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AULA 5

ESTUDOS LINGUÍSTICOS

Profª Cleuza Cecato


CONVERSA INICIAL

Até este ponto de nossa conversa, já caminhamos por vários momentos


em que a linguística experimentou o status de ciência e pôde contribuir para a
análise de fatos de língua e linguagem, bem como estreitou seus laços com as
necessidades apresentadas pelo ensino de línguas nas salas de aulas dos
diversos níveis de ensino.
Por isso, neste momento, é importante traçarmos uma possibilidade que é
um intermédio entre o que a linguística já produziu e como descrevemos os fatos
por ela analisados ao lado daquilo que ainda podemos esperar dos recortes
teóricos para analisar novos fatos de linguagem.
Por exemplo: como analisar as tecnologias de informação e comunicação,
que são parte dos estudos da linguagem no século XXI? Que teorias empregar
para descrever as relações que passamos a ter com os hipertextos,
principalmente com o advento da popularização da internet e das maneiras de ler
que ela nos proporciona?
Para ilustrar o começo dessa conversa, vamos utilizar como epígrafe um
raciocínio interessante e explicativo empregado por Darcy Ribeiro, ao referir-se
aos trabalhos de quem faz ciência.

Acho mesmo é que os cientistas trabalham com o óbvio. O negócio deles


– nosso negócio – é lidar com o óbvio. Aparentemente, Deus é muito
treteiro, faz as coisas de forma tão recôndita e disfarçada que se precisa
dessa categoria de gente – os cientistas – para ir tirando os véus,
desvendando, a fim de revelar a obviedade do óbvio. (Ribeiro, 1979)

Nas palavras desse intelectual, ao fazer ciência, estamos descortinando o


óbvio, trazendo a público aquilo que sempre existiu, mas estava escondido. Mais
ainda: nas palavras dele, fé e ciência estão em relação complementar, não
adversária.

CONTEXTUALIZANDO

É lugar comum dizer que a ciência só pode progredir quando há novos fatos
de seu objeto teórico a serem explicados. Isso ocorre também com a ciência que
se dedica ao estudo da língua: a linguística. Vamos considerar, por exemplo, duas
expressões, sejam elas: gêneros textuais e tecnologias de informação e
comunicação.
A concepção e o estudo dos gêneros textuais passaram a ser realizados
por linguistas ao longo da segunda metade do século XX. Ganharam, aqui no
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Brasil, maior expressividade a partir da década de 1990, o que torna esse recorte
teórico um jeito muito jovem de fazer ciência. Isso é evidente, principalmente,
quando consultamos materiais didáticos de língua portuguesa e também de língua
estrangeira de décadas passadas e verificamos que as estratégias empregadas
para aprendizagem estavam relacionadas até a limitação da sentença (frase), sem
considerar o texto como suporte de uma contextualização ou situação maior.
Em relação às tecnologias de informação e comunicação, trata-se, de fato,
de um elemento bastante novo, considerando que sua origem está relacionada ao
surgimento e à disseminação das produções de conteúdo via internet. Trata-se
não só de estabelecer novas combinações de linguagem, mas de reconhecer um
novo meio de circulação para o conteúdo produzido. Essa realidade torna-se tão
importante e produtiva que passa a ser cobrada em provas oficiais, como o Enem.
Outras perspectivas no âmbito da linguística podem e devem ser
estimuladas, a fim de que possamos, pelo uso funcional de ferramentas para
escrita e leitura, trabalhar com novos fatos de nosso objeto: a língua. Afinal de
contas, as relações que a linguagem permite expressar têm se desdobrado e
modificado com o passar do tempo e com o uso das novas tecnologias e suportes.

