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AS FILHAS DA AFRICANA JOSEPHA: RESISTÊNCIA E PERMANÊNCIA NO

QUILOMBO DA INVERNADA DOS NEGROS. CAMPOS NOVOS/SC.

Renilda Vicenzi1
Eliane Taffarel2

Resumo: Iniciamos nossa trajetória de pesquisa ao localizarmos no Primeiro Tabelionato na cidade


de Lages/SC uma carta de alforria condicionada. Era o ano de 1866 quando Josepha, de nação, idade
de trinta anos, mais ou menos, Margarida, de idade de cinco anos, mais ou menos, [..], Damazia, idade
de um ano mais ou menos [...], Inocência, quarenta anos, mais ou menos [...], foram nominadas em
carta de alforria condicionada por seus senhores. Passados mais de um século, em 2003 a senhora
Angelina Garipuna participava em uma reunião como representante da Comissão de criação da
associação de quilombolas, e naquele momento se efetivou a associação quilombola da Invernada dos
Negros. O que os corpos racializados de Josepha, Damazia, Margarida, Inocência e Angelina tem em
comum? A trajetória destas mulheres será descortinada ao longo do texto, mas já afirmamos que as
mesmas, em sua temporalidade e coletivo, possibilitaram a vida, a existência e a permanência da
comunidade quilombola. E para analisar, a partir de nosso corpo documental que são atas da
associação, registros eclesiásticos, cartoriais e judiciais, o papel desempenhado pelas mesmas nos
aportamos na intersecção entre raça, classe e gênero. Entendendo que não há sobreposição, mas que
estas categorias se entrelaçam e nos permitem perceber as extrínsecas e intrínsecas relações de
resistência e de conquistas destas mulheres.
Palavras-chave: Mulheres quilombolas. Trajetórias. Raça. Permanência.

Introdução

As vozes das mulheres negras foram silenciadas ao longo da história, e com empatia nos
reportaremos a trajetórias de mulheres quilombolas e desejando que a elas tivesse sido possibilitado
oportunidades de tê-las registrado. Que possamos contribuir para os não-silêncios, para o lugar social
que estas mulheres ocuparam/ocupam, tendo presente que as autoras deste texto falam de lugares3
distintos das mulheres negras remanescentes quilombolas da Invernada dos Negros.
A produção historiográfica acerca da história dos/as negros/as em Santa Catarina vem
rompendo com a invisibilidade a que estavam legados até final dos anos de 1980. Pesquisas com

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Doutora em História e professora no Curso de História da UFFS/Campus Chapecó/Brasil. E-mail
reby.vicenzi@gmail.com. O texto faz parte do projeto guarda-chuva ‘Escravidão e pós-abolição no Brasil Meridional’, e
ao Núcleo de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros e Indígenas- NEABI/UFFS Chapecó.
2
Mestre em História e professora na rede pública municipal de Chapecó. E-mail: elianetaffarel@gmail.com.
3 Djamila Ribeiro afirma que todos têm lugar de fala, pois todos têm localização social. Porém, destaca que é preciso que

pessoas do grupo social privilegiado, em termos deste local social, possam enxergar as hierarquias que existem e são
produzidas a partir desse lugar e perceber como ele impacta na constituição dos lugares dos grupos subalternizados.
Ribeiro salienta que as pessoas negras, na sociedade brasileira que é escravocrata, experienciam o racismo do lugar da
opressão, enquanto as pessoas brancas experienciam do lugar de quem se beneficia dessa opressão. “Logo, ambos os
grupos podem e devem discutir essas questões, mas falarão de lugares distintos” (RIBEIRO, 2019, p. 85).

