tona a discussão de que a mídia é quem condiciona o que é relevante para ser
noticiado e investigado. Talvez Miller tenha querido mostrar ao leitor que, em meio ao caos, o
simples ataque a uma mulher não teria relevância para a imprensa e para as autoridades.

71
MILLER, Frank. Batman: o cavaleiro das trevas. Barueri: Panini Books, 2011, p. 94.

57
Figura 26 – Na cena, aparece na televisão uma jornalista noticiando a morte de um assassino vestido de
Batman num restaurante. Ao mesmo tempo, um civil, Peppi Spandeck, está em sua loja e ouve os gritos
de sua mulher na calçada. Numa fúria insana Peppi e decide enfrentar o criminoso, e o faz correr de medo.
Batman, o Cavaleiro das Trevas – Edição Definitiva. Panini Books, 2011, p. 94. Acervo pessoal.

Temos três exemplos de personagens que através de suas ações diante do cenário social
representando, mostram-se favoráveis às intervenções do vigilante. A primeira delas é Carrie
Kelley, uma garota que vive em meio à violência de Gotham e admira o vigilante. Carrie decide
ser uma seguidora de Batman, vestindo-se com um disfarce e combatendo o crime. Ela tem a
oportunidade de enfrentar criminosos junto a Batman, se tornando a nova Robin. O segundo
exemplo são os ex-seguidores da Gangue dos Mutantes que, após a queda do líder Mutante,
passaram a denominar-se Filhos de Batman. Os Filhos de Batman abrem mão da violência civil
para fazer justiça com as próprias mãos, agindo conforme as instruções do vigilante. O terceiro
é Peppi Spandeck que, mesmo discordando das atividades do vigilante, legitima-as ao agir de
forma violenta contra um criminoso que atacou sua mulher. Ambos possuem uma familiaridade
com a conduta do vigilante, agindo de forma violenta e autônoma, acima de lei, buscando o
que na ótica de Miller seria a justiça que não é provida pelo Estado ou pelas instituições
jurídicas e forças policiais.

58
2. A representação da mídia televisiva em “Cavaleiro das Trevas”

Em Batman, o Cavaleiro das Trevas, as mídias televisivas representadas têm um papel


crucial diante das questões relacionadas ao caos social vivenciado por Gotham City e pelo
ataque soviético. Durante toda a narrativa a imprensa informa e ao mesmo tempo dá forma à
opinião pública. Na HQ, quando a imprensa aparece, o enquadramento transforma-se na forma
de uma televisão para representar momentos que estão sendo noticiados. Como, por exemplo,
na cena abaixo, onde o repórter noticia o acidente sofrido por Bruce Wayne durante a final de
uma de corrida de automóveis (Figura 27).

Figura 27 – Jornal televisivo noticiando o acidente sofrido por Bruce Wayne durante uma corrida de
automóveis. Batman, o Cavaleiro das Trevas – Edição Definitiva. Panini Books, 2011, p. 14. Acervo pessoal.

Na primeira página de Batman, o Cavaleiro das Trevas a mídia já aparece e permanece


em todo o desfecho da narrativa. É por meio dela que acontecem os debates sobre o retorno e
os feitos de Batman contra a violência civil. Temos exemplos de repórteres, psicólogos e a
população em geral posicionando-se sobre a função do vigilante em meio ao caos social,
argumentando se são favoráveis ou não às práticas violentas contra criminosos.
Um dos debates mais fervorosos em frente às câmeras na narrativa ocorre entre a
editora-chefe do Planeta Diário, Lana Lang, e Morrie, um crítico das práticas de vigilantes.
Morrie acredita que Batman é um verdadeiro perigo para os cidadãos de Gotham. Ele justifica
seu argumento dizendo que os inimigos do vigilante não possuem controle de suas ações por
conta de seus problemas psicológicos, enquanto Batman age racionalmente de forma psicótica
e coercitiva. Lana Lang retruca ironicamente perguntando então se Morrie acredita que Batman
tem o pleno controle de suas ações enquanto o chama de psicótico. Morrie responde: “É óbvio!
Ele sabe exatamente o que está fazendo. Esse tipo de fascista sempre sabe” (Figura 28). Na

59
narrativa, esse é o único momento em que alguém se refere a Batman caracterizando-o como
fascista. Batman, em Cavaleiro das Trevas, possui tendências autoritárias e antidemocráticas,
já que desacredita na forma de governo implantada nos EUA.

Figura 28 – Debate entre Lana Lang e Morrie durante um programa de TV onde discutem sobre as atuações
de Batman. Batman, o Cavaleiro das Trevas – Edição Definitiva. Panini Books, 2011, p. 46. Acervo pessoal.

