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MUÇULMANA, NORTE-AMERICANA E HEROÍNA:

A identidade diaspórica de Kamala Khan, a Ms. Marvel das Histórias em quadrinhos1

Daniel dos Santos Cunha2


Rafael Marques Gomes3

RESUMO: Os bens simbólicos produzidos no mercado de comunicação e entretenimento de


massa figuram como importantes representações e reflexos das múltiplas realidades
sobrepostas em tempos de globalização. As histórias em quadrinhos, dentro deste cenário de
produção, apresentam-se também como elementos deste conjunto, inserindo nas realidades
sociais e no imaginário dos indivíduos, representações e formas de ser e de se comportar.
Nesta conjuntura, o presente trabalho propõe uma interpretação da personagem Kamala Khan,
a Ms. Marvel das histórias em quadrinhos, a partir do conceito de identidade, e a noção
diaspórica deste elemento.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade diaspórica, Identidade, Histórias em quadrinhos,


representação.

1 Introdução
As questões envolvendo os produtos e as trocas simbólicas, os bens culturais, a cultura
de massa, as tecnologias e a comunicação e o processo de globalização tornam-se cada vez
mais complexas e repletas de nuances conforme a quantidade e a profundidade destes
elementos emergem no cenário atual. A indústria do entretenimento, objeto presente neste
conjunto de múltiplas realidades e representações, apresenta-se como uma fonte de produções
simbólicas e de imaginários cuja capacidade de inserir-se nas vidas dos sujeitos (e
consumidores) denota uma série de interpretações, conforme o ângulo em que se observa.
Esta característica também se faz presente no caso das histórias em quadrinhos,
consumidas desde o final do século XIX, e que conforme os cenários, apropriações e usos,
mantém relações com os sujeitos, instituições e com a própria história dos eventos humanos,
permeadas de detalhes das esferas do social, político e inclusive econômicos. Neste sentido,
perceber estas relações e as implicações com as formações e transformações das identidades
se faz um exercício de interesse para o próprio entendimento da conjuntura contemporânea:

1
Trabalho apresentado como requisito de avaliação da Disciplina Mídia e contemporaneidade, do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí, ministrada pela
Profa. Dra Marta Maria Azevedo Queiroz, período 2016.1
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Comunicação pela Universidade Federal do Piauí, sob
orientação da Profa. Dra. Monalisa Pontes Xavier. Bolsista da CAPES. E-mail:
deutiltdaniel@gmail.com
3
do Programa de Pós-Graduação de Comunicação pela Universidade Federal do Piauí, sob orientação
do Prof. Dr. Francisco Laerte Juvêncio Magalhães. Bolsista da CAPES. E-mail:
rafa.marks9@hotmail.com
(...) na cultura de mídia, o encantamento tecnológico é produzido como uma
rede: os produtos sociomediáticos remetem-se ou são inseridos em outros
produtos. O imaginário vai sendo construído em partes que são conectadas
sinergicamente por diferentes meios, em momentos estrategicamente
calculados e em doses e formatos previamente determinados. Nas esferas da
cultura de massa e da mídia, os meios de comunicação, compreendidos aqui
como meios narrativos, organizam e disseminam identidades que, por sua
vez, são apropriadas pelo sujeito (OLIVEIRA, 2012, p. 67).

A partir da perspectiva que considera a importância concreta e também simbólica das


histórias em quadrinhos, este trabalho se propõe a iniciar uma discussão embasada na análise
da personagem Kamala Khan, a Ms. Marvel do cenário Marvel Comics. Mulher, adolescente e
muçulmana, a protagonista da série homônima carrega uma série de representações e
elementos que emergem conforme a abordagem oferecida pela mídia quadrinística,
perpassando relações que vão desde a estereotipação, visibilidade, identidade, gênero, entre
outros.
O tensionamento feito durante a discussão procura abranger especificamente a noção
de identidade e a relação desta com a representação, preocupando-se de forma mais pontual
com este conceito em sua situação diaspórica, elemento que suscitou o interesse pela já citada
personagem. A fim de melhor situar o leitor, o trabalho apresenta uma breve passagem pela
trajetória das histórias em quadrinhos como produto cultural, sem dissociá-la de suas relações
com períodos específicos de seu desenvolvimento.

