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CAPOEIRA

Revista de Humanidades e Letras

ISSN: 2359-2354
Vol. 1 | Nº. 3 | Ano 2014

Resenha de:
SCOTTE, Rebecca J. e HÉBRARD,
Jean M. Provas de liberdade: Uma
odisseia atlântica na era da
emancipação.Campinas, São Paulo:
Editora da Unicamp, 2014.
Por Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB)
RESENHA

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br
capoeira.revista@gmail.com
Editores
Marcos Carvalho Lopes
marcosclopes@unilab.edu.br

Pedro Acosta-Leyva
leyva@unilab.edu.br
Fábia Barbosa Ribeiro

RESENHA

PÉRIPLOS NO ATLÂNTICO: OS FRÁGEIS LIMITES


ENTRE ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NA ERA DA
EMANCIPAÇÃO – SÉCULO XIX
SCOTTE, Rebecca J. e HÉBRARD, Jean M. Provas de liberdade: Uma odisseia atlântica na
era da emancipação.Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2014

Fábia Barbosa Ribeiro1

A publicação no Brasil, de biografias de personagens que vivenciaram a experiência da


escravidão nas Américas, tem ganhado fôlego nos últimos dez anos e despertado o interesse de
um público cada vez mais amplo. São exemplos, obras como “Caetana diz não” (Cia. das Letras,
2005), de Sandra Lauderdale e o belíssimo romance histórico de Ana Maria Gonçalves, “Um
defeito de cor” (Record, 2010). Ainda este ano, deve ser editada a tradução do livro de
Mahommah Gardo Baquaqua, um africano que circulou entre Brasil, Haiti e Estados Unidos no
decorrer do século XIX. Publicado originalmente em Detroit no ano de 1854, trata-se do único
relato conhecido de um escravo que passou pelo Brasil.
Reconstruir experiências de pessoas escravizadas tem sido um recurso muito utilizado por
historiadores para recuperar contextos históricos mais amplos. O esforço dessas obras é tentar dar
voz a grupos sociais pouco contemplados, considerando as agências das camadas subalternas da
sociedade. No esteio dessas pesquisas, a obra de Rebecca J. Scott e Jean M. Hébrard, “Provas de
liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação (Editora da UNICAMP, 2014)”, tenta
resgatar a trajetória não apenas de uma personagem, mas de três gerações de uma família de
negros escravizados e libertos, os Vincent/Tinchant. No prólogo, os autores trazem uma carta
datada de setembro de 1899, escrita pelo caçula da família e endereçada ao general Máximo
Gómez, líder da independência de Cuba do governo espanhol. Na missiva, Antoine Édouard
Tinchant, um charuteiro estabelecido em Antuérpia, solicita autorização para gravar em seus
charutos o nome e o retrato do general, alegando para isso ser um ardoroso admirador do general
e incansável defensor da igualdade de direitos. Também afirma ter contribuído durante muitos
anos para o Fundo de Cuba e ser legítimo descendente de haitianos....
Seguindo os “rastros do itinerário” dessa família, através da conjunção dos mais variados
tipos de documentos, como testamentos, registros de casamento, assentos de batismo, certidões

1
Doutora em História Social pela FFLCH/USP, professora da Universidade da Integração Internacional da

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Resenha de SCOTTE, Rebeca J. e HEBRARD, Jean M. Provas de liberdade: uma odisseia Atlântica na era da emancipação. Campinas: São Paulo, 2014.