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temática de escravidão e liberdade quer no contexto escravista ou de pós-abolição são parte do atual
debate acadêmico e que se propõe a inserção na sociedade, quer através de instituições ou movimentos
sociais. Pensar a constituição histórica catarinense requer adentrar nos vestígios do passado/presente
de mulheres e homens que viveram na condição de escravizados e libertos, e ainda os processos do
pós-abolição. Conhecer e refletir sobre as mulheres negras quilombolas é mais um dever histórico
para com as injustiças históricas (invisibilidade, negação, racismo, exploração, exclusão, abusos)
sofridas pelas mesmas.
O território desta comunidade situa-se na área rural dos municípios de Campos Novos e
Abdon Batista – SC, é composta por quatro localidades, a Corredeira (local onde se encontra o
cemitério), Manuel Cândido (nome de um dos filhos do legatário Manoel de Souza), Arroio Bonito e
Espigão Branco. Nas quatro localidades residem homens e mulheres que compõem gerações de
legatários, ou seja, ocupam um pedaço de chão que pertenceu a seus pais, seus avós, seus bisavós, ali
está a memória de pertencimento ao passado e as vivências do presente.
A comunidade remanescente quilombola da Invernada dos Negros é um território que fora
legado no contexto da sociedade escravista brasileira, quer seja, no ano de 1877 um senhor - Matheus
José de Souza Oliveira, que por última vontade doa parte de suas terras aos seus escravizados e
libertos. A nominação invernada está associada a uma propriedade ou parte dela com criação de
animais e cultivo agrícola, “a minha terça a qual lhes será dada em Campos e terras lavradias dentro
da Envernada”; e ‘dos negros’ remete a cor na condição do cativeiro. Não entendemos a doação como
um ato de benevolência, mesmo que a propriedade da terra era entendida no oitocentos como forma
de sobrevivência e de ascensão social, somente com ela não significa sobreviver, e quando nos
reportamos a homens e mulheres negros/as cujo cativeiro é acionado cotidianamente em suas vidas,
torna-se ainda mais complexo. Entendemos que esta doação se insere no campo das negociações e
conflitos entre senhores, escravizados e libertos, porosidade da sociedade escravista, na luta por
direitos4.
Refletir acerca do passado/presente de mulheres (meninas, moças, mães, esposas, avós) negras
quilombolas é adentrar no arcabouço de estudos de histórias sensíveis, com experiências de
sofrimento mas, sobretudo, de gritos por liberdade e resistências.

4 Segundo Reis & Silva na sociedade escravista houve a função ideológica da brecha camponesa, o que evidencia
negociações: “O fato de que esse ‘pequeno direito de propriedade’ destine, primordialmente, a prender o escravo à
fazenda, não anula sua importância – tanto econômica quanto psicológica – para um produtor direto ‘embrutecido’ por
severas relações de produção. Com efeito, os escravos lutam tanto para manter quanto para ampliar esse direito”. (REIS;
SILVA, 1989, p. 31)

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Uma comunidade negra rural
Ao se tornarem proprietários de terras, mas sem acesso à cidadania e outros direitos básicos,
gradativamente as condições de vida tornam-se cada vez mais precárias e a exclusão é fato. A terra
recebida não significou inserção social, visibilidade e mobilidade, pois ao longo do novecentos foram
excluídos, roubados e segregados. No contexto de comunidades negras do pós-abolição podemos
inferir que estes indivíduos foram imersos pelos discursos alicerçados no colonialismo, no racismo e
no branqueamento. De acordo com Grada Kilomba: “Áreas negras segregadas representam lugares
com os quais pessoas brancas não se importam, ou não ousam ir, e dos quais mantém uma distância
específica”. (KILOMBA, 2019, p. 167). No caso da Invernada dos Negros, os brancos ousaram ir
para enganá-los e roubar parte de suas terras, extrair araucárias e introduzir plantação de pinus.
A terra e seus proprietários eram alvo de ataques sistemáticos de homens brancos ‘de posses’
e letrados cujo objetivo era a exploração da terra, da mão de obra e da expropriação. Podemos citar a
família Bottini, que ao longo de décadas, tentou e teve êxito em usurpar parte do território; ainda o
advogado Henrique Rupp Junior que ao cobrar honorários da ação de legalização das terras escolheu
e obteve significativa área de terra de campos na Invernada (de acordo com a memória da comunidade
cerca de 70% da área) e, na sequência, as comercializou. Entre os compradores, uma indústria de
celulose - a firma, como é chamada pela população local, com sede no distrito de Ibicuí – Campos
Novos/SC, que retirou a vegetação nativa, introduziu a plantação de pinus e passou a utilizar a mão
de obra local. O relato de dona Angelina Fernandes da Silva evidencia o que era a vida e o trabalho
na firma:
A gente sofreu muito, pobre, filho bastante, trabalho, para trabalhar era só aí com essa firma
Iguaçu, com sacrifício, porque não tinha na época um animal para puxar o pinus era tudo nas
costas, a minha família, eu mesma trabalhei, justamente, como escravo porque não é fácil se
trabalhar no meio do pinus desse aí, e puxar o pinus nas costas e carregar os caminhão tudo
a muque5.
A ‘firma’ se instalou na década de 1950 e lá permanece. Relatos como o citado, nos permitem
inferir que havia ali exploração com trabalho forçado, onde os corpos eram levados ao limite da
exaustão e da dor, e certamente muitas mulheres trabalharam nesta condição enquanto carregavam
seus filhos no ventre e durante a amamentação.
Apesar da titulação (2004) a retomada de todo território (cerca de 8000 hectares) tem sido um
longo caminho judicial aos remanescentes quilombolas. No entanto, nos espaços (cerca de 1000

