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Crueldades
Seja como for, os Shade não são muito mais reais que Zembla. Afinal de
contas, Hazel é um personagem de ficção. Por que a crueldade de Pete Dean
deveria ser mais dolorida do que a crueldade de Charles, o Bem-Amado, para
com a pálida rainha Disa? Pois, assim como Disa e, de resto, o próprio
Charles Xavier, não eram mais que criações ficcionais do ensandecido
professor Kinbote, do mesmo modo Hazel não é mais que a criação de um
professor exilado de literatura russa e inglesa, sujeito esquisito, dado a truques
e fantasias, de nome Nabokov, um professor cuja semelhança com Kinbote é
patente no final do livro. Saímos ofuscados dali, fugindo ao som do pano de
fundo sendo rasgado às nossas costas, tentando nos livrar da coisa toda como
de um amontoado de truques impingidos a nós por um egomaníaco exilado.
Foi o que a maioria dos resenhadores de "Fogo Pálido" tentou fazer. Mas tal
estratégia não funciona. Pois agora o mundo real recebeu um pequeno golpe,
bem ali onde nos esquecemos de Hazel. Mas esse esquecimento não foi uma
fantasia. Foi tão real quanto nós. O golpe foi desferido pela imaginação de
Nabokov, mas só foi possível com nossa participação entusiástica. Quando
lemos pela primeira vez "Lolita" ou "Fogo Pálido" ou "Pnin", podemos rir do
começo ao fim de cada uma dessas histórias prodigiosas. Mas saímos das
páginas finais de cada um desses romances coçando a cabeça, perguntando-
nos se estamos bem, se gostamos de nós mesmos. Nesses três romances,
Nabokov dispõe as coisas de tal modo que façamos uma aliança com um
determinado personagem (Humbert, Kinbote ou qualquer um dos colegas
desdenhosos de Pnin) contra alguém que esse mesmo personagem trata
cruelmente. Ele também cuida que pensemos estar ombro a ombro com o
próprio Nabokov, com esse escritor tão brilhante, que nos está proporcionando
tão bons momentos, cujo engenho nos é fonte de tanto deleite estético. Mas,
em todos esses casos, percebemos no final do livro que seria melhor não nutrir
sentimentos tão calorosos por esse personagem com quem estivemos
perambulando e cuja companhia parecia tão agradável. E isso nos faz pensar
se nossa relação com Nabokov é tão transparente quanto pensávamos.
Começamos a ter a terrível sensação de que talvez Nabokov não goste tanto
assim de nós assim como não gostava dos personagens a quem nos
apresentou. Mas valeria ter-nos identificado a outra gente -Shade, Lolita,
Pnin- antes que fosse tarde demais.
Palhaço anônimo
Nosso arrependimento só faz crescer quando ouvimos Nabokov dizer a um
entrevistador: "Faz pouco tempo, um palhaço anônimo, escrevendo sobre
"Fogo Pálido" numa revista de Nova York, tomou por minhas as declarações
do comentador que inventei no livro...". Talvez não nos tenhamos saído
melhor que esse palhaço anônimo? Será isso o que Nabokov queria que
sentíssemos? Sendo assim, ele é de fato tão insidiosamente cruel, tão egoísta e
indiferente quanto seus personagens mais sedutores, não? Não. Nabokov é um
autor tão gentil e generoso quanto foi na vida real. Muito embora não tenha a
menor vontade de se reunir a nós para comes e bebes depois de tirar sua
maquiagem de Próspero, ele tampouco está interessado em nos passar uma
rasteira. Ele sabe muito bem que, daqui a alguns dias, estaremos mais felizes e
seremos mais sábios por termos sofrido um pequeno golpe. Massageando esse
golpe com mais tranqüilidade, perceberemos que, como ele e como todos
mais, nós também temos nosso lado Shade e nosso lado Kinbote. O lado que
sente compaixão por Hazel e Lolita e o lado que as esquece, o lado que sente
pena das dificuldades de Pnin com a língua inglesa e o lado que as acha
divertidas às pampas. Quem tiver esses dois lados em si mesmo pode muito
bem se tornar mais gentil e generoso ao reconhecer sua própria duplicidade.
Quanto mais vezes lemos "Fogo Pálido" e quanto mais vezes o lemos no
contexto dos demais livros de Nabokov, mais claramente percebemos que
cada um desses lados só emerge à luz do outro: Shade não seria plenamente
visível sem Kinbote, nem Kinbote sem Shade. No final da entrevista citada
acima, o jornalista comenta que "às vezes me parece que nos seus romances,
em "Riso no Escuro", por exemplo , há um traço de perversidade que chega às
raias da crueldade". Ele respondeu: "Não sei. Talvez. É claro que alguns de
meus personagens são bem bestiais, mas não me importo muito, estão fora de
meu íntimo, feito monstros arrependidos na fachada de uma catedral -
demônios colocados ali apenas para mostrar que tomaram uma sova. Na
verdade, eu sou um senhor afável que abomina a crueldade".