TEMA 1 – PORTUGUÊS FALADO NO BRASIL – UM NOVO OLHAR

A ideia de estudar língua falada não é nova, mas as maneiras de fazê-lo


vêm se alterando com o passar do tempo e com as diferentes percepções sobre
o que se pode entender em relação às realizações de fala – em nosso caso
específico, em se tratando de língua materna, no português do Brasil. É
importante, no entanto, deixar claro que os recursos empregados nesse tipo de
pesquisa cabem também, e muito bem, ao estudo de outras línguas, como o
inglês.
Para melhor compreender essa proposta de um “novo olhar”, vamos buscar
um referencial temporal no Renascimento europeu dos séculos XV e XVI. É nesse
período que se apresenta o que ficou conhecido como “questão da língua”: a
referência ao reconhecimento da existência de novas línguas que passaram a
substituir o latim gradativamente e depois foram levadas às novas colônias. Nesse
sentido, a distância geográfica e temporal entre as línguas dos colonizadores e
aquela que se falava nas colônias fez surgir uma nova “questão da língua”, como
a que podemos perceber entre português de Portugal e português Brasileiro. Ao
ser transplantada para nosso continente, a língua portuguesa passa a

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experimentar novas misturas com idiomas bastante distintos, o que possibilita a
manutenção da sintaxe, mas gera a transformação vocabular de nosso idioma
nacional.
Essa nova “questão da língua” é fruto do reconhecimento de um continuum
de variedades faladas no Brasil e permite o aparecimento de novas descrições
teórico-metodológicas para abordar os fatos de língua, considerando o que e
como se fala nas mais diversas situações, mas em português brasileiro. É essa
percepção e aceitação do continuum da língua falada que permite análises como:

 Tendência à perda de “r” final em verbos no infinitivo (chover/chovê).


 Redução de ditongos (deixa/dexa).
 Redução de “consoantes molhadas” (mulher/muié; filho/fio).

Esses pontos podem não parecer uma novidade quando se trata de estudar
português falado, considerando que já houve descrições assim acerca do
português em outros momentos, mas o ponto de abordagem pode ser deslocado.
Assim, quando se trata de pensar as primeiras descrições de línguas faladas, é
preciso considerar que não havia, por exemplo, a imprensa falada ou mesmo a
difusão tão evidente de vários contextos em que a língua falada se realizava.
Como estamos tratando de língua falada, também é muito importante
salientar não apenas esse novo olhar sobre o português falado, mas sobre línguas
como o inglês, que, a seu tempo, tornam-se os idiomas da globalização. Para
ilustrar melhor essa sistematização, vamos analisar uma questão da avaliação do
Enade 2017, reproduzida a seguir.

Figura 1 – Cartum extraído de uma questão do Enade 2017

Este cartum foi apresentado


como texto-base para a
questão.

Disponível em: <http://www.coxandforkum.com>. (Adaptado).

O comando da questão vinha em seguida:


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“Considerando esse cartum e seus conhecimentos sobre diversidade
linguística e cultural, elabore um texto sobre o fenômeno linguístico a que o
cartum se refere e cite três características desse fenômeno.” (Inep, 2017).

Quem lê o cartum, independentemente do conhecimento que tenha em


língua inglesa, terá sua atenção voltada a alguns pontos cruciais. Por exemplo:
perceberá que os dois personagens estão falando em inglês, mas, ao mesmo
tempo, a reação do segundo personagem (vamos ajudar com a tradução) causará
algum conflito, alguma contradição: “Eu não entendo, eu falo só inglês” ou “eu só
falo inglês”. Considerando que o primeiro personagem também está falando
inglês, era de se esperar que os dois se entendessem, não é mesmo?
Vamos à possível resposta esperada e, em seguida, procederemos à
comparação entre aspectos relacionados ao continuum do inglês falado e do
português falado.
Reproduzimos a seguir o padrão de resposta publicado pelo Inep.

