Você está na página 1de 38

Cultura Afro-Brasileira

Helena Theodoro/2007

,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,SUM
ÁRIO

1. O papel das mulheres negras na sociedade brasileira


1.1 – A mulher negra na virada do Século XX

2.Mulher negra, religiosidade e cultura


2.1 – As diversas formas de manifestação religiosa
de base africana
2.2 – A visão de mundo africana
2.3 – O sistema religioso e sua comunicação
2.4 – O princípio feminino na concepção afro-
descendente
2.5 – O corpo e seus significados
2.6 - Os cultos na comunidade-terreiro

3.Mulher negra, tradição e carnaval


3.1 – A expansão das comunidades-terreiro
3.2 – O Rio de Janeiros e a tradição das escolas de
samba
3.3 – São Luís do Maranhão e suas tradições

4. Arte e Vida : Cultura Afro-Brasileira

5. Bibliografia

1
1. O papel das mulheres negras na sociedade brasileira

Ao estudarmos as culturas negras brasileiras precisamos, antes


de qualquer coisa, reconhecer o papel que as mulheres negras desempenharam
na preservação de suas tradições, num país que sempre manteve a comunidade
afro-descendente na mais completa invisibilidade.
Desde os tempos da escravidão as mulheres negras vem sendo
o grande esteio da mulher branca, pois além de levar os recados amorosos da
sinhá, criaram em suas casas condições de vida amena, fácil e até mesmo
ociosa. Cozinhavam, lavavam, passavam a ferro, esfregavam, de joelhos, o
chão das salas e dos quartos, cuidavam dos filhos da senhora branca e
satisfaziam às exigências do senhor. Tinham seus próprios filhos, na maior
parte das vezes, resultados de contatos com os senhores, além de contribuírem
eficazmente para o desenvolvimento harmônico das famílias brancas e para a
economia do país, pois também trabalhavam na lavoura, atuando sempre sem
esperarem nenhuma compensação.
Salvo algumas exceções, como a hoje conhecida Chica da Silva,
poucas foram as mulheres negras protegidas por coronéis ou patrões
importantes, sendo que a maioria continuou relegada ä sua condição de
servilismo ou à situação de falta de perspectivas das serviçais e domésticas das
cidades .
Giacomini (1988) comenta que no período escravagista a noção
de família e privacidade não incluía o escravo, já que o senhor tinha o direito
de decidir sobre todos os aspectos de sua vida.
A relação entre escrava e filhos como FAMÍLIA foi reconhecida
no Projeto de Lei de 1870 (Ventre Livre) :
Art. 7º- ... “Providências para manter a integridade da
família, estabelecendo-se que no caso de libertação das
escravas, os filhos menores de oito anos acompanharão suas
mães...
Não há referências a pai e filhos ou irmãos escravos. A questão
da paternidade inexiste, já que se negava aos escravos sua subjetividade,
sempre violada, negada e ignorada no que tange às relações entre mãe-escrava
e pai-escravo. A única família citada na comunidade escrava era constituída
de MÃE e FILHOS.

2
1.1 – A mulher negra na virada do século XX

No período inicial da abolição as mulheres foram forçadas a arcar


com o sustento moral e com a subsistência dos demais, já que os homens, não
tinham condições de conseguir trabalho , como haviam prometido durante a
campanha abolicionista. Assim, o homem negro ficou sem meios de prover o
seu sustento ou o da família. Neste momento, a mulher negra foi a grande
batalhadora. Trocou a senzala pelos cortiços das cidades e assumiu,
praticamente, as obrigações que possuía na fazenda, dividindo-se entre o
quarto que compartilhava em promiscuidade com os seus e as cozinhas das
famílias abastadas.
Duplicou, centuplicou seu trabalho físico e teve de encontrar
energias, consciente ou inconscientemente, para enfrentar todo um complexo
de situações novas. Passou a servir à patroa ao invés do senhor. Contribuiu,
com a humildade de seus serviços, para a emancipação das mulheres brancas,
já que a grande indústria e a organização de classes fez desaparecer o modelo
tradicional da mulher caseira e dedicada integralmente à família.
A participação das mulheres negras nas famílias brasileiras, como
amas de leite, merece um destaque, já que ocorreu em condições muito
específicas. Segundo a literatura existente no Século XIX, até a Abolição em
1988, o escravo doméstico e a ama de leite são vistos como elementos
corruptores da família branca. Tal posicionamento é decorrente da influência
cultural da ama nas relações entre casa grande e senzala, devido à forma de
transmissão para as crianças de cantigas em língua africana, bem como de
histórias e crenças.
Para Giacomini (1988) a existência das amas de leite revela mais
uma expropriação da senzala pela casa grande, já que para amamentar o filho
da senhora a escrava era impedida de alimentar seu filho negro, segundo
orientação dos médicos da época, que indicavam a sistemática separação entre
escrava-ama de leite e seu filho, levando assim as mulheres negras a negarem
sua função básica de maternidade, papel máximo de sua condição de mulher,
gerando a proliferação de abandono e morte de crianças negras.
A utilização da mulher negra como objeto sexual também não
pode ser entendida como resultado da condição da escravidão, já que tal fato
implicaria também no uso do escravo como alvo das investidas sexuais dos
senhores. Tal fato irá ocorrer com a escrava como decorrência da sociedade
patriarcal que legitima a dominação do homem sobre a mulher, sendo que a

3
sexualidade da escrava vai ser vista pelo senhor como fora do círculo familiar,
sem limites, normas morais ou religiosas, já que a mulher negra é vista como
COISA, um OBJETO SEXUAL.
. A evolução cultural brasileira e o empobrecimento gradativo das
antigas famílias tradicionais levou a mulher de classe média aos bancos
escolares, às universidades, bem como às repartições públicas e cargos
políticos. A mulher negra - empregada doméstica ou babá - possibilitou
e possibilita hoje ainda a emancipação econômica e cultural da patroa, em
cidades como as nossas, onde a organização dos serviços coletivos de creches
é deficiente. E até mesmo nas famílias que mantiveram a divisão de serviços
entre marido e mulher, quem em geral executa as tarefas que caberiam à dona
de casa é a mulher negra.
No entanto, a mulher negra e a mulata - agora rotulada como
“mulata profissional”, continua a enfrentar as barreiras criadas pelo
preconceito racial. Na competição pelo trabalho de cada dia, a mulher negra
tem menores possibilidades, até mesmo para empregos como o de doméstica
em casa de famílias tradicionais.
Quando a mulher negra consegue uma escolaridade maior ou um
treinamento efetivo de suas capacidades e tenta uma colocação como
comerciária ou industriária, esbarra com o problema do preconceito. Todos os
anúncios fazem referência sempre a jovens de boa aparência ou pedem
retrato pelo reembolso postal, fazendo assim uma filtragem de mulheres
negras nas atividades mais categorizadas . A ascensão social e econômica da
mulher negra se processa em ritmo muito mais lento do que a dos homens
negros e da mulher branca, segundo indicações de Oliveira, Costa e Porcaro,
no livro O lugar do negro na força de trabalho.
A luta pela mudança da situação ocupacional da mulher gerou o
Movimento de Libertação Feminina , dentro da uma sociedade de classes e da
exploração e dominação de uma classe pela outra. Desta forma, constatamos
que o feminismo pode ser situado como componente das representações
dominantes, já que apesar de criticar a representação do “mito da mulher
ideal” - a familiar - defende a expansão social entendida como outra variante
desta mesma ideologia dominante: a ideologia do trabalho burguês, como
liberadora e humanizadora da mulher.
No entanto, a mulher negra vive em condições de extrema
penúria, não fazendo parte deste segmento burguês de que trata o movimento
feminista mundial. Porém, os efeitos sociais da “mística feminina” são muito
extensos e profundos, já que o processo de internalização desta mística do
masculino e feminino cria uma polarização que mutila. A “mística”
manifesta-se como repressão da INTEGRALIDADE DO SER e esta seria a

4
sua função social, o seu serviço à ideologia dominante. Desta maneira, a
ocupação dona-de-casa assume um significado ou conteúdo diferente para
a mulher branca e para a mulher negra.
A luta da mulher negra, no entanto, não se prende
unicamente ao movimento feminista do século XX. Em 12 de outubro de
1657, segundo Marco Aurélio Luz (1993), a Rainha Nzinga do
Ndongo(Angola), firmou os termos do tratado de paz com os portugueses,
pondo fim a um período de lutas militares que começaram por volta de 1575,
quando o aventureiro Paulo Dias desembarcou em Luanda com o propósito de
fundar um império cristão na África. O tratado de paz foi a forma encontrada
pela Rainha Nzinga para, através de uma aliança com o rei do Congo e com os
holandeses, evitar a destruição do Ndongo cuidando de sua reconstrução e de
seu repovoamento...
Nzinga lutou de variadas formas contra um inimigo cruel e
sanguinário, que atacava pequenas populações indefesas de surpresa,
queimando casas, decepando cabeças, narizes, orelhas, além de seqüestrar
prisioneiros para embarcá-los como escravos para o Brasil. Enfrentando a
ferocidade dos portugueses a Rainha Nzinga afirmou-se na tradição mbundo-
jaga. Considerada verdadeira rainha africana, capaz de controlar a chuva que
traz fertilidade, tinha fé em Nzambi Mpungo, entidade suprema das forças
cósmicas que regulam o universo e os ancestrais, e deu continuidade à guerra
de resistência iniciada por seu pai e seu irmão.
Destacando-se no plano militar por sua invisibilidade, a Rainha
Nzinga criou uma tática guerrilheira de múltiplos deslocamentos, que
atordoavam os soldados inimigos, aparecendo quando o momento lhe era
favorável e desaparecendo com grande rapidez, além de criar os
acampamentos na floresta, os conhecidos quilombos.
O tratado feito com a Igreja, que abriu o Ndongo aos
missionários, iniciou uma outra forma de luta, baseada no controle feito por
manobras políticas , já que seria impossível vencer usando a força.
A estratégia da Rainha Nzinga se desdobrou nas Américas, seja
nos quilombos, principalmente no dos Palmares, como nas irmandades
católicas de negros, que proporcionaram espaços sociais necessários à coesão
e identidade do grupo. Ao associar as Congadas, Moçambiques, Ticumbis,
Maracatus etc às igrejas, o negro mantém os valores de ancestralidade e
realeza africana. Nas congadas encontramos a dramatização da dinâmica das
embaixadas entre a Rainha Nzinga (Ginga no Brasil) e o Rei do Congo
( Mani-Congo).
Em todas essas manifestações a presença marcante é a da mulher
negra, que luta por sua liberdade e pela da comunidade desde o Século XVI.

5
No Brasil do Século XIX, logo após a Abolição, todo um
dispositivo de atribuições de qualidade negativas atribuídas aos negros é
criado, com o objetivo de manter o espaço da participação social no país
restrito aos estreitos limites da antiga ordem escravagista.
A história da ascensão social do negro brasileiro pode ser vista
como a da submissão ideológica de um estoque racial em presença de outro
que se lhe faz hegemônico. E, desta forma, a história de sua assimilação aos
padrões brancos de relações sociais. Para a mulher negra de classe
média, a ascensão social implica numa luta contra esta ideologia dominante,
para a preservação de sua identidade. Assim, a mulher negra toma
consciência de um processo ideológico que, através de um discurso mítico
acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento, que tenta aprisioná-
la numa imagem alienada, na qual não se reconhece, como o da mulata,por
exemplo.
A mulher negra de classe pobre, que se constitui na grande
maioria em nosso país, vive no meio urbano e rural, sendo geralmente chefe
de família e sub-empregada. Na maior parte das vezes não tem os problemas
de identidade da mulher negra urbana em ascensão social !

