Você está na página 1de 12

NOTAS DE RODAPÉ:

O acontecimento trabalhado na obra Notas sobre Gaza, do quadrinista Joe Sacco1

Daniel dos Santos Cunha2

RESUMO: a expressão jornalística encontra em suas variadas vertentes, gêneros e


subgêneros uma série de detalhes que se pluralizam conforme as técnicas, tecnologias e
linguagens típicas das nuances da profissão. Entre estas formas da prática profissional, o
jornalismo em quadrinhos, principalmente sob a figura do quadrinista Joe Sacco, assume uma
identidade dentro do circuito contemporâneo do jogo das notícias. O presente trabalho tem
como interesse debruçar-se sobre a noção de acontecimento, tão cara às teorias do jornalismo,
e como ela se constitui dentro da obra Notas sobre Gaza, do referido autor.

PALAVRAS-CHAVE: Acontecimento, Jornalismo em quadrinhos, Histórias em quadrinhos.

Introdução
O cenário jornalístico, como um entre vários do campo midiático, se apresenta uma
referência icônica no que é relativo ao seu grau de adaptabilidade de linguagens, formatos,
públicos, conteúdo e tecnologias empregadas. Neste sentido, as transformações que
atravessam ininterruptamente esta prática podem ser atreladas, entre diversos elementos quase
sempre presentes no que se refere ao caráter expressivo tão caro ao seu desempenho.
Entendendo a variedade de “manejos” da prática, a pluralidade de gêneros jornalísticos
(NETO, 2003), com suas ênfases, minúcias e “idiossincrasias” profissionais, uma maneira de
se fazer jornalismo vem se desenvolvendo e ganhando espaço no panorama de produção e
consumo contemporâneo: o jornalismo em quadrinhos.
Tendo como principal representante no circuito internacional desta modalidade o
quadrinista (de origem maltesa, mas radicado nos Estados Unidos) Joe Sacco, que na maioria
de suas obras imprime sua pessoalidade e olhar crítico na construção de livros-reportagens
inovadores por hibridar a linguagem das histórias em quadrinhos com conteúdos e relatos
jornalísticos. Autor de trabalhos como Palestina: uma Nação Ocupada (2011), Área de
Segurança: Gorazde (2000) e O Mediador: Uma História de Sarajevo (2003), Sacco é
comumente apreciado como o “porta-voz” do jornalismo em quadrinhos (SANTOS,
CAVIGNATO, 2013).
O presente trabalho tem como interesse discutir o conceito de acontecimento através do
olhar da obra Notas sobre Gaza (2010), de Joe Sacco, onde o autor aborda novamente a
1
Trabalho apresentado como requisito de avaliação da Disciplina Jornalismo, Discurso e Sociedade, do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí, ministrada pela Profa. Dra
Nilsângela Cardoso Lima, período 2016.1
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Comunicação pela Universidade Federal do Piauí, sob orientação
da Profa. Dra. Monalisa Pontes Xavier. Bolsista da CAPES. E-mail: deutiltdaniel@gmail.com
Palestina, mas desta vez descrevendo eventos de 1956, quando incursões israelenses
supostamente rotineiras resultaram na morte de aproximadamente 275 civis nas cidades de
Khan Younis e Rafah. O trabalho de “escavação” do quadrinista acaba por dar visibilidade e
personificar um conjunto de eventos e sujeitos que de outras formas estariam relegados ao
esquecimento.
No intuito de proceder com o desenvolvimento dos tensionamentos entre obra e
conceitos, este trabalho não se debruçará sobre as características ou mesmo a validade do
gênero jornalismo em quadrinhos (onde se contesta a visão jornalística por falta de critérios
como objetividade e precisão), tomando esta linguagem como merecedora da alcunha que a
acompanha, como suscita o jornalista José Arbex no prefácio de Palestina: uma Nação
Ocupada:
A notícia se nunca foi um “relato objetivo”, até porque, não existe a
“linguagem objetiva”, hoje funciona apenas como uma peça de legitimação
de determinada ordem ou percepção do mundo. Ela é um ingrediente do
“grande show” transmitido diariamente pelos oligopólios da comunicação.
Ao diluir as fronteiras entre os gêneros, ao tratar o mundo como show e o
show como notícia, a mídia permitiu, em contrapartida, que outras
linguagens, como a dos quadrinhos, reivindicasse para si o estatuto do
jornalismo. E aí se resolve o impasse aparente (ARBEX, 2011, p. xiv).

