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Marcos Carvalho Lopes
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Pedro Acosta-Leyva
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Stuart Hall e os debates marxistas: o legado de um teórico cultural
Filho de uma família negra de classe média, Stuart McPhail Hall, nasceu em Kingston
(Jamaica) em 19322. Quando foi estudar literatura em Oxford em 1951, levou consigo a experi-
ência da dependência colonial, de classe e cor. Após sua decisão de construir sua carreira acadê-
mica e intelectual na Inglaterra, aproximou-se dos militantes nacionalistas e dos meios da es-
querda marxista, que lutavam pelo fim do colonialismo. “A maioria dos meus amigos eram expa-
triados e retornaram para desempenhar funções na Jamaica, Trindade, Barbados e Guiana. Éra-
mos apaixonados pela questão colonial” (HALL, 2006, p. 395).
Foi justamente nas conjunturas das décadas de 50 e 60 do século XX na Inglaterra que se
consolidou não apenas um marxismo centrado na análise cultural, mas uma crítica radical a
cultura da sociedade burguesa. Hall integra-se ao grupo desses emergentes pesquisadores
ingleses, que desconstruíram a noção conservadora de cultura, presente em Para André Mattelart
e Éric Neveu (2004, p.34), em Introdução aos Estudos Culturais3, esses debates característicos do
século XIX, relaciona-se a “(...) centralidade de uma reflexão gerada pelo impacto da revolução
industrial, sobre a cultura nacional, com as ameaças que ela faria pesar tanto sobre a coesão
social como sobre a preservação de uma vida intelectual.”
O debate no qual Stuart Hall achava-se inserido nesse momento, foi profundamente mar-
cado pela conjuntura pós-guerra e pela guerra fria, contexto decisivo para a reconstrução de um
pensamento crítico sobre a cultura burguesa. Nesta situação de “ruptura significativa” - conceito
desenvolvido por Hall, para analisar aqueles momentos históricos em que velhas correntes de
pensamento são rompidas, onde “(...) elementos novos e velhos são reagrupados ao redor de uma
nova gama de premissas e temas”(HALL, 2006, p. 123) - os trabalhos mais significativos que
determinaram esta ruptura começaram a surgir. São eles, em 1957, As utilizações da cultura, de
1
Professor Adjunto da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira (Unilab/Campus
Malês)
2
Hall faleceu aos 82 anos, em 2014, devido a graves problemas de saúde, era casado com a historiadora Catherine
Hall.
3
Nesse livro os autores procuram reconstituir os trabalhos e debates dos estudos culturais, introduzindo
questionamentos e apresentando as transformações da noção de cultura no século XX. MATTELART, André &
NEVEU, Érik. Introdução aos estudos culturais. São Paulo: Parábola Editoral, 2004.
mação clássica, quando jovem, leu T. S. Eliot, James Joyce, Freud, Marx, Lenin (2006, p.388).
Em sua fase intelectual mais madura os seus trabalhos apresentam influência bastante heterodo-
xa, Hegel, Marx, Weber, Gramsci, Barthes, Bakhtin, Louis Althusser, Raymond Williams, Ri-
chard Hoggart, Edward P. Thompson, Gayatri Spivak, Paul Gilroy, Cornel West, Homi Bhabha,
Judith Butler, Bell Hooks. Desde cedo, ainda jovem, ansiava pelo fim do imperialismo e pela
autonomia do governo jamaicano. Começou a se envolver politicamente e se interessar na for-
mação dos partidos políticos do seu país e na emergência dos sindicatos e movimentos trabalhis-
tas no final da segunda guerra mundial.
Bem, eu li os ensaios de Marx – o manifesto comunista, O trabalho assalariado e o Capi-
tal; li Lenin sobre o imperialismo. Foram leituras importantes muito mais no contexto do
colonialismo do que do capitalismo ocidental. As questões de classe estavam claramente
presentes no debate político sobre o colonialismo na Jamaica, e também a questão da po-
breza, o problema do desenvolvimento econômico, etc (2006, p. 390).