de óbitos, publicações em jornais, os autores montam um intrincado quebra-cabeças que nos leva
a lugares tão diferentes como Saint-Domingue, Santiago de Cuba, Nova Orleans, Vera Cruz,
Antuérpia, Paris.... A ideia de que os membros da família Vincent-Tinchant buscavam a sua
emancipação, dignidade e respeito permeia toda a narrativa. Para isso, conheciam a importância
dos documentos na reivindicação e garantia de seus direitos, sobretudo em um século
historicamente marcado por sucessivos processos de emancipação, no qual era muito tênue o
limite entre escravidão e liberdade...
O périplo familiar se inicia com a história de Rosalie, uma africana de nação Poulard,
escravizada na região da Senegâmbia. Batizada como Marie Françoise, teria aportado em Saint
Domingue, vinda de Saint Louis du Senegal, entre os anos de 1780 a 1790. Ainda menina, com
cerca de pouco mais de 13 anos, passaria por alguns proprietários, todos eles “pessoas de cor”,
antes de alcançar a sua liberdade. São poucas as informações disponíveis sobre a matriarca da
família Vincent-Tinchant, todavia, os autores aproveitam a oportunidade para revelar as
dinâmicas comerciais e sociais de uma “clássica feitoria africana ocidental”, Saint Louis du
Senegal, e assim, o provável itinerário atlântico de Rosalie, e ao fazê-lo, asseguram “certos
indícios sobre o conhecimento que ela trouxe consigo”. Numa perspectiva de “micro-história
posta em movimento”, procura-se a todo o instante a recuperação de contextos históricos mais
amplos a partir dos fragmentos documentais deixados pelos membros da família Vincent
Tinchant ao longo de mais de um século.
No caso da região da qual Rosalie supostamente teria saído em um momento de grande
tensão, fruto da revolução islâmica do Futa Toro2, sabemos que ao final do século XVIII, Saint-
Louis du Senegal tinha grande parte de seu comércio nas mãos das signaras e de seus
descendentes mestiços. Mulheres negociantes que mercadejavam em diferentes espaços e que
lutavam para ter reconhecido o direito à herança de seus companheiros brancos. Pode-se inferir
que Rosalie conhecesse a importância dos registros escritos também através dos marabutos que
transitavam pela região, tal como registrou o padre David Boilat em uma de suas aquarelas, ao
visualizar uma viúva pedindo ao marabuto proteção após a morte de seu marido (p. 34-35).
Segundo Scott e Hébrard: “palavras protegiam e palavras podiam escravizar”, assim, a
importância da escrita acompanha cada membro da família Vicent-Tinchant em sua trajetória de
vida.
Recém-chegada às Américas, Rosalie seria comprada por Alexis Couba, um negro forro
já idoso, que logo a repassaria a Marthe Guillaume, uma marchand mais conhecida pela alcunha

Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).

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de Marthone. Essa mulher negra e poderosa tinha em suas mãos, através de dívidas, praticamente
todo o distrito de Jérémie e jamais saía de casa sem os documentos comprobatórios de sua
liberdade. Enriquecera as expensas do comércio de escravos, do empréstimo a juros e da
exploração do trabalho de suas quintadneiras que circulavam pelas ruas de Jérémie praticando o
comércio a retalho. Era coisa muito comum nas colônias americanas que senhores empobrecidos
dividissem os espaços com seus escravos. O cotidiano das vilas coloniais ofereceu, quase
sempre, um ambiente propício para o nascimento de sociabilidades. Nesses espaços,
movimentava-se uma gama variada de tipos sociais: senhores, escravos, libertos e livres pobres,
mestiços, brancos ou “de cor”, produzidos nos interstícios da sociedade escravistas. Nas fímbrias
das dicotômicas relações senhores-escravos, constituía-se uma intrincada teia de relacionamentos
favorecidos pela convivência doméstica. Sociabilidade que, por vezes, possibilitava aos
escravizados a formação de um pecúlio, utilizado na compra ou quitação de sua própria alforria
ou de outrem, e até mesmo para a aquisição de um escravo seu, no caso dos já libertos. Não raro,
estes possuíam um pequeno número de escravos, de um a três, dos quais extraíam diárias e
jornais que lhes garantiam a sobrevivência.

Tal parece ter sido o destino de Rosalie, que seria propriedade ainda de um mulato livre,
antes de alcançar a alforria. Além de liberta, aliou-se a um homem branco, o francês Michel
Vincent, com o qual se refugiou em Santiago de Cuba durante os acontecimentos que levaram à
Revolução de Saint Domingue. Com este homem, a africana Poulard teve quatro filhos, entre os
quais, Elisabeth Dieudonné, enviada para a Louisiana com sua madrinha, Marie Blanche Peillon
(uma negra livre casada com um branco pobre de origem belga), quando nova turbulência
política movimentou a vida de Rosalie, a partir das lutas pela independência de Cuba. Em Nova
Orleans, o casamento de Elisabeth com Jacques Tinchant, um “homem de cor” livre, uniria duas
famílias e daria sequência a odisseia de seus descendentes. O jovem casal prosperaria com o
comércio de terrenos e casas e com o trabalho a ganho de alguns escravos, estabelecendo uma
rede de parentesco e laços de amizade que se ampliaria junto com seu pequeno comércio. A
própria Elisabeth herdara da madrinha como dote, uma mulher e sua filha de 12 anos, as quais
libertaria, em condições especiais, alguns anos mais tarde.3
A prosperidade financeira, todavia, não traria segurança ao casal Tinchant e aos seis
filhos. Com o passar dos anos, o espaço para “pessoas livres de cor” em Nova Orleans se