Para melhor posicionar o diálogo entre a obra de Sacco e os conceitos presentes


rotineiramente nas discussões sobre teoria jornalística, será descrita brevemente uma trajetória
das histórias em quadrinhos, bem como seus pontos de interseção com o desenvolvimento do
jornalismo impresso.

Histórias em quadrinhos e imprensa


O entrelaçamento existente entre as histórias em quadrinhos e o jornalismo vai muito
além do que se refere hoje a jornalismo em quadrinhos. Com mais de um ponto de origem em
comum, estas duas formas de expressão compartilham uma trajetória de mudanças e diálogos.
Podendo ser percebida como um formato matricial do que se tem por histórias em
quadrinhos, a tira de jornal (comic strips, em seu equivalente na língua norte-americana)
surgiu e popularizou-se no final do século XIX nos Estados Unidos, a partir do artista Richard
Felton Outcault, com o título original de At the Circus on Hogan´s Alley. Seu trabalho já era
publicado desde 1893 no New York World, mas passou a chamar a atenção do público quando,
pela primeira vez, foi publicado em cores.
Retratando o ambiente e os tipos muito comuns na época (a história se passava numa
favela de Nova Iorque), Outcault atingiu o sucesso particularmente através de um de seus
personagens: o menino chinês, com seu camisolão amarelo, o Yellow Kid. Com o tempo, a
indumentária do personagem tornou-se panfletária, com mensagens irreverentes e críticas, um
toque da subversão que Outcault fez questão de imprimir em várias de suas criações (MOYA,
1993, p. 18).

Figura 01: At the Circus on Hogan´s Alley alterou permanentemente o panorama das tirinhas de
jornal ao ser o primeiro trabalho em cores. Disponível em:
https://cartoons.osu.edu/digital_albums/yellowkid/HoganAlley_Enlarge/D_1668.jpg. Acesso em: 06
jul. 2016.

Outra característica inovadora referente à tirinha do garoto amarelo era o fato de o texto,
ou as falas do personagem aparecerem inseridas na composição da ilustração (uma vez que o
camisolão do garoto mudava de enunciado conforme as intenções ou reações do personagem),
quando normalmente apareciam apenas como legendas das imagens.
Os editores notaram que o público preferia os textos com imagens e a
possibilidade de lançar jornais coloridos aos domingos levou-os a
encomendar máquinas especiais. Dizem que, quando o World instalou uma
impressora em cores, em 1893, um dos técnicos do jornal, Benjamin Ben-
day, se encaminhou à prancheta do ilustrador e pediu para tentar a cor
amarela naquele camisolão. Nesse momento histórico, nasciam duas coisas
importantes: os comics como os concebemos hoje, com personagens
periódicos e seriados; e o termo “jornalismo amarelo” para designar a
imprensa sensacionalista, em busca do sucesso fácil com o grande público
(MOYA, 1977, p. 35 – 36).