5Invernada dos Negros - documentário. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=TCyu-Tb6D1o. Acesso em


novembro de 2019.

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hectares) onde os remanescentes conseguiram permanecer/resistir e, após a titulação ter de volta uma
pequena parte, as atividades são principalmente de subsistência com o uso comum da terra.
O quilombo da Invernada é uma comunidade negra rural que se insere no campo de estudos
do pós-abolição, e está vinculada ao parentesco, ao pertencimento à terra, ao reconhecimento e
orgulho de sua ancestralidade. Rios; Mattos (2004) nos propõem pensar o pós-abolição com enfoque
nas lutas por direitos e cidadania, frente a uma sociedade que se caracteriza pela exclusão das
experiências e vivências das populações negras. É um campo de estudos (pesquisa e diálogo) com
novos/outros problemas, objetos, abordagens e fontes. Frente ao ‘paradigma da ausência’, este novo
campo de estudos vem construindo e contribuindo para o paradigma da visibilidade dos próprios
sujeitos e seus grupos.
E ainda, segundo o historiador Flávio Gomes: “As formações rurais do pós-emancipação
foram caracterizadas como um ‘campesinato itinerante’, marcado por famílias negras organizadas por
parentesco, culturas ancestrais e uso comum do território”. (GOMES, 2018, p. 392). As atividades
nesta comunidade consistem no trabalho laboral que é caracterizado pelo cultivo (roças) e criação de
animais para consumo local. Os habitantes da comunidade remanescente quilombola se identificam
como homens e mulheres que ‘lidam’ na terra e com o gado bovino e cavalar. Isso está calcado na
tradição do uso da terra que perpassa gerações (libertos e seus descendentes) e que está interligado
por relações de parentesco e tradições culturais presentes na memória coletiva, e como estudado por
Rios (2007); Rios e Mattos (2005), nesta comunidade também apontamos para a existência de um
campesinato negro.
Nossa abordagem são as mulheres negras remanescentes quilombolas, aqui representadas
pelas Josephas, Margaridas, Damazias, Angelinas e que historicamente foram marcadas pelo gênero
e raça, fatores determinantes na invisibilidade social. As falas iniciais no documentário ‘Tua cor bate
na minha’ demonstra a importância de estudarmos estas mulheres quilombolas com olhar destas duas
categorias: “credo filho, você largou da mãe, agora, para ficar com essa coisa preta aí”6; “Quando ela
me xingou me chamou de negra, derrubei ela lá e fiz xixi e mostrei aonde tava a negra, na boca dela”7.
Estas mulheres convivem com a racialização de seus corpos. Racialização que matém as
mulheres negras e as mulheres brancas em espaços de desigualdades e de privilégios. O que temos
nas falas citadas é o comportamento colonial com a expressão do racismo situando o lugar de
subalternidade da mulher negra. Segundo Arendt, “[...] a raça é, do ponto de vista político, não o

