Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Torto Arado?
Introdução
Os movimentos feministas têm sido uma poderosa arma na luta por direitos de
minorias, além de contribuem para a construção de uma nova maneira de se enxergar a
mulher na sociedade. São muitas os estudos feitos por consideráveis pesquisadores que
circulam em ambientes acadêmicos buscando lançar luz, como diz Lélia Gonzales, às
formas concretas e simbólicas de opressão (as quais mulheres são submetidas em
diferentes espaços. Ao falar sobre a relação direta do avanço do capitalismo à imposição
de um modelo de feminilidade aceito socialmente e, sobre a maneira como esse sistema
se beneficiou da opressão feminina para seu desenvolvimento, Silvia Federici, nos
mostra que o lugar social da mulher é uma construção dada por um modelo de
organização social hierárquico que preza por todas as formas de dominação para se
manter erguido. Ao longo dos séculos, como aponta a escritora, as mulheres passaram
por um intenso processo de degradação moral para que coubessem nesses lugares
“criados” para elas através da caça às bruxas na Europa.
Abolida a escravidão, ela vive a liberdade, imersa nos conflitos internos de uma
sociedade que reluta em romper com os tempos coloniais em definitivo, associado a
sensação de inferioridade diante do ser masculino e do branco, pois, a herança da
colonização (a primeira: a caça às bruxas na Europa) diz insistentemente que a mulher é
inferior ao homem. Já a colonização ocorrida no Brasil assim como em tantos outros
países, deixa como legado para essa mulher a dupla discriminação: por gênero e raça. O
que fez com que por muito tempo ficassem excluídas das pautas feministas tradicionais,
fato, que vêm mudando com o avanço da discussão sobre o tema de forma intensa e
pertinente.
Algumas publicações têm voltado suas atenções e buscam dar voz às mulheres
racializadas. Essa atitude parte de estudiosos que enxergam que a verdadeira mudança
no social acontecerá a partir de feminismos que abraçam a todas as mulheres. Eles veem
que lutar por igualdade salarial nos ambientes corporativos, liberdade sexual entre
outras queixas no feminismo liberal, não chega perto da realidade vivida por mulheres
negras e indígenas. A realidade material de vida dessas mulheres é sujeitada ao
funcionamento da sociedade capitalista como base de exploração. Estas são, no Brasil,
as que mais sofrem violência doméstica, feminicídio, são as que mais ocupam
profissões consideradas subempregos, as que mais passam por descaso médico e as que
menos ocupam lugares de destaque na sociedade e também as que mais sofrem com as
recessões econômicas. Neste contexto, é necessário analisar a situação da parcela negra
da população sob o viés econômico e político, como afirma Silvio Almeida em Racismo
Estrutural, para entender o porquê de seu atraso econômico em relação à masculina e a
branca, visto que, a justificativa dada através de interpretações que dão ênfase aos
comportamentos individuais não é suficiente e nem mesmo consistente, embora seja
muito utilizada.
Torto Arado narra a história de duas irmãs, Bibiana e Belonisia, que vivem em
uma fazenda chamada Água Negra na Chapada Diamantina. Elas são marcadas na
infância por um acidente, que acontece durante um momento de curiosidade de criança
onde uma delas, Belonísia, perde um pedaço da língua ao colocar uma faca de cabo de
marfim que pertencia a sua avó, Donana, na boca para saber que gosto tinha o objeto,
tamanha foi admiração que tiveram ao vê-lo em suas mãos, ficando impedida de falar. A
perda da fala fez com ela desistisse de querer mais para si ao longo de sua vida. Nesse
lugar onde nasceram, que era uma região quilombola, elas e sua família assim como
outras que de lá dependem para viver, encontram-se em regime de escravidão moderna.
Para ter direito a um pedaço de chão para morar, eles têm que trabalhar nas plantações
dos “donos da terra”, sem pagamento, sem direitos e com muitos deveres. Eles
trabalham sem direito folga, no tempo que lhes sobram podem plantar o próprio
alimento ao redor de suas casas, mas nada que competisse com a plantação da fazenda.