Em seu texto, o estudante deve explicar, em português ou em inglês,


que o fenômeno evidenciado no cartum é a variação linguística e que o
autor mostra duas variedades linguísticas diferentes. Espera-se que o
estudante identifique que os indivíduos apresentados no cartum são
falantes (nativos ou não nativos) de variedades da mesma língua e que
relacione o conflito retratado à variação social e cultural, reconhecendo,
assim, a relação entre língua e cultura. Espera-se, também, que o
estudante use a situação apresentada no cartum para demonstrar que
conhece o conceito de variação e diversidade linguística e sua relação
com o inglês global. O estudante pode indicar três dentre as seguintes
características da variação linguística: geográfica (local); variação de
idade; variação de classe social; diferenças de nível de escolarização,
de gênero, de situação de uso (registro). (Inep, 2017)

Vamos ao nosso comparativo motivado por questões como: em português


isso também ocorre, ou seja, o fenômeno retratado no cartum (duas pessoas
falando em português sem que uma entenda a outra)? Sim, e mais do que
imaginamos. Por mais que a primeira resposta que possa vir à cabeça seja que
essa diferença existe entre o português brasileiro e o de Portugal, é preciso
considerar que mesmo quando estamos falando entre nós, falantes nativos de
português do Brasil, é bem possível que, dependendo da região, da faixa etária,
ou ainda do grupo social, não consigamos nos entender.
Logo, a que constatações podemos chegar quando se trata de desenvolver
um novo olhar sobre os nossos falares? A primeira que desejamos apontar está
relacionada ao movimento constante em que a língua está envolvida. Outro
aspecto importante é que não há fenômenos linguísticos tão diversos ou únicos
que não possam encontrar alguma analogia em outros idiomas.

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TEMA 2 – A TERCEIRA ONDA DA SOCIOLINGUÍSTICA

O olhar sobre as transformações pelas quais os idiomas passam precisa


estar sempre muito atento para não se contaminar pelos fenômenos que
circundam a língua, mas sim se valer deles como enriquecimento para a pesquisa
científica. Por que afirmar isso? Vamos a um exemplo de análise.
Quando tratamos de uma renovação ou de uma nova onda da
sociolinguística, costumamos creditar essas ações de pesquisa à professora e
pesquisadora norte-americana Penelope Eckert, que trabalhou com grupos de
estudantes colegiais em várias etapas e associou à sua pesquisa características
etnográficas bastante próprias da antropologia, como a descrição das relações
entre linguagem empregada e meio social.
Talvez a frase a seguir possa sintetizar a tendência apontada pelos
resultados obtidos por Eckert: “O estilo se define pelo que o falante faz com a
língua levando em conta o universo social que o permeia”. Essa frase pode
resumir como foi possível, para a pesquisadora, dividir os grupos de estudantes
em jocks e burnouts.
Vamos ler um trecho da explanação feita por Eckert para perceber a
relação que ela estabelece entre os grupos, o meio e a linguagem.

Em meu trabalho mais recente sobre variação e grupos sociais de


adolescentes de um colégio no subúrbio de Detroit, concentrei-me em
dois grupos opostos, os jocks, uma cultura de classe média baseada em
associações institucionais, e os burnouts, uma cultura local de classe
operária. Com práticas e ideologias fortemente contrárias, os jocks e os
burnouts revelam suas diferenças através de um elaborado complexo
estilístico envolvendo a vestimenta, a maquiagem, o estilo de cabelo, as
bijuterias dentre outros adornos, o uso e exibição de seus pertences, a
demarcação do território, a conduta, a hexis corporal, e assim por diante
– e, claro, a linguagem. A diferenciação sistemática de variáveis
vocálicas em todos os níveis resulta em modos de falar assaz distintos
que incorporam tanto o gênero quanto categorias baseadas em classe
social. Estas variáveis, por sua vez, combinam qualidades vocálicas
muito diferentes, padrões de entonação, léxico, dentre outras, de modo
que é esta combinação que constitui uma evidente distinção entre os
estilos jock e burnout. Os burnouts, uma cultura de classe operária com
tendências urbanas, apropriam-se de símbolos urbanos de todos os
tipos em seu estilo de vestir, e orientam seus companheiros da mesma
idade no uso de variáveis linguísticas urbanas. Os jocks, com uma
cultura escolar orientada institucionalmente, ficam atrás no uso de
variantes urbanas, mas encabeçam o uso do que chamo variáveis
suburbanas, as quais possuem o efeito reverso das variáveis urbanas.
Enquanto os jocks tendem a ser razoavelmente homogêneos em seu
uso linguístico, os burnouts, em particular as meninas burnout,
apresentam um espectro considerável de uso de variáveis. (Eckert,
2001, p. 124)