2 Histórias em quadrinhos e identidade


As histórias em quadrinhos inseriram-se na cultura moderna como um meio de
entretenimento de massa intimamente vinculado ao jornalismo impresso do século XIX. Com
o seu desenvolvimento, esta forma de expressão passou a gozar de certa autonomia. Podendo
ser percebida como um formato matricial do que se tem por histórias em quadrinhos, a tira de
jornal (comic strips, em seu equivalente na língua norte-americana) surgiu e popularizou-se
no final do século XIX nos Estados Unidos, a partir do artista Richard Felton Outcault, com o
título original de At the Circus on Hogan´s Alley, mas passou a chamar a atenção do público
quando, pela primeira vez, foi publicado em cores.
Retratando o ambiente e os tipos muito comuns na época (a história se passava numa
favela de Nova Iorque), Outcault atingiu o sucesso particularmente através de um de seus
personagens: o menino chinês, com seu camisolão amarelo, o Yellow Kid. Com o tempo, a
indumentária do personagem tornou-se panfletária, com mensagens irreverentes e críticas, um
toque da subversão que Outcault fez questão de imprimir em várias de suas criações (MOYA,
1993, p. 18).
Um elemento que pode ser facilmente relacionado com o boom da circulação e consumo
dos impressos e, analogamente, o das tirinhas de jornal é a população de imigrantes que se
instalou nos Estados Unidos na época: entre 1870 e 1914, cerca de 27 milhões de europeus
foram para o referido país do “novo continente”, em sua maioria da Alemanha e Irlanda,
instalando-se principalmente nas grandes áreas urbanas como Nova Iorque e Chicago
(MICHELON, POWELL, 2006). Com um público enorme, mas que não dominava
completamente o novo idioma (a própria sociedade norte-americana ainda lidava com os
elevados índices de analfabetismo), as publicações mais atraentes acabavam por ser aquelas
com imagens, e particularmente aquelas cuja linguagem se faz universal, como a das histórias
em quadrinhos.
A predileção pelo conteúdo humorístico dos trabalhos acabou por cunhar a expressão
comics, que passou a representar, de forma generalizada, todas as publicações a partir de
então. Nas primeiras décadas do século XX, os Estados Unidos assistiram a uma enxurrada de
títulos, como: Katzenjammer Kids (Os Sobrinhos do Capitão, no Brasil), de Rudolph Dirks;
Krazy Kat, de George Herriman; O Marinheiro Popeye, de Ellie Crisler Segan, com sua
primeira história em 1929 (MOYA, 1977).
Outro reflexo da popularização das histórias em quadrinhos foi o surgimento das
compilações das séries diárias em semanários ou comic books, inaugurando o formato de
venda de quadrinhos padronizado até os dias de hoje. A revista carrega um título especial,
geralmente da história mais popular ou com maior volume, podendo ainda conter outros
trabalhos de autores diversos. A iniciativa mostrou que as histórias em quadrinhos poderiam,
a partir de então, serem comercializadas com certa autonomia em relação aos jornais
impressos. O que poderia (ingenuamente) representar uma alternativa ou uma simples atenção
aos gostos dos consumidores era também o reflexo da crise econômica nos Estados Unidos:
devido ao conturbado período da quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929, os comic books
tiveram seu consumo aumentado perceptivelmente, representando uma alternativa econômica
e reutilizável de diversão (mesmo sendo confeccionado com material barato, poderia ser
manuseado inúmeras vezes e circular entre outros leitores).
A partir do sucesso comercial dos comic books, cerca de uma década depois tem início o
período compreendido como a Era de Ouro dos Quadrinhos, com o surgimento do Superman,
da Action Comics (1938), Batman, da Detetive Comics (1939) e do Capitão América, da
Marvel Comics (1941) (RAMONE, 2006). A Era de Ouro é marcada pelo engajamento dos
heróis:
Com a deflagração da Segunda Guerra Mundial - na qual os Estados Unidos
só foram se envolver, depois do ataque japonês a Pearl Harbour, em
dezembro de 1941 – muitos heróis e super-heróis foram “convocados” para
lutarem contra as forças do eixo (Alemanha, Itália e Japão). As histórias
perderam seu caráter ingênuo e puramente aventureiro para se
transformarem em objetos panfletários e ideológicos (GOIDANICH, 1990,
p. 11).