Não podiam construir casas com material resistente, suas casas deveriam ser de barro,
para não demarcar tempo de presença naquelas terras. O pai delas, Zeca Chapéu
Grande, é curador de alma e de espírito, a conexão que o povo da fazenda tem com sua
religião e de certa forma também é através do prestígio que possui entre os moradores
de lá, apaziguador de conflitos dentro da fazenda. Acompanha-o Salustiana, sua esposa
e companheira de vida. Além de trabalhar nas plantações da fazenda com o marido, ela
também cuida da casa, com os filhos ela cuidava das plantações roça destinada ao
sustento da família e também era parteira. A construção da narrativa acontece em três
partes: a primeira parte é narrada por Bibiana, que completamente lúcida da exploração
em que vivem, sai de Água Negra em busca de melhores condições de vida, pensando
em transformar sua realidade e a de seus parentes junto ao seu primo Severo, com quem
se casa e persegue seus sonhos. Ela estuda, faz magistério e só volta para água negra
quando já é professora. Junto ao seu marido através dos conhecimentos adquiridos fora
da fazenda, trabalham naquela comunidade questões como o reconhecimento de que são
quilombolas e também dos direitos que possuem sobre as terras em que suas famílias
vivem há mais de quarenta anos. A segunda é narrada por Belonísia, que se reconhece
também como uma pessoa explorada, porém, não consegue enxergar outra alternativa
de vida que não seja aquela, já que não pode falar, se resignando a vida que tinha ao seu
alcance, aceitando inclusive permanecer em um casamento tóxico para ela. Mesmo
resignada com a vida que levava, fazia seu melhor tendo em mente que precisava ter
alguma autonomia em seu cotidiano. Já a terceira parte é contada por um ser místico do
jarê, religião afro-brasileira, a Santa Rita Pescadeira, uma encantada que como
narradora onisciente, nos ajuda a construir uma visão panorâmica sobre alguns
personagens. Mas sobretudo, ela mostra como a colonização atravessa gerações, e como
o peso desse empreendimento do capitalismo recai sobre as mulheres. Dessa narração
podemos conhecer mais sobre Donana, a dona da faca com cabo de marfim que tanto
encantou Belô e Bibiana, sobre os mistérios que essa personagem trazia consigo e sua
história com esse objeto.
Como hipótese temos que o modo como cada uma dessas personagens se
relaciona com a questão do trabalho é divergente. Donana, a mais velha, reconhece
parcialmente seu lugar como trabalhadora, mas ofusca muitas das frustrações pelo
"amor" que sente à vida do campo. Já para Salustiana, esse reconhecimento do trabalho
não existe - e sim como uma das funções que desempenha com relação ao marido. Por
fim, Belonísia seria uma "síntese" de ambas: ela não experimenta o trabalho como uma
coisa única - há trabalho(s) reconhecido(s) por ela, há outro(s) que vê como algo
naturalizado.
As justificativas dos estudos do presente artigo se sustentam na necessidade de
analisar como o neocolonialismo avança sobre a população do campo, e como esse fato
se mostra no texto literário e as suas consequências na vida de mulheres. Temos como
foco de análise a figura feminina, busca-se fazer levantamento bibliográfico de autores
como; Silvia Federici; Angela Davis; Lélia Gonzalez, Silvio Almeida entre outros não
menos importantes para então discutir a realidade das mulheres negras ali representadas
e relacionar temas presentes na obra, que dizem respeito a situação da mulher negra e
seu papel como produtora e reprodutora, a processos históricos e coloniais que
permeiam a sociedade em dias atuais.
Ela se vê como uma das poucas pessoas capazes de lutar contra esse sistema de
exploração, e é essa visão que nos levou a acreditar que o amor que Belonísia nutria
pela terra em que vivia, assim como Donana e sua saudade das terras em que viveu seus
primeiros anos de vida, eram uma forma de alienação em relação a exploração que
sofrem.