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Além da descrição feita por Eckert, vamos relembrar alguns momentos e
pesquisadores marcantes nos estudos da linguagem, no âmbito da
sociolinguística, a fim de fazer as associações que concebermos como mais
adequadas também em nosso trabalho de sala de aula. Para isso, vamos tomar
como referência uma questão prática apresentada no Enade 2017, reproduzida e
referenciada a seguir.

Leitura complementar

A partir dos textos apresentados, avalie as afirmações a seguir.

I. A substituição atual e gradativa do pronome de primeira pessoa do plural


“nós” pela expressão “a gente” exemplifica o que Jakobson denomina fato
sincrônico e dinâmico.
II. A perspectiva saussureana filia-se a um trabalho linguístico de ordem
diacrônica, ou seja, descreve a língua por meio da observação de
aspectos históricos de variação e mudança.

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III. Um exemplo de fato diacrônico e estático é a existência permanente de
três conjugações no português.
É correto o que se afirma em:
a. I.
b. II.
c. I e II.
d. II e III.
e. I, II e III.
Fonte: Inep, 2017.

Vamos à análise do que é dado como gabarito e à leitura dos indícios do


texto que confirmam essa resposta:

 A afirmação I está correta porque a sincronia está relacionada ao recorte


momentâneo da língua, ou seja, a aspectos que estão em curso neste
momento, sem considerar a passagem do tempo que age sobre eles. Isso
está nitidamente atrelado ao conceito de dinamismo.
 A afirmação II está correta considerando o texto I: embora Saussure seja
quem dá início a uma tradição sincrônica em análise linguística, suas bases
de trabalho estão vinculadas à tradição anterior, que estudava o objeto com
base na diacronia.
 A afirmação III está incorreta porque a existência de três conjugações
verbais em português não está relacionada a processos de variação e
mudança, mas à constituição da língua, do idioma. Além disso, o que está
em questão quando se trata de verbos, em relação à sincronia ou à
diacronia, é a realização das formas de conjugação, e não da existência de
três modelos de conjugação.

O que isso tem a ver, por exemplo, com a pesquisa de Eckert? A


substituição gradativa de “nós” por “a gente” é um fenômeno que se pode atrelar
à ampliação de fronteiras para determinados modos de falar, que não só superam
o ambiente ou o grupo social a que estão relacionados originalmente, como
passam da informalidade para a formalidade do discurso.
Além disso, por que chamar de “onda” esse processo? Porque a descrição
é feita considerando as mudanças em forma de ondas, que saem do centro para
as bordas, por exemplo: dos centros urbanos para os locais mais afastados ou de
um centro de comunicação para os arredores.

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TEMA 3 – O LUGAR DO ENUNCIADOR

Para nos situarmos sobre em que lugar o enunciador de uma mensagem


se coloca, vamos propor um exercício. Primeiro, dê atenção a o que você está
pensando de quem escreveu esse texto para se comunicar com você. Em
seguida, pense em como você, com suas palavras, reproduziria as mensagens
aqui veiculadas. Por último, pense em como as pessoas que leem o texto
produzido por você reagiriam.
Fazendo um exercício de reflexão mais ou menos assim, como descrito no
parágrafo anterior, temos uma experiência de como funciona o processo de
obtenção ou formulação do espaço de um enunciador, ou seja, de como podemos
empregar a nossa “voz” – e aqui colocamos aspas porque não se trata apenas de
texto falado – no caso da experiência a que estamos nos referindo, é justamente
o texto escrito que carrega essa voz.
É muito comum que os manuais que tratam do lugar social ocupado por
quem emite uma mensagem utilizem algumas descrições clássicas para a
situação vivida. São elas:

