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Mas antes disso, Maria Firmina dos Reis – mulher de seu tempo e de seu
país – irmana-se a seus contemporâneos e contemporâneas do hemisfério norte,
mas também da América Latina e do próprio Brasil, para inscrever sua
discordância frente à razão negra ocidental. E Assim, o poder patriarcal é
encenado na/pela perspectiva de suas vítimas. Se Túlio tem subtraída a
liberdade por um sistema que o priva do livre arbítrio; Tancredo, embora
branco e livre, sente o peso da autoridade senhorial, que não hesita em trair o
amor e a confiança do próprio filho, mandando-o para longe com a ardilosa
intenção de seduzir a mulher que este amava e com quem tencionava se casar.
Tudo isto pode soar ingênuo e risível aos olhares de hoje, mas há um século e
meio atrás, vigorava como leit motif romântico louvado em todas as literaturas.
Misto de incesto e pedofilia, o mesmo se repete com o tio de Úrsula, vilão do
romance. Além de escravizar, torturar e assassinar os negros, que não
considerava seres humanos, o Comendador investe com a mesma prepotência
sobre a sobrinha, a esta altura já apaixonada por Tancredo. E tudo isto depois
de deixar a própria irmã entrevada anos e anos num leito após tramar a morte
do próprio cunhado. Ao final, o Comendador não titubeia em matar Tancredo
logo após a cerimônia de casamento deste com Úrsula como forma de
demonstrar o absolutismo de seu desejo e a inviolabilidade da vontade
patriarcal.
Nos dois últimos dias não houve mais alimento. Os mais insofridos entraram a
vozear. Grande Deus! Da escotilha lançaram sobre nós água e breu fervendo, que
escaldou-nos e veio dar a morte aos cabeças do motim.
A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade foi sufocada nessa viagem
pelo horror constante de tamanhas atrocidades.
Não sei ainda como resisti – é que Deus quis poupar-me para provar a paciência de
sua serva com novos tormentos que aqui me aguardavam. (Ibid., p. 103).
Esse tio velho e sem limites encena a paixão incestuosa cara ao roman
feuilleton. Acrescentem-se ainda outras marcas do gênero ainda hoje caro ao
grande público: a multiplicidade de tempos, espaços e ações; o maniqueísmo na
construção dos protagonistas e do vilão; os sentimentos exacerbados, a
aproximar amor e morte; a presença do remorso e da loucura como punição; o
mito do amor à primeira vista (o amor tanto pode adoecer quanto curar); o
império dos sentimentos, que leva a cenas típicas do Romantismo (a tristeza
mata, a surpresa desagradável leva ao desmaio); tudo isto coroado por uma
estratégia narrativa marcada por anúncios e presságios de toda ordem com o
propósito de prender a atenção do leitor.
REFERÊNCIAS
ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: Ática, 1972.
AVELLANEDA, Gertrudis Gómez de. Sab. Tomos I e II. Madrid: Imprenta Calle del Barco, 1841.
BOOK-MORSS, Susan. Hegel e o Haiti. In: Novos Estudos CEBRAP, nº 90, Julho 2011. Disponível
em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002011000200010, acesso
em 10/02/2014.
BAQUAQUA, Mahomah Gardo. Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro. Trad. de Robert
Krueger. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
DUARTE, Eduardo de Assis. Maria Firmina dos Reis e os primórdios da ficção afro-brasileira.
In: Literatura, política, identidades. Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2005.
FLORESTA, Nísia. Dedicação d’uma amiga. 4 v. Nictheroy: Typ. Fluminense de Lopes & C., 1850.
Nota do editor:
Artigo submetido para avaliação em: 24/04/2018.
Aprovado em sistema duplo cego em: 21/05/2018.