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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

História da Cultura Ocidental I – Professor Jose Avancini – Avaliação I – 07/05/2018


Aluno: Rafael Chies Paschoali – 276303

Análise dos aspectos sociais e culturais da escravidão da Roma antiga


tomando como base o filme Spartacus (1960)

“Este é seu filho. Ele é seu filho Espártaco, ele é livre, ele é
livre, é livre. Vai se lembrar de você Espártaco, porque vou
contar, vou contar quem era seu pai e com o que ele sonhou.”
Spartacus (Kubrick, 1960).

O excerto acima, retirado de uma fala proferida por Varínia, esposa de


Espártaco no épico, momentos antes da morte do marido, além de ser o zênite
emocional do filme, talvez possa ser considerado o resumo das vontades que
moviam todos os escravos na época de Espártaco: ser livre e ter a sua família
nascendo dessa maneira. Por conseguinte, e em virtude dos objetivos pretendidos,
deixando em segundo plano o heroísmo cinematográfico atribuído a Espártaco, que
ainda era virgem quando lhe foi oferecida uma escrava e que morreu agonizando na
cruz diante do sofrimento da mulher que o amava, os próximos parágrafos serão
focados na concepção de escravismo apresentada pelo filme, dialogando tais ideias
com excertos e análises sobre a escravidão em Roma.
Uma das primeiras impressões que podemos ter em relação ao escravismo
na Roma antiga, retratado pelo filme, vem a ser a possibilidade de mudança de
categoria do escravo, de escalonamento: logo na primeira cena, do primeiro ato do
filme, Espártaco é escolhido por Lêntulo Batiato, dono de uma escola de
gladiadores, para treinar e vir a ser um gladiador romano, retirando o escravo da
função de recolhedor de pedras – degradante trabalho compulsório exercido nas
minas romanas – e transferindo o mesmo para uma situação que embora
constrangedora e escravocrata, possuía certas regalias que a condição do escravo
campesino e das minas não podiam almejar; onde, por sua vez se é dado banho,
passado óleo e cortado os cabelos, oferecido mulheres para satisfação dos
prazeres, bem como toda uma sistemática que vise na medida do cabível o “bem
estar” do futuro gladiador. Significativa e denunciadora vem a ser o trecho de As
Metamorfoses, de Apuléio, datado do século II e.c. – onde, salvo as defasagens
temporais, podemos utilizar tal excerto sem correr riscos de anacronismo, uma vez
que, a condição dos escravos no âmbito rural, desde o fomento à sua importância
incitado pela Segunda Guerra Púnica nunca deixou de se diferenciar completamente
de um tipo ideal reflexivo -, onde se narra a seguinte situação a respeito da condição
do escravo rural:

Bons deuses! Que restos de humanidade havia lá! Suas peles


pareciam pintadas pela marca lívida das chicotadas; suas costas
estavam cheias de feridas, e mais cobertas do que vestidas de
farrapos rasgados. Alguns vestiam só um retalho que lhes cobria o
púbis. Todos no entanto envergavam túnicas, mas estavam tão
rasgadas que revelavam seus corpos. Letras estavam marcadas em
suas testas, tinham os cabelos raspados pela metade, e ferros nos
pés. Sua tez era emaciada e descolorida, suas pálpebras estavam
avermelhadas por uma fumaça negra e ardente, que inflamava seus
olhos. E como lutadores que se cobrem de poeira ao combater, uma
farinha semelhante a cinza os tornava horrivelmente brancos." (IX,
10-12)

O gladiador, também é “ensinado a usar sua cabeça”, assim, portanto,


podemos considerar como um indício de distanciamento da caracterização do
escravo como sendo um animal, inoperante e mecânico – no entanto, é complexo
exercer uma ideia fixa a esse respeito, uma vez que, também, sua condição análoga
a de um animal poderia derivar também da sua limitação em possuir posses, bem
como de, em virtude da não cidadania romana, isto poderia vir a ser um argumento
que sustentasse sua condição animalesca, não fazendo parte do “mundo humano
romano” por excelência. Nessa perspectiva das diferentes variantes de escravidão,
bem como da relativa melhor situação de um gladiador, a oportunidade de ascensão
fica ainda mais clara na primeira conversa de Batiato com os escravos, onde utiliza
Marcellus como exemplo: antes, o próprio fora um escravo e agora era treinador de
gladiadores – passando a reproduzir aquilo que fora atentado contra ele em tempos
atrás. Em excertos de Satiricon, de Petrônio, pode-se perceber as diferentes
potencialidades das funções dos escravos, e também, em algumas situações, a
preocupação dos senhores com as habilidades do escravo e a possibilidade de
transição deste entre tais funções:
Comprei para o garoto [escravo] alguns tratados legais, porque
desejo que ele possua algumas noções de direito, para dirigir os
assuntos da casa. Isto é o verdadeiro ganha-pão. Quanto à literatura,
ele já tem a cabeça demasiado cheia dela. Se ele não der para isso,
já resolvi fazê-lo aprender alguma profissão útil, como barbeiro ou
leiloeiro, ou pelo menos advogado - uma atividade, enfim, que ele só
possa perder com a morte." (XLVI, p. 63).