Começou a colaborar com a revista New Left Review, tornando-se seu editor entre 1959 e
1961. Hall fez parte da Nova Esquerda na Inglaterra, dado ao seu interesse pelo marxismo, mas a
partir do momento em que a União Soviética invadiu a Hungria e a Inglaterra invadiu o Suez,
ingressou na ala antistalinista, de oposição a União Soviética. Dialogou com o Partido Comunis-
ta, mas de forma independente, nunca se tornou um membro do partido. Na década de 50, ajudou
a criar a Sociedade Socialista, lugar de encontro das mentes independentes de esquerda e da clas-
se trabalhadora, Perry Anderson fez parte desse grupo. Ainda que não escrevesse sobre diáspora
e política negra nesse momento histórico, “tinha uma perspectiva diaspórica sobre minha posição
na Nova Esquerda”(2006, 398). Dizia estar mais preocupado com a renovação das ideias socia-
listas que a renovação de partidos de esquerda, daí sua recusa e desconfiança a filiação aos parti-
dos, à luz da experiência stalinista. “Um pé dentro, outro fora” (2006, p.400). Estava preocupado
com o trabalho de base, em promover ocupação de espaço, sem organizá-lo, “(...) sem impor às
pessoas a escolha de uma lealdade institucional” (2006).
Sua grande preocupação teórica com o marxismo era não construir uma nova interpreta-
ção reducionista, logo, despertou interessou nos estudos culturais pela classe social, numa pers-
pectiva dos trabalhos de Richard Hoggart e Raymond Williams. O sentido do materialismo histó-
rico empregado por Walter Benjamim, também o influenciou profundamente, entre outros auto-
res. Durante os anos de 1980, foi um dos principais críticos do thatcherism, tendo participado
ativamente no jornal Marxism Today, que acabou por influenciar líderes trabalhistas.
Escrito em 1983, em meio aos eventos que faziam alusão aos 100 anos da morte de Karl
Marx, Hall produziu o ensaio O problema da ideologia – o marxismo sem garantias, publicado
no livro Marx: 100 anos em Londres, sob a organização da Betty Matthews. Esse livro, contou
também com as contribuições de especialistas renomados, tais como, G. A. Cohen, Michele Bar-
ret, Ben Fine, Peter de Francia, Alan Hunt, Yonne Kapp, Gregor McLennan, George Rudé,
Göran Therborn e Gwyn Williams.
Cremos que o título desse ensaio foi tomado de empréstimo do trabalho escrito por
Gramsci, “Os problemas do marxismo”. Hall procurou identificar as fragilidades e limitações
mais marcantes das formulações marxistas clássicas sobre ideologia, ao mesmo tempo, avaliar os
seus ganhos e o que merecia ser descartado. Para ele, o que tem garantido uma qualidade de vi-
da-após-a-morte do marxismo, de estar sempre sendo “transcendido” e “preservado”, é o pós-
marxismo, que se utiliza dos seus conceitos e, ao mesmo tempo, “paradoxalmente”, demonstra a
inadequação destes. Sua perspectiva sempre fora de uma “aproximação” e “distanciamento” para
poder desenvolver uma autocrítica, ou seja, “(...) trabalhar na vizinhança do marxismo, sobre o
marxismo, contra o marxismo, com ele e para tentar desenvolvê-lo”(2006, p.191). Esse ensaio
surgiu num momento em que as discussões sobre ideologia tornaram-se um problema. Para Perry
Anderson (1976), em seu trabalho sobre o marxismo na Europa ocidental, havia uma intensa
preocupação com as questões ideológicas, provocando certo descompromisso com outros temas
caros apontados por Karl Marx, como por exemplo, as lutas políticas em massa. A preocupação
de Hall com a ideologia, enquanto um teórico prático, não se desvinculava da necessidade de
atualização do debate com a luta política de massa.
De início, Hall apresenta a sua formulação teórica sobre o seu objeto de análise - o pro-
blema da ideologia – dentro de uma teoria materialista.
Por ideologia eu compreendo os referenciais mentais – linguagens, conceitos, categorias,
conjunto de imagens do pensamento e sistemas de representação – que as diferentes clas-
ses e grupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar e tornar inteligível a
forma como a sociedade funciona (2006, p. 250).
