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ROSA VIRGÍNIA MATTOS E SILVA

Li [gem] ENSAIOS PARA


1. Português ou brasileiro? Um . QltVih f) /'.•.////'•</, -I" lscI.
Marcos Bagno UMA SÓCIO-HISTÓRIA DO
2. Linguagem &comunicarão íOi tal \'i >•• • ihi liny.iiística moderna
Manoel Luiz Gonçalves Correu
PORTUGUÊS BRASILEIRO
3. Por uma lingüística crítica
Kanavillil Rajagopalan
4. Educação em língua matei na a itn t<<UuyJ\istica nasala de aula
?>• § Si Stella Maris Bortoni-Ricnrdo
^ S jjv 5. Sistema, mudança alinguagem um percurso pela história da
r? >|CjÚ lingüística moderna
-s- r"\ * Dante Lucchesi
In O Si~^" 6. "O português são dois" - novas [routeii,is, velhos problemas
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CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S583e

Silva, Rosa Virgínia Mattos e


Ensaios para uma sócio-história do português
brasileiro / Rosa Virgínia Mattos e Silva. - São Paulo:
Parábola Editorial. 2004
. • (l.iii)Mia|gcm]: 7)

liklui bibliografia
1SHN «S-8S456-24-y

I. Língua pio mgm-sa • Hrasil- História. 2. Sociolingüística.


I. Tituli. II. Série

04-172? CDD 459.798


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ISBN: 85-88456-24-9

© Parábola Editorial, São Paulo. SP, julho de 2004.


UM
Português brasileiro: raízes e trajetórias
Para a construção de uma história *

1. Abertura
O poeta Pessoa nos ensinou que, sem antes sonbar, a obra não
nasce, Deus (e nós, brasileiros, neste caso) querendo. As reflexões
que seguem são um convite para
a construção da história do por- Lembrando,
tuguês brasileiro, obra que não j^ F Lindlev Cintra
pode deixar de ser coletiva e con- ~ * t- j /-> i_
. «. . ,,
juntamente sonhada.
Celso F. da Cunha,
Fernando Tarallo,
Passados quase cinco sécu- .
los, está ainda por ser recons- Ada Natal Rodrigues
truído, como detalhamento pos- (todos contribuíram para
sível, o processo do encontro po- essa história),
liticamente assimétrico entre a
língua portuguesa, língua de dominação, com muitas línguas autóc
tones e as diversas línguas aqui chegadas, primeiro as africanas, de
pois as línguas de imigrantes, que tornaram esta área americana,
multilíngüe de origem, ainda mais complexa lingüisticamente.
É numerosa e bem conhecida a bibliografia que tem tratado
da língua portuguesa no Brasil. Em geral, focaliza o português, sua

* A primeira versão do texto foi apresentada no Congresso Brasil: raízes e


trajetórias, na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1992c publicada sob o título
"Português brasileiro: raízes e trajetórias (para a construção de unia história) in
Discursos- Estudos de língua e cultura portuguesa, Lisboa: Universidade Aberta, feve
reiro de 1993, pp. 75-91.
12 tNSAIOS TARA UMA SÓCIO-IIISTORIAIX) TOKTUKllCS BRASILEIRO
PoRTW;uNBRASIiniRO:RAlZr.SETRAIETORIAS • 13