Como exemplo também, no filme, o personagem Antoninus exemplifica bem


as diferentes funções de escravos e os preconceitos sobre elas, quando sua
habilidade de canto, que o rendeu um lugar dentro da casa do rico e influente
político Crasso, é primeiramente desprezado por Espártaco, que procurava algum
escravo com habilidade em carpintaria ou culinária. O escravo, mágico e cantor
representa pois, também, os diferentes níveis de instrução entre os escravos; e a
comunidade formada pelos revoltosos, com relativos indicativos de igualdade e
coesão geral, quando não se precisa que um minerador tenha a habilidade da leitura
(assim como Espártaco também não a tinha) e se é desnecessário que um agricultor
saiba guerrear como um gladiador, apresenta um plano geral que reflete essa
diferenciação de aptidões interna aos escravos.
Em um excerto de Floro sobre a Revolta de Espártaco, existe certa
ambiguidade paradoxal para com a visão dos romanos sobre os revoltosos que
merece ser recobrada aqui, com grifos adicionais:

Orgulhoso de suas vitórias, pensou (e isto basta para nossa


vergonha!) em atacar a cidade de Roma. Finalmente, todas as forças
de nosso império são preparadas contra esse gladiador e Licínio
Crasso reivindicou a honra romana; vencidos e postos em fuga estes...
- tenho vergonha de chamá-los de inimigos - refugiam-se no extremo
da Itália. Lá, confinados num canto do Brúcio, sem possuir
embarcações, procuram evadir-se para a Sicília, tentando em vão
[vencer] a violenta corrente do estreito sobre jangadas de feixes de
madeira e de conjuntos de botes. Enfim, numa saída, correram eles
em direção à uma morte digna de homens de valor; e, como convinha
a um general gladiador, a luta foi sem perdão: o próprio Espártaco,
combatendo com muita bravura na primeira fila, foi morto como um
imperator." (III,20)

Mesmo sendo uma “vergonha chamá-los de inimigos”, o autor do texto


reconhece a dignidade do exército revoltoso e o exalta, escrevendo que tiveram
“uma morte digna de homens de valor” e que o próprio Espártaco, nome odiado e
temido entre senadores e senhores de escravos romanos, “foi morto como um
imperator”. Essa exaltação mostra que mesmo sendo às vezes tratado como um, o
escravo não era visto como um animal, pois nenhum animal recebe este
reconhecimento ou é cogitado para uma mudança de função, de barbeiro a
advogado, como já mencionado no excerto de Satiricon de Petrônio. No filme essa
ambiguidade fica manifestada nas entrelinhas, em virtude principalmente do
reconhecimento por parte de Graco da superioridade do exército de Espártaco, bem
como por mediante uma espécie de “humildade” por parte do Senado romano,
sendo manifesta pela necessidade de evocar um grande efetivo bélico, comandado
por um dos cônsules romanos, para defender a honra desses últimos  Por
conseguinte, vem a ser muito complicado sustentar uma posição firme acerca da
verdadeira visão dos escravos revoltosos pelos dirigentes romanos, uma vez que,
assim como mostra tal excerto acima, esse plano vem a ser configurado por
nuances e ambiguidades que redobram ainda mais os historiadores a buscarem
explicações e intepretações que busquem considerar e até mesmo driblar essas
questões.
Em Spartacus, também, podemos perceber aspectos culturais da sociedade
que atentam para a importância e diferenciação do escravo nesse plano; por
exemplo, quando Marco Licínio Crasso, político e general romano, resgata do campo
de batalha Varínia, escrava e esposa de Espártaco, e a leva para sua casa fazendo
dela sua amante, bajulando-a com joias, roupas e uma nova vida na sociedade
romana, uma vida digna e honrada. Isto mostra, portanto, de forma singela e até
mesmo despretensiosa, como possíveis relações entre senhores e escravos podem
interferir diretamente na estrutura social romana, promovendo uma teia de relações
complexas e muitas vezes fundamentais para entender determinadas situações e
acontecimentos. Esse argumento é tangenciado e defendido por Fábio Duarte Joly
(2005), alegando que o estudo da escravidão antiga na modernidade foi feito
basicamente sobre aspectos econômicos e que, pela escravidão ser uma instituição
sócio-política, o estudo pelo viés cultural e social explicaria de modo mais completo
o panorama escravocrata da antiguidade. Em uma cena do filme, em que logo
depois de se revoltarem e se libertarem da escola de Cápua, a primeira coisa que
fazem os gladiadores é obrigar dois senhores, pertencentes ao patriciado, a lutarem
em pares na arena até a morte - coisa que eles foram e seriam obrigados a fazer -,
mostra como muitos escravos – aqui também é necessário evitar todo e qualquer
tipo de generalização - não pensavam em uma reforma no sistema socioeconômico
em que viviam, mas sim desejavam inverter os papéis com os senhores de
escravos. Para Joly, esse desejo de inversão de papéis e o não pensamento em
uma reforma são entendidos através do âmbito cultural antigo, pois exatamente por
causa da onipresença da escravidão na cultura romana era possível a existência de
um pensamento de necessidade dela, e por sua vez vindo a ser impossível para
eles, tanto escravos quanto senhores, conceberem uma sociedade sem escravidão.
Trata-se portanto, de um filme que salvo seus momentos românticos e idealizadores,
elucida de forma convincente muitas das relações exploradas e fundamentadas
pelos estudos de historiadores, assim como coloca no nosso horizonte um estudo
mais aprofundado da cultura antiga, diretamente aplicada na relação do escravo
antigo com o seu meio.
Bibliografia

ALFÖLDY, G. A História Social de Roma. Lisboa: Editorial Presença, 1995 (1989).

CICERO. Manual do candidato às eleições. Carta do bom administrador público.


Pensamentos políticos selecionados. São Paulo: Nova Alexandria, 2000.

FINLEY, M.I. A Economia Antiga. Porto: Afrontamento, 1980.

JOLY, Fábio D. A escravidão na Roma Antiga. Política, economia e cultura. São


Paulo: Alameda, 2005.

PETRÔNIO. Satiricon. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo, Abril Cultural,


1981.

PINSKY, J. 100 Textos de História Antiga. 4ed. São Paulo: Contexto, 1988 (1972).

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