As décadas seguintes ao conflito assistiram à revolução dos super-heróis com as


criações de Stan Lee e Jack Kirby: Hulk, Thor, Homem de Ferro, Quarteto Fantástico,
Homem-Aranha, X-Men, definindo a maneira Marvel Comics de quadrinhos e estabelecendo
o início da Era de Prata dos Quadrinhos (RAMONE, 2006). Esta etapa foi marcada também
pelo aparecimento dos supergrupos, como Os Vingadores, a reformulação da Liga da Justiça e
os X-Men.
A fase correspondente à Era de Bronze se inicia na década de 70 e é definida pela
inserção de temas da ordem do sensível (a morte de Gwen, namorada do Homem-Aranha,
alterego de Peter Parker), realistas (a entrada de Robin na faculdade) e eróticos (elemento
presente nas aventuras de Conan, o Bárbaro), em resumo, mais humanos.
Sucedida pela Era Moderna, que começa nos anos 80 e se estende até os dias atuais,
onde o aumento do romance gráfico coloca as histórias populares em tramas mais
desenvolvidas e complexas, como as obras Dark Knight Returns, de Frank Miller e
Whatchmen, de Alan Moore (RAMONE, 2006), iniciando aí uma nova fase das histórias em
quadrinhos: a das graphic novels, ou romances gráficos.
Como característica recorrente nas histórias em quadrinhos, está a sua capacidade de
imprimir determinados aspectos da realidade de onde emerge. Assim como boa parte dos bens
simbólicos, foge-se também à pretensão de manter-se neutra e descolada dos elementos que
compõem a realidade social e cultural dos sujeitos, incluindo também processos de
constituição e representação de identidades, que passam a fazer parte tanto da dimensão
daqueles que por elas são representados, quanto daqueles que os consomem, percebendo-se
que “todo quadrinho, imbuído ou não de ficção, é produzido para se pensar uma época,
período, ou tempo. A relação das historias em quadrinhos com a realidade é complexa, não
deixa de ser uma representação da realidade, mas os graus de transposição são bem variados”
(CAMPOS, SILVA, SANTOS, 2015, p.02).
Sejam nas representações estereotipadas dos tipos suburbanos, sejam as dos heróis e
super-heróis patriotas, sejam as dos sujeitos mais “normais” ou “humanos” e suas tramas
realísticas, as histórias em quadrinhos inserem-se como reflexos e também refletores das
diversas realidades que se constituem. Nesta perspectiva, salienta-se:
os quadrinhos sempre foram o espaço por excelência da representação social.
Dos cenários aos enredos, passando pelos personagens, tudo nas histórias em
quadrinhos pode ser visto como uma apropriação imaginativa de conceitos,
valores e elementos que foram, são ou podem vir a ser aceitos como reais
(BARCELLOS, 1999).

E ainda:
(...) não devemos perder de vista que a história em quadrinhos,
principalmente a norte-americana, é, essencialmente, por ser produto
cultural, pautada pelas normas que regulam o consumo de massa (...), a
história em quadrinhos é um produto, porém um produto cultural, do qual
emergem discursos e deles os sentidos, as representações, enfim, os valores
(OLIVEIRA, 2007, p. 13-14).

