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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p.

11-30, 2008 11

PARA A HISTÓRIA DO PORTUGUÊS CULTO E


POPULAR BRASILEIRO: SUGESTÕES PARA UMA
PAUTA DE PESQUISA

Rosa Virgínia Mattos e Silva (UFBA)

RESUMO

Neste artigo busco problematizar a questão da


reconstituição histórica, tanto do português brasileiro
culto como do popular. No primeiro caso, as fontes de
arquivo são fundamentais. Quanto ao português brasi-
leiro popular, o caminho será outro, mais espinhoso, mas
não impossível.

PALAVRAS-CHAVE: Lingüística histórica, História da


língua portuguesa, Português brasileiro culto, Português
brasileiro popular.

Motivações

D
esde o I Seminário Para a história do português brasileiro, em 1997, na
USP, com seus resultados publicados no volume I da série Para a
história do português brasileiro1, começamos, aqueles que estão envolvi-
dos nesse projeto, a afinar os nossos instrumentos na direção da reconstrução
e escrita de uma história do português brasileiro, que será o nosso concerto
final, em futuro que não deverá ser longínquo, mas que não pode ser muito
próximo, a meu ver.
Com base nos textos do I Seminário já publicados2; nos textos do II
Seminário, o de Campos do Jordão, editados em 2001, e que tive a opor-
tunidade de ouvir e depois ler, já que organizei, por indicação do plenário

1
CASTILHO, Ataliba de (Org.). Para a história do português brasileiro Volume I: primeiras
idéias. São Paulo: Humanitas, 1998.
2
Id., ibid.
Mattos e Silva, Rosa Virgínia.
12 Para a história do português culto e popular brasileiro: sugestões para uma pauta de pesquisa

daquele Seminário, o volume II da série Para a história do português brasileiro3;


nas discussões sobre o tema com os membros do Programa para a Histó-
ria da Língua Portuguesa (PROHPOR) e nas minhas reflexões e leituras
sobre questões históricas referentes à língua portuguesa e sobre o portu-
guês brasileiro, motivei-me a sintetizar aqui alguns questionamentos e
questões, que julgo até poderem ser redundantes e repetitivas, mas que
considero, apesar disso, relevantes como uma contribuição para a refle-
xão sobre a implementação do nosso Projeto coletivo.
Reforçou a minha motivação, quando já havia proposto o tema da
comunicação, a Circular de Ataliba de Castilho, nosso Coordenador Ge-
ral, datada de 23 de março de 1999. Nessa Circular, entre outras informa-
ções sobre o Projeto e sobre a organização deste III Seminário, Ataliba de
Castilho dá conta às equipes que atualmente compõem o Projeto geral
dos resultados da reunião que tinha havido da equipe de São Paulo e disso
destaco dois pontos significativos que retomarei no decorrer desta Co-
municação. São eles: a necessidade sentida pela referida equipe de buscar
“uma forma de acelerar a constituição do corpus, que pode se transformar
num certo gargalo para nossas equipes” e a “preocupação” da equipe “quan-
to às pesquisas em História Social. Aparentemente, como um todo, o
Projeto não chegou a um consenso sobre essa agenda”. E conclui Ataliba
de Castilho: “A consolidação das agendas de pesquisa é um passo crucial
para garantir certo ritmo de trabalhos”.
Externados assim o conjunto de motivações que me conduziu a essa
reflexão, tenho a dizer que não pretendo com ela indicar “agendas de
pesquisa” que, a meu ver, sendo um trabalho de um grande coletivo, as
“agendas” têm de ser coletivamente elaboradas, como aliás não poderia
deixar de ser. O que pretendo é apenas sugerir alguns tópicos que, a meu
ver – e gostaria que pudéssemos debatê-los –, poderão ser significativos
para a “consolidação das agendas de pesquisa”, sem dúvida essenciais essas
agendas para a implementação de nosso Projeto coletivo. Antes de pros-
seguir, gostaria de ressaltar que, tanto no I como no II Seminários, muitos
trabalhos apresentados já se direcionaram no sentido de proposições de
planos, propostas para a pesquisa, tanto no que se refere às mudanças gramaticais,
como à constituição de corpora e à história social. Alguns dos trabalhos já externam
isso nos seus títulos, outros no decorrer de seu desenvolvimento.
3
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (Org.). Para a história do português brasileiro. Volume II:
Primeiros estudos. São Paulo: Humanitas, 2001. 2 t.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 31-41, 2008 13

Os elementos motivadores antes enumerados serão, assim, os meus


interlocutores principais na elaboração deste texto, tanto no que se
refere à pinçagem de questionamentos e questões que destaquei, como
na discussão delas.

A definição do objeto de pesquisa: o Português Brasileiro na sua


história
Esse primeiro questionamento que considero um a priori fundamental
para o afinamento de nosso Projeto foi motivado pela leitura do trabalho
de Gilvan Müller de Oliveira ao II Seminário4. Parecia-me, quando designa-
mos português brasileiro, tal como está no título do Projeto, que estaria eviden-
te e seria consensual que esse sintagma se refereria sempre a uma realidade
lingüística heterogênea, plural e polarizada, como busquei externar no tra-
balho que apresentei ao I Seminário5, em que argumento nesse sentido e
com base na formulação de Lucchesi6, que foi retomada pelo autor em tra-
balho mais recente7.
Com essa compreensão da designação português brasileiro, abrange-se
correntemente o chamado português popular ou vernáculo brasileiro e o português
culto brasileiro, ou seja, as normas vernaculares e as normas cultas, na terminologia
de Lucchesi8. Para além dessas distinções, pode-se ainda distinguir das nor-
mas cultas a norma padrão – o que nem todos que sobre isso escrevem fazem,
de tradição lusitanizante, veiculada ainda por gramáticas normativas que
a escola pretende difundir, mas que, de fato, muito provavelmente só será
usada em alguns de seus aspectos, pelo menos, na escrita cuidada formal
de brasileiros de alta e boa escolaridade.