6 Sueli de Souza. Documentário ‘Tua corte bate na minha’. Acervo Unochapecó.


7 Maria Luzia Lopes. Documentário ‘Tua corte bate na minha’. Acervo Unochapecó.

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começo da humanidade mas o seu fim, não a origem dos povos mas o seu declínio, não o nascimento
natural do homem mas a sua morte antinatural” (ARENDT, 1989, p. 157). São corpos que
experenciam rótulos raciais - ‘coisa preta’, e aqui entendido como desumanização.
O estudo de mulheres como categoria analítica na pesquisa histórica - campo historiográfico
intitulado “História das Mulheres e das Relações de Gênero” -, vem na contramão/negação da
universalização dos sujeitos, quer seja o homem branco, cristão, ocidental. Entendemos a abordagem
de gênero a partir da existência de múltiplas identidades e ao mesmo tempo identidades não fixas
(BUTLER, 2003, p. 24-25).
Estudar a mulher negra é apropriar-se de uma narrativa histórica que parte da negação e do
silêncio que atingiram suas histórias. A pesquisadora, militante e feminista negra Lélia Gonzalez
dedicou-se ao estudo do lugar das mulheres negras na sociedade brasileira, destacou a importância
das mesmas “exatamente porque com sua força e corajosa capacidade de luta pela sobrevivência,
transmite-nos a nós, suas irmãs mais afortunadas, o ímpeto de não nos recusarmos à luta pelo nosso
povo”. (GONZALEZ In LUZ, 1982, p. 103-104).
As mulheres na Invernada dos Negros possuem uma experiência histórica, cultural e um lugar
social central na comunidade. Elas resistiram à sua maneira e em seu tempo sendo fundamentais na
constituição e na defesa da comunidade a que pertencem.

As filhas de Josepha8
No século XIX, no interior da província de Santa Catarina, na fazenda São João pertencente
aos escravagistas Matheus José de Souza e Oliveira e Pureza Emilia da Silva, a africana Josepha vivia
em união consensual com Domingos, formando uma família junto com os filhos Manoel, Margarida
e Damazia. Esta família escravizada recebeu alforria condicionada em 1866 e foram nominados como
legatários de terra no testamento de 18779.
Sobre a crioula Innocência, de mais ou menos 40 anos de idade em 1866, os vestígios
documentais são poucos, sendo somente nominada na alforria e no testamento. Além de viver a maior
parte de sua vida na condição de escravizada é possível que ela tenha tido filhos e apadrinhados na
fazenda São João ou fora dela.

8 Para fins desse artigo, vamos focar na trajetória das mulheres negras da família de Josepha. Para saber mais sobre a
trajetória dos legatários da Comunidade da Invernada dos Negros, ver: TAFFAREL, 2019.
9 Acerca da alforria e do testamento indicamos a leitura de TAFFAREL, 2016.