Entendendo estas representações como íntimas do processo de identificação, “através


do qual nos projetamos em nossas identidades culturais “(HALL, 2000, p. 12), pretendemos
tensionar a relação das histórias em quadrinhos com a(s) identidade(s) dos indivíduos na pós-
modernidade. Conforme coloca Hall, esta noção de sujeito encontra-se cada vez mais
“móvel”, “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 1987, apud.
HALL, 2000, p. 13), assumindo que estes sistemas se complexificam e multiplicam, numa
série de possibilidades de identidades, com as quais pode seguir-se determinadas
identificações.
Nesta perspectiva, ainda segundo o autor:
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos,
lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e
pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidade
se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e
tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’ (HALL, 2000, p. 75).

Considerando ainda este produto cultural como um elemento que também ilustra o
processo de globalização, é de interesse relacionar o que Hall direciona como identidade
cultural, onde se interessa especificamente pela identidade nacional, noção cada vez mais
cambiante, onde, (o autor pontua) não são mais “coisas com as quais nascemos, mas [que] são
formadas e transformadas no interior da representação (HALL, 2000, p. 48).

3 Kamala “no papel” de Ms. Marvel


Introduzida no cenário fictício da Marvel Comics, Kamala Khan é a mais recente
versão da Ms. Marvel e faz parte de uma geração de super-heróis cuja proposta é “renovar” e
introduzir elementos contemporâneos à conjuntura quadrinística da empresa. Substituindo a
Ms. Marvel anterior (Carol Danvers, agora sob a alcunha de Capitã Marvel), Kamala
representa uma série de camadas sociais ainda pouco apresentadas em papéis de destaque no
mundo dos quadrinhos: mulher, adolescente e muçulmana.
A personagem, de 16 anos, é filha de emigrantes paquistaneses instalados em Nova
Jersey, nos Estados Unidos da América. Kamala, que é americana, vive rodeada de conflitos
entre a sua cultura “herdada” e a cultura “local”, onde construiu seus relacionamentos e
hábitos: a jovem é uma consumidora de histórias em quadrinhos e também uma escritora
desta mesma categoria de histórias, o que representa um papel de meta linguagem dentro do
enredo.
Yusuf Khan, o pai, e Muneeba Khan, a mãe, representam elementos constantes dentro
da história, geralmente apresentados como a força coercitiva por trás da protagonista. Os
personagens paternos, juntamente com o irmão mais velho, Aamir Khan introduzem os
fatores culturais, especialmente os religiosos, mais constantes na narrativa. O irmão, também
nascido em território norte-americano, aparece geralmente orando, atitude que é retratada de
forma estereotipada e inclusive cômica: o pai questiona os reais interesses do personagem por
sua religião, insinuando se a prática não seria apenas uma desculpa para não trabalhar.

FIGURA 01: A família nuclear de Kamala. FONTE: WILSON, ALPHONA, HERRING. Ms. Marvel,
v.3, n. 01, 2014, p. 09.

A introdução de Kamala no cenário fantástico ocorre de forma acidental, quando


“recebe” seus super-poderes e posteriormente assume o manto de Carol Danvers, a Ms.
Marvel original. A protagonista, que não é aceita de forma plena por seus pais, por contrapor
suas ordens e ideais do comportamento que deve apresentar como filha e também como
muçulmana, também não é aceita plenamente no convívio com os outros jovens “tipicamente”
ocidentais: o conflito de Kamala é o desfecho para suas aventuras, e é superado apenas com a
emergência de sua terceira identidade, como a heroína Ms. Marvel.

4 Kamala e a identidade diaspórica


Kamala Khan é retratada como uma aficionada em histórias em quadrinhos que
reconhece e aspira nos super heróis seus mais profundos desejos; aparência física,
reconhecimento, força e relevância social. Ora, nada mais conveniente que a identificação da
persona ideal nas representações quadrinhísticas, este é o jogo metalinguístico que a autora
Sana Anamat nos propõe ao perceber como tais representações são constitutivas de um campo
de conflitos que podem incidir sobre uma figura tão “deslocada” quanto Kamala Khan.
Uma personagem em trânsito; afastada do seu território “original” que é narrado,
inventado, construído por seus pais. Hall (2003) nos afirma que o século XX foi marcante
pelos fluxos migratórios que, paradoxalmente, confirmavam e faziam ruir um dos pilares da
modernidade.
Os próprios conceitos de culturas nacionais homogêneas, a transmissão
consensual ou contígua de tradições históricas, ou comunidades étnicas
"orgânicas" - enquanto base do comparativismo cultural, estão em profundo
processo de redefiniçao. (BHABHA, 1998, p. 24)