Um elemento que pode ser facilmente relacionado com o boom da circulação e consumo
dos impressos e, analogamente, o das tirinhas de jornal é a população de imigrantes que se
instalou nos Estados Unidos na época: entre 1870 e 1914, cerca de 27 milhões de europeus
foram para o referido país do “novo continente”, em sua maioria da Alemanha e Irlanda,
instalando-se principalmente nas grandes áreas urbanas como Nova Iorque e Chicago
(MICHELON, POWELL, 2006). Com um público enorme, mas que não dominava
completamente o novo idioma (a própria sociedade norte-americana ainda lidava com os
elevados índices de analfabetismo), as publicações mais atraentes acabavam por ser aquelas
com imagens, e particularmente aquelas cuja linguagem se faz universal, como a das histórias
em quadrinhos.
Com a popularização do gênero e a expectativa criada pela emergência do momento,
uma série de quadrinistas iniciou seus trabalhos, oferecendo sua arte para variados veículos de
imprensa. Nesse cenário, o meio quadrinístico observou o surgimento dos syndicates, que
seriam o equivalente às agências de notícias para as histórias em quadrinhos: empresas que
distribuíam os quadrinhos, intermediavam as relações entre os artistas e os jornais e
respondiam pelos direitos de distribuição dos personagens (OLIVEIRA, 2013).
A predileção pelo conteúdo humorístico dos trabalhos acabou por cunhar a expressão
comics, que passou a representar, de forma generalizada, todas as publicações a partir de
então. Nas primeiras décadas do século XX, os Estados Unidos assistiram a uma enxurrada de
títulos, como: Katzenjammer Kids (Os Sobrinhos do Capitão, no Brasil), de Rudolph Dirks;
Krazy Kat, de George Herriman; O Marinheiro Popeye, de Ellie Crisler Segan, com sua
primeira história em 1929 (MOYA, 1977).
Outro reflexo da popularização das histórias em quadrinhos foi o surgimento das
compilações das séries diárias em semanários ou comic books, inaugurando o formato de
venda de quadrinhos padronizado até os dias de hoje. A revista carrega um título especial,
geralmente da história mais popular ou com maior volume, podendo contar ainda conter
outros trabalhos de autores diversos. A iniciativa mostrou que as histórias em quadrinhos
poderiam, a partir de então, serem comercializadas com certa autonomia em relação aos
jornais impressos. O que poderia (ingenuamente) representar uma alternativa ou uma simples
atenção aos gostos dos consumidores era também o reflexo da crise econômica nos Estados
Unidos: devido ao conturbado período da quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929, os comic
books tiveram seu consumo aumentado perceptivelmente, representando uma alternativa
econômica e reutilizável de diversão (mesmo sendo confeccionado com material barato,
poderia ser manuseado inúmeras vezes e circular entre outros leitores). Nessa época os
gêneros de aventura se fortaleceram, como as histórias de Flash Gordon, de Alex Raymond e
Dick Tracy, de Chester Gold (GOIDANICH, 1990).
A partir do sucesso comercial dos comic books, cerca de uma década depois tem
início o período compreendido como a Era de Ouro dos Quadrinhos, com o surgimento do
Superman, da Action Comics (1938), Batman, da Detetive Comics (1939) e do Capitão
América, da Marvel Comics (1941) (RAMONE, 2006). A Era de Ouro é marcada pelo
engajamento dos heróis:
Com a deflagração da Segunda Guerra Mundial - na qual os Estados Unidos
só foram se envolver, depois do ataque japonês a Pearl Harbour, em
dezembro de 1941 – muitos heróis e super-heróis foram “convocados” para
lutarem contra as forças do eixo (Alemanha, Itália e Japão). As histórias
perderam seu caráter ingênuo e puramente aventureiro para se
transformarem em objetos panfletários e ideológicos (GOIDANICH, 1990,
p. 11).

Com o fim do conflito, os quadrinhos europeus internacionalizaram-se, e da Bélgica


para o mundo apresenta-se Tintin, do cartunista Hergé (seu trabalho já era publicado desde
1929). Com a desmilitarização dos super-heróis, o humor retomou o fôlego com as tirinhas de
jornal, com Pogo (1948), do quadrinista e anteriormente chargista político Walt Kelly e
Peanuts (1950), de Charles Schulz, responsável por estabelecer os padrões das tiras de jornal e
massificar o gênero boy-dog strip.
Esta época também assistiu à revolução dos super-heróis com as criações de Stan Lee
e Jack Kirby: Hulk, Thor, Homem de Ferro, Quarteto Fantástico, Homem-Aranha, X-Men,
definindo a maneira Marvel Comics de quadrinhos e estabelecendo o início da Era de Prata
dos Quadrinhos (RAMONE, 2006). Esta etapa foi marcada também pelo aparecimento dos
supergrupos, como Os Vingadores, a reformulação da Liga da Justiça e os X-Men.
A fase correspondente à Era de Bronze se inicia na década de 70 e é definida pela
inserção de temas da ordem do sensível (a morte de Gwen, namorada do Homem-Aranha,
alterego de Peter Parker), realistas (a entrada de Robin na faculdade) e eróticos (elemento
presente nas aventuras de Conan, o Bárbaro), em resumo, mais humanos. Sucedida pela Era
Moderna, que começa nos anos 80 e se estende até os dias atuais, onde o aumento do romance
gráfico coloca as histórias populares em tramas mais desenvolvidas e complexas, como as
obras Dark Knight Returns, de Frank Miller e Whatchmen, de Alan Moore (RAMONE,
2006).