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Sobre Josepha podemos inferir que chegou ainda criança na condição de escravizada ao
território brasileiro, e certamente após a Lei de 183110, o que em tese seria uma africana livre, mas
não foi o que ocorreu. Nada sabemos sobre quem era Josepha antes do tráfico, quem era sua família,
que língua falava, qual porto foi embarcada..., ela assim como milhões de africanos submetidos à
diáspora foram desterritorializados, violentados e submetidos a égide do colonizador. No Brasil,
também não temos conhecimento dos lugares que passou antes de chegar a fazenda São João.
Acompanhamos sua vida através do nascimento dos filhos, da alforria e do testamento de 1877
quando estava na condição de escravizada, já que sua alforria estava condicionada a morte de seus
senhores. Após essa data, provavelmente, juntamente com Domigos (esposo) acompanhou a viúva
Pureza Emilia da Silva, que passou a residir na província do Paraná. Josepha foi mãe e esposa,
deixando como legado inúmeras descendentes – os atuais remanescentes quilombolas da Invernada
dos Negros.
Os registros cartoriais (eclesiásticos e civis11) são as fontes que nos possibilitaram seguir os
vestígios da vida das descendentes da africana Josepha. A liberta Margarida casou-se com cerca de
15 anos, em janeiro de 1876, com Domingos Fernandes da Silva. Já a liberta Damazia Maria de
Souza, casou-se com cerca de 13 anos de idade, em 24 de outubro de 1878, com Diocleciano
Fernandes Caripuna. Tanto Margarida quanto Damazia casaram-se com homens livres pretos.
Margarida, descrita em seu registro de óbito como criadora, faleceu com cerca de 30 anos, no
dia 21 de outubro de 1891, deixando cinco filhos: Zacarias (16 anos), Sebastião (11 anos), João (10
anos), Leopoldina (7 anos) e Braulina (5 anos). O termo criadora evidencia o trabalho com animais,
mas certamente ela realiza todas as atividades do campo (roça) e os domésticos.
Do primogênito Zacarias Fernandes da Silva encontramos as seguintes filhas: Pureza,
Leonora, Elvira e Mercedes; de Sebastião Fernandes da Silva: Andrelina, Constantina, Silvalina,
Sezaria e Lidia; e de João Fernandes da Silva: Maria Mercedes e Maria do Nascimento.
Das filhas de Margarida, Leopoldina Fernandes da Silva ou Leopoldina Maria de Souza,
casou-se com 15 anos, em 25 de janeiro de 1896, com Manoel Ignácio do Sul de 35 anos, e faleceu
em 15 de agosto de 1937. Leopoldina, de cor preta, viúva, doméstica, com 57 anos de idade, faleceu
em sua casa em consequência de uma pneumonia aguda, atestada por médico, e deixou dois filhos:
Aparicio e Otília. Já Braulina Fernandes ou Braulina Maria de Souza, a outra filha de Margarida,

10 A historiadora Mamigonian discute a categoria ‘africano livre’ no contexto da Lei de 1831. Indicamos a leitura dos três
primeiros capítulos da obra: MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
11 Disponíveis em https://www.familysearch.org/pt/

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casou-se em 30 de dezembro de 1912, aos 18 anos, com Balthasar Honorio Gonçalves, de 24 anos.
Seus filhos: Analio/ Amálio; Germino; Dautina; Juvelina; João; Idalino; Amandio/Arcidio; Sebastião
e Juventina.
Damazia Maria de Souza, felizmente, não teve como sua irmã Margarida a morte precoce.
Faleceu em 11 de abril de 1925, aos 75 anos, sem assistência médica (a evidência do descaso e
abandono das populações negras é muito presente nos registros de óbitos dos moradores da Invernada
dos Negros), foi sepultada no Cemitério da Invernada dos Negros. Seus filhos: Paulo Fernandes
Caripuna; Cipriano Caripuna dos Santos; Veneranda Fernandes Caripuna; Oliveira Fernandes
Caripuna; Arcídia (ou Hercília) Fernandes Caripuna; Eufrázio Fernandes Caripuna; Izidio Fernandes
Caripuna; João Caripuna de Souza; Alexandrina Caripuna; Bernardino Fernandes Garipuna;
Magdalena Garipuna; José Deoclécio Garipuna de Souza; Francisca Garipuna; e Maria Ribeira.
As netas de Damazia, filhas de seus filhos, bisnetas de Josepha, são: Felicidade, Dolviria,
Pureza, Florência, Lavina e Antonia, filhas de Paulo; Maria Luiza, filha de Oliveira; Otacilia,
Julia/Maria Julia, Maria Cristina, Amantina e Letícia, filhas de Eufrázio; Etelvina, Maria de Jesus e
Gerardina, filhas de Izidio; e ainda Jardelina, Francisca, Landelina, Julia, Terezinha, Vidalvina e
Inervina, filhas de João.
Das filhas de Damazia, a primogênita Veneranda Fernandes Caripuna, doméstica, faleceu de
morte natural, sem assistência médica, em 20 de novembro de 1927, na Invernada dos Negros, com
42 anos. Foi sepultada no cemitério da Invernada dos Negros e deixou os filhos: Hylda, Virgilina,
Maria Antonia, Olympia, Francisca e João Batista.
Arcídia/Hercília Fernandes Caripuna, segunda filha de Damazia, faleceu em 18 de dezembro
de 1918, aos 35 anos de idade, doméstica, faleceu no parto e de gripe espanhola12, sendo sepultada
no Cemitério da Invernada dos Negros. Era casada com Aníbal Martins de Mattos com quem teve os
seguintes filhos: Maria da Conceição, Julia, Cipriano, Matheus e Joanna. A terceira filha de Damazia,
Alexandrina Caripuna, faleceu no dia 8 de novembro de 1942, na Invernada dos Negros. De cor preta,
doméstica, tinha 60 anos, era solteira e deixou uma filha de nome Purciliana. Faleceu sem assistência
médica e foi sepultada no Cemitério da Invernada dos Negros. Já a quarta filha de Damazia,
Magdalena Garipuna, casou-se em 18 de dezembro de 1922, com José Gomercindo d’ Oliveira, ela