4
OLIVEIRA, Gilvan Müller de. Matrizes da língua portuguesa no Brasil meridional
(1680-1830). In: MATTOS E SILVA (Org.), op. cit., t. II, p. 401-420.
5
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Idéias para a história do português brasileiro:
fragmentos para uma composição posterior. In: CASTILHO (Org.), op. cit., p. 21-52.
6
LUCCHESI, Dante. Variação e norma: elementos para uma caracterização
sociolingüística do português do Brasil. Revista Internacional de Língua Portuguesa, n. 12, p.
17-28, 1994.
7
LUCCHESI, Dante. A constituição histórica do português brasileiro como um proces-
so bipolarizador: tendências atuais nas normas culta e popular. In: GROSSE, Sybille;
ZIMMERMANN, Klaus (Org.). Substandard e mudança no português do Brasil. Frankfurt
am Main: TFM, 1998. p. 1-26.
8
LUCCHESI, op. cit.
Mattos e Silva, Rosa Virgínia.
14 Para a história do português culto e popular brasileiro: sugestões para uma pauta de pesquisa

Contudo, a crítica de Gilvan Müller de Oliveira, no trabalho citado,


me motivou a trazer ao debate essa designação a que ele sempre vai refe-
rir-se como o chamado português brasileiro em contraponto ao chamado português
europeu, afirmando que se faz necessário:
romper com a perspectiva sempre generalizante, sempre
crente na existência de um único “PB” (português brasileiro),
em oposição a um “PE” (português europeu), como se essa
fosse uma dicotomia relevante9.
À nota 11 de seu trabalho, muito interessante na reconstrução histó-
rica que apresenta das matrizes açoriana e paulista na formação da língua por-
tuguesa do Brasil meridional, reafirma:
O conceito de “PB” é o signo de uma incompatibilidade: a
incompatibilidade entre uma metodologia lingüística que
crê na heterogeneidade constitutiva e permanente – a herança
laboviana – e o estabelecimento de uma unidade de trabalho
homogeneizante: o “Português brasileiro”10.
E conclui na nota dez: “Trabalhando o conceito de PB dessa forma,
estamos muito mais no âmbito da construção discursiva de uma ‘língua nacio-
nal’ que no âmbito de ‘uma história da língua portuguesa’”11. E finaliza suas
“Considerações finais”:
Esperamos assim com este trabalho, ter apresentado indícios
para demonstrar a possibilidade e a relevância de
trabalharmos, em história da língua, num nível que segmenta
o “português brasileiro” em variedade sócio-históricas
menores e mais específicas12.
Ilustra essa visão homogeneizadora com o conhecido debate de
Gregory Guy e Fernando Tarallo, defensores, respectivamente, da
crioulização prévia e da não crioulização prévia do português brasileiro e exemplifica
que a primeira hipótese não fará sentido se aplicada à área de colonização
açoriana e talvez possa fazê-lo se aplicada ao português da área de coloniza-
ção paulista dos séculos XVII e XVIII. Quanto a isso estou de acordo com

9
OLIVEIRA, op. cit., p. 417.
10
Id., ibid.
11
Id., ibid.
12
Id., ibid., p. 417-418.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 31-41, 2008 15

Gilvan Müller de Oliveira e, a respeito desse debate – Crioulização prévia vs.


Deriva natural –, me posicionei, não com esses fatos histórico-lingüísticos,
em Mesa Redonda do II Congresso Nacional da Abralin13.
Fiz longas citações do trabalho referido de Gilvan Müller de Oliveira
para não ser infiel ao texto motivador. O que me deixou inquieta, posso
até dizer, perplexa, é que me parecia que todo o trabalho que vem se fazen-
do em direção à reconstrução da história do português brasileiro tinha não
só implícito, mas já explicitado, não só por mim, é claro, mas por outros
escritos de membros do grupo e pela sociolingüística brasileira em geral,
que a designação e o conceito de português brasileiro nunca recobriria uma
realidade homogênea, ou homogeneizável, voltaríamos assim ao tempo de
Serafim da Silva Neto e à sua tão acalentada tese da homogeneidade da língua
portuguesa no Brasil, para usar a sua forma de expressão14.
Diante do que li, achei procedente trazer à discussão o que, de fato,
neste Projeto, estamos entendendo por português brasileiro, uma vez que a
designação está no título e estamos buscando reconstruir o passado desse
português heterogêneo que aqui no Brasil se formou. Parece-me que
estamos todos pensando que o português brasileiro não é um conceito
homogeneizador, mas se Gilvan Müller Oliveira lança esse
questionamento, acho que é um ponto a ficar muito bem definido, uma
questão essencial na pauta de nosso Projeto.

Para a história do português culto


Olhando o passado, partindo do presente e admitindo que o português
brasileiro é heterogêneo, polarizado e plural, vou tecer algumas considerações e
questionamentos sobre os caminhos para a trajetória em busca do que tenha
sido ele para ser hoje o que é. Para isso me deterei primeiro em questões
referentes à reconstrução do passado do português brasileiro culto, para, em segui-
da, tratar de questões referentes à reconstrução do passado do português brasilei-
ro popular ou vernáculo que, como sabemos, não podem ser rastreados historica-
mente pelas mesmas vias de pesquisa.