Notas de rodapé: o retorno de Joe Sacco à Palestina e a construção do acontecimento


Quase uma década após os trabalhos e experiências nos territórios ocupados na
Palestina, Joe Sacco retornou à região em 2001 a fim de ocupar-se em uma nova abordagem
do conflito entre israelenses e palestinos: desta vez sua investigação teve como foco um
massacre de civis palestinos no ano de 1956 coordenado por tropas israelenses. Afetado pela
pouquíssima quantidade de informações sobre o ocorrido, o autor iniciou então um trabalho
de imersão na realidade local e busca de fontes que pudessem contribuir com o maior número
de detalhes possível sobre o evento e o seu contexto. Para Sacco, eventos como estes,
condenados a uma marginalidade visual, compõem aquilo que ele coloca como “notas de
rodapé da história”:
Fiquei bastante incomodado com isso. Esse episódio – ao que tudo indica o
maior massacre de palestinos em seu próprio território, caso o número de
275 mortos fornecidos pela ONU esteja correto – não merece ser relegado à
obscuridade. Porém, é lá que ele se encontra, junto com inúmeras outras
tragédias históricas que ganham no máximo uma nota de rodapé no contexto
mais amplo da história (SACCO, 2010, vii).

Os episódios relativos aos assassinatos abordados por Sacco apresentam detalhes que
merecem ser levantados: em novembro do ano de 1956, as cidades de Khan Younis e Rafah
foram invadidas por tropas do exército israelense sob o pretexto de estarem agindo na captura
de guerrilheiros palestinos (os fedayee). Na noite do dia 03 de novembro, em Khan Younis, a
incursão foi realizada durante a noite, e as vítimas (a maioria homens em idade militar) foram
levadas à muralha de uma praça e executadas a tiros. Nove dias depois, em Rafah, os soldados
israelenses convocaram as vítimas para um recenseamento masculino, que foram
posteriormente executadas por atiradores ao chegarem ao local combinado. Conforme os
escassos relatórios da ONU, em ambos os episódios, os soldados de Israel teriam respondido
com tiros após se depararem com multidões de civis em fuga. Do outro lado, as fontes
israelenses confirmam que as tropas teriam rechaçado rebeldes armados, mesmo não tendo
sido relatada nenhuma baixa do lado israelense (SACCO, 2010).
Para o autor, os eventos ocorridos nas duas cidades podem ser tomados como um dos
vários elementos responsáveis pela escalada de violência no conflito entre palestinos e
israelenses, porém, seu esquecimento histórico impossibilita uma série de reflexões
pertinentes ao entendimento deste contexto, bem como revela a possibilidade de outra série de
interesses quanto a este solapamento reflexivo. Se de um lado, o mundo ocidental não liga ou
não tem acesso ao que acontece aos “párias e farrapos humanos”, do outro, “a tinta nunca
seca” na Faixa de Gaza, onde a tragédia e o sofrimento são constantemente sobrepostos por
outros eventos ainda mais perturbadores (SACCO, 2010).
Neste sentido, a obra de Sacco tem como um de seus contributos, além dos
jornalísticos, permeando a noção do histórico, trazer à tona, ou para não adentrar no mito da
objetividade jornalística, a interpretação do autor sobre os acontecimentos, que por um
conjunto complexo de forças e interesses não especificados, continuariam reservados ao
esquecimento.
É dentro desta perspectiva que se observa o conceito de acontecimento emergindo do
trabalho investigativo de Joe Sacco na Faixa de Gaza. Conquanto a rede de eventos trazida à
luz pelo autor não figuram mais como algo recente ou imprevisível com relação ao seu
contexto (vide a proporção de conteúdo noticioso relacionado à violência relativo à região de
Gaza, se comparado a outros conteúdos de outras naturezas sobre o mesmo local), tomemos a
noção prévia colocada por Rodrigues, onde se configura como acontecimento aquele episódio
“que irrompe na superfície lisa da história de entre uma multiplicidade aleatória de factos
virtuais. [...] situa-se, portanto, algures na estrada das probabilidades de ocorrência, sendo
tanto mais imprevisível quanto menos provável for” (RODRIGUES, 1988, p. 27).
Tendo em vista as realidades que inquietaram o quadrinista, a pouca informação sobre
os eventos, tanto das fontes oficiais quando dos próprios sujeitos, instituições e descendentes
daqueles afetados pelos episódios, a prática de Sacco desemboca justamente num resgate, ou
numa emulação desta irrupção histórica forçada, trazendo à luz o objeto e forçando um olhar
sobre o mesmo. Seu interesse, percebemos, é o de trazer os episódios de 1956 de volta ao
espaço social, de nomeá-los, para assim (re) inseri-los num discurso e a partir deles, constituir
um acontecimento:
O espaço social é uma realidade compósita, não homogênea, que depende,
para a sua significação, do olhar lançado sobre ele pelos diferentes atores
sociais, através dos discursos que produzem para tentar torná-lo inteligível.
Mortos são mortos, mas para que signifiquem ‘genocídio’, ‘purificação
étnica’, ‘solução final’, ‘vítimas do destino’, é preciso que se insiram em
discursos de inteligibilidade do mundo que apontam para sistemas de valor
que caracterizam os eventos sociais. Ou seja, para que o acontecimento
exista é necessário nomeá-lo. O acontecimento não significa em si. O
acontecimento só significa enquanto acontecimento em um discurso
(CHARAUDEAU, 2006, p. 131 – 132).