2.Mulher negra, religiosidade e cultura

Do mesmo modo que na África Ocidental, a religião impregnou e


marcou todas as atividades do negro brasileiro, estendendo-se, regulando e
influenciando os diversos grupos culturais. Assim como os nagô, as demais
nações que deram escravos ao Brasil professam, desde suas origens, e com
ligeiras variações locais, a chamada religião tradicional negro-africana. Essa
religião se apóia numa força suprema, geradora de todas as coisas, mas,
abaixo dela, existem e são cultuadas forças da natureza e espíritos dos
antepassados.
A religião tradicional negro-africana, reposta nos terreiros, bem
no seio de uma sociedade como a brasileira, que é regulada por uma moderna
ideologia ocidental, possibilitou a coexistência e a interpenetração
multisseculares de duas ordens culturais: a branca e a negra. Desta forma, se
entende que a cultura negra vem funcionando como uma fonte permanente de
resistência a dispositivos de dominação e, também, como mantenedora do
equilíbrio emocional do negro no Brasil.

6
É importante situar que não se tratou jamais de uma cultura
negra geradora de um campo de resistência. As várias culturas
correspondentes às inúmeras nações que foram arrancadas à África entre os
séculos XVI a XIX já conheciam modificações em sua terra de origem, por
força das reorganizações territoriais e das transformações civilizatórias. No
Brasil as mudanças são ainda maiores, criando-se uma cultura negra
específica, que pode responder pela identidade cultural brasileira.

2..1 As diversas formas de manifestação religiosa de base africana

De maneira geral podem ser apontadas como religiões negras:


. o culto NAGÔ (proveniente da Nigéria, implantado pelos
iorubás e seus descendentes, de língua iorubá - chama as forças da natureza de
orixás)
. o culto JÊJE (proveniente do antigo Daomé, implantado por
descendentes da família real do Abomey, pelos fon ou mina, de língua jêje-
chama as forças da natureza de voduns)
. o culto BANTO (proveniente de vários países :candomblé
congo, candomblé angola, omolokô, candomblé de caboclo, umbanda, jarê
etc- chama as forças da natureza de inquices).
O mito é o discurso em que se fundamentam todas as
justificativas da ordem e da contra-ordem social negra. Está intimamente
ligado ao universo do simbólico, que representa a ordem ou a organização do
meio que circunda o homem desde o momento em que nasce, indo além de
sua morte.
Na cultura negra os mitos são indicadores de caminhos e meios
para a aquisição, transformação ou transferência de axé. O axé se transmite
numa relação interpessoal e dinâmica, num processo de comunicação direta,
onde a oralidade é básica e fundamental. O axé se desenvolve na
comunidade-terreiro que funciona como um centro irradiador de todo um
sistema cultural, do qual a oralidade é um de seus elementos, mas que deve ser
visto em função do todo.
Desde cantigas, textos míticos, histórias de seres ou animais,
acontecimentos importantes ou lendas, tudo explicita o universo cultural
negro, sendo instrumentos de comunicação e ensino. Os membros da
comunidade-terreiro aprendem uma língua específica, vivem em função de
uma hierarquia determinada pelo conhecimento maior ou menor de cada um,
segundo concepções filosóficas, estéticas, alimentares, musicais e de danças
que se relacionam diretamente aos mitos, lendas e refrões. Tal transmissão se

7
faz através do RITO, que é uma forma viva e participante, na qual se revivem
e reforçam o sistema de conhecimentos e de relações do grupo.
Pode-se concluir, então, que na cultura negra , o SOM, a
PALAVRA, são elementos mobilizadores, que conduzem a ação, que
propiciam AXÉ.
No ritual o Orixá é invocado, respondendo por intermédio do
transe individual do participante do culto. Assim, o indivíduo que fala é
sempre imediato, concreto, pois só dessa forma se transmite o axé,
indispensável à dinamização das trocas e da existência. Cada ato de
comunicação é único , renascendo apenas no ritual.
Graças aos orixás, cada elemento é individualizado do ponto de
vista espiritual, não sendo porém um ser isolado nem autônomo, já que está
ligado aos antepassados da humanidade, da “nação a que pertence”, do terreiro
e de sua própria família. Com o orixá, cada pessoa participa dos poderes que
governam todas estas substâncias. Assim, por intermédio do segredo do ritual,
se ligam e se constituem os vínculos comunitários, evidenciando-se a
potência do sagrado, que surge desta fusão do indivíduo na natureza, através
da dimensão cósmica.
Marco Aurélio Luz comenta em seu “Cultura negra em tempos
pós-modernos” os estudos de Michel Mafessoli e Roger Callois sobre o
significado das dimensões do sagrado, do ritual e do lúdico e de como tais
concepções foram influenciadas pelos contatos com as formas sociais da
tradição negro-africana . Analisa como o mistério e o maravilhoso são
aspectos da vida social ressaltados por Roger Callois - um dos fundadores da
Sociedade Secreta College de Sociologie (1937) - que caracterizam as raízes
profundas da existência coletiva, que gera um voltar-se voluntário para a
transcendência da potência social. Para Callois o imaginário faz parte das
coisas do mundo cotidiano, lhe propiciando ordem e sentido, apontando o
lúdico como o elemento estruturador das relações sociais cotidianas ,
expressando aspectos da libido da potência social, sendo mesmo o elemento
que tece o laço social. Pode-se entender o lúdico como a maneira que se
encontrou para enfrentar o trágico ou para cumprir o destino.
No Brasil a cultura negra usa estratégias próprias de resistência de
uma parte da população que não tem outras armas a não ser sua própria crença
na vida, no poder de realização, no seu Axé, criando com o seu imaginário
papéis fundamentais para as mulheres, apresentados em mitos e ritos, mas
vividos na comunidade.

8
2.2 – A visão de mundo africana

Segundo os mitos, os negros, após observarem o céu com as


estrelas, a lua, o sol e os meteoritos, com as nuvens, raios, a chuva e o
movimento dos ventos, constataram que abaixo deles existia a terra com uma
pluralidade de vidas, formas, animais, insetos e plantas, além de rios, lagos,
rochas e montanhas. Observaram, então, que o mundo em torno se refletia
diretamente sobre eles, verificando os limites dos poderes dos homens e de
seu conhecimento e a brevidade da vida humana. Experimentaram e
assistiram ao processo de nascimento, procriação e morte, sentindo as agonias
do corpo e da mente, fome e sede, emoções de alegria, medo e amor. Todos
os sentidos foram verificados em suas experiências. O resultado de tais
constatações foi uma construção gradual de idéias sobre o mundo e o
universo de concepções muito amplas. Tais idéias não surgiram apenas da
experiência, mas também de reflexões individuais, continuamente expressas
entre o povo sob forma de discussões, arte, música, dança etc. O intercâmbio
com outros povos os fizeram refletir posteriormente, levando-os a usar velhas
idéias e abandonar muitas das suas, levando-os a novas concepções e prática
de vida.
Tais idéias se consubstanciaram num sistema próprio, que
caracteriza toda a religião tradicional africana, independente das diferenças
culturais entre nagôs, jêjes, bantos e de seus descendentes nas Américas.
As comunidades-terreiro (egbé) funcionam como limites que
distinguem a tradição cultural negra da tradição cultural branca, se
caracterizando, segundo Luz (1992) pela frase “da porteira pra dentro, da
porteira pra fora”, que estabelece o intercâmbio entre o ethos (saber de cada
grupamento humano) do egbé e a sociedade hegemônica. Tais limites
caracterizam o espaço de poder de cada um desses contextos sociais.
O universo é considerado também em termos de espaço e de
tempo. Ninguém pode alcançar a borda do universo, desde que não conhece a
sua orla, assim, conclui-se de que não há margem no universo. Este é o
mistério da vida e da morte.
A concepção africana entende, então, que o mundo nunca terá
fim, nós é que ainda não fomos capazes de conhecer tudo. Logo, suas idéias
sobre o tempo se relacionam ao presente, passado e futuro, podendo em
alguns casos, continuar indefinidamente.
O ritmo maior do tempo são acontecimentos como o dia e a
noite, os meses, as estações de chuva e de seca e os acontecimentos que
podem ter grandes intervalos para ocorrer. Todos esses ritmos do tempo
sugerem que o universo não muda sem ser no momento em que deve mudar.

9
Esta idéia é usada nos rituais, que reconectam o homem com o
nascimento, com a morte, com o renascimento, mostrando que a vida é tão
forte quanto a morte. Isto significa que a continuidade do mundo é mais
importante que a mudança de pequenos detalhes, sendo o tempo relativo e
necessário. Enfim, o universo é considerado permanente, eterno e
interminável. Círculos são usados para simbolizar a continuidade do universo
nos rituais .
Na comunidade-terreiro se concentra o saber e o poder
religioso, que renasce a cada rito. O ritual possui uma linguagem, estilo ou
forma própria de comunicação e expressão de valores estéticos e éticos, bem
como conteúdos de saber ou de não saber que caracterizam um ethos, que
estrutura a identidade histórica e social do negro no Brasil.
`

2.3 - O sistema religiosos e sua comunicação

Para os nagô OLORUM é a força suprema. Abaixo dessa força


existem e são cultuadas as forças da natureza - os orixás - e os espíritos dos
antepassados - os eguns .
O universo nagô tem dois compartimentos principais, sendo um
aqui - o AIYÊ , onde moram todos os seres vivos - mundo visível e outro -
o ORUN, mundo invisível, de outra dimensão, que pode ser aqui mesmo,
onde moram as forças da natureza e os espíritos dos mortos. Sua
representação mais usada,segundo Santos(1977), é simbolizada por uma
cabaça (igbá-odù ou igbàdù) formada por duas metades unidas, sendo a
inferior a representação do aiyê e a superior o orun.
A luta pela supremacia entre os sexos aparece com constância
nos mitos negros, estando também simbolizada na igbàdù , já que Odudua,
princípio feminino de onde tudo se cria, também chamada Odùa -
representação coletiva das Iyá-mi (mães ancestrais), é a metade inferior da
cabaça e Obatalá ou Oxalá (princípio masculino) a metade superior.
Quem estabelece a comunicação entre os dois planos do universo
é um agente dinâmico - EXU, que se assemelha ao Mercúrio da mitologia
grega, tal a eficiência e a rapidez com que leva e traz as “encomendas “ -
EBÓ - que lhe são confiadas.
As força da natureza podem ser invocadas através dos
assentamentos (objetos onde elas se instalam para serem cultuadas) e através
de verdadeiros “altares vivos” que são as pessoas que têm o privilégio de
recebê-las em seu próprio corpo.