Nas Figuras 29 e 30 temos a reportagem que se iniciou com entrevistas de cidadãos


contrários e favoráveis a Batman. O primeiro deles acredita que Batman é “...um vigilante
monstruoso e sem piedade que golpeia as fundações de nossa democracia... opondo-se aos
princípios que fizeram de nossa nação a mais generosa do mundo”. Já o segundo não
compreende porque não existem muitos outros como o Batman “francamente, estou surpreso
de que não haja uns cem iguais a ele. A população da cidade não aguenta mais o terror,
protegido pela lei e covardia social. Batman só está devolvendo o que é nosso”.
A mídia, em Batman, o Cavaleiro das Trevas, apresenta uma polarização do discurso
político dos cidadãos estadunidenses frente aos problemas de segurança pública na cidade
fictícia Gotham. Ambos os discursos representados nesta cena são muito problemáticos, pois

60
tratam de forma extrema as limitações do Estado para a solução dos problemas que afligem a
cidade, sendo o único consenso o fato de que há um problema relacionado à segurança.
Após as entrevistas já citadas, o repórter continua sua apresentação dizendo que “essas
são apenas algumas reações do povo ao fenômeno que vem alarmando toda nossa sociedade, o
retorno de Batman!”. Assim, inicia-se o debate que tinha como objetivo examinar o impacto
do vigilante na sociedade. Os convidados Lana Lang (editora-chefe do Planeta Diário em
Metrópolis, cidade fictícia), Bartholomew Wolper (psicólogo e cientista político que tem um
consultório em Gotham City) e Chuck Brick (porta-voz da Casa Branca, Washington),
respondem por meio de vídeo conferência às perguntas do repórter.
O repórter faz a primeira pergunta: “Doutor Wolper... o senhor tem afirmado que
Batman é responsável pelos próprios crimes que combate! Como se explica então que o índice
de criminalidade apresentou uma sensível queda desde seu retorno?”. A figura exaltada de
Bartholomew Wolper responde: “Foi bom ter perguntado isso, Ted! É verdade que Batman
aterroriza pessoas economicamente deficitárias e socialmente marginalizadas, mas os efeitos
de suas atitudes estão longe de serem benefícios!”, e continua sua resposta fazendo análises
comportamentais da sociedade ao presenciar os feitos do vigilante, e conclui que “Batman é,
neste contexto uma doença social”. Lana Lang, ao escutar a resposta de Wolper, ficou com
uma expressão de indignação estampada em seu rosto e por pouco não respondeu com
palavrões à conclusão do psicólogo.
Após isso, o repórter direciona-se ao porta-voz da Casa Branca, Chuck Brick,
perguntando se o presidente não dará nenhum posicionamento público sobre a situação de
Gotham City. Brick, sempre com um sorriso no rosto, responde que “bem, o presidente fará
uma coletiva à imprensa cedo ou tarde! No momento sua atenção está mais voltada para o
panorama geral da nação.” Mais uma vez nota-se que Miller representou a esfera presidencial
despreocupada com o âmbito interno, e muito mais preocupada com o possível ataque
soviético.
A terceira e última pergunta foi para Lana Lang. O repórter pergunta a Lana como ela
pode apoiar uma conduta tão ilegal que viola a justiça e os direitos humanos, como a de
Batman. Lana responde com uma expressão determinada que a população é vítima do medo da
violência e da impotência social. E continua, de punhos cerrados, afirmando que “um homem
ergueu-se para nos mostrar que o poder sempre estará em nossas mãos! Nós estamos cercados!
Ele está mostrando como podemos resistir!”. Mais uma vez observa-se em Batman, o Cavaleiro
das Trevas que a conduta do vigilante foi colocada como algo necessário.

61
Figura 29 – Na primeira parte do jornal televisivo ocorreram entrevistas com civis para saber as reações
sobre o retorno de Batman. O jornal segue com um debate que busca examinar o impacto do vigilante.
Batman, o Cavaleiro das Trevas – Edição Definitiva. Panini Books, 2011, p. 69. Acervo pessoal.

62
Figura 30 – Debate sobre os impactos do vigilantes com os convidados Batholomew Wolper, Chuck Brick
e Lana Lang. Batman, o Cavaleiro das Trevas – Edição Definitiva. Panini Books, 2011, p. 70. Acervo
pessoal.