Nesse texto, a questão central reside no “problema da ideologia”, ou seja, como idéias
diferentes tomam conta das mentes das massas, tornando-se uma “força material”, ou como um
conjunto particular de ideias passa a dominar o pensamento social de um bloco histórico. Ele re-
conhece que na obra de Marx e Engels não existe uma teoria da ideologia para um pronto con-
sumo, afirma ainda que, Marx não desenvolveu uma explicação geral sobre o funcionamento das
ideias sociais, seus “comentários” sobre a ideologia nunca pretenderam alcançar o status de “lei”.
Nesse sentido Hall aponta que o problema dos marxistas clássicos foi considerar os “comentá-
rios” como teorizações completas. Ele vê nos trabalhos de Karl Marx e Friedrich Engels, mais
precisamente em A ideologia alemã e A pobreza da filosofia, livros que combatem as ideias bur-
guesas, um rígido determinismo estrutural e um duplo reducionismo – econômico e de classe.
Para Hall, Marx empregou com freqüência o termo “ideologia” para se referir às manifestações
do pensamento burguês. Uma das teses mais elaboradas de Marx consiste na defesa teórica de
que as ideias surgem das condições materiais e refletem as circunstâncias nas quais foram gera-
das, elas expressam as relações sociais e suas contradições no pensamento. O seu objetivo era
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 1 | Ano 2019 | p. 79
Stuart Hall e os debates marxistas: o legado de um teórico cultural
combater a ideologia burguesa, a noção de que as ideias constituíam o motor da história ou que
avançavam independentemente das relações materiais, gerando seus próprios efeitos.
Hall toma por base as reflexões de Marx sobre o circuito econômico do capital. Sobre as
trocas de mercado, Marx afirmara que: “A única força que os une e os coloca em relação um
com o outro é o egoísmo, o lucro e os interesses particulares de cada um (apud HALL, 2006, p.
260)”. O problema da ideologia, quando foi produzido, elaborou uma releitura de Marx à luz das
críticas e teorias mais recentes e avançadas, desta forma, Hall apresenta a seguinte interpretação:
O mesmo processo – produção e troca capitalista – pode ser expresso por uma estrutura
ideológica distinta, pelo uso de diferentes “sistemas de representação”. Existe o discurso
do “mercado”, o discurso da “produção”, o discurso dos “circuitos”: cada um produz uma
definição distinta do sistema. Cada um nos localiza distintamente – como trabalhador, ca-
pitalista, trabalhador assalariado, os escravos do salário, produtor, consumidor, etc. As-
sim, cada um nos situa como atores sociais e como membros de um grupo social em uma
relação particular com o processo e prescreve para nós certas identidades sociais (2006, p.
267).
E, arrasta este tipo de reflexão para a ideologia, apoiando-se em Laclau e em tantas outras
releituras que vigorosamente têm sido apresentadas, de que as ideias e conceitos particulares não
“pertencem” exclusivamente a um tipo particular de classe. Tais contestações apóiam-se nos es-
tudos da linguagem e do discurso, ao afirmarem que as ideias não ocorrem no pensamento de
forma única e isolada com seus conteúdos e referenciais irrevogavelmente fixos. A luta ideológi-
ca e a transformação da consciência estão dentro de uma “lógica” que conecta uma proposição a
outra na cadeia de significados. Tendo como referencial analítico Mikhail Bakhtin sobre os estu-
dos da linguagem e o marxismo de Antonio Gramsci, Hall prefere pensar numa noção mais con-
creta da ideologia, ao invés de uma teoria geral e abstrata.
A imagem dos grandes e imutáveis batalhões de classe carregando a pesada bagagem
ideológica que lhes é atribuída, no campo da luta, com seus números de registro ideológi-
co nas costas, como se referiu Poulantzas no passado, é substituída aqui pela infinidade de
sutis variações pelas quais os elementos de um discurso parecem combinar e recombinar
espontaneamente uns com os outros, sem quaisquer restrições materiais a não ser aquelas
fornecidas pelas próprias operações discursivas (2006, p. 269).
Na esteira gramsciana, Hall afirma que a luta ideológica não acontece pelo deslocamento
integral de um modo de pensamento de classe em favor de um sistema inteiramente pronto de
ideias. A luta ideológica é uma guerra de posições, o que significa articular diferentes concep-
ções de ideias dentro de toda uma cadeia de ideias associadas, ou seja, “(...) significa articular
esse processo de desconstrução e reconstrução ideológica a um conjunto de posições políticas
organizadas a um conjunto particular de forças sociais” (2006, p. 270).