10
Cada elemento que constitui o ser humano se deriva de uma
entidade de origem (orixá) que lhe transmite suas propriedades materiais e seu
significado simbólico. É fundamental venerar esta matéria de origem para
que se possa prosperar e ter proteção no mundo.
Para se entender o desenvolvimento da pessoa na cultura negra,
se faz necessário entender a função de EXU, que está profundamente
associado às transformações de matéria-massa em indivíduos diferenciados.
EXU é símbolo de elemento procriado, princípio dinâmico e da comunicação,
encarregado de transportar e de restituir o AXÉ dos dois genitores míticos,
assegurando a procriação, a existência individualizada, acompanhante de todas
as unidades ou seres , possuidor de diversas representações materiais.
A origem e o destino de cada pessoa estão indissoluvelmente
associados e mobilizados por EXU. A tradição usa um mito para mostrar
como e porque Exu é fundamental para os seres humanos :
“Orumilá", que é Deus Supremo em sua função de senhor
do destino, foi pedir um filho a Oxalá. Isso ocorreu nas
primeiras épocas do mundo, quando Oxalá ainda não tinha
criado os seres. EXU YANGI , o monte de laterita , já esta-
va lá, bem vivinho tomando conta da porta da casa de Oxalá.
A mulher de Orumilá fazia absoluta questão de ganhar logo
um filho. Oxalá disse que a hora ainda não tinha chegado.
Orumilá espantou-se : "E aquele que está sentado, lá fora, à
esquerda de tua porta?”
O criador respondeu que aquele não era bem o encantador
rebento com que sonhavam. Mas Orumilá insistiu tanto que
Oxalá lhe concedeu tornar-se pai de EXU. Voltou para casa,
deitou com a mulher, e doze meses depois (preparar o renasci-
mento de Exu levar mais tempo do que o normal), ela deu à
luz um menino que foi chamado ELEGBARA, ou seja, “senhor
do poder de transformação”.
Ao nascer, já fala e pede comida. Engole tudo que lhe vem pe-
la frente. Come todos os animais que havia na terra, os pássaros,
os peixes. Acaba engolindo a própria mãe.
Orumilá não gostou.
Quando EXU aproximou-se dele, pois pretendia comer também
o próprio pai, este o esperava, de espada em punho. Exu fugiu,
mas Orumilá o alcançou, cortando e recortando-o em duzentos e
um pedaços. O ducentésimo primeiro pedaço, contudo, virou
EXU inteirinho e saiu fugindo. Orumilá alcançou-o, já no “se-
gundo céu”, de novo o retalhou em duzentos e um pedaços e o
ducentésimo primeiro fugiu, e assim por diante, até chegarem no
“nono céu”. Não tinham mais para onde ir, e resolveram entrar
em acordo.
EXU devolveria a sua mãe e todos aqueles que engolira. É por

11
isso que todos os seres vivos no mundo têm a ver com EXU, ca-
da um de nós tem seu próprio Exu, cada bicho, cada peixe, cada
pássaro, cada orixá tem seu EXU particular.”
Exu transforma tudo, por ter engolido e devolvido todos os seres
vivos do universo. Por isso tem o encargo de receber as oferendas e distribuir
os dons. É chamado ELEBÓ - “O senhor do sacrifício”.
No mito citado encontramos o orixá Orumilá - o grande
adivinho, guardião de IFÁ - o oráculo onde se delineia o destino de cada
pessoa.
O ORI - cabeça, síntese da pessoa, bem como a gravidez e o
nascimento dos filhos são possíveis graças à atividade de EXU. Com efeito,
Ori é o que individualiza, será o primeiro a nascer e o último a expirar. ORI
será também o primeiro elemento a ser venerado por um indivíduo, antes
mesmo de seu orixá, porque ORI cuida do interesse individual e pessoal,
enquanto ORIXA existe no interesse da comunidade.
Os orixás estão associados a movimentos serenos, a repouso, a
silêncio. São dotados do equilíbrio indispensável à manutenção de tudo o que
nasce e morre. Estão situados à direita de Olorum, enquanto o espírito dos
ancestrais (eguns) está à esquerda. Exu, como o elemento que faz a
comunicação do sistema, tanto pertence à direita como à esquerda.
Os mitos indicam Odudua como uma divindade fundamental e,
também é vista como o princípio criador da terra e de seus habitantes, em
lugar de Oxalá ou Obatalá, que teria sido o indicado por Olorum, mas que, ao
beber a seiva de palmeira perdeu suas forças, adormecendo e falhando em sua
missão. Odudua é considerada a chefe dos orixás do princípio feminino,
sendo associada à água e à terra. Já Obatalá, chefe dos orixás do princípio
masculino se associa à água e ao ar. São orixás-funfun, do branco , da criação.
Obatalá também se relaciona com as árvores, pois contam os mitos que para
cada ser humano que criava, ele também criava, simultaneamente, uma árvore.

2.4 - O principio feminino na concepção afro-descendente

Nas religiões da África Negra e nos cultos afro-brasileiros a


mulher ocupa um lugar destacado como doadora da vida, guardiã principal e
transmissora das tradições religiosas e culturais, sendo o laço que liga o
Sagrado com a vida biológica e espiritual, por ser a zeladora da matéria
mítica que modelou o ORI de cada pessoa.
As casas de culto ou comunidades-terreiros se constituem em
verdadeiros centros de resistência, de organização e de celebração da vida.
Nelas, pela mão de mães e filhas de santo, se tem conservado a tradição

12
cultural e espiritual dos negros no Brasil,sendo elas ainda responsáveis pela
manutenção da linhagem e representantes da força de vida (AXE).
Nestas comunidades mulheres enérgicas, descendentes de antigas
escravas libertas, transmitem mitos, ritos e uma organização dos tempos do
mundo de forma diversa dos da ideologia cristã. Reconstroem um templo
mítico e um espaço sagrado de essência africana. São elas as IYÁs ou Mães
de santo,que recriaram num novo lugar para a sua família e para a
comunidade, com suas filhas e filhos de santo : AS CASAS DE
CANDOMBLÉ ou COMUNIDADES-TERREIROS.
Funcionando como verdadeiras escolas, as comunidades-terreiros
educam as novas gerações na cultura dos antepassados, na preservação da
memória do grupo, na prática da solidariedade, da ajuda mútua, do respeito
aos mais velhos, da tolerância religiosa e racial, da cura dos males do corpo e
do espírito.
Os diversos cultos afro-brasileiros propiciam uma síntese do
vasto panteão dos orixás africanos, além de uma relação entre mito e religião
cristã, que mostra a troca entre brancos, negros e outras etnias. Representam a
reposição cultural negra, que é capaz de responder por uma identidade cultural
brasileira, já que um santo da igreja católica, como São Jorge, por exemplo,
pode ser cultuado num terreiro de umbanda como o orixá Ogum, tendo-se
então um conteúdo católico,porém uma forma litúrgica mítica, negro-africana.
Assim, a força da mulher nos cultos de base africana vai aparecer e sobressair
pelo princípio de equilíbrio de forças e pelo respeito aos papéis que
desempenha.
Existindo dentro da sociedade brasileira, as comunidades-
terreiros passaram a possuir sua própria tradição, seu regime alimentar, suas
formas de acumulação de riqueza e sua ética.
Para uma comunidade nagô , as relações dos homens com os
orixás, entre si, com os animais, com o princípio feminino ou masculino, é
sempre na dimensão de luta (IJÁ), como afirma Muniz Sodré (1983),já que as
coisas só existem pelo poder que possuímos de lutar com elas e pelo mistério
(AWÔ). Tal relação é simbolizada por EXU, orixá responsável pela
dinâmica de todas as coisas, sendo conhecido como PAI DA LUTA. O que
entra em jogo não é a violência ou a força das armas usadas, mas sim as
artimanhas, a astúcia, a coragem, enfim, o poder de realização ou AXÉ
envolvidos.
As mulheres são portadoras de muito AXÉ e viabilizam sua
expansão e preservação através dos rituais. O ritual é simbólico e faz de
cada sujeito parte de um espaço que abriga a todos . Por meio de palavras,
gestos, sons, objetos, cânticos e movimentos, reconstroem a vida, recriam a

13
mundo, libertam o ser humano , integrando-o a seu grupo. O ritual é
fundamental para a luta, tornando cada membro do grupo parceiro, elemento
sem o qual nada acontece. Nas relações entre os membros da comunidade não
existem idéias como PECADO ou SALVAÇÃO, que se apóiam numa
VERDADE única.
Através das danças rituais as mulheres incorporam a força
cósmica, criando possibilidades de realização e mudança, fazendo de seu
corpo um território livre, próprio do ritmo, liberto de correntes.

2.5. O Corpo e seus significados

No Orun (mundo invisível) estão as matérias simbólicas de


origem ou princípios de existência genérica, conforme Santos(1977),
constituídos de entidades genitoras míticas e antepassados de linhagem ou
família, que constituem uma unidade individual - o ser humano.
O corpo é um pedaço de barro modelado, retirado da matéria-
prima LAMA, que, de acordo com os mitos, serviu para a criação das pessoas,
após um acordo com o orixá IKU- morte -responsável pela restituição, que
possibilita a criação de novos corpos, estabelecendo assim uma relação direta
entre nascimento e morte.
Devolvido à terra após a morte, o corpo permite que sua matéria-
prima volte à massa de onde foi separada ao ser modelada, segundo o mito de
Ikú e sua participação na criação dos seres humanos:
“Quando Olorum procurava a matéria mais adequada
para fazer o homem, todos partiram em busca de tal
material. Muitos materiais apareceram, mas nenhum era
o adequado. Foram, então, buscar a lama, mas ela chorou
e nenhum ébora tirou a menor parcela. No entanto, Iku
apareceu e não se apiedou com o choro e levou um pouco
para Olodumare, que determinou a Iku que, por ter sido
ele a apanhar a porção de lama, deveria recolocá-la em
seu lugar a qualquer momento. Por isso, Ikú nos leva de
volta para a lama.”(Santos,1977)
Para que o corpo adquira EXISTÊNCIA precisa receber e conter
o ar-massa, chamado EMI - princípio da existência genérica, que se
materializa pela respiração e que é elemento essencial na diferenciação de um
habitante da terra (ARA-AIYÊ), de um ser mítico (ARA-ORUN). Os
indivíduos respiram, contendo o EMI em seus corpos, que foi o elemento
soprado por OLORUM (Deus).

14
Cada individuo na terra é proveniente de uma entidade de origem
que lhe transmite suas propriedades materiais e seu significado simbólico.
Tais entidades de origem - os progenitores, existência genérica , ancestrais
divinos ou familiares, se desprendem para constituir os elementos de um
indivíduo. Tais elementos , conforme Santos (1977), possuem dupla
existência: enquanto uma parte vive no ORUN - o espaço infinito do mundo
sobrenatural, a outra parte está no indivíduo, em regiões particulares de seu
corpo, ou em estreito contato com ele. Desta forma, existe um doble de cada
indivíduo no ORUN, que pode ser invocado ou representado.
O corpo de cada pessoa é composto de cabeça - ORI e suporte da
cabeça - ÀPÉRÉ , que são modelados com porções de substâncias massas-
progenitoras. No entanto, o interior de cada pessoa, o ORI-INU, é único e
representa uma combinação de elementos intimamente ligados ao destino
pessoal. É o conteúdo do ORI, que expressa a essência própria de cada pessoa,
sua existência individualizada, variando de acordo com a matéria mítica - o
ORIXÁ - de que provém. É o ORI que determinará as possibilidades,
escolhas e proibições que cada indivíduo deverá respeitar.
Contam os antigos :
“Ajalá é Orixa muito antigo. Olorum deu a Ajalá a
tarefa de modelar o ori das pessoas. Todos os dias
Ajalá faz muitas cabeças que, depois de prontas, são
colocadas ao sol. Quanto uma pessoa está para
nascer, ela antes vai até Ajalá para escolher uma cabeça.”
A matéria com que são moldados os corpos chama-se OKE
IPORI ou IPORI. O significado e importância do Ipori são muito grandes,
sendo que o Ipori é como o local onde o rio começa seu curso, representando
a nascente, a partir do qual o pequeno regato se alarga e corre.
É no Ipori que se encontra a herança de cada um, especialmente
do pai e da mãe, o que indica como as pessoas, antes de tudo, devem venerar
os seus antepassados.
Desta forma, a cabeça, o ORI, se relaciona ao odu, destino único
daquela pessoa, em razão de uma combinação única feita pelas partes que a
constituem existentes no orun, já que ao escolher uma cabeça, cada pessoa
também escolhe o seu odu, que irá reger toda a sua vida no aiyê. De acordo
com os mitos, a cabeça nasce antes do corpo, sendo mais velha que a pessoa e
até mesmo que seu Orixá .
` Nos rituais o contato com a cabeça dos indivíduos permite a
união de três forças, como diz Mestre Agenor (1994): ORIXÁ, ORI e
PESSOA numa grande cadeia, que a todos interliga. Essa reunião de forças
renova o AXÉ da casa e de cada um.