63
Considerações Finais

Não temos dúvidas que Batman, Cavaleiro das Trevas foi considerada um marco para as
histórias em quadrinhos e para a trajetória do que viria ser o personagem Batman. Produzida
na década de 1980, juntamente com outras obras que revolucionaram a temática dos
quadrinhos, contribuiu para o sucesso e legitimação da nona arte. Histórias em quadrinhos
recheadas de críticas sociais e problematizações sobre as ações de super-heróis, que abordam
questões morais sobre suas atuações na sociedade trouxeram uma nova perspectiva ao gênero.
Durante a década de 1980, o governo de Ronald Reagan ofereceu benefícios à classe
empresarial, como os cortes de impostos e incentivos tributários para estimular o setor privado
a investir na formação bruta de capital fixo em detrimento de investimentos financeiros.
Também buscou descontruir o Welfare State, através de cortes drásticos nas políticas sociais,
e realocar recursos para a indústria bélica.72 Rodrigo Candido da Silva escreveu que um dos
motivos para tais investimentos bélicos foi a retirada das tropas estadunidenses no Vietnã,
cabendo aos EUA retomar o prestígio e continuar a corrida armamentista com a União
Soviética73.
O plano econômico da Era Reagan, de redução da arrecadação e investimento forte no
militarismo, proporcionou consequências diretas às despesas federais, levando a grandes
déficits da dívida pública. Marcelo Soares Bandeira de Mello Filho, sob uma perspectiva
ortodoxa liberal do pensamento econômico, esclarece alguns dos contrastes das propostas do
governo Reagan:
Como decorrência da visão de Reagan acerca do funcionamento da
economia americana e do diagnóstico dos principais problemas por que
essa economia passava, o combate aos gastos públicos e,
especialmente, aos déficits fiscais, deveria ser uma prioridade. Durante
todo o governo, o presidente defendeu o corte de despesas. Em uma
reunião com lobistas que defendiam a criação de uma emenda que
obrigasse o orçamento a ser equilibrado, o presidente declarou que:
“Nós sabemos que isto não é uma medida partidária. É uma cruzada do
povo” (REAGAN, 1982). Em contraste com tal proposta, os anos 1980
foram de grande expansão das despesas federais e ainda maior
expansão dos déficits federais, graças ao efeito adicional da redução da
carga tributária.74

72
NAVARRO, Vicente. Welfare e Keynesianismo Militarista na Era Reagan. São Paulo: Lua Nova nº 24, 1991,
p. 190.
73
SILVA, Rodrigo Candido. Era Reagan: política externa, militarização e conservadorismo estadunidense na
Nova Guerra Fria. Jataí, 2013. IV Congresso Internacional de História.
74
MELLO, FILHO, M. S. B. Economia Política da Era Reagan: Corporações, Ideologia Neoliberal, Políticas
Fiscal e Tributária. Rio de Janeiro: Oikos nº 2, 2011, p 189.

64
Para Flávio Saes e Alexandre Saes, as características desta política fiscal, que de fato
reduziram a carga tributária, e que em teoria se reverteriam em maiores níveis de investimentos
por parte do empresariado, levariam a um aumento do nível de emprego e de renda da
população, estimulando a economia pelo lado do consumo. No entanto, os autores pontuam
que os empresários usaram tais medidas de forma que aumentassem seus lucros e que Reagan
[...] promoveu substancial elevação de gastos, porém, por meio de uma
redistribuição muito peculiar: redução dos gastos sociais e elevação dos
gastos militares. Se a redução dos gastos sociais era justificada pela
necessidade de evitar (ou pelo menos reduzir) o déficit público, o
aumento dos gastos militares (que contribuiu fortemente para a
elevação do déficit público) respondia ainda ao temor, mais imaginário
do que real, da ameaça comunista. Valorização do dólar e déficit
público resultaram em elevado déficit no balanço de pagamentos
americano e aumento da dívida pública que tornou os Estados Unidos
o maior devedor internacional.75

Certamente os Estados Unidos foram uma potência mundial com uma política externa
abertamente imperialista durante o século XX. Também disseminaram a liberdade entre as
“vítimas da opressão” – alheia, como escreveu o historiador Eric Hobsbawm – e colocaram-se
como os defensores dos direitos humanos.76 Hobsbawm ainda afirmou que os Estados Unidos
foram um dos únicos países com capacidade militar de executar ações importantes em escala
global.77 “A paz mundial e mesmo a paz regional têm ficado fora do alcance do poder de todos
os impérios até aqui conhecidos pela história e certamente estão fora do alcance de todas as
grandes potências dos tempos modernos”78.
Dificilmente os EUA são a nação mais generosa do mundo, como descreveu um dos
entrevistados representados em Batman, o Cavaleiro das Trevas. Loïc Wacquant afirmou que
num país onde a discriminação racial permaneceu em todos os níveis do sistema judiciário,
muito provavelmente a aplicação da lei foi acometida pelo racismo contra a população negra,
que foi mais detida e mais pesadamente condenada que a população branca norte-americana.79
Ainda assim, os EUA, enquanto uma democracia, têm o dever de manter a segurança pública

