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1 Introdução
As questões envolvendo os produtos e as trocas simbólicas, os bens culturais, a cultura
de massa, as tecnologias e a comunicação e o processo de globalização tornam-se cada vez
mais complexas e repletas de nuances conforme a quantidade e a profundidade destes
elementos emergem no cenário atual. A indústria do entretenimento, objeto presente neste
conjunto de múltiplas realidades e representações, apresenta-se como uma fonte de produções
simbólicas e de imaginários cuja capacidade de inserir-se nas vidas dos sujeitos (e
consumidores) denota uma série de interpretações, conforme o ângulo em que se observa.
Esta característica também se faz presente no caso das histórias em quadrinhos,
consumidas desde o final do século XIX, e que conforme os cenários, apropriações e usos,
mantém relações com os sujeitos, instituições e com a própria história dos eventos humanos,
permeadas de detalhes das esferas do social, político e inclusive econômicos. Neste sentido,
perceber estas relações e as implicações com as formações e transformações das identidades
se faz um exercício de interesse para o próprio entendimento da conjuntura contemporânea:
1
Trabalho apresentado como requisito de avaliação da Disciplina Mídia e contemporaneidade, do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí, ministrada pela
Profa. Dra Marta Maria Azevedo Queiroz, período 2016.1
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Comunicação pela Universidade Federal do Piauí, sob
orientação da Profa. Dra. Monalisa Pontes Xavier. Bolsista da CAPES. E-mail:
deutiltdaniel@gmail.com
3
do Programa de Pós-Graduação de Comunicação pela Universidade Federal do Piauí, sob orientação
do Prof. Dr. Francisco Laerte Juvêncio Magalhães. Bolsista da CAPES. E-mail:
rafa.marks9@hotmail.com
(...) na cultura de mídia, o encantamento tecnológico é produzido como uma
rede: os produtos sociomediáticos remetem-se ou são inseridos em outros
produtos. O imaginário vai sendo construído em partes que são conectadas
sinergicamente por diferentes meios, em momentos estrategicamente
calculados e em doses e formatos previamente determinados. Nas esferas da
cultura de massa e da mídia, os meios de comunicação, compreendidos aqui
como meios narrativos, organizam e disseminam identidades que, por sua
vez, são apropriadas pelo sujeito (OLIVEIRA, 2012, p. 67).
E ainda:
(...) não devemos perder de vista que a história em quadrinhos,
principalmente a norte-americana, é, essencialmente, por ser produto
cultural, pautada pelas normas que regulam o consumo de massa (...), a
história em quadrinhos é um produto, porém um produto cultural, do qual
emergem discursos e deles os sentidos, as representações, enfim, os valores
(OLIVEIRA, 2007, p. 13-14).
Considerando ainda este produto cultural como um elemento que também ilustra o
processo de globalização, é de interesse relacionar o que Hall direciona como identidade
cultural, onde se interessa especificamente pela identidade nacional, noção cada vez mais
cambiante, onde, (o autor pontua) não são mais “coisas com as quais nascemos, mas [que] são
formadas e transformadas no interior da representação (HALL, 2000, p. 48).
FIGURA 01: A família nuclear de Kamala. FONTE: WILSON, ALPHONA, HERRING. Ms. Marvel,
v.3, n. 01, 2014, p. 09.
FIGURA 02: Kamala na loja de seu amigo Bruno. FONTE: WILSON, ALPHONA, HERRING. Ms.
Marvel, v.3, n. 01, 2014, p. 1.
Atravessada por tantos discursos tais como a tradição religiosa, os anseios familiares, e
uma tradição americana de estética e costumes. Como Kamala Khan, ao se transmudar Miss
Marvel, consegue se constituir enquanto heroína?
FIGURA 04: Kamala e seu “ideal” ocidental: Carol Danvers. FONTE: WILSON, ALPHONA,
HERRING. Ms. Marvel, v.3, n. 02, 2014, p. 21.
FIGURA 02: O momento em que a citação do Corão emerge como elemento de construção da
personagem. FONTE: WILSON, ALPHONA, HERRING. Ms. Marvel, v.3, n. 02, 2014, p. 09.
São nestes fios tão diversos que Kamala se delineia como heroína, retirando da
tradição traços que possam constituir um quadro inteligível no qual a personagem possa se
desenvolver. Ao tomar um sinal4 da Escritura Sagrada como uma afirmação de sua identidade
enquanto americana, mulçumana e heroína – ela cria um novo local para a expressão de sua
(híbrida) identidade cultural.
5 Considerações finais
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Ayah: sinal, evidencia sagrada contida no Corão.
Kamala Khan é a afirmação da diferença dentro do universo das HQs, sem que
possamos cair naquilo que Hall ( 2003) sugeriu ser uma vulgarização do termo “multicultural”
pertencente a Homi K. Bhabha. Seria Kamala Khan fruto do multiculturalismo liberal, que
“busca integrar os diferentes grupos culturais o mais rápido possível ao mainstrean, ou
sociedade majoritária, [...]tolerando certas práticas culturais particulares apenas no domínio
do privado” (HALL, 53, 2003)? Ou se encaixaria em um multiculturalismo pluralista que
“avaliza diferenças grupais em termos culturais e concede direitos de grupo distintos a
diferentes comunidades dentro de uma ordem política comunitária ou mais comunal” (HALL,
53, 2003).
A “nova” Miss Marvel nos leva a perceber o quão complexo é o processo de formação
de uma identidade no contemporâneo. Já se foram os “tempos monolíticos” no qual se
constituíram, em vários super heróis americanos, o devir guerreiro do soldado em missão.
Não existe em Kamala Khan o princípio de defesa de um território delimitado: a guerra a ser
vencida, o território hostil a ser invadido, o país que deve ser preservado. A nova Miss Marvel
é uma heroína que age no alcance da comunidade. Seus espaços de convívio (a escola, a loja
de seu amigo Bruno, seu bairro em Nova Jersey, sua casa) é que são o cenário no qual sua
excepcionalidade se faz notar, sendo esta delimitação territorial múltipla (etnicamente,
culturalmente) e representativa da personagem principal.
Na formação de sua terceira identidade, Kamala Khan recorre às tradições que formam
suas zonas de contato cultural: a mitologia das HQs americanas, preceitos ético religiosos
mulçumanos e a sua necessidade de auto afirmação que parte de um ponto muito particular,
A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma
negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos
hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica
(BHABHA, 1998, p. 20).
Kamala inventou a sua identidade, deixando uma fissura sobre os rastros que
produzira no processo de negociação que articulara. Descolando-se da noção hoje frágil e
passageira de uma identidade unificada, completa – que Hall coloca como uma noção
fantasiosa (2000) –, a protagonista admite uma outra “narrativa do eu”, menos confortável e
de fato confrontadora, ressignificando e apropriando-se das múltiplas referências das quais
dispõe, assumindo num terceiro eu (uma espécie de interseção da Kamala tradicional,
muçulmana, ordeira e oriental e da Kamala sincrética, moderna e ocidental) a sua identidade
de heroína.
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