15
O alimento preferido do ORI é a noz de cola (obi), que pode ser
oferecido sozinho ou acompanhado de outros alimentos, numa obrigação
ritual - o BORI - onde se “dá comida à cabeça”.
Bori quer dizer “festejo à cabeça”, sendo que durante sua
realização os ancestrais são invocados, havendo um grande simbolismo em
relação à cabeça, que está no nascente e os pés, que estão no poente. Os pés
estão em contato direto com a terra. Logo, a cabeça recebe o Orixá, o pé é a
parte do corpo que faz a comunicação com os ancestrais, enterrados na terra e
é da terra que saem os eguns - espíritos dos mortos - que são os ancestrais
cultuados nos terreiros Ketu.
Luz (1992) conta a história de Ori, dizendo que é o orixá que
proporcionou a entrega das oferendas dos orixás a Olorum, a partir do
momento em que conseguiu partir o fruto OBI ao cair com força sobre ele.
Todos já tinham tentado e fracassado e, somente quando o fruto foi aberto é
que Olorum aceitou as oferendas. Por isso as cerimônias de Bori usam o obi
e, a partir de então, Ori precede a todos, sendo quem permite a adoração do
orixá de cada pessoa.
Pelo que se pode entender, a pessoa que fizer oferendas a Ajalá
terá uma boa cabeça e sucesso no desenvolvimento de seu destino. Desta
maneira constata-se que o conhecimento do destino possibilita sua melhora.
As diversas partes que compõem a cabeça se relacionam com o
cosmos :
fronte(oju ori) - se relaciona com iyo-orun, nascente do mundo;
occiptal (ikoko ori) - se relaciona com o iwo-orun, o poente ;
lado direito (apa-otun ori)- se relaciona com a direita do universo;
lado esquerdo (apa-osi-ori)- que se relaciona com a esquerda do uni
verso;
centro - reúne todos os aspectos do universo.
É importante frisar que a cabeça não é auto-suficiente,
precisando, para estar bem, do funcionamento de todos os outros componentes
do corpo, conforme a história de Mestre Didi :
Certa vez a cabeça, muito ciosa de sua importância,começou a
falar mal do ânus para todo mundo. Ao tomar conhecimento do que a
cabeça andava dizendo, o ânus resolveu fechar-se, paralizando suas
funções. Após três dias, todos os órgãos começaram a reclamar para a
cabeça, dizendo ser impossível trabalhar em tais condições. Logo depois foi
a própria cabeça que passou a sentir terríveis dores. Então, saiu de sua
posição para implorar ao ânus que funcionasse, situando sua
importância,dizendo-lhe logios pelo que fazia e se desculpando pelo que
dissera.

16
EXU também está ligado ao corpo, é o responsável por seu
interior, sendo o Exu Bara, o rei do corpo. Por ser o princípio do
movimento, permite a circulação das vias internas, relacionando-se às
cavidades do útero, sendo, assim, o patrono da relação sexual por fazer a
interação do sêmen com o óvulo, se ligando à placenta (Ipori) fecundada,
propiciando a vida individual. É o terceiro elemento, o procriado. É Exu que
faz a transferência da matéria de origem do orun para o aiyê, propiciando o
desenvolvimento das mesmas, permitindo a fisiologia do recém-nascido .
Exu se relaciona ainda às funções da boca, respondendo pela fala,
que torna singular, bem como com a comunicação, estando relacionado à
mobilização do destino individual, como diz Santos (1977). Outro aspecto
ligado ao corpo,também situado por Juana Elbein dos Santos, em Os nagô e a
morte, é a memória - IYE, que possui duas qualidades:
a) - memória ancestral - acompanha e conduz o emi ( respira
ção) à terra dos sonhos enquanto dormimos ,e após a morte, quan
do o emi volta para o orun;
` b)-memória de experiência adquirida - capacita os indivíduos e
possibilita a lembrança das experiências vividas e a acumulação
de informações e conhecimentos.

A cultura negra ao valorizar o corpo, indica os cuidados que se


devem ter com a cabeça e as demais partes que o compõem, além de utilizá-lo
em sua relação com o sagrado e com o lúdico, numa visão filosófica,
fisiológica e psicológica.
Os rituais vão fazer o uso do corpo, seja na dança, no toque dos
atabaques, nas reverências ou na postura dos membros do egbé em diferentes
situações. Elementos simbólicos significativos e fundamentais permitem aos
movimentos corporais a exteriorização de um sentimento ancestral ou de uma
determinada força cósmica, que , através do corpo das mulheres, transmutado
em altar vivo, propicia a criação de um tempo mítico, numa reunião de
pessoas, natureza, orixás e ancestrais que a todos fortalece e impulsiona pelas
trocas de AXÉ. Cada orixá tem movimentos próprios que o caracterizam e
que são traduzidos pelo corpo em forma de canto e dança.

2.6 -OS CULTOS NA COMUNIDADE- TERREIRO

As comunidades-terreiro desenvolvem diversos tipos de culto,


ligados à religião tradicional africana:
- o culto às folhas - a Ossain
- o culto aos ancestrais- de Egungun

17
- o culto a Ifá- representação de Orumilá, orixá da
Sabedoria, o senhor do destino(odu).
- o culto aos orixás

As folhas possuem um poder sobrenatural e se constituem em


elementos indispensáveis a quaisquer atividades dos cultos, havendo mesmo
uma expressão em iorubá,que traduz bem tal obrigatoriedade: Kò si ewé Kò sí
òrìsà (sem folha não há orixá).
As folhas estão no espaço mato das comunidades-terreiro, que é
o espaço reservado às árvores sagrados e às plantas utilizados nos rituais.
Cada folha tem propriedades particulares, sendo que misturadas, segundo
Barros (1993)podem produzir preparações para diferentes usos, sejam
mágicos ou medicinais. O orixá Ossaim é o responsável pelas folhas e por seu
preparo, apesar de existirem outros orixás habitantes do espaço mato, como
Àròni, Ogun e Oxóssi.
Destaca ainda Barros (1993) que as folhas estão ligadas a seus
genitores míticos, sendo que sua utilização reforça este ou aquele aspecto
feminino e/ou masculino, restabelecendo a ligação complementar Terra/Agua.
Logo, se pode concluir que as folhas veiculam o seu axé e ativam a
potencialidade do elemento ao qual o orixá está ligado, mantendo sua relação
com as divindades femininas ou masculinas, podendo ser positivas ou
negativas, sendo importante saber-se juntá-las para se obter a combinação
adequada.
Um outro espaço do terreiro é o espaço urbano, onde ficam as
edificações de uso público e privado, tais sejam o barracão dos rituais
públicos, as casas dos orixás,os quartos destinados à reclusão das
iyawo(noviças), a cozinha ritual e o conjunto de habitações permanentes ou
temporárias dos iniciados que fazem parte do terreiro. Entre as construções ,
no limite do espaço mato, encontra-se a casa onde são adorados os mortos e
onde se encontram seus lugares consagrados ou assentos, é o Ilê-Ibo-Aku ,
local onde ninguém da comunidade-terreiro de orixá pode se aproximar .
As comunidades-terreiro de candomblé cultuam os orixás,
associados às forças da natureza. Já as comunidades-terreiro de culto de
Egungun reverenciam os ancestrais, chefes de clãs ou líderes que se
destacaram por atos excepcionais durante suas vidas, havendo uma separação
rigorosa na realização desses cultos, já que cada um tem doutrina e liturgia
próprias.
O culto aos ancestrais é exclusivamente masculino, sendo o
espaço onde se reverencia a memória dos antepassados chamado Ilê Igbalê -
representação de antiga clareira no interior da floresta africana, a eles

18
consagrada. Sua função é atuar como uma ponte entre o Babá(pai) e seus
descendentes para a transmissão e preservação dos valores culturais do grupo.
Egungun ou Babá simboliza conceitos morais e representa o
mistério da transformação de um-ser-deste-mundo em um ser- do-além. Oya
Igbalé, entidade feminina conhecida como Iansã Balé é considerada rainha e
mãe dos Egun, já que comanda o mundo dos mortos.
O sacerdote supremo do culto aos ancestrais, Mestre Didi -
Deoscóredes Maximiliano dos Santos - é o ALAPINI, maior autoridade
religiosa do culto, estando à frente do Ilê Asipá, em Salvador, que preserva a
tradição de sua família. O culto dos Egun remonta ao início do século XIX,
sendo um dos mais antigos terreiros o Ilê Agboulá, em Ponta de Areia, Ilha de
Itaparica, Salvador, onde Mestre Didi fez sua iniciação como ojé (sacerdote de
egun), chegando até a Alapini.
Nas comunidades-terreiro, seja de orixá ou de egun, nada se faz
sem a consulta ao oráculo de Ifá, sem o jogo feito pelo Oluô, o pai do
mistério. Segundo Mestre Agenor (1994) Ifá é o orixá da adivinhação e para
tudo deve ser consultado.
Dois tipos de jogos podem ser feitos: o opelê-Ifá e o jogo de
búzios. No jogo de búzios, usado por babalorixás e ialorixás com dezesseis
cauris, quem fala é Exu. A consulta a Ifá, segundo a tradição, é atividade
unicamente masculina, apesar de algumas mulheres se aventurarem em sua
prática.
Variados são os rituais para cultuar os orixás. Destaca-se o do
XIRÊ, onde as pessoas encarregadas do culto prestam suas homenagens a seus
orixás, decidindo como a casa será ornamentada, que comida será servida,
quem serão os convidados, que roupas serão usadas etc., após consulta a
Iyalorixá. Durante o XIRÊ o ritmo dos atabaques chama os orixás e dá início
a um conjunto de danças e cânticos, que encenam histórias, relembram feitos,
transformando o barracão num verdadeiro palco onde são revividos os mitos
que os caracterizam . Fala-se que os filhos de santo, pouco a pouco, adquirem
muitas das características dos Orixá, assim, identificar algumas características
é mergulhar um pouco para dentro de cada um de nós.
Enfim, cada orixá apresenta sua maneira de ser aos presentes,
mostrando-se em toda a plenitude, na festa da união na diversidade. Todos os
presentes dançam, cantam e saúdam os Orixás, entrando em contato com o
orun, através da orquestra ritual :

alabê - que tira as cantigas e marca o ritmo com o agogô e com o


xekerê (cabaça de contas);

19
três ogãs que tocam os atabaques sagrados (run, rumpi e lê).