13
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Sobre as origens do português brasileiro. In: CON-
GRESSO NACIONAL DA ABRALIN, Florianópolis, 1999.
14
SILVA NETO, Serafim da. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. 5. ed. Rio de
Janeiro: Presença, 1986[1950].
Mattos e Silva, Rosa Virgínia.
16 Para a história do português culto e popular brasileiro: sugestões para uma pauta de pesquisa

Deixarei de parte o português brasileiro padrão, como antes definido, por-


que, parece-me, será ele algo estático, tal como, modus in rebus e mutatis mutandis,
o “latim clássico”, embora considere que não seja nada desinteressante
uma pesquisa sistemática nas gramáticas prescritivas escritas no Brasil, a
partir do século XIX, e, em Portugal, desde o século XVI, para ver o que
mudou, quando mudou, se mudou, na perspectiva dos proponentes de
uma norma padrão ideal e, também, para verificar o que eles censuram, por-
que será indício de variações conviventes, indicações de possíveis mudan-
ças em curso na história da língua portuguesa.
Inicio, então, este tópico, retomando o que formulei na comunica-
ção que apresentei ao II Seminário15, em que proponho que os atores prin-
cipais na cena lingüística do Brasil colonial foram o português europeu, as
línguas gerais indígenas (já que as línguas indígenas nas primeiras áreas coloni-
zadas ou desapareceram pela morte de seus falantes, ou recuaram para os
interiores brasileiros) e o que designei de português geral brasileiro, anteceden-
te histórico do português popular brasileiro de hoje, cada um desses atores
recobrindo uma incomensurável diversidade que não temos como demons-
trar rigorosamente, mas que podemos, inferir, aproximadamente.
Nesta comunicação de 1998 me centrei em aspectos da formação do
português popular brasileiro, mas delineei alguns aspectos referentes ao passado
do português culto que aqui resumo brevemente, para em seguida continuar a
discorrer sobre o como rastrear o passado dessa face histórica do português
brasileiro. Chamei até atenção para o fato de que o português europeu seria o ante-
cedente histórico do português brasileiro culto, que esse português chegou aqui
no século XVI e continuou chegando ao longo do período colonial e pós-
colonial, nesse último momento, pela vinda de numerosos emigrantes
portugueses. Também destaquei o fato de que a nossa demografia históri-
ca mostra que os portugueses e os brancos brasileiros seus descendentes
constituíram, sempre do século XVI à primeira metade do XIX, um
percentual à volta de 30% da população geral, dados coincidentes com os
de Mussa16 e Fausto17. Destaquei ainda ali que o português brasileiro culto co-

15
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. De fontes sociohistóricas para a história social
lingüística do Brasil. In: MATTOS E SILVA (Org.), op. cit., t. II, p. 275-301.
16
MUSSA, Alberto. O papel das línguas africanas na história do português do Brasil. 1991. Disserta-
ção (Mestrado em Letras)_Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1991. 2v.
17
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP/FDE, 1994.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 31-41, 2008 17

meçaria a definir-se, na segunda metade do século XVIII, quando, por


força das diretrizes político-culturais pombalinas, a língua portuguesa
passou a ser objeto de ensino sistemático no Brasil, embora precário, mas
obrigatório, para fazer recuar a prevalência do ensino jesuítico, centrado
na catequese, que priorizava a língua geral, e também no ensino da língua
latina.
Partindo desses pontos de vista, o português brasileiro culto do passado
seria próprio aos segmentos mais altos da sociedade colonial e teria o portu-
guês europeu do colonizador como modelo a ser seguido. Quero deixar explí-
cito que esse português europeu aqui chegado nesses séculos seria não só
sociolingüística como dialetalmente diversificado – vieram letrados e
iletrados, vieram portugueses de várias áreas regionais, talvez predominan-
temente do noroeste português por razões demográficas próprias a essas
áreas –, mas também diacronicamente distinto, já que o português europeu
continuou os seus processos de mudanças ao longo dos séculos referidos.
Retomados esses pontos já expostos por mim na comunicação cita-
da, passarei a problematizar alguns aspectos para uma reconstrução do
passado do português culto brasileiro.
A meu ver, uma questão de base e preliminar para podermos definir
o que teria sido o português culto brasileiro no passado seria ter como termo
essencial para uma comparação o que teria sido o português europeu en-
tre 1500 e o século XIX, período geralmente designado de português clássico
ou de português moderno, na tradição dos estudos filológicos sobre a língua
portuguesa. O meu primeiro questionamento será então no sentido de
que, a rigor, não poderemos afirmar que o que se possa considerar de
português culto brasileiro, pelo menos a partir da segunda metade do século
XVIII, será realmente isso ou será o português europeu daquela época. Essa
questão está muito bem posta por Ivo Castro na sua conferência de 1994
ao Congresso Internacional sobre a Língua portuguesa, intitulada “Para a
história do português clássico”18. Sobre isso Tânia Lobo19, no início do

18
CASTRO, Ivo. Para uma história do português clássico. In: ACTAS DO CON-
GRESSO INTERNACIONAL SOBRE O PORTUGUÊS. Lisboa: Colibri/APL, v.
II, 1996. p. 135-150.
19
LOBO, Tânia. Depoimento sobre a constituição de um corpus diacrônico do português
brasileiro - Bahia. In: CASTILHO (Org.), op. cit., p. 171-195.
18 Silva, Edila Vianna da. Norma, variação e ensino: a concordância verbal

trabalho que apresentou ao I Seminário, retomou as reflexões de Ivo Cas-


tro20 e, sem dúvida, vejo que essa questão está no horizonte dos que no
âmbito de nosso Projeto estão trabalhando sobre mudança gramatical, como,
por exemplo, nos trabalhos de Ilza Ribeiro ao I e ao II Seminários, respec-
tivamente, “A mudança sintática do português brasileiro é mudança em
relação à que gramática?”21 e “Sobre a perda da inversão do sujeito no
português brasileiro”22.
Quero trazer ao debate, em síntese, que temos de estar conscientes
de que, em nossa pauta de pesquisa, ao analisarmos o corpus de documen-
tação escrita no Brasil no passado, nos fará falta análise semelhante em
documentação do mesmo tipo escrita contemporaneamente em Portugal
para, a rigor, chegarmos a conclusões possíveis e adequadas. Para tanto,
talvez tivéssemos de aliciar os nossos colegas portugueses nessa direção,
ou alguns de nós investirmos nesse empreendimento.
Antes de entrar em questões especificamente relativas ao corpus do-
cumental escrito sobre que trabalharemos, gostaria de destacar que me
referi ao estudo sistemático do português europeu dos séculos XVI ao
XIX, contudo considero relevante a pergunta que Célia Moraes Castilho
faz no seu trabalho apresentado ao II Seminário - “Seria quatrocentista o
português implantado no Brasil? Estruturas sintáticas reduplicadas em
textos portugueses do século XV”23. Revela-nos a autora, analisando tex-
tos quatrocentistas, construções sintáticas caracterizadoras da sintaxe bra-
sileira de hoje. A proposta de Célia Castilho - e no seu trabalho apresenta
um plano de pesquisa sintática para o português de quatrocentos - é rele-
vante, a meu ver, no sentido de que, para melhor interpretar a sintaxe
brasileira, não deveremos apenas nos centrar no português de quinhentos
para cá, mas recuar ainda mais no tempo. Será essa uma vertente de pes-
quisa que, a meu ver, não deverá ser ignorada, mas levada adiante para a