 A imagem que o sujeito que emite uma mensagem faz do lugar que ocupa
(Tem direito de emitir essa mensagem? Será lido ou ouvido com atenção e
respeito? Que qualidades existentes em seu discurso são capazes de
transmitir o que deseja?).
 A imagem que o sujeito que emite uma mensagem tem de quem vai lê-lo
ou ouvi-lo (Quem é essa pessoa? O que ela busca em seu texto – corrigir
ou aprender? Está em uma função inferior ou superior socialmente?).
 A imagem que o sujeito que emite uma mensagem tem do próprio discurso
(Qual é a qualidade de suas palavras? Elas têm a força e a expressividade
esperadas para a ocasião? Existe plasticidade?).

Em contrapartida, o enunciador também faz outro exercício quando se trata


de avaliar o alcance de seu discurso:
Em um processo de alteridade ou empatia, o emissor da mensagem se
coloca no lugar do leitor e tenta imaginar o que esse leitor pensará do sujeito que
escreveu, do discurso elaborado e de si mesmo em relação à condição, por
exemplo, de avaliador dessa produção. Esse processo é um exercício intenso e
gradativo, já que é necessário que os envolvidos (locutor e interlocutor)

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compartilhem minimamente propósitos discursivos e conhecimento de mundo
para que o processo comunicativo se realize adequadamente.

TEMA 4 – HIPERTEXTO E OS NOVOS ELEMENTOS DE ANÁLISE

Assim como as TICs, a noção e o uso de hipertexto em comunicação escrita


são muito recentes. Tratar de hipertexto, cibercultura e literatura na era da
tecnologia digital ainda é fazer afirmações sobre um campo muito arriscado,
considerando que, de um lado, essas definições e seus usos ainda são bastante
instáveis; de outro, muito disseminadas e não podem passar ao largo dos recortes
teóricos da linguística contemporânea. Nesse sentido, é preciso ter ciência de que
as teorias relacionadas a esses elementos podem promover análises sobre o
distanciamento e a complementariedade entre a literatura de papel e a literatura
digital, ou os modos de ler no papel e os modos de leitura digital.
Com o advento do hipertexto e da cibercultura, passou-se a trabalhar muito
com a noção de ciberespaço como um ambiente virtual em que tudo acontece, a
exemplo de como as práticas socioculturais também se dão no mundo real. No
entanto, nesse espaço, há o que podemos chamar de novos modos de o indivíduo
se relacionar com a linguagem. De acordo com Chartier, “Do rolo antigo ao códex
medieval, do livro impresso ao texto eletrônico, várias rupturas maiores dividem a
longa história das maneiras de ler. Elas colocam em jogo a relação entre o corpo
e o livro, os possíveis usos da escrita e as categorias intelectuais que asseguram
a compreensão” (1999, p.77).
Com essas afirmações simples, Chartier dá vida a uma análise otimista
sobre os processos de comunicação e os suportes possíveis para a linguagem.
Assim, em lugar de predizer o fim do livro ou a derrocada da comunicação por
causa dos suportes eletrônicos, esse pensador prefere ver os novos suportes
como mediadores das transformações de maneiras de ler.
Para ilustrar bem os novos modos de leitura que a utilização de hipertextos
permite, as figuras a seguir, retiradas de um artigo acadêmico que trata
essencialmente desse tema, podem ser bastante produtivas.

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Figuras 2 e 3 – Linearidade do texto

Fonte: Fachinetto, 2005.