Recorrendo-se aos mitos para caracterizar os orixás, constata-se


que apresentam sempre um equilíbrio de forças entre os princípios feminino e
masculino. Encontra-se neles o reconhecimento das potencialidades e
características das mulheres que podem, inclusive, submeter os homens. Há
sempre uma equivalência física e psicológica entre princípio feminino e
masculino. O papel reservado a Odudua e a Obatalá na criação
do universo, sua luta pela supremacia e o acordo que fizeram para manter-se
unidos, única maneira de se conservar a existência do mundo, são
incrivelmente ilustrados nos mitos, que também esclarecem significados
rituais e evidenciam o equilíbrio do cosmos.
Os rituais implicam num sacrifício, pois estabelecem trocas
simbólicas entre a comunidade-terreiro e as forças invisíveis que nela atuam.
Para se entender o sacrifício, se faz necessário distinguir entre a existência
genérica (forças da natureza) e a existência individualizada (seres criados
O sacrifício é uma forma de restituição simbólica que se faz aos
orixás ou existência genérica, da energia que constitui a capacidade de vida de
cada um. o sacrifício é o centro de todo o sistema, por permitir a restituição e
redistribuição do AXÉ, sendo a única forma de se manter o equilíbrio entre os
diferentes componentes do sistema cosmogônico, isto é, entre o mundo visível
e o invisível, garantindo assim a sua continuidade. Quem estabelece tal
dinâmica é EXU, mensageiro que leva e entrega as oferendas em seu lugar-
destino, permitindo o completamento o ciclo do sacrifício.
Quem determina o sacrifício ritual é Ifá, por ser a representação
de Orumilá, o orixá da adivinhação e da sabedoria. Ifá foi encarregado do uso
do conhecimento para a interpretação do passado, do presente e do futuro,
além de propiciar a ordenação geral da Terra. O babalaô, através do jogo de
búzios, recebe a mensagem de Ifá por intermédio do símbolo-resposta, que é o
ODU. O ODU possui histórias características, que indicam a oferenda que
Exu deverá transportar.

3. Mulher negra, tradição e carnaval

As comunidades-terreiros surgiram de confrarias religiosas


baianas, especificamente da Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora das

20
Portas do Carmo, fundada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário do
Pelourinho(negros de Angola) e da Irmandade de Nossa Senhora da Boa
Morte da Igreja da Barroquinha (mulheres nagôs como Iyá Nassô). As
mulheres tiveram um papel fundamental em sua organização, tornando-as
espaços estruturadores de identidade e de formas de comportamento social e
individual.
Por sua importância para a preservação da identidade do
segmento negro da população brasileira, as comunidades-terreiros,
principalmente as nagôs, se reformularam e disseminaram pelo país, tomando
feição regional segundo a influência do grupo africano. Daí a diversidade de
nomes com que são conhecidas: candomblé, na Bahia; xangô em
Pernambuco, Alagoas,Paraíba; tambor no Maranhão; batuque no Rio Grande
do Sul; macumba em São Paulo; macumba, quimbanda e umbanda no Rio
de Janeiro.
A perseguição impiedosa feita aos quilombos no Brasil devida à
íntima relação entre as insurgências negras e as comunidades religiosas de
base africana, além da ameaça representada pelo Quilombo dos Palmares ,
onde Zumbi provou a possibilidade sucesso econômico, político e social da
convivência democrática entre negros, brancos e índios e da socialização da
terra, oportunizou a liderança religiosa das mulheres, já que o governo
promoveu um extermínio brutal dos líderes religiosos. O culto aos orixás que
pode ser liderado por homens e mulheres encontrou na mulher negra o
principal esteio para a manutenção das tradições religiosas e culturais da
comunidade.
A religião como forma de coesão possibilitou a formação de
grupos e associações cujo sistema de crenças veiculou maneiras particulares
de interrelacionamentos, normas , ações e valores que deram a essas
comunidades características próprias. Analisando tais conteúdos, encontram-
se não apenas aspectos da religião, mas também a continuidade e reelaboração
de um complexo cultural básico que insiste feroz e dinamicamente em existir,
com valores singulares e diversificadas formas.

A primeira comunidade conhecida , que organizou publicamente


o primeiro terreiro de culto aos Orixás, dedicado a Xangô Afonjá, Orixá da
casa dos Alafin, reis de Oió, surgiu na Barroquinha, fundado por três
africanas, sendo uma delas descendente de Kétu -sacerdotisa Iyá-Nassô,
tendo se instalado no Engenho Velho. Foi o ILÊ IYÁ NASSÔ, também
conhecido por CASA BRANCA, de onde saíram os mais importantes terreiros
Nagô que fizeram da Bahia a conhecida ROMA NEGRA, como dizia a

21
saudosa Mãe Aninha- OBA-BIYI. Assim foi implantada a tradição de Oyó
e Kétu na região.
A CASA BRANCA foi a primeira casa de culto público com
inúmeras personalidades do mundo Nagô e onde os Kétu tiveram papel
preponderante. Sua principal dirigente foi a Iyalase Marcelina da Silva,
Asipá Borogu Elese Kan Gongô Obatosi: brazão oral de sua família -
Iyá-Nassô Oyo Akala Magbo Olodumare Axe Da Ade Ta, nome
tradicional de Iya-Nassô, sacerdotisa de Xangô no Palácio de Alafin-Oyó na
Nigéria. Seus nomes ilustres são citados até hoje por todos os que mantém a
tradição de Oyó e Ketu, destacando-se sempre a energia e liderança de Iyá-
Nassô, que em sua casa de culto reagrupou quase todas as personalidades do
mundo nagô, sendo o ponto do qual se derivaram duas casas tradicionais da
Bahia: o ILÊ OXOSSI, situado na “Fazenda Gantois” e , mais tarde, o ILÊ
AXÉ OPO AFONJÁ, Estas três casas mantém, até hoje, a herança material
e espiritual legada por seus fundadores e, somente na Bahia, nutrem cerca de
oitocentas casas de culto que continuam a tradição jeje-nagô, orientando
inúmeras outras por todo o país.
Algumas MÃES DE SANTO saudadas e respeitadas por
personalidades da vida cultural do país merecem destaque especial pela
dignidade e força que imprimiram e continuam mostrando como mulheres
negras brasileiras, que só eram discriminadas,desrespeitadas e rejeitadas.
Além de Iyá Nassô, destacamos Iyá Obá Biyi ou Mãe Aninha (Eugênia
Anna dos Santos), iniciada nos mistérios do culto nagô por Iyá Nassô,
fundadora do Axé Opô Afonjá em São Gonçalo do Retiro, tendo sido
responsável pela ampliação da comunidade-terreiro, ao criar uma pequena
quitanda de ingredientes africanos e brasileiros, organizando-a como
sociedade civil, permitindo assim o desenvolvimento e autonomia da
comunidade que passou a se denominar Sociedade Beneficente Cruz Santa
Opô Afonjá, funcionando não só como centro preservador das heranças
africanas no Brasil, mas também como pólo irradiador de uma nova cultura,
recriada por descendentes de escravos, mestiços e outros , interessando a
intelectuais e pesquisadores do país e do exterior por sua peculiaridade e
identidade cultural.
Um outro nome que se destaca na tradição dos terreiros é o de
Maria Bibiana do Espírito Santo, MÃE SENHORA- sucessora de Mãe
Aninha no Axé Opô Afonjá. Mãe Senhora, com apoio de seu filho Mestre
Didi (Deoscóredes Maximiliano dos Santos) , artista plástico reconhecido
internacionalmente, sacerdote do culto a Obaluaiê - orixá patrono das
doenças epidêmicas- ALAPINI - sacerdote supremo do culto aos
antepassados (EGUNGUN), restabeleceu os laços com a Nigéria , recebendo o

22
título de Iyá-nassô e presentes do Obá Adeniran Adeyemi, Alafin Oió, por
intermédio do antropólogo Pierre Verger. Tal fato, ocorrido em 1953, marcou
o reinício das relações religiosas entre África e Bahia, intercâmbio que se
mantém permanente até os nossos dias.
Mãe Stella de Oxóssi é a atual ialorixá o Axé Opo Afonjá, sendo
nome conhecido e respeitado em todo o país, por sua capacidade de liderança
e pela luta que vem desenvolvendo contra o sincretismo religioso.

3.1- Expansão das comunidades-terreiro

As comunidades se constituem num verdadeiro sistema de


alianças, que varia segundo sejam de “variáveis homogêneas” (candomblés)
ou “variáveis heterogêneas”(umbanda etc). Desde a simples condição de
“irmão de santo “ até a mais complexa organização hierárquica, há o
estabelecimento de um parentesco comunitário, como uma recriação das
linhagens e da família extensiva africana. Os laços de sangue são substituídos
pelos de participação na comunidade, de acordo com a antiguidade,as
obrigações e a linhagem iniciática. Todos estão unidos por laços de iniciação
às divindades cultuadas, aos demais iniciados, às autoridades, aos
antepassados e aos ancestrais da comunidade. As mulheres são as peças
fundamentais dos rituais comunitários já que seus corpos se transformam em
verdadeiros altares vivos que recebem, distribuem e multiplicam o AXÉ ou
energia de vida dos orixás, dos ancestrais e dos participantes.
Os cultos afro-brasileiros se constituem num sistema iniciático,
adquirido e transmitido de forma especial. Seus componentes vivem uma
experiência em que recebem, absorvem e desenvolvem um poder místico e
simbólico, poder de realização ou AXÉ, PRINCÍPIO QUE TORNA
POSSIVEL O PROCESSO VITAL. .
O sistema de conhecimento , por ser iniciático, só pode ser
apreendido na medida em que é vivido pela experiência, só tendo significado
quando incorporado de maneira ativa. Cada participante vive o rito, durante
o qual o mundo histórico, psicológico, étnico e cósmico negro se reatualiza. A
possessão o singulariza definindo as variáveis de participação nos diversos
grupos. A transmissão dos valores se dá de forma dinâmica a nível de
relações interpessoais concretas.
A transmissão oral é uma técnica a serviço do sistema dinâmico e
fundamental característica do sistema iniciático. A palavra, a invocação, se
apóia no poder dinâmico do som, sendo que os textos e cânticos rituais estão

23
investidos de poder. Há uma simbiose especial entre a expressão dinâmica
oral e a estrutura rítmica.
Por tais concepções se pode entender que as comunidades-terreiro
são espaços abertos, onde a liberdade de ser, viver e se expandir estão
garantidas a todos, independente de sexo, etnia ou cultura.