transplantação, dirusão_e_implantação no espaço americano, to- e, na sua segunda metade, muita contribuição específica tenha
mánHõapenas como contraponto as línguas que aqui se usaram sido elaborada sobre aspectos de diversas variantes brasileiras,
(muitas delas ainda se usam) e outras línguas para cá também tanto nas descrições e interpretações da dialetologia diatópica e
transplantadas ao longo dos séculos XVI a XX, denominados os
da sociolingüística diastrática, como mais recentemente tam
seus falantes de aloglotas, isto é, falantes não-nativos do português.
bém nas interpretações gerativistas, ainda está por ser elaborada
Nesta perspectiva, apesar de toda a contribuição que dessa uma reconstituição que conjugue fatores sócio-históricos,
orientação se possa reunir — lembrem-se de Serafim da Silva Neto demográficos, lingüísticos do passado e do presente que, reuni
(1950 e 1960), Sílvio Elia (1940/1961 e 1979), G. Chaves de Melo dos, poderão explicitar e espelhar os processos sócio-históricos
(1972) —, dilui-se na tentativa de compreender e explicitar a dife e lingüísticos que interagiram na constituição do português que
renciação do português no Brasil em relação ao português da Euro falamos. Tal intento, talvez utópico, já poderia ser implementado
pa a complexidade dos diversos contextos sócio-históricos de inte neste início de século e alguns caminhos foram abertos por An
ração lingüística em solo brasileiro que resultou no português do tônio Honaiss (1985), Alberto Mussa (1<)91), Fernando Tarallo
Brasil, português brasileiro, na heterogeneidade de suas variantes (1991), além de outros, também pelo Programa para a História
regionais e sociais, também de suas normas socialmente consen
da Língua Portuguesa (PROHPOR) do Departamento de Letras
tidas, além da norma idealizada por filólogos e gramáticos, coerci- Vernáculas e no Mestrado em Letras da Universidade Federal da
tivamente veiculada pelas instituições, sobretudo as escolares. Bahia.
Perseguiu-se o português no Brasil como se fora uma reali
dade homogenefzável, mesmo reconhecendo-se a variação regio _• Aqui procurarei apenas traçar, em pauta sintética, alguns
nal e social, idealizado como dotado de notável, espantosa uni dos trajetos de encontros/desencontros lingüísticos no Brasil./
dade que, tirante "algumas insignificantes divergências sintáti TereT com^íTõ~cõn3üfõf~~a interação das línguas "em Contato.
cas e numeroso vocabulário novo" (Neto, 1960: 25), acrescento Nessa interação secular, complexa e diversificada, o português,
eu, algumas peculiaridades fonéticas, identificava-se ao portu vindo da Europa, será um denominador comum, já que lança
guês..^ Europa.__Na base de tal ideal, está uma ideologia" que dos ao mar os dados (as velas) da história, veio a ser a língua
busca "enobrecer" e "desmisticizar" o português brasileiro, o que portuguesa, e não outra, como poderia ter sido, a língua da so
fica muito explícito na formulação de Serafim da Silva Neto: ciedade dominante, que moldou o Brasil mais evidente. Tornou-
se majoritária e oficial neste país multilíngüe e multidialetal,
Por causa, precisamente, desta falta de prestígio é que a lingua
gem adulterada dos negros e índios não se impôs senão transi mesmo que esse multilingüismo/dialetalismo fique escamotea
toriamente: todos os que puderam adquirir uma cultura escolar do na sua legislação máxima — embora a última Constituição
e que, por este motivo, possuíam o prestígio da literatura e da demonstre um avanço político e lingüístico, já que o português
tradição, reagiram contra ela (Silva Neto, 1960: 21). passa a ser rotulado de língua oficial e não mais nacional; mesmo
que fique dissimulado nas práticas sociais institucionalizadas, so
Muitas histórias têm de ser reconstruídas para que se venha bretudo e ainda as escolares. Torna-se, contudo, esse multilingüismo/
a ter ufha história do diversificado português brasileiro, dialetalismo evidente para quem quiserver a realidade plurifacetada
inexoravelmente nascido do encontro da "linguagem adulterada que recobre os muitos quilômetros de extensão do Brasil e,
de negros e índios" e da koiné portuguesa, além-de outras lín conseqüentemente, para quejn_qiusjyLjojjyh- as vozes de seus 170
guas aqui chegadas que, necessariamente, por razões sócio-his- milhões de habitantes, sem discriminação
tóricas e lingüísticas, entrecruzaram-se e se entrecruzam com o
ideal redutor e generalizado formulado por Serafim da Silva Neto. / Procurarei, ainda neste texto, de forma sintética também, apre-
/ sentar orientações de estudos que vêm retratando a heterogeneidade
Embora muito se tenha debatido sobre a formação do por ( sincrônica do português brasileiro, fonte essencial porque, vendo-
tuguês brasileiro, sobretudo na primeira metade do século XX, Vse<,p_4>resente,^se_pode presumir entrever o passado. ^