Daí que a produção de novos caminhos para métodos de ler, denominada


hipertexto, nada mais é do que um processo de escrita/leitura não linear e não
hierarquizada que permite o acesso ilimitado a outros textos de forma instantânea.
Uma pergunta bastante frequente em relação a confecção e leitura de
hipertextos é se eles podem ser impressos. Com base nisso, cabe uma reflexão:
um exemplo de como o hipertexto pode ser produzido e disseminado em meio
impresso é o livro ou material didático. Os boxes laterais, coloridos e com outras
fontes, que circundam as informações principais de cada página não são
novidade, mas passaram, certamente, a ser mais explorados.
Além disso, a quantidade e a diversidade de pesquisas acadêmicas
voltadas à análise de hipertextos são um bom índice para medirmos quanto esse
elemento está em evidência em nossas práticas cotidianas. É importante
considerar que “ler na tela” é uma maneira de utilizar novos suportes com o

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amparo de “velhas tecnologias”, o que possibilita ao leitor reconfigurar seus
conhecimentos sobre a noção de texto e realizar novos gestos de leitura.
A questão a seguir, reproduzida da prova de linguagens do Enem 2009,
ajuda a entender melhor a leitura que podemos fazer em relação aos hipertextos
como uma das realizações de linguagem na contemporaneidade.

Leitura complementar
Diferentemente do texto escrito, que em geral compele os leitores a lerem numa onda
linear – da esquerda para a direita e de cima para baixo, na página impressa – hipertextos
encorajam os leitores a moverem- se de um bloco de texto a outro, rapidamente e não
sequencialmente. Considerando que o hipertexto oferece uma multiplicidade de caminhos a
seguir, podendo ainda o leitor incorporar seus caminhos e suas decisões como novos caminhos,
inserindo informações novas, o leitor- navegador passa a ter um papel mais ativo e uma
oportunidade diferente da de um leitor de texto impresso. Dificilmente dois leitores de hipertextos
farão os mesmos caminhos e tomarão as mesmas decisões.
(MARCUSCHI, L. A. Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio: Lucerna, 2007.)

No que diz respeito à relação entre o hipertexto e o conhecimento


por ele produzido, o texto apresentado deixa claro que o hipertexto muda
a noção tradicional de autoria, porque

a. é o leitor que constrói a versão final do texto.


b. o autor detém o controle absoluto do que escreve.
c. aclara os limites entre o leitor e o autor.
d. propicia um evento textual-interativo em que apenas o autor é ativo.
e. só o autor conhece o que eletronicamente se dispõe para o leitor.

Por que as alternativas incorretas nos ensinam muito sobre o que é o


hipertexto? Vejamos:

b. O autor já não detém o controle absoluto sobre o resultado do texto, já que


a construção de sentido é feita de maneira interativa com o leitor.
c. Os limites entre leitor e autor passam a ser reinterpretados e não são mais
fronteiras tão visíveis e determinadas.
d. O lugar do autor como produtor do texto já não é mais tão demarcado, pois
o processo de autoria é compartilhado por quem escreve e quem lê.
e. Essa concepção vai contra a definição de hipertexto. O autor que posta um
texto na web não tem mais domínio completo sobre aquilo que o leitor
poderá ligar e relacionar a partir do conteúdo inicial.

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TEMA 5 – O QUE VAMOS FAZER COM A LINGUÍSTICA AINDA? UM POUCO
DE NEUROLINGUÍSTICA