3.2- O Rio de Janeiro e a tradição das escolas de samba

Desde o início do período colonial grupos de origem banto


concentravam-se no Rio de Janeiro, provenientes do Congo e de Angola, bem
como em São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais. No Rio desenvolveram-
se dois tipos de cultos:
a) segundo padrões basicamente africanos: o candomblé de
Angola ou candomblé do Congo, posteriormente influenciado pelos nagô;
b)segundo padrões variados, apesar da base africana: o
candomblé de caboclo , a umbanda e a quimbanda.
A partir da segunda metade do Século XIX um número
considerável de negros baianos, formado de ex-escravos e seus
descendentes,vieram para o Rio, vivendo nos bairros do centro da cidade,
como Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Nesta área, como conta Mestre Agenor
(1994), surgiram as primeiras casas de candomblé carioca, como a de João
Alabá, de Omulu, na rua Barão de São Felix,Saúde. Neste terreiro foram
iniciadas Tia Ciata e Carmen do Xibuca.
Em visita ao Rio com Bamboxê e Obá Saniá, Mãe Aninha, a Oba
Biyi fundou em 1886 uma casa de candomblé , no bairro da Saúde. Volta para
a Bahia e em 1910 funda o Axé Opo Afonjá, de São Gonçalo do Retiro.
Retornando ao Rio, em 1925, inicia sua primeira filha de santo
carioca, Conceição de Omulu. Com o falecimento de Mãe Aninha, em 1938,
sua sucessora, Agripina de Souza, de Xangô, transfere o axé para Coelho da
Rocha, mantendo a tradição ketu e o axé do Opo Afonjá. Após Mãe
Agripina, quem passa a chefiar o Axé Opo Afonjá do Rio é Cantulina
Pacheco, filha de santo de Mãe Aninha e neta carnal de Obá Saniá, sendo
que ,em 1989, resolveu retornar a Salvador.
No Rio de Janeiro, a baiana Tia Ciata da Oxum (Hilária Batista
de Almeida), conhecida no início do século por suas ligações diretas com o
samba de morro carioca, gerador das conhecidas “escolas de samba”, provou
todo o poder das Ayabá ou mães de santo por realizar em sua casa, na Praça

24
Onze, festas processionais negras, que proibidas pela igreja no Dia de Reis,
foram deslocadas para o período de Carnaval.
Martha Abreu (2002:88) em seu trabalho sobre Religiosidade
Popular no Rio de Janeiro do século XIX, situa como as festas populares
identificam-se com comilança e fartura, já que resgatavam significados
litúrgicos das festas do Divino Espírito Santo e da origem africana dos
escravos e libertos da cidade, representando assim renovação, fim das
enfermidades e distribuição de dons e graças a todos
Desde os tempos de Tia Ciata, no quintal de quem muito se
consumiu comida e arte, sabor e saber vem se confundindo. Não podemos
pensar em reunião de sambistas sem pensar no prazer do preparo e degustação
de pratos e iguarias, feitas pelas baianas e pelos mestres da arte de cantar e
cozinhar.
As escolas de samba foram criadas em reuniões festivas, bem como
muitas associações foram feitas regadas a petiscos, cervejas, almoços e
jantares. A comida engendra a criação , fazendo com que o sagrado e o
profano, com suas múltiplas representações simbólicas, engendrem no
Imaginário Social um conjunto de relações imagéticas que atuam como
memória afetiva de uma cultura, sendo expressa em seus rituais e cantigas,
como constatamos no Quitandeiro de Monarco e Paulo da Portela:

Quitandeiro leva cheiro e tomate


Pra casa do Chocolate que hoje vai ter macarrão
Prepara a barriga macacada
Que a bóia está enfezada e o pagode fica bom

As festas sacras ou profanas se fizeram presentes no cotidiano da


cidade, mesclando diversas culturas e trazendo sempre a comida como
presença obrigatória. Constantemente o povo negro da cidade descia os santos
dos altares, batendo os tambores para acabar com as calamidades, afastar
epidemias, festejar a vida, sempre com muita música e muita comida.
Seja na tradição de Angola/ Congo – banto, como na da Nigéria – nagô,
cozinhar é considerado um ato sagrado e os alimentos são tratados de forma
ritualística. A história da cultura popular do Rio de Janeiro mostra uma
ligação profunda de pais e mães de santo com o samba ,assim ,os rigores
gastronômicos da vasta culinária dos terreiros de candomblé, caboclo e
umbanda determinou a identidade de cada espaço onde o samba floresceu.[
Laços familiares se estreitaram com laços de consideração ou
afinidade, atualizando os laços de reunião e resistência em torno da comida e
do samba.

25
Noites inteiras são destinadas ao preparo dos alimentos que fazem
parte das festas, sendo que pessoas especiais em cada comunidade de samba
têm a responsabilidade de preparar as carnes dos animais, os cereais, os
legumes, as frutas. O espaço da cozinha é de alto significado para a vida dos
deuses, sua manutenção e a renovação do axé – elemento vitalizador das
propriedades e domínios da natureza , quando o sagrado se aproxima do
homem pela boca, ficando, por isso este espaço nas mãos das conhecidas “tias
baianas”, as senhoras mais velhas da tradição. A cozinha é o lugar onde as
baianas transformam morte em vida, usando os temperos, a água, o azeite e o
fogo.
Para as baianas quituteiras, que se relacionam ainda com a tradição
afro-brasileira, a cozinha é um espaço de criação, de manutenção da saúde da
comunidade e de celebração de seus orixás, que representam a energia da
vida. O preparo dos pratos podem ser acompanhados de cantigas, palmas e
toques e em alguns espaços mais tradicionais, de samba de roda.
Não faltam nas festas grandes mesas com muita comida e arranjos de
frutos que representam sementes que germinaram e deram frutos saudáveis.
Pode-se observar a diferença e a variedade de pratos produzidos de uma
escola para outra, de uma comunidade de sambistas para outra ,apesar de a
feijoada ser o prato mais tradicional hoje nas grandes reuniões de samba
Para a tradição dos terreiros cada orixá, por ser uma energia diferente da
do outro, é celebrado de forma diferente e com alimentos próprios.
Segundo Lody (1998:78) a feijoada é dedicada a Ogum e, também para
Omolu, servida para toda a comunidade, sendo seu preparo de alto
significado ritual , representando a união do trabalho e da fé, tanto na Bahia
como no Rio de Janeiro.
João Baptista Vargens, em seu livro A Velha Guarda da Portela. , ao
falar das ruas onde nasceu a Portela em Oswaldo Cruz, trata da relação entre
saber e sabor, situando como a cozinha pontua e perpetua o encontro dos
sambistas:
Rua Dutra e Melo – Quintal do Manacéa, reunião da Velha Guarda nos anos
70, regada a muito miudinho e muita galinha com quiabo feitos por Dona
Neném, tudo devidamente registrado por Leon Hirzsman em seu
documentário Partido Alto.
Rua Adelaide Badajós – local da feira das quartas, ponto de encontro da
“confraria” da Velha Guarda para a compra do peixe e para a famosa
cervejinha e o tira-gosto.
Rua Antonio Badajós – rua onde moraram a pastora Doca e seu Altair . local
que se tornou famoso pelas sopas de legumes e de ervilhas, regadas a um

26
pagode de primeira e onde a Velha Guarda passou a se reunir na segunda
metade dos anos 70.
Quintal do Argemiro – numa vila, perto do boteco e da padaria. Ponto de
encontro dos anos 80 para beber e saborear corvina ensopada.

Rua Julio Fragoso – local do famoso Cafofo da Surica, onde atualmente a


Velha Guarda Show se encontra em eventos especiais, sendo as grandes
especialidades do espaço macarrão com galinha e feijoada.
Uma figura de Oswaldo Cruz que não se pode deixar de comentar é a
famosa Tia Vicentina,eternizada por Paulinho da Viola num samba de 1972,
onde se encontram as rodas de samba de Norival Reis e a mítica feijoada de
Tia Vicentina . Vicentina do Nascimento, irmã do mítico Natal, fundador da
escola, desfilou anos na Ala das Baianas da Portela e trabalhou no barracão na
confecção de inúmeros carnavais. Seu jeito festeiro e seu carisma foram
muito conhecidos quando durante um desfile com muita chuva, num domingo
de carnaval de 1973, enquanto a Ala das Baianas se arrastava
melancolicamente, com suas saias e rendas desfiguradas, Tia Vicentina,
sozinha, no meio da passarela, jogava beijos e era ovacionada pela platéia.
Mulher extremamente vaidosa, dona de incríveis habilidades culinárias, Tia
Vicentina exercia em toda a sua plenitude a arte de receber e servir, fazendo e
decorando com capricho os mais variados pratos . Para quem conviveu
naqueles tempos, saborear a canja, o mulato-velho, o bobó de camarão, o
mocotó. , o macarrão com galinha e especialmente o feijão da Vicentina era
um verdadeiro bálsamo. Mas Vicentina também era famosa por sua voz, linda
e firme. Vicentina e Iara, sobrinha de Seu Napoleão, participou como pastora
da gravação do histórico Portela passado de glória, em 1970, em tributo aos
baluartes da escola. Assim, mais vez, sabor e arte reunidos num só elemento:
Tia Vicentina.
Já no Salgueiro os quitutes encontrados nas barraquinhas são macarrão
com carne assada e sopa de ervilha. As barraquinhas em frente ao Império
Serrano vendem angu à baiana . Na verdade, as festas do samba , tal e qual as
festas dos terreiros, duram o dia todo, exigindo, assim, uma comida que
mantenha a comunidade bem alimentada durante muito tempo. A escolha do
cardápio irá se ligar à liderança da comunidade e à sua capacidade de manter a
energia do grupo , como também a facilidade de preparo em grande
quantidade e a baixo custo, sem se abrir mão do sabor e da qualidade.

O culto de umbanda apresenta similaridades com as religiões


tradicionais africanas, apesar das diferenças e variações na forma do culto aos

27
ancestrais. No culto dos Egungun dos nagô não existe incorporação, o que já
ocorre no candomblé de caboclo - homenagem aos ancestrais indígenas, donos
da terra - e na Umbanda. A incorporação na umbanda se dá através de
sacerdotes e sacerdotisas e as referências aos ancestrais são genéricas,
situando uma nação, como, por exemplo, Vovó Maria Conga .

As mulheres estão presentes nos cultos de Umbanda, sendo muito


significativa sua atuação como aglutinadoras da comunidade e mantenedoras
das tradições e obrigações rituais. A Umbanda mantém as mesmas
características das religiões tradicionais africanas:
. culto a uma entidade suprema (Zambi ou Zambiapongo);
. a crença num mundo visível e outro mundo invisível ;
. interação entre os dois mundos feita por EXU;
. a aceitação de forças cósmicas que sustentam e dinamizam a existên
cia do Universo ;
. existência de espíritos de ancestrais que são cultuados e invocados;
. uso do rito para oferendas e atuação no mundo visível;
. transmissão de conhecimentos através da oralidade;
. uso de processo rituais de revelação do destino e de oferendas (jogo de
búzios);
. uso do corpo como instrumento de mediação com os espíritos e ori
xás.
Os cultos de base africana se conjugaram no Rio de Janeiro pela
enorme força de coesão e preservação de identidade das comunidades-
terreiro, contando também com a presença do discurso kardecista, que
justificou a adesão dos não-negros aos cultos de Umbanda e de Candomblé
de caboclo.
Os diversos grupamentos culturais cariocas, sejam ranchos, blocos ou
escolas de samba, portam suas bandeiras, que se reportam às cores dos orixás
e à tradição de sua comunidade. Na história das bandeiras um pouco da vida e
da arte de seus ancestrais.

Tendo marcado presença com os ranchos, fundados pelas baianas que moravam na
Pedra do Sal , o estandarte- substituto dos ancestrais,signo de comando- deu vida ao
bailado do Mestre-sala e da Porta-bandeira, representando a defesa de uma cultura oriunda
de um passado africano- dos rituais de fertilidade que garantiam a continuação da vida –
transformando-se; depois, em bandeira- sinal de coletividade.

A bandeira do Salgueiro tem as cores vermelho e branco , que se relacionam às


cores do orixá Xangô, senhor da pedreira e protetor da escola - surgiu da união das escolas

28
Unidos do Salgueiro, que tinha as cores azul e rosa; Azul-e-Branco, escola liderada por
Antenor Gargalhada e a Depois eu Digo, com as cores Verde-e-branco.
Em seu emblema instrumentos musicais do samba – tambor, caixa, pandeiro, chocalho,
baqueta .

O Império Serrano, que tem como símbolo - uma coroa – teve o risco de sua
bandeira originado pelas mãos hábeis de Mestre Antonio Caetano. , tendo as cores verde e
branco, escolhidas por representarem a esperança e a paz, respectivamente.

- Foi também Antonio Caetano o idealizador da atual bandeira da Portela.


Inspirada, segundo ele próprio, no povo japonês. Caetano usou as cores azul e branco
inspirado no manto de nossa senhora da Conceição, e introduziu a Águia como símbolo
máximo da escola.