O que Charaudeau oferece como discurso, pode ser (sob o risco de demasiada
simplificação) colocado como uma combinação das circunstâncias em que se fala ou escreve
– as identidades de quem diz e as daqueles a quem a fala remete, as intenções que os
conectam e inclusive as condições concretas relativas ao processo de troca – e a maneira
como se fala, em resumo, a sobreposição das condições extradiscursivas e intradiscursivas em
que se produzem determinados sentidos (CHARAUDEAU, 2006, p. 177). Não nos interessa
aqui pormenorizar o processo de semiotização (transformação e transação) relativo à
construção do sentido, mas explicitar duas condições, ainda embasados em Charaudeau,
daquilo que Sacco trabalha dentro da noção de acontecimento: o olhar particular do autor
sobre um real construído e a visada informativa de sua obra, que segundo o linguista francês,
caracteriza um “acontecimento comentado”.
Em seu processo de narração dos eventos, ou em seu relato jornalístico dos episódios,
Sacco não demonstra um amparo consistente no que ficou conhecido como o Novo
Jornalismo, o jornalismo informativo, cujo cerne é a separação entre “fatos” e “opiniões”
(TRAQUINA, 1988, p. 167), mas se posiciona com um olhar particular, um filtro de um
ponto de vista seu, onde constrói seu objeto como um fragmento do real, um real construído
(CHARAUDEAU, 2006, p. 131), ou em suas palavras:
O leitor deve levar em conta que essas histórias passaram ainda por mais um
filtro [além do fato de valer-se de rememorações pessoais de suas fontes]
antes de chegar ao papel – a saber, minha interpretação visual. Na prática, eu
sou o diretor e cenógrafo de todas as cenas ocorridas nos anos 1940 e 1959
(SACCO, viii).

Já em sua visada informativa, o trabalho de Sacco imprime, se não as garantias ou


veracidade das informações, o seu caráter explicativo: o comentário, podendo ser visto
também como o seu comentário jornalístico, ligado à descrição dos acontecimentos é o que
produz o “acontecimento comentado” (CHARAUDEAU, 2006, p. 177).
Concomitantemente a estas características, se insere outro fator por nós percebido, que
permeia se não a obra de Joe Sacco, pelo menos as maneira como desenvolve sua prática de
apreensão. Viajando, misturando-se, vivenciando e conhecendo os tipos que representa em
suas linhas e texto, o quadrinista “afunda” no acontecimento, mesmo estando separado deste
temporalmente.
Neste sentido, a força e o arrebatamento percebidos em suas obras, se devem, nesta
perspectiva, por aquilo que Babo Lança coloca como a construção da identidade do
acontecimento por aqueles que, em sua experiência, também são afetados por eles. A
experiência pública do acontecimento pode ser assim interpretada como o elemento que
contorna e conecta a estética e os sentidos do trabalho de Sacco, percebendo esta experiência
pública como algo que:
Se torna ao mesmo tempo na experiência e na história de quem é afetado,
que se apropria dele e o incorpora no seu suportar e agir [...] a construção da
identidade do acontecimento e a sua configuração dependem dos modos
como o acontecimento é sentido, explorado, interpretado e apropriado pelo
sujeito (ou sujeitos) a quem ele acontece, sendo que este também se altera
com esta experiência. É a própria identidade do sujeito que se modifica,
tornando-se um si-que-experienciou-este-acontecimento (BABO LANÇA,
2005, p. 90).