2
BATRAN, Aziz. As revoluções islâmicas do século XIX na África do Oeste. In: AJAYI, J. F. ADE. (org). História
Geral da África VI: África do século XIX à década de 1880. Vol. VI. Brasília: UNESCO, 2010.
3
O casal Tinchant libertou primeiro a mulher, de nome Gertrude, mantendo a sua filha, Marie Louise de 12 anos,
como escrava até a idade de 22 anos. A fim de colocarem em ordem seus assuntos legais antes de partirem para a
França, e facilitarem a transação, venderam Marie Louise para sua prória mãe pela quantia de 800 dólares.

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Resenha de SCOTTE, Rebeca J. e HEBRARD, Jean M. Provas de liberdade: uma odisseia Atlântica na era da emancipação. Campinas: São Paulo, 2014.

estreitava com medidas cada vez mais restritivas. O medo das autoridades de alianças entre esse
grupo social e os escravos, e a proibição sumária de casamentos inter-raciais (caso da união não
reconhecida pela lei dos pais e dos padrinhos de Elisabeth), aumentavam a insegurança e o medo
de tentativas de reescravização, uma vez que os livres de cor deveriam comprovar anualmente o
seu estatuto social perante a prefeitura da cidade. Também lhes era vedado o acesso à educação, o
que incomodou sobremaneira ao jovem casal letrado que almejava uma condição melhor para
seus filhos. Cônscios do estigma social que carregavam, expresso nas tentativas de Elisabeth de
adotar o sobrenome de seu pai, Michel Vincent (o que ela conseguiria efetivamente no ano de
1835), venderam a metade de seus bens e partiram rumo à França em 1840, onde os esperava a
mãe de Jacques e seu padrasto Louis Duhart, um “francês” branco nascido em Saint Domingue.
A partir desse momento, os filhos de Jacques e Elisabeth circularão entre os dois
continentes, fiéis “à tradição atlântica dos Vincent-Tinchant”. De Paris para a Bélgica, de volta à
Nova Orleans, rumo ao México, para novamente retornar ao sul dos Estados Unidos e depois
novamente ao velho continente.... A odisseia familiar se movimentará em torno de grandes
eventos históricos como a Revolução haitiana, a chamada primavera dos povos francesa, a
Guerra Civil norte-americana, a primeira guerra mundial e o alvorecer do nazismo. São contextos
históricos marcados pela luta antirracista e pelas tentativas de ascensão social de homens e
mulheres negros, escravizados ou “livres de cor”.
Joseph retornará a França para assumir o restante dos negócios deixados pelo pai na
construção de imóveis. Édouard vai para a Bélgica e se torna um fabricante de charutos bem
sucedido. Essas trajetórias de vida podem parecer atípicas ou até mesmo excêntricas, mas não
podem e não devem ser mais vistas como “agulhas em palheiros”, pois marcam uma realidade
efetiva do mundo atlântico: a possibilidade de mobilidade social dos ex-escravizados, dos
libertos ou dos “homens livres de cor”, como ficaram mais conhecidos os negros na América do
Norte.
Trata-se de uma historiografia que vem reforçar as possibilidades de ampliação dos
estudos sobre a história de africanos e seus descendentes nas Américas, para além do contexto do
trabalho escravo, e ainda destacar a capacidade de resiliência dessas populações, que
conseguiram emergir de situações de extrema adversidade em busca de uma cidadania muitas
vezes frágil, mas pela qual brigavam com grande galhardia. A obra de Scott e Hébrard fascina
pela profundidade com que mergulha em uma documentação histórica dispersa pelos dois lados
do Atlântico, tarefa hercúlea, que nos leva a viajar através das aventuras e desventuras de três
gerações da família Vincent-Tinchant, uma verdadeira odisseia em busca de emancipação e
dignidade.

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.1 | Nº. 3 | Ano 2015 | p. 122

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