12 A gripe espanhola vitimou entre 40 e 50 milhões e estima-se que 50% da população mundial tenha sido infectada entre
os anos de 1918 e 1919. Ver: COSTA; MERCHAN- HAMANN, 2016, p. 11-25. Enquanto escrevíamos este texto o Brasil
está sendo acometido pela epidemia de COVID-19.

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com 26 anos e ele, com 32 anos. Seus filhos: João e Urçulina. E a quinta filha de Damazia, Francisca
Garipuna, localizamos como seus filhos: Sebastião e Antonio.
Sobre os filhos de Damazia, netos de Josepha, destacamos ainda que Paulo Fernandes
Garipuna se casou com Maria Joana dos Santos, filha do legatário Francisco13. Entre as filhas do casal
está Florência que se casou em seis de junho de 1933, com Atílio. Atílio Garipuna de Souza é filho
de Eufrázio Garipuna de Souza e Ana Maria Fagundes. Como Paulo Garipuna é irmão de Eufrázio
(os dois filhos de Damazia), Atílio e Florência são primos. Contudo, o que queremos destacar nesse
ponto é que Paulo, Eufrázio e Maria Joana, todos legatários da fazenda São João, são avós de Angelina
Garipuna, que é filha de Atílio e Florência. Dona Angelina, ou Angela, como é chamada na
comunidade, foi a primeira presidente da Associação Remanescentes de Quilombos Invernada dos
Negros (ARQIN) que tem lutado pelo reconhecimento do território quilombola, pela titulação das
terras e acesso a políticas públicas.
As negras e negros, legatários e seus descendentes, permaneceram no território no final do
século XIX, ao longo do século XX e agora no século XXI. E foi logo nos primeiros anos desse novo
século, que os mesmos se organizaram a fim de reivindicar as terras perdidas/roubadas ao longo do
tempo pela expropriação e dificuldades socioeconômicas dos membros da comunidade, mas também
em busca de políticas públicas que melhorassem a qualidade de vida do povo com acesso a direitos
básicos.
É em 2003 que surge a Associação Remanescente de Quilombo Invernada dos Negros
(ARQIN). Entre os presentes na reunião está dona Angelina Garipuna. Ela foi a primeira presidente
da ARQIN e deu o tom da luta em uma das primeiras reuniões. Fica evidente que foram enganados
pelos ‘conhecedores da escrita’, ao mesmo tempo que faz um chamamento para que continuem a lutar
pelo que receberam dos que vieram antes, do que foi legado:
Somos tudo negro e que estamos aqui para lutar pelo que é nosso, não queremos nada que
seja dos outros. Muito do povo da Corredeira pode dizer que passamos necessidade que não
era preciso os letrados enganaram nosso povo, que a maioria não sabia nem assinar o nome,
imaginemos há muito tempo atrás o quanto que os letrados não enganaram nosso povo. Não