20
CASTRO, op. cit.
21
RIBEIRO, Ilza. A mudança sintática do português brasileiro é mudança em relação a
que gramática. In: CASTILHO (Org.), op. cit., p. 101-120.
22
RIBEIRO, Ilza. Sobre a perda da inversão do sujeito no português brasileiro. In:
MATTOS E SILVA (Org.), op. cit., t. I. p. 91-126.
23
CASTILHO, Célia Moraes de. Seria quatrocentista o português implantado no Brasil?
Estruturas sintáticas duplicadas em textos portugueses do século XV. In: MATTOS E
SILVA (Org.), op. cit., t. I, p. 57-89.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 31-41, 2008 19

construção do nosso concerto final, ou seja, a escrita de uma história do


português brasileiro.
Quero, portanto, destacar com esses questionamentos, que, na cena
do nosso Projeto, uma via a pesquisar, como baliza fundamental, é o do
conhecimento histórico do português europeu, que será a matriz histórica da
face culta do português brasileiro e um elemento fundamental, a par do que dirá
a documentação escrita no passado do Brasil e do que nos diz hoje o português
brasileiro.
A reconstrução histórico-diacrônica do passado da face culta do por-
tuguês brasileiro poderá ser recuperada pela via tradicional desse tipo de
traballho para as línguas que estão representadas pela escrita, ou seja, pelo
escrutínio das fontes documentais remanescentes, ou seja, com base em
um corpus diacrônico seriado, constituído de documentos de tipos os mais
diversificados possíveis, que serão a forma de aproximação possível para
captar as variações lingüísticas conviventes e, conseqüentemente, prová-
veis mudanças em curso, que o exame da documentação do passado para
o presente poderá indicar.
A questão da constituição do corpus diacrônico está, com ênfase, em
nossa pauta, basta verificar o conjunto de trabalhos sobre isso já realiza-
dos e relatados nos estudos apresentados no I e II Seminários e os que se
anunciam para este terceiro. Essa documentação escrita no passado do
Brasil terá como autores ou os portugueses letrados que aqui estavam, ou
os brasileiros seus descendentes que se literatizaram e representantes de
outros grupos étnicos que compunham a sociedade colonial que puderam
chegar à condição de letrados. Vale relembrar, ainda, que, até os fins do
século XVIII, essa população letrada seria à volta de 0,5% da população
convivente no Brasil e só por 1920 alcançaria o patamar à volta de 20%24.
Fato histórico que está na raiz da polarização sociolingüística do portugu-
ês brasileiro de hoje.
A investigação que as várias equipes locais já fizeram em arquivos
brasileiros tem demonstrado que a nossa documentação remanescente
do passado - decidimos nos concentrar em documentação não-literária,

24
HOUAISS, Antônio. O português do Brasil. Rio de Janeiro: UNIBRADE/UNESCO,
1985. p. 135. FAUSTO, op. cit., p. 237.
Mattos e Silva, Rosa Virgínia.
20 Para a história do português culto e popular brasileiro: sugestões para uma pauta de pesquisa

pelas razões consabidas - se concentra no século XIX e, recuando no


passado, vai decrescendo em progressão geométrica. A busca das carac-
terísticas brasileiras nessa documentação está, parece-me, perseguindo a
hipótese de encontrarmos nela características que demonstrem que o
português brasileiro deixaria “escorrer sua própria tinta” (parafrasean-
do Tarallo), antes da virada do século XIX para o XX e não só nesse
momento, como indicaram os trabalhos de Tarallo e de seus
orientandos25, admitindo-se que essa afirmação decorreu do tipo de fon-
te histórica utilizada por esses pesquisadores. Para confirmarmos essa
nossa hipótese, temos, de fato, de recorrer a documentos de natureza
distinta da utilizada por aquele significativo e pioneiro conjunto de traba-
lhos que, da década de 1980 para 1990, abriu, sem dúvida, o caminho e o
interesse pelo passado do português brasileiro nestes novos tempos de
retorno aos estudos histórico-diacrônicos no Brasil. E estamos nesse
caminho, não só buscando documentos diversificados, não-literários e
rigorosamente editados em função dos estudos lingüísticos que já estamos
fazendo e que pretendemos fazer.
A constituição de corpora com esse objetivo é tarefa difícil, onerosa e
que não pode ser rápida. Quero me centrar aqui, nesse questionamento,
sobre a constituição de nosso corpus, que será a base para as análises lin-
güísticas e, quando possível, sociolingüísticas. Vale lembrar que várias
pautas para análise lingüística já foram propostas, tanto no I Seminário
(cf. os trabalhos de Jânia Ramos26 e de Sônia Cyrino27) como no II (cf. os
trabalhos de Marlos de Barros Pessoa28, Marilza de Oliveira29 e Célia
Castilho30).