Capaz ainda de modificar os campos de experiência e o horizonte de expectativas, na


medida em que:
as maneiras como vivemos, como os interpretamos, como nos deixamos
afectar por eles, como sofremos com eles ou rejubilamos, como lhes
respondemos – em função da nossa sensibilidade moral, dos nossos usos e
costumes, hábitos, formas de vida, normas do direito, capacidades; em
função do nosso campo de experiência e do nosso horizonte de expectativa
ou campo de possíveis; da nossa apreciação e aplicação na acção – elaboram
seus sentidos e identificações (BABO LANÇA, 2005, p. 90).

A questão que propomos aqui é a de apreender estas afetações, os sentidos percebidos


na experiência e nas transformações da apreciação à aplicação na ação. É esta ação que de
fato interessa. É o efeito do “querer-dizer” que pretendemos iluminar no trabalho de Joe
Sacco, apontando para aquilo que Rodrigues (1988) coloca como meta-acontecimento, que
seria o que as Notas sobre Gaza fazem emergir do esquecimento, como um tipo de
acontecimento que não é regido pelas regras do mundo natural, mas sim pelas do mundo dos
símbolos, da enunciação, em função do “querer-dizer, do saber-dizer e do poder-dizer”
(RODRIGUES, 1988, p. 30), podendo ser caracterizado por:
Acontecimentos provocados pela própria existência e consequências do
discurso jornalístico, cuja “emergência é toda esta inscrita na ordem do
discurso, na ordem da visibilidade simbólica da representação cênica. São
factos discursivos e, como tais, associam valores inlocutórios e valores
perlocutórios, na medida em que acontecem ao serem anunciados
(RODRIGUES, 1988, p. 29 – 30).

Considerações finais
Tentar abranger a riqueza da obra de um quadrinista reconhecido internacionalmente
do calibre de Joe Sacco, e tensionar certos elementos desta com um conceito profundo e ainda
repleto de fissuras e pontos de exploração em diversos campos do conhecimento não
corresponde à pretensão do presente artigo, que por suas abordagens, optou por constituir um
caminho mais provocativo do que explicativo ou didático, considerando também o grau
elevado de inferências e “tomadas de posição” em relação ao autor analisado. Neste sentido,
os critérios em pauta foram majoritariamente pessoais e subjetivos, não respondendo,
portanto, aos reais interesses ou objetivos do autor de Notas sobre Gaza.
As relações tecidas nesta discussão nos permitem a interpretação das intenções do
quadrinista ao “desenterrar” os eventos por ele trabalhados, e com isso realçar o conceito de
meta-acontecimento, sua capacidade de irrupção e fuga da ordem costumeira das coisas,
instituições e sujeitos, quando se percebe que “não é a morte nem a violência reais que os
meta-acontecimentos visam, mas o direito à visibilidade, á encenação de quantos não
considerem respeitados os seus direitos à palavra dentro da ordem midiática” (RODRIGUES,
1988, p. 30).
É nesta “visibilidade” e no “direito à palavra dentro da ordem midiática” que se
reserva a posição percebida do trabalho de Sacco. Como coloca Ponte, Notas sobre Gaza
cumpre e ilustra o papel de arena dos media, que ao expor problemas, possibilita uma reflexão
sobre a natureza destes, tornando-os públicos, contribuindo assim para uma “espiral de
reconhecimento” (PONTE, 2005, p. 02).

FIGURA 02: O massacre em Khan Younis ilustrado por Sacco. Uma realidade construída é trazida à
tona e com isso, a possibilidade de reconhecimento. In: SACCO, 2010, p.100.

Esta “espiral de reconhecimento” iniciada pelo interesse de Sacco sobre o


acontecimento que ele mesmo possibilita constituir-se, concebe em sua natureza o que Gomis
coloca como o nosso presente social, que graças aos medias, encontra-se mais rico e estendido
(GOMIS, 1991, p. 14):
conjunto de los medios forma hoy um círculo de realidad envolvente que se
convierte em referencia diária de nuestra vida, telón de fundo de la vida em
común [...] la imagen periodística de la realidad se há convertido em la
referencia general del presente social que nos envuelve (GOMIS, 1991, p.
15).