Português brasileiro: kaIzcs t trajetórias • 15
14 Ensaios para uma sócio.-i iistokia ix> português dkasiloko
entre brancos, negros e índios não só no litoral brasileiro, mas
2. Do multilingüismo generalizado ao multilingüismo
nas entradas paulistas; pelo nordeste teria sido uma língua geral
localizado: a emergência de uma língua nacional cariri (Houaiss, 1985: 49-50) e na Amazônia a língua geral de
2.1 0 que não imaginaram os descobridores: a trajetória base tupinambá é o antepassado do nheengatu, que persiste hoje
dizimada indígena em área de complexo multilingüismo no rio Negro, língua bra
sileira, fruto vivo da morte de outras línguas.
0 escrivão da frota de Cabral, na sua Carta, não poderia
supor o que depois se cumpriu no correr do tempo. Explica A par desses percursos parcialmente conhecidos e recons-
Pero Vaz de Caminha ao rei por que ficariam em terra dois truíveis, muitas e diversificadas histórias de contato lingüístico
degredados, além dos dois gmmetes que fugiram da frota que entre línguas indígenas e outras línguas poderão ser recuperadas.
seguiria para as índias: Dois exemplos do presente, opostos na sua história, apenas
Mjlhor e mujto milhor enformaçom da terra daram dous homees para entrever o que terá ocorrido e continua a ocorrer por esses
destes degredados que aaquy leixassem do que eles dariam seos brasis, aos poucos, cada vez mais conhecidos:
leuassem por seer jente que njnguem entende nem eles tam O caso xinguano é exemplar, no bom sentido, talvez único no
cedo aprederiam a falar pcrao sabere tam bem dizer que mujto
mjlhor ho estoutros nom digam quando ca vossa alteza mandar Brasil indígena: ali, no Mato Grosso do norte, sobrevivem em re
(... ) (Pereira, 1964: 11. 6, ls. 24-31).
gião de refúgio, o Parque Nacional do Xingu, quinze grupos indí
genas, com suas línguas de origem e, como língua franca, de
Esses quatro primeiros semeadores do português no Brasil intercomunicação entre as tribos, aflora o português xinguano,
aqui ficaram antes para aprenderem "a sua fala" (foi. 11, ls. 26- numa das variantes do português brasileiro. Nessa área, configura-
30), a dos índios, e assim convertê-los e não para ensinar-lhes se um continuum lingüístico: dos padrões lingüísticos nativos
português; quanto à terra, não seria ela mais que "pousada pera (54,8% da população), passa-se à comunicação fatorizada do
esta navegaçom de Calecut" (foi. 13v, ls. 22-27). português de contato (30,5%), à fala pidginizada (8,9%) e chega-se
O seguir da história foi outro e com aqueles quatro que fica à fala em processo de despidginização (5,7%) (Emmerich, 1991:
ram se inicia a trajetória dizimada dos índios brasileiros e de suas 70), mantendo todos, contudo, e para minha alegria, as suas. lín
línguas, percurso etnocida e glotocida conhecido, conduzido pri guas de berço. Essa situação exemplar deveu-se a uma política" de
meiro pelos colonizadores portugueses e prosseguido pelas cha contato controlado, em que o processo de encontro entre índios e
madas frentes pioneiras que hoje alcançam os limites, últimos da brancos, iniciado intermitentemente em 1884 e a partir de 1946 em
Amazônia brasileira. Apesar desses quinhentos anos de destruição contato, permanente, impediu não só a morte dos. indivíduos, mas
ininterrupta, sobrevivem cerca de 180 línguas indígenas e cerca de propiciou a manutenção de sua cultura c de suas múltiplas línguas.
220.000 índios/— seriam o dobro as línguas do século XVI
(Rodrigues, 1986: 19) ou, muito mais, cerca de 1.500, como admite Exemplo de situação oposta é a da área multilíngüe do
verossímil A. Houaiss (1985: 100) — o que impede de dizer (mas Tocantins, sudeste do Pará, onde convivem índios do tronco
é o que se teima em afirmar!) que o Brasil é unilíngüe. lingüístico jê (gaviões- e xikrin) e seis grupos do tronco lingüístico
tupi. Pelo quadro seguinte (cf. quadro 1), em que estão seqüenciados
O processo colonizador e evangelizador dos séculos. XVI e os grupos indígenas da língua tupi, a partir da maior antigüidade
XVII teve de utilizar, como instrumento fundamental para a do quanto ao contato com a.sociedade dominante, pode-se ver_a perda
minação, línguas indígenas brasileiras. Embora homogeneizadora progressiva das línguas indígenas e o avanço inexorável da língua
da atividade catequétka — construiu um "tupi jesuítico" —,_a portuguesa, a depender do tempo e do tipo de contato. Em outro
língua geral da costa, de base tupi, chegou a ser um risco para trabalho (Mattos'e Silva, 2004, pp. 47-62), detalhei mais esse per
a hegemonia do português no Brasil, juntamente com outras curso, o que me permite dizer que muito provavelmente cada gru-
línguas gerais indígenas que foram veículos de intercomunicação :J
16 • Ensaios para uma sôcio-hístókia ix.> mimjcufs iikasilnko PoRTl!(iUrMIRASIiriRO:RAlZi:St TRAJETÓRIAS • 17