O estado-nação mostrava-se como um projeto inviável, enquanto invenção


imperialista, reflexo de práticas coloniais dos séculos anteriores, ao mesmo tempo, o estado-
nação era desejado como sinal de independência e expressão das identidades suprimidas pelas
culturas metropolitanas. Entretanto, como bem expressa Edward Said (1990), a prática de
percepção do outro é, concomitantemente, sua invenção. Ao identificar o estrangeiro, o outro
– aquele que se quer nativo instaura o corte identitário necessário ao estabelecimento do que
está dentro e fora do seu território. Um jogo de desejos e limitações impostas pelas narrativas
que constituem o nacional, o tribal ou o comunitário, operam, na pós-modernidade, a
fragmentação das identidades
A quebra desta unidade nação-identidade é um dos princípios que nos fazem afirmar
que é na pós-modernidade que as identidades podem se organizar em fluxos que não
obedecem territórios, etnias ou idiomas. Existem signos transculturais que, transportados
mediante o consumo de bens simbólicos, operam como verdadeiros organizadores do devir
identitário.
Neste ponto, Canclini (1995) é incisivo, o consumo, na atual configuração de
mundialização dos mercados de bens e serviços, no qual o capital se tornou um denominador
comum nas mais diversas culturas do planeta, é orientador de práticas culturais. O consumo
serve para pensar, como também, para afirmar identidades suprimidas ou marginalizadas
dentro de certas configurações sociais.
Kamala Khan possui uma identidade diaspórica (HALL, 2003), ou seja, ela transita
entre os espaços estabelecidos (do Paquistão à Nova Jersey, do Oriente ao Ocidente), tecendo,
durante sua jornada, um novo lugar, com costumes próprios, ao negociar a tradição (a
proibição da ingestão da carne de porco na cultura islâmica), com sua tradução inserida nas
possibilidades cotidianas (apreciar olfativamente os sanduiches de bacon na loja de seu
amigo).

FIGURA 02: Kamala na loja de seu amigo Bruno. FONTE: WILSON, ALPHONA, HERRING. Ms.
Marvel, v.3, n. 01, 2014, p. 1.

O processo de construção da identidade da personagem, parte de suas ações (Certeau


diria táticas) que inscrevem no cotidiano um novo significado para um conjunto de tradições
que tentam territorializar sua existência. Entretanto, a alteridade é também um fator crucial na
formação dos desejos, frustrações e medos de Kamala.
A presença de personagens que representam o estereótipo da classe média americana
(na figura abaixo, representadas por Zoe e Josh), é crucial para demonstrar os conflitos que se
apresentam em aspectos cotidianos através da interação com aqueles que se pretendem
nativos. É algo que Edward Said (1990), determina como um conjunto de saberes, práticas,
discursos que se articulam com a pretensão de alcançar, desvendar e inventar o outro. Talvez
o orientalismo seja uma definição basilar ao pensarmos na relação que articula fascínios,
preconceitos e desconhecimentos acerca de uma cultura estrangeira.
FIGURA 03: Kamala e Nakia interagem com Zoe e Josh. FONTE: WILSON, ALPHONA,
HERRING. Ms. Marvel, v.3, n. 01, 2014, p. 1

Atravessada por tantos discursos tais como a tradição religiosa, os anseios familiares, e
uma tradição americana de estética e costumes. Como Kamala Khan, ao se transmudar Miss
Marvel, consegue se constituir enquanto heroína?

FIGURA 04: Kamala e seu “ideal” ocidental: Carol Danvers. FONTE: WILSON, ALPHONA,
HERRING. Ms. Marvel, v.3, n. 02, 2014, p. 21.