Beleza e compaixão
Nabokov tornou-se mais afável à medida que envelhecia, escrevia mais
romances e dava sovas em mais e mais demônios. Escreveu "Fogo Pálido"
quando tinha a idade de Shade, 61, e conferiu a Shade uma espécie de
generosidade que não soubera dar, 25 anos antes, a Fiódor Godunov-
Tcherdintsev (em "O Dom"). Quando Kinbote pede uma senha a Shade, este
lhe diz "compaixão". Nesse caso, podemos ter certeza de que Shade fala por
seu criador, que, nas suas "Conferências de Literatura", escrevera: "Beleza e
compaixão é o mais perto que chegaremos de uma definição da arte". É
tentador afirmar que Kinbote dava-se bem com a beleza, e Shade, com a
compaixão, e ainda que vincular a obra dos dois homens produziu o que
McCarthy declarou ser "uma das grandes obras de arte do século 20". Mas
isso seria simplista demais. Shade saía-se muito bem com a beleza: há versos
maravilhosos espalhados em "Fogo Pálido". Kinbote comiserava-se
ferozmente por Disa, ainda que apenas em seus sonhos, e estava certo ao dizer
que "Hazel Shade parecia-se comigo sob certos aspectos" (e não apenas pela
tendência suicida).
As relações entre Kinbote e Shade e entre suas contrapartidas dentro de nós
não são de mera oposição. São dialéticas, tão dialéticas quanto as relações
entre as nossas primeira, segunda e terceira leituras de "Fogo Pálido".
Nabokov não estava interessado em imitar a realidade; queria transformá-la,
transformando a si mesmo e a seus leitores em pessoas capazes de sentir e
fazer coisas que não saberiam sentir e fazer antes. Também não estava
interessado em nos trapacear. Os seus "truques" eram os transbordamentos
ebulientes de uma mente bem mais ágil e bem mais armada do que a nossa.
Nabokov não tinha interesse ou necessidade de admiração. Queria aprimorar a
si e a seus leitores, aumentando a intensidade das trocas dialéticas entre os
dois lados da sua e da nossa natureza: o lado que se exalta diante da beleza e
das fantasias que a beleza gera e o lado que se dilacera diante do sofrimento
dos indefesos.
Aqueles que julgam a fantasia irrelevante para o senso moral não poderão
aceitar a definição nabokoviana de arte. Talvez cheguem a duvidar de que
Nabokov acreditasse em sua própria definição, pois dificilmente conseguirão
vê-lo como mais do que um egoísta enamorado de seu próprio brilho
estilístico. Pensarão ainda que, a fim de inspirar compaixão, não precisamos
nem queremos estilo, engenho e perfeição formal: o estético só pode nos
distanciar do moral. Dirão ainda que precisamos ser tão realistas quanto for
possível; não queremos fazer pressão contra a realidade, mas sim respeitá-la,
na forma que a moralidade prescreve que respeitemos os sentimentos alheios -
devemos observar as pessoas tais como elas são, e não imaginá-las.
Mas Nabokov recorda-nos de que só podemos respeitar o que somos capazes
de notar, e muitas vezes é difícil notar o sofrimento alheio. E ele ainda aponta
a razão dessa dificuldade: passamos boa parte do tempo inventando pessoas,
em vez de notá-las, metamorfoseando pessoas reais em personagens de
histórias que contamos a nós mesmos sobre nós mesmos, sobre nossa beleza e
singularidade. Quanto mais dotes poéticos tivermos, melhores fabuladores
seremos e menor será nossa capacidade de notar o sofrimento dos outros.
No caso extremo de pessoas fabulosamente dotadas e capazes de jamais
deixar que o sofrimento alheio se intrometa nas histórias que contam, tais
histórias podem se tornar verdadeiramente prodigiosas. Serão histórias à
feição da que Kinbote conta sobre Charles Xavier ou da que Humbert conta
sobre aqueles raros espíritos capazes de detectar uma ninfeta -"demônio
imortal em forma de criança"- à primeira vista; histórias que tornam
impossível ao leitor enredado recordar que John Shade tem outros assuntos
para seus poemas além de Zembla ou que Lolita é uma criança.
Nabokov era o espírito mais singular que se possa imaginar: um poeta de dons
fabulosos, cuja capacidade de notar o sofrimento alheio crescia à medida que
fazia uso de seus dons. Ele percebeu que a melhor forma de fazer seus leitores
notarem o sofrimento alheio consistia em exibi-lo por um momento, depois
forçá-los a esquecer tudo por um bom tempo, para enfim trazê-lo novamente à
tona justo quando o leitor estava perfeitamente enredado pela pura beleza da
fantasia, pela pura alegria da prosa. Nabokov sabia muito bem que a arte pode
ser uma distração dos imperativos da moralidade, mas também sabia que ela
pode ser, ao menos para alguns de nós, o melhor meio de aprimoramento
moral.
Pois, mesmo que a beleza possa afastar a compaixão, ela também pode
suscitar uma compaixão de intensidade previamente inimaginável: quanto
mais bela a história que nos fez esquecer, maior será a compaixão que por fim
recordamos. A imagem de um garoto que tenta salvar o irmão das pedras que
os demais colegas de escola lhe atiram será sempre uma imagem familiar em
muitos países, mas menos freqüente naqueles onde se lêem romances.
Richard Rorty é filósofo e professor na Universidade Stanford (EUA). É autor de "Para Realizar a
América" (DP&A) e "Ensaios sobre Heidegger e Outros" (Relume-Dumará). Uma versão ampliada deste
artigo foi publicada como introdução à edição da Everyman's Library (EUA) de "Fogo Pálido" .
Tradução de Samuel Titan Jr.
Fogo Pálido
304 págs., R$ 42,50 de Vladimir Nabokov. Trad. Jorio Dauster e S. Duarte. Companhia das Letras (r.
Bandeira Paulista, 702, cj. 32, CEP 04532-002, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).