po indígena em contato tem a sua própria história e vários fatores 2.2 O que planejaram os colonizadores: a trajetória dilacerada
interagem para a perda ou a manutenção de suas línguas, o que africana
acontece hoje, analogamente deve ter ocorrido no passado.
Em 1538, inicia-se o tráfico de africanos para o Brasil. Passadas
Quadro 1 —Situação do contato lingüístico de alguns povos tupi do Tocantins cinco décadas, em 1587, Gabriel Soares de Sousa, na sua Notícia do
Povo Início do contato Situação lingüística
Brasil ou Tratado descritivo do Brasil, nos deixa um flash do que seria
a sociedade multiétnica e plurilíngüe de Salvador — a época, os "pre
AMANAYÉ século XVIII - nãosesabeseainda falama línguamaterna tos de Guiné" seriam o dobro dos portugueses e os índios, o triplo —
- falam português ao mostrar como ali se poderiam enfrentar prováveis inimigos:

TEMBÉ-TURUWAYA
- apenas os homens mais velhos Assim, pode ser socorrida por mar e por terra, de muita gente
século XVIII sabem a língua materna
- falam português portuguesa até quantia de dois mil homens, de entre os quais
podem sair dez mil escravos de peleja, convén a saber quatro mil
- homens de mais de 40 anos ainda pretos de Guiné e seis mil índios da terra (... ) (Sousa, 1989: 86).
ANAMBÉ meados do falam a língua materna, de 20 a- 30
século XIX ainda a entendem O censo de Anchieta para o Brasil de 1583, contemporâneo,
- falam português
portanto, de Gabriel Soares de Sousa, fornece informação seme
- homens de 30 a 40 anos ainda falam lhante sobre a pluralidade brasileira de seu tempo. Distinguindo
a língua materna, muitos jovens e
ASSURINI início do crianças só falam português
Bahia, Pernambuco, São Vicente, Rio de Janeiro, Espírito Santo,
século XX (N.B.: até 1962 o grupo Assurini Porto Seguro, Ilhéus, Itamaracá, indica a existência de 24.750
do Pacajá era monolíngüe)
brancos, 14.100 negros, 18.500 índios (aldeados) (Mussa, 1991:
- todos falam sua língua 149). Informações históricas desse tipo sâo preciosas para a
- 80% dos homens, 60% das
SURUÍ década de 1920 reconstituição histórica do passado lingüístico do Brasil — e
mulheres, todos os adolescentes e
crianças falam português fontes como essa precisam ser sistematicamente exploradas —
- fundamentalmente monolíngües já que não se pode negar que a história das línguas passa neces
PARAKANÃ 1971 - jovens do sexo masculino já falam sariamente pela história demográfica de seus falantes.
português
A. Mussa (1991) recompõe, a partir das fontes disponíveis,
(Dados depreendidos de Ricardo, 1985)
a diacronia populacional do Brasil do século XVI ao XDC, como
Trazer aqui esses exemplos tem apenas o objetivo de indicar um dos fundamentos para discutir e analisar o papel das línguas
que, para a história lingüística do Brasil e da difusão e implantação africanas na história do português do Brasil (cf. tabela 1). Tam
da língua portuguesa no Brasil, se faz necessário conhecer como bém reconstitui a distribuição por século do que seria a popu
se passa o processo de contato sócio-histórico e lingüístico entre lação de falantes das diversas línguas africanas que chegaram ao
línguas indígenas e língua portuguesa. Há fontes históricas, im Brasil (cf. tabela 2). Os números não dizem tudo, mas acendem
pressas e não-impressas, do passado e sincrônicas que permitem algumas luzes. É óbvio que aqui não posso explicitar a minucio
essa reconstrução. Além disso, p_ estudo das línguas indígenas vi sa análise do autor, a quem remeto. Apenas quero notar a cres
vas e do português falado pejos diversos grupos indígenas permi cente presença de negros brasileiros em relação aos africanos,
tirá melhor conhecer o português brasileiro próprio a essas áreas
dos mulatos, a partir do século XVII, também dos brancos bra
e levantar hipóteses mais consistentes sobre o que poderia ter
ocorrido no passado. Foi isso que modestamente busquei, com sileiros e o decréscimo de portugueses, africanos e índios.
ajuda de colegas, nos estudos sobre o português kamayurá, um dos Quanto às línguas africanas, retomo as palavras do próprio
grupos do Parque do Xingu (Mattos e Silva et alii, 1988). A. Mussa:
18 • Ensaiosparauma scoo-ijisiVikia to tortucuês brasileiro Português brasileiro: kaIzese trajetórias • 19

(...) o percentual de falantes bantu foi sempre superior, e quase TABELA 2


sempre maciçamente, em todo o período do tráfico. Isso nos
possibilita entender de forma bastante clara por que são preci XVI XVII XVIII xrx

samente os itens lexicais de origem bantu os que se registram Oeste-atlântico 20% 7% 1% 3%


com mais anterioridade, com maior grau de integração
morfológica e em maior número de campos semânticos no por mande 20% 7% 1% 3%

tuguês do Brasil... a posição relativamente proeminente do grupo kru 14% 5% 1% 3%


benwe-kwa (não bantu) nos últimos séculos também implica o gur 1% 3% 8% 9%
grande número de itens lexicais emprestados por essas línguas,
benue-Kwa (não bantu)
embora não integrados e particularmente restritos aos campos 7% 10% 20% 24%

semânticos ligados à atividade ritual (Mussa, 1991: 146). bantu ' 35% 65% 64% . 50%

Um dos pontos que parece consensual quanto à dívida do outros


(adamawa- ubanguiano; 3% 3% 5% 8%
português brasileiro para com as línguas africanas é o'que está ex dogon: não nigercongo
plicitado nesta citação. Quanto ao que recobriria esse encontro de
Fonte: Mussa, 1991: 145
falantes e de seus descendentes, de línguas tão diversas, nenhuma
idealização teórica pode alçar-se a querer ser intérprete fiel da rea Situação diversa só parece ter ocorrido já no século XIX,
lidade passada; sem dúvida, ocorreram "diversas situações socio- quando a importação se massificou "a tal ponto que não houve
lingüísticas e variados graus de contacto", como diz Yeda Pessoa seleção negativa, não só na origem também na destinação nessa
de Castro (1980: 13) e o demonstra na sua tese de doutoramento altura já consideravelmente urbana — Salvador em particular —
(1976) sobre a integração dos empréstimos africanos. ou das periferias urbanas do país" (Ibid.: 78).
Algum consenso existe também quando se afirma que im Não é sem razão que desde os inícios deste século os espe
possível seria ter sido mais praticada uma língua africana no cialistas polemizam em torno da questão crucial: as caracterís
Brasil do que outra, porque, como bem expressa A. Houaiss: ticas que tipificam a fonética e a sintaxe brasileiras — quanto ao
(...) pelo tipo de escolha a que eram submetidos desde os portos léxico que nos legaram essas línguas, não há como negar —
negros até sua localização como mão-de-obra no Brasil, os ne serão decorrentes de "influências africanas" ou de "evolução
gros foram selecionados negativamente, a fim de que não se natural"? Polêmica que se desencadeou a partir dos' trabalhos pio
adensassem em um ponto qualquer, étnica, cultural e neiros sobre o tema, de Renato Mendonça e Jacques Raimundo,
lingüislicamente (Houaiss, 1985: 77-78). ambos de 1933, e que continua a dividir sociolingüistas de nos
sos dias, tanto estrangeiros como brasileiros.
TABELA 1 Há ainda muita pesquisa a ser feita não só em documentação
remanescente em arquivos do Brasil, mas sobretudo trabalho de
1538-1 M>0 1601-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890
campo em comunidades predominantemente negras por esses
africanos 20';* 30% 20% 12% 2% interiores brasileiros. Nisso estão empenhados alguns pesquisado
negros brasileiros 20% 21% 19%
mulatos
13% res, sobretudo antropólogos, mas também lingüistas, brasileiros e
10% 19% 34% 42%
brancos brasileiros 5% 10%
estrangeiros, com pesquisas de campo, pelo menos em Goiás, Mato
17% 24%
europeus 30% 25% 22% 14% 17%
Grosso, Maranhão, sul e oeste da Bahia, Minas Gerais e São Paulo.
índios integrados 50% 10% 8% 4% * 2% Se é difícil demonstrar que o português brasileiro generica
Fonte: Mussa, 1991: 163
mente considerado, ou com base em amostras pouco significai!-
20 Ensaios para uma sócio-i iistokia ixi iiiktucuCs hkasiixiko
PORTUCUrs IIKAHILE1RO: RAlZES CTRAJETÓRIAS • 21