25
ROBERTS, Ian; KATO, Mary (Orgs.). Português brasileiro: uma viagem diacrônica. Cam-
pinas: EDUNICAMP, 1993.
26
RAMOS, Jânia. Um plano para a sintaxe diacrônica do português brasileiro. In:
CASTILHO Org.), op. cit., p. 79-87.
27
CYRINO, Sônia Maria Lazzarini. Uma proposta para o estudo da sintaxe diacrônica no
português brasileiro. In: CASTILHO (Org.), op. cit., p. 89-99.
28
PESSOA, Marlos de Barros. Oralidade concepcional na imprensa do Recife no século
XIX. In: MATTOS E SILVA (Org.), op. cit., p. 25-38.
29
OLIVEIRA, Marilza de. Mudança gramatical: programa de estudos. In: CASTILHO
(Org.), op. cit., p. 39-55.
30
CASTILHO, Célia Maria Moraes de. op. cit.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 31-41, 2008 21

A motivação imediata para trazer esse problema - ou seja, a consti-


tuição do corpus - à discussão foi a já referida preocupação da equipe paulista,
veiculada na Circular de março de 1999 de Ataliba de Castilho, em que
externa a necessidade de “acelerar a constituição do corpus, que pode se
transformar num certo gargalo para nossas pesquisas” e apresenta uma
sugestão do grupo paulista, indicada para debate neste Seminário, que
transcrevo para lembrar e para, espero, debatermos.
que cada pesquisador edite pelo menos cinco páginas de cada
um dos seguintes documentos, previstos na lista de Campos
do Jordão: (1) correspondência dos séculos XVII a XX (20
páginas no total); (2) documentos notariais dos séculos XVI
a XX (total de 25 páginas; (3) processos-crime dos séculos
XVIII a XX (15 páginas); outros (25 páginas), com um total
de 85 páginas por pesquisador. Poderemos especificar em
Campinas o tempo necessário para o trabalho.

Tenho um ponto de vista que trago ao debate neste Seminário e que


posso, de fato, mudar no decorrer de nossa discussão. Considero um corpus
desse tipo viável de ser feito, até em rápido lapso de tempo, pelas equipes que
estão investindo em pesquisa em arquivos brasileiros. Contudo, esse tipo de
corpus proposto funcionará, a meu ver, como uma espécie de antologia, um
corpus fragmentário para sondagem preliminar. Mas não poderia aceitar
que seja o corpus do nosso Projeto.
Todos os que já trabalharam com a história da língua portuguesa
conhecem antologias desse tipo para o português arcaico. A mais famosa
e mais antiga são os textos arcaicos de Leite de Vasconcellos31, e todos
sabemos quão pouco esse tipo de antologia informa sobre o processo his-
tórico do passado remoto do português, embora seja um instrumento
bibliográfico útil para introdução ao estudo da documentação do período
arcaico do português.
Quero deixar claro que, se aceitarmos essa proposta – eu a aceito –
devemos aceitá-la, a meu ver, mas no sentido acima afirmado: será um
instrumento de pesquisa inicial, de sondagem, mas não pode ser, segundo
penso, o nosso corpus. Teremos de multiplicar corpora diversificados quan-
to ao tempo e quanto ao tipo de texto, como aliás já está sendo feito –

31
VASCOCELLOS, J. Leite de. Textos arcaicos. Revista Lusitana, v. VIII, 1905.
Mattos e Silva, Rosa Virgínia.
22 Para a história do português culto e popular brasileiro: sugestões para uma pauta de pesquisa

lembro, por exemplo, as cartas particulares da Bahia do século XIX, sen-


do editadas por Tânia Lobo; o corpus para o Brasil meridional de Gilvan
Müller de Oliveira; o corpus de Afrânio Gonçalves para o Rio de Janeiro
do século XVIII; o de Jânia Ramos do século XVIII para Minas Gerais; o
corpus paulista e paulistano da equipe paulista; as cartas da 2ª. metade do
século XVIII da Bahia, por um subgrupo do PROHPOR, tendo à frente
Tânia Lobo e Permínio Ferreira; o corpus em organização de Feira de
Santana e Recôncavo Baiano de Zenaide Carneiro e Norma Fernandes.
Esses corpora, com dimensões diversas, a depender do que for
pesquisado, constituído de textos de tipo distinto, que deverá ir-se ampli-
ando não só para outras áreas do Brasil e aprofundando-se com novos
documentos das áreas onde já está sendo realizado, este tipo de pesquisa é
que nos dará margem ampla para navegação em busca do passado do por-
tuguês escrito no Brasil, testemunho documental da formação do portu-
guês culto brasileiro ao longo dos séculos passados.
Se nos cingirmos a uma antologia fragmentária, 85 páginas multipli-
cadas por, pelo menos, sete grupo de pesquisa – creio que quando na Circu-
lar se fala em pesquisador está-se a pensar nas equipes – resultarão, portanto,
em 595 páginas, um grosso volume que poderia nos levar a correr o risco de
ver ali representado o português escrito no passado do Brasil, testemunho
do passado do português culto, quando ali teremos testemunhos aleatórios
em uma amostra extensiva, horizontal. Poderíamos correr o risco de nos
satisfazer com isso e dizer, feitas as análises lingüísticas: era assim o portu-
guês escrito no Brasil dos séculos XVI ao XX.
Todos que trabalham com as línguas em perspectiva histórica sa-
bem que a representatividade do corpus é a grande pedra no caminho: sobre
que dados generalizar? São eles, os documentos do passado, os únicos
informantes sobre o passado das línguas com escrita. Não dispomos do
“falante nativo” para julgamentos de agramaticalidade/gramaticalidade,
aceitabilidade/não aceitabilidade. Será a recorrência de fatos lingüísticos
nos dados dos documentos o indicador para nos tirar desses dilemas.
Todos sabemos disso, mas a meu ver vale alertar. Pôde-se, a partir do
recorte, do corpus compartilhado do Projeto NURC, erigir não só os numero-
sos e significativos trabalhos do Projeto da Gramática do Português Falado
e tantos outros: teses, dissertações, monografias... mas o “falante nativo”
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 31-41, 2008 23

está aí, o pesquisador é, em geral, o “falante nativo” também. Para a língua


no seu passado, só os textos (na companhia das teorias lingüísticas e
filológicas) são os testemunhos diretos. Há os testemunhos indiretos
dispersos de reflexões, informações, avaliações de gramáticas e outros que
escreveram sobre o assunto. Em face disso, um recorte redutor só se justi-
fica, a meu ver, para uma etapa preliminar de sondagem, mas não para a
reconstrução detalhada, rigorosa e fundamentada do passado.