Suas releituras são contrárias ao materialismo vulgar no que tange a fixidez das ideias à
posição de classe, mas reconhece que ideias surgem das condições materiais nas quais os grupos
e classes sociais existem e podem refleti-las. A essa combinação e recombinação de ideias, Hall
conceitua como um alinhamento tendencial dentro de certos limites e horizontes, e vê em Marx
do O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte uma relação mais complexa na equação entre posição
de classe e as ideias. “Creio que isso é o que Marx tinha em mente ao afirmar no Dezoito brumá-
rio, não ser necessário que as pessoas ganhassem a vida como membros da velha pequena bur-
guesia para serem atraídas pelas ideias da pequena burguesia” (2006, p.270). Ele afirma ainda
que, a predominância das ideias dominantes não é garantida pelo fato de estas estarem atreladas
às classes dominantes, ressalta que o domínio do senso comum: essa forma histórica espontânea
de pensamento popular, fragmentada, desconexa e episódica; é composto de todas as formações
ideológicas contraditórias. “A relação entre o senso comum e o nível superior da filosofia é ga-
rantida pela política” (GRAMSCI apud HALL, 2006, p.272) Por fim, Stuart Hall conclui que o
econômico não pode produzir um fechamento final do domínio da ideologia, no sentido estrito
de sempre garantir um resultado, assegurar sempre um conjunto particular de correspondências
ou fornecer modos particulares de raciocínio a classes específicas. A abertura relativa ou a inde-
terminação relativa é necessária ao próprio marxismo enquanto teoria.
Compreender a “determinação” em termos do estabelecimento de limites e parâmetros, da
definição de espaços de operação, das condições concretas de existência, do caráter “já
dado” das práticas sociais, em vez da previsibilidade absoluta de resultados específicos, é
a única base de um “marxismo sem garantias finais” (HALL, 2006, p. 274).4
4
Hall tinha uma posição contrária às preeminências do econômico sobre todas as outras instâncias indistintamente.
Como se vê em alguns trabalhos, para Octávio Ianni, organizador de um trabalho clássico no Brasil – coleção gran-
des clássicos das ciências sociais – na análise do regime capitalista de produção, Marx não se restringiu às relações
econômicas, ao analisar o capitalismo ele apanha os fenômenos como fenômenos sociais totais, nos quais sobressa-
em o econômico e o político, como duas manifestações combinadas e mais importantes das relações entre as pesso-
as, grupos e classes sociais. Em cada época, prossegue Ianni, as determinações econômicas, políticas, religiosas ou
outras, organizam-se e determinam-se reciprocamente de modo diverso. No capitalismo, os antagonismos fundados
nas relações econômicas adquirem preeminência sobre todos os outros, enquanto determinação estrutural. IANNI,
Octávio. Marx. São Paulo: Editora Ática, 1980.
perspectiva dentro do marxismo. Na análise do ensaio em questão, Hall toma por base as refle-
xões do Althusser, que por ora já observamos, complementando com os conceitos de diferença,
do Jacques Derrida e da linguagem do Bakhtin, passando por Foucault e Gramsci. O texto inicia
a discussão a partir da noção de totalidade construída por Karl Marx, como um conjunto das re-
lações que compõem a sociedade, como uma estrutura complexa entre os seus níveis, econômico,
político e ideológico. Contrário a ideia de que numa formação social tudo interage com tudo, não
possuindo assim prioridades determinantes, Hall recorre às teorizações de Althusser sobre dife-
rença, para embasar suas reflexões.
Sua [Althusser] ruptura com a concepção monística do marxismo demandou a teorização
da diferença – o reconhecimento de que há distintas contradições sociais cujas origens são
também diversas; que as contradições que impulsionam os processos históricos nem sem-
pre surgem no mesmo lugar, nem causam os mesmos efeitos históricos. Devemos pensar
sobre a articulação entre as diversas contradições, sobre as distintas especificidades e du-
rações pelas quais elas operam, sobre as diferentes modalidades nas quais funcionam
(2006, p. 152).
gica de classe”. Essa revolução não foi produto de todo um proletariado, unido por trás de uma
única ideologia revolucionária.