vas para esse fim, está em processo de descrioulização, não será mam que uma língua geral de base indígena ultrapassara de muito
impossível encontrar comunidades rurais isoladas que apresen as reduções jesuíticas e se estabelecia como língua familiar no
tem variantes do português que possam ter tido uma história em Brasil eminentemente rural de então. Pombal define o português
que as línguas africanas tenham desempenhado papel essencial. como língua da colônia, conseqüentemente obriga o seu uso na
A ponta do iceberg aflorou para os lingüistas, na década de 1960, documentação oficial e implementa o ensino leigo no Brasil, antes
no estudo da povoação de Helvécia, sul da Bahia (Ferreira, 1984), restrito à Companhia de Jesus, que foi expulsa do Brasil.
quando se pesquisavam pontos para O Atlas prévio dos falares
baianos (Rossi et alii 1965).
Em rápido olhar à tabela 1, sobre a demografia diacrônica
do Brasil, ressalta, a partir do século XVIII, e vale frisar, o
Enquanto os índios ou foram dizimados ou fugiram para as descenso dos africanos, incrementa-se o descenso indígena, tam
margens geográficas do país, e vêm aflorando, quando menos se bém o de portugueses, tomando, entretanto, direção inversa o
espera, como está ocorrendo em alguns pontos do Nordeste, mui crescimento dos mulatos e dos brancos brasileiros. A miscige
tos negros, dilacerados à partida e em seguida, acantonados, quan nação e a presença não-maciça de portugueses certamente são
do puderam, em locais de refúgio, ou para sobreviver ou para indicadores favoráveis à formação de uma "língua geral brasilei
tentar vencer seus opressores: vencidos os quilombos, restaram, ra", que não seria africana, pelas razões afloradas anteriormente,
certamente, em múltiplos pontos do Brasil grupos que se defende mas sim continuadora do português, já que o terceiro actante
ram sob a proteção natural (e sobrenatural) e que aos poucos se nesse drama, os índios, os que não morreram, ou já estavam
revelam. A grande maioria, contudo, integrou-se, nas cidades e nos integrados ou açoitados nos confins protegidos. Certamente,
campos, à sociedade multiétnica brasileira em formação. Hoje, nas então, sobretudo nas concentrações urbanas que já existiam, o
grandes cidades brasileiras, a questão negra está na ordem do dia. embate se dava entre duas possibilidades: um português
Não podemos ignorá-la. Na minha grande cidade, Salvador, a po africanizado ou um português europeizado. Por outro lado, a
pulação negra e mulata já beira os 90%: respiramos, transpiramos, depender de configurações históricas locais, a predominância
sofremos e nos alegramos na e com a Afro-Bahia. indígena ou negra ou ambas em convívio com o português re
Há muitas histórias por reconstruir sobre as faces indígena sultou em perfis diferenciados, a se considerar o conjunto bra
e negra do Brasil e, conseqüentemente, sobre as variantes do sileiro. Pode-se então dizer, como A. Houaiss, que o "português
português brasileiro que aí se veicularam e se veiculam. brasileiro nasce com diversidade" (1985: 91) e, digo eu, vive e
convive com ela, tanto regional como social.
Aos fatores apontados, acresçam-sc outros que marcam todo
2.3 A emergência cie uma língua nacional: trajetória convergente o século XIX:
-/ A partir da segunda metade do século XVIII, uma série de Uns favoreceram a diversificação regional, como é o caso
fatores de história externa conduzem à definição do Brasil como da chegada dos imigrantes, vindos de vários pontos e com vá
país majoritariamente de língua nem indígena nem africana. O rias línguas, localizando-se, sobretudo, do sudeste para o sul,
multilingüismo menos ou mais generalizado, a depender da con também imigrantes portugueses, não mais colonizadores, que
juntura histórica local nos séculos anteriores, localiza-se e abre, se espalham pelo Brasil ou se localizam em determinadas áreas,
então, o seu caminho o português brasileiro. como os açorianos que se concentrarão no litoral catarinense.
Em 1757, com o Marquês de Pombal, se define explicitamente Outros fatores favoreceram a implementação de um ideal
para o Brasil uma política lingüística e cultural que fez mudar de lingüístico homogeneizador, tendente para o português europeu.
rumo a trajetória que poderia ter levado o Brasil a ser uma nação Em rápida enumeração, não se pode deixar de destacar a pre
de língua majoritária indígena, já que os dados históricos infor sença da corte portuguesa no Rio (a partir de 1808) e dos muitos
22 Ensaios para uma sóuo-iiimúkia uo iDRTixnjCs BRASILEIRO PuktucuCs iikasii.liko: raí/.ls e trajetórias 23