Não apenas diante das reflexões e informações apresentadas aqui, mas


também considerando tudo o que você já estudou a respeito de línguas e
linguagem, é possível depreender que a abordagem sistemática de fatos de língua
não se esgotou. Isso quer dizer que o campo de exploração da linguística é muito
produtivo e significativo para o desenvolvimento da ciência e para o entendimento
de fatos relacionados à comunicação humana.
Uma das grandes ferramentas ou dos grandes recortes da linguística a
respeito do qual ainda temos muito o que explorar é a neurolinguística. Na
realidade, há muitos modelos para dar conta da descrição teórica para a forma
como os indivíduos constroem a experiência de conhecimento de mundo, seja ela
compartilhada, modificada, organizada, regulada, representada, justificada ou
reconhecida. Alguns dos elementos mais citados para dar conta dessa
experiência são contexto, prática, sistemas de referência, enquadre, esquema,
conhecimento prévio, situação social, script e moldura comunicativa.
Para começar, é importante perceber que a formação da palavra
neurolinguística é um hibridismo transparente: é a junção entre neurociência (que
estuda o cérebro, a mente e suas relações com o comportamento humano) e
linguística, que, como já sabemos, tem a linguagem como objeto de interesse. Por
esse motivo, costumamos associar mais facilmente os estudos de distúrbios da
linguagem à neurolinguística, pois ela descreve problemas como a afasia e se
interessa por eles. Um quadro de afasia geralmente provém de lesões cerebrais
provocadas por acidentes vasculares cerebrais (AVC), popularmente chamados
de derrames cerebrais. De maneira abrupta, a pessoa pode passar a não
reconhecer as outras ao seu redor e a não compreender ou formular frases.
Também é importante salientar que nem todos os problemas de articulação da
linguagem provêm de afasia: para ser considerada afásica, a pessoa precisa ter
um distúrbio no sistema nervoso central, mais especificamente no que se
denomina “centro cortical da palavra falada”.
Os quadros de afasia são bastante diversos: há casos em que as pessoas
não conseguem compreender frases, outros em que as pessoas não conseguem
captar ou produzir determinada classe gramatical, outros são capazes apenas de
emitir mensagens telegráficas, já que perderam a capacidade de estabelecer
conexões sintáticas e outros traços gramaticais. Além disso, é muito comum
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termos a curiosidade de saber se a afasia pode, também, afetar a escrita de quem
a desenvolve. A resposta é positiva. Por isso, nem sempre a estratégia dos
familiares de solicitar que os pacientes que sofreram AVC escrevam funciona. Há
vários relatos, nesse sentido, que indicam a aplicação de outras estratégias para
conseguir comunicação, já que o comando cerebral para a produção de escrita foi
perdido.
Podemos nos perguntar, também, se a neurolinguística serve apenas para
identificar ou trabalhar aspectos relacionados a patologias. Somente pelos nomes
de elementos empregados para nutrir nossa relação com o conhecimento, já
podemos perceber que não: esse recorte da linguística nos ajuda a descrever, de
várias maneiras, nossa relação com o conhecimento e como ela se dá. Por isso é
tão comum encontrarmos hoje cursos que tentam associar elementos da
neurolinguística a aspectos de nossa leitura e concentração para o aprendizado.
Atualmente, os contextos de aplicação e pesquisa da neurolinguística têm
obedecido à segmentação estabelecida por Morato (2012): i. do processamento
normal e patológico da linguagem, oral e escrita; ii. dos mecanismos cognitivos
que constituem as habilidades linguísticas; iii. da repercussão dos estados
patológicos no funcionamento da linguagem; iv. da semiologia das afasias, da
doença de alzheimer e de outros contextos neuropsicolinguísticos; v. das
condições neurolinguísticas da surdez e do bilinguismo; vi. do envelhecimento
normal e patológico com base em perspectivas (neuro)linguísticas e
sociocognitivas; vii. da relação linguagem-cognição em contextos não
necessariamente patológicos; viii. de questões metodológicas que envolvem a
constituição do corpus, o sistema de notação e o tratamento dos dados; ix. de
aspectos éticos e jurídicos relacionados ao contexto da pesquisa neurolinguística.
Essas segmentações de recortes teóricos foram possíveis graças ao início da
abordagem cérebro-linguagem, do começo do século XX.
Vamos tomar apenas a noção de frame para demonstrar como é possível
buscar muitos elementos para descrever o mesmo fato sob a tutela da