É instigante que, dentro do arquétipo do herói quadrinhístico resida uma ética


(MOYA, 1993) que oriente as ações do indivíduo enquanto munido de poderes sobre
humanos. Tal função ética possui correspondência dentro da religião, fundamentado em
estruturas que remetem a um tempo sagrado, mítico, que é
por definição, transistórico: não apenas estão fora da história, mas são
fundamentalmente aistóricos. São anacrônicos e têm a estrutura de uma
dupla inscrição. Seu poder redentor encontra-se no futuro, que ainda estar
por vir. (HALL, 2003, p. 29).

Nesse ponto, o devir heroico de Kamala Khan, se constitui mediante a negociação


entre duas tradições, uma ética heroica e uma ética religiosa.

FIGURA 02: O momento em que a citação do Corão emerge como elemento de construção da
personagem. FONTE: WILSON, ALPHONA, HERRING. Ms. Marvel, v.3, n. 02, 2014, p. 09.

São nestes fios tão diversos que Kamala se delineia como heroína, retirando da
tradição traços que possam constituir um quadro inteligível no qual a personagem possa se
desenvolver. Ao tomar um sinal4 da Escritura Sagrada como uma afirmação de sua identidade
enquanto americana, mulçumana e heroína – ela cria um novo local para a expressão de sua
(híbrida) identidade cultural.

5 Considerações finais

4
Ayah: sinal, evidencia sagrada contida no Corão.
Kamala Khan é a afirmação da diferença dentro do universo das HQs, sem que
possamos cair naquilo que Hall ( 2003) sugeriu ser uma vulgarização do termo “multicultural”
pertencente a Homi K. Bhabha. Seria Kamala Khan fruto do multiculturalismo liberal, que
“busca integrar os diferentes grupos culturais o mais rápido possível ao mainstrean, ou
sociedade majoritária, [...]tolerando certas práticas culturais particulares apenas no domínio
do privado” (HALL, 53, 2003)? Ou se encaixaria em um multiculturalismo pluralista que
“avaliza diferenças grupais em termos culturais e concede direitos de grupo distintos a
diferentes comunidades dentro de uma ordem política comunitária ou mais comunal” (HALL,
53, 2003).
A “nova” Miss Marvel nos leva a perceber o quão complexo é o processo de formação
de uma identidade no contemporâneo. Já se foram os “tempos monolíticos” no qual se
constituíram, em vários super heróis americanos, o devir guerreiro do soldado em missão.
Não existe em Kamala Khan o princípio de defesa de um território delimitado: a guerra a ser
vencida, o território hostil a ser invadido, o país que deve ser preservado. A nova Miss Marvel
é uma heroína que age no alcance da comunidade. Seus espaços de convívio (a escola, a loja
de seu amigo Bruno, seu bairro em Nova Jersey, sua casa) é que são o cenário no qual sua
excepcionalidade se faz notar, sendo esta delimitação territorial múltipla (etnicamente,
culturalmente) e representativa da personagem principal.
Na formação de sua terceira identidade, Kamala Khan recorre às tradições que formam
suas zonas de contato cultural: a mitologia das HQs americanas, preceitos ético religiosos
mulçumanos e a sua necessidade de auto afirmação que parte de um ponto muito particular,
A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma
negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos
hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica
(BHABHA, 1998, p. 20).

Kamala inventou a sua identidade, deixando uma fissura sobre os rastros que
produzira no processo de negociação que articulara. Descolando-se da noção hoje frágil e
passageira de uma identidade unificada, completa – que Hall coloca como uma noção
fantasiosa (2000) –, a protagonista admite uma outra “narrativa do eu”, menos confortável e
de fato confrontadora, ressignificando e apropriando-se das múltiplas referências das quais
dispõe, assumindo num terceiro eu (uma espécie de interseção da Kamala tradicional,
muçulmana, ordeira e oriental e da Kamala sincrética, moderna e ocidental) a sua identidade
de heroína.
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