portugueses que com ela abandonaram Portugal e a independên das; no português brasileiro, a queda do [s] é estigmatiza
cia subseqüente que teve a boa intenção de tornar o ensino da, sobretudo se implica em problemas de concordância.
universal e obrigatório, já na primeira Constituição brasileira, a
de 1823, que, se até hoje não se alcançou, pelo menos então No conjunto dos dados estudados por Mussa, esse tipo de
apontou para uma tentativa política de literatar e culturalizar o escolha não veio a favorecer estritamente nem o português eu
país. Se se comparam os letrados brasileiros do século XVI aos ropeu nem o português africanizado. Não há, portanto, uma "vitó
inícios do século XTX, que não ultrapassariam 0,5%, cresceram ria do português europeu", por sua superioridade cultural, como
no último século e já alcançavam 20 ou 30% em 1920 (Houaiss, muitos já defenderam, nem tampouco há uma "vitória" da influ
1985: 137). A presença, mesmo rarefeita, da escola e de um, ência africana, como também defenderam outros. Não desco
embora fraco e localizável, desenvolvimento cultural letrado fez nhece, nem descarta A. Mussa, como não poderia deixar de ser,
certamente entrar em cena um elemento novo, que é a norma que a língua do estrato dominante tem um efeito modelador,
lingüística explicitada e coercitiva, que provavelmente até então mas isso, contudo, não foi suficiente para dar feição "europei
só atingia, se é que atingia, sobrepondo-se às normas sociais zada" ao português brasileiro. •
consensuais dos diversos grupos, uma minoria inexpressiva. O A propósito do "efeito modelador", cito uma reflexão de meu
policiamento gramatical, conseqüentemente, passou a ser parte mestre Nelson Rossi, em artigo de 1980:
das preocupações da chamada elite brasileira, o que persiste,
radical, até hoje c entrou como fator sociolingüístico significa É sabido que o normal nas relações de dominação'é a coincidên
tivo na história do português brasileiro, sobretudo urbano. cia entre a ideologia do dominador e a do dominado, porque o
processo de dominação elabora, para legitimar-se, uma ideolo
É certamente no eiilrecruzar-se de variantes localizadas me-' gia sem a qual não teria como sustentar-se e não deixa, enquan
nos ou mais interferidas por marcas indígenas e/ou africanas, de to vige, alternativa ao dominado, que, até construir a sua pró
variantes mais gerais menos ou mais africanizadas ou menos ou pria, só dispõe da que lhe é imposta, como (por sinal falacioso)
mais aportuguesadas que se definem e emergem os traços ca instrumento da chamada "ascensão social" (Rossi, 1980: 37).
racterísticos do português brasileiro, língua nacional.
No contexto desse esboço histórico, parece-me correto
3. O português brasileiro: cm busca de seu conhecimento
Alberto Mussa. A partir da análise de 16 processos fonético-
fonológicos do português brasileiro, confrontados com os mesmos Em meados do século XX, Serafim da Silva Neto desfraldou
fatos nas línguas africanas que aqui chegaram e no português eu o que ficou conhecido, entre lingüistas e filólogos estudiosos do
ropeu, ele desenvolve o raciocínio de que há uma consistência no português, como "cruzada dialetológica" para o conhecimento
português brasileiro que, entre as possibilidades de escolha dispo efetivo da realidade lingüística brasileira.
níveis na diversidade provável de então, seleciona o menos marca
Passadas cinco décadas, não posso deixar de afirmar que
do, lingüisticamente, isto é, o estruturalmente' mais simples e o
essa cruzada lingüística vem ininterruptamente vencendo o "in
socialmente menos estigmatizado. Por exemplo:
fiel", ou seja, o desconhecimento da língua que usamos na sua
1. o português europeu do século XVI mantinha ainda a diversidade de normas sociais e de normas letradas ou cultas,
palatal arcaica [|S]; as línguas africanas chegadas ao Bra também na sua estrutura interna ou gramatical, dados esses deste
sil possuíam [i.s] e [§]; o português brasileiro escolhe [s], tempo histórico, fundamentais para a compreensão da consti
portanto a articulação mais simples; tuição do português brasileiro ao longo de sua história.
2. no português europeu, [s] não passa a 0 em sílaba final Serafim da Silva Neto se voltava, explicitamente, para o que
átona; as línguas africanas em causa não têm sílabas trava era a forma de abordar a realidade lingüística na lingüística de
-
24 • tiNSAIOS PARA UMA SOOO-IIISTOKIA IX) l\)K IVcHlfS HKASII.riRO
PoRll!(;ufsnKAMIi:iRO:RAlXXSETRAIETÔRIAS • 25