75
SAES, Flávio A. M.; SAES, Alexandre M. História Econômica Geral. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 541.
76
HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 p. 48.
77
Ibidem, p. 58
78
Ibidem, p. 59.
79
WACQUANT, Loïc. Crime e Castigo nos Estados Unidos: de Nixon a Clinton. Revista de Sociologia e
Política. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104
44781999000200004&script=sci_arttext&tlng=es> Acesso em: 20/04/2018.

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e o direito a julgamentos justos e livres de suspeições, para o bem comum de todos os cidadãos
estadunidenses.
Vimos que em Batman, o Cavaleiro das Trevas foram representados problemas
internos e externos aos Estados Unidos. Internamente o grande problema do aumento da
violência e da criminalidade. Externamente, a Guerra Fria e o imaginário de uma ameaça
nuclear soviética. Ambas as questões fazem parte do contexto histórico dos EUA na década de
1980. E como dito anteriormente nesta pesquisa, quarenta milhões de americanos foram
vítimas de incidentes criminais entre 1973 e 1982. Além disso, durante a Guerra Fria, as tensões
entre a União Soviética e os EUA tornaram constante para vários países o medo de um conflito
nuclear entre os dois blocos.
Esses acontecimentos contribuíram para que os autores de quadrinhos incluíssem
questões como ameaças nucleares, violência civil, políticas desarmamentistas e anti-nucleares
em suas narrativas. Frank Miller foi um autor importante nesta produção da década de 1980,
pois representou de forma realista problemas de segurança pública, violência civil e o medo da
Guerra Fria. Entretanto, atentamos que essas representações são distorções do real e sua análise
deve ser feita através dos estudos das linguagens dos quadrinhos juntamente com a
historiografia e os indícios da narrativa.
Outras mudanças que ocorreram com a obra de Frank Miller foi a própria associação
do personagem Batman a alcunha de Cavaleiro das Trevas - e que se mantém até os dias atuais
- conferindo ao personagem um tom extremamente sombrio. A violência marcada pela obra de
Miller foi uma das características atribuídas ao personagem em novas HQs, séries animadas e
filmes, reinventando o universo fictício da DC Comics.
Batman, o Cavaleiro das Trevas foi o trabalho onde Miller deixou explícito seu
posicionamento conservador. Onde o vigilante, indignando com a criminalidade incontrolável,
age acima do Estado com suas próprias leis. Posicionamento este que pode ser associado ao
pensamento conservador estadunidense de vigilantismo, potencializado nas representações de
ambientes violentos, inspirados na realidade e impulsionados pela ficção.
Entretanto, as soluções propostas por Miller foram totalmente antidemocráticas,
colocando a ideia de que a solução para a ineficácia do Estado é aplicação da justiça pelas
próprias mãos. Certamente, o vigilante “razoavelmente maníaco” foi uma representação do
medo e das frustrações vivenciadas por Miller. Como o autor disse, o papel e a caneta são
poderosos e podem contribuir para disseminar seus posicionamentos diante as deficiências
institucionais e os problemas sociais. O que a narrativa de Miller propõe apela para uma retórica
em que a única solução que resta é a violência e a coerção através do medo, visto que a

66
reabilitação de criminosos não vinha se mostrando efetiva. Frank Miller, na posição de uma
intelectualidade de direita conservadora, politiza sua narrativa para “reafirmar a hegemonia, o
status quo e o senso comum que mantêm a ordem das coisas a favor do conservadorismo e o
neoliberalismo”80.
Logo, temos a resposta para a questão central desta pesquisa: Miller propõe e legitima
as ações do vigilante Batman diante dos problemas sociais representados em O Cavaleiro das
Trevas. Miller não articula o vigilante Batman a usar sua condição social para reparar a pobreza
que gera violência. Ele faz o personagem se aproveitar da condição de jovens delinquentes para
torná-los seus seguidores fervorosos, agindo conforme suas ordens e deixando um legado com
sua morte forjada. Sua motivação nunca foi coletiva, mas estritamente individualista,
envolvendo seus traumas e frustrações do passado.

80 FERNANDES, Sabrina. Sintomas Mórbidos. São Paulo: Autonomia Literária, 2019, p. 29.

67
Fontes
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