- A Estácio de Sá tem na bandeira as cores vermelho e branco,adotada em 1983, tendo


como emblema um leão. Esta bandeira mantém as cores da primeira escola de samba do
Rio de Janeiro, a Deixa Falar, criada em 1928. O Estácio foi anteriormente Unidos de São
Carlos, com as cores azul e branco, resultado da fusão das escolas Cada ano sai melhor,
que tinha a bandeira verde e rosa: da Vê se pode, que teve posteriormente o nome mudado
para Recreio de São Carlos e que tinha as cores verde e branco e da Paraíso das Morenas
que tinha as cores azul e rosa.

A Mangueira surge do pedido de Cartola para que o morro acabasse com a disputa
dos diferentes blocos e criasse um bloco que fosse uma escola de samba. Assim, no dia 28
de abril de 1928 Cartola forma com seus companheiros a Estação Primeira de Mangueira e
sugere as cores verde e rosa, as mesmas do Rancho Arrepiados, dos carnavais de sua
infância..
Um grande surdo de marcação é o emblema da Mangueira, que se destaca por sua marcação
única, sem resposta.
A Vila Isabel tem sua bandeira azul e branco, com uma coroa no meio. As cores
são uma homenagem a Seu China - , um dos estimuladores e fundadores da escola, que
morou no Morro do Salgueiro, tendo pertencido à antiga escola Azul e Branco, antes de se
mudar para o Morro dos Macacos . A escola surge após um desfile do Bloco Acadêmicos
da Vila e de seu encontro com Seu China, que sugere a fundação da escola e que
disponibiliza o seu quintal para os primeiros ensaios ..

As visitas às escolas co-irmãs portando as bandeiras, levadas pelo Mestre-sala e


sua Porta-bandeira se mantém no universo do samba , sendo conhecidas como
“Embaixadas”.
Durante os ensaios nas quadras os diretores de harmonia abrem um espaço no
meio da multidão, criando uma grande roda no meio do salão, bem em frente à bateria e
ao palanque dos puxadores, que se alonga até as extremidades à direita e à esquerda,
para permitir que Mestre-Sala e Porta-bandeira, seguidos de baianas e passistas, possam
apresentar a bandeira. Normalmente são dois casais de Mestre-Sala e Porta-Bandeira

29
que se apresentam . Começa o primeiro casal, que baila na quadra, apresentando a
bandeira para a bateria, para o puxador e para o presidente e demais autoridades
presentes ao ensaio. Desenvolvem harmonicamente passos que simulam um cortejar e
proteger a dama e a bandeira, representando o orgulho do grupo pela instituição que
representam e o reconhecimento da importância da parceira, companheira de lutas ,
responsável pela continuidade histórica do grupo. Em seguida se apresenta o segundo
casal, que após percorrer toda a quadra, volta ao centro para dançar com o primeiro
casal, formando um encontro de bandeiras, num ritual pleno de gestos e movimentos
expressivos, que comunicam à platéia uma mensagem de individualidade - a dança e de
coletividade – o símbolo da escola, a bandeira.

O casal por carregar a bandeira, que representa a comunidade à qual


pertencem, se tornam um verdadeiro cartão de visitas da escola . Suas roupas são sempre
suntuosas e bem cuidadas, nas cores da bandeira, sendo que a porta-bandeira usa sempre
uma ampla saia que representa o principio feminino- capacidade de reprodução e
manutenção do grupo. O Mestre sala usa um leque , lenço de seda ou bastão, sinais de
nobreza, de poder. Segundo o depoimento de Ronaldinho do Salgueiro, os antigos mestres-
salas protegiam a bandeira e defendiam a porta bandeira com seus passos de capoeira e com
o leque - que escondia a navalha –além do lenço de seda, que, segundo os mais velhos,
cegava a navalha do adversário.

3.3 - São Luís do Maranhão e suas tradições

No Maranhão, na cidade de São Luís, encontramos a CASA DAS


MINAS , conhecida como tambor de mina - culto chamado de candomblé,
xangô, batuque, macumba etc em outras regiões do país. O tambor de mina
vai se caracterizar por ser mais um dos cultos afro-brasileiros em que as
entidades são cultuadas, invocadas e incorporadas principalmente por
mulheres. A CASA DAS MINAS é o nome pelo qual se conhece o mais
antigo terreiro do estado, devendo ter dado origem às outras casas do lugar,
sendo Mãe Andresa( Andresa Maria de Sousa Ramos- 1914/1954) uma de
suas vodunces mais respeitas e famosas em todo o país. Conhecida também de
Casa Grande das Minas ou Casa das Minas Jeje, por ter sido fundada por

30
negros jêje (provenientes do sul do Benin, ex-Daomé) a Casa das Minas do
Maranhão é ainda chamada de QUEREBENTAM DE ZOMADONU ou
Terreiro de Zomadonu, nome da divindade protetora dos fundadores.).
Cita Ferretti(1985) que a Casa das Minas foi fundada,
provavelmente, entre as décadas de 1820 e 1840, sendo seu documento mais
antigo datado de 1847, em nome de Maria Jesuína e suas companheiras. Os
voduns estão subdivididos em famílias com características próprias. Os mais
jovens, ou toquens, abrem os caminhos e chamam os mais velhos. As tobossi
ou meninas, são comparáveis aos eres dos candomblés da Bahia. Cerca de
sessenta divindades são conhecidas na Casa das Minas, sendo a grande
maioria desconhecida em outros terreiros. Apesar dos mitos sobre as
divindades não serem mais lembrados pelo grupo, seus rituais,no entanto, são
bem detalhados e numerosos.
As filhas atuais, dirigidas por Mãe Celeste, nome conhecido e
respeitado em todo o Maranhão, afirmam que os voduns(orixás ou divindades)
cultuados na casa pertenciam à família real de Abomey, e que foram
estabelecidos por Nan Agontime (viúva do Rei Agongolo - 1789 /1797)e mãe
do futuro Rei Ghezo - 1818/1859), parte da família real vendida como escrava
para o Brasil.
Segundo Pierre Verger ( 1981), São Luís é o único lugar fora da
África onde são conhecidas e cultuadas divindades da família real do Abomey.
Entretanto, outros pesquisadores afirmam que no Haiti também existem
deuses desta mesma família. Os membros da casa afirmam que sua fundadora
foi Mãe Maria Jesuína, que adora Zomadonu, o que leva os pesquisadores a
supor que Maria Jesuína e Nam Agontime sejam a mesma pessoa, mistério, no
entanto, difícil de ser decifrado, já que as mais velhas não falam sobre o
assunto, que é um dos segredos intocáveis da casa.
Atualmente encontramos grande número de tambores de mina em
São Luís, seguindo rituais que se dizem nagô, angola, cambinda, fanti-ashanti
etc, juntamente com terreiros de umbanda e de cura ou pajelança.
O tambor de mina relaciona-se ao modo de pensar e de agir do
grupo, que se orgulha de suas raízes e que exterioriza sua fé numa explosão de
criatividade e de organização, demonstrada em festas que funcionam como
uma espécie de teatro popular, onde vestimentas, comidas, bebidas e música
aglutinam pessoas, sobrepujando conflitos com solidariedade e cooperação,
utilizando-se mecanismos de compensação de papéis entre pobres e ricos, bem
como entre fortes e fracos.
A Casa das Minas, com sua predominância absoluta de mulheres,
apresenta uma das características gerais das religiões afro-brasileiras, sendo as
atribuições específicas para o homem e a mulher bem definiddas e

31
delimitadas,já que cabe aos homens o toque dos tambores e às mulheres o
toque de outros instrumentos e a queda no estado de transe.
O culto de tambor de mina, por envolver o indivíduo do
nascimento até a morte, sendo um sistema de vida e um elemento de
preservação de sua dignidade humana, vem proliferando em São Luís, que já
conta com um número considerável de terreiros bem antigos e atuantes, cerca
de 278 casas, como a Casa de Nagô dirigida por Mãe Dudu na Rua das
Crioulas ou o terreiro de tambor de mina Abassa de Iemanjá, do bairro da Fé
em Deus.
É relevante citar que seja de que origem for, a comunidade-
terreiro, em todo o país, se caracteriza por ser um espaço de liberdade e
encontro, pela troca de axé, pela participação fundamental das mulheres, pela
aceitação da sexualidade das pessoas, sem questionamento de preferências
sexuais e pela adoção do parentesco- de- santo como formador da família, que
passa a ter uma dimensão bem diversa da concepção judaico- cristã,
estabelecendo uma forma muito própria de ver e entender o mundo.
Os mitos atribuem o poder das Ìyà-mi às mulheres velhas,
proprietárias de uma cabaça que contém um pássaro, porém, qualquer mulher
pode recebê-lo como herança de sua mãe ou avó.
É importante lembrar que a imagem do pássaro se relaciona com
a do peixe que tem um significado semelhante, já que as penas e as escamas,
pedaços do corpo materno, são símbolos de fecundidade e do poder de
gestação das Iyá-mi.
O culto das Iyá-mi vem da Nigéria e do Daomé, organizado na
sociedade GÈLÈDÉ que existiu no Brasil, mas que, segundo Santos(1977)
pouco se sabe a respeito. Sua última sacerdotisa suprema foi Omóniké,
conhecida pelo nome de Maria Júlia Figueiredo, que foi Iyálaxé do mais
antigo terreiro nagô, o Ilé Iyá-Nassô e tinha o título de Iyálóde Erelu. Após
sua morte , não se teve mais notícia dos festivais anuais , nem da procissão
que se realizava no bairro da Boa Viagem. A Sociedade GELEDE utiliza até
hoje na Nigéria, máscaras finamente esculpidas e vestes muito coloridas,
sendo que parte dos objetos rituais usados por Omóniké na Boa Viagem,
especialmente paramentos de cabeça esculpidos, foram levados para o Axé
Opó Afonjá. As festas da GELEDE, com suas oferendas e ritos, eram
celebrados em todos os dias oito de dezembro, aproveitando o feriado em
louvor a Nossa Senhora da Conceição da Praia, associada a Oxum.
O título de Iyálóde não é apenas um dos títulos de Oxum e Nanã,
mas também, como situa Santos(1977) aponta a responsável na comunidade
pela reunião das mulheres para discussões públicas de seu interesse, bem
como sua representante legítima no palácio, no conselho e nos tribunais

32
locais, sendo o título mais honorífero que uma mulher pode receber e que a
coloca automaticamente como líder das mulheres e representante do poder
ancestral feminino no AIYÊ.
O Abêbê, leque ritual de Oxum e Iemanjá, é o emblema da
Iyálóde, símbolo da cabaça-ventre com o pássaro-procriação.
A sociedade feminina GÉLÉDE permite a participação dos
homens, mas não em sua cúpula, sempre constituída por uma sociedade
secreta feminina e seu objetivo é cultuar as Iyá-agbá em festivais públicos,
onde a dança, o ritmo e a abundância de cores nas vestes arredondadas são
oferecidos ao público , a fim de propiciar fecundidade e fertilidade,
enfatizando a feminilidade.
O símbolo de seu poder está representado por Éfè, o pássaro-
filho, símbolo masculino e do elemento procriado, demonstração do seu
poder de gestação, já que sem os poderes místicos das mulheres não há
continuidade de vida nem dos valores da sociedade.