então. Planejou o Atlas lingüístico do Brasil, que não foi realiza Com base nos aspectos referidos anteriormente, pretende-se de
do mas continua no horizonte de alguns, embora poucos monstrar que não há coincidência de áreas, não há uma distin
dialetólogos. No entanto, apesar das dificuldades materiais e* ção homogênea dos fenômenos pelas áreas e ainda que, do ponto
também do percurso dos estudos lingüísticos posteriores no de vista sincrônico, não existem evidências inequívocas que ex
exterior e por via de conseqüência no Brasil, entre o plano de pliquem a ocorrência das variantes (Callou, 1992: 4).
Serafim da Silva Neto e hoje já se dispõe do APFB (1963) do
ALMG (1972), do ALP (1985) e do ALS (1987) e outros estão em A síntese dos seus dados está representada na Tabela 3:
elaboração. Alguma coisa já se pode dizer, com precisão, sobre Tabela 3
a diversidade diatópica do português brasileiro. Alguns, embora
raros, trabalhos de síntese já estão publicados. Lembro, por 1
pretônicas abertas
2
-r fricativa posterior
3
iirl +NP
4
padrão descendente
exemplo, o artigo de Suzana Cardoso, de 1986, em que, a partir
dos dados do APFB e do ALMG, busca confirmar e consegue o RE

SSA

60%
97%

99%
18% 5%

traçado da linha isoglóssica que delimita a fronteira sudeste, em RJ 5% 94%


2 1%

49%
31%
3%
direção ao centro, do predomínio das pretônicas médias abertas SP — 1% 71% 18%
no português brasileiro. Em outro trabalho (1992), a mesma POA 0% 4% 63% 0%
dialetóloga, com base nos dados do APFB, ALMG, ALS e ALP
delimita aárea dialetal das chamadas "africadas baianas" ([,otsu]' Desses dados, anote-se, primeiro, que para 1 não há análise
[bis,kotsu]), traço regional localizado, cujos limites, a partir dos ainda para Recife e São Paulo, mas é marcante a diferença que
ciados disponíveis, podem ser assim traçados: opõe Salvador ao Rio de Janeiro e sobretudo a Porto Alegre. Con
frontando os outros dados, percebe-se o que afirma a autora na
a africada palatal surda, registrada nos casos do decurso it no
padrão geral da língua, tem um percurso definido entre o norte citação acima. Pode-se, contudo, observar que, de um modo geral,
de Minas Gerais, passando pela Bahia e atingindo Sergipe (Car para 2, 3 e 4, Recife e Salvador se opõem a São Paulo e Porto
doso, 1992: 2). Alegre; por outro lado, o Rio em 2 se reúne a Recife e Salvador,
mas em 3 e 4 está mais de acordo com as capitais do sul.
Duas décadas depois de iniciados os estudos de campo da
dialetologia diatópica, lingüistas brasileiros iniciaram o projeto A exploração sistemática do que o Projeto NURC pode forne
cer em função de uma definição das ditas normas cultas do Brasil
'í™0 de estudo àas normas urbanas cultas brasileiras será de extrema significação para o conhecimento efetivo de vari
(NURC). Sobre a documentação gravada, muitos trabalhos têm
antes diatópicas dos estratos letrados do Brasil e será também
sido feitos ejá em curso, com publicações também, o projeto da certamente um instrumental indispensável para o embasamento
gramática do português falado, coordenado por Ataliba de do ensino gramatical na escola brasileira, que convive ou com a
Castilho (1990, 1991).
irrealidade da idealização gramatical tradicional, ou, sem rumo, os
Em comunicação à ABRALIN, Dinah Callou (1992) associou professores que não têm uma fonnação adequada — o que é o
aos dados de caráter sociolingüístico do NURC o método da mais geral por razões sociopolíticas conhecidas — não têm supor
geolingüística. A partir dos indicadores: pretônicas aberta; -r te para rever pela base o ensino do português brasileiro, língua
ímplosivo articulado como fricativa posterior; nome próprio pre materna da grande maioria dos estudantes.
cedido de artigo; padrão entonacional descendente nas constru O avanço dos estudos sociolingüísticos no Brasil nesses últi
ções de tópico, reuniu dados intercomparáveis e quantificados mos anos tem sido fundamental para que se comece a entrever e
que permitem indicar a realização dominante em cada uma das explicitar com mais exatidão um aspecto da heterogeneidade lin
cinco cidades documentadas (Recife, Salvador, Rio de Janeiro, güística do Brasil, a sua complexa variação diastrática, que é o
São Paulo e Porto Alegre). Diz a autora: resultado de múltiplas formas de interação social e conseqüente-
26 • Ensaios parauma sck.to-iiisiokiaix>tortuouês brasileiro Português brasileiro: raIzese trajetórias a 27