Contudo, como Lênin surpreendentemente observou, 1917 aconteceu de fato ‘como resul-
tado de uma situação histórica única, correntes absolutamente dessemelhantes, interesses
de classe absolutamente heterogêneos, conflitos políticos e sociais absolutamente contrá-
rios... fundiram-se de forma espantosamente harmônica (2006, p. 157).
O exemplo da revolução de 1917 serve para nos afastar das posições clássicas de deter-
minação. Pois, o intuito de uma prática política teoricamente informada, esclarece Hall, é provo-
car ou construir a articulação entre as forças sociais e econômicas e aquelas formas de política e
ideologia que possam levá-las, na prática, a intervir na história de forma progressista. Aqui te-
mos uma clara articulação entre estrutura e prática. Neste ponto, o teórico caribenho apresenta
sua concepção de estrutura, esta, é o resultado das condições dadas de existência, a estrutura das
determinações pode ser o resultado de práticas anteriormente estruturadas. “A prática é a forma
como uma estrutura é ativamente reproduzida” (2006, p. 158). Há uma relativa autonomia da
prática, de forma que as estruturas exibem tendências – linhas de força, aberturas ou fechamentos
que constrangem, modelam, canalizam e, nesse sentido, “determinam”.
Em sua obra A Miséria da Teoria ou um planetário de erros – uma crítica ao pensamento
de Althusser, Thompson apresenta severas críticas ao trabalho A Favor de Marx, o seu objetivo
era oferecer “correções epistemológicas a um rigoroso filósofo parisiense” (1981, p.13). No catá-
logo de erros apontados por Thompson ao trabalho de Althusser, alguns fundamentais, o histori-
ador inglês foi inábil ao não reconhecer avanços reais na discussão sobre ideologia apresentada
por Althusser, aponta Hall. No ensaio Aparelhos Ideológicos do Estado, esse intelectual caribe-
nho também constata uma série de problemas no pensamento althusseriano, quanto ao problema
da ideologia, aqui ela aparece como exclusiva de uma classe, de forma funcionalista. “A ideolo-
gia parece exercer a função que dela se demanda – qual seja, reproduzir a dominância da ideolo-
gia dominante, exercê-la com eficácia e continuar assim, sem encontrar qualquer ‘contra-
tendência” (2006, p. 163).
Ao mesmo tempo em que Hall reconhece avanços nos estudos de Althusser sobre a ideo-
logia, aponta também certos obscurecimentos, principalmente no ensaio Aparelhos Ideológicos
do Estado. Ao apostar na idéia do descentramento do sujeito, Althusser deixa sem solução a
questão da subjetivação e da incorporação subjetiva da ideologia, ainda que reconheça que os
sujeitos são interpelados pela ideologia. Observa ainda que, num processo de luta ideológica, as
ideologias não se encontram inscritas desde sempre, elas apresentam mudanças de ênfase, num
processo constante e sem fim. As reflexões de Hall apóiam-se em Bhatkin, na plurivalência do
signo ideológico, em termo marxista, na luta de classe na linguagem. Assim o define a ideologia:
sistema de representações – composto de conceitos, ideias, mitos ou imagens – nos quais os ho-
mens e as mulheres vivem suas relações imaginárias com as reais condições de existência. Por
fim, para Stuart Hall, Althusser provocou uma revolução teórica, depois de “Contradição e So-
bredeterminação” o debate sobre a formação social e a determinação5 no marxismo nunca será o
mesmo.