13 Francisco dos Santos é nominado no testamento de 1877, sendo, portanto, um dos legatários. Inicialmente chamado de
Francisco de Souza, ele também constituiu família na comunidade Invernada dos Negros. Ele não integra o tronco de
Josepha e Domingos, e casou-se em 12 de outubro de 1878, com Maria Izabel do Espírito Santo, com quem teve três
filhos: Maria Joana dos Santos; Manoel Francisco dos Santos e João Francisco dos Santos. Não sabemos a data exata de
sua morte, mas no primeiro casamento de sua filha Maria Joana, em 30 de junho de 1896, ele já era falecido. É no decorrer
da trajetória desse tronco familiar que se adota o sobrenome “dos Santos”, que vem da Maria Izabel do Espírito Santo. É
o sobrenome “dos Santos” que se encontra atualmente na Comunidade Invernada dos Negros quando se trata dos
descendentes do legatário Francisco.

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desistirei do que é nosso que nos faça uma, duas, três ou muito mais reuniões, mas não
podemos desistir [...]14.
Em 200415, a luta dos negros e negras alcançou a imprensa e começou a fazer parte também
dos discursos de agentes públicos. Em março, durante audiência pública, presidida pelo Ministério
Público, dona Angelina falou em nome da Associação.
Sou presidente da Associação que se formou ali na Corredeira, na Invernada dos Negros, e
estamos querendo este terreno que pertencia aos escravos. Uma das escravas era minha
bisavó e que por um motivo ou outro, nós ficamos sem os nossos terrenos. Nós sabemos que
conforme está lá no Testamento, este terreno não era para ser vendido, não era para ser
financiado e era para ser passado de geração em geração. Hoje somos um povo sofrido sem
condições de sobreviver. Estamos aqui pedindo o resgate desses terrenos para que as nossas
famílias possam voltar para a nossa comunidade e possam ter condições de viver. Somos um
povo sofrido pela falta de terra sendo que a nossa descendência dos escravos, ganharam
aquele terreno muito grande. Nós da Invernada dos Negros estamos aguardando e pedindo o
reconhecimento da comunidade como remanescente de Quilombo. Nós queremos o nosso
terreno de volta, se é nosso direito16.
Angelina Fernandes da Silva Garipuna, nascida em 23 de agosto de 1946, ficou na presidência
da ARQIN até junho de 2006. Sua fala destaca a ancestralidade negra, a descendência de uma
escravizada, o que lhes foi negado e tirado, e o conhecimento do que lhes pertence. Suas experiências
concretas associado ao seu protagonismo, ao representar a comunidade e ser ouvida pelos ‘de fora’
na audiência pública, faz com que dona Angelina além de impulsionar a luta pela terra, impulsionou
o empoderamento da mulher negra. Empoderamento que diz respeito a emancipação política e social
individual e coletiva, calcado na busca por direitos e na visibilidade. Segundo Joice Berth (2018, p.
130): “Empoderamos a nós mesmos e amparamos outros indivíduos em seus processos, conscientes
de que a conclusão só se dará pela simbiose do processo individual com o coletivo”.
Para além da liderança dessa mulher negra, Lidiane Taffarel (2020) observou nas atas da
associação o protagonismo de outras mulheres da Invernada dos Negros. Elas ocuparam cargos dentro
da associação, entre eles de secretária e de tesoureira, e também a quase totalidade da coordenação e
administração dos grupos nos projetos de geração de renda. Na associação, por exemplo, Taffarel
chama a atenção para os cargos ocupados por mulheres. A tesoureira cuida do “dinheiro”, ou seja, é
um dos cargos de maior responsabilidade, pois é quem junto com a presidência presta contas do que
foi gasto ou investido. Também destaca que de 2003 a 2015, a escrita das atas foi delegada às
mulheres quilombolas. Nesse período, apenas uma foi escrita por um homem.