Os cultos afro-brasileiros se apóiam no MISTÉRIO (Awô), pois


reconhecem que PENSAR NÃO É CONHECER. É um processo de
libertar-se de programações. É deixar-se atravessar pelo movimento de
uma relação livre que não está afivelada a nenhuma declaração. A
LIBERDADE REAL é tanto negativa quanto positiva, sendo
CRIATIVA. O segredo está na manutenção do EQUILÍBRIO do
universo e na consciência de que toda consciência é uma representação
de sofrimentos, medos e dores, e que tais representações criam
instituições. As soluções são sempre UMA LUZ DE FALTA DE LUZ.
Muniz Sodré ao prefaciar Contos Crioulos da Bahia de Mestre
Didi situa a história da cultura afro-brasileira como sendo “ a história do seu
silêncio, das circunstâncias de sua repressão, tendo a oralidade como
necessária à sua dinâmica interna e ao seu posicionamento de defesa
diante da cultura dominante. Daí o primado da TRADIÇÃO que é o
meio de conservar e transmitir o saber de uma geração a outra”.
É muito importante que se procure olhar os contos negros por
diversos ângulos. A negra velha contadeira de histórias é um estereótipo
mantido na sociedade brasileira. No entanto, não se conhece o sentido nem a
finalidade dessas histórias. Os contos transmitem formas de pensar e de se
comunicar dos negros, sendo que os contos de Mestre Didi, o Alapini, um
dos mais eminentes sacerdotes da tradição nagô , da família Asipá , se
destacam dos demais gêneros e formas literárias por terem uma maneira
própria de mostrar os valores da comunidade, sempre afirmando a identidade
do grupo. Essas histórias ao mesmo tempo que esclarecem os valores

33
civilizatórios deste segmento populacional , mostram sua luta por integração e
reconhecimento pela sociedade global.

Através de sua fé, de seu Axé, as mulheres negras de diferentes


comunidades religiosas conseguiram trazer até nosso dias imagens
sacralizadas de seu passado, que se volta para a mitologia africana, apontando
insistentemente, por meio da tradição oral, para as estratégias mais diversas de
insubordinação simbólica, que lhes possibilita criar mecanismos de defesa
para a sobrevivência e a manutenção de seus traços culturais de origem.

4. Arte e Vida : Cultura afro-brasileira

A cultura negra apresenta uma estreita relação entre Arte e Vida,


fazendo com que exista uma profunda ligação entre as diversas formas de
manifestação artística com os fatores sociais, históricos e culturais específicos
das comunidades em que surgiram e onde se desenvolveram.
Os objetos artísticos tem finalidade e papéis diversos, sendo que
os objetos sagrados, enquanto manifestações estéticas , representam também
categorias de qualidades diversas: veículo de forças místicas, estimuladores da
liturgia, componentes do todo da manifestação religiosa.
As comunidades-terreiros utilizam a palavra ODARA para
exprimir o que é bom, belo e útil.
Cumpre salientar que a concepção do belo se liga à arte e a todo
o meio litúrgico e sócio-cultural negro, numa visão muito própria e muito
diversa da existente no mundo judaico-cristão .
No mercado, na cozinha , no barracão, na equipe de costura, na
organização de festas e recepções, a mulher negra vem cumprindo os seus
papéis arquetípicos segundo os mitos africanos: nutre, protege, organiza, cria.
Clementina de Jesus foi um documento vivo dessas raízes
africanas, além de representar as batucadas e partidos cantados nas rodas de
samba e candomblés das casas das famosas tias baianas do início do século,
bem como as modas de viola que ouvia de sua mãe, que as recebeu como
herança de nossos antepassados. Mãe Quelé era a força dramática do canto
negro em sua expressão máxima, por ter raízes profundas num processo
civilizatório africano, que se apóia na tradição - comunhão com a coletividade
- caracterizador da identidade cultural do negro no Brasil. Clementina foi a

34
primeira grande cantora negra que pode manter íntegra a sua pureza, ajudando
por isso a caracterizar uma forma brasileira de linguagem musical. Seu canto
é fonte inesgotável para a configuração de um retrato vivo e real de nossa
música : sambas de roda, cantigas de reisado, incelenças, jongos, caxambus,
corimas, vissungos ...

Para Dona Neuma da Estação Primeira de Mangueira,durante o


ano inteiro a mulher guarda na alma e no sangue a sua necessidade de criar, de
mostrar a sua arte de variadas formas: na cozinha do barracão, no atelier de
fantasias, no recorte e colagem das alegorias, no samba no pé dos ensaios da
quadra. É ela que põe o bloco na rua! Hoje, para Dona Neuma, a mulher é
dona de tudo e mostra o seu valor, vivendo seus papéis como baiana
quituteira, passista, porta-bandeira, costureira, diretora de ala , responsável
pela escola de samba mirim, enfim as mulheres lutam por sua identidade e
dignidade, apesar da guerra surda e silenciosa que contra elas se trava.

Hoje em dia as baianas se constituem em quesito obrigatório do


desfile das escolas de samba. No entanto, apesar de nada funcionar sem elas
na escola, não são muito valorizadas pelas diretorias, que não se ligam à
tradição. Não podemos dizer que as baianas sejam maltratadas, no
entanto não ocupam o lugar que merecem, já que nem sempre as pessoas que
têm poder, que constituem as diretorias, fazem parte da história do samba.
Teresa Santos, atriz e carnavalesca de escolas de samba de São
Paulo, afirma que a mulher no carnaval mostra bem a relação Brasil real
versus Brasil oficial. Para o Brasil oficial a mulher no carnaval continua
sendo um mero objeto sexual, cultivando-se assim o mito da sexualidade da
mulata e o pseudo-erotismo da raça negra, no entanto, no Brasil real nada se
faz sem ela.
A escola de samba existe porque a mulher negra faz com que ela
exista. Durante trezentos e sessenta e dois dias por ano, ela faz toda a
movimentação social dentro da escola, além de ser sua mão de obra mais
barata. Está na mulher a garantia de que o carnaval vai para a rua. No
entanto, a ala das baianas é vista como um espaço pejorativo, como o final da
reta da vida de uma mulher. As tias baianas , de muitos panos e muito
brilhos, criam técnicas específicas para as escolas de samba, enquanto que as
porta-bandeiras simbolizam a beleza, criatividade e dignidade das mulheres do
samba.
O universo simbólico da cultura negra integra e compõe a
palavra. A palavra negro-africana tem um sentido abrangente: faz

35
história,sendo elemento constitutivo da identidade profunda da comunidade ,
sendo uma arte.
Ao usar a palavra transbordando em emoção a mulher negra
torna visível o invisível, tornando-se mulher-poema, olho no olho, que
se faz janela do mundo, ensinando o espírito a compreender que
invisível é o que não é visto e que se faz ver. Mulher, olho-farol,
tornado janela da alma.

, As pessoas transformam a natureza a partir de uma prática


adquirida pelo trabalho. Obtém idéias e com essas idéias reformulam a
prática. Os seres humanos pensam. Tem consciência e esta surge ligada à
reflexão sobre a realidade objetiva. É a consciência que leva o homem a
tentar cada vez mais dominar a natureza. Porém ele ultrapassa seus limites e
possibilidades, inclusive a força do próprio pensamento, passando a concorrer
com a natureza, pintando na caverna o que não conseguia caçar. Desta forma,
inventa a arte , como magia , ritual que tenta transformar o que não se
consegue por meio de formas técnicas. E de associação em associação
inventa novas palavras, chega à abstração, codifica sons, descobre signos e se
expressa em palavras escritas sob forma estética: a literatura.
A literatura atua em nossas vidas para unir os mitos
fundamentais da comunidade, de seu imaginário ou de sua ideologia. Na
literatura brasileira, no entanto, o negro é a palavra excluída, ocultada com
freqüência, ou uma representação inventada pelo outro, sendo sempre o
elemento marginal.
João Ubaldo Ribeiro realiza em sua obra Viva o povo brasileiro
um verdadeiro poema épico, onde realça a pluralidade cultural brasileira, sem
folclorizações, subvertendo a tradição literária vigente até os anos sessenta,
valorizando nossas tradições indígena e africana. Comprova a viabilidade de
um povo brasileiro que constrói o futuro do país com suas crenças, seus rituais
e sua própria maneira de manipular o mundo, além de valorizar em sua
personagem Dadinha a capacidade da mulher negra de manter as tradições do
grupo, através das histórias de sua gente, passadas de geração a geração.
Conhecidas em nossa cultura popular como grandes contadoras
de histórias, sintetizadas por Monteiro Lobato na velha “Tia Anastácia”, as
mulheres negras sempre mantiveram a tradição oral de sua cultura, ensinando
através de bichos que falam, do saci-pererê, das aventuras de tios africanos e
de mitos dos orixás. Suas histórias, porém, eram recolhidas e escritas por
outros, folclorizadas. Hoje, no entanto, já se registra uma forma peculiar de
literatura das mulheres negras , como Elisa Lucinda, Conceição Evaristo, Lia

36
Vieira, Geni Mariano Guimarães e muitas outras, que caracterizam na
literatura sua condição e sua identidade. , ressaltando-se de que elas existem,
publicam e precisam ser conhecidas como artistas da palavra marginal,
sendo uma das falas dos excluídos, já que a literatura sempre se caracterizou
por mostrar as peculiaridades , costumes e crenças de todos os segmentos
populacionais que constituam um país.

5. Bibliografia:

AZEVEDO, F. de (1958). A cultura brasileira – introdução ao estudo da cultura no Brasil.


3ª ed. , Tomo terceiro: A transmissão da cultura. Obras completas. São Paulo:
Melhoramentos.
BAKTIN, M. (1993). A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de
François Rabelae. São Paulo: Hucipec.
BOKNHEIN, G. et alii. (1987). Cultura brasileira tradição contradição. Rio de Janeiro:
Zahar.
BURKE, P. (1989). Cultura popular na idade moderna. São Paulo: Companhia das Letras.
CABRAL, Sergio(1996). As escolas de samba do Rio de Janeiro.Rio de Janeiro: Lumiar.
DAMATTA, Roberto (1997). Carnavais, malandros e heróis.Para uma sociologia do dilema
brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar.
ENEIDA(1958) História do Carnaval Carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A
GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e escrava. Uma introdução histórica ao
estudo da mulher negra no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1988.
LARIA, R. de B. (1998). Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar.
Lima, Lana Lage et alii. História e Religião. Rio: FAPERJ;Mauad,2002
Lody, Raul. Santo também come. Rio, Pallas, 1998.
LUCINDA, Elisa. Sósias dos Sonhos. Rio de Janeiro: Impressora Velha
Lapa,1994.
LUZ,Marco Aurélio. (1995) Agadá: Dinâmica da Civilização Africano-Brasileira. Salvador:
UFBA/Secneb
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo na
sociedade de massa. ,Rio de Janeiro: Forense Universitária,1987.
_________________ . O conhecimento comum: compêndio de sociologia
compreensiva. São Paulo: Brasiliense,1988.
PEREIRA CUNHA, Maria Clementina.(2001) Ecos da Folia – uma história social do
carnaval carioca entre 1889 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras..
SANTOS, J. L. dos. (1993). O que é cultura? São Paulo: Brasiliense.
SANTOS, J. Elbein (1977) _Os nagô e a morte. Petrópolis: Vozes.
THEODORO,Helena (1996)Mito e Espiritualidade: mulheres negras. Rio de Janeiro, Pallas.
TINHORÃO, José Ramos(2005). Música Popular – um tema em debate. São Paulo: Editora
34.
Vargens, João Baptista e Monte, Carlos.. A Velha Guarda da Portela.Rio:

37
Manai, 2004.
VELHO, G. (1993). Cultura popular e sociedades de massas. Piracema: nº 1.

38

Você também pode gostar