A ideologia como sistema de representação, nas décadas posteriores a publicação desse
ensaio, foi um dos grandes objetos de estudo de Stuart Hall. Tendo a mídia como uma grande
produtora de representações ideológicas, suas análises voltaram-se para as formas como a ideo-
logia opera nesses meios. Em Cultura e Representação, mas especificamente no capítulo O papel
da representação, Hall sistematiza sua teoria sobre a prática da representação a partir dos traba-
lhos de Derrida, Saussure, Barthes e Foucault, entre outros. Em entrevista realizada em 1994,
dizia: “Penso que no manuscrito de 1857 já existe uma noção do real como algo cuja existência
só pode ser produzida discursivamente” (2006, p. 338). Ele apresenta a ideologia como sistema
de representação, como produção de sentidos pela linguagem. Utiliza como exemplo sua experi-
ência social enquanto um sujeito negro, que viveu na Inglaterra mais de trinta anos para demons-
trar como o conceito geral de ideologia de Althusser nos permite pensar certas formações ideoló-
gicas. No breve exemplo pessoal, relata que na Inglaterra era interpelado como “pessoa de cor”,
“preto”, “west indian” ou “imigrante”, enquanto na Jamaica, onde viveu sua juventude e adoles-
cência, era tratado como “de cor”. Os “negros” na Jamaica eram o resto – a vasta maioria do po-
vo, a gente comum. Ser “de cor” era pertencer ao nível da classe média. O relato foi evidenciado
para contrapor a idéia presente em Aparelhos ideológicos de estado de que somos “já e sempre”
sujeitos. “Na verdade, somos falados ou falam por nós, nos discursos ideológicos que nos aguar-
dam desde o nosso nascimento, dentro dos quais nascemos e encontramos nosso lugar” (2006, p.
179).
A relevância de Gramsci para o estudo de raça e etnicidade foi um ensaio originalmente
apresentado no colóquio sobre “Perspectivas teóricas na análise do racismo e da etnicidade”, or-
ganizado em 1985 pela divisão de Direitos Humanos e Paz da UNESCO em Paris. Apesar de
Gramsci não ter escrito ensaios ou teorizado sobre questões da raça, etnia ou racismo, nem ter
analisado em profundidade a experiência colonial ou imperialismo, seus conceitos podem “(...)
ser úteis à nossa tentativa de pensar a suficiência dos paradigmas da teoria social nessas áreas”,
observa Stuart Hall (2006, p. 282). Esse teórico da cultura, sempre se preocupou em analisar a
cena política, econômica e cultural, e via nas obras de Gramsci, uma inspiração intelectual perti-
5
Para Michael Löwy, a partir de 1877 os escritos de Karl Marx e Friedrich Engels significam uma ruptura profunda
com qualquer interpretação unilinear, evolucionista, etapista e eurocêntrica do materialismo histórico, “(...) eles
[Marx e Engels] sugerem uma perspectiva dialética, policêntrica, que admite uma multiplicidade de formas de
transformação histórica, e sobretudo, a possibilidade que as revoluções sociais modernas comecem na periferia do
sistema capitalista e, não como afirmavam alguns de seus escritos anteriores, no centro”. MARX, Karl & ENGELS,
Friedrich. Lutas de Classes na Rússia. Organização e Introdução Michael Löwy. São Paulo: Editora Boitempo,
2013.
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 1 | Ano 2019 | p. 85
Stuart Hall e os debates marxistas: o legado de um teórico cultural
nente para análise das relações sociais contemporâneas. E, outro aspecto importante para a esco-
lha deste marxista italiano para a construção do seu ensaio sobre raça e etnicidade, foi porque
Gramsci sempre trabalhou dentro do paradigma marxista, revisando, renovando e sofisticando
muitos dos aspectos de sua estrutura teórica. Para Hall, Gramsci não foi um “marxista” no senti-
do doutrinário, ortodoxo ou “religioso”, ele reconhecia que a estrutura geral da teoria de Marx
tinha que ser constantemente desenvolvida teoricamente.
A obra de Gramsci não é uma obra geral das ciências sociais, como são as obras dos “pais
fundadores”, a exemplo de Max Weber e Émile Durkheim, com esta afirmação, Hall inicia sua
exposição sobre a relevância deste marxista. Seus escritos, por vezes produzidos em condições
adversas – como é o caso dos Cadernos do Cárcere, condicionou ao corpo principal de suas
ideias a escritos dispersos e fragmentados, desta forma sua produção não aparece como uma obra
geral e sintetizada, a exemplos dos “pais fundadores”.
O fato de não ter produzido num nível mais geral de abstração, não o isentou de desen-
volver conceitos que permitissem compreender os processos mais amplos. Para Hall, Gramsci
compreendeu que os seus conceitos deveriam ser aplicados a estágios específicos do desenvol-
vimento do capitalismo, desenvolveu suas ideias dentro do quadro geral da teoria de Marx. O
próprio Marx, adverte Hall, afirmou que poderíamos “pensar o concreto” através desses níveis
sucessivos de abstração, a produção do concreto no pensamento como algo que ocorre através de
uma sucessão de aproximações analíticas.