Para a história do português brasileiro popular


Como sabemos, o percurso para a reconstrução do passado do portu-
guês brasileiro popular não será o mesmo utilizável para a reconstrução do
passado do português brasileiro culto, que se esteia numa tradição escrita. O
português popular brasileiro fez-se e faz-se, ainda, não tanto quanto antes, é
claro, na oralidade.
Na comunicação que apresentei ao II Seminário, já antes referida,
proponho que o português popular brasileiro tem como o seu antecedente his-
tórico o que designei de português geral brasileiro, constituído do encontro
multilingüístico da população indígena autóctone, do português europeu
do colonizador, da população de origem africana que aqui começou a
chegar na década de 30 do século XVI, como informa Alberto Mussa32.
Nesse trabalho defendo o ponto de vista, a ser aprofundado e detalhado,
de que o principal elemento difusor do português no Brasil seria essa po-
pulação de origem africana – segmento demográfico dominante no Brasil
colonial –, que teve de abdicar de suas línguas, pelas razões históricas
conhecidas, e que adquiriu a língua de dominação, reformatando-a pro-
fundamente. Sempre cito Alberto Mussa que, até o momento, pelo que
conheço, é quem melhor formulou a questão do papel dos africanos e
seus descendentes na história do português brasileiro:
É impossível se desconsiderar, como se vem fazendo, a
participação das populações africanas no conjunto da história
lingüística brasileira. Do ponto de vista de uma dinâmica
histórica, o português dos africanos e o português europeu
detêm o mesmo valor, não podendo ser tomados
isoladamente como ponto de partida exclusivo.33

32
MUSSA, op. cit., p. 163.
33
Id., ibid., p. 244.
Mattos e Silva, Rosa Virgínia.
24 Para a história do português culto e popular brasileiro: sugestões para uma pauta de pesquisa

A meu ver, a reconstrução do passado do português brasileiro não


pode deixar de estar atrelada ao conhecimento detalhado dos variados
aspectos da história social no espaço brasileiro e dos avanços da atualida-
de das teorias de contacto lingüístico. Também considero que nessa re-
construção são questões essenciais buscar definir o problema da difusão
maciça da língua portuguesa, na sua forma brasileira, no nosso espaço
geográfico – questão que Jânia Ramos também considera central, formu-
lando de modo diferente “como explicar o sucesso da língua portuguesa
no Brasil”, no seu trabalho ao I Seminário, “História social do português
brasileiro: perspectivas”34; e buscar definir o escopo do significante língua
geral que, para mim, como externei na comunicação do II Seminário, reco-
bre realidades diversificadas não só diatópicas, como já mostrou Aryon
Rodrigues35, mas podendo até identificar-se com o que chamei de português
geral brasileiro, fundado esse ponto de vista no trabalho de John Manuel
Monteiro36. Assim, a meu ver, na formação histórica do português popular
brasileiro são atores fundamentais o português dos africanos e seus descen-
dentes, as línguas gerais indígenas e o português europeu.
Tendo sido formado na oralidade o português geral brasileiro, antecedente
histórico do português popular brasileiro, a busca de seu percurso histórico tem de
ser feita não fundada em corpora escritos, organizável ad hoc, como para o português
culto brasileiro, como é óbvio, mas num processo de reconstrução do tipo – que
designarei metaforicamente – arqueológico, em que, de evidências dispersas, cal-
çadas pelas teorias sobre o contacto lingüístico e pela história social do Brasil, se
possa chegar a formulações convincentes. Percuso análogo, mutatis mutandis e
modus in rebus, ao da reconstrução do chamado “latim vulgar”, cuja principal
fonte de estudo é o seu resultado, as línguas românicas.
Seguindo assim a linha do meu raciocínio, vejo como uma vertente
de pesquisa essencial para a recuperação da história do português popular bra-
sileiro o estudo vertical das variantes populares do português brasileiro,
não só as urbanas, como vem sendo feito pela Sociolingüística, mas nas

34
RAMOS, Jânia. História social do português brasileiro: perspectivas. In: CASTILHO
(Org.), op. cit., p. 166.
35
RODRIGUES, Aryon. Línguas brasileiras. Para o conhecimento das línguas indígenas.
São Paulo: Loyola, 1986.
36
MONTEIRO, Jonh Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São
Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 164-165.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 31-41, 2008 25

suas variedades rurais de todo o Brasil, conectando o estudo dos usos do


presente com a história das comunidades rurais, não só aquelas que têm
um passado profundamente marcado pela presença africana e afro-brasi-
leira, como é o objetivo do Projeto Vestígios de Descrioulização em Co-
munidades Afro-brasileiras Isoladas, em desenvolvimento por Alan Baxter
e Dante Lucchesi, mas as outras com histórias diversificadas. O projeto
do Atlas Lingüístico do Brasil, coordenado por Suzana Cardoso, em
implementação desde 1996, dará um diagnóstico geral e extensivo, mas
serão necessárias, a meu ver, monografias verticais de comunidades repre-
sentativas do mundo rural.
Deixando a perspectiva do presente para o pasado, e voltando-me
para o passado pelo passado, tecerei algumas observações sobre aspectos
desse passado já em processo de pesquisa e sobre isso trago ao debate al-
guns questionamentos e sugestões, levando em conta, mais uma vez, a
Circular de março do nosso coordenador na qual informa sobre a preocu-
pação da equipe paulista de que ainda não se “chegou a um consenso so-
bre a agenda para as pesquisas em História Social”.
Como tentativa de contribuição para a agenda desse aspecto do Proje-
to, gostaria de sugerir que poderíamos definir problemas gerais para o Brasil no
que concerne à questão da história social brasileira em relação à história
lingüística do Brasil, conseqüentemente do português brasileiro, e problemas
específicos.
Na minha visão e sintetizando, considero, como referido antes, que
dois problemas gerais significativos seriam uma eleboração, no âmbito do
Projeto, da questão central da difusão do português, na sua forma brasilei-
ra, no espaço do Brasil, como língua majoritária, provavelmente a partir
do século XVIII. O outro problema geral, como já referido, seria a definição
do conceito de língua geral ou línguas gerais e o que recobriria essa designação,
provavelmente muito genérica e tentar rastrear a expansão e efetivo uso e
desuso dessa(s) língua(s). Sobre esse tópico vem trabalhando Lourenço
Vitral, como vimos pela comunicação ao II Seminário - “Língua geral
versus língua portuguesa: a influência do processo civilizatório”37.