Se o nosso presente social pode ser assim estendido, se complexificar, fugir das
aparências, ou mesmo fornecer possibilidades de entendimento e compreensão de realidades
emergentes e mesmo solapadas do mundo, as Notas de Gaza permitem o acesso de sujeitos
separados por barreiras espaciais, temporais e mesmo cognitivas a acontecimentos
obscurecidos, e que através das apreensões aí possíveis, possibilidades de questionamentos e
interesse nos “comos” e “porquês” de uma série de realidades naturalizadas pela ausência de
um olhar atencioso, que de outras formas, correm o risco de continuar presentes apenas nas
notas de rodapé.
Como me disseram em Gaza, “os eventos são contínuos”. Os palestinos
nunca puderam se dar ao luxo de digerir uma tragédia antes que outra lhes
fosse imposta. Quando eu estava na região, muitos jovens ficavam perplexos
ao tomar conhecimento de minha pesquisa sobre os acontecimentos de 1956.
De que adiantaria para eles relembrar a história que eu tinha a contar se
estavam sob ataque, se suas casas estavam sendo demolidas hoje? Porém, o
passado e o presente não podem ser desassociados com tanta facilidade; eles
são parte da mesma sucessão implacável de eventos, uma distorção histórica.
Talvez valha a pena, sim, congelar no tempo o turbilhão daquela época e
investigar um ou dois eventos que, além de uma tragédia pessoal para
aqueles que a vivenciaram, também podem ser úteis para entender como e
porque – nas palavras de El-Rantisi [um de seus entrevistados] – o ódio foi
“semeado” no coração dos palestinos (SACCO, 2010, ix).

Referências

ARBEX, José Jr. Prefácio. In SACCO, Joe. Palestina – edição especial. São Paulo: Conrad,
2011.

BABO LANÇA, Isabel. A constituição do sentido do acontecimento na experiência


pública. Trajectos. N. 6. Lisboa: ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa), 2005, p. 85 – 94.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.

EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial: princípios e práticas do lendário cartunista. 4.


ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

GOIDANICH, Hiron C. Enciclopédia dos quadrinhos. Porto Alegre: L&PM, 1990.

GOMIS, Lorenzo. Teoría del periodismo: como se forma el presente. Barcelona: Paidós,
1991.

MOYA, Álvaro de. História da história em quadrinhos. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.

______. SHAZAM! 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1977.

OLIVEIRA, Maria Cristina X. de. Histórias em quadrinhos e suas múltiplas linguagens.


Grupo de Pesquisa Produções Literárias e culturais para crianças e jovens – USP. Disponível
em: <http://grupoplccj.webnode.com.br/quadrinhos/>. Acesso em: 06 jul. 2016.

PONTE, Cristina. Media e acontecimentos (com)sentidos. Trajectos. N. 6. Lisboa: ISCTE


(Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), 2005, p. 101 – 104.

POWELL, Timoty L.; MICHELON, Gianantonio. Um breve exame das causa da imigração
aos Estados Unidos antes e depois das duas guerras mundiais. Tradução de Eva Paulino
Bueno. Revista Espaço Acadêmico, nº 66, nov. 2006.
RAMONE, Marcos. Que Era que era? Disponível em: <
http://www.universohq.com/universo-paralelo/que-era-que-era/>. Acesso em: 06 jul. 2016.

RODRIGUES, Adriano Duarte. O Acontecimento. In: Revista de Comunicação e


Linguagens, v. 8, 1988, p. 27 – 33.

SACCO, Joe. Palestina – edição especial. São Paulo: Conrad, 2011.

______. Notas sobre Gaza. São Paulo: Conrad, 2010.

SANTOS, Roberto Elísio dos; CAVIGNATO, Denise. A renovação da linguagem


jornalística no jornalismo em quadrinhos. In: Rev. Estud. Comun., Curitiba, v. 14, n. 34,
mai./ago., 2013, p. 207 - 223.

SILVA, Vinícius Pedreira Barbosa da. As histórias em quadrinhos como gênero


jornalístico híbrido: o jornalismo em quadrinhos. Trabalho apresentado no GP Teorias do
Jornalismo Gêneros jornalísticos do XII Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação,
evento componente do XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2012.

TRAQUINA, Nelson. As Notícias. In: Revista de Comunicação e Linguagens, n. 8, 1988, p.


167 – 176.

Você também pode gostar