14
Ata S/N da Associação da Invernada dos Negros, de 30 de novembro de 2003, p. 3, Livro 1.
15 De acordo com a dissertação de TAFFAREL, 2020.
16
Depoimento de Angelina Garipuna. “Descendentes de escravos querem reaver terras de testamento”. O Celeiro, edição
de 03 de abril de 2004, p. 5-7.

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Mulheres negras rurais, distantes física e geograficamente de centros educacionais e sem
acesso a cuidados básicos de saúde, com cotidiano marcado pelo intenso/violento trabalho, pela
criação de seus filhos, romperam barreiras de raça e gênero para que os seus permanecessem no
território legado.

Considerações finais
A comunidade quilombola da Invernada dos Negros precisa ser entendida/estudada pelo
conceito de um território colonizado, visto que não houve reconhecimento moral e legal do território
legado pela elite (política e econômica) local. Foram inúmeras investidas e ações judiciais ao longo
do século XX e nestes 20 anos do século XXI para retirá-los/expulsá-los e introduzir a dinâmica de
ocupação e produção capitalista. E ainda, a negação da existência de um território quilombola.
No meio rural, muitas vezes se reproduz a lógica e a linearidade da subordinação da mulher
ao trabalho doméstico, com terminologias muito presente em registros eclesiáticos e civis como: dos
afazeres dométicos, do lar, e isso pode nos indicar à ausência de autonomia e protagonismo em todas
as atividades ‘da lida’ do campo. Havia uma intenção notória da inexistência do trabalho no
campo/roça das mulheres negras quilombolas, o que facilitava aos homens brancos a usurparem suas
terras. Contudo, esses registros não as identifcam, pois as mesmas além das atividades laborais do
campo/roça também se fazem presente na organização política da comunidade e na luta pela retorno
e manutenção de seu território.
A luta por direitos, como a não desterritorialização, a escolarização, foram guiados pelos
saberes identitários transmitidos de geração a geração que se contrapunha ao racismo, ao
conservadorismo e ao machismo da elite local que as invisibilizava, ao mesmo tempo que se tornavam
desafios a serem vencidos. Dona Angelina (trineta da africana Josepha) é a representação da mulher
negra quilombola que não se submeteu, continua a lutar pelo seu povo e a denunciar os privilégios
brancos.
As memórias e a cultura das mulheres quilombolas da Invernada dos Negros são elementos
fundantes da história do Sul do Brasil, são experiências impressas em um modo de vida singular e
coletivo, que retratam vivências e representam trajetórias não ditas e registradas nas memórias e
histórias oficiais.
Que Josephas, Margaridas, Damazias, Angelinas… continuem presentes e que seus legados
fortalessam as vivências das mulheres negras quilombolas.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
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THE AFRICAN JOSEPHA’S DAUGHTERS: RESISTANCE AND PERMANENCE


IN THE INVERNADA DOS NEGROS QUILOMBO. CAMPOS NOVOS/SC.
We began our research trajectory by finding in the First Notary office in the city of Lages/SC
a letter of conditioned manumission. I was the year of 1866 when Josepha, of nation, about thirty
years old, Margarida, about five years old, [...], Damazia, about one year old [..], Inocência, about
forty years old[...], were named in a letter of conditioned manumission by their masters. More than a
century later, in 2003, Mrs. Angelina Garipuna attended a meeting as a representative of the
quilombola association creation commission, and at that time, the quilombola association Invernada
dos Negros Quilombo took place. What do the racialized bodies of Josepha Damazia, Margarida,
Inocência and Angelina have in common? The life path of these women will be revealed throughout
the text, but we already state that they, in their temporality and collective, made possible the life,
existence and permanence of the quilombola Community. And to analyze, from our documentary
which are minutes of the quilombola association, ecclesiastical, notary and judicial records, the role
played by then we underpin to the intersection between race, social class and sexual gender.
Understanding that there is no overlap, but that categories intertwine allow us to perceive the extrinsic
and intrinsic relationships of resistance and achievement of these women.
Keywords: quilombola women; life path; race; permanence;

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