37
VITRAL, Lourenço. Língua geral versus língua portuguesa: a influência do processo
civilização. In: MATTOS E SILVA (Org.), op. cit., p. 303-315.
Mattos e Silva, Rosa Virgínia.
26 Para a história do português culto e popular brasileiro: sugestões para uma pauta de pesquisa

Outra questão que vejo como geral e central é o aprofundamento


do debate sobre crioulização prévia versus deriva natural, posicionando-me logo
no sentido de que tanto uma como a outra hipótese, considero-as muito
genéricas e simplificadoras e que não seriam excludentes, como externei
na Mesa Redonda do II Congresso da ABRALIN38: se a hipótese da
crioulização prévia pode ser postulada para locais específicos do Brasil, como
é o caso de comunidades afro-brasileiras isoladas como Helvécia, na Bahia,
não pode ser generalizada para todo o português brasileiro e conseqüente-
mente para o português popular brasileiro. Por outro lado, a deriva natural não
poderia ser descartada para aspectos das variantes cultas, como aliás mos-
tram Martha Scherre e Anthony Naro39 sobre a variação da concordân-
cia verbo-nominal, em que na escrita formal brasileira a variação ocorre
nos mesmos contextos em que já ocorria no português arcaico e continua
a ocorrer no português europeu, segundo as pesquisas por eles feitas.
Contudo, seria, a meu ver, inadequado propor a deriva natural para outros
aspectos da sintaxe brasileira do português vernáculo brasileiro, que o
aproximam a mudanças ocorridas em áreas de crioulização leve, conforme
Baxter40 e Lucchesi41.
Quanto aos problemas que designei como específicos, referem-se eles à
tentativa arqueológica de busca de evidências empíricas de marcas africa-
nas e indígenas documentadas de alguma forma na documentação escrita
no Brasil, tanto em fontes diretas como indiretas.
Vejo que está na mira dos que estão pesquisando em documentação
arquivística encontrar evidências dessa natureza. Retomo aqui uma formula-

38
MATTOS E SILVA. Sobre as origens do português brasileiro. In: CONGRESSO
NACIONAL DA ABRALIN, Florianópolis, 1999.
39
NARO, Anthony; SCHERRE, Marta. Concordância variável em português: a situação
no Brasil e em Portugal. In: CONGRESSO NACIONAL DA ABRALIN,
Florianópolis, 1999.
40
BAXTER, Alan. O português vernáculo do Brasil: morfossintaxe. In: PERL, Mathias;
SCHWEGLER, Armin (Org.). América negra: panorámica actual de los estudios
lingüísticos sobre variedades hispanas, portuguesas y criollas. Berlim: Vervuert/
Iberoamericaca, 1998. p. 97-134.
41
LUCCHESI, Dante. A constituição histórica do português brasileiro como um proces-
so bipolarizador: tendências atuais nas normas culta e popular. In: GROSSE, Sybille;
ZIMMERMANN, Klaus (Org.). Substandard e mudança no português do Brasil. Frankfurt
am Main: TFM, 1998. p. 1-26.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 31-41, 2008 27

ção de Afrânio Gonçalves Barbosa no trabalho do I Seminário - “O por-


tuguês escrito no Brasil no século XVIII: fontes reunidas na Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro”42, que se pode generalizar para o Brasil.
Sabemos que o tipo de fonte ideal dificilmente chegará às
nossas mãos: um “appendix Probi” do português dos colonos
brancos e pardos que conviviam nas várias lojas da rua
Direita é um sonho43.

Mas, de repente, sonhos assemelhados podem se tornar realidade,


nunca se sabe o que escondem os arquivos e outros lugares e o que um
grupo de pesquisadores empenhados pode descobrir.
Em busca de evidências, como as referidas, se encontra a pesquisa de
Tânia Alkmim, apresentada ao II Seminário - “A variedade lingüística de
negros e escravos: um tópico da história do português do Brasil”44, parte
de um projeto sobre o tema. Rastrea Tânia Alkim fontes históricas, lite-
rárias, jornalísticas para reunir informações sobre o tema do trabalho.
Trabalhos desse tipo, a meu ver, são significativos para uma composição
aproximativa do tecido complexo das realidades lingüísticas do passado
brasileiro. Entretanto nunca poderemos ter a certeza de que o que seria
diferente do português aqui chegado seria “influência” africana, indígena
ou outra. Sobretudo porque não conhecemos, a rigor, quais seriam e como
seriam então essas línguas em contacto com o português colonial.
A meu ver, embora considere essa busca que metaforicamente estou
chamando de arqueológica, necessária e interessante, o processo do contacto
e seu resultado só poderão ser interpretados teoricamente, com base nas
teorias do contacto lingüístico e com base nas conseqüências evidenciadas
nas modalidades, sobretudo do português popular brasileiro, conviventes hoje
em nosso território. Só assim ultrapassaremos a busca das chamadas “influ-
ências” africanas e indígenas que tanto marcou a produção sobre a história
da “língua portuguesa no Brasil”, assim designado, até meados do século
XX, pelo menos. Considero que temos de enquadrar essa questão no con-