Temas abordados por Gramsci, tais como, a situação política italiana nos anos 30, demo-
cracia de classe no ocidente, socialismo, revoluções, hegemonia, a emergência do fascismo, o
moderno estado capitalista, entre tantos outros, requeriam uma “(...) análise das conjunturas his-
tóricas ou dos aspectos políticos e ideológicos específicos – as dimensões tão frequentemente
ignoradas na análise das formações sociais do marxismo clássico” (HALL, 2006, p. 281).
Stuart Hall compreende categoricamente que Gramsci não escreveu diretamente sobre os
problemas do racismo, mas reconhece nos seus temas abordados, “linhas teóricas e intelectuais
de ligação mais profundas com essas questões contemporâneas do que poderia sugerir um breve
olhar sobre seus escritos (2006, p. 284).” Tais constatações são evidentes quando relacionamos a
sua formação teórica e a sua experiência política. Gramsci nasceu na Sardenha, esta região vivia
uma relação “colonial” com a Itália continental, observa Hall, e acrescenta, ele tinha consciência
que as questões de classe eram perpassadas pelas diferenças regionais, culturais e nacionais, pe-
los contrastes entre o desenvolvimento regional e nacional na Itália.
Gramsci faz parte do repertório teórico de Hall, dado aos ataques rigorosos que esse teó-
rico italiano direcionou contra o “economicismo” e o “reducionismo”, dentro do marxismo. A
crítica de Hall a centralidade do econômico, não significa que o mesmo procurou ignorar a pode-
rosa função que as fundações econômicas de uma ordem social ou das relações econômicas do-
minantes de uma sociedade, exercem na forma e estruturação de todo o edifício da vida social.
Para ele, os marxistas “economicistas” simplificaram o conceito de determinação, o que em
Marx, é bastante complexo. Gramsci, no ensaio “O Príncipe Moderno”, discute como se analisa
uma conjuntura histórica específica, nesse trabalho, substitui a abordagem reducionista de inter-
pretação do desenvolvimento político e ideológico a partir de suas determinações econômicas,
por um tipo de análise mais complexa. Hall se aproxima desta forma de abordagem, que ao invés
de caminhar para uma “determinação de mão única”, prefere as “relações de força”, abordagens
apresentam os “vários momentos ou níveis” do desenvolvimento de uma determinada conjuntu-
ra.
É o problema das relações entre a estrutura e a superestrutura que deve ser adequadamen-
te postulado, para que as forças ativas na história de um período específico sejam corre-
tamente analisadas e as relações entre elas compreendidas (GRAMSCI apud HALL,
2006, p. 286).
Pensar nas relações de força evita-se reduzir a esfera das superestruturas políticas e ideo-
lógicas à estrutura ou a base econômica, salienta Stuart Hall. Pautar-se numa concepção baseada
na “(...) convicção férrea de que existem leis objetivas de desenvolvimento histórico semelhantes
à lei natural, junto com a crença em uma teleologia predeterminada, como a da religião (...)
(GRAMSCI apud HALL, 2006, p. 287)”, é identificar incorretamente com o materialismo histó-
rico. O conceito de hegemonia elaborado por Antonio Gramsci foi um dos seus impulsos para
entender as sociedades como totalidades complexamente estruturadas, com níveis de articulação
combinado distintamente, de forma que cada combinação origina uma nova configuração de for-
ças sociais.
A categoria conceitual, relações de força, inspirou Hall em suas análises conjunturais e
foi amplamente utilizada em seus estudos sobre cultura e identidade, mais precisamente em seus
artigos “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’ e no ensaio “Que ‘negro’ é esse na cultura ne-
gra?” Nesses debates, ele discute, como os agentes sociais numa cultura de classe ou os ativis-
tas/militantes das organizações negras tendem a introduzir a ideia de que se busca a vitória abso-
luta ou uma total incorporação de um conjunto de forças em outra. O que interessa a Hall, em sua
leitura gramsciana, são os movimentos das forças históricas, no terreno concreto da luta do de-
senvolvimento político e social. De forma que, a ideia da vitória “absoluta” e total da burguesia
sobre as classes trabalhadoras ou a total incorporação da classe trabalhadora ao projeto burguês é
totalmente estranha à definição de hegemonia de Gramsci. A política, desta forma, ocupa uma
centralidade no pensamento deste intelectual diaspórico, ao apresentar uma “(...) prioridade sobre
o aspecto militar e somente ela cria as possibilidades de manobra e movimento” (GRAMSCI
apud HALL, 2006, p. 293).
