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A aula de hoje tem como tema, o Serviço Social e a interseccionalidade: um

debate necessário. Mas porque estudar a interseccionalidade dentro do SS? Por que
reservar uma aula para falar apenas sobre esse tema? Para responder esses e outros
questionamentos, é importante que a gente faça novamente um resgate histórico, de
modo a situar vocês na realidade, experiências e vivências das mulheres brasileiras,
sobretudo, as mulheres pretas.

Na aula passada, nós vimos que o patriarcado, o racismo, aliado a outros


sistemas de opressão foram responsáveis por estabelecer uma divisão no modo de
comportamento e de tratamento das mulheres. As formas como elas eram tratadas
era bem diferente, e o que determinava como seriam vistas pela sociedade era sua
raça. Enquanto as mulheres brancas, passavam a vida sendo treinadas para o
casamento, para terem filhos, para o cuidado com o ambiente doméstico, deviam ser
puras, frágeis, submissas, casarem-se virgem, e deviam obedecer seus maridos e pais.
Para as mulheres negras, esses papeis sociais tiveram outra perspectiva. Além delas
serem mulheres, elas eram negras e durante os 388 anos de escravidão, foram vistas
como objetos, como mercadorias, tratadas de forma pior que os animais. As
mulheres negras, bem como fala Sueli Carneiro, nunca puderam ser frágeis,
delicadas, não tinham sua pureza preservada para o casamento, elas eram obrigadas
a trabalhar desde crianças nos trabalhos domésticos servindo as sinhás, como
empregadas e amas de leite, nas lavouras, nos trabalhos braçais, as mais bonitas,
eram colocadas para serem escravas sexuais a serviço dos senhores. Além do
trabalho excessivo e das péssimas condições de vida e de higiene, eram
constantemente violentadas, estupradas, torturadas, os filhos que elas geravam não
eram delas, eram vendidos como escravos, eram mercadorias. Muitas abortavam
pois preferiam que eles não nascessem a ter uma vida como a delas. Hoje o Brasil é
miscigenado, mas a que custo? Custo do sofrimento de muitas mulheres negras e
indígenas.

Foi esse padrão de colonização, baseado no modelo eurocêntrico, imperialista


e capitalista, o responsável por colocar as mulheres negras mais vezes nas avenidas
identitárias do machismo, do racismo, do capitalismo. A fusão dessas avenidas fez
com que as mulheres negras fossem acidentadas. Isso significa que as mulheres
negras não são afetadas só porque são mulheres, mas porque são negras e em
muitos casos, pobres e periféricas. Então elas são violentadas ao mesmo tempo por
essas discriminações. A interseccionalidade é esse conceito que surgiu para apontar
que essas opressões de gênero, de raça, de classe, etc não podem ser vistas de forma
separada, mas como parte de um mesmo processo. Além de lidarem com as
desigualdades de gênero, elas tem que lidar com o racismo, tem que lidar com a
pobreza, entre outras formas de discriminações. Isso faz com que elas sejam
violentadas de forma triplicada.

Mas onde o Serviço Social entra nessa discussão? Primeiro que o objeto de
trabalho do Serviço Social é a Questão Social e suas expressões. Quando ampliamos
nossos olhares críticos sobre a realidade social dessas expressões identificamos um
padrão: a prevalência das mulheres negras nas estatísticas. Quem são as mulheres
que mais sofrem violência no Brasil? Quem são as mulheres que mais morrem no
Brasil? Quem são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil? Quem são as que mais
estão desempregadas, no trabalho precário e informal? Quem são as que tem mais
dificuldades no acesso aos serviços de saúde e de educação? É importante que os
assistentes sociais tenham esse olhar mais profundo de forma a identificar as raízes
desse problema. Apesar de todas mulheres estarem propícias a passarem por
situações de violação dos direitos humanos, existe um grupo específico que lida com
várias opressões ao mesmo tempo.

De onde veio a necessidade de criar esse conceito?

Durante muito tempo, o movimento feminista trabalhou com a categoria


universal do: somos todas mulheres, ancorado em um padrão ocidental de sociedade
em que as mulheres protagonistas são brancas e de classe média alta. Esse
movimento só considerava as pautas, as reinvidicações e demandas das mulheres
brancas e de classe média, esquecendo que a categoria mulher é plural, nós somos
um conjunto diversificado de mulheres, com diferentes narrativas e experiências. Por
pensar só nelas, as mulheres brancas esqueciam que tinham privilégios e que elas
podiam estar oprimindo outras mulheres. As mulheres brancas lutavam pelo direito
ao trabalho, mas esqueciam que as mulheres negras já trabalhavam a muito tempo,
desde a escravidão, e no pós-abolição continuavam trabalhando como empregadas,
nas lavouras, como prostitutas. Como dizia bell hoocks, enquanto as mulheres
brancas queriam o direito de ocupar um trabalho reconhecido socialmente, como
advogadas, médicas, escritoras, as mulheres negras lutavam pelo direito de existir na
sociedade. Enquanto para as mulheres brancas o trabalho era uma espécie de
empoderamento, para as mulheres negras e pobres, era sobrevivência.

Foi não perceber essas diferenças entre nós, que fez durante muito tempo, o
movimento feminista não avançar. No caso das mulheres negras, a junção dessas
opressões, as colocou em situação de vulnerabilidade social. As mulheres negras
foram as primeiras a perceber essas desigualdades dentro do movimento, elas eram
invisíveis, e passaram a questionar: e eu? Não sou mulher? As mulheres brancas se
colocavam muito como vítimas, não reconheciam que tinham privilégios por serem
brancas, ricas e bem nascidas, não enxergavam que enquanto lutavam por suas
demandas, existiam domésticas dentro da casa delas cuidando dos seus filhos.
Domésticas essas que muitas vezes eram humilhadas e oprimidas por essas mesmas
mulheres. Eram má remuneradas.

Se a gente almeja um modelo de sociedade onde a gente quer que haja


realmente uma transformação social, temos que começar a ver nosso papel nisso.
Não adianta lutar contra apenas um tipo de opressão, e reforçar outros. Nós fomos
historicamente criadas para reproduzirmos as opressões, todos somos um pouco
machista, racistas, homofóbicos, capacitismo, desconstruir isso tem que ser uma
tarefa diária.

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