42
BARBOSA, Afrânio Gonçalves. O português escrito no século XVIII: fontes reunidas
na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. In: CASTILHO (Org.), op. cit., p. 229-238.
43
Id., ibid., p. 233.
44
ALKMIM, Tânia Maria. A variedade lingüística de negros e escravos: um tópico da
história do português no Brasil. In: MATTOS E SILVA (Org.), op. cit, t. II, p. 317-335.
Mattos e Silva, Rosa Virgínia.
28 Para a história do português culto e popular brasileiro: sugestões para uma pauta de pesquisa

texto sócio-econômico brasileiro, em que a língua socialmente dominante


foi adquirida pela maioria da população brasileira de origem familiar não-
européia - os dados demográficos são sem dúvida fundamentais - na oralidade,
sem o controle da normativização escolar e, conseqüentemente, da escrita,
portanto em situação de “aquisição imperfeita” ou de “aprendizagem irre-
gular”, daí resultando as formas que caracterizam o português brasileiro popular,
expandindo-se num processo de mudança de baixo para cima, na formulação
laboviana, para os usos das normas cultas (cf. LUCCHESI45).
Para finalizar as sugestões para uma pauta de pesquisa, aqui incluo a
face culta e a face popular do português brasileiro, considero que em nosso
Projeto deveremos reconstruir para todas as áreas geográficas recoberta
pelo Projeto a sócio-história lingüística, levando em conta a difusão da
língua portuguesa e a história lingüística, multilingüística, própria a cada
área e ainda o processo de escolarização/literatização do povo brasileiro,
numa reconstrução que seja o mais detalhada e precisa possível. Orienta-
ção, aliás, que já está em curso, como se pode verificar já aflorado nos
trabalhos do I Seminário e também nos do II (cf. os trabalhos de Ataliba de
Castilho46, de Mirta Groppi47, de Renato Venâncio48, de Gilvan Oliveira49).

Sintetizando as sugestões antes apresentadas


Finalizo itemizando os tópicos que sugeri e sobre os quais argumen-
tei no decorrer desse texto:
a. definir com clareza e precisão o conceito de “português brasilei-
ro” no âmbito de nosso Projeto;
b. para a reconstrução do passado do português brasileiro culto, pesquisar
em corpora do português europeu contemporâneo e da mesma natureza dos
nossos corpora os fatos lingüísticos gramaticais que forem selecionados;

45
LUCCHESI, op. cit.
46
CASTILHO, Ataliba de. Para um programa de pesquisas sobre a história social do
português de São Paulo. In: MATTOS E SILVA (Org.), op. cit., t. II, p. 337-369.
47
GROPPI, Mirta. Problemas e perspectivas para um estudo da situação lingüística de São
Paulo no século XVIII. In: MATTOS E SILVA (Org.), op. cit., t. II, p. 371-389.
48
VENÂNCIO, Renato Pinto. Migração e alfabetização em Mariana colonial. In:
MATTOS E SILVA (Org.), op. cit., t. II, p. 391-399.
49
OLIVEIRA, op. cit.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 31-41, 2008 29

c. não restringir os dados do português europeu aos séculos do XVI ao


XIX, mas recuar mais para o passado, considerando evidências rastreadas
no português quatrocentista;
d. estar consciente de que um corpus fragmentário do tipo antologia
será útil para uma pesquisa inicial de sondagem e, conseqüentemente, não
descurar de estender, ampliar e diversificar nosso corpus documental;
e. para a reconstrução do passado do português popular brasileiro, pesquisar
no espaço brasileiro as variedades conviventes hoje sobretudo as dos não-
escolarizados das diversificadas áreas rurais do Brasil;
f. definir problemas histórico-lingüísticos gerais no Brasil, ressaltando,
nesse caso, a questão central da difusão da língua portguesa, na sua forma
brasileira, e a questão da definição e extensão de uso da(s) língua(s) geral(is);
g. enquadrar a formação do português brasileiro no contexto das
teorias do contacto lingüístico, para ultrapassar a perspectiva antiga de
busca das “influências” africanas e indígenas;
h. elaborar o debate sobre as hipóteses da crioulização prévia e da deriva
natural para a formação do português brasileiro;
i. reconstruir, detalhadamente e com a precisão possível, a sócio-
história lingüística das diversas áreas brasileiras cobertas pelo Projeto, con-
siderando as línguas que aí estiveram em contacto, os movimentos
demográficos, a ausência/presença da escolarização e, conseqüentemente
da escrita, como elemento normativizador.
No ano 2000, Klebson Oliveira, com muito orgulho meu orientan-
do de Mestrado e Doutorado, encontrou os indícios no nosso “latim vul-
gar”, quando trabalhou e trabalha com a documentação da Sociedade Pro-
tetora dos Desvalidos, uma irmandade negra fundada em 1832 pelo africa-
no Manoel Vítor Serra, em Salvador50. Da referida irmandade editou
Klebson Oliveira 290 documentos escritos por africanos e afro-descen-
dentes ao longo do século XIX.

50
OLIVEIRA, Klebson. Textos escritos por africanos e afro-descendentes na Bahia do século XIX: fon-
tes do nosso “latim vulgar“?. Dissertação de Mestrado. Salvador: Programa de Pós-
graduação em Letras e Lingüística da Universidade Federal da Bahia, 2003, 3v. OLIVEI-
RA, Klebson. Negros e escrita no Brasil do século XIX: sócio-história, edição filológica
de documentos e estudo lingüístico. Tese de Doutorado. Salvador: Programa de Pós-
graduação em Letras e Lingüística da Universidade Federal da Bahia, 2006, 3v.
Mattos e Silva, Rosa Virgínia.
30 Para a história do português culto e popular brasileiro: sugestões para uma pauta de pesquisa

Termino como terminavam copistas medievais, ao findarem seus


manuscritos - Laus Deo, que Deus seja louvado; porque o trabalho, a meu
ver, será muito, de muitos e não será por pouco tempo.

ABSTRACT

This paper aims at problematizing the historical


process of constitution of both standard and popular
varieties of Brazilian Portuguese, pointing out the
differences of methodology required for the
observation of each one’s history.

KEYWORDS: Historical Linguistics; Portuguese


Language history; Standard Brazilian Portuguese; Po-
pular Brazilian Portuguese.

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