mente hngüistica_do Brasil. Áreas brasileiras são privilegiadas por ainda estáveis, mostrando padrões típicos de variação estável de
essa vertente de estudos da língua em uso: a mais .antiga é sem tal forma que para eles não há, portanto, processo de mudança
dúvida o Rio de Janeiro, graças à presença de um grande grupo de em curso (Naro e Scherre, 1991: 9).
sociolingüistas iniciados por Anthony Naro. Tais estudos têm se E concluem, para completar a complexidade do problema, pelo
multiplicado em outros centros universitários, sobressaindo-se Cam menos, considero, na rede social dos centros urbanos brasileiros:
pinas, as universidades do extremo-sul, mais recentemente Brasília,
que tem se concentrado em um aspecto fundamental da interação Para algumas pessoas, o mercado de trabalho pode ter efeito [na
lingüística no Brasil, ou seja, a relação periferia das grandes cida aquisição da regra de concordância], enquanto o sistema escolar
des com o seu centro. No seu conjunto, a sociolingüística brasilei pode influenciar outros. Finalmente, podemos reafirmar que os
fluxos e contrafluxos só parecem emergir em agrupamentos de
ra já forneceu muitíssimos elementos para o conhecimento do
indivíduos de forma não convencional (Naro e Scherre, 1991: 15).
português brasileiro, pelo menos em alguns pontos do Brasil e em
alguns aspectos de sua estrutura. Querem com isso dizer que a metodologia sociolingüística
convencional deve abrir-se a outras variáveis p!ara dar conta,
Tomo aqui como exemplo a questão da concordância ver-
adequadamente, dessa questão.
bo-nominal e nominal, traço que marca o português brasileiro
em relação ao europeu e que envolve problemas de variação Mais recentemente, a convergência da sociolingüística e da
sincrônica e de mudança diacrônica. É esse um ponto que tem teoria sintática chomskyana paramétrica tem aberto o português
ocupado estudiosos do português desde, pelo menoí», o fim do brasileiro para novas interpretações. Um conjunto de fatos sintá
século passado. ticos inter-relacionâveisjpode_ser_cqmpreendido como indicador
Artigo de Anthony Naro e Marta Scherre (1991), dentre os de uma mudança paramétrica do português brasileiro em relação
pesquisadores, os que icm mais trabalhado sobre o assunto, no ao europeu e não apenas de variação sintática. Sem dúvida, esse
quadro da metodologia laboviana, evidencia a complexidade do caminhei de analise da sintaxe, também aberto pela sociolingüística
problema em causa, que a simplicidade de sua formulação cor brasileira, sobretudo pelo grupo de Campinas, graças a F. Tarallo,
rente freqüentemente recobre: informa-se que há variantes po permite ver com mais clareza a sintaxe brasileira.
pulares, sobretudo rurais, mas também urbanas sem escolariza- O artigo de F. Tarallo de 1991 — "Tuming Different at the Turn
ção, que se apresentam sem concordância. Seriam exemplos de of the Century: 19th Century Brazilian Portuguese", retomado em
áreas preteritamenlc "crioulizadas" e que a escolarização interpretação gerativa por Charlotte Galves (1992) — apresenta e
reintroduziria a regra de concordância no português brasileiro, desenvolve a questão: estariam interligadas, no tempo — e de
"descrioulizando-o". monstra Tarallo com dados quantificados do século XVIII aos
A citação seguinte dos autores referidos, ao concluir o seu nossos dias — as mudanças seguintes:
trabalho, baseado em dados do MOBRAL-Rio e do Censo 1. 0 rearranjo do sistema pronominal, abrindo caminho para
Sociolingüístico do Rio de Janeiro, demonstra, em grupo social #' objetos nulos e mais freqüentemente sujeitos lexicais;
bem definido, o que os autores denominam de fluxo e contrafluxo 2. mudança nas estratégias de relativização como conseqüên
da comunidade de fala carioca: cia da mudança do sistema pronominal;
A comunidade de fala pode estar caminhando em diversas dire 3. reorganização dos padrões de ordem básica para a or
ções, no sentido de que alguns grupos de falantes podem estar dem SVO e o estreitamento da adjacência na marcação
num processo de aquisição da forma [o caso em foco é a aqui do caso acusativo;
sição da regra de concordância], enquanto outros estão, ao 4. diretamente ligados às anteriores, os padrões sentenciais
mesmo tempo, perdendo a forma. Alguns grupos podem estar em perguntas diretas e indiretas (1993: 70).
28 Ensaios iwka uma socio-i iistokia ixi mumcuís iikasm.i iko

Esse conjunto de "mudanças sintáticas maiores" se define


nos textos analisados, marcadamente na passagem do século
XIX para o século XX, o que aponta para sua maior antigüidade
na língua falada e, nas palavras de Tarallo, que aqui também
traduzi, para finalizar:
Os casos sintáticos apresentados devem ser considerados como
evidência quantitativa de que o português brasileiro estava se
tornando diferente na virada do século. Fica claro, a partir do
quadro traçado neste artigo, que um novo sistema gramatical,
que se chame de gramática brasileira ou dialeto do português
com sua própria configuração, desde que isso é, estritamente
falando, uma questão ideológica, emergiu no século XIX, esta
belecendo novo padrão bastante diferente e oposto ao português
europeu (Tarallo, 1991: 20).

Torna-se muito interessante conjugar os fatos de história


externa discutidos em 2.3 sobre a emergência de uma "língua
nacional" e os dados intralingüísticos analisados por Tarallo e
seus orientandos, no período compreendido entre a 2a metade
do século XVII e a atualidade. É, como sabemos, na conjugação
de fatores sócio-históricos e intralingüísticos que se pode re
construir o percurso histórico de uma língua. Essa vertente da
sociolingüística histórica conjugada à sintaxe paramétrica
diacrônica aponta, sem dúvida, para novos conhecimentos so
bre o português brasileiro.
Associando as observações e explicitações realizadas — e
por realizar — sobre o português brasileiro contemporâneo ao
estudo das informações que fontes históricas de vários tipos
possam informar sobre os vários aspectos da diversidade lin
güística brasileira do passado e do presente, poderemos coleti
vamente sonhar e construir no futuro (espero que próximo) uma
história, externa e interna, do português brasileiro.

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