neurolinguística. Frame pode ser definido em português como os esquemas de
conhecimento ou padrões prototípicos e estereotípicos, ou ainda hipóteses feitas
pelos indivíduos a respeito do mundo ou dos estados de coisa no mundo. Trata-
se de uma definição bastante ampla, sob a qual se pode nortear uma série de
experiências relacionadas ao conhecimento.
Nesse ponto, podemos nos perguntar como e por que esse recorte teórico
poderia nos ajudar em nossa prática cotidiana em sala de aula. Vamos apenas a
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alguns exemplos: já foram percebidas e descritas, ao longo do tempo, as
diferentes maneiras de aprender que os indivíduos têm. Também já estão
amplamente descritas as maneiras pelas quais um indivíduo pode não conseguir
encontrar e manter foco de concentração. A neurolinguística, quando aplicada de
maneira séria e segura, pode ajudar a desenvolver técnicas que vão desde o
desenvolvimento de maiores habilidades em leitura e apreensão de sentido até a
desinibição para falar em público, minimizando ou suprimindo cacoetes ou
bordões que esconderiam a timidez do sujeito.
Assim, um dos teóricos mais referenciados (Goffman), para dar conta da
noção de frame, estabelece em sua obra Frame analysis (1974) que os frames
são enquadres, ou seja, uma metáfora para se compreender melhor o que no
campo da sociologia é também denominado “contexto”, “conhecimento prévio”,
“situação social”. Enquadres, assim, são compreendidos como estruturas sociais
relacionadas intimamente com a linguagem, reconhecidas e modificadas pelos
indivíduos em contextos e práticas discursivas situadas previamente. Isso implica,
por exemplo, a percepção de que aquilo que chamamos de intertextualidade em
linguagem só é possível se os indivíduos envolvidos em um processo de leitura
compartilharem os mesmos frames a respeito do tema. Por exemplo, quando se
faz a análise de uma charge que é calcada em uma pintura clássica: se um dos
leitores não conhecer a pintura, a intertextualidade pode não ser identificada.
Retomando as questões mente-linguagem, no âmbito da neurolinguística,
o estudo das afasias foi campo de pesquisa tratado pela primeira vez por Roman
Jakobson, que, interessado em construir uma teoria geral da linguagem, voltada
à aquisição, ao funcionamento, à estrutura, às alterações etc, utilizaria as
diferentes manifestações de afasia para dar maior solidez empírica à sua teoria.
Em linhas gerais, quais foram as contribuições a partir das constatações de
Jakobson? Ele ampliou algumas ideias já reveladas por Saussure, como as
dicotomias, uma vez que Jakobson trabalhou especialmente com duas formas de
organização da linguagem: sintagmático/metonímico; e duas de escolha de
unidades lexicais: paradigmático/metafórico.
Para exemplificar ao menos uma situação referida e estudada por
Jakobson, vamos considerar a dicotomia sintagma/paradigma, ou seja, as
escolhas lexicais empregadas para preencher uma estrutura frasal predefinida e
reconhecida como gramatical em uma língua. O exemplo mais comum de uma
situação de afasia que confirma essa dicotomia pode ser relatado como o uso e

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reconhecimento de palavras-chave, mas a impossibilidade de escolher e
reconhecer conjunções, preposições ou outros elementos de ligação.
Poderíamos sintetizar isso com algo como enquanto houver hipóteses,
haverá ciência; ou enquanto o objeto de estudo da ciência estiver em movimento,
haverá muitas coisas a se dizer sobre ele e para descrevê-lo. Uma das indicações
é prestarmos bastante atenção no que tem se desenvolvido relacionado à
linguagem da inteligência artificial, além de considerar que a língua continua
sendo nosso objeto de pesquisa primordial e nosso instrumento de comunicação.

FINALIZANDO

Neste encontro, nossa conversa tratou de temas relacionados aos novos


desdobramentos que os estudos linguísticos permitem.
Depois desse trabalho, esperamos que você possa refletir sobre a
sistematização de comparativos entre novos olhares sobre a língua portuguesa e
outras línguas, sobre o que já conseguimos afirmar a respeito da nova onda da
sociolinguística, sobre as reflexões feitas pelo enunciador de um texto e a
integração das TICs – tecnologias de informação e comunicação – ao estudo das
linguagens, além das questões relacionadas à neurolinguística.

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REFERÊNCIAS

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Unesp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.

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