Em suas discussões teóricas sobre cultura e nas análises sobre determinadas conjunturas
específicas ele deixa evidente que a hegemonia tem um caráter multidimensional, ela não pode
ser construída ou sustentada sobre uma única frente (por exemplo, a econômica). A hegemonia
enquanto “bloco histórico”, além de ter seus elementos de liderança, também apresenta em sua
composição estratos das classes subalternas e dominadas que foram conquistadas através de con-
cessões e compromissos específicos, por vezes por meio do consentimento popular, formando
uma constelação social, sendo que estas classes não deixam de ocupar uma função subordinada.
É justamente no interior desse quadro de referências gramscianas que Stuart Hall elabora
suas análises sobre o racismo, enquanto um fenômeno social. Apesar de suas características ge-
rais, o que mais interessa a Hall são as formas pelas quais essas características são modificadas e
transformadas pela especificidade histórica. A estruturação racial e étnica da força de trabalho e
sua composição de gênero, o faz pensar no caráter não homogêneo do “sujeito de classe”. Nesse
sentido ele aponta para a necessidade de abordagens que privilegiem a estruturação racial das
classes trabalhadoras, e que se desprenda do pressuposto: devido ao modo de exploração frente
ao capital ser singular, o “sujeito da classe” explorado pelo capital deve ser o mesmo economi-
camente, mas também política e ideologicamente. Os modos de operação da exploração dos dis-
tintos setores da força de trabalho não são idênticos.
Seja qual for o caso, a análise de Gramsci, que diferencia o processo condicional, os mo-
mentos e o caráter contingente da passagem de uma “classe em si” a uma “classe por si”
ou dos momentos do desenvolvimento “econômico-corporativo” ao “hegemônico”, pro-
blematiza radicalmente essas noções simplistas de unidade. Mesmo o momento “hegemô-
nico” não é mais concebido como um momento de unidade simples, mas como um pro-
cesso de unificação (nunca totalmente alcançado), fundado nas alianças estratégicas entre
os setores, não em sua identidade pré-determinada (HALL, 2006, p. 311).
À guisa de conclusão
Os críticos6 de Stuart Hall, de certa forma, não duvidam do seu caráter anticapitalista,
mas lamentam uma ausência de uma crítica da economia política. Acredita-se que ele se distan-
ciou da crítica da economia política, do materialismo, em suas produções teóricas nas décadas
posteriores a estes três ensaios analisados, ou seja, a partir dos anos finais da década de 1980,
houve um abandono das questões de classes e transformação social. Ledo engano.
Hall sempre apresentou um diálogo constante com o marxismo, sua relação com o mate-
rialismo sempre se pautou numa noção problematizadora, na esteira de Antonio Gramsci, Louis
Althusser e Mikhail Bakhtin, procurou não estabelecer um vínculo direto entre o materialismo e
economicismo, fazendo com que seu método de investigação evidenciasse uma articulação entre
6
Ver STEVANIN, Luiz Felipe Ferreira. Sobre pontes e abismos: aproximações e conflitos entre os estudos culturais
e a economia política da comunicação a partir da obra de Stuart Hall. Matrizes. Vol. 10, n.03, set/dez, 2016, pp. 173-
186.
as instâncias políticas, ideológicas e econômicas. “Os homens fazem sua própria história, mas
não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam direta-
mente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX apud STEVANIN, 2016).
Quando Hall afirma que é na luta ideológica que se dá a luta de classe, elege o campo da
ideologia como categoria de análise teórica, conforme já apresentamos, sua noção de ideologia,
envolvia também elementos da linguagem (estudos bakhtinianos) e estava condicionada aos as-
pectos históricos e sociais, ou seja, as condições sociais concretas de existência, para compreen-
são do real histórico.
REFERÊNCIAS
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